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Dinamismo de objetos musicais ameríndios: notas a partir de cantos... Per Musi. Belo Horizonte, n.32, 2015, p.53‐96.
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Número DOI: 10.1590/permusi2015b3202
ARTIGO CIENTÍFICO
Dinamismo de objetos musicais ameríndios:
notas a partir de cantos yãmĩy entre os maxakali (tikmũ’ũn)
On the dynamism of Amerindian musical objects:
notes from yãmĩy chants among the Brazilian maxakali (tikmũ’ũn)
Eduardo Pires Rosse 1 1Escola de Música da Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil.
Resumo:
Os cantos yãmĩy, constantemente atualizados por grupos indígenas de língua maxakali,
correspondem a miríades de seres extraordinários caros a uma esfera mítica. Fixos, perenes,
apresentando pouco espaço para a improvisação, os yãmĩy são ao mesmo tempo marcados
por uma disposição à dissolução ou a uma revisão permanente da forma, à medida em que
se amplia o recorte analítico. O fluxo decorrente de uma trama citacional cerrada, com
polarizações localizadas e constantemente ressignificadas, transforma as sequências de
objetos diacrônicos em verdadeiras pulsações de zonas desenhadas diante de um fundo
contínuo, à imagem de “diferenças internas” ou “superposições intensivas de estados
heterogêneos” (VIVEIROS DE CASTRO, 2006).
Palavras-chave: música ameríndia; cantos yãmĩy maxakali/tikmũ'ũn; dinamismo dos
objetos musicais
Abstract:
The yãmĩy chants, constantly actualized by maxakali speaking indigenous groups,
correspond to a myriad of extraordinary beings, which are related to a mythic sphere. Fixed,
perennial, and showing little space for improvisation, the yãmĩy chants are marked by both
a disposition to dissolution and a constant revision of form as the analytical angle expands.
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The flux that follows a densely quotational tapestry, with local and constantly re-signified
polarizations, transforms the sequences of diachronic objects into true pulse zones, designed
over a continuous background, in the mode of “internal differences” or “intensive
superpositions of heterogeneous states” (VIVEIROS DE CASTRO, 2006).
Keywords: Amerindian music; yãmĩy maxakali/tikmũ'ũn chants; dynamism of musical
objects.
Data de recebimento: 07/02/2015
Data de aprovação final: 19/09/2015
1 - Duas palavras em torno dos cantos “yãmĩy”
Diferentes autores vêm constatando a centralidade do trabalho acústico em diversos aspectos
da vida daqueles que hoje são identificados, num plano intercultural, como maxakali ou
tikmũ'ũn. A partir de diferentes focos específicos, assistimos a uma série de escritos onde a
descrição e análise de práticas ligadas aos chamados “yãmĩy” se esforça em fazer justiça à
importância que os próprios atores envolvidos lhes atribuem (ALVARES, 1992;
CAMPELO, 2009; JAMAL, 2012; POPOVICH, 1988; ROMERO, 2015; ROSSE, 2013;
TUGNY, 2011; TUGNY et al., 2009a e 2009b; VASCONCELOS, 2015; além de vídeos
como MAXAKALI G. et al., 2009; MAXAKALI I., 2007; MAXAKALI M. et al., 2009;
MAXAKALI J., MAXAKALI M. e VASCONCELOS, 2015; entre outros).
Os yãmĩy seriam o que podemos definir, dentro do horizonte indígena das terras baixas sul-
americanas, como espíritos. Trata-se de um número não totalizável de seres ocupando
diferentes camadas do cosmos, notadamente o céu, a floresta, o fundo das águas ou a
intimidade dos cabelos dos humanos ordinários. De forma frequente, ainda que efêmera, os
yãmĩy visitam os humanos deste mundo, em suas aldeias, em seus sonhos e pensamentos.
Estes espíritos seriam a face subjetiva ou a possibilidade relacional daqueles na maior parte
do tempo percebidos como outros: mortos ou ex-parentes, lugares, seres inanimados ou
inorgânicos, gentes estrangeiras, bichos, astros celestes, máquinas, personagens míticos sem
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equivalentes diretos no plano experiencial imediato, animam entre outros os agentes
extraordinários cuja materialização primeira se dá em modalidade musical, através de cantos.
Cabe aos homens e mulheres ordinários proporcionar o encontro constante com estes
visitantes, acolhidos com carinho como filhos adotivos. Se os homens locais dedicam um
esforço particular à articulação musical propriamente dita, acessorando os repertórios que
equivalem às próprias vozes dos yãmĩy, as mulheres se responsabilizam pelo papel não
menos central de alimentá-los, de dançar com eles, de se colocarem diante deles,
estabelecendo um verdadeiro contraponto entre as esferas comunicacionais, ligadas pela
tradução perspectivista em grande parte sonora.
Em consonância com o que parece constituir um traço recorrente da musicalidade ameríndia,
os yãmĩy são melhor definidos em sua profusão. Inumeráveis, a apreciação de cantos em
suas individualidades não parece apresentar um real rendimento. Retomando BASTOS,
numa caracterização abrangente das músicas na grande Amazônia, “tudo leva a crer (…) que
peças isoladas de música não parecem fazer muito sentido na região” (2007, p.299).
Apesar do grande número de repertórios e da extensão de cada um deles, os cantos yãmĩy
equivalem a estruturas fixas, movimentando um trabalho amplo de memória e definição
identitária. A maior parte dos cantos possuem “donos”, indivíduos tikmũ'ũn mantendo uma
relação especial com aqueles que seriam seus próprios yãmĩy ou os yãmĩy de sua família,
herdados e legados dentro de linhagens familiais, acentuando assim contornos de grupos de
parentesco. A idealização da imagem da alteridade assumida por esses seres delimita ainda
em grande parte os traçados sociológicos de um “nós” imediatamente mais amplo.
A classificação dos yãmĩy é marcada por um tipo de impessoalidade, apresentando categorias
mais do que nomes próprios. Essas mesmas categorias são ainda mobilizadas por meio de
frequentes modulações de abrangência, um termo se referindo ora a uma peça, ora a um
conjunto delas, ora finalmente a várias horas de atividade musical. Quando se fala de um
yãmĩy em particular, seu nome guarda um sentido coletivo latente, sua voz se desdobrando
permanentemente em muitas outras. De forma comparável à dos xapiri com os quais se dão
os pajés yanomami, “quando se diz o nome de um espírito xapiri, não se evoca um só espírito,
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mas uma multidão de imagens semelhantes. Cada nome é único, mas os xapiri que ele
designa são inumeráveis” (KOPENAWA e ALBERT 2010, p.99, tradução minha).
Não cabe aqui desenvolver uma glosa detalhada em torno da definição dos cantos/yãmĩy ou
uma lista de nomes importantes dentro deste universo. Os interessados poderão recorrer a
quadros a um só tempo mais gerais e aprofundados em TUGNY et al., 2009a ou b e ROSSE,
2013, entre outros.
Os aspectos parciais aludidos à guisa de apresentação constituem, entretanto, um ponto de
partida mínimo ao comentário de alguns traços na enunciação de dois segmentos de cantos
yãmĩy tratados a seguir. Esses segmentos são excertos de um repertório maior, ligado às
yãmĩy de nome Kõmãyxop, duas mulheres de cabelos longos, uma delas identificada pela cor
vermelha e a outra pela cor preta, vivendo na floresta ou no fundo das águas de um rio,
encontradas pelos ancestrais tikmũ'ũn num plano mítico e que, a partir daí, vêm
periodicamente às suas aldeias atualizar o mesmo encontro prototípico, onde cantos
estrangeiros são trocados por alimentos, onde humanidades heterogêneas se equalizam
durante e através de uma série de cantos, danças, refeições e outros gestos cerimoniais
compartilhados.
2 - Um segmento da yãmĩy Kõmãyxop Preta
Em publicação anterior, pude contribuir à apresentação de um extenso registro sonoro dos
cantos kõmãyxop, acompanhados da transcrição e tradução portuguesa de seus conteúdos
verbais (MAXAKALI e ROSSE, 2011). Proponho a seguir a retomada de dois fragmentos
desse repertório maior, o primeiro tirado dos cantos da chamada Kõmãyxop Preta (Kõmãyxop
Mũnĩy), e o segundo dos cantos de seu duplo, Kõmãyxop Vermelha ('Kõmãyxop Ãta ou Xut
Ta).
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A observação desse material servirá na tentativa em se formular um diálogo entre traços
composicionais recorrentes e uma caracterização mais abrangente da figura dos yãmĩy ou
dos “espíritos” ameríndios, sua qualidade subjetiva, dinâmica ou agentiva.
Os cantos são relativamente curtos e obedecem a uma estrutura formal prévia invariável.
Essa estrutura apresenta a alternância entre seções não exclusivas, retomadas entre cantos
vizinhos, e seções individuais a cada um deles, obedecendo a um esquema “introdução –
estrofe – interlúdio – estrofe – coda”, a seção “primeira estrofe – interlúdio” podendo ou não
ser suprimida.
A “estrofe” seria o espaço para os traços singulares de cada canto, as seções “introdução”,
“interlúdio” e “coda” atravessando vários vizinhos imediatos antes de ceder a novas versões.
