Diário de uma Ilusão - Philip Roth

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    1. MAESTRO

    Foi na ltima hora de luz do final de uma tarde de dezembro, h mais de vinte anos na poca, eu tinha vinttrs anos, escrevendo e publicando meus primeiros contos, e como tantos heris Budungsroman anteriores a mij contemplava meu volumoso Budungsroman quando cheguei ao refgio do grande homem para conhec-A casa de madeira ficava no final de uma estrada de terra, a quatrocentos metros de altitude nos montes Berkshi

    no obstante, o homem que saiu do escritrio para me receber com um cerimonioso cumprimento usava um terde gabardine, uma gravata de tric azul presa camisa branca por um discreto prendedor de prata, sapatos pret polidos como os de um Ministro de Estado, como se acabasse de descer de uma cadeira de engraxate e no um venerado santurio da arte. Antes que eu me recompusesse o bastante para reparar no ngulo imperiosoaristocrtico em que ele mantinha o queixo, ou na preocupao meticulosa, majestosa, quase pedante, que teve ajeitar as roupas antes de se sentar na verdade, antes que eu pudesse notar qualquer outra coisa seno o espande ter conseguido eu, partindo de total ignorncia literria, chegar sua presena minha impresso foi de queI. Lonoff mais aparentava ser o superintendente das escolas locais do que quaisquer outros personagens dos moriginais escritores da regio desde os tempos de Melville e Hawthorne.

    Os comentrios em Nova York me davam motivo para esperar algo to grandioso. Quando, recentemente, mencionara seu nome perante os "entendidos" em minha primeira noite de autgrafos em Manhattan qual chegara deslumbrado como uma atriz principiante que se v repentinamente elevada ao estrelato, conduzido pum idoso editor , Lonoff fora quase imediatamente ignorado pelos "intelectuais" presentes, como se foscmico um judeu de sua gerao, sobretudo imigrante, casar-se com a herdeira de uma tradicional famlia da NoInglaterra e viver durante tantos anos "no campo" isto , nos ermos goyish, povoados de pssaros e cobertos matas, onde os Estados Unidos tiveram incio e h tempos haviam terminado. Todavia, como todos os autorfamosos que mencionei durante a festa tambm foram um tanto ridicularizados pelos "eruditos" presentes, senme um tanto ctico quanto satrica descrio que fizeram do famoso refgio rural de Lonoff. Na realidaddevido ao que vi na festa, pude comear a entender por que motivos refugiar-se a quatrocentos metros de altitudtendo por nica companhia os pssaros e as rvores, talvez no fosse m idia para um escritor judeu ou no.

    A sala de estar para onde ele me conduziu era simples, bem arrumada e acolhedora: um grande tapete circul

    artesanal, algumas poltronas, um velho sof, uma comprida parede forrada por estantes cheias de livros, um pianum toca-discos, uma mesa de carvalho com pilhas de revistas e publicaes sistematicamente arrumadas. Acidos lambris brancos, as paredes amarelas tinham por nica decorao meia dzia de aquarelas, feitas por uamador, mostrando a velha casa de fazenda em diferentes pocas do ano. Alm dos largos peitoris forrados coalmofadas e das desbotadas cortinas de algodo meticulosamente abertas, pude avistar os galhos desfolhados grandes bordos escuros e campos cobertos de neve. Pureza. Serenidade. Simplicidade. Isolamento. Todaconcentrao, brilho e originalidade de uma pessoa preservados para a vocao extenuante, exaltantranscendente. Olhando em volta, refleti: " assim que viverei".

    Aps indicar-me uma confortvel poltrona perto da lareira, Lonoff certificou-se de que a chamin estava aberAcendeu comum fsforo os gravetos que, aparentemente, tinham sido preparados na expectativa de nos

    encontro. Em seguida, colocou a grade de proteo to precisamente quanto se existisse um sulco apropriadiante da lareira. Afinal, certificando-se de que a lenha pegara fogo seguro de que conseguira acender a laresem causar perigo velha casa de duzentos anos ou a seus. ocupantes veio juntar-se a mim. Com movimende uma rapidez e delicadeza quase femininas, ajustou os vincos das calas e sentou-se. Movia-se com notvagilidade para algum to pesado e corpulento.

    Como prefere ser chamado? perguntou-me Emanuel Isidore Lonoff. Natham, Nate ou Nat? Ou talguma outra preferncia?

    Disse-me que os amigos e conhecidos o tratavam por Manny e que eu deveria fazer o mesmo.

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    Isso facilitar a conversa comentou.

    Tive dvidas quanto a isto, mas sorri para mostrar que, por mais que tal intimidade me confundisse, estadisposto a obedecer. Ento, o mestre confundiu-me ainda mais ao pedir que eu lhe contasse a respeito de minvida. No preciso dizer que, em 1956, no havia muito para se contar a respeito de minha vida na minopinio, pelo menos, no havia muito que pudesse interessar a um homem to sbio e profundo como ele. Fcriado por pais devotados num bairro de classe mdia de Newark; tinha um irmo mais moo que, segundo dizia, me idolatrava; num bom ginsio local e, depois, numa excelente universidade, apresentei o desempenho q

    geraes de meus ascendentes esperavam de mim; subseqentemente, prestei servio militar no Exrcito, nuquartel situado a uma hora de minha casa, redigindo artigos de relaes pblicas para um major de Fort Denquanto o massacre para o qual minha carcaa fora convocada chegava a uma sangrenta concluso na CorAps dar baixa, passei a morar e escrever num pequeno apartamento de quinto andar, sem elevador, numtransversal da Broadway, que minha namorada descrevia quando vinha arrum-lo e compartilh-lo comigo como o lar de um monge libertino.

    Para prover meu sustento, atravessava o rio at New Jersey, trs vezes por semana, para o emprego que tiveintermitentemente desde minhas primeiras frias de vero na universidade, quando respondera a um anncio qprometia elevadas comisses a vendedores ambiciosos. s oito da manh nossa equipe era levada a alguma cidaindustrial de New Jersey, a fim de vender a domiclio assinaturas de revistas; as seis da tarde, reunamo-nos e

    um local predeterminado, onde ramos apanhados por nosso supervisor, McElroy, e levados de volta a NewaMcElroy, um janota estrambtico, com um bigodinho que parecia uma risca de lpis de sobrancelha, nocansava de advertir-nos ramos dois rapazes idealistas, empregando todos os ganhos no custeio do curuniversitrio, e trs desanimados veteranos, plidos, barrigudos, derrotados por todos os infortnios concebv para no nos engraarmos com as donas-de-casa que encontrssemos sozinhas com rolinhos nos cabelos: umarido furioso poderia nos quebrar o pescoo, talvez fssemos vtimas de chantagem por agresso, ou estvamsujeitos a contrair uma dentre cinqenta variedades horrveis de doenas venreas; alm disso, o dia s tem udeterminado nmero de horas de trabalho. McElroy dizia friamente:

    Ou vocs vo para a cama com as mulheres, ou tratam de vender assinaturas da Silver Screen. Escolham enas duas opes.

    Ns dois, universitrios, o apelidamos de "O Moiss". Dei.de que nenhuma dona-de-casa demonstrou o desejo convidar-me a entrar, mesmo que fosse para descansar os ps e naquela poca eu estava sempre alertaprocura do menor sinal de lascvia por parte de qualquer mulher de qualquer idade que se mostrasse dispostescutar-me pelo postigo da porta fui obrigado a optar pela perfeio no trabalho e abrir mo dos prazeres; econseqncia, ao final de cada longo dia de exaustiva labuta, tinha a meu crdito entre dez e vinte dlares comisso, bem como um futuro sem mcula pela frente. Havia apenas algumas semanas que eu abandonara aquevida profana bem como a namorada do apartamento de quinto andar sem elevador, a quem eu j no amava e, com o auxlio do distinto editor de Nova York, fora recebido de braos abertos como participante, nos mesesinverno, da Quahsay Colony, o refgio rural de artistas situado logo alm do limite do Estado e prximomontanha de Lonoff.

    De Quahsay, eu enviara a Lonoff as revistas literrias que haviam publicado meus contos quatro, at ento junto com uma carta explicando o quanto ele significara para mim quando eu conhecera sua obra na universida"alguns anos atrs". Aproveitei para mencionar que tomara conhecimento de seus "parentes" Chekhov e Gogacrescentando outras provas irrefutveis de minha sinceridade como literato e, simultaneamente, de minjuventude. Na verdade, nada do que eu escrevera at ento me causara tanto trabalho e ansiedade quanto aqucarta. Tudo o que era verdade indubitvel me soava falso ao ser transportado para o papel; quanto maior mesforo para demonstrar sinceridade, pior o resultado. Finalmente, enviei a dcima minuta da carta e chegueenfiar a mo pela caixa do correio para peg-la de volta.

    No consegui melhor desempenho ao relatar minha autobiografia naquela sala simples e acolhedora. Inibido pronunciar a mais leve obscenidade diante da venervel lareira de Lonoff, sou obrigado a admitir que min

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    imitao do Sr. McElroy que tanto sucesso fazia entre meus amigos foi muito pouco recomendvTambm no tive facilidade para falar nas coisas sobre que McElroy nos advertira, nem para mencionar mintendncia a ceder tentao se ocorresse alguma oportunidade. Ao ouvir uma verso expurgada de uma biograpor si bastante inspida, ter-se-ia a impresso de que, ao invs de haver recebido uma carta amistosa e delicada famoso escritor convidando-me a passar uma tarde agradvel em sua casa, eu viera defender um caterrivelmente importante diante do mais severo juiz, e o menor deslize significaria a perda definitiva de alincomensuravelmente valioso.

    Era bem verdade, embora na poca eu ainda no me desse conta de quanto desejava desesperadamente a saprovao, nem do motivo para isso. Longe de me sentir confuso por minha narrativa tmida e ofegante poucaracterstica naquela poca em que me sentia to autoconfiante ficaria surpreso por no estar ajoelhado tapete, suplicando aos ps do grande homem. Deve-se compreender que eu viera candidatar-me a nada menos qfilho espiritual de E. I. Lonoff, implorar seu patrocnio moral e, s possvel, conseguir a proteo mgica de samparo e amor. Naturalmente, eu tinha um pai ao qual poderia pedir tudo neste mundo, a qualquer momenTodavia, meu pai era pedicuro, e no artista; ultimamente, haviam surgido graves problemas familiares por caude um novo conto que eu escrevera. Meu pai, perplexo com o que lera, foi procurar seu orientador moral, um Juiz Leopold Wapter, a fim de que este me fizesse ver a luz. Como resultado, aps duas dcadas de dilorelativamente amistoso, no nos falvamos h quase cinco semanas e eu partira em busca de aprovao patriarlonge de casa.

    E no apenas de um pai que fosse artista em vez de pedicuro, mas do mais famoso asceta literrio dos EstadUnidos, o colosso de pacincia, fora e desprendimento que, nos vinte anos decorridos entre seu primeiro e sexlivros (pelo ltimo dos quais lhe conferiram o Prmio Nacional do Livro que ele discretamente recusoupraticamente no tivera leitores ou fama, e era invariavelmente desprezado quando e se mencionado comum extico sobrevivente do gueto do Velho Mundo, um obsoleto folclorista, pateticamente ignorante dprincipais correntes literrias e sociais. Mesmo entre seus leitores, havia quem julgasse que as fantasias de ELonoff sobre os americanos tinham sido escritas em idiche, em algum lugar da Rssia czarista, antes que esupostamente tivesse morrido l (como, na verdade, seu pai quase perecera) em conseqncia de ferimentsofridos durante um pogrom. O mais admirvel para mim era no s a tenacidade que o levara a continuescrevendo a seu prprio modo durante todo aquele tempo, bem como o fato de que, aps ser "descoberto"adquirir popularidade, ter recusado todos os prmios e ttulos, declinando tornar-se membro de sociedadhonorrias, no dando entrevistas pblicas e preferindo no ser fotografado como se a associao de seu rostofico que escrevia constitusse uma irrelevncia ridcula.

