Dione Ribeiro Basilio Dissertacao

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  • DIONE RIBEIRO BASILIO

    DIREITO EDUCAO: UM DIREITO ESSENCIAL

    AO EXERCCIO DA CIDADANIA. SUA PROTEO

    LUZ DA TEORIA DOS DIREITOS

    FUNDAMENTAIS E DA CONSTITUIO FEDERAL

    BRASILEIRA DE 1988

    Dissertao apresentada ao Departamento de Direitos Humanos da Faculdade de Direito da Universidade de So Paulo como exigncia parcial para a obteno do grau de Mestre, sob orientao do professor Doutor Fbio Konder Comparato.

    FACULDADE DE DIREITOUNIVERSIDADE DE SO PAULO

    SO PAULO2009

  • Aos meus pais, Dorli e Joaquim, pelo amor e

    carinho a mim incondicionalmente

    direcionado; pelo suporte e sabedoria

    prestados nos momentos de maior dificuldade.

    Ao meu irmo, Douglas, por todos os

    momentos de embate. Nossas frutferas

    discusses nos proporcionam um crescimento

    inigualvel.

    Aos meus amigos, companheiros

    indispensveis.

    2

  • SUMRIO

    RESUMO

    I. INTRODUO

    CAPTULO II. O QUE EDUCAO?

    2.1. Da educao

    2.2. Concepes de processo educativo

    2.2.1. Concepo comum de educao

    2.2.2. Conceito crtico de educao

    2.3. Educao no contexto de um Estado Democrtico de Direito

    2.4. Relao entre educador e educando

    2.5. Conseqncias da adoo da concepo comum de educao: evaso escolar, elevados

    ndices de repetncia, baixo grau de aprendizado.

    2.5.1. Papel do professor

    CAPTULO III. DO DIREITO EDUCAO

    3.1. Histrico do direito educao

    3.2. Educao no Estado Democrtico de direito

    3.3. Reconhecimento do Direito Educao pelo Direito Internacional

    3.3.1. Direito educao no sistema global de direito humanos

    3.3.1.1. Direito educao no Pacto Internacional de direitos econmicos, sociais e

    culturais de 1966

    3.4. Direito educao no ordenamento jurdico brasileiro

    CAPTULO IV. DA EDUCAO FUNDAMENTAL NA CONSTITUIO DA

    REPBLICA DE 1988

    4.1. Educao fundamental na Constituio da Repblica de 1988

    4.2. Lei de diretrizes e bases da educao nacional: Lei 9.394/1996

    4.3. Da universalizao do ensino fundamental

    4.3.1. Ensino fundamental:

    4.3.2. Educao fundamental como um Direito Pblico Subjetivo

    4.3.2.1. Obrigatoriedade da prestao do ensino fundamental

    3

  • 4.3.2.1.1. Educao de Jovens e Adultos

    4.3.2.2. Gratuidade na prestao do ensino fundamental

    CAPTULO V. PROTEO DO DIREITO EDUCAO FUNDAMENTAL

    5.1. Direito a educao e Direitos Fundamentais Sociais

    5.2. Tratados internacionais de direitos humanos e a Ordem jurdica brasileira:

    5.3. Sistema de proteo dos direitos humanos

    5.3.1. Dignidade da pessoa humana

    5.3.2. Direito educao e os direitos sociais:

    5.4. Declarao Universal dos Direitos do Homem, de 1948

    5.4.1. Princpio da complementaridade

    5.4.2. Princpio da Proibio de Retrocesso

    5.5. Pacto Internacional de Direitos Econmicos, Sociais e Culturais de 1966 (PIDESC)

    5.6. Proibio de retrocesso e Mnimo existencial

    5.7. Pacto de so Jose da Costa Rica: Reconhecimento no retrocesso

    5.8. CF/88: Reconhecimento no retrocesso

    5.8.1. Limites da proibio de retrocesso na ordem jurdica brasileira:

    5.8.1.1. Mnimo existencial e o direito educao

    CAPTULO VI. PROTEO DO DIREITO EDUCAO NA CONSTITUIO

    DA REPBLICA DE 1988

    6.1. Princpio da proibio de retrocesso e o poder de reforma constitucional

    6.2. Limites materiais ao exerccio do poder de reforma constitucional

    6.2.1. Extenso dos limites materiais no contexto da CF/1988

    6.2.2. Direitos sociais e clusulas ptreas

    6.2.2.1. Leitura literal do art. 60, 4, IV, CF/88

    6.2.2.2. Interpretao ampliativa do art. 60, 4, IV, CF/88

    6.2.3. Direitos sociais como limites materiais implcitos ao poder de reforma constitucional

    6.3. O direito educao e a limitao ao poder de reforma constitucional

    6.3.1. Artigo 208, I, Constituio Federal e sua alterao por meio da Emenda

    Constitucional n 14, de 12 de setembro de 1996

    6.3.2. Efetividade do direito ao ensino fundamental

    4

  • CAPTULO VII. JUSTICIABILIDADE DO DIREITO EDUCAO

    FUNDAMENTAL

    7.1. Defesa do direito educao fundamental em juzo

    7.2. Defesa coletiva do direito educao

    7.2.1. Ao civil pblica como meio de defesa do direito educao

    7.2.1.1. Da Legitimidade do Ministrio Pblico

    7.2.1.2. Da legitimidade da defensoria pblica

    CONSIDERAES FINAIS

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

    ABSTRACT

    5

  • RESUMO

    A presente dissertao tem como objeto de estudo a educao fundamental. Procura-se

    analisar qual a concepo de educao mais adequada ao exerccio da cidadania no Estado

    social Democrtico de Direito.

    Pela qualificao do direito educao como um direito social, buscamos desenvolver a

    proteo que a ele se direciona segundo uma teoria de Direitos Humanos e segundo o os

    princpios da Constituio Federal de 1988.

    Por fim, analisamos sua justiciabilidade, mediante o reconhecimento da necessidade de sua

    defesa individual e coletiva em juzo, facilitada por sua qualificao como direito pblico

    subjetivo pela Constituio de 1988.

    6

  • I. INTRODUO

    Relatrio da pesquisa Indicador de Analfabetismo Funcional Brasil 2007 ((INAF/2007)

    apresenta os dados mais recentes da mensurao dos nveis de analfabetismo da populao

    adulta brasileira 1, segundo avaliao das habilidades necessrias para viver em uma

    sociedade letrada, exercendo com autonomia seus direitos e responsabilidades resultantes

    da educao continuada, que abarca tanto o ensino formal quanto o no formal e as

    oportunidades de aprendizagem ao longo da vida 2.

    Segundo as concluses da pesquisa, houve uma reduo no percentual da populao

    brasileira considerada analfabeta funcional com relao pesquisa anteriormente

    realizada (binio 2004-2005); os nmeros decresceram de 37%, apurados em 2004-2005,

    para 32% no ano de 2007.

    Parmetros utilizados na pesquisa consideram analfabeta funcional a pessoa que,

    mesmo sabendo ler e escrever, no tem as habilidades de leitura, de escrita e de

    clculo necessrias para viabilizar seu desenvolvimento pessoal e profissional 3,

    grupo este composto por analfabetos absolutos e alfabetizados em nvel rudimentar 4.

    A populao classificada na pesquisa abrange adultos de 15 a 64 anos. Dentro desse grupo,

    o ndice de analfabetismo funcional difere de forma considervel de acordo com faixas

    etrias, sendo significativamente menor entre os mais jovens:

    1 O INAF fora elaborado segundo entrevistas e testes cognitivos aplicados a amostras nacionais representativas dos brasileiros entre 15 e 64 anos de idade, populao com idade superior quela caracterstica de estudantes regulares do ensino fundamental (6 a 14 anos). (www.deolhonaeducao.org.br/comunicacao.aspx?action=3).2 Relatrio INAF/Brasil 2007, p.4.3 Relatrio INAF/Brasil 2007, p. 3. Em sentido contrrio, podemos definir o alfabetismo como o conjunto de capacidades que permitem o processamento da informao necessria para poder utilizar os materiais impressos que se encontram comumente no trabalho, em casa e na comunidade. (WAGNER, Daniel A., traduo de OLIVERIA, Llio Loureno de. Alfabetizao: construir o futuro, p. 25)4 Analfabetismo absoluto corresponde condio dos que no conseguem realizar tarefas simples que envolvem a leitura de palavras e frases ainda que uma parcela destes consiga ler nmeros familiares (nmeros de telefone, preos etc.); por sua vez, analfabetismo nvel rudimentar equivale capacidade de localizar uma informao explcita em textos curtos e familiares (como anuncio ou pequena carta), ler e escrever nmeros usuais e realizar operaes simples, como manusear dinheiro para o pagamento de pequenas quantias ou fazer medidas de comprimento usando a fita mtrica (Relatrio INAF/Brasil 2007, p. 6).

    7

  • Percentual de analfabeto funcionais por faixa etria em 2004-2005:

    15-24 anos _ 21%

    25-39 anos _ 30%

    40-54 anos _ 49%

    55-64 anos _ 68%

    Percentual de analfabeto funcionais por faixa etria em 2007:

    15-24 anos _ 17%

    25-39 anos _ 27%

    40-54 anos _ 43%

    55-64 anos _ 61%

    A maior concentrao de analfabetos funcionais segundo o aumento da faixa etria

    atribudo, especialmente, universalizao do acesso ao Ensino Fundamental no Brasil,

    processo iniciado durante a dcada de 1970 e hoje praticamente consolidado.

    Nessa marcha, ao final do sculo XX verificou-se um processo de expanso do ensino

    fundamental, mediante uma oferta de vagas cada vez mais condizente com o nmero da

    populao alvo 5; foi assim que na dcada de 1980, no que diz respeito ao acesso, o ensino

    fundamental obrigatrio se encontrava em etapa bastante avanada.

    A Constituio da Repblica Federativa do Brasil de 1988 trouxe em seu texto original a

    obrigao do Estado em promover a universalizao do Ensino Fundamental mediante

    previso em seu art. 208, I. Desde 1988 temos assegurada a oferta gratuita e a freqncia

    obrigatria do ensino fundamental regular s crianas at quatorze anos de idade.

    Esse processo de expanso, hoje quase concludo, se explicita nos ndices de analfabetismo

    acima anotados: a populao em que mais se concentra aquela compreendida nas faixas

    5 A partir da dcada de 1970 pode-se constatar uma progressiva substituio do sistema de acesso de minorias privilegiadas por um sistema de ensino relativamente aberto, no plano formal, e tendencialmente acessvel maioria da populao. Em 1970 eram 15,6 milhes de alunos matriculados no ensino fundamental; no final do regime militar, em 1985, esse nmero sofrera um acrscimo de 113,8%. Na dcada de 1980, j existiam vagas suficientes para suprir a demanda para toda a populao escolarizvel. OLIVEIRA, Romualdo Portela de. Da universalidade do ensino fundamental ao desafio da qualidade: uma anlise histrica, p. 664.