A estrofe seria ainda marcada por enunciados lexicais, enquanto o bloco formado pelas
seções compartilhadas se estrutura a partir de termos fixos mas desprovidos de qualquer
conteúdo semântico.
Dois grupos cantores masculinos se alternam na articulação de cada uma das peças, numa
dinâmica responsorial. As vozes, em uníssono, têm por ideal uma textura homogênea.
Os materiais musicais iniciais são minimalistas, o registro melódico se restringindo a escalas
dotadas de poucas alturas, sobre formulações poéticas curtas e reiteradas. A rítmica é
predominantemente declamatória, os apoios não coincidindo com subdivisões regulares de
uma unidade maior qualquer.
ROMERO, respaldado por Isael MAXAKALI, parte da tradução literal das partículas
formadoras do termo yãmĩy – onde o enfatizador “yã” é seguido do verbo “mĩy / fazer” –
para frisar sua associação à própria qualidade transformacional, àquilo que “está formando,
formando, mas ainda não acabou...” (2015, p.82). O conteúdo verbal veiculado pelos cantos
que acompanharemos a seguir, fundido ao estilo minimalista numa escala micro-formal,
seria amplamente congruente com tal definição, apresentando formulações breves e
fragmentárias, como num vislumbre parcial ou passageiro de um dado quadro.
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Começamos assim nossa breve apreciação musical (Figura1 a Figura5) por uma imagem
verbal condensada em poucas linhas, poucas alturas, que se abrem a seguir, à medida que se
avança no repertório, na construção de novos enunciados.
2.1 – Os cantos de 1 a 5
Figura 1: Excerto Kõmãyxop Preta, canto 1.
Figura 2: Excerto Kõmãyxop Preta, canto 2.
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Figura 3: Excerto Kõmãyxop Preta, canto 3.
Figura 4: Excerto Kõmãyxop Preta, canto 4.
Figura 5: Excerto Kõmãyxop Preta, canto 5.
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Os cinco cantos iniciais enumeram quatro espécies animais diferentes, sem traços comuns
aparentes – pica-pau, papa-mel, sucuri e cotia. A estrutura rítmico-melódica é praticamente
a mesma para todo o conjunto: duas alturas com intervalo de uma terça menor, a mais grave
sendo frequentemente pronunciada em vibrato, articuladas em três sentenças distintas que
correspondem aos três versos de cada estrofe. Com a exceção praticamente única dos versos
“xapux nã mi” dos cantos 1 e 2 e de “mõ xanet / mõ xanet nãmi” de 3, o contorno é idêntico
para as quatro peças, que se diferenciam pelos conteúdos verbais exclusivos.
Apesar da primeira impressão, os quatro sujeitos mobilizados compartilham entre si alguns
traços comuns: todos os quatro – pica-pau, papa-mel, sucuri e cotia – são apresentados em
plena refeição: os dois primeiros bebem suco de mel; a terceira devora seu próprio marido,
informação indireta acessível apenas a um público com conhecimento prévio da mitologia
associada aos cantos; a última come “sua comida”, num tom genérico.
Sem que ela seja explicitada verbalmente, a aproximação entre pica-pau e papa-mel remete
ao ponto de vista da abelha, para a qual ambos os sujeitos seriam análogos. Um como outro
dividem uma mesma imagem: eles veem a narradora/cantora (kõmãyxop ao mesmo tempo
em que abelha) do “meio de um pequeno bando”, eles se viram e veem ao encontro do seu
suco de mel. Ambos estão, finalmente, “agarrados na árvore”, postura anunciada no último
verso de cada estrofe exclusiva1.
O primeiro verso da sucuri se constrói sobre um deslocamento prosódico onde as palavras
“kãyãta” e “xeka” são seccionadas em benefício da regularidade métrica. Ainda que em 4 o
conteúdo verbal seja muito diferente daquele do primeiro verso dos cantos 1/2 ou 3, mantém-
se mesmo assim a partícula final “te”. A sucuri guarda também em relação aos cantos que a
precedem a indicação de uma posição “nãmi” / “deitada sobre uma superfície” – vertical e
elevada num dos casos (a árvore), horizontal e baixa no outro (no chão). Finalmente, a sucuri
e o papa-mel “xanet” / “gritam”.
1 A aproximação entre pica-pau e papa-mel pelo intermédio do mel é patente nas terras baixas da América do Sul
indígena. Ela é trabalhada em “do mel às cinzas” (LÉVI-STRAUSS, 2005 (1966)) a partir do cruzamento de mitos do Chaco e das Guianas, em torno da “mulher louca por mel”.
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A cotia seria talvez o sujeito mais singular do grupo. Além dos traços gerais compartilhados
– linha rítmico-melódica e referência à comida – ela conserva o ergativo “te”, que marca o
sujeito, e que aparece no final do primeiro verso, fazendo dele uma sílaba pedal que atravessa
os quatro cantos.
Assiste-se aqui a um sistema de empréstimos ou de zonas de contato estabelecidas em
passagens e proporções variáveis. Os materiais comuns entre as partes exclusivas dos cantos
não se encontram num lugar ou apresentam um tamanho regulares. A exceção melódica dos
versos “xapux nãmi” e “mõ xanet nãmi” dos cantos 1/2 e 3, respectivamente, ou a
singularidade de 5 acentuam tal disposição.
O que os aproximadamente 170 cantos do momento cerimonial iniciado aqui vão mostrar é
a multiplicação do processo de imbricação dinâmico a uma escala inter-subconjuntos de
cantos.
Poderíamos propor uma divisão desta fatia do repertório kõmãyxop em blocos contendo,
cada um, várias suites diferentes, dentro das quais são compartilhados materiais,
notadamente entre as partes comuns (introdução, interlúdio, coda). Os subgrupos de cantos
se diferenciariam assim antes de mais nada pelos conteúdos das partes exclusivas. Para se
ter uma ideia, a introdução adotada de 1 a 4 será a mesma para todas as peças até 692,
delineando um primeiro bloco homogêneo onde vão, porém, desfilar não menos que 16
suites diferentes. Os interlúdios e as codas, na maior parte dos casos, serão também
idênticos. Outras vezes, eles se abrem em versões variadas, retomando, porém, uma parte
importante dos materiais vizinhos, como veremos a seguir.
2.2 - Os cantos de 6 a 11
2 A mesma introdução é ainda retomada de 81 a 100 e de 105 a 132, dos quais não trataremos aqui.
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A suite 6-11 se articula a partir de uma forte referência musical aos cantos imediatamente
anteriores: mesma introdução, enquanto a parte central e a coda são transformadas pela
incorporação de dois versos iniciais.
A estrofe ou o interlúdio de 6 são formados cada um pela citação de linhas rítmico-melódicas
de 5, às quais se associam novas linhas. 6 retoma assim o contorno onipresente na estrofe de
5, bem como os contornos dos três versos do interlúdio (Figura 6, parte sobre fundo cinza),
que ele precede com enunciados originais.
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Figura 6: Excerto Kõmãyxop Preta, cantos 5 e 6 comparados.
7 amplifica a estrofe de 6, que ele dobra. O processo de dobramento reserva entretanto
espaço a uma pequena diferenciação: as duas últimas sílabas da primeira tomada são
melodicamente modificadas em sua repetição (Figura 7, detalhes sobre fundo cinza).
No plano fonético, assistimos a uma transformação em relação à estrutura precedente:
“mõxip / intermitente” de 6 se torna “xaxip / direto” em 7 (Figura 7, sobre fundo cinza).
Figura 7: Excerto Kõmãyxop Preta, canto 7.
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8 retorna a uma versão sucinta da estrofe. Ele modifica o contorno melódico do primeiro
verso, mas mantém a silhueta “centro-baixo-centro-baixo” do segundo. No início da segunda
linha do interlúdio, 8 articula duas vezes a primeira nota, e não uma só como em 7 (Figura
8).
Figura 8: Excerto Kõmãyxop Preta, canto 8.
A estrofe de 9 equivale à versão ampliada da de 8, à qual ela acrescenta um ritornello
simples. O interlúdio, por sua vez, é em 9 amplificado por uma linha suplementar (Figura
9).
Figura 9: Excerto Kõmãyxop Preta, canto 9.
10 retorna a uma versão breve da estrofe e à versão do interlúdio com cinco versos/linhas
melódicas (e não seis, como em 9) (Figura 10).
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11 equivale à aumentação ou amplificação de 10, relação já estabelecida pelo par precedente
8-9. No lugar de um simples dobramento (como em 8-9), assistimos à adição de detalhes
suplementares numa maior irregularidade da progressão. Na segunda linha do interlúdio, 11
opera assim uma multiplicação por três do primeiro motivo em “alto-alto-centro” (Figura
11).
Figura 10: Excerto Kõmãyxop Preta, canto 10.
Figura 11: Excerto Kõmãyxop Preta, canto 11.
2.3 - Os cantos 12 a 13
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12 rompe com a tendência global acumulativa e retorna à versão inicial do interlúdio. Sua
estrofe apresenta linhas melódicas novas, mesmo se a última delas é diretamente tirada dos
contornos do interlúdio (Figura 12).
Figura 12: Excerto Kõmãyxop Preta, canto 12.
