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UNIVERSIDADE DE LISBOA
FACULDADE DE LETRAS
DEPARTAMENTO DE HISTRIA
Dimenso Sapiencial da Realeza Neo-Assria (sculo VIII a VII a.C.)
Ivo Ricardo dos Santos Martins
Dissertao de Mestrado
Mestrado em Histria
Variante de Histria Antiga
(2014)
UNIVERSIDADE DE LISBOA
FACULDADE DE LETRAS
DEPARTAMENTO DE HISTRIA
Dimenso Sapiencial da Realeza Neo-Assria (sculo VIII a VII a.C.)
Ivo Ricardo dos Santos Martins
Dissertao co-orientada pelo Prof. Doutor Antnio Ramos dos Santos
e pelo Prof. Doutor Francisco Gomes Caramelo
Mestrado em Histria
Variante de Histria Antiga
(2014)
Dimenso Sapiencial da Realeza Neo-Assria (sculo VIII a VII a.C.)
1
ndice geral
Resumo ............................................................................................................................. 3
Abstract ............................................................................................................................. 4
Abreviaturas...................................................................................................................... 5
Introduo ......................................................................................................................... 6
Questo-problema ......................................................................................................... 7
Estado da questo ......................................................................................................... 8
Metodologia .................................................................................................................. 9
Fontes e corpus selecionado ....................................................................................... 11
1. Enquadramento histrico da instituio real neo-assria ......................................... 14
1.1. Condicionalismos geogrficos e socioculturais ............................................... 16
1.2. Refreamento das conquistas e a consolidao do estado expansionista .......... 17
1.3. Apogeu: a soberania universal na dinastia sargnida ...................................... 18
1.4. Sistema, estruturas e desafios da dominao imperial ..................................... 24
2. Sabedoria e sabedoria real ................................................................................... 28
2.1. Definio e amplitude do fenmeno sapiencial ............................................... 28
2.2. Caractersticas da tradio sapiencial .............................................................. 35
2.3. Sabedoria real: um conceito aplicado .......................................................... 36
3. Sabedoria real segundo as fontes ........................................................................ 39
3.1. Aspetos sapienciais no corpus documental ...................................................... 39
3.1.1. Plano mitolgico ................................................................................................. 41
3.1.2. Plano histrico antigo .......................................................................................... 55
3.1.3. Plano histrico recente ........................................................................................ 58
4. A sabedoria real enquanto estratgia ideolgica: teoria ...................................... 65
4.1. Princpios ideolgicos ......................................................................................... 66
4.2. Objetivos ............................................................................................................. 69
4.3. Arqutipos ........................................................................................................... 74
5. A sabedoria real como estratgia ideolgica: prtica .......................................... 77
5.1. Processo poltico legitimador ........................................................................... 77
5.2. Vias de difuso e concretizao ....................................................................... 78
5.2.1. Via da realizao ................................................................................................. 79
5.2.2. Via da ritualizao ............................................................................................... 82
5.2.3. Via da educao .................................................................................................. 84
5.3. Audincias ....................................................................................................... 85
5.4. Palcos ............................................................................................................... 86
5.5. Atuao da pessoa real ..................................................................................... 89
Dimenso Sapiencial da Realeza Neo-Assria (sculo VIII a VII a.C.)
2
Concluso ..................................................................................................................... 102
Bibliografia ................................................................................................................... 108
Snteses gerais e material de apoio ........................................................................... 108
Fontes ....................................................................................................................... 109
Estudos sobre literatura mesopotmica .................................................................... 111
Estudos sobre sabedoria ........................................................................................... 112
Sabedoria egpcia ...................................................................................................... 112
Sabedoria bblica ...................................................................................................... 113
Sabedoria mesopotmica .......................................................................................... 114
Estudos sobre ideologia real ..................................................................................... 115
Recursos On-Line ..................................................................................................... 120
Anexo A Fontes ordenao cronolgica ................................................................. 121
Anexo B Planos interpretativos e aspetos sapienciais ............................................... 126
Anexo C Exemplos de atuao da sabedoria real .................................................. 128
Anexo D Imagens ...................................................................................................... 129
Dimenso Sapiencial da Realeza Neo-Assria (sculo VIII a VII a.C.)
3
Resumo
O presente trabalho estuda a influncia que a tradio sapiencial mesopotmica
exerceu sobre o esforo de legitimao da instituio real neo-assria. A instituio real
assria debateu-se com dois problemas estruturais, nomeadamente: a instabilidade poltica
e as resistncias regionais ao sistema imperial.
Por seu turno, cada monarca neo-assrio procurou dar resposta a estas debilidades,
afirmando a efetividade do seu poder sobre sbditos e vassalos por meio de aes de
mbito diverso: campanhas militares, recolha de tributos, deportaes, programas de
construo e reconstruo, tratados de vassalagem, entre outros.
A ideologia real assria evoluiu para acomodar estas respostas numa poltica de
prestgio concertada, visando a legitimao do poder imperial assrio, da instituio real
e do monarca. Pretende-se compreender em que medida a tradio sapiencial
mesopotmica contribuiu para concretizar essa poltica de prestgio e quanto facilitou a
difuso e assimilao da mensagem legitimadora por parte das populaes
mesopotmicas e prximo-orientais.
Para esse efeito, foi reunido um corpus documental, composto por textos de vrias
tipologias, que teve circulao no perodo neo-assrio e que discutia as temticas da
sabedoria e da realeza. Para melhor compreenso, o corpus foi subdividido em trs planos
interpretativos consoante a poca e o contexto de produo: plano mitolgico, plano
histrico antigo, plano histrico recente.
O contributo da tradio sapiencial mostra-se efetivo mediante a introduo de
caracteres sapienciais na construo do discurso legitimador e da imagtica, e pelo
estabelecimento de uma base de dilogo com fundaes culturais capazes de gerar mtuo
entendimento entre povos de contextos regionais distintos.
A tradio sapiencial tornou-se, assim, num veculo que permitiu a criao de
coeso social entre as elites e a aceitao do poder imperial pelo grosso da populao, ou,
nos casos em que este desfecho no se verificou, permitiu que tanto os dominadores como
os dominados compreendessem os pressupostos de parte a parte.
Palavras-Chave: Sabedoria, Legitimidade, Perodo Neo-Assrio, Imprio, Realeza.
Dimenso Sapiencial da Realeza Neo-Assria (sculo VIII a VII a.C.)
4
Abstract
In this work we study the influence of the mesopotamian wisdom tradition upon
the effort to legitimize the neo-assyrian kingship.
Throughout its history assyrian kingship dealt with two structural problems:
political instability, and the regional opposition to the imperial system.
In its stead, each neo-assyrian monarch sought to answer these problems by the
reassertion of his power over subjects and vassals alike, by different means, such as:
military campaigns, collection of tributes, deportations, construction and reconstruction
programs, vassal treaties, among others.
The royal ideology evolved to accommodate these answers within a concerted
prestige policy which aims to legitimize the empire, the assyrian kingship, and the king
himself.
The goal of our work is to understand in what degree that prestige policy was
made possible by the concourse of wisdom tradition and in what way it enabled the
diffusion and the assimilation of the legitimating message by the mesopotamian and near-
eastern populations.
With this propose in mind, a text corpus has been assembled, which is composed
by different typological texts, that had circulation in the neo-assyrian period, and that
discussed wisdom and kingship. For a better understanding, the corpus was divided in a
three-folded interpretative structure in accordance with the period and context of
production: mythological plan, early historical plan, late historical plan.
The contribution of the wisdom tradition proves effective thru the introduction of
wisdom characters in the construction of the legitimating discourse and imagery, as well
as the establishment of a dialogical base with cultural foundations able to generate mutual
understanding between peoples from various regional contexts.
Therefore, the wisdom tradition became a vehicle that allowed the creation of
social cohesion between the elites and the acceptance of imperial power by the whole of
the population, or, in the cases where that wasnt possible, it allowed that both the
dominators and the dominated to apprehend each other preconceptions.
Keywords: Wisdom, Kingship, Neo-Assyrian Period, Empire, Legitimacy
Dimenso Sapiencial da Realeza Neo-Assria (sculo VIII a VII a.C.)
5
Abreviaturas
BWL LAMBERT, W. G.; Babylonian Wisdom Literature, reprint of 1963. Winona
Lake, Indiana: Eisenbrauns, 1996.
CDLI Cuneiform Digital Library Initiative
FDD FOSTER, Benjamin R.; From Distant Days. Myths, tales and poetry of Ancient
Mesopotamia. Bethesda, Maryland. CDL Press 1995.
HPBA SEUX, Marie-Joseph; Hymnes et Prires aux Dieux de Babylonie et D'Assyrie.
CNRS, Paris, Les ditions du Cerf, 1979.
JNES - Journal of Near Eastern Studies
MM DALLEY, Stephanie; Myths from Mesopotamia: Creation, The Flood, Gilgamesh,
and others. translated with an introduction and notes by Stephanie Dalley. Oxford; New
York: Oxford University Press, 1991.
SAA State Archives of Assyria online, Helsinki: Helsinki University Press, via SAAo
(url: http://oracc.museum.upenn.edu/saao/corpus) (ltimo acesso em 20.11.2014).
RIMA2 GRAYSON, Albert Kirk; Assyrian Rulers of the early first millennium BC I
(1114-859 BC). col. The Royal Inscriptions of Mesopotamia Assyrian Periods. Vol. 2.
Toronto, Buffalo, London: University of Toronto Press, 1991 (RIMA 2).
RIMA3 GRAYSON, Albert Kirk; Assyrian Rulers of the early first millennium BC II
(858-745 BC). col. The Royal Inscriptions of Mesopotamia Assyrian Periods. Vol. 3.
Toronto, Buffalo, London: University of Toronto Press, 1996 (RIMA 3).
RINAP4 LEICHTY, Erle; The Royal Inscriptions of Esarhaddon, King of Assyria (680-
669 BC). Winona Lake, Eisenbrauns, 2011 via The Royal Inscriptions of the Neo-
Assyrian Period [RINAP4] (url: http://oracc.museum.upenn.edu/rinap/rinap4/corpus )
(ltimo acesso em 24.11.2014).
http://oracc.museum.upenn.edu/saao/corpushttp://oracc.museum.upenn.edu/rinap/rinap4/corpus
Dimenso Sapiencial da Realeza Neo-Assria (sculo VIII a VII a.C.)