    8

  • etrias de 40-54 e 55-64 anos, ou seja, pessoas que no se encontravam mais em idade

    escolar quando do reconhecimento da necessidade de sua universalizao.

    O Relatrio de Desenvolvimento Juvenil, elaborado pelo Ministrio de Cincia e

    Tecnologia 6, condensa uma queda elevada na taxa de analfabetismo entre os jovens nos

    ltimos anos, de 8,2%, em 1993, para 4,2%, em 2001, 3,4% em 2003 e 2,4% em 2006.

    A universalizao do ensino fundamental para crianas em idade escolar hoje uma

    tendncia j muito prxima da realidade; dados obtidos a partir da Pesquisa Nacional

    por Amostra de Domiclios realizada em 2007 pelo IBGE apontam que 97,6% dos

    brasileiros entre 7 e 14 anos freqentam a escola 7.

    Todavia, no nos podemos furtar a alertar que a mera oferta deste ensino sem a

    necessria adequao de sua prestao em nveis suficientes de qualidade importar

    necessariamente em um acrscimo da faixa de analfabetos funcionais em idade no

    escolar.

    A oferta de um ensino desprovido de qualidade importa em novo processo de excluso

    educacional: os alunos que freqentam e concluem o ensino regular adquirem uma

    bagagem insuficiente e inadequada; muitos, desmotivados pela educao ofertada ou elo

    insucesso nas provas conclusivas acabam abandonar os estudos, no chegando sequer a

    concluir o ciclo educacional.

    Com a proximidade ou o alcance da universalizao do acesso, a educao fundamental no

    pas passa a ter dois novos problemas em foco: (i) processo de excluso em razo da

    qualidade de ensino (e no mais da restrio ao acesso) _ cujos reflexos so evidenciados

    nos ndices de repetncia e a seguida evaso escolar 8; e (ii) universalizao da educao

    6 Relatrio elaborado em parceria com Rede de Informao Tecnolgica Latino Americana e Instituto Sangari. 7 http://www.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias/noticia_visualiza.php?id_noticia=1230&id_pagina=18 evidentemente, a desigualdade e a excluso permanecem. No por isso que sequer o ensino fundamental tenha deixado de ser etapa produtora de desigualdade educativa. Alm disso, os discriminados de ontem continuam a ser os discriminados de hoje. Mas a desigualdade existente hoje no mais a mesma e nem ocorre nos mesmos termos da que ocorria no passado. Setores mais pobres reprovam mais, evadem mais, concluem menos, o mesmo ocorre com negros e meninos, mas, mais importante que isso, aprovam mais, permanecem mais e concluem mais do que em qualquer outro momento de nossa histria educacional, ainda que permaneam como os setores mais excludos. S que no so excludos na mesma maneira que no passado! O ponto que, se no se enfatizar a positividade que a universalizao do ensino fundamental

    9

  • fundamental para aqueles que no mais se encontram na faixa etria correspondente

    (composio do ensino de jovens e adultos EJA), especialmente para a populao mais

    idosa.

    Hoje, verificamos um verdadeiro descompasso entre idade e srie; embora haja um

    nmero suficiente de vagas para o atendimento de toda populao na faixa etria ideal,

    muitos se encontram atrasados em seus estudos. Assim, a insuficincia de vagas ainda

    existente deve-se, dentre outros fatores (como a distribuio irregular da oferta),

    inadequao entre idade e srie escolar, situao que, se no verificada, importaria na

    suficincia da rede fsica para o atendimento 9.

    Em 2004, relatrio de indicadores sociais apresentado pelo IBGE apresentou nmeros

    alarmantes sobre a taxa de defasagem idade/srie dos estudantes de 7 a 14 anos de idade,

    por idade 10:

    7 anos 8 anos 9 anos 10 anos 11 anos 12 anos 13 anos 14 anos14,9% 26,8% 33,8% 39,5% 45,1% 51,1% 57,1% 64%

    Dados apresentados pelo IPEA em 2006 identificam os reflexos desse novo processo de

    excluso: apenas 84% dos alunos efetivamente ingressos no sistema educacional concluem

    a 4 serie, e 57% terminam o ensino fundamental 11.

    Como conseqncia direta dessa realidade, oferta irregular de ensino em termos de

    qualidade e elevadas taxas de repetncia e evaso escolar, acentua-se o problema do

    analfabetismo funcional: crianas e adolescentes de hoje que saem da escola sem um

    suficiente e adequado processo de alfabetizao.

    representa, no conseguiremos compreender porque os desafios passam a ser outros. Ao se enfatizar a excluso de sempre, no se tem elementos para perceber que ela j no a mesma de duas ou trs dcadas. OLIVEIRA, Romualdo Portela de. Da universalidade do ensino fundamental ao desafio da qualidade: uma anlise histrica, p. 682.9 O fluxo do nosso sistema educacional irregular: h um elevado nmero de alunos fora das sries correspondentes a sua idade (ingresso tardio, ou repetncia). OLIVEIRA, Romualdo Portela de. Da universalidade do ensino fundamental ao desafio da qualidade: uma anlise histrica, p. 667.10 Diretrio FTP /Indicadores_Sociais/Sintese_de_Indicadores_Sociais_2004/Tabelas/Resultados/ em ftp.ibge.gov.br (Tabela 2.10).11 OLIVEIRA, Romualdo Portela de. Da universalidade do ensino fundamental ao desafio da qualidade: uma anlise histrica, p. 686.

    10

  • O analfabetismo funcional um problema que aflige toda a populao. Em 2007, 21,6%

    das pessoas com mais de 15 anos de idade no pas foram assim qualificadas pelo IBGE;

    sendo que nas regies Norte e Nordeste os nmeros alcanam 25 e 33,5% 12. Esses

    nmeros crescem vertiginosamente quando observada a populao com idade mais

    avanada, chegando a superar 60% quando nos atemos s pessoas entre 55 e 64 anos.

    Com respeito ao analfabetismo absoluto, estima-se a existncia de 15,5 milhes de

    brasileiros que no sabem ler nem escrever; 85% dos quais (13,3 milhes) tm mais de

    30 anos de idade, 54% (8,4 milhes) com idade acima de 50 anos 13.

    O problema do analfabetismo, absoluto e funcional, no Brasil atinge a populao adulta

    com que integra a fora de trabalho do pas e composta por consumidores, eleitores,

    chefes de famlia 14. Situao que tende a ser perpetuar em razo dos elevados ndices de

    insucesso nos sistema educacional regular.

    Nesse sentido, a presente dissertao destina-se ao estudo do direito fundamental

    educao no Brasil no contexto da Constituio da Repblica de 1988, com especial

    enfoque destinado ao ensino fundamental.

    Como um Direito Social, ou Direito Humano de Segunda Dimenso, o direito educao

    tem sua efetividade comprimida pela inrcia dos Poderes Pblicos em promover

    Polticas Pblicas capazes de realiz-lo mediante alegaes de discricionariedade da

    Administrao Pblica em sua atuao e de escassez de recursos.

    bice este por vezes enfrentado pelos Direitos Sociais, mas amenizado quando

    reconhecidos como direitos pblico subjetivos, cuja exigibilidade perante o Poder Pblico

    direcionada aos indivduos, ao menos no tocante ao ncleo fundamental de cada direito.

    Nesse sentido, demonstraremos que o direito Educao um direito social classificado

    como pblico subjetivo e quais as suas conseqncias. Concentrada nossa ateno nos

    problemas da qualidade de ensino e do analfabetismo, iremos identificar aquela

    12 Pesquisa Nacional por amostra de domiclios 2007, IBGE. http://www.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias/noticia_visualiza.php?id_noticia=1230&id_pagina=113 Pesquisa Nacional por amostra de Domiclios (Pnad) 2005, realizada pelo IBGE. http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/trabalhoerendimento/pnad2005/default.shtm14 Relatrio INAF/Brasil - 2007, p. 4.

    11

  • corresponde a uma educao de qualidade em conformidade com os propsitos

    constitucionais, e evidenciar que o direito Educao Fundamental de pessoas fora da

    idade escolar, Educao de Jovens e Adultos (EJA), parte integrante do ncleo

    fundamental desse direito educao, explicitando suas conseqncias.

    Ainda, observado o tratamento constitucional destinado educao fundamental,

    procuraremos examinar os limites da responsabilidade do Poder Pblico para sua

    promoo, em termos de extenso e qualidade, bem como as conseqncias desse

    reconhecimento a nvel constitucional. Momento em que trabalharemos dois pontos

    essenciais sua efetividade, os mecanismos de sua exigibilidade perante os poderes

    pblicos e os limites materiais ao Poder de reforma Constitucional.

    Por fim, apontaremos os traos dos procedimentos judiciais aptos a levarem demandas que

    reclamem a prestao do direito educao fundamental em nossos Tribunais Superiores,

    bem como seu posicionamento frente a essas reclamaes.

    12

  • CAPTULO II. O QUE EDUCAO?

    A obra-prima de uma boa educao est em fazer um

    homem razovel (Rousseau, Emlio, p. 74)

    2.1. Da educao

    Antes de nos dedicarmos ao tratamento direcionado ao Direito Educao, decidimos por

    delinear o objeto deste direito; passemos dessa forma a uma identificao do que venha a

    ser o educar.

    ROUSSEAU define o educar como o processo por meio do qual o homem adquire as

    habilidades e capacitaes necessrias para o desenvolvimento das atividades a serem

    desempenhadas no curso de nossas vidas. Reconhecendo que nascemos fracos,

    precisamos de fora; nascemos desprovidos de tudo, temos necessidade de assistncia;

    nascemos estpidos, precisamos de juzo. Tudo o que no temos ao nascer, e de que

    precisamos quando adultos, -nos dado pela educao 15.

    Educao esta que pode ter origens distintas, da natureza, dos homens e da nossa prpria

    experincia 16. Em nosso trabalho, devemos nos ater educao dos homens, aquela de que

    somos realmente senhores.