“'Ĩkox”, que adquire aqui o sentido de “cantar”, corresponderia literalmente a “boca”.
A pequena série 12-13 mostra um enunciado verbal inédito – “se quiser cantar”.
Paralelamente, ela estabelece toda uma série de ramificações citacionais: o fragmento de
verso “xaxip hã nũ / vem direto” de 7 é retomado, ainda que ele adquira meio ao novo
contexto uma tradução diferente – “se arruma e vem”. Ela lembra a série 6-11 pela inversão,
em 12, do movimento ascendente presente nas letras de 8/9 (“vai subindo”). Em 13, cuja
estrofe traz os versos “se quiser cantar / pinta de urucum / pinta o rosto de vermelho, se
arruma e vem”, o rosto vermelho (presente já em 8/9) se aproxima da cor das flores da
begônia de 10 e 11.
De forma sintética, vemos que o desenvolvimento melódico repousa aqui sobre mudanças
sistemáticas mas a cada vez modestas. Essas mudanças apresentam soluções que primam
por um ritmo irregular. Ainda quando se assiste a uma espécie de progressão (presente entre
5 e 11), ela se faz com a ajuda de diferentes operações: num momento se retoma uma linha
à qual se associam novas linhas, em outro momento se repete uma linha, mudando ou não
um detalhe interno, em seguida se repete não uma linha, mas um motivo, etc.
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Além disso, tais mudanças se desprendem em grande parte não da implementação de novos
materiais mas do remanejamento de citações ou de estruturas retomadas num círculo
imediato.
Mesmo assim, e considerando agora também o contexto verbal de cada peça, a linha
composta por elementos imediatos quase equivalentes leva na realidade, ao longo de seu
prolongamento, a intervalos variados. A fluidez e a equivalência transformacional estendida
na passagem direta entre os diferentes objetos conduz, numa escala imediatamente maior, a
um novo enquadramento das zonas virtuais que serviam de matriz aos cantos.
Apenas no espaço desenhado entre 5 e 12, passamos assim por três “zonas” ou “suites”
diferentes, polarizando cada qual um conjunto ligeiramente deslocado de traços: 5 seria o
último canto da suite 1-5, marcada pela ideia de “alimento” e por uma armadura rítmico-
melódica interna que é comum a todos os cantos; 6 e 11 representariam os limites de uma
suite caracterizada pela cor “vermelha” bem como por uma progressão ou acumulação
musical a partir da armadura de 1-5; e 12 seria o primeiro canto da suite composta por 12-
13, onde se levanta a ideia autorreferencial de “canto” e se retorna a uma armadura mais
sucinta (mas guardando laços com os cantos precedentes).
Se cada zona possui um número de particularidades que a singulariza, ela guarda ao mesmo
tempo temas comuns com as outras, de onde a ideia de um novo enquadramento ou de um
deslocamento muito mais do que de uma mudança categórica de paradigmas (Figura 13).
Figura 13: Excerto Kõmãyxop Preta, modulação gradativa entre três suítes.
2.4 - Os cantos 14 a 21
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De um ponto de vista verbal, os dois primeiros cantos do subgrupo 14-21 vão continuar o
tema “se quiser cantar” do subgrupo imediatamente anterior (12-13), com a pequena
modificação literária “se ele quiser cantar” (Figura 14). A partícula “'õm” traduzida aqui por
“ele” (e que aparecerá em seguida como “aquele”) vai marcar quase todas as estrofes
exclusivas dos cantos 14-21, ausentando-se apenas neste último.
A partir do canto 16, a temática verbal se volta a uma pequena lista de yãmĩy presentes em
outras cerimônias – mĩm topa / picapauzinho-de-testa-pintada, Veniliornis maculifrons
(16/17); xupapox / lontra (18); xamoka / cachoeira (19) – além de kup tap mã nãg / urubu
pequeno (20) e putuxo tix nãk / tesoura-do-brejo, Gubernetes yetapa (21).
A mudança da temática verbal se dá sobre uma sensível continuidade melódica, a principal
alteração equivalendo, a partir do canto 16, à simples eliminação da primeira nota/sílaba do
segundo e quarto versos da estrofe (Figura 15).
Figura 14: Excerto Kõmãyxop Preta, canto 14.
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Figura 15: Excerto Kõmãyxop Preta, canto 16.
2.5 - Os cantos 22 a 27 e 28 a 33
A série 22-27 toma de empréstimo a quase totalidade dos versos da série precedente, aos
quais se aplicam novos contornos melódicos. Os únicos versos que não são retomadas são
aqueles dos cantos 14-15, precisamente os que estabeleciam, a seu turno, a aproximação
mais direta com a série 12-13. Este procedimento sistematiza então uma operação de
imbricações entre os conteúdos dos polos opostos, por assim dizer, de cada conjunto:
enquanto os blocos de cantos contrastam entre si através de identidades melódicas bem
delimitadas, eles se articulam por empréstimos verbais entre suas respectivas extremidades.
Tais imbricações se prolongam ainda à série 28-33 que, a partir de uma nova versão
melódica, escolhe sua temática verbal em continuidade com os últimos cantos da série
diretamente anterior (guardando assim a menção ornitológica de 26 e 27).
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Esta dinâmica poderia ser definida igualmente como um fluxo onde um termo comum
justifica a transformação de um outro. Guarda-se uma imagem e muda-se o conteúdo
melódico, guarda-se um conteúdo melódico e muda-se a imagem, guarda-se uma imagem e
muda-se a fórmula verbal, a cor de uma pintura corporal (9) sugere uma flor (10), o cenário
autorreferente à cerimônia em que se canta (14-15) sugere cenas de outras cerimônias (16-
19), um yãmĩy pássaro (16-17) sugere outro pássaro (20), que se desdobra em seguida numa
dezena de espécies diferentes (até 33).
2.6 - Os cantos 34 a 39, 40 a 45 e 46 a 51
As suites que se seguem, 34-39, 40-45, 46-51, confirmariam a mesma ideia (Figura 16). A
lista de pássaros onde paramos (28-33) se abre ainda em variações melódicas (34-39, 40-45,
46-51), ao fim das quais o nome de uma espécie específica (“azulão / Cyanoloxia brissonii”
em 40 e 41) declina em seu diminutivo, em referência a uma espécie semelhante de um ponto
de vista cromático (“azulinho / Cyanoloxia glaucocaerulea” em 46), que dá ensejo por sua
vez a uma variação taxonômica (“passarinho meu priminho” de 47 fazendo referência a uma
qualquer espécie semelhante à do enunciador implícito “azulinho”), etc.
Figura 16: Excerto Kõmãyxop Preta, cantos representativos de quatro suites.
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Em 46, o termo “kõnãy”, homônimo ao vocativo deixado deliberadamente sem tradução
(“kõmãy” em maxakali corrente), equivale a “água” - “kõnãg” em maxakali corrente -, cuja
imagem se desdobra em “rio” e “margem”.
Seguindo estas transformações, encontramo-nos diante de um tipo de linearidade, exceto
pelo fato de, a cada um de seus pontos de articulação, existir uma abertura nas possibilidades
de direção a ser tomada: os termos cambiantes são imprevisíveis, eles passam de um domínio
a outro – às vezes literário, outras vezes melódico, ou ainda plástico, seguindo uma imagem
ou uma qualidade dessa imagem (Figura 17).
Figura 17: Excerto Kõmãyxop Preta, modulação gradativa entre nove suites.
Subscrevo assim de perto o que TUGNY, considerando a qualidade da ordenação ou do
agrupamento dos cantos do yamĩy morcego/xũnĩm, chamou de vicinalidade. Guiada em parte
por seu conteúdo verbal, a autora descreve a passagem entre os diferentes cantos tendo por
articulação singularidades capazes de atribuir novas direções ao discurso:
(...) Algumas vezes o canto metálico de um pássaro ferreiro [araponga] conduz ao homem branco trabalhando o machado, depois à foice e, em seguida, conduz a temas como a cachaça, o boi, o revólver. Outras vezes percebemos que estamos em um ambiente de copa das árvores onde se encadeiam cantos de macacos sobre os galhos, morcegos comendo frutas, ouriços, papa-méis. As singularidades que permitem a conexão de um canto ao outro podem ser de diferentes ordens. Aqui vimos o exemplo da proximidade do espaço (a copa das árvores), da semelhança entre sonoridades (o canto do pássaro ferreiro e o som do labor do metal por um homem não índio), de seus predicados (as armas do homem não índio: o metal, a cachaça, os bois). Os cantos então se aglutinam em torno de
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variados tipos de proximidade, podem seguir diferentes percursos, de acordo com encadeamentos que fazem com certas qualidades aglutinantes” (2011, p. 197). “(…) Existe sempre algo, ou várias coisas, se transformando entre um canto e outro. Existe sempre um ponto de proximidade, uma vicinalidade que tem o potencial de dar origem a uma nova direção (2011, p.198).
Este processo de ordenamento e de abertura discursiva de acordo com singularidades dadas
entre os objetos levaria, como em kõmãyxop, a segmentos formais que privilegiam a
mudança contínua: “Entendo que é possível pensar desta forma a sequência de uma noite de
cantos: uma transformação contínua, uma ‘linha mutante’. Um procedimento incessante de
aproximação, aglutinação e diluição” (TUGNY, 2011, p.198)3.