6
Introduo
Com vasto entendimento1, rei circunspecto2, nomeado por Aur3. Esta
terminologia e linguagem povoa as inscries, as epstolas, os relatrios oraculares, e
todos os textos produzidos pelos escribas e funcionrios reais da corte neo-assria.
A mesma terminologia e linguagem encontram eco em textos de cariz sapiencial
produzidos no contexto mesopotmico e cuja produo e fixao antecede o perodo neo-
assrio. A coincidncia no fortuita, sendo admissvel a intertextualidade cultivada pelo
processo de formao dos escribas, que se baseava na cpia de textos clssicos da tradio
sapiencial mesopotmica. Os escribas que redigiram as inscries reais e os hinos de
Assurbanpal copiaram e conheceram a Epopeia de Gilgame, o Enuma Eli, o Ludlul
bel-nemeqi4.
A nossa dissertao toma por ttulo a Dimenso sapiencial da realeza neo-assria
(sculo VIII a VII a.C.) e prope avaliar o impacto que o ideal sapiencial exerceu sobre a
ideologia real neo-assria e entender como o esforo de legitimao do poder real recorreu
a caracteres e arqutipos sapienciais para construir a imagem do monarca neo-assrio e
legitimar a sua autoridade durante a segunda metade do perodo neo-assrio. Por outras
palavras, queremos compreender a intertextualidade entre os textos sapienciais e a
retrica de legitimao do poder real e do sistema de dominao imperial neo-assrio.
Para apoiar esta anlise, selecionou-se um corpus documental composto por cinquenta e
quatro documentos de vria tipologia e origem.
A nossa seleo observou trs regras: a circulao dos textos no perodo neo-assrio;
a presena de linguagem, terminologia ou caracteres sapienciais nesses textos; a afinidade
com a temtica da legitimidade real.
1 Fonte n 23 LIVINGSTONE; Court poetry and literary miscellanea (State Archives of Assyria 3), via
SAAo (url: http://oracc.museum.upenn.edu/saao/corpus)
(ltimo acesso em 20.11.2014) SAA03 032 (ll.r26) 2 Fonte n 31 LIVINGSTONE; Court poetry and literary miscellanea (State Archives of Assyria 3), via
SAAo (url: http://oracc.museum.upenn.edu/saao/corpus)
(ltimo acesso em 20.11.2014) SAA03 033 (ll.1) 3 Fonte n 44 LIVINGSTONE; Court poetry and literary miscellanea (State Archives of Assyria 3), via
SAAo (url: http://oracc.museum.upenn.edu/saao/corpus)
(ltimo acesso em 20.11.2014) SAA 03 044 (ll.11) 4Acerca do corpus reunido na biblioteca real de Assurbanpal e da real proporo dos textos literrios veja-se
OPPENHEIM; Ancient Mesopotamia. Portrait of a dead civilization. , pp. 15-20.
Dimenso Sapiencial da Realeza Neo-Assria (sculo VIII a VII a.C.)
7
A proposta que aqui se apresenta faz uma abordagem sequenciada da questo. No
decurso desta introduo, trataremos de esclarecer a questo-problema, definir
metodologias e apresentar materialmente o corpus selecionado. No captulo procedente,
analisam-se os condicionalismos geogrficos e histricos que marcaram a gnese da
instituio real neo-assria. No segundo captulo, abordaremos o fenmeno sapiencial,
descrevendo as suas caractersticas, as dificuldades emanadas do seu estudo e definiremos
a perspetiva de abordagem que manteremos ao longo deste trabalho.
No captulo seguinte, retornaremos s fontes para detetar a ocorrncia de
caracteres sapienciais e a evoluo da sua apropriao ideolgica. Concentrando-nos,
posto isto, na execuo do poder real e no processo legitimador, sistematizando a lgica
do seu funcionamento e avaliando o contributo dado pela sabedoria real5 sua
construo e difuso.
Questo-problema
A presente dissertao pretende explorar o contributo dado pela tradio sapiencial
mesopotmica para o desenvolvimento da ideologia real neo-assria, procurando
compreender como o monarca legitimava o seu poder, recorrendo a caracteres e a
paradigmas que se inscreviam nessa tradio.
Os escribas, eruditos e especialistas ao servio da corte neo-assria, face fragilidade
do processo sucessrio, construram uma poltica de prestgio em torno da instituio real
que se alicerava na tradio sapiencial mesopotmica, por forma a suavizar as
resistncias regionais dominao imperial.
Semelhante poltica manifestava-se por diversas vias, tais como, a realizao de
grandes programas de construo, a prossecuo de campanhas militares anuais, a prtica
de deportaes, o controlo do sistema produtivo, a segurana dada ao sistema econmico
e, sobretudo, na comunicao e publicitao dos sucessos alcanados pelas vias
anteriormente referidas.
5 Por sabedoria real entenda-se a aplicao do ideal sapiencial instituio real, empregando a linguagem,
a terminologia, os valores e os caracteres desse ideal na estratgia ideolgica de legitimao dessa
instituio.
Dimenso Sapiencial da Realeza Neo-Assria (sculo VIII a VII a.C.)
8
A propaganda, ao utilizar a dimenso sapiencial, pretendia enaltecer o monarca neo-
assrio, estabelecendo a superioridade deste sobre os monarcas estrangeiros e sobre os
seus sbditos e vassalos.
A primeira premissa desta superioridade reside na vertente transcendental da realeza
sapiencial neo-assria. Eleito pelos deuses enquanto jovem, o monarca em potncia via o
seu carisma elevado pela proteo e educao constante que os deuses lhe
providenciavam. Posteriormente, pelo cerimonial da coroao e pela investidura das
insgnias reais, a pessoa real revestia-se definitivamente dessa superioridade, sempre
guardada e orientada pela esfera divina.
A segunda premissa corresponde vertente efetiva da sabedoria real, isto ,
capacidade que o monarca dispunha para demonstrar a sua superioridade pela realizao
de aes coroadas de sucesso. Com efeito, esta premissa envolve o conceito de
justificao por ordlio e reitera a preponderncia da vertente transcendental. Em termos
ideolgicos, o xito do rei dependia da aprovao divina, por consequncia, cada triunfo
fortalecia a sua legitimidade.
As duas premissas configuram a dimenso sapiencial da realeza neo-assria e
concretizam a poltica de prestgio ao transmitirem a sua mensagem legitimadora de uma
forma reconhecvel a toda a sociedade inserida na tradio mesopotmica.
Estado da questo
No temos conhecimento de estudos monogrficos acerca desta temtica especfica.
No obstante, existem algumas abordagens que sucintamente afloram o tema em estudo.
Antnio Augusto Tavares sintetiza a questo na sua obra Imprios e Propaganda na
Antiguidade6; Francisco Caramelo7 esquematiza o processo ideolgico de legitimao do
poder real por recurso a caracteres sapienciais; ao passo que Ronald Sweet estabelece a
relao entre a tradio sapiencial e a instituio monrquica mesopotmica8.
Existem, por outro lado, diversos artigos que tm contribudo para aprofundar a nossa
compreenso de perspetivas sectoriais da questo, isto : a ideologia poltica, a dominao
imperial, a tradio sapiencial e a instituio real neo-assria.
6TAVARES; Imprios da Mesopotmia in Imprios e Propaganda na Antiguidade. pp. 17-33 7CARAMELO; O rei e os nveis de representao da divindade na Mesopotmia e em Israel in Revista
da Faculdade de Cincias Sociais e Humanas, n 10, pp. 297-308 8SWEET; The Sage in Mesopotamian Palaces and Royal Courts in The Sage in Israel and the Ancient
Near East. pp. 99-107
Dimenso Sapiencial da Realeza Neo-Assria (sculo VIII a VII a.C.)
9
Do ponto de vista do aproveitamento ideolgico que o poder poltico neo-assrio fez
da tradio sapiencial, ser de nomear o artigo de Mario Liverani9; determinados captulos
da tese de Holloway10; bem como o artigo no qual Hallo faz uma descrio da instituio
monrquica mesopotmica11.
No campo da sabedoria, possumos bibliografia de referncia, que contribuiu para o
entendimento da tradio sapiencial, de entre a qual destacamos: La Sagesse sumro-
accadienne, de J. J. Van Dijk12 e Wisdom in Akkadian Literature: Expression, instruction,
dialogue, de Sara J. Denning-Bolle13.
No que concerne dominao imperial, Parker14, seguindo Liverani, desenvolve a
tese da dominao imperial em descontinuidade territorial. Por fim, recorremos a snteses
de Mieroop15, Kuhrt16 e Grayson17 para se reconstruir o contexto sociopoltico que deu
lugar ao desenvolvimento da sabedoria real neo-assria.
Metodologia
Durante o desenvolvimento da presente dissertao recorremos a metodologias
que nos permitiro explorar a questo abordada de uma forma sistemtica, nomeadamente
pela recolha de fontes, a exegese e a organizao das mesmas luz de um modelo
interpretativo e reviso bibliogrfica das temticas conexas.
Sistematizmos a nossa abordagem dividindo a nossa questo-problema em duas
partes: a tradio sapiencial; a ideologia poltica e a dominao imperial neo-assria
Relativamente primeira parte, explormos a tradio sapiencial mesopotmica
mediante a anlise hermenutica de cada um dos textos que compem o corpus dessa
9 LIVERANI; The ideology of the assyrian empire in Power and Propaganda. A Symposium on Ancient
Empires (Mesopotamia 7), pp. 297-317. 10 HOLLOWAY; Divine Image of the King, Prestige Politics and Imperialism in Aur is King! Aur is
King! Religion in the Exercise of Power in The Neo-Assyrian Empire, pp. 178-197. 11 HALLO; Kingship in Origins. The Ancient Near Eastern background of some modern Western
Institutions, pp. 188-211. 12 Van DIJK; La sagesse sumro-accadienne, 1953. 13 DENNING-BOLLE; Wisdom in Akkadian literature: Expression, instruction, dialogue, 1992. 14 PARKER; The Construction and Performance of Kingship in the Neo-Assyrian Empire in Journal of
Anthropological Research: 67(3), pp. 357-386. 15 MIEROOP; A History of the Ancient Near East. 2009. 16 KUHRT; The Neo-Assyrian Empire (934-610) in The Ancient Near East c.3000-330 BC. Vol. II, pp.