    Naturalmente temos curiosidade por aquilo que nos possa interessar e por meio da

    verdadeira educao devemos ser alimentados nessa curiosidade 17 e estimulados

    compreenso de forma que passemos a raciocinar e conceber os fenmenos que nos

    cercam e decidir o que entendemos certo e bom. Pois o homem livre, e educar o ser

    humano educ-lo para a liberdade.15 Emilio ou da Educao, p. 10.16 O desenvolvimento interno de nossas faculdades e de nossos rgos a educao da natureza; o uso que nos ensinam a fazer desse desenvolvimento a educao dos homens; e o ganho de nossa prpria experincia sobre os objetos que nos afetam a educao das coisas (ROUSSEAU, Jean-Jacques. Emlio ou da Educao, pp. 10 e 11)17 h um ardor de saber que assenta unicamente no desejo de ser considerado sbio; h outro que nasce da curiosidade natural ao homem por tudo o que pode interessar de perto ou de longe. O desejo inato do bem-estar e a impossibilidade de content-lo plenamente fazem com que procure sem cessar novos meios de alcan-lo. Tal o primeiro da curiosidade; princpio natural ao corao humano e cujo desenvolvimento s ocorre em proporo de nossas paixes e nossas luzes. (ROUSSEAU. Emlio ou da Educao, p. 174)

    13

  • Toda a ao humana objeto de sua vontade, uma vontade que move o universo e anima

    a natureza, e no h vontade sem liberdade. Verdadeira liberdade aquela que se

    consubstancia na capacidade de agir, comparar, escolher, que torna o homem um ser

    pensante capaz de estabelecer uma correspondncia ntima entre os instrumentos a nossa

    disposio para conscientemente agir 18.

    Assim, a educao deve se voltar capacitao do homem para o pensar 19, para que

    sua compreenso do mundo lhe permita saber o que deve ser e atuar sobre o mundo. Essa

    capacidade de transformar seu contexto est diretamente associada a sua capacidade de

    refletir, de admirar sua conjuntura e transform-la 20.

    Impedido de refletir e de atuar, o homem encontra-se ferido em sua humanidade; como ser

    histrico, cuja posio normal o estar com a realidade 21 e no s estar na realidade, deixa

    de existir antes de sua morte 22.

    Nesse sentido, o ncleo do processo de educao a natureza histrica do homem, ser

    inacabado e consciente de sua inconcluso. Consciencioso de sua natureza o homem

    capaz de interferir na realidade conhecida, e se o homem capaz de perceber-se, enquanto

    percebe uma realidade que lhe parecia em si inexorvel, capaz de objetiv-la,

    descobrindo sua presena criadora e potencialmente transformadora da realidade 23.

    Assim, o compromisso do educador com o homem concreto, com a causa de sua

    humanizao e de sua libertao. Nesse panorama, a educao o instrumento pelo qual

    18 ROUSSEAU. Emlio ou da Educao, pp. 309 a 318.19 o homem no pensa naturalmente. Pensar uma arte que se aprende como todas as outras, e at mais dificilmente (ROUSSEAU. Emlio ou da Educao, p. 480)20 A conscincia essa misteriosa e contraditria capacidade que tem o homem de distanciar-se das coisas para faz-las presentes (...). um comportar-se do homem frente ao meio que o envolve, transformando-o em mundo humano e como a conscincia se constitui necessariamente como conscincia do mundo, ela , pois, simultnea e implicadamente, apresentao e elaborao do mundo. (FIORI, Ernani Maria. Aprender a dizer a sua palavra, prefcio in FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido, p. 14.)21 Nesse sentido, Paulo Freire prope a educao como forma de libertao do ser humano, ser histrico responsvel pela produo da realidade, a quem cabe transform-la quando opressora. Libertao essa que depende inevitavelmente de prvia percepo da realidade e do papel do homem como ser da prxis, da reflexo e ao dos homens sobre o mundo para transform-lo, pois apenas uma insero lcida na realidade, na situao histrica que a levou critica desta mesma situao e ao mpeto de transform-la (Pedagogia do oprimido, pp. 35-38 e 52 e ss.)22 FREIRE, Paulo. Educao e mudana, p. 48.23 FREIRE, Paulo. Educao e mudana, p. 51.

    14

  • se capacita o homem a organizar seu pensamento, tornando-o apto a exercer seu

    papel de sujeito da histria; essencialmente um ato de conhecimento e de

    conscientizao 24. Cuida, portanto, da evoluo do indivduo e da modificao de suas

    relaes com o ambiente social 25.

    Thomas GILLES reconhece como o objetivo do processo educativo integrar a pessoa

    (normalmente, e por motivos bvios, a criana e o jovem) em determinado contexto e

    tradio scio cultural cuja consolidao importa a transmisso dessa tradio e o

    sustento dos valores sociais 26.

    Nesse sentido, a percepo do que venha a ser a educao para cada sociedade decorre do

    momento histrico em que essa seja apreciada. Podemos dizer que na sociedade humana

    primitiva, por exemplo, o processo educativo altamente informal e totalmente integrado

    nas atividades dirias que visam sobrevivncia do individuo e da tribo 27.

    A partir da comunicao via escrita grfica, abre-se um caminho para uma comunicao

    mais vasta e permanente, permitindo um processo de educao mais formalizado e

    entregue a uma classe de especialistas 28.

    Remontamo-nos Grcia Antiga, bero cultural da tradio ocidental, em que a razo,

    como instrumento a servio do prprio homem, conjuntamente com a liberdade,

    representava o ideal constante da sociedade. Reconhece-se na concepo grega de processo

    educativo a transmisso daquilo que determinada sociedade exige para o xito pessoal,

    ideal que leva inevitavelmente a certa democratizao do processo educativo. O processo

    educativo, ou seja a paidia, est ligado s prticas, sobretudo eloqncia perante a

    24 impedidos de atuar, de refletir, os homens encontram-se profundamente feridos em si mesmos, como seres do compromisso, compromisso com o mundo, que deve ser humanizado para a humanizao dos homens, responsabilidade com estes, com a histria. FREIRE, Paulo. Educao e mudana, p. 18.25 BERNARD, Charlot. A mistificao pedaggica, p. 26.26 GILES, Thomas Ramson. Histria da Educao. So Paulo: Editora Pedaggica Universitria Ltda, 1987, p.1.27 GILES reconhece no processo primitivo da educao um processo de enculturao caracterstico pela transmisso do conjunto dos mecanismos necessrios introduo e assimilao do individuo em determinada sociedade, de sua cultura, a fim de torn-lo membro efetivo da ordem social. (Histria da Educao, p. 3)28 Reconhece-se na Mesopotmia o primeiro sistema de ensino formal, i nserido no sistema religioso mediante a necessidade de formao do sacerdote escriba, guardio da ordem religiosa e encarregado da administrao da sociedade GILES, Thomas Ramson. Histria da Educao, p.7.

    15

  • assemblia dos cidados, pois a que as grandes questes polticas se resolvem e a ao

    se inicia 29.

    Nesse contexto, Plato desenvolve uma anlise do processo educativo na A Repblica e

    identifica a necessidade de o cidado receber do corpo poltico a educao correspondente

    sua capacidade e funo social para poder desempenhar sua funo nesse corpo

    poltico.

    Aristteles, ao reconhecer na racionalidade o elemento definidor da natureza especfica do

    homem 30 define o processo educativo como uma atividade dirigida para o fim determinado

    de realizao do potencial caracterstico do homem. Ao compreender o Estado como

    instituio qual cabe a promoo de tudo o que conduz realizao das potencialidades

    humanas, direciona-lhe a competncia sobre o sistema educativo, devendo o ensino ser

    pblico, por ele apoiado, financiado e controlado de acordo com princpios de

    universalidade e uniformidade 31.

    Nos dirigindo Alta Idade Mdia, na Europa, a fragmentao scio-poltica representou

    uma quebra na comunicao e no vigor social, importando em um desinteresse pelo

    processo educativo, sob o controle da Igreja e preocupado com a educao do prprio

    clero, tornando a nobreza cada vez mais sua dependente 32.

    Com o declnio do feudalismo a partir dos sculos X e XI e a intensificao do comrcio

    na Europa, a Monarquia ascende e juntamente a essa ascenso temos o fortalecimento da

    burguesia, representando um momento de mudana para o processo educativo;

    caracterizado por um processo de diminuio do controle eclesistico sobre as escolas e

    29 GILES, Thomas Ramson. Histria da Educao, p.16.30 no potencial para a abstrao, para o raciocnio discursivo (isto , o ordenamento de conceitos sob forma sistemtica) e para a intuio (a capacidade de apanhar princpios racionais) que o homem se destaca dos demais animais (GILES, Thomas Ramson. Histria da Educao, p.23).31 O carter distintivo do processo educativo depender da constituio do Estado, ou seja, do sistema poltico vigente, pois o processo educativo tem, por misso servir, conservar e transmitir os valores preconizados pelo Estado. Uma vez que os Estados variam uns em relao aos outros, cada Estado deve proporcionar aquela educao que forma, que amolda os cidados de acordo com o estilo de vida que lhe peculiar. Porem, dentro do mesmo Estado, o processo educativo deve ser uniforme, o mesmo para todos, quanto ao essencial, sem levar em considerao quaisquer diferenas individuais. Dessa forma ser garantida a uniformidade de formao de uma boa cidadania. (GILES, Thomas Ramson. Histria da Educao, p.24)32 GHIRALDELLI Junior, Paulo. Historia da educao brasileira. So Paulo: Cortez, 2006, p. 65 e ss.

    16

  • uma conseqente secularizao do processo educativo. Consagra-se uma poca de

    retomada do racionalismo clssico 33.

    Ressurgido na Itlia de Francesco Petrarca 34, o humanismo se fortaleceu e dominou o

    estilo intelectual na Europa j no final do sculo XV. Destacam-se nesse perodo as

    acepes de Desidrio Erasmo e Martinho Lutero acerca do processo educativo, ambos

    motivados por ideais de cunho religioso consideravam o processo educativo um

    instrumento indispensvel para a promoo, fortalecimento e manuteno da f. 35

    Essa concepo de educao se propagou por todo o continente europeu e propiciou o

    surgimento de uma nova concepo educacional. O processo educacional visava aproximar

    o homem de Deus; mas, ao mesmo tempo, movimentou-se em direo a uma

    diversificao educativa e sua extenso a uma populao mais abrangente a partir do

    sculo XVI.

    A partir do sculo XVII, com as guerras religiosas e um questionamento das bases do

    processo educativo, o ideal cientfico-empirista traz uma nova proposta de explicao do

    universo e do papel que o homem nele ocupa, em oposio lgica aristotlica at ento

    predominante calcada em proposies, conceitos tidos como demasiado abstratos e

    distantes dos fatos.