    A nica fotografia que o pblico conhecia era um velho retrato amarelado que aparecera na orelha interna edio de 1927 de ITs Your Funeral: o belo jovem artista de olhos amendoados, topete arrogante de conquistadlbios expressivos e sensuais. Agora, ele era to diferente, no s por causa do rosto flcido, da barriga, da cacircundada por cabelos brancos, que pensei (quando consegui raciocinar novamente) que s algo mais impiedoque a passagem do tempo poderia ser responsvel por tal metamorfose: o prprio Lonoff. Excetuando as bastsobrancelhas lustrosas e a posio vagamente erguida da cabea, nada mais havia que identificasse aquele homde cinqenta e seis anos com a fotografia apaixonada, do tipo desamparado e tmido de Valentino que, na dcado reinado de Hemingway e Fitzgerald, escrevera uma coleo de contos sobre judeus errantes diferentes de tuo que j fora escrito por qualquer judeu que vagara pelos Estados Unidos.

    Na verdade, a primeira vez que eu lera os cnones de Lonoff na qualidade de ortodoxo universitrio ateupedante contribura mais que qualquer coisa para fazer-me compreender o quanto ainda eu era o produto minha ascendncia judaica; muito mais que tudo o que eu levara comigo para a Universidade de Chicago dlies de hebraico que recebera na infncia, ou a comida preparada por minha me, ou as discusses que mepais e parentes travavam sobre os perigos do casamento entre judeus e gentios, o problema de Papai Noel injustia da atribuio de vagas nas Faculdades de Medicina (no tardei a perceber que tal distribuio de vagera responsvel por meu pai haver adotado a carreira de pedicuro e ter-se dedicado a apoiar ardentemente, durano resto da vida, a Liga B'nai B'rith Contra a Difamao dos Judeus). J no curso primrio eu era capaz de debat

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    com qualquer pessoa esses complicados assuntos (e o fazia sempre que necessrio) ; quando parti para Chicagporm, minha paixo arrefecera e estava pronto, como qualquer adolescente, a mergulhar no estudo da cadeHumanidades I, ensinada por Robert Hutchins. Todavia, junto com dezenas de milhares de outros, descobri Lonoff, cuja fico me pareceu uma resposta mesma carga de excluso e confinamento que ainda pesava sobrevida dos que me tinham criado e que imprimira em nosso lar implacvel o status dos judeus. O orgulho inspiraem meus pais pela criao, em 1948, de uma ptria na Palestina, que abrigaria o restante dos judeus europeus nassassinados durante a Segunda Guerra, no foi, na realidade, muito diferente do que senti quando tomconhecimento das almas frustradas, secretas e aprisionadas, descritas por Lonoff, e compreendi que de toda

    humilhao sofrida por meu laborioso e confuso pai em sua luta para elevar todos ns, era possvel conceber, squalquer sentimento de vergonha, uma literatura pungente e carregada de espirituosa severidade. Para mim, como se as qualidades alucinatrias de Gogol tivessem passado pelo filtro do humano ceticismo de Chekhov panutrir o primeiro escritor "russo" do pas. Ou, pelo menos, foi o que escrevi no ensaio universitrio em q"analisei" o estilo de Lonoff, guardando em segredo, porm, uma explicao para os sentimentos de afinidade qseus contos tinham revivido em mim para com o nosso cl bastante americanizado comerciantes imigrantpobres, que levavam uma vida shtetl a poucos quarteires de distncia dos grandes bancos e das monumentcompanhias de seguros do centro de Newark; alm disso, sentimentos de afinidades para com nossos religiosodesconhecidos ancestrais, cujas atribuies na Galcia foram apenas pouco menores, na minha opinio pcresci em segurana em New Jersey , que as de Abrao na Terra de Cana. Com seu senso de teatro variedades quanto lenda e ao cenrio (escrevi a respeito de Lonoff em meu ensaio no ltimo ano

    universidade), ele era um Chaplin que sabia escolher o adereo exato para dar vida a toda uma sociedade e smodo de vida; com seu ingls "traduzido" emprestando um sabor levemente irnico at mesmo s expresses mcorriqueiras; com sua ressonncia enigmtica, sonhadora, em surdina, sensao que os pequenos contos produzide dizerem tanto... Bem, perguntava eu, quem havia semelhante a ele na literatura americana?

    O heri tpico de um conto de Lonoff o heri que tanto passou a significar para os leitores eruditos americanda dcada de 50, o heri que cerca de dez anos aps Hitler parecia dizer algo novo e chocante aos judeusrespeito dos gentios e dos prprios judeus, bem como revelava aos leitores e autores daquela dcada regenerativapanorama geral das ambigidades da prudncia e das angstias da desordem, a fome de vida, os compromissos vida, o terror da vida em suas mais elementares manifestaes o heri de Lonoff , na grande maioria dvezes, um ningum que vem do nada, longe de um lar onde sua falta no sentida, mas ao qual, no obstan

    deve regressar sem demora. Sua celebrada mescla de piedade e impiedade (que a revista Time celebrizou comtermo "lonoviano" aps ignorar totalmente o autor durante dcadas) no mais contundente que nos contos eque o confuso heri isolado se prepara para lutar e, de repente, descobre que seu meticuloso raciocnio fesperar um pouco demais para surtir qualquer efeito benfico a algum, ou que, agindo com impetuosidadeousadia pouco caractersticas, julgou de forma totalmente errnea o que de algum modo o levara a abandonar uexistncia controlvel e, conseqentemente, piorou tudo.

    Dentre todos os contos, os mais cruis, espirituosos e perturbadores, nos quais o autor, implacvel, parece-mequilibrar-se beira da autodestruio, foram escritos durante o breve perodo de sua glria literria (pois emorreu em 1961, vtima de uma molstia na medula ssea; e quando Oswald assassinou Kennedy e o baluarte puritanismo se transformou numa gigantesca "republiqueta tipo Amrica Central," a fico de Lonoff e todautoridade que estava emprestada as coisas proibitivas da vida comearam a perder a "relevncia" para uma nogerao de leitores). Em vez de anim-lo, a eminncia de Lonoff parecia reforar suas opinies e imagens mseveras e implacveis, confirmando-lhe as vises de uma restrio final que poderiam dar a impresso de nserem suficientemente amparadas pela experincia pessoal se o mundo lhe negasse a recompensa ereconhecimento at o final da vida. S quando uma pequena parte do ambicionado prmio ficou-lhe ao alcance dmos s quando se tornou nitidamente bvio o quanto ele era espantosamente incapaz de possuir e conservqualquer coisa que no fosse a sua arte sentiu-se inspirado a escrever o brilhante ciclo de parbolas cmicas (contos Vingana, Piolhos, Indiana, Eppes Essen e Adman), nos quais o heri, como uma vtima do suplcio Tntalo, no faz qualquer meno de agir os mais ntimos impulsos no sentido da amplitude ou da desistntotal, muito menos da intriga ou da aventura, so peremptoriamente extintos pelo triunvirato reinante da SanidadResponsabilidade e Auto-Respeito, pressurosamente auxiliados por seus asseclas: o horrio, a chuva, a dor

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    cabea, o sinal de telefone ocupado, o engarrafamento de trfego; e o mais fiel de todos: a dvida de ltiminstante.

    Vendi outras revistas alm de Photoplay e Silver Screen? Usava sempre a mesma abordagem com todos fregueses ou adaptava a conversa de acordo com cada caso? Como explicava meu sucesso na carreira vendedor? Que julgava eu que as pessoas procuravam ao subscreverem aquelas revistas inspidas? O trabalho tedioso? Acontecera algo anormal quando eu percorria bairros desconhecidos por mim? Quantas equipes comdo Sr. McElroy existiam em New Jersey? Como a firma conseguia pagar-me a comisso de trs dlares por ca

    assinatura que eu vendia? Alguma vez eu estivera em Hackensack? O que ocorrera l?Era difcil acreditar que o fato de eu simplesmente procurar ganhar meu sustento at poder comear a viver comele tivesse algum interesse para E. I. Lonoff. Evidentemente, tratava-se de um homem corts e fazia o possvpara me colocar vontade; todavia, enquanto me dedicava a responder o interrogatrio, refleti que ele logo daum jeito de se livrar de mim antes do jantar.

    Eu gostaria de entender tanto a respeito da venda de revistas comentou.

    A fim de indicar que aceitava sua condescendncia e no me ofenderia se fosse dispensado antes do jantar, corei

    Na verdade prosseguiu , gostaria de saber tanto a respeito de qualquer coisa. H trinta anos escre

    fico. Nada acontece comigo.

    Neste ponto, uma linda mulher jovem surgiu diante de mim exatamente quando Lonoff, num leve tom autocomiserao, acabava de pronunciar aquele incrvel lamento e eu me esforava para compreend-lo. Naacontecia a ele? Ora, acontecera-lhe o gnio, a arte ele era um visionrio!

    A esposa de Lonoff, a mulher de cabelos brancos que sumira logo aps convidar-me a entrar, abrira a porta biblioteca em frente sala de visitas, do lado oposto do vestbulo, e l se encontrava a moa, os cabelos escuroabundantes, os olhos claros cinzentos ou verdes , a testa alta e oval, parecida com a de Shakespeare. Estasentada no tapete, cercada por pilhas de papis e pastas, usando uma saia de tweed estilo "New Look" atualmente uma moda antiga, h muito abandonada em Manhattan e um folgado suter de l branca; mantin

    as pernas recatadamente encolhidas sob a ampla saia e tinha os olhos fixos em algo que, obviamente, estava mulonge dali. Onde eu j vira antes aquela severa beleza morena? Onde, seno num retrato pintado por VelazqueLembrei-me da fotografia de Lonoff em 1927 tambm de aparncia "espanhola" e presumi de imediato qela fosse sua filha. Tambm imediatamente presumi algo mais. Sra. Lonoff nem mesmo depusera a bandeja tapete, ao lado da jovem, quando me imaginei casado com a infanta e morando em nossa pequena casa de fazenno muito afastada da casa dos pais dela. Quantos anos teria ela, se Mame ainda lhe servia bolinhos enquanto eterminava os deveres de casa sentada no tapete do escritrio do Papai? Com aquele rosto, cujos ossos fortes mpareciam modelados por algum escultor menos perverso que a natureza, devia ter mais que doze anos de idaMesmo que no tivesse, eu. poderia esperar. A idia me agradou ainda mais que a perspectiva de um casamencelebrado, ali naquela sala, na prxima primavera. Julguei que demonstrava fora de carter. Contudo, o qpensaria o pai famoso? Naturalmente, no seria necessrio lembrar-lhe o slido precedente do Velho Testamen

    que prescrevia uma espera de sete anos antes de tornar a Srta. Lonoff minha noiva. Por outro lado, que atituassumiria ele a ver-me rondar no meu carro o ginsio onde a filha estudava?