473-546; 17 GRAYSON; Assyrian Civilization in The Cambridge Ancient History: The Assyrian and Babylonian
Empires and other States of the Near East, from the eighth to the sixth centuries B.C. vol. III Part 2, pp.
194-228.
Dimenso Sapiencial da Realeza Neo-Assria (sculo VIII a VII a.C.)
10
tradio, enquanto paralelamente estudmos as monografias que foram elaboradas acerca
da tradio sapiencial mesopotmica
Quanto segunda parte do processo, efetumos a reviso bibliogrfica, estudando
os artigos que tm sido produzidos acerca da organizao do imprio neo-assrio e da
ideologia poltica imperial e, de seguida, analismos os textos contidos no segundo,
terceiro e nono volumes do corpus State Archives of Assyria online18 [SAAo], em The
Royal Inscriptions of the Neo-Assyrian Period19 [RINAP4] e presentes nos volumes dois
e trs da coleo The Royal Inscriptions of Mesopotamia Assyrian Periods20 [RIMA].
A seleo final do corpus documental regeu-se pelo critrio da relevncia
temtica, sendo escolhidos os textos quer da tradio sapiencial mesopotmica, quer dos
arquivos neo-assrios, consoante os mesmos se reportavam tanto sabedoria como
instituio real. Esta recolha resultou num corpus de textos que se revestem de um cariz
sapiencial, que representam a tradio mesopotmica ao longo de cerca de doze sculos
(1894-612 a.C.), e que moldaram a construo da ideologia e a perceo da instituio
real neo-assria.
De uma forma geral, a anlise hermenutica baseou-se nas coletneas de grande
flego em formato impresso como a Babylonian Wisdom Literature 21 (BWL) publicada
por Lambert, e que uma importante coletnea de textos da tradio sapiencial
mesopotmica; e tambm em formato digital disponibilizados em plataformas on-line
como a SAAo e outros projetos da plataforma Open Richly Annotated Cuneiform Corpus
[ORACC].
Tambm integrando a plataforma ORACC, o catlogo informtico Cuneiform
Digital Library Initiative22[CDLI] , gerido pela Universidade da Pensilvnia, foi fonte
indelvel de informaes heursticas sobre os originais dos textos-fonte utilizados.
A terminologia usada na redao tende a seguir as opes ortogrficas seguidas
pelos SAAo e pela CDLI no que respeita onomstica e toponmia. Exceo feita ao
uso de grafias portuguesas j consagradas como o caso de Nnive e Assarado.
18State Archives of Assyria online, url: http://oracc.museum.upenn.edu/saao/corpus (ltimo acesso em
20.11.2014) 19 LEICHTY; The Royal Inscriptions of Esarhaddon, King of Assyria (680-669 BC). via [RINAP4] (url:
http://oracc.museum.upenn.edu/rinap/rinap4/corpus ) (ltimo acesso em 24.11.2014) 20 GRAYSON; Assyrian Rulers of the the early first millennium BC II (858-745 BC). (RIMA 3); Assyrian
Rulers of the the early first millennium BC I (1114-859 BC). (RIMA 2) 21 LAMBERT; Babylonian Wisdom Literature, 1996. 22 Cuneiform Digital Library Initiative, url: http://cdli.ucla.edu/ (ultimo acesso em 20.11.2014).
http://oracc.museum.upenn.edu/saao/corpushttp://cdli.ucla.edu/
Dimenso Sapiencial da Realeza Neo-Assria (sculo VIII a VII a.C.)
11
Naturalmente, esta normalizao no observada aquando da reproduo de fontes e de
outros artigos, utilizando-se a grafia original.
A matriz conceptual, que se foi desenvolvendo com o decorrer da nossa
investigao, alicera-se em dois conceitos centrais: sabedoria real e legitimidade os
quais possuem significao prpria no contexto estudado.
Fontes e corpus selecionado
Composto por cinquenta e quatro documentos, o corpus, no uma recolha exaustiva,
unicamente serve o intuito de apoiar a compreenso da questo-problema. Com efeito, de
um universo de cerca de trezentos textos abordados, um grande nmero foi preterido por
no ser relevante para o tema, ou por configurarem gneros que vinculam escassa ou nula
informao (crnicas, listas reais) sobre o mesmo.
O corpus documental23 pode ser subdividido em dois subconjuntos, a saber: o
corpus convencional reconhecido pelas principais compilaes de textos
mesopotmicos e definido por analogia com os textos sapienciais bblicos; e o corpus
no-convencional, que se compe de gneros e tipologias que se afastam da definio de
texto sapiencial mas que conservam linguagem, terminologia, caracteres e valores
sapienciais. Do corpus convencional conservmos textos admoestatrios Conselhos de
Sabedoria, Conselhos de um Pessimista, Advertncia a um Prncipe e o monlogo
antropolgico Ludlul bel Nemeqi. Se nenhum destes textos ter sido produzido na corte
neo-assria, todos tero tido circulao no perodo neo-assrio.
Por seu turno, o corpus no convencional constitudo por poemas narrativos24
Enuma Eli, Erra, Adapa, Anz, Etana, Atrahass, Epopeia de Gilgame textos
litrgicos como orculos, profecias, preces, hinos, textos rituais, cartas divinas textos
literrios produzidos na corte neo-assria e textos histricos epstolas dirigidas a
Assurbanpal e textos de declarada inteno propagandstica.
23 Doravante, quando nos referirmos a uma fonte includa no nosso corpus, indicaremos em nota-de-rodap
o nmero que lhe foi atribudo por ordenao cronolgica seguido da referncia bibliogrfica completa. cf.
Anexo A Fontes-Ordenao Cronolgica. 24 Conjunto de textos literrios com as caractersticas comuns de serem narrativas na terceira pessoa e
englobarem quadros explicativos de determinados fenmenos e instituies. Esta denominao permite
acomodar o facto dos mesmos textos possurem extenso diversa.
Dimenso Sapiencial da Realeza Neo-Assria (sculo VIII a VII a.C.)
12
Aps a primeira seleo retivemos cerca de cem textos de um universo de cerca
de trezentos, havendo, em momento posterior, reduo para o nmero final de cinquenta
e quatro textos, por eliminao ou compilao de textos congneres.
Relativamente sua tipologia o nosso corpus composto por quatro textos
sapienciais convencionais (nomeadamente trs instrues e o monlogo antropolgico
Ludlul Bel Nemeqi); sete poemas narrativos; trinta textos litrgicos, dos quais cinco so
orculos, oito so hinos, doze so preces, quatro so cartas divinas e um texto uma
explicao ritual; trs textos literrios de natureza didtica; por fim, temos treze textos
ditos histricos, dos quais cinco so epstolas e oito so textos com intenes
propagandsticas.
Em termos cronolgicos25, estes textos possuem contemporaneidade pelo facto de
todos terem sido conservados na chamada biblioteca real de Nnive. De contrrio, a sua
produo distribui-se de forma desigual pela cronologia do contexto civilizacional
mesopotmico. Onze textos encontram a sua primeira fixao antes do perodo neo-
assrio durante o II milnio a.C.; enquanto os restantes se inscrevem j no perodo neo-
assrio. Destes ltimos, onze no avanam elementos suficientes para refinar a sua
cronologia e um outro disponibiliza informao que apenas permite ser enquadrado no
sculo VIII a.C. (Erra).
Os textos remanescentes permitem obter a uma localizao cronolgica um pouco
mais precisa, nomeadamente por reinados, sendo que um remonta ao reinado de
Aurnasirpal II (O Banquete de Aurnasirpal que se encontra in loco em Nimrod/Kalu)
entre 883-859 a.C.; dois textos inscrevem-se no reinado de Salmanasar III entre 858-824
a.C.; do reinado de Adad-nirari III (810-783 a.C.) chegou-nos um texto propagandstico
acerca da expedio deste monarca Palestina; o reinado de Sargo II contribui com
outros dois textos, ao passo que o reinado do seu sucessor (Senaquerib 704-681 a.C.)
acrescenta um texto de explicao ritual acerca do Pecado de Sargo. Do reinado de
Assarado (680-669 a.C.) a nossa seleo retm sete textos, incluindo uma coleo de
orculos profticos dirigidos ao ento prncipe herdeiro Assurbanpal.
Os restantes quinze textos tm o seu perodo de produo definido no reinado de
Assurbanpal entre 668-627 a.C.
O critrio principal para a escolha destes textos foi a relevncia temtica e o valor
demonstrativo da dimenso sapiencial da ideologia poltica da realeza neo-assria. De
25 cf. Anexo A Fontes ordenao Cronolgica
Dimenso Sapiencial da Realeza Neo-Assria (sculo VIII a VII a.C.)
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facto, apenas cerca de trs por cento (3,4%) dos textos que compem o nosso corpus
pertencem ao grupo de textos que convencionalmente se denominam por sapienciais na
tradio mesopotmica. Outra percentagem semelhante compreende algumas das grandes
obras literrias e mitolgicas que compem o corpus clssico da tradio mesopotmica.
Os cerca de noventa e seis por cento (96,6%) remanescentes dizem respeito a
textos oriundos das chancelarias rgias, da administrao e da corte neo-assria, sendo
que estes ltimos representam a utilizao propagandstica dos aspetos que os primeiros
dois grupos encerram e desenvolvem respetivamente.
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1. Enquadramento histrico da instituio real neo-assria
Ao longo da primeira metade do I milnio a.C., a Assria dominou grande parte
do Prximo Oriente Antigo graas a um poderio militar crescente que marcou o perodo
que se designa por Imprio Neo-assrio.
Esse imprio permaneceu ancorado na regio da Assria tradicional, o tringulo
primordial entre Nnive - Aur - Arbela, durante os cerca de trezentos anos em que sofreu
uma sucesso cclica de expanses e retraes da sua influncia e territrio.
Embora o novo imprio surgisse de uma continuidade, a qual era evidenciada pela
efetiva sucesso na linhagem real e pela perceo ideolgica de que a expanso era a
reconquista de fronteiras e influncias anteriormente existentes, os reinados precedentes
prepararam caminho para uma rutura com as formas de controlo, organizao e conquista
tradicionais, a qual permitiu o sucesso da expanso iniciada em 911 a.C. (Adad-nirari II)
e novamente impulsionada por Sargo II em 709 a.C.