    Na Frana, dividida em torno da questo religiosa, o ensino encontra-se como um

    monoplio das universidades e restrito s classes mais favorecidas, restando como nica

    33 GHIRALDELLI Junior, Paulo. Historia da educao brasileira. So Paulo: Cortez, 2006, p. 70 e ss.34 O bom cidado aquele que une a atividade poltica cvica, cultural e /intelectual, conjunto que resulta do processo educativo, pois uma boa educao a base imprescindvel para a participao cvica. A educao prepara para a liberdade. s atravs da liberdade que a melhor forma do Estado e a prpria vocao do homem podem realizar-se. Compete ao homem de letras formular esses ideais em termos claros, para poder instaurar um programa de estudos que assegure a transmisso desses valores. (...) o grande valor do Republicanismo consiste em permitir o mximo grau de liberdade ao indivduo e, ao mesmo tempo, exigir um considervel esforo de cada um em prol do bem publico. De fato, a liberdade exige responsabilidade, porm, da sua vigncia, resulta a melhor forma de Estado. (g.n.) (GHIRALDELLI Junior, Paulo. Historia da educao brasileira. So Paulo: Cortez, 2006, PP. 96 e 96)35 Ao propagar a salvao pela crena em Jesus Cristo sem a intermediao da Igreja, Lutero defendia o processo educativo, a instruo, como o meio necessrio para a compreenso das sagradas escrituras e reconhecia ao governo civil, e no s a Igreja, o dever de promover o processo educacional mediante a argumentao de que a educao seria necessria para formar um povo capacitado para governar sabiamente e organizar a vida social. A prosperidade da cidade depende diretamente de cidados bem formados, pois estes sabero manter uma sociedade estvel. (...) As escolas so benficas para qualquer cidade, pois formam cidados doutos e respeitosos da lei, que promovero a paz e o bom governo.GHIRALDELLI Junior, Paulo. Historia da educao brasileira. So Paulo: Cortez, 2006, p. 119.

    17

  • alternativa para as classes operrias as pequenas escolas paroquiais. O Iluminismo

    representa a reao contra o autoritarismo religioso e poltico, e contra as desigualdades

    sociais e as rgidas distines de classe. Identifica-se na cincia, na razo humana e no

    prprio homem a base dessa rejeio.36

    Paralelamente, a burguesia em ascenso em seu poderio econmico defendia valores de

    liberdade em oposio aos sistemas de privilgios caractersticos do sistema feudal e

    reclamava uma maior participao poltica. At o final do sculo, inicia-se a secularizao

    da cultura ocidental e no lugar da religio sobrenatural, prope-se a religio natural,

    consistente, segundo Voltaire, nos princpios da moral comuns raa humana.

    A histria da educao no sculo XVIII dominada pelo esforo de tornar os ideais do

    Iluminismo realidade, ideais propagados por toda a Europa, graas aos filsofos. 37 H

    uma reclamao efetiva por uma ampliao do contedo dos programas de estudo e uma

    promoo de um maior acesso ao processo educativo sem distino de classe social.

    Nesse contexto, Rousseau identifica no processo educativo uma condio necessria e

    anterior reforma social. Prope a educao pblica nos moldes elaborados por Plato

    mediante o reconhecimento da igualdade natural entre os homens e sua vocao comum

    nesse estado de ser homem.

    O processo educativo passa a reconhecer seu sentido na independncia do aluno, em

    lev-lo enquanto homem, ser pensante e inteligente, a alcanar um desenvolvimento

    que tenda auto-realizao e evoluo consciente.

    Com a Revoluo francesa foi criado, em 1792, um Sistema de Instruo Pblica

    gratuita e universal, direcionada a todos os cidados. Mediante um processo de

    formulao de um sistema nacional de ensino, elaborou-se o Cdigo de Educao Nacional

    cujo contedo previa igualdade de acesso ao processo educativo por parte de meninos e

    meninas, em todos os nveis, desde o primrio at o nvel superior, porm, sem

    obrigatoriedade ou gratuidade garantidas. 38

    36 GHIRALDELLI Junior, Paulo. Historia da educao brasileira. So Paulo: Cortez, 2006, p. 170.

    37 GHIRALDELLI Junior, Paulo. Historia da educao brasileira. So Paulo: Cortez, 2006, p. 172 e 173.38 GHIRALDELLI Junior, Paulo. Historia da educao brasileira. So Paulo: Cortez, 2006, p. 208.

    18

  • Com a consolidao da burguesia como classe dominante desde o incio do sculo XIX,

    seus ideais, baseados no Iluminismo, acabam por direcionar a estrutura social vigente,

    assumindo uma postura conservadora no sentido de restringir o processo educativo como

    forma de preservar-se frente s aspiraes operrias de mobilidade social. Como forma de

    auto preservao, definido um ensino que, uma vez aberto ao proletariado, deve limitar-

    se Leitura, Escrita e ao Clculo. O resto suprfluo. 39

    Esse processo educativo fora questionado j no sculo XX por John DEWEY pela sua

    conseqente formao de escravos em razo da no adoo de um pensamento reflexivo,

    capaz de transformar obscuridade, conflito e dvida em situaes claras e harmoniosas.

    Defende o autor que o processo educativo tradicional cria uma situao de dependncia e

    que as bases de toda a educao democrtica devem ser rigorosamente cientficas. A

    escola deve ser um laboratrio social, onde o aluno aprende a submeter as tradies

    prova de pragmatismo. (...) O homem consegue manter-se no contexto da sociedade. O

    processo educativo fundamental para a realizao dessa vocao social, pois inculca

    no indivduo as tcnicas da sobrevivncia e do crescimento, a partir da acumulada

    experincia do seu grupo. Porm, na medida em que a vida se torna cada vez mais

    complexa, o processo educativo se torna mais formal e proposital, orientando-se

    principalmente no sentido de levar o jovem a aceitar a moral da sociedade de que faz parte.

    (...) numa sociedade democrtica, a experincia coletiva fonte para a soluo de

    problemas futuros. 40

    Chega-se a uma concepo do processo educativo em que este deve estar em sintonia

    com a sociedade, com a democracia, devendo ser promovido pelo Estado como forma

    de garantia de sua eficcia numa sociedade democrtica 41.

    39 GHIRALDELLI Junior, Paulo. Historia da educao brasileira. So Paulo: Cortez, 2006, p. 232.40 GHIRALDELLI Junior, Paulo. Historia da educao brasileira. So Paulo: Cortez, 2006, p. 262.41 Para garantir sua eficcia numa sociedade democrtica, a educao deve ser controlada pelo Estado. Todas as escolas devem ser abertas para todos, independentemente de sexo, religio, raa ou classe social. Qualquer outra soluo um obstculo aprendizagem dos valores democrticos e torna impossvel uma educao autntica. GHIRALDELLI Junior, Paulo. Historia da educao brasileira. So Paulo: Cortez, 2006, p. 263.

    19

  • A educao, como cincia humana, resguarda seu carter histrico. No curso da histria da

    humanidade fora reconhecida sob diversas concepes, evoluindo de um mecanismo

    essencialmente garantidor da sobrevivncia da vida e do indivduo a formas de legitimao

    e manuteno das diversas formas de organizao social.

    Observado o contexto das sociedades democrticas, a educao deve-se voltar

    capacitao do homem ao exerccio de seu papel como agente de sua prpria histria

    e como cidado, agente da histria de sua sociedade.

    No momento atual do processo pedaggico, compreende-se que o cerne do processo

    educativo se encontra na alfabetizao, compreendida em seu sentido amplo de

    domnio dos instrumentos bsicos da cultura letrada, das operaes matemticas

    elementares, da evoluo histrica da sociedade humana, da diversidade do espao

    fsico e poltico mundial e da constituio da sociedade brasileira. Envolve ainda a

    formao do cidado responsvel e consciente de seus direitos e deveres. 42

    Podemos identificar a existncia de duas distintas acepes acerca do processo educativo,

    distintas e excludentes. Devemos atentar para a diferenciao entre estas e a adoo

    daquela a que consideramos mais condizente com o atual estgio de sociedade em que nos

    encontramos.

    Assim, a partir dessa concepo poderemos reconhecer o contedo e a extenso do direito

    Educao no Contexto da CF/88.

    2.2. Concepes de processo educativo

    2.2.1. Concepo comum de educao

    Segundo uma linguagem comum, podemos auferir a educao como o mero processo de

    transmisso de conhecimentos e informaes de quem sabe para quem no sabe, de 42 GHIRALDELLI Junior, Paulo. Historia da educao brasileira, p. 194.

    20

  • quem educa para quem educado; nesse processo o mais importante o contedo a ser

    transmitido. Aparecendo o educador como simples provedor dos conhecimentos e

    informaes e o educando como simples receptculo desses contedos. 43

    Essa transmisso de conhecimentos e informaes importa na reduo do mtodo de

    ensino a uma apresentao de conhecimentos, segundo caractersticas e necessidades do

    prprio contedo, sem qualquer considerao pela subjetividade do educador e do

    educando.

    Ao privilegiar o contedo em detrimento dos sujeitos, acaba-se por aniquilar a

    condio de sujeito do educando.

    Os contedos so passados do educador para o educando sem uma preocupao com a sua

    apreenso. Para essa concepo a escola desempenha um papel simples de fiscalizar

    (aplicando exames e reprovando aqueles que fracassavam) e selecionar (boas escolas,

    privadas, selecionam seus alunos, que aprendem apesar da escola). 44

    Seus objetivos restringem-se apenas a isto: passar conhecimentos e informaes. H uma

    renncia, assim, pretenso de uma educao que proveja as necessidades culturais

    da personalidade do ser humano numa perspectiva de integralidade, ao deixar de

    lado todos os demais componentes culturais: valores, arte cincia, filosofia, direito,

    crenas, etc. 45

    Esse o modelo escolar criticado por Paulo Freire, denominado educao bancria, em

    que os contedos so depositados como o dinheiro o em um banco, e posteriormente

    sacado por meio de avaliaes e provas.

    Essa concepo sugere o homem como mero expectador e no re-criador do mundo,

    concebe a sua conscincia como algo especializado neles e no aos homens como corpos

    conscientes. (...) Uma conscincia continente a receber permanentemente os depsitos que

    o mundo lhe faz, e que se vo transformando em seus contedos 46. Assim, ao educador 43 PARRO, Vtor Henrique. Educao como exerccio do poder: crtica ao senso comum em educao, p. 21.44 PARRO, Vtor Henrique. Educao como exerccio do poder, p. 80.45 PARRO, Vtor Henrique. Educao como exerccio do poder, p. 51.46 FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido, p. 63.

    21

  • cabe desempenhar o papel de disciplinar a entrada do mundo nos educandos, enchendo-

    os de contedos.