    Nesse nterim, ele me dizia:

    Eu jogo com frases. Eis a minha vida. Escrevo uma frase e, depois, a altero. Em seguida, torno a l-la e alteoutra vez. Ento, vou almoar. Aps o almoo, volto e escrevo outra frase. Ento, tomo ch e altero a segunfrase. Depois, leio as duas frases e altero ambas. A seguir, deito-me no sof e reflito. Levanto-me, jogo as dufrases na cesta de papis velhos e recomeo tudo do princpio. Se me afastar dessa rotina por um s dia, fifrentico de tdio e sinto que desperdicei o tempo. Aos domingos, tomo caf tarde e leio os jornais com HopDepois, vamos passear a p nas colinas e sinto-me perseguido pela impresso de desperdiar tanto tempo

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    Quando acordo nas manhas de domingo, fico quase louco ante a perspectiva de tantas horas inteis. Sinto-minquieto, de mau humor, mas, como ela tambm uma pessoa humana, eu a acompanho. A fim de evicomplicaes, ela me obriga a deixar o relgio em casa. Caminhamos, ela fala e eu olho para o pulso. Geralmenisso basta, quando j no estou irritado. Ela desiste e voltamos para casa. E, em casa, o que h para distingdomingo de quinta-feira? Volto a sentar-me diante de minha Olivetti porttil e recomeo a ler as frases e alter-lE me pergunto: "Por que no encontro outra maneira de encher meu tempo?"

    A essa altura, Hope Lonoff tornara a fechar a porta do escritrio e voltara a seus afazeres domsticos. Junt

    Lonoff e eu ficamos ouvindo o zumbido do liquidificador na cozinha. Eu no sabia o que dizer. A vida que edescrevera me soara como um paraso; o fato de no conseguir imaginar algo melhor para encher o tempo qalterar frases e jogar com elas parecia-me uma bno derramada no s sobre ele, como tambm sobre a literatumundial. Imaginei que, a despeito da seriedade com que ele descrevera sua vida cotidiana, eu talvez devesse rpois poderia tratar-se de uma mordaz comdia no melhor estilo "lonoviano"; por outro lado, se ele fora sincerestava to deprimido quanto aparentava, no deveria eu lembrar-lhe quem ele era e o quanto significava paraamantes da literatura? Contudo, como poderia ele ignorar isso?

    O liquidificador zumbia, o fogo crepitava na lareira, o vento assoviava e as rvores gemiam enquanto eu, aos vine trs anos de idade, tentava imaginar um meio de dissipar a disposio sombria de Lonoff. A franqueza com qfalara a respeito de sr mesmo, to contrastante com seus trajes formais e maneiras pedantes, confundira-m

    profundamente, eu no estava acostumado a receber tal tratamento por parte de pessoas com o dobro de minidade, embora o que ele dissera a seu prprio respeito tivesse um toque de autozombaria. Principalmente se tivemesmo esse toque.

    Eu nem tentaria escrever aps o ch, desde que soubesse o que fazer durante o resto da tarde.

    Explicou-me que, aps as trs horas, j no tinha nimo, resoluo ou mesmo desejo de prosseguir. Contudo, qoutra coisa lhe restava? Se tocasse algum instrumento piano ou violino poderia dedicar-se a uma ocupasria, exceo da leitura, para encher o tempo enquanto no estivesse escrevendo. O problema cosimplesmente ouvir msica era que, ao escutar discos sozinho no final da tarde, logo comeava a revolvmentalmente as frases e em breve estava de volta escrivaninha, examinando ceticamente o trabalho do dNaturalmente, para sua grande sorte, havia o Athene College. Lonoff falou com entusiasmo dos estudantes d

    duas turmas s quais ele ensinava. Cerca de vinte anos antes que o resto do mundo acadmico se interessasse pele, a pequena faculdade de Stockbridge lhe oferecera uma vaga no corpo docente, fato pelo qual ele seeternamente grato. Na realidade, porm, aps tantos anos de ensinar moas inteligentes e cheias de vida, deuconta de que tanto ele como elas comeavam a tornar-se um tanto repetitivos.

    Por que no tira frias prolongadas?

    Depois do que eu passara durante os primeiros quinze minutos, foi emocionante sugerir a . I. Lonoff uma solupara seus problemas.

    Tirei. Foi pior. Alugamos um apartamento em Londres pelo perodo de um ano. Ento, eu tinha todos os d

    para escrever. Alm disso, Hope se sentia infeliz porque eu no parava de escrever para sair com ela e conhececidade. No... nada de frias prolongadas.

    Agora, sou obrigado a parar de escrever pelo menos duas tardes por semana. Ademais, ir faculdade o ponalto da minha semana. Carrego uma pasta. Uso chapu. Cumprimento as pessoas. Utilizo o mictrio pbliPergunte a Hope. Volto para casa zonzo por causa do pandemnio.

    Vocs no tm filhos?

    O telefone comeou a tocar na cozinha. Ignorando-o, Lonoff informou que o mais moo de seus trs filhos formara h vrios anos na Universidade de Wellesley; havia mais de seis anos que ele e a esposa morava

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    sozinhos.

    Ento, a garota no era sua filha. Quem seria, ento sendo servida de bolinhos no cho do escritrio de LonoSua concubina? A palavra, a prpria idia eram ridculas mas obscureciam quaisquer outros pensamentrazoveis e decentes. Dentre as recompensas por ser um grande artista estava o concubinato com uma princesa Velazquez e a reverente admirao de jovens como eu. Mais uma vez, senti-me perdido, dominado por idias tignbeis na presena de minha conscincia literria. Contudo, no eram o tipo de idias ignbeis que perturbavaos mestres da renncia em tantos dos contos de Lonoff. Na realidade, quem saberia melhor que . I. Lonoff, q

    no so apenas nossos elevados desgnios que nos fazem ser gente, como tambm nossas mais humildnecessidades e insaciveis desejos? No obstante, pareceu-me de bom alvitre guardar para mim mesmo minhnecessidades humildes e desejos insaciveis.

    A porta da cozinha se abriu alguns centmetros e a esposa de Lonoff disse em voz baixa:

    para voc.

    Quem ? Ser o gnio, outra vez?

    Eu devia dizer que voc no est?

    Voc precisa aprender a dizer "no" s pessoas. Gente desse tipo capaz de telefonar cinqenta vezes por dQuando se sentem inspirados, correm para o telefone.

    No ele.

    Ele tem a opinio errada adequada a respeito de tudo. Uma cabea cheia de idias, todas elas estpidas. Por qme agride quando fala? Por que tem que compreender tudo? Pare de me colocar em contato com intelectuais. Nraciocino com suficiente rapidez.

    J lhe pedi desculpas. E no ele.

    Quem ?

    Willis.

    Hope, estou conversando com Nathan.

    Sinto muito. Direi que voc est trabalhando.

    No use o trabalho como desculpa. Isso no me agrada.

    Posso dizer que voc est com visitas.

    Por favor... interpus, querendo dizer que eu no era ningum; nem mesmo uma visita. Todo aquele encantamento disse Lonoff esposa, sem me dar ateno. Sempre to emocionado, bedas lgrimas. Por que to compadecido durante todo o tempo?

    Por sua causa replicou ela.

    Tanta sensibilidade. Por que algum h de ser to sensvel?

    Ele admira voc disse Hope.

    Abotoando o palet, Lonoff ergueu-se para atender o indesejvel telefonema.

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    So sempre os inocentes profissionais explicou-me ele. Ou os pensadores profundos.

    Demonstrei minha compreenso com um sacudir de ombros, tentando adivinhar, claro, se minha carta mclassificara numa das duas categorias. Ento, voltei a pensar na garota atrs da porta fechada. Residiria faculdade ou viera da Espanha visitar os Lonoff? No sairia mais daquele escritrio? Se no sasse, como podeeu entrar l? Se no pudesse, como daria um jeito de me encontrar a ss com ela?

    Preciso v-la novamente.

    Abri uma revista o melhor meio de afastar meus insidiosos pensamentos e esperei como um literapensativo. Folheando a publicao, deparei-me com um artigo sobre a situao poltica na Arglia e outro sobrteleviso; ambos tinham sido sublinhados e anotados. Lidos em seqncia, os trechos sublinhados constituam uresumo preciso de cada artigo e serviriam como excelente preparao para um aula do curso de acontecimentatuais que Lonoff ministrava na faculdade.

    Quando voltou da cozinha menos de um minuto depois Lonoff passou a explicar imediatamente a revique eu tinha nas mos.

    Minha mente divaga declarou, como se eu fosse um mdico chamado a tomar conhecimento de seestranhos e perturbadores sintomas novos. No fim de cada pgina, procuro resumir para mim mesmo o q

    acabei de ler e minha cabea parece sofrer um bloqueio, como se eu estivesse sentado sem fazer nadNaturalmente, sempre li com um lpis em punho. Atualmente, porm, descobri que se no fizer anotaes, mesmem artigos de revistas, no consigo prestar ateno ao que leio.

    Ento, ela tornou a aparecer. Todavia, o que a distncia me parecera beleza pura, severa e simples, de perconstitua uma espcie de enigma. Quando ela atravessou o vestbulo e entrou na sala de estar no momento eque Lonoff terminava a fastidiosa descrio da inquietadora perturbao que o invadia ao ler revistas notei qa bela cabea fora concebida numa escala mais grandiosa e ambiciosa que o torso. Naturalmente, o suter folgae a saia comprida e rodada em muito contribuam para diminuir ainda mais o corpo delicado, mas a causa principdeste efeito era o rosto dramtico, combinado com a suavidade inteligncia dos grandes olhos claros, qtornavam difusos e inconseqentes todos os demais atributos fsicos ( exceo dos cabelos abundante

    ondulados).

    Era-me foroso admitir que a profunda calma daquele olhar seria suficiente para me fazer murchar de timidez, mo fato de eu no conseguir retribuir-lhe diretamente o olhar tambm estava ligado relao desarmoniosa encorpo e cabea, significando para mim a implicao de algum infortnio passado, de algo vital perdidoreprimido, e, guisa de compensao, alguma coisa enormemente exagerada. Pensei em um pinto encurralado qno conseguisse tirar mais a cabea da casca do ovo. Lembrei-me dos macroceflicos dolos de pedra da Ilha Pscoa. Imaginei os pacientes febris nas varandas dos sanatrios suos, inspirando o ar mgico das montanhContudo, procurarei no exagerar os fatos e originalidade de minhas impresses, especialmente por logo teresido engolfados por minha preocupao irreprimvel e nada original: pensei, acima de tudo, no triunfo que sebeijar aquele rosto e na excitao de sentir meu beijo retribudo.

    Terminei, por enquanto anunciou ela a Lonoff.

    O ar de ansiosa solicitude assumido por ele fez-me

    imaginar que talvez ela fosse sua neta. Repentinamente, Lonoff pareceu transformar-se no mais aberto dhomens, aliviado de qualquer carga ou preocupao. Talvez, refleti ainda tentando encontrar uma explicapara algo esquisito nela, que eu no conseguia identificar a garota fosse filha de uma filha j falecida Lonoff.

    Este o Sr. Zuckerman, o contista apresentou ele, num tom levemente jocoso, como se fosse meu av.

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    Lembra-se de que lhe dei uma coletnea dos contos dele?

    Levantei-me e apertei a mo da moa.