Herana do perodo meso-assrio, o controlo imperial subsistia mediante a
convivncia de modelos administrativos dspares, de acordo com as relaes que as
diferentes entidades polticas pr-existentes estabeleciam com o poder imperial assrio,
prtica que seria aprimorada pelas reformas de Tiglath-pileser III no sculo VIII a.C.
Como veremos, Bradley Parker alerta para a necessidade de dissociar a realidade
do Imprio Neo-assrio da conceo ps-clssica de imprio territorial com fronteiras
bem delimitadas26, simbolizada pela idealizao da experincia romana do Baixo-
imprio.
O Imprio Romano, que evoluiu em resposta a presses vrias, consistia na
ocupao efetiva do territrio conquistado por colnias de veteranos e, igualmente, da
integrao dos povos auttones atravs do processo de romanizao, o qual conjugava
solues de dominao coerciva com solues de dominao solidria, tais como o
alargamento gradual da cidadania romana. Na Alta Antiguidade, a natureza territorial
deste tipo de dominao evidenciou-se com a fixao e fortificao do limes do imprio.
Ao invs, o autor defende que a realidade assria se traduzia numa ocupao
efetiva descontnua sustentada por um sistema de comunicaes em rede27.
26 PARKER; The Construction and Performance of Kingship in the Neo-Assyrian Empire in Journal of
Anthropological Research: 67(3), pp. 10-11. 27 vide infra 2.4. Sistema, estruturas e desafios da dominao imperial.
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O imprio ateniense do sculo V a.C. e o imprio martimo portugus do sculo
XVI d.C. constituem exemplos mais prximos do modelo imperial hbrido (territorial e
hegemnico) desenvolvido pelo imprio neo-assrio.
No sculo V a.C., aps a segunda Guerra Mdica, Atenas preserva o controlo da
Liga de Delos, mantendo a aliana e funcionando em favor dos seus interesses
hegemnicos. Para alm da tica, Atenas no possua outro domnio territorial direto,
limitando-se a manter guarnies militares em pontos-chave e a controlar as rotas
martimas dentro do seu imprio. Paralelamente a este controlo coercivo, Atenas exercia
sobre os vassalos um controlo solidrio baseado numa assuno de ameaa externa do
Imprio Persa.
No sculo XVI d.C., a construo do imprio martimo portugus regeu-se por
princpios idnticos. Para alm do prprio pas, no existia nesta fase nenhum controlo
efetivo de grandes extenses territoriais. Excetuando as capitanias atlnticas as quais
conheceram programas de povoamento efetivo as fortalezas e feitorias africanas e as
cidades do ndico e da sia eram pontos de controlo das rotas comerciais. O controlo
coercivo estava sempre atuante nesses pontos, mas era complementado com um inspido
controlo solidrio implementado pelos missionrios e pelas polticas de miscigenao e
diplomacia. Um exemplo claro do modelo imperial hegemnico.
As peculiaridades desse modelo, bem como os desafios a ele colocados pela
realidade do Prximo Oriente Antigo, tornaram necessrio complementar o controlo
coercivo, imposto pelo dispositivo militar, com outras formas de controlo, nomeadamente
um controlo solidrio baseado na integrao voluntria das elites conquistadas e na
adeso destas causa imperial neo-assria.
Como defendemos, a efetividade do controlo solidrio foi procurada por meio da
comunicao ideolgica de uma poltica de prestgio com recurso a paradigmas e
caracteres da tradio sapiencial mesopotmica e prximo-oriental.
Neste captulo, nossa inteno demonstrar as condicionantes que se colocavam
empresa imperial neo-assria, traar sucintamente as vicissitudes dessa empresa e
explicar o modelo imperial hibrido, a que acima fizemos aluso, e evidenciar a
necessidade do controlo solidrio para a manuteno deste hetergeno edifcio poltico.
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1.1. Condicionalismos geogrficos e socioculturais
Em termos geogrficos a regio da Assria tradicional conhece condicionalismos
que confrangem a populao auttone e que levam a procurar os recursos, que a
escasseiam, fora da regio, enquanto outros condicionalismos favorecem a expanso
econmica e militar. A pobreza mineral e madeireira da regio e a prtica de uma
agricultura de produtividade mdia a baixa impediam a autarcia e exigiam a manuteno
de relaes comerciais e polticas tanto com entidades polticas imediatamente adjacentes
como com outras mais longnquas.
Entre as condies fsicas que favoreciam a internacionalizao, devemos referir
o posicionamento da Assria que, se por um lado lhe concede uma regio protegida por
fronteiras naturais (a saber: o tringulo formado pelas cidades de Aur - Nnive - Arbela);
por outro lado torna-a uma encruzilhada natural das vias de comunicao que atuavam no
eixo norte/sul e este/oeste e em ponto de controlo privilegiado das respetivas rotas
comerciais.
Ao nvel sociocultural, os condicionalismos no eram menos constrangedores,
como iremos observar. Por um lado, a Assria tinha na sua gnese influncias das cidades-
estado do Sul (sumrias e acdicas)28 e das tribos nmadas assrias29. Tal facto permite o
entendimento da sua matriz cultural peculiar repartida entre o sedentarismo e o
nomadismo, o que explica a tenso existente entre as estruturas locais de pequena escala
(cidades) e as superstruturas, modeladas nas solidariedades tribais (provncias) e no seio
da administrao concntrica neo-assria.
Por outro lado, o legado cultural e poltico acdico-babilnico e as experincias
imperiais assrias dos perodos paleo e meso-assrios prepararam caminho para a
formulao imperial do poder e para a sua aceitao pela populao da Assria, enquanto
ao mesmo tempo concediam bases para uma mentalidade de reconquista que pronto foi
explorada pela mquina ideolgica neo-assria.
Por fim, um ltimo condicionalismo sociocultural ter atuado como facilitador
para a gnese da expanso neo-assria: a desestruturao poltica do Prximo Oriente
Antigo aps as invases dos Povos do Mar e as deslocaes das tribos arameias. Este
fenmeno preparou o ressurgimento imperial assrio, uma vez que deixou o estado
virtualmente sem concorrentes hegemnicos.
28 cf. OPPENHEIM; Ancient Mesopotamia. Portrait of a dead civilization, pp. 164-165. 29 vide. PARKER; The Mechanics of Empire, p. 4.
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1.2. Refreamento das conquistas e a consolidao do estado expansionista
Aps a apario na cena internacional durante o perodo meso-assrio enquanto
agente poltico de mdia importncia, a Assria era, no dealbar do sculo X a.C., um poder
debilitado e reduzido s suas fronteiras naturais.
O facto da estabilidade da administrao imperial depender em grande medida da
fora e do carisma de cada monarca ditou que s recorrentes quezlias internas, aquando
de uma sucesso real, se seguisse o enfraquecimento do controlo que o centro tinha sobre
a periferia, na mesma medida em que o monarca perdia o controlo do prprio centro.
Foi necessrio aguardar pelo reinado de Aur-dan II (934-912 a.C.) para que a
autoridade central se voltasse a fortalecer convenientemente, ao ponto de debelar os
intentos autonmicos dos seus governadores e as aspiraes independentistas dos seus
vassalos. Sob o seu filho, Adad-nirari II (911-891 a.C.), a Assria retoma uma posio de
fora no xadrez poltico do Prximo Oriente Antigo e os limites da influncia assria
atingem as posies alcanadas no perodo meso-assrio.
entrada do sculo VIII a.C., a Assria consolidou-se enquanto estado
expansionista que, declarada e efetivamente, se propunha e empenhava nessa vocao.
Contudo, exatamente por altura deste relanamento expansionista que surge na regio
do lago Van, em expanso para a Anatlia Oriental, um competidor com uma potncia
militar equiparada: o reino de Urartu. Esta entidade poltica acompanhar a expanso
assria durante todo o perodo neo-assrio, com os vrios confrontos e campanhas
ocorridas entre os dois estados, saldando-se num impasse estratgico e na manuteno de
uma fronteira tensa entre ambos.
Os dois reinados que se seguem representam um extravasar das fronteiras da
expanso meso-assria, sob Tukulti-Ninurta II, e o alcance de uma importante marca
psicolgica a chegada ao Mediterrneo sob Aurnasirpal II. Esta marca foi celebrada
e logo aproveitada pela poltica de prestgio: o alcance do Mar Superior era um
argumento valioso para o discurso legitimador na medida em que credibilizou a titulatura
rgia.
A batalha de Qarqar, em 853 a.C., significar o refrear da expanso assria no
reinado de Salmanasar III e ao longo dos cinco reinados seguintes (ami-Adad V, Adad-
Nirari III, Salmanasar IV, Aur-dan IV e Aur-Nirari V).
Dimenso Sapiencial da Realeza Neo-Assria (sculo VIII a VII a.C.)
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Durante este perodo, o efeito paralisador imediato da batalha perpetua-se devido
conjugao de fatores distintos, tais como: a presso do reino de Urartu, a perda de
preponderncia do poder real (o turtnu ami-ilu vai atuar como valido ao longo de
quatro reinados subalternizando a instituio real) e as revoltas internas que despontam
no seio da Assria devido a assimetrias econmicas crescentes.
Apenas com o advento de Tiglath-Pileser III (773-727 a.C.), com as reformas que
se vo operar no seu reinado, a Assria prepara um relanamento da empresa
expansionista, a qual ter o seu apogeu durante a dinastia dos Sargnidas.
Estas reformas incidiram essencialmente sobre dois campos, a administrao
provincial e a reorganizao do exrcito. No primeiro campo, Tiglath-Pileser III
reformulou os territrios provinciais, reduzindo-lhes o tamanho e aumentando o seu
nmero 30. Paralelamente, nomeou, com maior frequncia, eunucos para a administrao
e desdobrou os cargos de maior importncia, debelando com isso as tentativas de
dominao dinstica. Tambm sob a gide deste monarca se redefiniu a hierarquia da
dominao imperial, a qual, partindo do centro, se organiza em provncias, estados-
fantoche e estados-vassalos.
A remodelao do exrcito logrou torn-lo apto para uma ao permanente.
Incorporaram-se divises de infantaria ligeira oriundas das regies dominadas, enquanto
os corpos de elite como a cavalaria e os carros de combate se mantiveram de extrao
assria, com isso promovendo um equilbrio para impossibilitar o monoplio do exrcito
por parte de uma qualquer fao rival e estabeleceram-se bases de abastecimento por todo
o imprio e arsenais com vista a equipar convenientemente o exrcito. A finalidade destas
reformas era exatamente o fortalecimento do poder central.