    Segundo FREIRE, essa educao bancria retira do aluno sua autonomia e sua liberdade

    por um processo de adaptao e apassivao para adequ-los ao mundo 47

    Essa educao como prtica de dominao, mantenedora da ingenuidade dos educandos,

    preocupada em indoutrin-los no sentido de sua acomodao ao mundo e opresso 48 foi

    adotada pela escola pblica de antigamente, considerada uma escola de excelncia para

    muitos, permanecendo em aplicao na maioria das escolas pblicas e particulares de hoje

    (alguns modelos de excelncia): o contedo transmitido, depositado, e os resultados so

    observados por meio das provas, exames, vestibulares que avaliam o acmulo de contedo

    pelo educando (no seu conhecimento); o sucesso de seus alunos corresponde a sua

    capacidade de memorizao. Todavia, esse modelo criticado justamente por

    representar a no construo do conhecimento.

    2.2.2. Conceito crtico de educao

    Um conceito crtico de educao, modelo democrtico, reconhece a importncia dos

    sujeitos que compem a relao de educar. No mais o contedo o foco desse processo,

    mas sim os sujeitos que dele participam.

    O educando aparece como sujeito, e como tal s atua segundo sua vontade, sua

    autonomia. Razo pela qual o educador deve desempenhar o papel de despertar no

    educando a vontade em aprender, tornando o ensino desejvel.

    47 Importando uma pratica, essa concepo s pode interessar a sistemas opressores, em que as grandes maiorias se adaptam s finalidades prescritas pelas minorias dominadoras. Razo pela qual um de seus objetivos fundamentais seja o de dificultar o pensar autntico, pois no momento em que se funda num conceito mecnico, esttico, espacializado da conscincia e em eu transforma, por isto mesmo, os educandos em recipientes , em quase coisas no pode esconder sua marca necrfila. (Pedagogia do oprimido, p.p54 e 65).48 FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido, p. 66.

    22

  • Temos, assim, a necessidade de um dilogo entre educador e educando, entre dois sujeitos

    que atuam segundo uma relao de convivncia democrtica: sujeitos que se afirmam

    como tais e que atuam segundo sua vontade, sendo seu comportamento determinado pelo

    dilogo sem a imposio de qualquer constrangimento. 49

    A comunicao entre educando e educador imprescindvel para que o pensar de ambos

    ganhe autenticidade; mediados ambos pela realidade. O pensar do educador no pode,

    ento, ser imposto ao educando; ele deve surgir na e pela comunicao, em torno de uma

    realidade, pois apenas quando surgido de uma ao sobre o mundo que interceda nas

    conscincias em comunicao ele ter sentido e proporcionar uma superposio dos

    homens aos homens 50.

    Assim, por meio de uma educao crtica os educandos so chamados a conhecer

    mediante uma reflexo analtica com seu educador. Essa a prtica educativa da liberdade,

    que implica a negao do homem abstrato, isolado, solto, desligado de seu mundo, que

    prope uma reflexo autntica sobre os homens em suas relao com o mundo 51.

    A educao visa a formao do homem em sua integralidade, capacitando-o para se

    tornar sujeito da histria por meio da construo de sua cultura (e no objetivando a

    mera aprovao em exames e testes), o que envolve conhecimentos, informaes, valores,

    crenas, cincia, arte, tecnologia, filosofia, direito, costumes...

    A imperatividade da educao decorre da necessidade do homem em apropriar-se da

    bagagem cultural historicamente acumulada, vez que embora autor da histria pela

    produo da cultura, o homem ao nascer encontra-se inteiramente desprovido de qualquer

    trao cultural. Essa educao corresponde, assim, a uma atualizao histrico-cultural,

    sendo que o homem se torna mais humano medida que desenvolver suas

    potencialidades, que sua natureza vai acrescentando cultura, pela apropriao de

    conhecimentos, informaes, valores, crenas, habilidades artsticas etc. etc. 52

    49 PARRO, Vtor Henrique. Educao como exerccio do poder, p. 41.50 O educador no o que apenas educa, mas o que, enquanto educa, educado, em dilogo com o educando que, ao ser educado tambm educa. Ambos se tornam assim sujeito do processo. FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido, pp. 64 e 68.51 FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido, p.70.52 PARRO, Vtor Henrique. Educao como exerccio do poder, pp. 24 e 25.

    23

  • A educao mais adequada corresponde, assim, quela que se apresente a mais completa

    em relao ao desenvolvimento de todas as potencialidades do homem, habilitando-o

    para lidar com as mltiplas demandas que a vida vai constantemente lhe oferecer.

    Demandas de ordem econmica, material, mas tambm demandas afetivas, emocionais,

    igualmente capazes de alterar o delicado equilbrio da sensibilidade humana. 53

    Seu contedo , portanto, a prpria cultura para a construo do homem 54.

    Como ser histrico, ser social, o homem um ser poltico que s se realiza, s pode

    produzir sua materialidade, a partir do contato com os demais seres humanos, ou seja, a

    produo de sua existncia, no se d diretamente, mas mediada pela diviso social do

    trabalho. 55

    Essa concepo poltica do homem importa, para o conceito de educao, para a

    identificao do tipo de sociedade que se tem em mente em termos polticos e do tipo de

    homem que se pretende formar 56.

    2.3. Educao no contexto de um Estado Democrtico de Direito

    Observado nosso contexto histrico de busca pela realizao da democracia, de uma

    sociedade democrtica, devemos atentar para as especificaes das caractersticas do

    conceito de educao ora analisado.

    53 ALVIN, Mrcia Cristina de Souza. A educao e a dignidade da pessoa humana, p. 185.54 Nicola ABBAGNANO, citado por Mrcia Cristina de Souza Alvin, conceitua educao como a transmisso das tcnicas culturais que so as tcnicas de uso, produo e comportamento, mediante as quais um grupo de homens capaz de satisfazer suas necessidades, proteger-se contra a hostilidade do ambiente fsico e biolgico e trabalhar em conjunto, de modo mais ou menos ordenado e pacfico. Como o conjunto dessas tcnicas se chama cultura, uma sociedade no pode sobreviver se sua cultura no transmitida de gerao para gerao; as modalidades ou formas de realizar ou garantir essa transmisso chama-se educao. (A educao e a dignidade da pessoa humana, p.184)55 PARRO, Vtor Henrique. Educao como exerccio do poder, p. 26.56 Nesse sentido, FREIRE reconhece ser a partir da situao presente, existencial, concreta, refletindo o conjunto de aspiraes do povo, que poderemos organizar o contedo programtico da educao ou da Ao Poltica. (Pedagogia do oprimido, p. 86)

    24

  • Quanto ao objetivo da educao em formar o homem histrico, sujeito da histria, numa

    conjuntura democrtica devemos buscar a formao de um cidado, afirmado em sua

    condio de sujeito e preparado para atuar democraticamente em sociedade.

    Numa democracia, os cidados so os titulares de direitos j existentes e de direitos em

    processo de expanso; razo pela qual se distingue o conceito de cidadania ativa, aquela

    que institui o cidado como portador de direitos e deveres, mas essencialmente participante

    da esfera pblica e criador de novos direitos para abrir espaos de participao 57.

    Com relao cultura como o contedo da educao, nela devem ser includos os valores

    da convivncia democrtica. 58

    Em que pese a escola no tenha o poder de determinar por si s o tipo de sociedade em que

    vivemos pela formao de seus alunos, no se discute sua importncia quanto apreenso

    de valores e hbitos que favoream comportamentos democrticos. O estmulo ao

    desenvolvimento de uma personalidade compatvel com a prtica democrtica no se

    adqua a uma frmula de imposio do ensino aos educandos independentemente de sua

    vontade e de seu interesse _ situao que provoca o desenvolvimento de um tipo de

    obedincia e passividade que no compatvel com o exerccio democrtico de cidados

    autnomos, incutindo valores que favorecem a constituio de indivduos acostumados a

    dominar os mais fracos e a obedecer sem resistncia aos mais fortes. 59

    Faz-se necessria uma orientao do ensino no sentido da democratizao e do

    desenvolvimento da autonomia do educando, na construo de personalidades

    humano-histricas em seus alunos 60, pois falar em democracia e silenciar o povo

    uma farsa. Falar em humanismo e negar os homens uma mentira 61.

    57 BENEVIDES, Maria Victoria de Mesquita. Cidadania, Direitos Humanos e Democracia. In Fronteiras do Direito Contemporneo. ARIENTE, Eduardo Altomare (Coord.), p. 11558 PARRO, Vtor Henrique. Educao como exerccio do poder, p. 27.59 PARRO, Vtor Henrique. Educao como exerccio do poder, p. 61.60 PARRO, Vtor Henrique. Educao como exerccio do poder, p. 67.61 FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido, p.82.

    25

  • Uma verdadeira transformao no sentido de se buscar uma escola com a qualidade de

    ensino desejada ao auxlio na produo de uma sociedade democrtica. 62

    2.4. Relao entre educador e educando

    A relao estabelecida entre educador (aquele que pretende modificar comportamentos

    alheios) e educando (aquele cujo comportamento se supe seja passvel de ser modificado)

    reconhecida como uma relao de poder.

    Quando nos atemos concepo comum de educao, essa relao de poder no enxerga

    no educando um sujeito de vontades, mas sim um destinatrio da transmisso elaborada

    pelo educador. Essa figura de mero receptor importa na ausncia de sua participao ativa

    no processo educativo.

    Segundo a concepo crtica de educao, o educando participa ativamente no

    processo educativo, apreendendo a cultura a ele apresentada segundo sua prpria vontade,

    incorporando elementos que o engrandecem e o fortalecem, e interferindo no

    comportamento do educador, provocando mudanas em sua atuao de forma a adequ-la

    s necessidades de aprendizagem do educando. 63

    A necessidade de optarmos pelo conceito crtico de educao, aquele em que se objetiva

    o desenvolvimento do homem como o sujeito da histria mediante a apreenso de sua

    cultura em suas mais diversas expresses, depreende-se de nossa opo pela construo

    de uma sociedade democrtica fundada no reconhecimento da dignidade da pessoa

    humana como valor absoluto e incontestvel a influenciar a construo de nossa

    sociedade.

    62 PARRO, Vtor Henrique. Educao como exerccio do poder, p. 71. Embora no se possa pretender que a transformao da escola seja suficiente para produzir o que se pe no horizonte como ideal de uma sociedade radicalmente democrtica. Essa no uma transformao suficiente, mas uma transformao necessria.63 PARRO, Vtor Henrique. Educao como exerccio do poder, p. 46. Reconhece o autor que em uma relao pedaggica verdadeiramente competente por parte do professor ou da escola, toda ao planejada para ensinar encerra a flexibilidade que permite modific-la a partir da resposta do educando no processo de ensino.