2.7 - Pontos de contato entre vizinhos distantes: cantos 64 a 66, 52 a 55,
56 a 57, 58 a 59, 60 a 61, 62 a 63 e 67 a 69
Paralelamente a esta primeira forma de “vicinalidade” (adotando a expressão de TUGNY),
existem ainda nós entre fragmentos de cantos afastados temporalmente uns dos outros,
acrescentando uma camada de citações entre, desta vez, vizinhos distantes4. Se tomarmos
como medida de comparação temas verbais, a série 64-66, que se segue diretamente a 46-51
e que versa sobre temas vegetais – planta, casca de pau, poaia – equivaleria a uma cesura
dentro do tema “pássaros”, retomado nas suites seguintes: 52-55, 56-57, 58-59, 60-61 e 62-
3 Tal natureza variacional seria sensivelmente diferente da “variação em desenvolvimento” ou “variação progressiva” teorizada por Schönberg, onde as transformações em escala expandida mantêm-se, entretanto, ancoradas na ideia de sua Grundgestalt, uma matriz inicial que “contenha todo o material gerador da música subsequente” (ALMADA, 2010, p.101). Se fosse necessário, poderia ainda levantar a relação praticamente contrária do sistema variacional premente na música de Schönberg diante da ideia de “repetição”: “Cada uma de minhas ideias musicais essenciais é enunciada uma só vez; dizendo de outra forma, eu me repito pouco ou não me repito de forma alguma. É a variação que substitui quase totalmente em minhas obras a repetição (uma exceção a essa regra será raramente encontrada) [...] Eu já confessei honestamente minha maneira de agir: nunca me repetir, ou quase nunca (SCHÖNBERG, 1977, p.85-86, citado por LOUREIRO, 2013, p.112, grifos meus).
Uma aproximação possível se daria mais exatamente com as “deduções localizadas e variáveis” desenvolvidas por Boulez, como proposto por TUGNY (2015) em artigo inspirador para o atual trabalho.
4 O que me lembra irremediavelmente a experiência de escuta de Shine on you crazy diamond (PINK FLOYD,
1975), onde a construção de impressões de déjà vu é ostensiva e bem-sucedida. Trata-se aliás de uma música que só é possível graças a uma duração prolongada, prescritivamente longa.
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63. Um eco à cesura vegetal vai rebater precisamente em 67-69, ou seja, ao fim de um
intervalo de cinco suites.
Poderíamos caminhar assim, de eco em eco, à “direita” e à “esquerda” sem sair do segmento
kõmãyxop sobrevoado até aqui (cantos 1 a 69):
- a imagem de integrar um coletivo “xop hã” (de araçaris-bananas) de 56-57, 58-59, 60-61 e
62-63 remete a uma imagem análoga “yãy tu” (com diferentes espécies de pássaros) de 40-
45 e ainda ao pequeno bando “mũ' ĩ nõg xop” de 1, 2 e 3 (pica-pau e papa-mel)5 (Figura 18);
56 40 67
aquele araçari-banana numa revoada de araçaris vai triste
azulão virou [a cabeça de lado] numa revoada vai azul, fica deitado
um pica-pau no meio da pequena revoada me viu virou-se e veio ao encontro do meu suco de mel eu te servi agarrado na árvore
Figura 18: Excerto Kõmãyxop Preta, pontos de contato entre vizinhos indiretos.
- a referência à boca/comida de 1-5 remete à boca/canto de “se quiser cantar/se ele quiser
cantar” de 12-13 e 14-15, ou ao bico/céu da boca de 30-31 e 33, 36-37 e 39, 42-43 e 45, 48-
49 e 51 (Figura 19);
4 15 30
sucuri grande se enrolou a boca de sua mulher suspirando, gritando no chão
se ele quiser cantar [lit. “se a boca dele quiser cantar”] dá [comida] pros filhos, dá
araponga bico preto fica deitada pensando
Figura 19: Excerto Kõmãyxop Preta, pontos de contato entre vizinhos indiretos.
- o bico/céu da boca preto da araponga e do japu ou simplesmente o preto das penas do guaxe
em 48-50, 42-44, 36-38 e 30-32 remetem ao preto do urubu de 26 ou 20 (Figura 20);
31 20
5 Nos quadros a seguir, um único canto será escolhido para exemplificar o grupo inteiro do qual ele provém. 56
seria então a ilustração adotada para todo o segmento 56-63; 40 a ilustração para todo o segmento 40-45; 1 a ilustração para todo o segmento 1-3; e assim por diante.
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japu céu da boca preto virou [a cabeça de lado] fica deitado pensando
aquele urubu pequeno vai voando lá no alto
Figura 20: Excerto Kõmãyxop Preta, pontos de contato entre vizinhos indiretos.
- o urucum/vermelho das pinturas corporais em 6-9 retorna ainda, com fórmulas diferentes,
em 13 ou 14, e lembra o bico vermelho do bicudo-encarnado fêmea de 33, 39, 45 e 51 (Figura
21);
8 13 33
vai subindo, rosto vermelho e se senta na chegada
se quiser cantar pinta de urucum pinta o rosto de vermelho, se arruma e vem
bicudo-encarnado céu da boca vermelho céu da boca vermelho deitado
Figura 21: Excerto Kõmãyxop Preta, pontos de contato entre vizinhos indiretos.
- o termo “yĩ xux”, azul ou verde de acordo com o caso, passa de uma folha e da poaia em
67 e 69 (e voltamos ao ponto de partida) ao araçari-banana em 52, 54, 56, 58, 60 e 62,
novamente a folha/poaia/planta em 64, 66 e 67, em seguida a azulinho em 46, e a azulão em
40, 34 e 28 (Figura 22);
67 52 64 46 40
folha brava por dentro do bico todo bem azul
araçari-banana está triste
planta vai verde, sobre o chão
azulinho saltando pra outra margem vai azul, fica deitado
azulão virou [a cabeça de lado] numa revoada vai azul, fica deitado
Figura 22: Excerto Kõmãyxop Preta, pontos de contato entre vizinhos indiretos.
- as margens de 46-51 concordariam com lontra/xupapox ou cachoeira/xamoka de 24-25 e
18-19, ou ainda com a água da glosa de 6 (kõmãy que carrega água) e de 4 (sucuri) (Figura
23);
47 25 6
passarinho meu priminho saltando pra outra margem
os xamoka [yãmĩy cachoeira] lá vai kõmãy com urucum
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vai meu primo, fica deitado tentam passar sobre meus braços [mas] ficam cercados
no corpo todo, vem direto [trazendo água]
Figura 23: Excerto Kõmãyxop Preta, pontos de contato entre vizinhos indiretos.
- a tristeza/choro das lontras de 18 e 24 concordariam, muito mais longe, com a tristeza e as
lágrimas do araçari-banana em 52-55, 56-57, 58-59, 60-61 e 62-63 (Figura 24);
18 53
aqueles xupapox [yãmĩy lontra] meu amor chorou lá dentro
pássaro chorou está triste
Figura 24: Excerto Kõmãyxop Preta, pontos de contato entre vizinhos indiretos.
- o ato de virar a cabeça de lado dos diferentes sujeitos entre 28-29, 31-32, 34-35, 37-38, 40-
41 e 43-44 lembra o movimento de “virar-se” em 1-3 (Figura 25);
44 3
guaxe virou [a cabeça de lado] numa revoada fica deitado pensando
um papa-mel no meio do pequeno bando me viuvirou-se e veio ao encontro do meu suco de mel vai gritando agarrado na árvore
Figura 25: Excerto Kõmãyxop Preta, pontos de contato entre vizinhos indiretos.
- a postura “nã mi”, corpo que repousa sobre uma superfície ou paralelo a ela, passa de 1-4
(“pica-pau agarrado num tronco de árvore” ou “sucuri no chão”) a 28-66 (“pássaros
deitados” ou “plantas que se espalham pelo chão”) (Figura 26).
4 28 65
sucuri grande se enrolou a boca de sua mulher suspirando, gritando no chão
azulão virou [a cabeça de lado] vai azul, fica deitado
casca de pau, casca de pau vai com seu cheiro forte sobre o chão
Figura 26: Excerto Kõmãyxop Preta, pontos de contato entre vizinhos indiretos.
Assistimos a partir daí à emergência de diferentes níveis de leitura simultâneos à
pronunciação de cada canto. Ao elo imediato de um objeto com seus vizinhos diretos, entre
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os quais se desenham linhas de continuação temática a nível verbal e não-verbal, se
adicionam novas referências, desta vez de forma não linear, entre vizinhos remotos.
É verdade que o discurso global prevê o advento de novos materiais6. Eles emergem, porém,
através do alargamento de um círculo cujas conexões internas permanecem num estado de
rearranjo constante.
Trata-se, por um lado, de uma música onde a ideia de mudança gradativa é valorizada.