1.3. Apogeu: a soberania universal na dinastia sargnida
Com a dinastia fundada por Sargo II, a Assria assiste a um fortalecimento interno
do pas, o qual se traduz num impulso renovado na expanso imperial. Sendo certo que
as reformas introduzidas no reinado de Tiglath-Pileser III permitem justificar esse
fortalecimento e o consequente impulso expansionista, no menos verdade que, no
longo prazo, tais reformas no lograram corrigir as debilidades estruturais do sistema
30 Vide MIEROOP; A History of the Ancient Near East, p. 248.
Dimenso Sapiencial da Realeza Neo-Assria (sculo VIII a VII a.C.)
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assrio, como a preponderncia do carisma pessoal do monarca enquanto fator de
estabilidade, a insuficincia do sistema produtivo do ncleo, ou a progressiva delapidao
das reservas de mo-de-obra assria.
As conturbaes polticas e as revoltas urbanas que se seguiriam morte de cada
um dos monarcas da referida dinastia atestam bem essa realidade endmica que, mesmo
no perodo ureo do poder assrio, contribua para enfraquecer as estruturas de poder, o
controlo do centro e, concomitantemente, da dominao imperial sobre as periferias.
Sargo II (721-705 a.C.) ter ascendido ao trono aps o assassnio do seu
antecessor, e presumvel irmo, Salmanasar V. O seu nome, que emula o esprito de
Sargo de Akkad (2334-2279 a.C.)31, tem sido apontado como um indcio de uma
legitimidade duvidosa.
No caso de Senaquerib, no so levantadas dvidas relativamente sua filiao
com Sargo II e, aparentemente, a sua ascenso aconteceu sem revoltas de monta. Porm,
a morte traumtica de Sargo II no campo de batalha frente aos cimrios foi o bastante
para que o prprio Senaquerib colocasse em curso um inqurito acerca dos eventuais
faltas de seu pai32. Por esse motivo, de acreditar que a questo da legitimidade dinstica
houvesse ressurgido.
Por seu turno, Assarado preocupa-se em descrever, pormenorizadamente, o
conturbado perodo da sua sucesso. Do assassnio de Senaquerib, s guerras fratricidas
contra os seus irmos, o monarca descreve os eventos e a forma diligente como Itar o
ter protegido, sempre reafirmando a sua legitimidade de herdeiro por meio de numerosas
consultas e relatrios oraculares, talvez inspirados pela sua me33.
Esta experiencia pessoal levou Assarado a preparar meticulosamente a sua
sucesso atravs de tratados e juramentos de vassalagem34. E, de facto, esta estratgia
sortiu efeitos positivos num primeiro momento. A sucesso de Assurbanpal e de seu
irmo ama-um-ukn processou-se sem litgios ou violncia tendo o primeiro tomado o
trono assrio e o segundo o de Babilnia. Apesar disso, tratou-se de uma questo adiada
que dezassete anos mais tarde se iria desenrolar.
31 certo que na Lista Real Assria existiu um monarca com o nome de Sargo (1920-1881 a.C.), contudo
o perodo e os poucos eventos do seu reinado tornam duvidosa a inteno de emular um antepassado distante
e irrelevante. 32 Fonte n31 LIVINGSTONE; Court poetry and literary miscellanea (State Archives of Assyria 3), via
SAAo (url: http://oracc.museum.upenn.edu/saao/corpus) (ltimo acesso em 20.11.2014) SAA03 033. 33 CARAMELO; A linguagem proftica na Mesopotmia (Mari e Assria), pp.223-224. 34 Fonte n33 PARPOLA, e WATANABE; Neo-Assyrian Treaties and Loyalty Oaths (State Archives of
Assyria, 2), via SAAo (url: http://oracc.museum.upenn.edu/saao/corpus) (ltimo acesso em 20.11.2014)
SAA02 006.
http://oracc.museum.upenn.edu/saao/corpushttp://oracc.museum.upenn.edu/saao/corpus
Dimenso Sapiencial da Realeza Neo-Assria (sculo VIII a VII a.C.)
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A questo da precedncia entre os dois irmos deu origem a um conflito armado
de larga escala entre as duas regies do imprio que se saldaria pela morte de ama-um-
ukn. Em termos da extenso da influncia imperial, o znite foi atingido no reinado de
Assurbanpal (668-627 a.C.). Contudo, tal como afirma Oppenheim35, o declnio do
imprio principiou no final desse mesmo reinado.
Ofuscam-nos talvez as inscries reais e os anais, nas descries exacerbadas do
poderio dos monarcas neo-assrios, porm as mesmas fontes desmentem-se ao trazerem
nossa ateno a necessidade constante de se lanarem campanhas militares anuais para
a manuteno do status quo imperial.
Paralelamente s campanhas com manifesto objetivo de conquista, encontram-se
numerosas referncias a campanhas com objetivos especificamente punitivos, de
consolidao de conquistas prvias, ou de conteno de potenciais ameaas.
Deste facto se depreende que o imprio assrio nunca se constituiu como uma
unidade territorial contnua, coesa e estvel. Pelo contrrio, a realidade do Prximo
Oriente Antigo exigiu a capacidade de dominao por intermdio de estratgias flexveis
e uma vigilncia constante.
A necessidade de uma tal estratgia justificava-se perante o acumular de fatores
de perigo durante os cerca de cento e cinquenta anos do apogeu expansionista neo-assrio.
Ao nvel interno, como j referimos, a gradual entrada em sobre-extenso do
sistema imperial significou, consequentemente, a rutura dos recursos humanos e
materiais. Em segundo lugar, o crescimento exponencial da populao dominada e a
consequente multiculturalidade no seio do imprio traduziu-se no agravamento da
inferioridade das elites assrias. Em estreita correlao com estes fenmenos, a
constituio multicultural, a disperso e a mobilizao cada vez mais frequente das foras
militares assrias resultou no enfraquecimento desse pilar da dominao imperial.
Se estes fatores endgenos no fossem de monta, nas fronteiras foi sendo
orquestrado um cerco de entidades inimigas que, embora no fosse originalmente
coordenado, contribuiu para escoar as escassas foras e recursos da Assria.
O reino de Urartu a norte, os Medo-persas e Elamitas a nordeste, Babilnia a
sudeste e rabes a sul, compunham este cerco. Todas estas entidades foram travando
batalha com a Assria ao longo da dinastia sargnida e esta, embora os fosse contendo,
nunca logrou uma dominao efetiva e prolongada de nenhuma delas.
35 OPPENHEIM; Ancient Mesopotamia. Portrait of a dead civilization, pp. 169-170.
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A histria do imperialismo assrio conheceu fases muito distintas entre si que
diferem na tipologia, nos limites e nos meios de expanso.
Numa fase mais antiga, a cidade de Aur sofreu dominao imperial pelos
imprios acdico e sumrio de Ur III, posteriormente incorporou o imprio efmero de
ami-Adad I e foi dominada pela Babilnia de Hammurapi. Em simultneo com estas
dominaes, a cidade de Aur parece ter experimentado a sua prpria e primeira
experincia expansionista, durante os sculos XIX e XVIII a.C., de carcter comercial,
dissociada de qualquer dominao efetiva, a qual logramos conhecer pela
correspondncia encontrada numa das colnias comerciais estabelecidas na Anatlia.36
Com o correr do tempo, as cidades-estado de Aur, Nnive e Arbela associaram-
se para dar lugar ao estado do deus Aur: a Assria37. Foi enquanto estado territorial em
formao que a Assria caiu sob a alada de outro poder regional, o Mittani. Como sugere
Larsen possvel que a unificao do norte da Mesopotmia se tenha ficado a dever
necessidade de responder a essa ameaa e dominao exgena.38
Ao certo, sabemos que a Assria, enquanto estado territorial, se fortaleceu ao ponto
de conseguir afastar a soberania hurrita, j abalada pela expanso dos hititas. Livre da sua
vassalagem ao Mittani, a Assria pode lanar-se na expanso das suas fronteiras, em
resultado e aps o ocaso pleno do Mittani, e passou a figurar no mosaico dos estados
regionais que nessa poca dividiam o controlo do Prximo Oriente Antigo. Este foi o
perodo meso-assrio, durante o qual as fronteiras da Assria se expandiram rumo a oeste
e a sul, embora o sucesso desta expanso dependesse em grande medida do carisma e
fora de cada monarca e, por isso, apresentasse oscilaes constantes.
Em todo o caso, aps o reinado de Aur-ubalit, a Assria no s se libertou da
soberania do Mittani como, ao longo dos reinados seguintes, duplicou o seu territrio
custa da anexao do Hanibalgat, reino hurrita sucedneo do Mittani, graas ao apoio dos
hititas, e continua essa conquista at abarcar o curso dos rios Habur, Balih e Eufrates39.
Paralelamente, o imprio meso-assrio alargou as suas fonteiras para norte contra o reino
de Urartu e para sul contra a Babilnia cassta.
36 LARSEN; The tradition of Empire in Mesopotamia in Power and Propaganda. A Symposium on
Ancient Empires (Mesopotamia 7), p. 81. 37 Kur-Aur 38 LARSEN; The tradition of Empire in Mesopotamia in Power and Propaganda. A Symposium on
Ancient Empires (Mesopotamia 7), p. 82. 39 CARAMELO; Territrio, Fronteira e Expanso no perodo meso-assrio: a presena assria no Eufrates
Mdio in Cadmo 21, p. 38.
Dimenso Sapiencial da Realeza Neo-Assria (sculo VIII a VII a.C.)
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Como reitera Francisco Caramelo, esta expanso desenrola-se sobretudo rumo a
oeste e tem por mbil o controlo econmico da regio agrria dos vales do Habur, Balih
e Eufrates e a ocupao das terras distribuda pela oligarquia administrativa meso-assria.
O mesmo autor concorda com Parker40 ao definir a fronteira como um espao
varivel por oposio definio contempornea de fronteira enquanto limite fixo.
certo que com Tiglath-Pileser I se chega ao Mediterrneo mas, na globalidade,
durante este perodo a margem direita do Eufrates revela-se uma zona onde a dominao
assria permanece pouco desenvolvida: as campanhas e as conquistas existem, mas os
ganhos so momentneos.