    Esta a Srta. Bellette. Cursou a faculdade.

    Est passando alguns dias conosco e resolveu comear a colocar em ordem meus manuscritos. Iniciaram umovimento para convencer-me a depositar na Universidade de Harvard os pedaos de papel nos quais jogo cominhas frases. Amy Bellette trabalha para a biblioteca de Harvard. A biblioteca da Faculdade de Athene fez-lhe

    uma proposta excepcional, mas Amy alega que est por demais entrosada na vida de Cambridge. Nesse nteriutiliza ladinamente esta visita para tentar convencer-me a...

    No, no, no protestou enfaticamente a jovem. Se o senhor encarar a situao dessa maneira, mincausa estar perdida.

    Como se seus encantos no fossem suficientes, a voz da Srta. Bellette tornava-se ainda mais melodiosa por uleve sotaque estrangeiro. Voltando-se para mim, explicou:

    O mestre , por temperamento, anti-sugestionvel.

    E contra esses termos gemeu Lonoff, registrando um suave protesto contra o jargo psicolgico.

    Acabo- de encontrar vinte e sete minutas do mesmo conto disse-me ela.

    Que conto? indaguei, entusiasmado.

    A vida embaraosa.

    Vejam como possvel errar tantas vezes comentou Lonoff.

    Deviam erguer um monumento sua pacincia replicou a moa.

    Lonoff fez um gesto vago na direo da barriga que se avolumava sob o palet:

    J ergueram.

    A Srta. Bellette interps:

    Nas aulas, ele costumava dizer aos alunos: "No existe vida sem pacincia". Nenhum de ns entendia o que queria dizer com isso.

    Entendiam. Tinham que entender. Minha querida jovem, aprendi isso observando vocs.

    Mas eu no consigo esperar pelas coisas declarou ela.

    No entanto, espera.

    Estourando de frustrao durante todo o tempo.

    O professor retrucou:

    Se no estourasse de frustrao, no precisaria ter pacincia.

    Em frente ao armrio do vestbulo, ela tirou os tnis que usava dentro de casa e calou meias brancas de l e u

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    par de botas de neve vermelhas. Em seguida, retirou do cabide um casaco escocs com capuz, em cujo boestava um comprido barrete de l com uma borla branca na ponta. Tendo-o vestido alguns segundos antes deconversar em tom jocoso com o clebre escritor fazendo, com sua maneira natural e confiante de trat-lo, coque eu me sentisse um membro do crculo ntimo de privilegiados , surpreendi-me com o barrete infantVestida daquela maneira, parecia uma menininha. Espantei-me ao v-la capaz de agir com tanta sabedoriamaturidade, mas, ao mesmo tempo, vestir-se de modo to juvenil.

    Junto com Lonoff, acompanhei-a at a porta. Trocamos acenos de despedida. Agora, havia naquela casa du

    pessoas que me deixavam admirado e confuso.Ainda havia mais vento que neve, mas o pomar de lonoff j estava quase que totalmente mergulhado na escuride o barulho da ventania era ameaador. Duas dzias de velhas macieiras formavam uma primeira barreira entrcasa de fazenda e a deserta estrada pavimentada. Depois, uma espessa sebe de rododendros e, finalmente, ulargo muro de pedra, com uma brecha que mais parecia a falha deixada por um molar extrado. Perto da caseparados do muro por quinze metros de gramado agora coberto de neve endurecida, trs bordos, que petamanho deveriam ser to velhos quanto a prpria Nova Inglaterra, curvavam os galhos protetoramente sobre beirais do telhado.

    Nos fundos, a casa dava para campos abertos e desprotegidos, fustigados desde as primeiras nevascas dezembro. Alm deles, comeavam a elevar-se os impressionantes montes cobertos de florestas, que atravessaros limites do estado. Meu palpite era de que o mais feroz dos hunos levaria a maior parte do inverno paatravessar as cascatas congeladas e as florestas varridas pelos ventos daquelas montanhas selvagens para chegaorla dos campos de Lonoff. Ento, invadindo a casa pela porta dos fundos e brandindo a clava sobre a pequeOlivetti porttil, rugiria para o escritor que datilografava a vigsima stima minuta de um conto: "Voc tem qmudar de Vida!" E at mesmo o brbaro huno talvez desanimasse e voltasse ao seio de sua famlia brbara se visas negras montanhas de Massachusetts numa noite como aquela, com a hora dos coquetis se aproximando e umnevasca chegando da ltima Tule. No; pelo menos por enquanto, Lonoff realmente no parecia ter motivos pse preocupar com o mundo exterior.

    Esperamos no alpendre at Lonoff certificar-se de que a Srta. Bellette conseguira limpar o pra-brisas e o vidtraseiro; a neve j comeara a aderir ao vidro gelado.

    Dirija bem devagar gritou ele.

    Para entrar no pequeno Renault verde, ela foi obrigada a erguer a comprida saia rodada. Avistei algucentmetros de pele clara acima do cano das botas vermelhas e desviei o olhar a fim de no ser apanhado espiand

    Sim, tome cuidado gritei, no papel de Sr. Zuckerman, o contista. A estrada est escorregadia e perigosa

    Ela possui um notvel estilo de prosa comentou Lonoff ao voltarmos para o interior da casa. Dentre todas alunas que tive, a que melhor escreve. Uma clareza maravilhosa. Um humor espantoso. Uma tremeninteligncia. Escrevia contos sobre a faculdade que descreviam o ambiente numa nica frase. Capta tudo que v

    maravilhosa pianista. Toca Chopin com grande encanto. Quando veio para Athene, costumava treinar no piade nossa filha. Era algo que eu ansiava por escutar no final do dia.

    Parece uma moa e tanto comentei, pensativo. De onde ela?

    Veio da Inglaterra.

    Mas o sotaque... ? Lonoff explicou:

    do Pas Encantado.

    Concordo atrevi-me a dizer.

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    E pensei: "Basta de timidez, de insegurana juvenil, de acabrunhada deferncia. Afinal, ele o autor de A vidaembaraosa; se no souber das coisas, quem poder saber?"

    De p junto lareira, aquecendo-nos, virei-me para Lonoff e declarei:

    Creio que perderia a cabea se ensinasse numa faculdade com tantas garotas bonitas, prendadas e encantadora

    Ao que ele retrucou:

    Ento voc no pode dar aulas.

    Uma surpresa sim, mais uma me aguardava quando nos sentamos mesa para jantar. Lonoff abriu umgarrafa de Chianti e props um brinde. Fazendo sinal para que a esposa erguesse tambm o copo, disse:

    A um novo escritor maravilhoso.

    Bem, aquilo me descontraiu. Excitado, falei a respeito do ms que estava passando em Quahsay, de quanto amaa serenidade e beleza do local, de como gostava de caminhar pelas trilhas no final do dia e de ler noite em mquarto. Ultimamente, estivera relendo as obras de Lonoff, mas preferi no revelar o fato. A julgar pelo brinde, bvio que eu no dera um fora como esperara ao confessar a atrao que sentia por universitrias bonita

    inteligentes, e no desejava arriscar-me novamente a ofend-lo aparentando bajulao. Lembrei-me de que o Willis, hipersensvel e bajulador, merecera apenas menos de um minuto ao telefone.

    Relatei aos Lonoff a alegria de acordar todas as manhs sabendo que tinha pela frente muitas horas para ocupme apenas com o trabalho. Nunca antes, como estudante, soldado ou vendedor de assinaturas de revistas, dispusera de perodos regulares de tempo para dedicar-me exclusivamente a escrever, nem vivera em isolamento e tranqilidade ou tivera minhas necessidades bsicas satisfeitas de modo to discreto como mproporcionava a equipe de funcionrios de Quahsay. Tudo aquilo me parecia uma ddiva maravilhosa, milagroAlguns dias antes, aps uma tempestade de neve que durara o dia inteiro, acompanhei o fac-totum da colnquando este, depois do jantar, saiu com o trator de neve para limpar as trilhas que serpenteavam por quilmetatravs dos bosques de Quahsay.

    Descrevi para os Lonoff minha euforia ao observar a neve empilhar-se sob a luz dos faris e, depois, cair paralados da trilha; o frio cortante e o rudo das correntes do trator pareciam-me tudo o que eu poderia desejar aps ulongo dia de trabalho em minha Olivetti porttil. Suponho que, a contragosto, mostrei-me profissionalmeninocente, mas no pude deixar de relatar as horas que passei no trator de neve aps tanto tempo de trabalininterrupto: no desejava convencer Lonoff de meu esprito puro e incorruptvel meu problema era o desejo convencer-me dele. Na verdade, meu problema era querer ser totalmente digno daquele brinde emocionante.

    Eu seria capaz de viver assim para sempre anunciei.

    No tente advertiu Lonoff. Se sua vida consistir em ler, escrever e observar a neve, voc acabar comeu: viver de fantasia durante trinta anos.

    Lonoff fazia o termo "fantasia" soar como algo que se come no caf da manh.

    Ento, pela primeira vez, sua esposa ergueu a voz pelo tom que usou, seria mais exato dizer "falou baixinhoEra uma mulher mida, com suaves olhos cinzentos, macios cabelos brancos e pequenas rugas finas cruzandono rosto plido. No obstante pudesse ser o que os literatos irnicos descreveriam como a "herdeira gr-fina quecasara com Lonoff" e um excelente exemplo desse tipo ianque em sua forma mais virginal , mais parecatualmente uma sobrevivente da poca dos pioneiros americanos, a esposa de um fazendeiro da Nova Inglateque h muitos anos galgara as montanhas para estabelecer-se no limite ocidental das terras colonizadas.

    Para mim, o rosto sulcado de rugas e as maneiras tmidas e discretas pareciam testemunhar uma rdua histria

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    a msica comeou e dzias de bailarinas entraram no palco, no pude lembrar-me se ela dissera antes que seuma das jovens com roupas cor de lavanda e uma flor cor-de-rosa no cabelo, ou uma das moas com roupas cde-rosa e uma flor cor de lavanda na cabea. Assim, passei a maior parte da noite tentando identific-la. Cada vque eu julgava estar vendo as pernas e braos de Betsy, ficava to eufrico que sentia vontade de aplaudir ententravam no palco dez outras bailarinas e eu dizia com meus botes: "No; ela a outra!"

    Voc esteve maravilhosa disse-lhe eu, aps o espetculo.

    mesmo? Gostou do meu solo? Na verdade, no chega a ser um solo; dura cerca de quinze segundos. Macho maravilhoso.

    Oh, achei encantador declarei. Pareceu-me durar mais que quinze segundos.

    Um ano mais tarde, nossa aliana artstica e amorosa chegou ao fim quando confessei que a amiga mtua no foa primeira pequena a ser arrastada para o linleo da cozinha enquanto Betsy se matava de danar e eu ficava ecasa noite, sem ter o que fazer ou quem me vigiar. Havia algum tempo que eu vinha procedendo assim e admque no era um modo decente de tratar Betsy. Naturalmente, a franqueza total surtiu resultados muito mterrveis do que se eu confessasse apenas haver seduzido a ladina sedutora e me limitasse a isso; afinal, ningume perguntou coisa alguma a respeito do resto.