Ouvimos cantos que se desenvolvem a partir de um movimento de diferenciação por vezes
sutil a partir de cantos vizinhos. A reconfiguração de uma dada peça pelo simples evento de
ritornelli internos (relação estabelecida entre 1 e 2, por exemplo), as variações de breves
contornos dentro de uma linha melódica (entre 1 e 6, por exemplo), a modificação de um
termo verbal em um verso (entre 6 e 7), a modulação das séries de cantos através de um
processo de flutuação de um parâmetro a partir da ancoragem de um segundo, correspondem
todos a procedimentos composicionais que primam pela gradação no desenvolvimento do
discurso.
Por graduais que elas sejam, estas mudanças são, no entanto, realizadas a partir de uma
evolução dinâmica, imprevisível, arredia a percursos preconcebidos. Ao contrário, a forma
global oscila ao sabor das correntezas e apresenta membros de proporções e qualidades
muito heterogêneas – séries compostas por dois cantos, outras por mais de uma dezena,
variações que passam de uma dimensão melódica às durações, das durações às letras ou
ainda a imagens que, num primeiro momento, eram apenas secundárias. Essa irregularidade
traz um caráter virtualmente infinito às variações, como se elas pudessem ser estendidas
indefinidamente.
A gradação possui aqui menos um sentido acumulativo que transformacional. O que prima
é a sustentação de um estado de diferenciação a nível dos menores intervalos. Assiste-se
6 Ainda que seu conteúdo seja razoavelmente orientado: temas verbais e imagens fortemente ligados à cerimônia
– cores que identificam as duas kõmãyxop, pintura corporal, referência ao ato de cantar (inclusive na presença de pássaros) ou comer – e um material melódico restrito – escala minimalista, partilha de estruturas comuns, variações com uma elevada taxa de redundância.
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assim à coabitação de variações com forte teor em redundância, onde a dissonância das
pequenas lacunas serve deliberadamente de motor produtivo.
A saliência desta imagem se dá em parte pelo próprio contraste que ela estabelece com a
divisão muitas vezes operada em nossa sociedade entre as concepções de reprodução e
criação. Uma simples atenção ao valor da inovação radical e constante em meio a uma parte
importante das músicas clássicas ocidentais do século XX serviria de referência à amplitude
deste contraste.
O ritmo dos pequenos desvios, cuidadosamente cultivados pela música kõmãyxop
acompanhada até aqui e realizados através de uma linha diacrônica, repercute então sobre
uma extensão material do tempo, sem a qual a multiplicação da diferença seria restrita.
Mas a longa duração parece se associar ainda a uma outra qualidade do sistema. Ela seria
um substrato suplementar da subjetividade dos cantos e de sua experiência, na medida em
que o prolongamento das estruturas se dá pela acentuação da dissolução dos objetos. Aqui,
se vê/escuta de dentro. As tomadas globais são limitadas e dificultadas pelo remanejo
constante dos materiais e pela ressurgimento de temas que poderiam ser considerados já
concluídos. O prolongamento material serve de suporte à fluidez da forma ou à falta de
coagulação de cada objeto, levando a uma aversão das categorizações externas coerentes7.
A eficácia de uma categorização seria aqui diretamente proporcional à sua capacidade de
remontar às proporções mais básicas, aos detalhes mais sutis.
Talvez resulte daí a organicidade de uma forma irredutível à síntese. Procedimentos da
microestrutura podem ter um valor retórico idêntico àquele de procedimentos encontrados
num nível formal superior (ver a “isonomia” ou “(…) relação de pertinência estrutural entre
sequências, que se caracterizam como transformações (no sentido de Lévi- Strauss) de uma
estrutura (...)” em BASTOS, 2007, p.300). Uma composição constantemente achatada, onde
7 Para uma ideia de permeabilidade da pele dos yãmĩy, em oposição à rigidez da pele do monstro canibal ĩymõxa,
ver TUGNY, 2008.
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diferentes cantos ou conjuntos de cantos ocupam lugares hierarquicamente equivalentes no
discurso.
3 - Um segmento da yãmĩy Kõmãyxop Vermelha
Proponho a observação de um segundo e último excerto do repertório das yãmĩy kõmãyxop,
contrastante com o primeiro talvez menos em estilo do que em seu ritmo transformacional
geral.
3.1 - Os cantos 1 a 57
Os três primeiros cantos dentro do novo bloco parecem derivar de um mesmo enunciado,
desvendando a cada retomada um segmento suplementar, inicialmente deixado de lado. Esta
expansão da forma se dá a nível das partes lexicais – a introdução, o interlúdio e a coda
permanecendo fixos.
A primeira peça (1) mostra uma estrofe (chamemos de “A”), composta por dois versos –
“kõnãy me mõy – kõmãy, vá nos passos dela / ĩy mõ koxi – venham ficar em minha casa”.
Ela se articula sobre o contorno melódico “? 4 2 4 2 / 5 2 4 1”, onde os dois graus se
mantêm à distância de uma terça menor ligeiramente comprimida (Figura 27).
A peça seguinte (2), desenha uma estrutura “AB”, onde B nada mais é do que a associação
de uma nova linha melódica “? 4 1 4 1 / 4 2 4 1” aos dois versos iniciais de A (Figura
28).
O canto 3, por sua vez, adiciona uma repetição de A à fórmula, num resultado “AAB”
(Figura 29).
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Figura 27: Excerto Kõmãyxop Vermelha, canto 1.
Figura 28: Excerto Kõmãyxop Vermelha, canto 2.
Figura 29: Excerto Kõmãyxop Vermelha, canto 3.
Figura 30: Excerto Kõmãyxop Vermelha, canto 4.
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Figura 31: Excerto Kõmãyxop Vermelha, canto 5.
As letras, traduzidas por “kõmãy, vá nos passos dela / venham ficar em minha casa”, põem
em cena o convite dirigido às kõmãyxop. A primeira pessoa seria aqui a do anfitrião local,
humano deste mundo, que mostra o caminho, que pede a uma das yãmĩy que siga a outra, e
que se hospedem em sua casa.
Os cantos 4 e 5 concluem a progressão na apresentação de uma estrutura, que é desvendada
finalmente por inteiro. Eles retornam respectivamente aos cantos 2 e 3, introduzindo ali um
verso complementar no meio de cada “A”. O resultado seria então, para 4, “A'B” (Figura
30), e para 5, “A'A'B” (Figura 31).
A estrutura final, “A'A'B” servirá de modelo para a série que se estende até o canto 57. O
verso central introduzido em cada A, ao contrário dos dois outros, vai trazer conteúdos
verbais exclusivos a cada peça. Apesar de constantemente renovado, o novo verso segue
uma fórmula pedal, à qual acrescenta imagens diferentes, mas conectadas a um fundo
semântico maior.
O convite interespecífico “kõmãy, vá nos passos dela / venham ficar em minha casa” é assim
entrecortado pela rememoração de termos próprios a cada canto, ligados à aldeia e à vida
doméstica, começando pela da família próxima: “ĩy tut yũm ma – lá onde está minha mãe”.
O bordão composto por “lá onde está...” vai ser em seguida complementado por novos
sujeitos verbais – “meu pai”, “o kõmãy”, “seu pai”, etc.
O processo de transformação destes sujeitos será construído num fluxo contínuo, guiado por
duas linhas de força paralelas. Por um lado, as modulações de um sujeito a outro se apoiam
Dinamismo de objetos musicais ameríndios: notas a partir de cantos... Per Musi. Belo Horizonte, n.32, 2015, p.53‐96.
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em qualidades comuns entre imagens verbais de cantos diretamente vizinhos. Por outro lado,
elas serão animadas pelas proximidades sonoras entre palavras-chave pelas quais se
pronunciam as mesmas imagens.
Mesmo que ele seja aqui mais intenso, o primeiro processo já nos é familiar. Ele materializa
um encadeamento de imagens onde cada par de elos da corrente é ligado por aspectos
comuns direta ou indiretamente levantados. Assistiremos a três subgrupos bastante
homogêneos deste ponto de vista. O primeiro corresponderia aos cantos 5 a 12, tendo por
eixo temático alguns laços de parentesco. A familiarização dos yãmĩy convidados na aldeia
é explicitamente marcada pela identificação dos aldeães como seus “pais” e “mães”, além
do tratamento dos aldeães entre si pelo vocativo “kõmãy”. A sequência “minha mãe”, “meu
pai”, “o kõmãy”, “seu pai”, “yãmĩy”, “yãmĩy cachoeira”, mostra assim uma continuidade
temática.
O subgrupo seguinte, cantos 13 a 28, trata sobretudo de uma matéria prima – o algodão – e
de técnicas de uso associadas – filagem e tecelagem –, caras ao universo feminino. Ele
começa justamente pela referência feminina “a vagina”, seguida de “o algodão”, “a rede
grande”, “a rede pequena”, “a tipoia”, “a tipoia carregada”, “a tipoia pendurada”, “a bolsa”,
“a touca de algodão”, “a touca de algodão vestindo a cabeça”, “o fio enrolado na flecha”, “a
filagem”, “a fibra da embaúba”, “as mechas de algodão” e “o fio”.