Aur-ubalit I (1365-1330 a.C.) derrotou a suserania do Mittani e conquistou as
zonas orientais deste reino e anos mais tarde Salmanasar I (1274-1244 a.C.) anexou o
Hanibalgat.
Tukulti-Ninurta I (1244-1207 a.C.) operou a conquista de Babilnia, ao passo que
Tiglath-Pileser I (1115-1077 a.C.), a exemplo de seu pai, aproveitou o eclipse hitita para
investir contra os reinos arameus da Sria, conquistando as cidades martimas fencias e
ganhando com isso o acesso ao Mar Superior. Aps este reinado, a Assria vai comear
um progressivo declnio que se manifesta na retrao das fronteiras e na perda dos marcos
at aqui atingidos. Apesar da Assria se ter conseguido manter como entidade poltica de
importncia regional, face s invases de diversos povos e da movimentao de todo o
Prximo Oriente Antigo, o certo que a fase expansionista que conhecemos como
imprio meso-assrio terminara.
S com Aur-Dan II (935-912 a.C.) se prenuncia o advento de uma nova ascenso
da potncia transeufratense. Com efeito, a partir do hinterland da Assria propriamente
dita, inicia-se uma expanso escorada na ambio de recuperar os territrios
anteriormente conquistados. Numa primeira fase, a reconquista fez-se contra as tribos
arameias que se procuravam fixar no Ocidente siro-anatlico e contra os avanos de
Urartu41. Com Aurnasirpal II (883-859 a.C.), que volta a levar o imprio at s margens
do Mediterrneo, e Salmanasar III (858-823 a.C.), monarca que passa a receber a
vassalagem de Babilnia, esta fase se encerra e comea uma fase de expanso por novos
territrios.
40. PARKER; The Mechanics of Empire. The Northern Frontier of Assyria as a Case Study in Imperial
Dynamics, pp. 10-11. 41 SANMARTN e SERRANO; Historia Antigua del Prximo Oriente. Mesopotamia y Egito, p. 148.
Dimenso Sapiencial da Realeza Neo-Assria (sculo VIII a VII a.C.)
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Estes mesmos monarcas fizeram investidas e cobraram tributos ao longo da costa
siro-palestinense, contudo foi s com a ascenso ao trono de Tiglath-Pileser III (745-727
a.C.) que, graas s reformas que j referimos, foi possvel estabelecer um domnio
estvel sobre essa regio. Com o estabelecimento da dinastia sargnida, a Assria
aproximava-se da sua mxima extenso. Restava a subjugao de Babilnia, a conquista
do Egito e a anexao do Elam protagonizadas por Senaquerib, Assarado e Assurbanpal
respetivamente. Cada uma das fases deste imperialismo acumulou saberes e
conhecimentos para a experincia assria.
Como foi possvel a manuteno deste imprio colossal perante um contexto
agressivo prevalecente? Como lograram os monarcas assrios superar as constantes
revoltas internas e estabelecer uma economia prspera? Por que modos foi possvel,
diante de desigualdades sociais manifestas, justificarem e realizarem projetos
arquitetnicos de grande dimenso?
A resposta reside no conceito que Liverani designa de ideologia de
desequilbrio, que justifica a dominao como uma troca mtua entre a explorao
efetiva das populaes e recursos do imprio e a solidariedade terica dos benefcios que
os dominadores ofereciam aos dominados42 e na existncia de uma poltica concertada de
prestgio e legitimao fundamentada em preceitos comuns s culturas do Prximo
Oriente Antigo.
Durante os sculos VIII e VII a.C. a instituio real neo-assria conheceu um total
de treze monarcas. As circunstncias em que cada um dos reinados se desenvolveu e o
carisma pessoal de cada monarca ditaram a flutuao da vertente prtica da instituio.
Pelo contrrio, a morfologia institucional e os pressupostos ideolgicos que a
fundamentavam no sofreram essas flutuaes.
Comparativamente ao perodo meso-assrio, os pressupostos ideolgicos
fortaleceram-se mas permanecem os mesmos, as formas de ao continuam iguais, e a
finalidade do imprio mantm-se. Por outro lado, existe uma alterao fulcral, isto : o
fortalecimento da instituio real operado pelas reformas do reinado de Tiglath-Pileser
III. Durante o perodo meso-assrio, embora o prestgio do monarca fosse engrandecido
por meio de uma dimenso transcendental da realeza, o poder sobre a Assria e o imprio
era partilhado por uma oligarquia que compunha a elite poltica e econmica assria. O
42 LIVERANI; The ideology of the assyrian empire in Power and Propaganda. A Symposium on Ancient
Empires (Mesopotamia 7), pp. 313-314.
Dimenso Sapiencial da Realeza Neo-Assria (sculo VIII a VII a.C.)
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rei era um primus inter pares. Com as reformas no sculo IX a.C., o monarca torna o seu
poder efetivamente absoluto.
1.4. Sistema, estruturas e desafios da dominao imperial
As campanhas neo-assrias significaram de facto a ocorrncia de diversas
mutaes nas estruturas polticas e sociais a nvel local, embora a estratgia imperial neo-
assria no tivesse por objetivo ser excessivamente intrusiva.
Idealmente, o ncleo do imprio neo-assrio procurava tornar-se em catalisador
das riquezas tornando vassalos os sistemas polticos pr-existentes ou, quando muito,
substituindo as suas elites administrativas autctones por classes administrativas assrias.
Deste facto decorre a existncia de uma heterogeneidade administrativa por todo o
imprio.
Como Parker43 demonstra, o imprio neo-assrio no se baseava num sistema
territorial. Ao invs, estamos perante um imprio hegemnico, onde o grau de controlo e
o estatuto de cada entidade poltica dependia da sua aceitao da interferncia das elites
assrias no seu governo.
Se uma entidade se mostrava cooperante, as estruturas de poder eram mantidas e
o monarca assrio firmava com o monarca local uma tratado de aliana ou de vassalagem.
Se, pelo contrrio, o monarca autctone repudiava a hegemonia assria, esse monarca era
afastado e outro governante indgena pr-assrio sucedia-o no trono permanecendo as
estruturas de poder intocadas.
Nas zonas em que a resistncia era mais forte e recorrente, as estruturas de poder
preexistentes eram gradualmente eliminadas e substitudas por governadores assrios.
Este sistema de dominao resultou numa soluo imperial hibrida: um imprio
em rede, radial, partindo do ncleo central e integrando centrifugamente entidades
administrativas perifricas com graus hierrquicos diferenciados44.
Em verdade, o sistema imperial neo-assrio afirmou-se como uma resposta
compsita, cuja formao recebeu contributos das diversas experincias histricas que o
antecederam e das influncias culturais a que a Assria se achou exposta.
43 PARKER; The Mechanics of Empire. The Northern Frontier of Assyria as a Case Study in Imperial
Dynamics, pp. 255-256. 44 PARKER; The Construction and Performance of Kingship in the Neo-Assyrian Empire in Journal of
Anthropological Research: 67(3), pp. 249-252.
Dimenso Sapiencial da Realeza Neo-Assria (sculo VIII a VII a.C.)
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O imprio neo-assrio era assim uma entidade poltica multicultural que se
desenvolvera de forma coerciva com um mbil econmico e que se sustentava numa rede
nevrlgica composta por postos administrativos estratgicos e zonas de estabelecimento
efetivo que ligavam a periferia ao centro.
Ao longo do perodo neo-assrio, conforme a expanso ia progredindo, a
sociedade e a economia assrias tambm sofreram mutaes ao contactarem com outras
realidades socioeconmicas e serem com elas coordenadas.
A nvel social para o estudo dessas mutaes importante compreender o impacto
do fenmeno da multiculturalidade sobre as estruturas do imprio e da Assria, o qual se
amplificou devido prtica de pontuais, mas sistemticas, deportaes populacionais de
pequena e mdia escala.
Paralelamente, a disperso e a intercalao geogrfica, quer das comunidades
deportadas quer das comunidades da dispora assria, raramente favoreceu uma
miscigenao das etnias do imprio nem deu origem a uma conscincia transnacional.
Ainda do foro social, se bem que de certa forma j o transponha, temos que
equacionar o distanciamento das elites imperiais da mole populacional. No ser de
entrever aqui um fosso entre classes, antes queremos sugerir que existiu um gradual
afastamento da realidade socioeconmica, testemunhado pela progressiva
monumentalizao dos projetos arquitetnicos.
A nvel econmico, a Assria propriamente dita tanto conheceu mutaes como
permanncias negativas graves. O dirigismo econmico ao nvel imperial focado para a
drenagem concntrica das riquezas, produtos e bens, tanto realizada por via do comrcio
livre como por via da coero fiscal pelo sistema de corveias e pela arrecadao dos
tributos para o deus Aur logrou resolver a curto e mdio prazo as carncias da Assria
mas, no longo prazo, no permitiu que se resolvessem as fragilidades estruturais a que
acima aludimos.
Pelo contrrio, esse dirigismo depredatrio lanou a Assria e todo o Imprio num
crculo vicioso que exigia a continuada expanso para evitar a destruturao do circuito
econmico. A necessidade de superar as dificuldades impostas pelos parcos recursos
naturais da Assria ter sido o mbil45 que lanou a expanso assria. De facto, as riquezas
e os recursos alcanados nessa expanso solucionaram no imediato as dificuldades
econmicas. Porm, os custos de manter o imprio conquistado em funcionamento
45 OPPENHEIM; Ancient Mesopotamia. Portrait of a dead civilization, p. 68.
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obrigavam a que se prosseguisse com novas conquistas para que se mantivesse um
equilbrio econmico favorvel.
Este crculo vicioso impedia a resoluo das falhas estruturais pelo
desenvolvimento econmico do centro do imprio e exigia o gradual aumento dos custos
de comunicao e manuteno do imprio e da economia.
O fenmeno deu azo a uma determinada especializao da economia imperial, no
mbito da qual determinadas matrias-primas ou transformadas se concentravam em uma
ou duas provncias. O efeito positivo imediato da afluncia dessas extraes e produes
convertia-se no efeito negativo da escassez de determinado produto quando a provncia
em causa era perdida46.
Como sugere Leo Oppenheim47, o motivo fundador do imprio assrio, mais que
um interesse poltico de unificao concntrica do pas, ter sido o desafio lanado pelas
necessidades de abastecimento de matrias-primas escassas e para responder habituao
de consumo criada nas classes dirigentes do imprio. Motivo esse que se foi perpetuando
pela exausto progressiva dos recursos do centro.