    Contudo, alimentei a opinio de que, se era um prfido brutamontes, ao menos seria um prfido brutamontsincero; acabei sendo mais cruel do que pretendia ou era necessrio. Num assomo de depresso penitente, fugi Nova York para Quahsay, onde eventualmente consegui absolver-me dos pecados de luxria e traio, observanas lminas do trator de neve limparem as trilhas da colnia para minhas caminhadas solitrias e eufricas, duranas quais eu no hesitava em abraar e beijar as rvores, ajoelhar-me para beijar a neve brilhante, inteiramendominado pela sensao de gratido, liberdade e renovao.

    De tudo isto, relatei aos Lonoff apenas a parte mais encantadora, referente a como Betsy e eu nos conhecemos magora, infelizmente, experimentvamos uma separao temporria. Alm disso, descrevi Betsy em detalhes tconjugais, com a inquietante sensao de talvez estar exagerando os fatos diante do velho casal; terminei sentindme terrivelmente idiota por haver renunciado ao amor dela. Na verdade, ao descrever todas as suas excepcion

    qualidades, eu quase me senti enlutado como se a infeliz bailarina, em vez de chorar de sofrimento e expulsme de sua vida para nunca mais voltar, tivesse morrido em meus braos em nossa noite de npcias.

    Hope Lonoff disse:

    Eu soube que ela era bailarina atravs da Saturday Review.

    A Saturday Review publicara um artigo sobre jovens escritores americanos desconhecidos do pblico, cofotografias e breves biografias dos "Doze a Serem Observados", selecionados pelos editores das mais importantrevistas literrias. Eu fora fotografado brincando com Nijinsky, o nosso gato. Confidenciei ao entrevistador qminha "amiga" fazia parte do Bale Municipal de Nova York e, quando me pediram para citar os trs escritores qmais admirava, mencionei E. I. Lonoff em primeiro lugar.

    Agora, fiquei perturbado ao dar-me conta de que provavelmente Lonoff s tomara conhecimento de minexistncia ao ler o tal artigo, pois confesso que, embora procurasse responder as perguntas absurdas entrevistador, tinha esperana de que meu comentrio atrasse a ateno de Lonoff para minha obra. No dia eque a revista chegou s bancas, devo ter lido pelo menos cinqenta vezes o trecho referente a "N. ZuckermanTentei trabalhar durante as seis horas que me impusera como meta diria, mas nada produzi porque, a cada cinminutos, pegava a revista, relia o artigo e fitava minha fotografia. No sei bem o que esperava encontrar revelaali provavelmente o futuro, os ttulos de meus primeiros dez livros que seriam publicados , mas lembro-mde ter pensado que aquela foto de um jovem escritor dedicado e srio brincando carinhosamente com um gatoinformar que morava com uma jovem bailarina num pequeno apartamento de quinto andar, sem elevador,

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    Greenwich Village, talvez induzisse um bom nmero de mulheres excitantes a lutarem para tomar o lugar Betsy.

    Se eu soubesse de que modo a entrevista seria publicada, jamais teria permitido declarei. Entrevistarame por mais de uma hora e depois de tudo o que eu disse s publicaram tolices.

    No se desculpe replicou Lonoff.

    Isso mesmo aduziu Hope, sorrindo para mim. O que h de errado em ter sua fotografia publicada imprensa?

    No me refiro apenas- foto, embora tambm a inclua. Nunca imaginei que escolheriam a foto em que brincava com o gato. Esperava que usassem a que tirei sentado mquina. Devia ter adivinhado que eles npoderiam mostrar todo mundo diante de uma mquina de escrever. A moa que veio tirar as fotos (que eu tentainutilmente, arrastar para o cho) afirmou que a fotografia com o gato era apenas um presente para Betsy e eu.

    No se desculpe repetiu Lonoff. A menos que tenha certeza de que no far a mesma coisa na prximvez. Do contrrio, faa e esquea o assunto; No arme uma tempestade em copo d'gua.

    Hope interps.

    Ele est querendo dizer que compreende, Nathan. Tem o maior respeito pelo que voc . No recebemos visiaqui, exceto pessoas a quem Manny respeita. Ele no tolera gente desprovida de substncia.

    Basta disse Lonoff.

    S no quero que Nathan fique ressentido por causa de uma superioridade que voc no sente.

    Minha mulher seria mais feliz se tivesse um companheiro menos exigente.

    Todavia, voc menos exigente com as outras pessoas que consigo mesmo. Nathan, no precisa defender-Por que no saboreia a primeira demonstrao que teve de reconhecimento? Quem merece isso mais que ujovem talentoso como voc? Lembre-se de todas as pessoas sem valor que so exibidas nossa admirao todos dias: astros de cinema, polticos, atletas. O fato de voc ser escritor no significa que lhe negado o praznormal e humano de ser elogiado e aplaudido.

    Os prazeres humanos normais nada tm a ver com o caso. Que se danem os prazeres humanos normais. O rapdeseja ser um artista.

    Querido replicou Hope , Nathan deve julg-lo to... to inflexvel. No entanto, voc a pessoa mcondescendente, compreensiva e modesta que j conheci. Modesto demais.

    Esqueamos o julgamento que Nathan faz de mim e vamos comer a sobremesa.

    Mas voc uma pessoa bonssima. mesmo, Nathan. Voc 'conheceu Amy, no mesmo?

    A Srta. Bellette?

    Sabe tudo o que Manny fez por ela? Amy lhe escreveu uma carta quando tinha dezesseis anos. Aos cuidados editor de Manny. Uma carta encantadora, cheia de entusiasmo, muito franca e ousada, contando a histria de svida. Em vez de esquec-la, Manny respondeu a carta. Ele sempre responde, nem que seja um bilhete corts atolos.

    Qual era a histria dela? indaguei.

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    Refugiada de guerra declarou Lonoff.

    A resposta pareceu suficiente para ele, mas no para a esposa com a aparncia de pioneira de antanho, que msurpreendeu pela maneira como insistiu no assunto. Teria lhe subido cabea o pouco de vinho que tomara? Oalgo fervia-lhe no ntimo?

    Amy definiu-se como uma jovem muito inteligente, criativa e encantadora, com dezesseis anos da idade, qresidia em Bristol, na Inglaterra, com uma famlia que nada tinha de inteligente, criativa ou encantadora. A

    mesmo mencionou seu Q.I. disse Hope. Oh, no, no. Isso foi na segunda carta. De toda forma, declarque desejava iniciar uma nova vida e achava que o homem cuja maravilhosa histria ela lera em sua antologia ginsio...

    No foi numa antologia. Mesmo assim, prossiga.

    Hope experimentou um sorriso tmido, mas muito pouco entusiasmado:

    Creio que posso falar no assunto sem precisar de ajuda. Estou apenas relatando fatos e de maneira muito calmsegundo me parece. O fato da estria ter sido publicada numa revista, e no numa antologia, no significa que tenha perdido o controle. Ademais, Amy no o tema principal da conversa; muito pelo contrrio. O qrealmente interessa a extraordinria bondade e caridade de E. I. Lonoff. A sua preocupao com qualquer pess

    necessitada, exceto voc mesmo e suas prprias necessidades.

    S que eu "mesmo", como voc gosta de dizer, no existo no sentido corriqueiro do termo. Conseqentemendeixe de me afogar em elogios. E de se preocupar com minhas "necessidades".

    Mas voc "mesmo" existe. Tem todo o direito de existir. E no sentido corriqueiro do termo!

    Basta disse Lonoff mais uma vez.

    Com isso, ela se levantou para tirar os pratos e servir a sobremesa. Um copo de vinho se espatifou na paredatirado por Hope.

    Expulse-me de casa! exclamou ela. Quero que voc me mande embora. No diga que no pode, pois que tem a fazer! Quero ir embora! Terminarei de arrumar a loua e, depois, voc me mandar embora, esta noiEu lhe imploro... Prefiro viver e morrer sozinha a ter que aturar por mais um s instante sua grosseria! J ntenho mais moral ante as desiluses da vida! No suporto mais ter um marido fiel e digno que no tenha iluseseu prprio respeito por mais um segundo sequer!

    Meu corao, claro, estava aos saltos, embora o barulho de vidros quebrados e o choro amargo de uma mulhdesiludida no fossem novidades para mim. Eu j os conhecia h cerca de um ms. Na ltima manh qpassamos juntos, Betsy quebrara todos os pratos do belo aparelho de jantar Bloomingdale que possuamos conjunto; ento, enquanto eu hesitava em abandonar o apartamento sem deixar minha posio bem esclarecida, comeou a quebrar os cristais. O dio que eu despertara nela contra mim ao revelar-lhe toda a verdade deixava-m

    confuso.

    Refleti que, se tivesse mentido se ao menos alegasse que a amiga que lhe dissera que eu no era digno confiana no passava de uma vigarista maledicente, que invejava o sucesso de Betsy e era meio maluca nadaquilo estaria acontecendo. Por outro lado, se no dissesse toda a verdade, estaria mentindo. A nica diferenque minhas acusaes a tal amiga seriam essencialmente verdadeiras! Eu no conseguia entender. Nem Betquando procurei acalm-la, explicando-lhe que eu era, na realidade, um sujeito to bom que usara com ela da mtotal franqueza.

    Foi ento que ela comeou a quebrar os copos de cristal sueco que comprramos para substituir os velhos potes gelia em que bebamos antes (na mesma ocasio, adquirimos tambm um tapete escandinavo para o qu

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    eventualmente, eu tentara arrastar a fotgrafa da Saturday Review).

    Hope Lonoff deixou-se cair de volta na cadeira, a fim de melhor poder implorar ao marido. Tinha o rosto marcade vermelho nos locais onde enfiava as unhas na pele fina e enrugada, num acesso de autodegradao. movimentos frenticos e agitados de seus dedos me alarmaram mais que o sofrimento contido em sua voz; chegua pensar em retirar da mesa o comprido garfo de trinchar antes que ela o enfiasse no prprio peito, dando a Lonoliberdade para buscar o que Hope julgava que ele necessitava. Todavia, como era apenas um hspede npassava de "apenas" qualquer coisa que eu pudesse imaginar , deixei os talheres onde estavam e fiquei esp

    do pior. Leve-a com voc, Manny, se isso que deseja disse ela, chorando. Ento, no se sentir to infeliz mundo no continuar to solitrio para voc. Ela no mais estudante: uma mulher! Voc tem direito a possla; tirou-a do nada e, portanto, tem todo o direito. a nica coisa que faz sentido. Diga-lhe que aceite o emprena faculdade e permanea aqui! o que ela deve fazer! Eu irei embora! Irei, porque no posso mais suportar uinstante sendo sua carcereira! Sua nobreza est destruindo a nica coisa que nos resta! Voc um monumentcapaz de admitir o fato e aceit-lo, mas eu estou reduzida a nada, querido. Mande-me embora! Agora, por favantes que sua sabedoria e bondade nos matem!

    Aps o jantar, Lonoff e eu conversamos sentados na sala de visitas, bebericando com admirvel parcimniamoderada dose de conhaque que ele dividira entre dois grandes snifters de cristal. At ento, eu s experimentconhaque como um remdio caseiro de emergncia para dor de dente: um pedao de algodo absorvente embebiem conhaque era comprimido contra a gengiva at meus pais poderem levar-me ao dentista. Todavia, aceiteoferta de Lonoff como se fosse parte de meu ritual cotidiano aps o jantar. A comdia se tornou ainda maquando meu anfitrio, que tambm no costumava beber, foi procurar os copos adequados. Aps uma bussistemtica, encontrou-os no fundo da prateleira de um armrio no vestbulo.