O terceiro e último dos subgrupos vai do canto 29 ao 57. Mais longo, ele será também mais
complexo no processo de mutação das imagens que, ao fim do percurso, atingem uma zona
sensivelmente distante da inicial. Este distanciamento é, entretanto, resultado de associações
sempre presentes num nível localizado, ainda que as características comuns que justificam a
mudança de uma imagem sejam elas também progressivamente modificadas. Veremos o “pé
de urucum” se desdobrar primeiro em diferentes formas e utilizações – “pé de urucum
erguido”, “suas folhas no alto da árvore”, “as frutas no alto da árvore” e “as cascas secas”
igualmente no alto da árvore, “a coagem da borra do suco de urucum”, “o urucum maduro
no alto da árvore”, “a tinta do urucum” ou “a resina do urucum”. Através da cor vermelha,
o círculo em torno do urucum se transpõe ao passarinho tiê-sangue (Aramphocelus bresilius,
macho), cujas penas são de um rubro acentuado. A mesma cor serve ainda de ponte para
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imagens ligadas à argila e à lama – “a panela de barro”, “o leito do rio”, “a areia no fundo
do rio”. O tema fluvial e o seguinte, em referência à casa, são articulados por dois elementos
simultâneos. A imagem da argila lembra, de um lado, uma técnica de fabricação das paredes,
onde o esqueleto em madeira é chumbado de terra vermelha úmida (pau-a-pique). De outro
lado, a fórmula “lá onde está meu rio” (40) poderia ser lida simplesmente como a menção
de uma kõmãyxop à própria casa, subaquática segundo uma das versões de seu mito
fundador. “Meu rio”, nesse caso, seria a versão kõmãyxop para “minha casa”, tema
prolongado pela enumeração de partes e materiais de construção – “a parede”, “a cama”, “o
telhado”, “o pau seco tombado”, “o pau seco enganchado”, “o pau seco erguido”.
Finalmente, a verticalidade da madeira dá lugar ao céu e a uma série meteorológica que
inclui “a noite”, “o jupará de pé” (mamífero de hábitos noturnos e que utiliza frequentemente
a postura em pé, com apoio apenas sobre as patas anteriores), “o dia”, “quase amanhecendo”,
“a névoa”, “o orvalho”, “a lua”, “o sol nascente”.
Se a imbricação entre determinados aspectos das imagens levantadas pelas letras já nos era
familiar, o segundo mecanismo por meio do qual se orientam as transformações das imagens
é, por sua vez, original. O mesmo segmento composto pelos cantos 5 a 57 vai mostrar, como
anunciei logo antes, um fluxo transformacional paralelo balizado pela musicalidade das
palavras8. Os versos exclusivos a cada canto remetem a uma evolução onde as expressões
fazem prova de uma extrema inércia fonética. Para citar apenas, por enquanto, os primeiros
cantos (5-14), teríamos assim os fragmentos seguintes: “ĩy tut” [iN»tμF´], “ĩy tak” [iN»tak|],
“kõmãk” [kõmak|], “xe tak” [tSe»tak|], “yã mẽy” [ɲãˈmej] (exceção), “xa mok” [tSabok|],
“tux muk” [tμjˈbμk|], “tux tok” [tμjˈtok|] (eu sublinho).
Tais transformações provêm inicialmente de um léxico aberto. A partir do canto de número
15, elas serão reforçadas pelo jogo de declinações do verbo “ma”. Todos os versos
exclusivos (cada verso central da estrofe A) são até aqui realizados a partir de uma fórmula
invariavelmente polissilábica (“ĩy tut yũm ma”, “ĩy tak yũm ma”, “kõmãk yũm ma”, etc.),
8 Seria inclusive difícil falar aqui em termos dicotômicos entre “letra” e “música”, já que a musicalidade das
palavras ocupa um papel ativo na construção de sentido. Os trechos contínuos de canto não-lexical empregariam por sua vez o caminho inverso, injetando verbalidade nas linhas melódicas.
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terminando pelo verbo “ma”, traduzido grosso modo por “ser”. Este verbo é, entretanto,
modificado de acordo com a posição física adotada pelo sujeito no momento da enunciação.
A conjugação não será a mesma se o sujeito verbal estiver “deitado / mi ma”, “sentado / yũm
ma”, “de pé / xip ma” ou “suspenso / xup ma”. Cada conjugação vai aglutinar informações
suplementares ao verbo que, em diversos casos, será traduzido diferentemente do simples
“ser”. Enquanto “nãn kup yũm ma” é traduzido simplesmente como “lá onde está o pé de
urucum”, “nãn kup xip ma” é traduzido por “lá onde se levanta o pé de urucum”.
Este recurso é aqui empregado como uma função orgânica do sistema variacional. As
posições (tangíveis) dos sujeitos de cada imagem são responsáveis pela proliferação de
pequenos intervalos, à guiza daqueles entre um mesmo sujeito com diferentes disposições –
“a tipoia”, “a tipoia carregada” e “a tipoia pendurada” – tanto quanto entre sujeitos diferentes
e uma mesma disposição – “o pau seco erguido” e “a noite” ou ainda “o jupará de pé”. Mas
as posições dos sujeitos com suas partículas específicas correspondentes se implicam
igualmente num movimento intenso de modificação plástica da palavra.
Assim, se retomarmos a série a partir do canto 14 e até a 57, guardando um olhar voltado
para a sonoridade dos versos modificados, veremos ainda desfilar dezenas de associações,
mostrando um potencial tímbrico ou propriamente musical importante, ainda que
independente de vetores rítmicos, melódicos, de amplitude, etc. (Eu sublinho.)
1- kõnãy me mõy / kõmãy, vá nos passos dela
2 - kõnãy me mõy / kõmãy, vá nos passos dela
3 - kõnãy me mõy / kõmãy, vá nos passos dela
4 - ĩy tut yũm ma / lá onde está minha mãe
5 - ĩy tut yũm ma / lá onde está minha mãe
6 - ĩy tak yũm ma / lá onde está minha mãe
7 - ĩy tak yũm ma / lá onde está meu pai
8 - kõmãk yũm ma / lá onde está o kõmãy
9 - xe tak yũm ma / lá onde está seu pai
10 - xe tak yũm ma / lá onde está seu pai
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11 - yã mẽy yũm ma / lá onde está yãmĩy
12 - xa mok yũm ma / lá onde está a cachoeira
13 - tux muk yũm ma / lá onde está a vagina
14 - tux tok yũm ma / lá onde está o algodão
15 - tux tox xup ma / lá onde se estende a rede grande
16 - tut pe xup ma / lá onde se estende a rede pequena
17 - tux pe yũm ma / lá onde está guardada a tipoia
18 - tux pe xip ma / lá onde se carrega a tipoia
19 - tux pe xup ma / lá onde está pendurada a tipoia
20 - tut kox yũm ma / lá onde está a bolsa
21 - tux kox yũm ma / lá onde está a touca de algodão
22 - tux kox xip ma / lá onde se usa a touca de algodão
23 - tux kox xup ma / lá onde se usa a touca de algodão
24 - tux hĩy xip ma / lá onde estão enrolando fio na flecha
25 - tux nĩy yũm ma / lá onde estão fazendo fio
26 - tux hi xip ma / lá onde estão tirando a fibra da embaúba
27 - tux hox yũm ma / lá onde estão as mechas de algodão
28 - ‘ã hit yũm ma / lá onde está o fio
29 - nãn kup yũm ma / lá onde está o pé de urucum
30 - nãn kup xip ma / lá onde se levanta o pé de urucum
31 - nãn xux xip ma / lá onde se levantam as folhas do urucum
32 - nãn tut xip ma / lá onde se levantam as frutas do urucum
33 - nãn xax xip ma / lá onde se levantam as cascas secas do urucum
34 - nãn xap xip ma / lá onde se coa a borra do urucum
35 - nãn tap xip ma / lá onde se levanta o urucum maduro
36 - nãn kuk xup ma / lá onde está a tinta do urucum
37 - nãn tok yũm ma / lá onde está a resina do urucum
38 - nãn xat xip ma / lá onde se levanta o tiê-sangue
39 - na ix yũm ma / lá onde está a panela de barro
40 - ĩy kuk xup ma / lá onde corre meu rio
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41 - ‘ã mot mi ma / lá no fundo onde está a areia
42 - ‘ĩy met yũm ma / lá onde está minha casa
43 - mĩm xap yũm ma / lá onde está a casa
44 - mĩm xap xip ma / lá onde está a parede
45 - mĩm xap mi ma / lá onde está a cama
46 - mĩm xap xup ma / lá onde está o telhado
47 - mĩm tap mi ma / lá onde tombou o pau seco
48 - mĩm tap xup ma / lá onde ficou enganchado o pau seco
49 - mĩm tap xip ma / lá onde está de pé o pau seco
50 - ãm nĩy xup ma / lá onde está a noite
51 - ‘ãm tap xip ma / lá onde se levanta o jupará
52 - hãm tup xup ma / lá onde está o dia
53 - hãm xox xip ma / lá onde está quase amanhecendo
54 - hãm hox xup ma / lá onde está nublado
55 - hãm hep xup ma / lá onde paira o orvalho
56 - ãk mãn yũm ma / lá junto da lua
57 - xãy nẽy xip ma / lá onde se levanta o sol
Se então este material se constitui a partir de uma forte propensão às variações mais sutis,
que fazem com que dois cantos muitas vezes se diferenciem apenas pela leve modificação
de uma palavra, ele mostra também uma propensão à condensação ou às referências
múltiplas de um mesmo enunciado. As linhas de transformação seguem ao mesmo tempo
uma primeira orientação semântica, uma segunda orientação fonética, além de se situarem
invariavelmente dentro de uma temática autorreferencial à cerimônia kõmãyxop e à vida em
aldeia. Três linhas diretivas são assim trilhadas simultaneamente por cada um dos cantos,
exibindo uma composição “minimalista”.