Para alm desse desafio primordial, ao qual era necessrio responder adquirindo
ciclicamente novas fontes de mo-de-obra, matrias-primas, bens manufaturados e
riqueza, o sucesso da expanso acabou por criar novos desafios.
Uma primeira consequncia desse sucesso foi a gradual sobre-extenso das linhas
e vias de comunicao e abastecimento, o que acarretava custos crescentes, sendo certo
que proporcionalmente tambm os proventos que se conseguiam extrair das zonas
conquistadas ou vassalas e a riqueza que era canalizada por essas vias de comunicao
permitiam manter um equilbrio frgil conquanto se mantivesse a expanso ou, pelo
menos, o domnio sobre as regies j conquistadas
Outra consequncia desse sucesso, tal como j referimos, foi a existncia de uma
mirade de culturas, modos de vida e lnguas sob a alada da administrao imperial neo-
assria. Tal facto acrescia igualmente os custos administrativos e, por outro lado, tornava
complexa a comunicao e o controlo de todas as entidades que coexistiam no seio do
imprio.
46 O autor refere-se sobretudo s montanhas do Tauros, ricas em metais, e ao eventual efeito que o acesso
a tais riquezas poderia ter sobre o imprio. cf. POSTGATE; The Economic Structure of the Assyrian
Empire in Power and Propaganda. A Symposium on Ancient Empires (Mesopotamia 7), pp. 197-200. 47 OPPENHEIM; Ancient Mesopotamia. Portrait of a dead civilization, p. 68.
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Disto advm o desafio de conseguir coeso entre as elites vassalas, provinciais e
nucleares do imprio neo-assrio, ao qual a instituio real neo-assria procurou responder
com uma ideologia abrangente e comum que pudesse congregar em torno do devir
imperial as elites de todos os povos do Prximo Oriente Antigo que se encontravam sob
o domnio assrio.
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2. Sabedoria e sabedoria real
2.1. Definio e amplitude do fenmeno sapiencial
O estabelecimento de uma definio unvoca de sabedoria revela-se ilusrio. A
dificuldade reside no facto de essa definio ter que acorrer a uma realidade ampla e
polissmica. As tentativas de definir o conceito tm sido incapazes de albergar
satisfatoriamente todas as nuances dos vrios contextos em que o dito empregue nas
fontes.
No estando confinada ao contexto mesopotmico, a dificuldade transversal ao
Prximo Oriente Antigo, porque tambm a questo sapiencial o . Vrios autores se
depararam com a dificuldade de definir o conceito de sabedoria em igual medida para o
contexto egpcio48, bblico49 e para o contexto mesopotmico50. A diferena nas solues
encontradas advm do grau de conhecimento da tradio literria de cada um dos
contextos e das circunstncias da descoberta das suas fontes.
O contexto bblico contou com um avano considervel por via da fixao precoce
do seu corpus51 e da acumulao de cerca de dezoito sculos de tradio exegtica judaica
e crist.
Deste modo, o orientalista que no decurso do sculo XIX se debruasse sobre a
questo sapiencial em contexto bblico tratava de induzir o que era o conceito de
sabedoria vinculado por um corpus documental sobejamente circunscrito.
Ao egiptlogo e ao assirilogo do sculo XIX e XX, pelo contrrio, deparavam-
se as tarefas de redescobrir a literatura desses contextos, decifrar e transliterar os signos
desse corpus, interpretar o seu contedo e identificar textos com valor didtico e
sapiencial.
Entre o contexto egpcio e o contexto mesopotmico uma outra diferenciao se
estabeleceu desde as primeiras escavaes, consoante as especificidades que se
impuseram no processo arqueolgico relativamente provenincia dos textos de cada
tradio.
48 LICHTHEIM; Didactic Literature in Ancient Egyptian Literature. History & Forms, p. 261. 49Von RAD; Introduction in Israel et la Sagesse, p. 14. 50 DENNING-BOLLE; Wisdom in Akkadian literature: Expression, instruction, dialogue, p. 57. 51 at ao sculo I a.C. com a Septuaginta.
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No contexto egpcio, grande parte da literatura foi recuperada a partir de um
contexto funerrio; no contexto mesopotmico, o grosso das fontes provm de arquivos
e bibliotecas que ao longo do tempo copiaram e atualizaram os textos.
Em todo o caso, a tarefa de definir sabedoria enquanto conceito tem sido to rdua
para o contexto bblico como para os seus congneres. Por exemplo, no artigo What is
meant by the Biblical Hokma or Wisdom52, datado de Julho de 1889, Edward
Tallmadge Root aborda o fenmeno de hokma (i.e.: sabedoria), o qual assume diversos
significados entre os livros sapienciais e por vezes mesmo dentro de cada livro. Esta
polissemia leva o autor a rejeitar a possibilidade de uma definio53 preterindo-a em favor
de uma descrio do fenmeno.
Nos anos setenta do sculo XX, outro orientalista, Gerhard Von Rad, concorda
com esta soluo e adverte para o perigo terminolgico colocando reservas utilizao
acrtica da terminologia sapiencial pelo esforo interpretativo contemporneo.54
Em seu entender, torna-se contraproducente a aplicao de uma construo
conceptual sobre os textos, uma vez que essa abordagem desvirtua o seu sentido
intrnseco. Tambm Roland E. Murphy suporta idnticas reservas perante a obsesso
conceptualista, na medida em que nenhuma definio unvoca de hokma parece ser
atingvel.
Para o contexto egpcio, Miriam Lichtheim reconhece a dificuldade terminolgica
e apoia-se em R. J. Williams para apontar a inadequao do rtulo sapiencial aos textos
egpcios, preferindo design-los por literatura didtica55. Esta posio secundada por
Jos Nunes Carreira, o qual relembra a vocao didtica da literatura sapiencial egpcia.56
Ao contexto mesopotmico, como veremos, nenhuma destas questes estranha.
Tendo definido o seu corpus convencional de textos sapienciais por comparao ao
corpus bblico57, herdou quer os contrastes quer a inadequao terminolgica.
Wilfred Lambert manifesta, em termos idnticos aos de R. J. Williams, a
inadequao da terminologia sapiencial ao contexto mesopotmico58. Em ambos os casos,
52 ROOT, Edward Tallmadge; What is meant by the Biblical Hokma or Wisdom in The Old and New
Testament Student. vol. 9, pp. 24-27. 53 Vide idem, ibidem, p. 24. 54 Von RAD; Introduction in Israel et la Sagesse, p. 14. 55 LICHTHEIM; Didactic Literature in Ancient Egyptian Literature. History & Forms, p. 261. 56 CARREIRA; Introduo in Literatura do Egito Antigo, pp.15-16 57 LVQUE; Sagesses de Msopotamie. Augmentes dun dossier sur le juste souffrant en gypte,
1993. 58
LAMBERT; Introductory Essay: The Development of Thought and Literature in Ancient
Mesopotamia in Babylonian Wisdom Literature, p. 1.
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a inadequao remonta s primeiras abordagens literatura e ao facto de estas se terem
orientado pelo positivismo cientfico imperante no sculo XIX.
A atitude positivista postulava que era possvel sistematizar um quadro conceptual
e uma terminologia passvel de serem transferidos para qualquer outro contexto. A
ultraconfiana positivista eventualmente veio a ser desconstruda durante o sculo XX e
deu lugar a abordagens mais relativistas.
Nos anos cinquenta do sculo XX, a advertncia tecida por J. Van Dijk abordando
o contexto mesopotmico no perodo sumrio um exemplo paradigmtico dessa
aproximao mais cautelosa. O autor adverte que apenas no entendimento contemporneo
a sabedoria se ope cincia e que ambas podem ser diferenciadas pela forma como
abordam o seu objeto: a cincia observa e deduz as propriedades do seu objeto; a
sabedoria faz um juzo valorativo do seu objeto comparando-o com normas pr-
estabelecidas59. Esta distino no pode, em boa verdade, ser efetuada em contexto
mesopotmico60.
Sara Denning-Bolle refora o ponto de vista definido por Van Dijk, referindo que
a realidade mesopotmica era demasiado complexa, polissmica e intrincada para se
poder fazer qualquer distino clara.61
Em suma, as dificuldades em encontrar uma definio satisfatria residem tanto
na natureza do objeto quanto na perspetiva de aproximao assumida. Disto resulta ora a
definio de conceitos latos que no apreendem de forma inteligvel a realidade abordada;
ora a definio de conceitos aplicados demasiado especficos que no so sustentveis
fora da construo concetual em que foram delimitados; ora a inadequao das
terminologias s realidades vinculadas pela documentao pr-clssica; ora, a
impossibilidade de estabelecer uma clara e unnime abordagem questo sapiencial para
todos os contextos pr-clssicos.
Permanece a dvida sob que prisma deve ser tomado para o estudo da questo
sapiencial: um fenmeno social, um gnero literrio, uma corrente filosfica ou
epistemolgica, uma tradio cultural? Os investigadores tm respondido
cautelosamente, procurando contornar a questo, de modo a que seja possvel trabalhar o
tema62.
59 Van DIJK; La sagesse sumro-accadienne, p. 3. 60 Van DIJK; La sagesse sumro-accadienne, p. 18-19. 61 DENNING-BOLLE; Wisdom in Akkadian literature: Expression, instruction, dialogue, p. 57. 62 BEAULIEU; The social and intellectual setting of Babylonian wisdom literature in Wisdom Literature
in Mesopotamia and Israel, p. 3.
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Ao certo, aceite que a presena do fenmeno sapiencial comum aos contextos
mesopotmico, bblico e egpcio. Por forma a compreender as semelhanas e as
peculiaridades da leitura que cada contexto realizou do fenmeno vamos fazer uma
descrio sumria das perspetivas analticas, dos textos fundamentais, da perceo coeva
do fenmeno e da apropriao poltica do mesmo em cada contexto.
No contexto egpcio, os investigadores tm preferido abordar a sabedoria como
um gnero literrio designando os textos como literatura didtica e trabalhar um corpus
composto sobretudo por instrues.