    Foi um presente explicou. Julguei que ainda estivessem na caixa.

    Em seguida, levou dois deles cozinha, a fim de lavar a poeira que parecia ter-se acumulado neles desdetempos de Napoleo, cujo nome aparecia, em francs, no rtulo da garrafa de conhaque ainda selada. J que estacom a mo na massa, Lonoff resolveu lavar outros quatro copos que completavam o jogo e tomou a escond-l

    no fundo da prateleira antes de se juntar a mim, perto da lareira.

    Um pouco mais tarde talvez cerca de vinte minutos aps Lonoff ter-se recusado a apresentar qualquer reaosplicas de Hope para ser substituda por Amy Bellette , ela comeou a fazer barulho na cozinha, lavandoloua que Lonoff e eu havamos tirado da mesa depois que ela saiu da sala. Presumi que descera de seu quarto puma escada nos fundos da casa, a fim de no perturbar nossa conversa.

    Ao ajudar Lonoff a tirar a loua da mesa, fiquei sem saber o que fazer quanto ao copo de vinho que Hope quebrcontra a parede ou o pires que ela derrubara ao cho quando se levantara intempestivamente. Na qualidade ingnuo, minha obrigao bvia era evitar que o homem idoso, corpulento e bem vestido, e abaixasse para pegos cacos especialmente por se tratar de E. I. Lonoff; por outro lado, eu ainda continuava a fingir que nada

    anormal ocorrera em minha presena. Por sua vez, Lonoff, para manter a cena sob a sua real perspectiva, talvpreferisse deixar os cacos onde estavam, para que Hope os limpasse mais tarde presumindo que, antes disela no cometeria suicdio em seu quarto.

    Enquanto meu senso de delicadeza moral travava uma batalha contra minha ingenuidade, Lonoff, gemendo upouco com o esforo, usou uma escova para recolher os cacos numa pazinha de lixo e apanhou o pires embaixo mesa do jantar. O minsculo prato quebrara-se apenas em dois pedaos e, aps examinar as bordas, Lonocomentou:

    Hope poder col-los.

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    Na cozinha, colocou os dois pedaos do pires sobre um comprido aparador de madeira, em cima do qual, juntojanela, havia gernios brancos e rosados em vasos de cermica. A cozinha era bem iluminada, um ambiente malegre e cheio de vida que o resto da casa. Alm dos gernios, que ali floresciam abundantemente no inverno, ptodos os lados havia juncos compridos e flores secas em jarras, vasos e pequenos vidros de formato peculiar. armrios ao longo da parede da janela eram brilhantes, de aspecto caseiro e agradvel: as latas de conserva erdas melhores marcas uma quantidade suficiente de atum enlatado para sustentar uma famlia esquim duratodo o inverno e vidros de conserva de tomates, ervilhas, pras, mas cidas, e muitas outras, preparadacuidadosamente rotuladas pela prpria Hope.

    Panelas e chaleiras com fundos de cobre impecavelmente limpos pendiam de ganchos presos a uma prateleperto do fogo. Ao longo da parede acima da mesa de lanches havia meia dzia de quadros em moldura simplesmadeira: curtos poemas sobre a natureza, assinados "H. L.", copiados em caligrafia delicada e decorados codesenhos em aquarela. Parecia, em verdade, o quartel-general de uma mulher, que sem qualquer ostentao, ecapaz de colar ou fazer qualquer coisa exceto tornar o marido feliz.

    Conversamos sobre literatura e senti-me no paraso apesar de usar profusamente devido ao spotlight que Lonoconcentrara sobre mim. Tive certeza de que todos os livros que eram novidades para mim tinham sido lidosdevidamente anotados por ele, h muito tempo; no obstante, ficou evidente que o interesse de Lonoff era escuminhas idias e no expor as suas. O efeito de sua ateno concentrada foi fazer-me adicionar uma nova percep

    s minhas percepes anteriores, notando atentamente cada um de seus suspiros e expresses faciais, considerano que no passava de um simples ataque de dispepsia aps o jantar como as mais calamitosas insinuaes quantmeu gosto e inteligncia.

    Embora eu temesse me esforar demais para parecer o tipo de pensador profundo que ele detestava, no consegconter-me sob a influncia mgica no apenas do homem e suas realizaes, bem como do calor agradvel lareira, do copo equilibrado em minhas mos (embora eu no estivesse tomando o conhaque) e da neve densa qcaa l fora, linda e misteriosa como sempre. Ento, passamos a falar dos grandes romancistas, cujos nomes reciao depor aos ps de Lonoff minhas comparaes culturais e entusiasmos eclticos recm adquiridos Zuckerman, ao lado de Lonoff, discutindo Kafka: eu mal podia acreditar e, muito menos, entender. Sentia-mfebril ao pensar naquela cena. Jurei a mim mesmo que passaria o resto da vida lutando para merecer aquilo. E nfora por esse motivo que meu implacvel novo mestre fizera tal proposta?

    Acabei de ler Isaac Babel informei.

    Ele pensou um pouco, impassvel.

    Mais ou menos guisa de esporte, estive pensando que ele talvez seja o elo perdido. Se voc no se impoque eu mencione suas obras, seus contos parecem constituir uma ligao entre voc e...

    Lonoff cruzou as mos e descansou-as sobre a barriga, num movimento que me levou a dizer:

    Desculpe-me.

    Prossiga. Constituem uma ligao entre mim e Babel. De que forma?

    Bem, "ligao" no o termo exato, naturalmente. Nem "influncia". Refiro-me a uma semelhana de famNo meu modo de ver, como se voc fosse o primo americano de Isaac Babel; o outro seria Felix AbravanVoc, atravs de O Pecado de Jesus e alguns trechos de A Cavalaria Vermelha, atravs dos sonhos irnicos e relato brutal dos fatos, bem como do prprio modo de escrever, claro. Entende o que quero dizer? Num dcontos de guerra de Babel existe a seguinte frase: "Voroshilov penteou a crina do cavalo com seu fuzil MauseOra, exatamente o tipo de coisa que voc escreve: um pequeno quadro espantoso em cada frase. Babel declarque, caso escrevesse uma autobiografia, dar-lhe-ia o ttulo A Estria de um Adjetivo. Bem, se fosse possvimaginar voc escrevendo uma autobiografia se isso fosse ao menos concebvel , voc talvez escolhesse

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    Hope ficar satisfeita disse Lonoff. Sente falta de pessoas. Tem saudades dos filhos e dos amigos

    deles. Freqentou a escola de arte em Boston, antes que eu a trouxesse para c, a dezesseis verstas da estaferroviria mais prxima. Fica apavorada com Manhattan; Boston para ela como Moscou e ela iria para lqualquer momento. Acha que eu gostaria de residir em Cambridge. Todavia, detesto aquelas reunies e jantarPrefiro conversar com um cavalo.

    Voc possui um cavalo?

    No.

    Eu o adorei! No poderia deixar de adorar aquele homem sem iluses: adorar a franqueza, o escrpulo,severidade, o isolamento; admirar a implacvel represso do ego infantil, a insacivel busca de aperfeioamenadmirar a teimosia artstica e a desconfiana quanto a tudo mais; admirar o encanto oculto, do qual ele acabava me proporcionar uma rpida viso. Sim; tudo o que Lonoff tivera a me dizer que no possua um cavalo comqual conversar e, de algum modo, aquilo fora o bastante para despertar em mim um amor filial pelo homeesplendidamente virtuoso, de grandes realizaes, que compreende a vida, entende o filho e os aprova.

    Neste ponto, devo mencionar que alguns anos antes, aps vrias horas na presena de Felix Abravanel, eu nficara menos impressionado. S no ca de joelhos diante dele porque at mesmo um universitrio como eu, q

    tanto idolatrava os escritores, seria capaz de perceber que, no caso de Abravanel, uma adorao to desenfreada pelo menos por parte de um jovem admirador do sexo masculino no seria retribuda. O ardor de seu livrredigidos na quietude ensolarada de seu canyon na Califrnia, borbulhantes de inocncia desinibida e agressipouca relao pareciam ter com o autor quando este surgiu calmamente no mundo decadente que ele tancriticara quando vivia isolado no canyon. De fato, o escritor que considerava irresistveis todos os personagevitais e duvidosos, incluindo os vigaristas de ambos os sexos que exploravam os bondosos coraes de seus herotimistas e ingnuos, que era capaz de localizar com exatido, em suas espirituosas locues, o ncleo hipntdo mais ladino americano egosta, atingindo-lhe o mago da alma, o autor cuja absoro com "a grande discrdamericana" transformava cada pargrafo num pequeno romance, abarrotando cada pgina como Dickens Dostoievsky com as mais recentes manias, tentaes, paixes e sonhos, com uma humanidade inflamada sentimentos, dava a impresso em pessoa de estar saindo para almoar num restaurante.

    Isso no significa que Felix Abravanel fosse desprovido de encanto pessoal. Pelo contrrio, seu encanto era comum fosso to enorme que nem mesmo permitia avistar o grande castelo para o qual fora construdo a fim proteger. Era impossvel encontrar-se a ponte levadia. Abravanel era como a prpria Califrnia: para chegartinha-se que tomar um avio. Houve momentos durante a conferncia pronunciada durante meu ltimo ano Universidade de Chicago em que ele foi obrigado a parar junto ao atril, aparentemente a fim de reprimalguma declarao espontnea por demais encantadora para que a platia conseguisse suportar. E tinha razTeramos subido ao palco para devor-lo vivo caso ele se mostrasse mais espirituoso, encantador e sbio. Pobrmaravilhoso Abravanel (digo isto sem qualquer stira) at mesmo o que deveria ocultar o grande vitral rosade seu brilho interior era to lindo que as multides mal dotadas e os amantes da arte no mundo inteiro conseguiam consider-lo ainda mais atraente. Por outro lado, talvez ele assim desejasse. Evidentemente, no exi

    maneira simples ser grande; ou, pelo menos, era o que eu estava comeando a descobrir.

    Aps a conferncia, fui convidado para a festa do corpo docente pelo professor que me considerava seu alupredileto. Quando, afinal, conseguimos romper os vrios crculos concntricos de admiradores, fui apresentacomo o estudante cujo conto seria analisado no dia seguinte, durante uma aula qual Abravanel prometecomparecer. Pelos traos imperiosos das fotografias de seu rosto, eu jamais imaginara que Abravanel tivesse umexpresso to cautelosa e a cabea pequena demais para sua estatura. Entre os admiradores e bajuladores, ele fez lembrar uma torre de rdio em cujo topo brilhava uma pequena luz vermelha como advertncia aos aviUsava um terno de shantung de quinhentos dlares, uma gravata de seda cor de vinho da Borgonha, mocassibem engraxados, mas o que realmente importava o que lhe dava encanto, provocava os risos, produzia livros, causava altos e baixos achava-se compactamente armazenado bem no topo na cabea, beira

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    para proteger meu heri contra um escndalo:

    A Sra. Abravanel a famosa jornalista Srta.

    Rumbough. Naturalmente, prefere usar o nome profissional.

    Mesmo assim, fiquei certo de que o resultado final da atrevida bomia da Srta. A. Rumbough seria minexpulso da universidade antes de receber o diploma.

    Gostei do seu conto disse Andra. to engraado.

    Muito srio, agradeci o elogio dispensado ao meu humor pela garota de seios grandes, rosto em forma de corapele alva como leite e aperto de mo autoritrio de militar.