De forma congruente, TUGNY descreve formas de acumulação semântica e de localização
do enunciador encontradas nas letras de cantos dos yãmĩy morcego/xũnĩm e macaco/po'op
(ou popxop), evidenciadas ainda por ilustrações gráficas de atores locais (2011, p.119-124).
A autora cita por exemplo as palavras de dois cantos de po'op tratando da alimentação do
urubu e de uma mudança de perspectiva: as larvas de bambu ingeridas pelo urubu em sua
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perspectiva humana são ao mesmo tempo larvas de carniça. Um desenho realizado à guiza
de comentário desta passagem reúne, em um espaço pictórico único,
“os vários eventos que se cruzam neste canto: enquanto dança e canta na aldeia, os Po'op,
transformados em urubus, comem larvas de taquara (morotós), mas os humanos veem esses
alimentos como cobras [vermes em carcaças de serpente podres]. Dupla localização da
pessoa que canta – na aldeia dançando e próximo às taquaras – e duplo olhar sobre o que se
dá a ver pelo canto, uma larva de taquara e uma cobra” (TUGNY, 2011, p.120).
3.2 - Variação na invariância. Cinco novas versões da suite inicial: cantos
58-109, 110-161, 162-211, 212-261, 262-313
O primeiro jorro produtivo deste novo excerto musical, composto por um meio cento de
peças, servirá em seguida de fator para uma série de novos desdobramentos, a partir de
variações extra verbais. A lista inicial de imagens/fórmulas verbais exclusivas a cada canto
será retomada na íntegra (com divergências desprezíveis) em outras cinco suites (num total
de seis versões), através de um trabalho de remodelagem eminentemente formal9. A série de
micro-paralelismos desenhados de um canto a outro se abre agora em uma nova série de
blocos macro-paralelísticos.
De um ponto de vista material, muitos desses cantos não são efetivamente articulados
durante uma cerimônia kõmãyxop. O tempo disponível não seria ali suficiente. Por uma
questão de clareza analítica, mantenho aqui as versões ideais de cada suite, mesmo sabendo
que na prática elas dão lugar a membros fragmentados: o plano tangível fragmentado
mantém como lógica subjacente o roteiro virtual estendido.
A segunda versão (58-109) produz uma nova armadura estrutural que, em seguida, será ela
mesma retomada por meio da variação melódica de um verso, dando origem à terceira
versão (110-161). A moldura inicial (1-57) será assim substituída por uma segunda (58-109),
9 Bem mais tarde, uma sétima e uma oitava versões serão ainda esboçadas. Por uma mera questão de
praticidade, estas duas últimas variantes não serão tratadas aqui.
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e a segunda terá o conteúdo musical ligeiramente modificado para produzir uma terceira
(110-161).
Ainda que a segunda e terceira versões sejam formalmente originais, elas retomam materiais
e se orientam segundo uma linha próxima em relação ao modelo rítmico e melódico da
primeira versão.
Além da remodelagem do fundo verbal que acolhe as imagens individuais a cada peça,
assistiremos a uma mudança de disposição principalmente dentro das partes exclusivas: em
vez de uma ordenação “abc abc ac”, presente a partir do canto número 5 (Figura 32), teremos
a partir de 58 simplesmente “aabc” (Figura 33). (A rotina do segundo grupo cantor é
igualmente modificada. Excepcionalmente, ele não retoma cada canto em sua integralidade
mas apenas a partir da segunda metade.)
Figura 32: Excerto Kõmãyxop Vermelha, canto 5, estrutura dos versos.
Figura 33: Excerto Kõmãyxop Vermelha, canto 60, estrutura dos versos.
O primeiro dos dois versos formando o mote contínuo da primeira versão “kõnãy me mõy /
ĩy mõ koxi” é alterado a partir da segunda. No lugar dele, vamos ouvir “kõnãy yãm mẽ’ẽ mõ
/ ‘ĩy mõ ko xi a”. Existe uma afinidade fonética entre os fragmentos “me mõy” e o substituto
“yãm mẽ’ẽ mõ”, além de compartilharem um mesmo campo semântico, o verbo “mõ” ou
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“mõy”, traduzido por “vir” ou “ir”, sendo ali simplesmente conjugado em duas pessoas
diferentes: “me mõy” seria a forma imperativa na segunda pessoa do singular, a expressão
do pai ou mãe de kõmãyxop que diz a ela “vai”; enquanto “yãm mẽ’ẽ mõ” (em maxakali
corrente “yũ mã mõ”) equivaleria ao imperativo na primeira pessoa do plural, uma kõmãyxop
que diz à outra “vamos”.
Finalmente, “me mõy” traz à cena uma personagem fisicamente “atrás da outra”, enquanto
“yãm mẽ’ẽ mõ” as dispõe uma “ao lado da outra”. Como havíamos notado com os
marcadores “deitado/mi”, “sentado/yũm”, “erguido/xip” ou “suspenso/xup”, empregados em
torno do verbo “estar/ma”, a variação da posição física dos sujeitos é mais uma vez um traço
destacado das imagens.
O segundo verso, por sua vez, é modificado apenas pela adição de uma sílaba final “a”, não
lexical, que ajusta seu tamanho ao do verso precedente.
Assistimos assim a uma dinâmica próxima das transformações dos versos exclusivos
observados nos cantos da primeira versão: concatenação fonética e semântica ou visual
(através do apelo imagético das palavras).
A terceira versão (110-161) parte de um parentesco formal ainda mais significativo já que,
como havia comentado, a diferenciação entre as séries vai repousar tão somente sobre uma
fina variação melódica. A segunda versão mostra, sobre os versos “kõnãy yãm mẽ’ẽ mõ”,
um contorno melódico concentrado em dois graus “/ 4 2 4 2 1”, enquanto a terceira
adiciona um terceiro som à escala “/ 4 6 5 2 1”. A distinção entre os cantos de uma ou
outra série repousa inteiramente sobre esta remodelação localizada da linha rítmica e
melódica de um verso (Figura 34).
Figura 34: Excerto Kõmãyxop Vermelha, canto 112.
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Não entrarei em detalhes na construção da quarta, quinta e sexta versões a partir da lista de
imagens indo de “lá onde está minha mãe”, “lá onde está meu pai” até “lá junto da lua” e “lá
onde se levanta o sol”. Elas seguem modificações estilisticamente homogêneas às anteriores.
Comento rapidamente apenas um traço saliente: estes três segmentos vão apresentar um
aspecto acumulativo dos versos lexicais (ver quadro logo adiante).
Enquanto as versões anteriores traziam versos invariavelmente curtos, compostos por uma
única oração, os segmentos 162-211 (Figura 35) e 212-261 (Figura 36) mostram versos
longos, com duas e três orações, respectivamente.
O último deles, 262-313, guarda os versos em orações triplas aos quais insere um novo perfil
rítmico-melódico, num padrão de zigue-zague entre pares de sílabas (Figura 37).
Figura 35: Excerto Kõmãyxop Vermelha, canto 164.
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Figura 36: Excerto Kõmãyxop Vermelha, canto 214.
Figura 37: Excerto Kõmãyxop Vermelha, canto 378.
O que apresento aqui de forma abstrata e sintética, colocando em relevo apenas as
especificidades entre as diferentes versões é, entretanto, vivido pelos atores musicais em sua
materialidade e sua duração. As modificações encontram sua razão de ser na repetição
efetiva do material, o que equivale a uma diferença sensível entre o contexto intelectual do
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presente trabalho e aquele em torno da produção de sentidos kõmãyxop. A valorização da
duração e da repetição são atestadas alhures no universo etnográfico ameríndio10. Ela se
exprimiria aqui através de um traço sistemático, a repetição, que ocupa um lugar central,
sendo invariavelmente acompanhada de um germe diferencial.
As seis variações em torno de um mesmo grupo de imagens, elas mesmas variações
recíprocas, indicariam um gosto pela exponenciação de um material inicial circunscrito,
dentro de um quadro de alto teor reiterativo. Na prática, como o tempo disponível para a
festa diante das yãmĩy kõmãyxop é limitado, vários dos cantos deverão e serão deixados de
lado. Isto não muda profundamente o ideal estético já confirmado pela parte do repertório
materialmente articulada, e que se vê prolongar através das estruturas que permanecem
virtuais.
Mais uma vez, longe de uma ideia qualquer de síntese, resumo, tendo em vista uma
conclusão, acordo, “repouso”, o que se vê assim é uma proliferação sem fim, ramificação,
como o segundo termo da antítese entre “o mármore e a murta” (Viveiros de Castro, 2002a),
ou ainda onde, ao contrário do dito popular, “o que é bom dura muito”.