No contexto bblico, Murphy suporta a posio de Van Rad no sentido de
compreender a realidade por via de uma abordagem mais preocupada em entender a
realidade63 que em aplicar-lhe pressupostos tericos.64
Para o contexto mesopotmico, Giorgio Buccellati aproxima-se da posio
postulada por Von Rad, quando advoga uma abordagem relativista ao fenmeno
sapiencial65. Concordamos com esta posio, no sentido de identificar a amplitude do
campo em estudo como uma tradio cultural comum aos contextos do Prximo Oriente
Antigo que engloba diversas manifestaes prticas como tambm uma aspirao a um
conhecimento superior e transcendental.
De igual modo, aceitamos a aproximao de Sara Denning-Bolle66, que segue a
abordagem pragmtica: em primeiro lugar, explora a polissemia e a variedade de termos
coetneos que tm relao com a tradio sapiencial; em segundo lugar, classifica as
fontes ortodoxas, seguindo para isso Van Dijk e Lambert, e admite fontes heterodoxas
dessa tradio.
Ecoando a posio de Von Rad, enquanto ideal e tradio cultural, a sabedoria
partilhada por todos os povos do Prximo Oriente Antigo, uma universalidade radicada
na experincia humana, a qual mantm contornos comuns independentemente das
condies histricas, culturais, sociais e econmicas especficas.
No Egito, por exemplo, a tradio sapiencial foi definida pelas recorrentes crises
polticas e sociais que deixaram o seu cunho nas temticas de uma literatura que engloba
textos de diversas morfologias: pequenas histrias, instrues polticas, fbulas, disputas,
orculos, textos morturios, etc.
63 MURPHY; Hebrew Wisdom in Journal of the American Oriental Society, p. 26. 64 Von RAD; Introduction in Israel et la Sagesse, p. 15. 65 BUCCELLATI; Wisdom and Not: The Case of Mesopotamia in Journal of the American Oriental
Society, p. 44. 66 DENNING-BOLLE; Wisdom in Akkadian literature: Expression, instruction, dialogue, pp. 31-67.
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Estes textos prefiguram um ideal de sabedoria que, embora abrangente, se
encontra enquadrado pelas peculiaridades do contexto sociocultural egpcio,
nomeadamente, a noo de maet, as vicissitudes polticas da instituio faranica e as
crenas escatolgicas.67
Aparentemente, a tradio sapiencial projeta-se para o Ocidente, para o pas dos
mortos. Esta tendncia deve-se ao facto de o conhecimento histrico sobre este contexto
estar toldado pela assimetria dos achados arqueolgicos recuperados, predominantemente
fnebres.
E se, por um lado, vlido que para o homem egpcio ser sbio garantir uma
vida alm-tmulo, e que para esse fim necessrio conjugar uma vida reta, uma
preparao cuidada do tmulo (sarcfago, esttua e provises) e garantir oferendas
continuadas, por outro lado, podemos entrever nas composies um gosto de viver.
Textos como o Dilogo de um Homem com o seu Ba so uma extravagncia68 que se
compreende no panorama de um mundo ao contrrio69 afligido por crises econmicas,
polticas e sociais70. Como refere Laffont, a sabedoria era tambm associada a uma vida
estvel71 e longa72.
Paralelamente, a instituio faranica cedo tomou conscincia do poder que a
tradio sapiencial tinha para influenciar audincias, o que explcito nas inmeras
instrues polticas produzidas neste contexto73. Esta conscincia explica a existncia das
apologias de reinados e o carcter iminentemente didtico dos textos sapienciais neste
contexto.
Porm, necessrio apresentar algumas reservas relativamente ao impacto real
desta literatura sobre a sociedade, uma vez que a sua difuso seria limitada, ainda que
algumas composies pudessem ser declamadas. Em todo o caso, a inteno didtica
existia e era cultivada pela instituio faranica para educao das elites polticas74.
67 A Dispute over Suicide traduo de John A. Wilson in PRITCHARD; Ancient Near Eastern Texts
Relating to the Old Testament, p. 407. 68 Cf. LAFFONT; [Introduo] in Les Livres de Sagesses des Pharaons, p. 13. 69 Vide CANHO; A literatura egpcia no Imprio Mdio: espelho de uma civilizao. Exemplar publicado
eletronicamente no Repositrio da Universidade de Lisboa (http://hdl.handle.net/10451/2461), p. 484. 70 Cf. LICHTHEIM; Didactic Literature in Ancient Egyptian Literature. History & Forms, p. 249. 71 Cf. LAFFONT; [Introduo] in Les Livres de Sagesses des Pharaons, pp. 12-13. 72 Vide idem, ibidem, pp. 22-23. 73 Vide idem, ibidem, p. 14. 74 CANHO; Concluso in A literatura egpcia no Imprio Mdio: espelho de uma civilizao. Exemplar
publicado eletronicamente no Repositrio da Universidade de Lisboa (http://hdl.handle.net/10451/2461),
pp. 473-474.
http://hdl.handle.net/10451/2461
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No mundo bblico, por sua vez, os textos sapienciais (Provrbios, Ben Sira,
Qohelet, Sabedoria, Cntico dos Cnticos, Job e Saltrio) foram fixados em contextos e
perodos diversos.
O Livro de Job ter sido fixado entre o sculo VI e IV a.C. em Israel75. O Livro
dos Provrbios compreende nove colees que foram na sua maior parte originadas na
tradio oral do tempo da monarquia mas que foram coligidas na presente forma at ao
incio do sculo II a.C.76; tambm o Saltrio tem o incio do seu processo de formao na
poca monrquica, entre os sculos V e IV a.C. embora sofresse alteraes e adies at
ao perodo helnico77.
Pensa-se que o Livro da Sabedoria ter sido composto em Alexandria entre o
sculo I a.C. e o sculo I d.C., j em perodo imperial romano78. O Qohelet, ou Eclesiastes,
ter sido produzido durante o sculo III a.C.79, ao passo que o Eclesistico, ou Siraco,
ter sido escrito em Jerusalm por Jesus Ben Sira entre 190 e 180 a.C.80. Finalmente, o
Cntico dos Cnticos apresenta datas de fixao que oscilam entre o sculo V e o sculo
III a.C.81.
Como podemos concluir os textos sapienciais em contexto bblico tm uma data
de fixao tardia comparativamente ao contexto mesopotmico e ao egpcio. Os textos
revelam ser sincrticos da experincia histrica de Israel e Jud e das comunidades
judaicas no perodo exlico e no perodo ps-exlico.
Trata-se de textos imbudos das influncias egpcia, mesopotmica, persa e
helenista. No entanto, sabedoria no um fenmeno externo ao contexto bblico uma vez
que os textos sapienciais do Antigo Testamento se encontram permeados por uma ideia
de sabedoria que assume caractersticas prprias e consonantes com o desenvolvimento
da monolatria judaica.
Tal como nos contextos mesopotmico e egpcio, estamos perante uma
formulao polissmica do fenmeno sapiencial. Por um lado, a sabedoria bblica
apresenta uma vertente prtica radicada na experincia que demonstra uma preocupao
didtica em formar tica e tecnicamente os funcionrios do templo e da administrao.
Por outro lado, existe uma sabedoria de origem divina. Esta vertente transcendental, s
75 BOGAERT (dir.); Job, Livre in Dictionnaire encyclopdique de la Bible, p. 685. 76 BOGAERT (dir.); Proverbes, Livre in Dictionnaire encyclopdique de la Bible, p. 1076. 77 BOGAERT (dir.); Psaumes, Livre in Dictionnaire encyclopdique de la Bible, p. 1079. 78 BOGAERT (dir.); Sagesse, Livre in Dictionnaire encyclopdique de la Bible, p. 1165. 79 BOGAERT (dir.); Eclsiaste in Dictionnaire encyclopdique de la Bible, p. 377. 80 BOGAERT (dir.); Ecclsiastique, Livre in Dictionnaire encyclopdique de la Bible, p. 379. 81 BOGAERT (dir.); Cantique des Cantiques in Dictionnaire encyclopdique de la Bible, p. 238.
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pode ser concedida pela esfera divina, compreendendo valores religiosos e morais82.
Neste quadro nos dificultada a compreenso de como o fenmeno ter sido apropriado
pela instituio monrquica. O perodo monrquico prprio do contexto no coexistiu
com a maior parte dos textos sapienciais, e os restantes perodos foram dominados em
termos polticos por entidades exgenas.
Em todo o caso, interessante a imagem construda em torno do rei Salomo como
ideal de soberano sbio e atento esfera divina, mesmo que se trate de uma idealizao
feita a posteriori. Em termos histricos provvel que alguns dos salmos e dos provrbios
tenham circulado no perodo monrquico, mas ser possvel que alguns dos salmos
fossem compostos com patrocnio real?
A literatura sapiencial judaica concentra-se nas vertentes tica, poltica e
transcendental, dominadas pela expresso religiosa monolatrista, sem que exclua as
restantes vertentes do ideal sapiencial.
Na Mesopotmia a tradio sapiencial na sua expresso literria conheceu dois
perodos de desenvolvimento distintos. O primeiro perodo coincide com o perodo
sumrio, no qual a edubba83, a escola sumria, ter sido o centro de produo por
excelncia da literatura de cariz sapiencial deste perodo
J. Van Dijk sistematizou os gneros da literatura sapiencial sumria: disputas,
pequenos ensaios84, sentenas parenticas e mximas (provrbios, ditados, instrues
e conselhos), justos sofredores.
O segundo perodo, dominado pela cultura acdica, assiste ao declnio da edubba
enquanto centro de replicao de conhecimentos e de produo literria, papis agora
assumidos respetivamente pelo sistema de aprendizado e pelos escribas empregues pelas
chancelarias e os arquivos dos palcios e dos grandes templos. A produo prpria existiu,
no entanto houve um esforo paralelo despendido na traduo e preservao do legado
sumrio. Ter sido durante a fase acdica que os textos mais especulativos da tradio
sapiencial mesopotmica, como a Teodiceia Babilnica, foram produzidos.
Uma terceira fase, a qual podemos chamar de tardia, compreende o perodo neo-
assrio, neo-babilnico e persa. Fortemente marcado por uma atitude colecionista e
preservadora do legado cultural mesopotmico. Assurbanpal, por exemplo, soube
aproveitar a revolta de Babilnia sob ama-um-ukn para concentrar em Nnive cpias
82 BOGAERT (dir.); Sagesse in Dictionnaire encyclopdique de la Bible, pp. 1161-1163. 83 i.e. a casa das tabuinhas 84 Van Dijk atribui-lhes o nome de ca