    26

  • A concepo de que todos somos iguais em dignidade decorre de uma verdadeira

    revoluo no pensamento da humanidade 64. Essa dignidade reconhecida em KANT pela

    distino de que o ser humano nico e insubstituvel, cuja existncia um valor absoluto,

    um fim em si mesmo, reconhece no ser humano a liberdade como fonte de vida tica,

    sendo o ser humano o nico ser dotado de vontade, de preferncias valorativas, de

    autonomia, de auto conscincia, depende assim da efetiva possibilidade do exerccio de

    sua autonomia pelo ser humano. Exerccio esse que depende de uma capacitao para o

    pensar, o poder identificar efetivas opes de escolha e realizar aquela que melhor lhe

    aprea.

    Precisamos bem delinear o conceito de educao que pretendemos para poder identificar

    no sistema de ensino o caminho por uma melhor educao institucionalizada.

    Educar capacitar o homem a exercer seu papel de sujeito da histria, por meio da

    sua apreenso da cultura existente em suas diversas facetas; e no prepar-lo para o

    trabalho ou para ganhar dinheiro.

    Educar transformar a personalidade, do educador e do educando, na medida em

    que o processo pedaggico dialgico permite que ambos construam o conhecimento

    segundo suas prprias caractersticas e necessidades de aprendizagem; e no a mera

    transmisso de contedo.

    Educar se preocupar com a construo de um sujeito, que s se educa como sujeito e

    segundo sua vontade, como um ser atuante capaz de dialogar com o educador e

    estabelecer, com ele, a prtica do aprendizado; e no a imposio arbitrria de contedo

    independentemente da subjetividade do educando.

    Ao traarmos esses elementos da educao, podemos atentar para a realidade de nosso

    sistema de ensino e identificar a raiz de seus problemas.

    64 No h na historia da humanidade precedentes do reconhecimento da igual dignidade entre os seres humanos; historicamente, verificamos processos de submisso de gnero, grupos sociais, etnias, etc. A submisso das mulheres ao gnero masculino e sua posio de inferioridade uma barreira muito recentemente rompida, remontando segunda metade do sculo XXI; situao semelhante ocorrida com relao coisificao de homens em razo de sua origem ou etnia por meio da escravido.

    27

  • 2.5. Conseqncias da adoo da concepo comum de educao: evaso escolar,

    elevados ndices de repetncia, baixo grau de aprendizado

    Tradicionalmente nosso sistema de ensino se desenvolve segundo o modelo comum de

    educao: aquele que foca no contedo a ser transmitido do educador, detentor do

    conhecimento, para o educando, seu depositrio, e que no se preocupa com as

    personagens envolvidas no processo educacional.

    Segundo uma metodologia em que educador e educando se relacionam conforme uma

    forma autoritria ou coercitiva de poder, caracterizado pela existncia de conflito de

    vontade entre as partes e a imposio de um comportamento por aquela detentora do poder

    em detrimento da autonomia daquele que a ele se submete, o educando figura de forma

    passiva no processo educativo, devendo apreender aquilo que lhe destinado,

    independentemente de sua vontade e de seu interesse.

    Sendo o verdadeiro interesse o sinal de que algum material, objeto, habilidade, ou o que

    quer que seja, est sendo apreciado de acordo com o que atualmente concorra para a

    marcha progressiva de uma ao, com a qual a pessoa se tenha identificado. Interesse

    verdadeiro, em suma, significa que uma pessoa se identificou consigo mesma, ou que se

    encontrou a si mesma, no curso de uma ao. E da se identificou com o objeto, ou a forma

    de agir necessria prossecuo feliz de sua atividade pois em qualquer atividade em

    que o ser humano se empenhe com interesse h sempre uma expanso de impulsos e

    tendncias, por certo perodo de tempo, de que resulta algum crescimento 65.

    Uma metodologia educacional que no observa o interesse do educando se consubstancia

    em um afronte prpria natureza humana que tende, entretanto, a se deixar guiar pelo

    agradvel de preferncia ao desagradvel 66, acabando por provocar seu no empenho e a

    limitao de seu crescimento.

    65 DEWEY, John. Vida e educao, p. 85.66 DEWEY, John. Vida e educao, p. 60.

    28

  • Nesse processo, no h o desenvolvimento do conhecimento pelos sujeitos. No h

    participao do educando na construo da educao. Sendo o contedo depositado em

    detrimento de sua vontade, o educando por vezes o destinatrio de contedos que no se

    adquam sua realidade, s suas necessidades concretas para sua formao como sujeito

    da histria 67.

    Essa imposio acaba por provocar o desinteresse do educando no processo de

    aprendizagem. Desinteresse esse que se manifesta, especialmente, nos altos ndices de

    evaso e de repetncia escolar, e no baixo grau de aprendizado por parte dos alunos que

    apesar da manifesta abnegao acabam por concluir os ciclos de ensino.

    2.5.1. Papel do professor

    O fracasso do sistema educacional , como regra, dedicado ao educando sob o argumento

    de que sendo o papel da escola e do educador desempenhado mediante a transmisso de

    todo o contedo, sua no assimilao decorre de uma inaptido do educando que no

    aprende por que seu contexto desfavorvel ou porque ele prprio possui algum problema.

    Todavia, o ser humano nasce desprovido de qualquer bagagem, diferencia-se pela

    aquisio desta no curso de sua vida pelo processo educacional, realizado fora e dentro da

    escola.

    Nesse sentido, DEWEY concebe o processo educativo como a adequada interao de um

    ser imaturo e no envolvido, a criana (...) e de certos fins e valores sociais representados

    pela experincia amadurecida do adulto, sendo que uma relao tendente a tornar fcil,

    livre e completa essa interao, a essncia da teoria educativa .68

    67 Observada a natureza histrica do homem (elemento que o diferencia do animal), FREIRE nos esclarece a necessidade de uma educao voltada realidade do homem com objeto em ser universo temtico ou conjunto e temas geradores como forma de investigar o pensamento linguagem referido realidade, os nveis de percepo desta realidade, a sua viso de mundo, em que se encontram envolvidos em seus temas geradores. Assim, na realidade mediatizadora, na conscincia que dela tenhamos, educador e povo, que iremos buscar o contedo programtico da educao. (Pedagogia do oprimido, p. 87)68 DEWEY, John. Vida e educao, p. 42.

    29

  • O educador a figura mediadora do processo de construo da bagagem cultural, do

    conhecimento capaz de humanizar o educando. Como tal, tem a funo indispensvel

    de instigar a vontade do aprendizado e de instru-lo em sua conquista. Razo pela

    qual, acaba por participar dessa construo. Sua tarefa a de conduzir uma experincia

    viva e pessoal. Portanto, o que lhe importa, como mestre, so os modos por que a matria

    se tornou uma parte daquela experincia; o processo por que esses elementos podem ser

    aproveitados; o modo como seu prprio conhecimento da matria possa assisti-lo na

    interpretao dos desejos e atividades infantis, e, por fim, a descoberta do meio em que a

    criana deve ser colocada para que seu crescimento venha a ser devidamente orientado 69.

    Sendo o educador indiferente a essa construo, assumindo para tanto o papel de

    mero transmissor de contedo, despreocupado com a construo do ser humano, no

    pode ele eximir-se de sua responsabilidade pelo fracasso do processo educativo.

    Nesse sentido, OLIVEIRA nos alerta para a regularizao do fluxo em detrimento da

    qualidade de ensino, um dos tradicionais mecanismos de excluso da escola, reprovao

    seguido de evaso, est sendo minimizado. Esse processo coloca o sistema escolar, talvez

    pela primeira vez em nossa histria educacional ante o desafio de assumir a

    responsabilidade pelo aprendizado de todas as crianas e jovens, responsabilizando-se por

    seu sucesso ou fracasso. A estratgia de culpabilizao da vtima perde fora 70.

    Pois bem, a principal funo do educador despertar no educando o interesse pelo

    aprendizado, o educar depende de o educando revelar-se um ser de vontade; se o educando

    no aprende, no por culpa sua, mas sim porque aquele ensino ministrado no o foi de

    forma suficiente, ou adequada. 71

    Como bem nos ilustra Vitor PARRO, se o educando no sabe, provavelmente a culpa no

    sua. Pode haver muitos problemas, inclusive externos escola, mas no culpa da

    criana; se no houver aprendizado, no houve ensino. Conhecimento e informaes

    qualquer computador tem, e no precisa de uma relao pedaggica para isso. Se queremos

    69 DEWEY, John. Vida e educao, p. 56.70 Da universalizao do ensino fundamental ao desafio da qualidade: uma analise histrica, p.676.71 Dizer a escola boa, mas a criana no aprendeu porque no quis o mesmo que dizer que a cirurgia foi um sucesso mas o paciente morreu. PARRO, Vtor Henrique. Educao como exerccio do poder, p. 86. DEWEY, John. Vida e educao, p. 61.

    30

  • levantar a bandeira da dignidade e da importncia da educao, no podemos aceitar que

    educadores desempenhem papel de computador. Os educadores devem fazer o seu papel de

    um ser humano que propicia condio de sujeito aos educandos, para que estes se faam

    sujeitos e aprendam. Essa a condio educativa. 72

    Pois ao educador cabe trabalhar para que asa condies sejam tais que a criana por sua

    prpria atividade, se oriente inevitavelmente naquela direo, para o seu pleno

    desenvolvimento. Que a criana cumpra seu destino tal qual revelado nos tesouros da

    cincia, da arte e da indstria, ora existentes no mundo 73

    O papel do professor ultrapassa a mera transferncia de contedo; educar mais do

    que isso corresponde a um passar os conhecimentos e as informaes de forma que o

    educando os assimile; que se faa sujeito e por isso aprenda 74. O processo pedaggico

    corresponde a um ato de democracia na medida em que os sujeitos devem dialogar e que

    h o risco de que o educador no convena o educando, ou mesmo que este o convena do

    contrrio. O papel do estudante deve ser ativo.

    Todavia, nossa realidade nos mostra ainda a no aplicao dessa educao democrtica

    pelo educador, razo pela qual nossos educandos, desinteressados pelo aprendizado,

    colocados margem do processo de construo do conhecimento, em que pese o elevado

    ndice de atendimento pela rede pblica de ensino fundamental (quase alcana a

    totalidade), no progridem de forma eficaz em sua educao, provocando elevados ndices

    de defasagem entre idade e srie bem como de evaso escolar.

    A indiferena do educador quanto s necessidades concretas do educando em seu processo

    de aprendizado, mediante o exerccio de uma educao bancria que no considera o

    educando um sujeito do processo educativo acaba por provocar a exacerbao da gravidade

    desses problemas.