4 – Considerações finais
Ainda que sobre outras bases, me aproximo aqui de ideias na verdade já tratadas por
VIVEIROS DE CASTRO num trabalho sobre a ontologia dos espíritos na Amazônia (2006),
particularmente inspirada nos minúsculos e inumeráveis xapiri yanomami (aos quais fiz uma
breve alusão inicial). Ele caracteriza ali essa qualidade pregnante do regime mítico
justamente como uma “diferença interna”, uma “multiplicidade qualitativa”, ou ainda como
uma “superposição intensiva de estados heterogêneos”. Segundo seus próprios termos:
[O] pré ou proto-cosmos [o passado mítico], muito longe de exibir uma ‘indiferenciação’ ou ‘identificação’ originárias entre humanos e não-
10 Para a região das Guianas, ver BEAUDET, 1997, p.114.
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humanos, como se costuma caracterizá-lo, é percorrido por uma diferença infinita, ainda que (ou porque) interna a cada personagem ou agente, ao contrário das diferenças finitas e externas que constituem as espécies e as qualidades do mundo atual (Viveiros de Castro, 2001). Donde o regime de ‘metamorfose’, ou multiplicidade qualitativa, próprio do mito: a questão de saber se o jaguar mítico, por exemplo, é um bloco de afetos humanos em figura de jaguar ou um bloco de afetos felinos em figura de humano é rigorosamente indecidível, pois a metamorfose mítica é um acontecimento ou um devir (uma superposição intensiva de estados heterogêneos), não um processo de mudança (uma transposição extensiva de estados homogêneos) (VIVEIROS DE CASTRO, 2006, p.323, grifos meus).
De acordo com o autor, o conceito de “espírito” na Amazônia operaria como um laço entre
essas duas dimensões – pré-cosmológica virtual e cosmológica presente. O espírito seria
assim menos um objeto que uma relação.
As equivalências que o espírito estabeleceria entre as duas esferas, seu trabalho
comunicacional, não seriam da ordem da reiteração, mas passariam justamente por
equivalências de fundo que pressupõem concretizações ligeiramente deslocadas entre si e
que não podem englobar ou esgotar sua matriz generativa. Uma comunicação que privilegia
então o movimento e a profusão de objetos, seguida, entretanto, de uma eterna incompletude.
(…) [uma] relação de vizinhança obscura entre o humano e o não-humano, uma comunicação secreta que não passa pela redundância, mas pela disparidade entre eles [o humano e o não-humano]: (...) ‘uma zona de indistinção, de indiscernibilidade, de ambiguidade se estabelece entre dois termos, como se eles houvessem atingido o ponto que precede imediatamente sua diferenciação respectiva: não uma similitude, mas um deslizamento, um avizinhamento extremo, uma contiguidade absoluta; não uma filiação natural, mas uma aliança contra-natureza…’ (DELEUZE, 1993, p.100) (VIVEIROS DE CASTRO, p.326, sublinhado do original).
Em sua análise mais propriamente lógica do que formal, o autor privilegia abertamente a
“visão” como sentido ou instrumento na comunicação entre as duas esferas – humana e não-
humana, pré-cosmológica virtual e cosmológica presente – a partir principalmente da
caracterização do “brilho” na descrição circundando diferentes espíritos e experiências
xamânicas amazônicas (provenientes sobretudo do norte da América do Sul e de grupos que
se dão ao consumo de substâncias alucinógenas)11.
11 A este título, CESARINO (2011) propõe uma associação apoiada entre arte verbal e pensamento visual entre os
Marubo, grupo do noroeste amazônico e cujas práticas xamânicas são estreitamente ligadas à tomada de ayahuasca. O
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Ora, a abordagem aqui adotada, particularmente concentrada na análise de aspectos formais
ou de linguagens sensíveis, parte justamente da constatação de uma importância flagrante
atribuída à sonoridade ou à musicalidade por uma sociedade afiliada ao complexo etnológico
dito amazônico (habitando terras muito mais ao sul e não apresentando uma cultura
sistemática de ingestão de substâncias modificadoras da percepção). Sem se opor à presença
constante de imagens veiculadas num plano sonoro/verbal, a musicalidade se junta a ela
exatamente em gestos de personificação dos “espíritos” e na constituição de uma instância
coletiva propriamente xamânica.
Colocadas tais divergências inciais, os excertos kõmãyxop aqui observados sugerem termos
gerais congruentes à ideia de uma “superposição intensiva de estados heterogêneos”.
As transformações constantes do material musical denotariam um princípio de composição
onde uma infinidade de objetos emana de zonas ou nebulosas polarizando determinadas
qualidades ou determinados “afetos” – forma, perfis melódicos, traços fonéticos, temas e
fórmulas verbais, ou ainda aspectos secundários das imagens levantadas verbalmente. Esses
objetos nunca se formulam a partir da cópia extensiva, mas da diferenciação intensiva ou
autor evidencia ali um esquema estrutural de fórmulas poéticas, que pode ser transposto em signos gráficos ou em configurações coreográficas. A importância patente do registro visual não deveria, entretanto, ser lida em chave exclusivista. No mesmo volume em que escreve Cesarino, e justamente em crítica ao privilégio visual atribuído pelo texto de Viveiros de Castro em foco, LUCIANI elabora o parágrafo seguinte, que dispensa outros comentários:
(…) Viveiros de Castro (2007) já formulou alguns comentários a respeito da dimensão perspectivista das relações entre xapiri [“espíritos” yanomami], humanos e animais. Me contentarei então em acrescentar que a narrativa de Kopenawa [sobre a qual se inspira em parte o texto de V. C.] mostra também que as mudanças de foco perspectivistas, longe de se confinarem ao domínio do visual, têm equivalentes a nível acústico (com ou sem conteúdo verbal). Se é importante ser visto pelos xapiri, de chamar sua atenção, não é menos importante aprender a compreendê-los, a escutá-los e, sobretudo, a responder a seus cantos. A beleza e a veracidade dos cantos são temas recorrentes desse trabalho, bem como o da obrigação em respondê-lo se se quer adquirir o conhecimento xamânico. Se de fato é necessário morrer e se tornar si mesmo um espectro para ver exatamente como um xapiri, pode-se, no entanto, reproduzir seu conhecimento e seus cantos adquirindo uma língua e uma garganta comparáveis às deles. A ‘descoberta’ do perspectivismo amazônico surgiu de um estudo de flutuações de perspectivas no registro verbal (VIVEIROS DE CASTRO 1992), mesmo se em seguida a ênfase sobre o visual como que suplantou esta dimensão. A narrativa de Kopenawa deixa a entender que teríamos muito a ganhar com a retomada da questão sob o ângulo auditivo (LUCIANI, 2011, p.348).
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interna, expressa por uma divergência muitas vezes ínfima, onde os cantos personificam uma
busca incansável da repetição, ao mesmo tempo em que tomam delicadamente o cuidado de
jamais alcançá-la.
Não se trata assim tanto de variações de um objeto inicial proeminente, mas de variações a
partir de um conjunto de premissas. Este conjunto é ele mesmo ligeiramente fluido. O
aspecto ambivalente, as fronteiras espessas, representam justamente a possibilidade de uma
multiplicação infinita de atualizações próximas, mas sempre díspares umas das outras, onde
a transformação ocupa em si um lugar importante.
O modelo para uma série de cantos aparentados seria deduzido de forma aproximativa a
partir do cruzamento desses objetos, mas não poderia ultrapassar o estado invariável de
rascunho. O modelo de origem a um conjunto de cantos não se reduz a uma imagem fixa, se
encontrando permanentemente além ou aquém dela. Os limites do que proponho aqui de
forma esquemática como “um conjunto” ou “uma série” de cantos corresponderiam, como
vimos de forma patente ao longo de determinados trechos analisados, a zonas turvas ou
ambíguas, podendo remeter em realidade a mais de uma direção.
Partindo do outro extremo do processo, o movimento fluido gerado pelas transformações
consecutivas dos cantos pode conduzir por sua vez, a mais longo prazo, ao deslocamento da
própria zona ou nebulosa inicial.
Num caso, a zona inicial equivale a uma fonte generativa sensivelmente aberta. No outro, os
objetos dando corpo a essa zona são bem circunscritos e mesmo sucintos, como atestam as
dimensões dos cantos kõmãyxop. Seu encadeamento cria entretanto um movimento sutil de
divergência conduzindo, a intervalos mais ou menos importantes, a uma revisão da zona
matricial. Numa como noutra direção, os yãmĩy fariam assim vibrar tal ou tal região de um
espectro que é, ele, contínuo.
Referências
Dinamismo de objetos musicais ameríndios: notas a partir de cantos... Per Musi. Belo Horizonte, n.32, 2015, p.53‐96.
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Nota sobre o autor
Eduardo Pires Rosse é Doutor em Etnologia pela Universidade Paris Ouest e atualmente pós-doutorando (PNPD-Capes) na Escola de Música da UFMG, onde desenvolve pesquisa em torno de produções estéticas ameríndias, notadamente da produção musical yãmĩy entre os tikmũ'ũn/maxakali – Minas Gerais. Em companhia de Glaura Lucas, co-lidera o Grupo de Etnomusicologia da EM-UFMG.