    Nesse nterim, tendo-me passado a Andra para que ela se livrasse de mim, Abravanel foi exibido por ouprofessor a um grupo de alunos do ltimo ano, que aguardavam timidamente o professor fazer perguntas sriasgrande escritor. Ouvi Abravanel dizer com uma risada devastadora:

    Ora essa, no tenho muito tempo hoje em dia para pensar em "influncia": Andra no me d tempo.

    Ao mesmo tempo, Andra me disse: Felix tambm adorou seu conto. Valeu a pena v-lo no avio: jogava a cabea para trs e ria s gargalhadOnde voc pretende public-lo? Talvez Felix devesse falar com... mencionou um nome: Knebel.

    Para um estudante cujos contos haviam sido publicados apenas no suplemento literrio da universidade, o efeno seria menos atordoante se Andra dissesse: "Depois da recepo, preciso voltar ao hotel para entrevistarMarechal Tito no bar; enquanto eu fao isso, porm, Felix pode subir ao Cu e discutir o seu hilariante conmimeografado com o autor de Os Irmos Karamazov. Conhecemo-nos na Sibria, quando Felix e eu visitamuma srie de prises".

    s minhas costas, escutei Abravanel responder outra indagao sria dos alunos do ltimo ano:

    Alienao? Ora! disse ele com uma leve risada. Deixemos que os outros sejam alienados.

    Simultaneamente, Andra me informou:

    Felix se encontrar com Sy amanh noite, em Nova York...

    (Sy era o primeiro nome de Knebel, h muito editor da revista intelectual nova-iorquina que eu lia avidamente nltimos dois anos.)

    No dia seguinte, Abravanel visitou nossa aula de literatura, acompanhado para grande surpresa dos q

    desejavam dedicar-se exclusivamente arte pela ousada Andra. A presena luminosa e desinibida da mulhna primeira fila de cadeiras (bem como seu vestido de jersey branco e os cabelos louros que paream adequadosum paraso rstico) lembrou-me as tardes de outubro, tanto tempo atrs, quando eu permanecia sentado como uprisioneiro impaciente, praticando meus dotes literrios numa velha carteira escolar, enquanto as partidas finais campeonato nacional de beisebol eram escutadas nos rdios de todos os bares e postos de gasolina do pas. Fento que me dei conta do que partia os coraes dos delinqentes encarcerados e dos milhes de alunos qdetestavam salas de aulas e professores, desejando que as prises e colgios fossem destrudos por incndios.

    Com as mos nos bolsos, comodamente recostado na ctedra, Abravanel falou de meu conto com oblqadmirao, defendendo-o principalmente atravs de risadas das crticas levantadas pelos adeptos de Forstque meu personagem narrador era "bidimensional", em vez de "esfrico", como os personagens sobre os qu

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    tinham lido em Aspectos do Romance. Naquele dia, porm, fiquei imune a quaisquer censuras. "Andra", pensaeu, cada vez que um daqueles idiotas se referia a "esfrico".

    Depois da aula, Abravanel convidou-me para tomar caf numa lanchonete local, juntamente com Andra, mprofessor e um membro do departamento de sociologia, um velho amigo de Abravanel desde a juventude qesperara fora da sala de aula para dar um abrao saudoso em Abravanel (que este conseguiu aceitar graciosamenembora procurasse manter-se a distncia). Abravanel fez questo de convidar-me pessoalmente (como relatei pcarta a meus pais), aparentando pela primeira vez real simpatia por mim.

    A turma da pesada, Zuckerman. Acho melhor voc vir conosco, para uma transfuso.

    Imaginei que, enquanto tomssemos caf, ele anunciaria que estava levando a Nova York uma cpia do mconto, a fim de mostr-lo a Seymor Knebel. Sentia-me extasiado, por uma centena de motivos. Quando ele mconvidou a acompanh-los na "transfuso", dei-me conta de que jamais me sentira um personagem to esfricAbravanel estava prestes a fazer por mim o que Mann fizera por ele. Estvamos na iminncia de um fato literrhistrico. Era timo Andra estar presente a fim de registr-lo para a posteridade.

    Contudo, durante o caf, Abravanel no pronunciou uma s palavra: limitou-se a recostar o corpo compridomagro na cadeira, parecendo suave e acaricivel como um gato em seus trajes professorais macias calesporte de flanela cinzenta, um leve suter amarelo e um palet esporte de casimira. Com mos e tornozelelegantemente cruzados, deixou por conta de sua eufrica e jovem companheira conduzir um monlogo maior parte, estrias animadas e engraadas a respeito do velho pai de Felix, pintor de paredes em Los Angelesdos sensacionais comentrios que ele costumava fazer numa interessante mescla de dois idiomas. At mesmoprofessor de sociologia dobrou-se de rir, embora eu soubesse, pelos boatos que corriam no campus, que ele grande amigo da litigiosa primeira esposa de Abravanel e desaprovava o tratamento dispensado a ela pelo escritantes em carne e osso e depois em fico escrita. Alm disso, dizia-se que reprovava o comportamento Abravanel com as mulheres em geral e, sobretudo, achava que um romancista de tal importncia no devescrever artigos sobre si mesmo no The Saturday Evening Post. No obstante, o professor de sociologia passoerguer a voz para se fazer ouvir por Andra. Desde menino, sempre fora um grande f dos, esdrxulcomentrios do pai de Abravanel e desejava que todos tomassem conhecimento do fato. Imitando o velAbravanel, o professor de sociologia berrou:

    Aquele sujeito no est mais aqui. Pobre diabo, cometeu suicdio.

    Se Abravanel achava o aposentado pintor de paredes interessante por falar durante a vida inteira um ingls terrado, no deu a menor indicao. A atitude que assumiu para escutar Andra contar as estrias foi to elegansegura e corts, que comecei a duvidar de sua naturalidade. Diante de terceiros, Abravanel no transbordava sentimentalismo quanto aos velhos tempos em Los Angeles; deixava tais efuses para os leitores de seromances, que adoravam o mundo emocionalmente sobrecarregado de sua infncia como se fosse o deles. Eprprio parecia preferir observar-nos a grande distncia, como um lhama ou um camelo.

    Felicidades foi o que me disse ao levantar-se a fim de pegar o trem para Nova York.

    Andra nem isso me disse. Naquela ocasio, porque j nos conhecamos, pegou-me a mo com cinco dedmacios, mas o toque de princesa encantada parecia ter o mesmo significado que o vigoroso aperto militar que recebera na recepo no clube dos professores. Julguei que ela se esquecera a respeito de Knebel. Tambm epossvel que tivesse mencionado o assunto a Abravanel, achando que este cuidaria de tudo, e ele esquecera. tavez houvesse falado com ele e recebido uma resposta: "Esquea". Observando-a sair da lanchonete de bradado com Abravanel vendo-lhe o cabelo roar o ombro dele na rua, quando ela se ps nas pontas dos ps plhe segredar algo ao ouvido compreendi que eles tinham muito mais em que pensar dos que no meu conto voltarem para o Hotel Windemere na noite anterior.

    Tudo isso contribuiu para que eu, de Quahsay, remetesse a Lonoff meus quatro contos j publicad

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    Evidentemente, Felix Abravanel no estava procura de um filho de vinte e trs anos.

    Pouco antes das nove, aps verificar a hora no relgio, Lonoff tomou at a ltima gota o conhaque qpermanecera meia hora no fundo do copo. Anunciou que precisava recolher-se, acrescentando que eu poderia fiouvindo msica na sala ou, se preferisse, ir para o escritrio, onde passaria a noite. Informou que, por baixo colcha de brim, o sof-cama do escritrio j estava arrumado com lenis limpos, de linho. Cobertores e utravesseiro de reserva estavam na gaveta embutida sob o sof e a prateleira inferior do armrio no banheicontinha toalhas de banho e rosto. Tambm no armrio do banheiro havia uma escova de dentes num esto

    plstico ainda lacrado e um tubo novo de creme dental. Mais alguma pergunta? No.

    Precisaria eu de mais alguma coisa?

    Est tudo perfeito. Obrigado.

    Lonoff fez uma careta ao levantar-se, pois sofria de lumbago por passar o dia inteiro jogando com frases. Dique ainda precisava completar sua cota de leitura daquela noite. No conseguia fazer justia a um escritor a menque o lesse em dias consecutivos, em sesses mnimas de trs horas. Do contrrio, a despeito de anotar e sublinhas partes mais interessantes, perdia o contato com a vida interior da obra e desperdiava o tempo. s vez

    quando era irremediavelmente obrigado a falhar um dia, preferia voltar atrs e reler tudo do incio a sincomodado pela sensao de estar cometendo uma injustia com um escritor dedicado.

    Contou-me tudo isso no mesmo tom fastidioso que empregara para indicar a localizao das toalhas e dos objetde higiene pessoal: um Lonoff franco, coloquial, deliberadamente simples, parecia alternar-se com um Lonpedante e teatral, representante oficial do mundo no literrio.

    Minha esposa considera isso uma molstia grave acrescentou. No sei relaxar. Em breve ela me dir pair embora e tratar de divertir-me.

    No to breve respondi.

    natural que os outros me julguem tolo disse ele. Mas eu no me posso dar esse luxo. De que oumodo poderia ler um livro realmente profundo? Por "diverso"? Apenas por l-lo? Ou para pegar no sono?

    Com ar fatigado o tom cansado e irritado deu-me a impresso de que ele estava mais a ponto de ir para a camdo que enfrentar cento e oitenta minutos concentrando-se na vida interior de um livro profundo escrito por uautor dedicado , perguntou:

    De que outra maneira posso levar a vida?

    Como gostaria de lev-la?

    Bem, eu conseguira sobrepujar finalmente a incmoda inibio e a ansiedade exagerada bem como tentativas espordicas de ser espirituoso moda de Lonoff e fazer-lhe uma pergunta simples e direta, curesposta eu tanto desejava conhecer.

    Como eu gostaria de lev-la? repetiu ele.

    Emocionei-me ao perceber que ele levara a srio minha indagao. Esfregando as costas doloridas, replicou.

    Viveria numa vila nos arredores de Florena.

    Por qu? Com quem?

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    Com uma mulher, claro disse ele, como se eu fosse um adulto amadurecido.

    Portanto, insisti como um adulto amadurecido:

    Que idade teria essa mulher? Ele sorriu:

    Ambos j bebemos demais.

    Mostrei-lhe que ainda havia conhaque no meu copo

    Para o que estamos acostumados a beber concluiu Lonoff.

    Ento, sem se importar com o vinco das calas, tornou a sentar-se, de modo um tanto deselegante, na poltrona.

    Por favor disse-lhe eu. No quero perturbar sua leitura. Estarei bem, sozinho.

    s vezes, agrada-me imaginar que li o ltimo livro de minha vida declarou Lonoff. que consultei pltima vez meu relgio. Que idade acha voc que ela teria? indagou repentinamente. A mulher de FlorenNa qualidade de escritor, qual seria seu palpite?

    No sei. Creio que voc deveria fazer-me essa pergunta daqui a trinta anos. Eu diria uns trinta e cinco anos. Que acha disso?

    Certo, se assim que voc pensa.