    72 PARRO, Vtor Henrique. Educao como exerccio do poder, p. 87. 73 74 Em Emlio, ROUSSEAU descreve a necessidade da construo do conhecimento pelo educando que nada deve saber por que lhe disseste o educador, e sim por que o compreende sozinho. Que ele nos e avizinhe cincia, que a invente. Se jamais substituirdes em seu esprito a autoridade razo, ele no raciocinar mais; no ser mais do que joguete da opinio dos outros. (p. 175).

    31

  • Assim, para que o processo educativo se consolide nos moldes de uma educao

    democrtica, preocupada com a formao do educando como um cidado ativo e

    participante da construo de sua histria, a postura do educador precisa ser

    modificada.

    No que diz respeito ao processo de alfabetizao, porta de entrada para a apreenso da

    cultura pelos educandos e elemento necessrio e indispensvel a sua contextualizao,

    devem ser levados em conta as concretas necessidades do educando, necessidades

    essas decorrentes da realidade de seu meio.

    Essa considerao fundamental para que se estabelea entre educador e educandos

    um dilogo democrtico construtivo do conhecimento.

    CAPTULO III. DO DIREITO EDUCAO

    32

  • 3.1. Histrico do direito educao

    A importncia da educao para o processo de humanizao, de conscincia da natureza

    humana de ser da prxis, nos remonta Antiguidade Clssica, aos ensinamentos de Plato.

    Entretanto, o reconhecimento da educao como um direito se efetivou a partir do

    nascimento do Estado de Direito como resultado das revolues burguesas do sculo

    XVIII; momento em que se iniciou um processo de positivao como forma de limitar o

    exerccio do Poder pelos governantes e garantir o exerccio das liberdades pelos cidados 75.

    A partir da Revoluo Francesa, os ideais de igualdade e liberdade passaram a permear

    imaginrio do mundo moderno como fundamentos de todo sistema de legislao. Ideais

    estes que compem o sentido crtico de educao: tornar o educando uma pessoa livre e

    consciente de sua condio de igualdade com todas as outras 76.

    Essa educao, que possibilita o desenvolvimento humano em todas suas qualidades,

    tornando-o senhor de sua histria, demonstra-se essencial para a formao de uma

    sociedade mais justa e igualitria, e indispensvel para legitimao da soberania

    popular. O povo soberano, ativo e consciente, a prpria legitimao da ordem

    poltica 77.

    75 O Estado Moderno surge em oposio aos Estados Absolutistas da Idade Mdia, caracterstico pela concentrao do Poder nas mos de um Soberano que o detm por providncia Divina e que pela sua origem impe-se a todos os homens. Fundamento Divino esse retratado no captulo 13 da Epstola dos Romanos nos seguintes termos: Todo homem se submete s autoridades constitudas, pois no h autoridade que no venha de Deus, e as que existem foram estabelecidas por Deus. De modo que aquele que se revolta contra a autoridade ope-se ordem estabelecida por Deus. E os que se opem atrairo sobre si a condenao (in COMPARATO, Fbio Konder. tica: direito, moral e religio no mundo moderno, p. 79)76 COMPARATO, Fbio Konder. tica..., p. 243. Esse o sentido da educao estabelecido por ROUSSEAU em Emlio. Toda ao humana resulta de uma vontade, determinada por sua faculdade inteligente, seu poder de julgar por que o princpio de toda ao est na vontade de um ser livre (...) e no h verdadeira vontade sem liberdade. Ao reconhecer a igualdade dos homens em todas as situaes, estabelece a necessidade de ensinar vosso aluno a amar todos os homens, inclusive os que os desdenham; fazei com que ele no se coloque em nenhuma classe, mas que se encontre em todas; falai diante dele, e com ternura, do gnero humano, com piedade at, mas nunca com desprezo, pois h no estado natural uma igualdade de fato real e indestrutvel, porque impossvel nesse estado que a nica diferena de homem para homem seja bastante grande para tornar um diferente do outro. (pp. 318, 249 e 262) 77 COMPARATO, Fbio Konder. tica..., p. 230.

    33

  • 3.2. Educao no Estado Democrtico de direito

    Identificamos na democracia a caracterstica fundamental desse Estado Moderno cuja

    soberania pertencente a todos os cidados; responsveis, ainda que indiretamente, por

    todas as decises tomadas coletivamente 78.

    O Estado brasileiro se constitui, segundo estabelecido em nossa Constituio Federal, em

    um Estado Democrtico 79, compondo a democracia um dos fundamentos do Estado.

    Segundo o modelo de um Estado Democrtico de Direito adotado, temos o reconhecimento

    de uma conciliao do Estado Social com as novas exigncias para a garantia dos direitos

    fundamentais e sociais (...), passando a garantir o mnimo existencial 80 em seu contorno

    mximo 81.

    Assim, cabe ao Estado intervir na sociedade para melhor assegurar a existncia social,

    obrigando intervenes de carter econmico e social tendentes a atingir a igualdade,

    mediante uma conciliao dos limites do poder estatal com as exigncias da sociedade e da

    democracia 82.

    78 Nos recordam, Bobbio e Comparato, as condies de autonomia em que vivem os cidados, que, segundo Kant, tm o direito de obedecer apenas s leis de que eles mesmos sejam legislador. BOBBIO, A era dos direitos... COMPARATO, Fbio Konder. A afirmao histrica dos direitos humanos.79 Art. 1: A Repblica Federativa do Brasil, formada pela unio indissolvel dos Estados e Municpios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrtico de Direito e tem como fundamentos:80 O mnimo existencial corresponde s necessidades bsicas que integram o princpio da liberdade, e por isso so fundamentos constitucionais e no se confundem com as questes de justia bsica. Seu fundamento, por conseguinte, est nas condies para o exerccio da liberdade; sem o mnimo necessrio existncia cessam as condies iniciais para a liberdade. Por exemplo, a liberdade de expresso s se afirma se as pessoas souberem ler e escrever, donde se conclui que o ensino da leitura e da escrita mnimo existencial (TORRES, Ricardo Lobo. A metamorfose dos direitos sociais em mnimo existencial, pp. 3/6). Nessa linha de raciocnio, a educao fundamental inequivocamente constitui um mnimo existencial se observarmos os requisitos necessrios ao exerccio da democracia e da cidadania, que pressupem uma atuao consciente do homem.81 TORRES, Ricardo Lobo. A metamorfose dos direitos sociais em mnimo existencial, pp. 24 a 27.82 No Estado Social, os referentes da Constituio so o Estado e a Sociedade _ diferentemente do Estado Liberal que foca apenas no Estado e se caracteriza pelo Estado mnimo que tem por objetivo neutralizar e limitar o poder, caracterizando-se pela observncia dos princpios (i) do compromisso conformador, (ii) da democratizao da sociedade e (iii) do Estado de Direito Formal. Essa constituio, social-democrtica, tem como objetivo conciliar as exigncias sociais com os limites do poder estatal. (PALU, Oswaldo Luiz. Controle de Constitucionalidade: conceitos, sistemas e efeitos, p.31).

    34

  • Originalmente, pode-se dizer que o conceito de democracia nos remetia a um governo do

    povo. Hoje, alguns distintos significados so atribudos a esse instituto.

    BENEVIDES conceitua democracia como o regime poltico da soberania popular e do

    respeito integral dos direitos humanos, o que inclui o reconhecimento, proteo e

    promoo 83. Assim, do ponto de vista de seu contedo, a democracia constitui um

    instrumento de afirmao da liberdade e dos direitos fundamentais 84.

    Segundo o modelo democrtico de organizao poltica, pretende-se uma participao dos

    indivduos nos bens sociais, segundo a perspectiva da forma democrtica adotada. 85 Alm

    das perspectivas de igualdade diante da lei e de igualdade de participao poltica, um

    Estado democrtico deve garantir igualdade de condies scio-econmicas bsicas

    suficientes garantia da dignidade da pessoa humana. 86

    A composio do Estado se concretiza pela comunho de seus cidados, de forma que sua

    atuao deve se guiar pelos interesses socialmente determinados no seio dessa sociedade.

    Panoramas social, econmico, cultural, tecnolgico, entre outros, so determinantes

    concretizao da conscincia estabelecida numa sociedade historicamente definida na qual

    podemos identificar o estabelecimento progressivo de novos valores.

    Esses valores pautam a elaborao e a vigncia das normas integrantes do ordenamento

    jurdico correspondente 87. Como bem nos descreve BENEVIDES, direitos so condies

    para a realizao de valores ltimos e tm no apelo a esses valores o seu fundamento 88.

    83 BENEVIDES, Maria Victria de Mesquita. Cidadania. Direitos Humanos e Democracia, p. 115.84 TORRES, Ricardo Lobo. A metamorfose dos direitos sociais em mnimo existencial, p.18. 85 Para TORRES, a democracia pode assumir a forma de: (i) social democracia _ cujo processo poltico deve levar plena afirmao dos direitos sociais, que passam a ser prioritrios no contexto dos direitos; ou de (ii) democracia social _ se prope a abrir o caminho poltico para a afirmao dos direitos sociais, que se harmonizam com o mnimo existencial; ou, segundo sua funcionalidade, (a) democracia participativa _ fundada na cidadania ativa, procura a afirmao dos direitos sociais; (b) democracia deliberativa _ visa estabelecer pelo discurso entre os membros da sociedade, o consenso sobre a distribuio dos bens. Pode-se observar que independentemente da forma democrtica adotada, prevalece a busca pela participao de todos nos bens sociais. (TORRES, Ricardo Lobo. A metamorfose dos direitos sociais em mnimo existencial, pp.18 a 20).86 BENEVIDES, Maria Victria de Mesquita. Cidadania. Direitos Humanos e Democracia, p. 130.87 Esclarece Celso LAFER, ser o ordenamento jurdico uma entidade unitria que conserva sua identidade apesar das mudanas das normas que o compem. (A reconstruo dos direitos humanos: um dilogo com o pensamento de Hannah Arendt, p. 52.)88 SOARES, Maria Victria de Mesquita Benevides, Cidadania e Direitos Humanos.

    35

  • A dignidade da pessoa humana 89 representa o valor essencial do Estado moderno no

    seio do qual seu respeito deve ser garantido, mediante o reconhecimento de direitos

    capazes de promov-la 90. Sintetiza, portanto, em si, todos os direitos fundamentais.