    Ela teria trinta e cinco anos e tornaria a vida linda para mim. Dar-me-ia uma vida confortvel, bela, noLevar-me-ia tarde a San Gimignano, a Siena, aos Uffizi. Em Siena, visitaramos a catedral e tomaramos caf praa central. Ao caf da manh, ela usaria longas camisolas femininas sob o belo robe-de-chambre. Eu compraria para ela numa loja perto da Ponte Vecchio. Trabalharia numa fresca sala de pedras, com portas dupse abrindo para um terrao. Haveria flores nos vasos. Ela as colheria no jardim e traria para casa. E assim pdiante, Nathan; coisas nesse estilo.

    A maioria dos homens deseja voltar infncia, ou se tornar reis, ou ser famosos jogadores de futebol, multimilionrios. Tudo o que Lonoff parecia desejar era uma mulher de trinta e cinco anos e uma temporada Itlia. Lembrei-me de Abravanel o colhedor de frutos, e da atriz israelense "ardente como lava" que era sterceira esposa. E, tambm, da personalidade "esfrica" de Andra Rumbough. Em que mares Andra estanavegando atualmente?

    Se isso tudo... disse eu.

    Prossiga. Estamos travando um dilogo de brios.

    Se isso tudo, no me parece muito difcil conseguir completei. Oh, sim? Voc conhece alguma mulher jovem que esteja procura de um homem careca, com cinqenta e sanos, a fim de acompanh-lo Itlia?

    Voc no um careca de cinqenta e seis anos estereotipado. Estar na Itlia com voc no seria estar na Itcom qualquer um.

    Que quer dizer com isso? Devo negociar meus sete livros em troca de um rabo-de-saias?

    A imprevista mudana para linguagem vulgar fez-me sentir um j anota.

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    presena de meus pais. Continuei.

    O brinde que o senhor me fez... bem, espero viver de modo a merec-lo. Nunca levo essas coisas brincadeira. Contudo, falando nos contos propriamente ditos, eu gostaria de saber o que o senhor julga haver errado neles. O que acha que eu poderia fazer para... para melhorar.

    Ele exibiu um sorriso benigno, embora continuasse massageando as costas:

    O que h de errado?

    - Sim.

    Oua: hoje de manh, eu disse a Hope: "Zuckerman possui a fala mais arrebatadora que tenho ouvido h anespecialmente para algum que est comeando".

    mesmo?

    No me refiro ao estilo replicou, erguendo um dedo para dar nfase diferena. Refiro-me voz: alque parte dos membros inferiores e alcana acima da cabea. No se preocupe muito com o "errado". Trate prosseguir. Voc vencer.

    Ali estava. Tentei visualizar a vitria. Mas no consegui. Para mim, estar ali j era o mximo.

    "Hoje de manh, eu disse a Hope

    Nesse nterim, abotoando o palet, ajeitando a gravata e lanando ao relgio o olhar que estragava todos domingos da esposa , Lonof cuidou do ltimo item da agenda: o funcionamento do toca-discos. Eu interrompesua linha de raciocnio.

    Quero lhe mostrar o que acontece se o brao no chegar at o final do disco.

    Claro respondi.

    No vem funcionando bem ultimamente e ningum foi capaz de consert-lo. Durante um tempo, funcionamil maravilhas; de repente, torna a quebrar.

    Acompanhei-o at o toca-discos, dando menos ateno coleo de discos clssicos que voz que brotava meus membros inferiores.

    Aqui fica o volume, claro. Esta a tecla de

    partida. Esta a de rejeio; basta empurr-la...

    E isto refleti a dolorosa escrupulosidade, a mesma ateno meticulosa e enlouquecedora aos detalhes quetornam um grande homem, que o obrigam a prosseguir, que o levaram ao cume e agora o arrastam encosta abaixDe p ao lado de E. I. Lonoff, examinando o desobediente brao do toca-discos, compreendi pela primeira vezclebre fenmeno: um homem, seu destino, sua obra tudo reunido num nico todo. Que triunfo terrvel!

    Lonoff advertiu:

    Seria melhor para os discos e tambm para seu prazer em ouvi-los voc no se esquecer de limp-los antes coloc-los no aparelho.

    Oh, quanta meticulosidade e exagero! O triunfo nem mesmo comeava a descrever a batalha para arrancar daqu

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    infortnio a bno da fico escrita por Lonoff.

    De repente, senti mpetos de beij-lo. Sei que isto algo que acontece aos homens com uma freqncia jamdivulgada, mas a idade adulta era algo novo para mim (no tinha mais que cinco minutos, na realidade) e fiquatnito ante a fora de um sentimento que raras vezes nutrira a respeito de meu prprio pai desde que comearausar um barbeador. No momento, o impulso pareceu-me ainda mais violento do que invariavelmente me invasempre que eu era deixado a ss com uma daquelas amigas esguias de Betsy, de andar encantador e tapetitosamente airosas. Contudo, naquela casa abstmia, consegui reprimir melhor meus impulsos amorosos

    que na liberdade de Manhattan.2. O DDALO DE NATHAN

    Quem conseguiria dormir aps aquilo? Nem mesmo apaguei a luz para tentar. Passei uma eternidade olhando paa bem arrumada mesa de trabalho de E. I. Lonof: meticulosas pilhas de laudas, cada uma delas de cor cladiferente, destinadas s vrias minutas segundo presumi. Afinal, levantei-me do sof-cama e, embocertamente fosse um sacrilgio, sentei-me, apenas de cuecas, na cadeira em frente mquina de escrever. No de espantar que Lonoff sofresse dores nas costas, pois no se tratava de uma cadeira que permitisse relaxar pemenos, no a um homem de sua corpulncia. Passei de leve as pontas dos dedos nas teclas da mquina portPor que uma mquina porttil para um homem que nunca saa de casa? Por que no uma reforada mquina escritrio, grande, escura, fabricada para trabalhar longas horas consecutivas? Por que no uma confortvpoltrona estofada de executivo, na qual recostar-se para pensar comodamente? Por que no?

    Pregado ao quadro de avisos pendurado na parede perto da mesa o nico ornamento da sala estava umpequena folhinha, lembrana do banco local, ao lado de duas fichas de arquivo contendo anotaes. Uma decontinha uma frase fragmentada, referente a "Schumann Concerto no 2 em Si Bemol Menor de Chopin, Op31." Dizia: "... to transbordante de ternura, amor e desprezo que pode ser comparado, sem exagero, a um poede Byron". No consegui interpretar de imediato o significado do comentrio de Lonoff, at que me lembrei que Amy Bellette executava Chopin com grande encanto. Talvez a ficha fosse datilografada por ela, coescrupulosa atribuio anexada a um disco dado de presente, a fim de que ele pudesse ouvir Chopin no final tarde, mesmo quando ela j no estivesse ali. Talvez fosse exatamente naquela frase que ela pensava quando apela primeira vez sentada no tapete do escritrio: refletindo por que a descrio me parecia to pertinente a

    quanto musica...

    Se era refugiada de guerra, que fim levara sua famlia? Exterminada? Isso explicaria o "desprezo"? Ento, pquem o amor transbordante? Por Lonoff? Neste caso, o desprezo bem poderia ser por Hope. Se...

    No foi necessria grande astcia para interpretar o apelo contido na segunda ficha. Aps o que Lonoff me dissdurante a noite inteira, pude compreender o motivo pelo qual ele desejava manter perto de si aquelas trs frasenquanto fazia seu prprio jogo de sentenas. "Trabalhamos no escuro fazemos o que podemos damos o qpossumos. Nossa dvida nossa paixo; nossa paixo nossa tarefa. O resto a loucura da arte". Reflexextradas de um conto que eu no conhecia, de Henry James, intitulado A Idade Madura. Contudo, por que"loucura da arte"? Eu admitia que tudo fosse loucura, menos a arte. A arte era sanidade, no? Ou estaria

    enganado? Antes que a noite terminasse, eu deveria ler A Idade Madura duas vezes consecutivas, como se mpreparasse para ser examinado sobre o tema de manh cedo. Naquela poca, isso era uma lei cannica para miestar pronto para escrever mil palavras sobre o tema "O que Henry James considera a loucura da arte", casoindagao estivesse escrita no meu guardanapo mesa do caf.

    Fotos emolduradas dos filhos de Lonoff estavam numa das prateleiras da estante atrs da mesa de datilografia: urapaz e duas moas, sem quaisquer traos do genes do pai em suas estruturas sseas. Uma das moas, uma donzeloura e sardenta, com culos de aros de tartaruga, parecia-se muito com a me, tmida e estudiosa como esdeveria ter sido nos tempos de escola de artes. Ao lado de seu retrato, na outra parte da moldura dupla, estava ucarto postal enviado da Esccia para Massachusetts, endereado unicamente ao escritor. Talvez isso explicassefato de merecer um lugar de destaque na estante. Muita coisa na vida de Lonoff indicava que comunicar-se com

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    Oh, como eram ingnuos meus pais! Seu filho teria que ser um imbecil ou sdico para no lhes dar orgulho. no era imbecil nem sdico, era obediente, considerado e por demais entusiasmado com minhas prprrealizaes para no ser grato pelo impulso e apoio que recebera deles. A despeito das acaloradas alteraes adolescncia a hora de voltar para casa nos fins-de-semana, o estilo de meus sapatos, o ponto de reunio pouhiginico do pessoal do ginsio, minha suposta mas sempre negada tendncia a ter sempre a ltima palavra tnhamos sobrevivido a uma centena de cenas normais de discusses domsticas como a mesma famlia unidligada pelos mesmos sentimentos fortes e intensos. Bati muitas portas e declarei algumas guerras, mas ainda lhdedicava verdadeiro amor filial. Por outro lado, quer tivesse ou no conscincia exata da extenso do vc

    necessitava muito do amor deles por mim e acreditava que existisse um suprimento inesgotvel deste amor. O fade eu no poder ou talvez no querer? conceber as coisas de outro modo, contribuiu em muito para explicque eu fosse bastante ingnuo para esperar o costumeiro apoio para um simples conto que inclua alguns fatos histria de nossa famlia, os quais meu pai exemplar considerava as mais vergonhosas e ignominiotransgresses da decncia e confiana familiares.

    Os fatos com que comecei meu conto foram os seguintes:

    Meema Chaya, minha tia-av, para custear a educao de dois netos rfos de pai deixara a jarra de dinheiro qela acumulara diligentemente como costureira das damas da camada mais alta da sociedade de Newark. QuanEssie, a me dos dois gmeos rfos de pai, tentou utilizar os fundos deixados por Meema Chaya, a fim de env

    os rapazes para a Faculdade de Medicina, Sidney, o irmo mais moo de Essie, que herdaria o dinheiro qrestasse aps a formatura dos rapazes, impetrou uma ao judicial para impedi-la. Durante quatro anos, Sidnaguardara que os sobrinhos terminassem o curso preliminar na Universidade de Rutgers segundo comentrios da famlia, esperava principalmente nos bares e sales de bilhar , a fim de usar o resto da heranpara comprar um estacionamento de automveis no centro da cidade. Em altos brados, como era de costumSidney proclamou-se contrrio a adiar sua vida mansa s para que mais dois mdicos andassem de Cadillacs pelbairros gr-finos da cidade.

    Os membros da famlia que detestavam a mania de Don Juan e os amigos escusos de Sidney uniram-imediatamente para apoiar as dignas aspiraes dos rapazes, deixando no lado de Sidney uma falange constitupor Jenny, sua tmida e maltratada esposa, e sua misteriosa namorada polonesa, Annie, cujas shmaescandalosamente ostentosas embora nunca tenham sido vistas por