    A elevao da educao a um direito consubstanciou-se no reconhecimento de sua

    importncia para a promoo da dignidade da pessoa humana 91, em especial pela sua

    imprescindibilidade para o consciente exerccio da cidadania 92. Seu reconhecimento no

    resulta em mera positivao, mas essencialmente em sua exigibilidade por qualquer

    indivduo que por ela, pode expandir sem limites a capacidade universal humana de

    participar, de forma ativa e inteligente, da produo econmica e da gesto poltica, e de

    pensar e sentir na dimenso filosfica e artstica 93.

    A educao observada como um eficaz instrumento para a construo da dignidade, pois

    o reconhecimento da dignidade da pessoa humana operao que necessita de

    conscincia viva e plena, sintonizada com o ambiente vital e com a sociedade. E a maneira

    mais segura de garantir essa conscincia o investimento, pessoal e social, na educao 94.

    89 dignidade a qualidade prpria da espcie humana que confere a todos e a cada um o direito realizao plena como ser em permanente inacabamento, proteo de sua integridade fsica e psquica, ao respeito a suas singularidades, ao respeito a certos bens e valores, em qualquer circunstncia, mesmo quando no reconhecidos em leis ou tratados, SOARES, Maria Victria de Mesquita Benevides, in SCHILLING, Flvia (org) Direitos Humanos e Educao: outras palavras, outras prticas, p. 1290 A Constituio da Repblica Federativa do Brasil de 1988 reconhece em seu artigo 1, III, a dignidade da pessoa humana como um de seus princpios fundamentais. Em seu prembulo esclarece que o Estado Brasileiro tem como objetivo assegurar o exerccio dos direito sociais e individuais, a liberdade (...) , o desenvolvimento.91 Como discutido anteriormente, o ncleo do processo educativo a natureza histrica do homem, consubstanciando-se a educao num instrumento pelo qual se capacita o homem a organizar seu pensamento e se tornar apto a exercer seu papel de sujeito da histria. Todo homem livre e nico em sua dignidade, educ-lo importa em educ-lo para essa liberdade, para um agir consciente dobre o mundo.92 BENEVIDES reconhece como direitos de cidadania todos aqueles individuais, polticos e sociais, econmicos e culturais estabelecidos pela Ordem Jurdica de um determinado Estado. Entretanto, no tocante a uma cidadania democrtica, no se restringe ao mero reconhecimento da existncia desses direitos (em especial, do direito a ter direitos assinalado por Hanna Arendt), no prescinde de sua efetiva garantia e da participao ativa dos cidados nos processos decisrios da esfera pblica. E para o exerccio de uma verdadeira participao, preciso que seja colocado diante de reais opes e que seja capaz de conscientemente decidir dentre elas, o que se faz possvel apenas quando consciente de sua realidade e de seu papel de sujeito da histria. (Cidadania, Direitos Humanos e Democracia, pp. 118/9).93 Utopias revolucionrias e educao pblica: rumos para uma nova cidade tica. PIOZZI, Patrcia, p. 722.94 ALVIN, Mrcia Cristina de Souza. A educao e a dignidade da pessoa humana, p. 183.

    36

  • Assim, o ensino assume um papel primordial na construo de um espao pblico no qual

    o voto esclarecido e a participao autnoma e criteriosa dos cidados comuns na

    administrao garantam a boa vida comum, impedindo que os recursos tericos dos

    demagogos e as habilidades executivas dos competentes sejam novas fontes de

    institucionalizao e planejamento do domnio 95.

    O direito educao , nessa medida, compreendido como corolrio do direito

    dignidade da pessoa humana, no que diz respeito ao livre e pleno desenvolvimento de sua

    autonomia, com os meios que propiciaro a busca do conhecimento indispensvel ao seu

    crescimento pessoal, possibilitando a sua efetiva interao com a comunidade como um ser

    pensante e atuante 96.

    Seu reconhecimento se deu paralelamente em diversos textos internacionais e nas

    diversas Constituies dos Estados Modernos, observado um processo de ampliao do

    bloco de constitucionalidade a partir da incorporao dos direitos fundamentais, num

    processo de internacionalizao dos direitos humanos e de constitucionalizao do Direito

    Internacional 97.

    Por direito educao podemos identificar o direito de acesso prestao educacional

    oferecida pelo Estado, e de sua responsabilidade seja via manuteno direta ou fiscalizao

    de estabelecimentos escolares.

    3.3. Reconhecimento do Direito Educao pelo Direito Internacional

    Em que pese a Declarao dos Direitos do Homem e do Cidado, de 1789, no trate da

    educao, a Constituio Francesa de 1791, de inspirao direta na Declarao, previa

    um estabelecimento geral de socorros pblicos para educar crianas abandonas, assim

    como uma instruo pblica comum a todos os cidados, gratuita no que respeita s

    partes do ensino indispensvel para todos os homens.

    95 Utopias revolucionrias e educao pblica: rumos para uma nova cidade tica. PIOZZI, Patrcia, p. 722.96 PORT, Otvio Henrique Martins. Os direitos sociais e econmicos, p. 116. 97 GARCIA, Maria. Limites da Cincia: a dignidade da pessoa humana: a tica da responsabilidade, pp. 315 a 319.

    37

  • J no sculo XX, a Constituio Mexicana de 1917, primeiro texto constitucional em que

    se consagraram os chamados direitos sociais, previu de forma detalhada a obrigatoriedade

    e a gratuidade da educao primria 98. Todavia, apenas em 1936, no texto da Constituio

    russa, pode-se falar no reconhecimento de um direito educao 99.

    O Direito Educao Fundamental parcela essencial do Direito Educao, reconhecido

    segundo a Teoria dos Direitos Humanos como um Direito Social, ou direito humano de

    Segunda Gerao 100.

    98 ARTICULO 3 - La educacin que imparte el Estado - Federacin, Estados, Municipios -, tender a desarrollar armnicamente todas las facultades del ser humano y fomentar en l, a la vez el amor a la patria y la conciencia de la solidaridad internacional, en la independencia y en la justicia: I. a. Ser democrtica, considerando a la democracia no solamente como una estructura jurdica y un rgimen poltico, sino como un sistema de vida fundado en el constante mejoramiento econmico, social y cultural del pueblo; c. Contribuir a la mejor convivencia humana, tanto por los elementos que aporte a fin de robustecer en el educando, junto con el aprecio para la dignidad de la persona y la integridad de la familia, la conviccin del inters general de la sociedad, cuanto por el cuidado que ponga en sustentar los ideales de fraternidad e igualdad de los derechos de todos los hombres, evitando los privilegios de razas, sectas, de grupos, de sexos o de individuos; VI. La educacin primaria ser obligatoria; VII. Toda la educacin que el Estado imparta ser gratuita; 99 Captulo Cinco, 17. Para a finalidade de garantir aos trabalhadores o acesso ao conhecimento verdadeiro, a Federao Russa Socialista Sovitica Repblica conjuntos si a tarefa de fornecer plena e geral educao gratuita para os trabalhadores e os camponeses pobres. 100 Cabe-nos lembrar que a Teoria dos Direitos Humanos reconhece na Dignidade da Pessoa Humana, compreendida como a qualidade prpria da espcie humana que confere a todos e a cada um o direito realizao plena como ser em permanente inacabamento, proteo de sua integridade fsica e psquica, ao respeito a suas singularidades, ao respeito a certos bens e valores, em qualquer circunstncia (SCHILLING, Flvia (org) Direitos Humanos e Educao: outras palavras, outras prticas, p. 12), o valor essencial do Estado moderno no seio do qual seu respeito deve ser garantido, mediante o reconhecimento de direitos capazes de promov-la.Os direitos humanos protegem valores formadores da dignidade da pessoa humana, historicamente reconhecidos. Guardam em si, alm dessa qualidade histrica, cujo reconhecimento resulta do processo de reivindicaes por novas liberdades em oposio a velhos poderes, caractersticas de naturalidade e universalidade. Todos os homens so seus detentores em decorrncia de sua qualidade de ser humano, e seu reconhecimento abrange a pessoa humana em sua universalidade independentemente da sociedade de que seja membro _ exigibilidade, respeitabilidade e garantia so universais.O reconhecimento dos direitos humanos em espcie tem uma efetivao gradual e contnua, e, por uma razo pedaggica, fora classificado em distintas dimenses, ou distintas geraes, em razo da qualidade do bem maior que visam proteger.As Liberdades Pblicas, direitos de primeira gerao, correspondem proteo do indivduo contra uma atuao abusiva do Estado. Tem como caracterstica a imposio de comportamentos omissivos aos Estados que devem abster-se de determinadas prticas de forma a preservar as liberdades civis dos indivduos _ liberdade de expresso, de locomoo.A segunda gerao de direitos humanos ultrapassa o carter individualista da primeira gerao, as Liberdades Polticas e Sociais observam o indivduo como membro de grupos sociais. Essa perspectiva de proteo do ser humano enseja a realizao de polticas pblicas que objetivem promoo da igualdade entre os indivduos. Observa-se a necessidade de uma postura ativa do Estado, pois a promoo da dignidade da pessoa humana no depende to somente da liberdade desse indivduo, apregoada pela primeira gerao, mas tambm de sua proteo pelo Estado capaz de promover a melhoria de condies sociais cuja realizao implica em uma reduo das desigualdades sociais. So exemplos de direitos sociais a proteo da instruo contra o analfabetismo (educao), a assistncia para a invalidez e a velhice e as protees em favor do trabalhador nas relaes de trabalho.

    38

  • 3.3.1. Direito educao no sistema global de direito humanos

    Seu reconhecimento no plano internacional se deu em especial a partir da dcada de 40 do

    sculo passado, no contexto do ps Segunda Guerra Mundial, mediante a atuao da

    Organizao das Naes Unidas (ONU), como entidade representativa da quase absoluta

    maioria dos Estados independentes do mundo contemporneo, no processo de proteo e

    de regulamentao dos Direito Humanos.

    Em 1948, a organizao consagrou um consenso acerca dos direitos de valor universal,

    destinados a todas as pessoas independentemente de sua origem, sexo, idade ou religio ou

    qualquer outra qualidade particular, por meio da Declarao Universal dos Direitos

    Humanos.

    Observadas as caractersticas da liberdade no exerccio de sua vida particular e no governo

    de seu pas, a Declarao reconhece a fundamentalidade do direito educao que

    deve ser promovida no sentido de proporcionar o pleno desenvolvimento da

    personalidade humana mediante a imposio de sua universalidade e sua

    obrigatoriedade e gratuidade ao menos em seus graus elementares 101.

    Nesse contexto, regulamentou-se o sistema educacional brasileiro pela primeira Lei de

    Diretrizes e Bases da Educao Nacional, texto que inaugurou a nova fase do tratamento

    direcionado educao pela legislao brasileira, em 1961 102.A terceira gerao de direitos humanos representa a transposio do indivduo, ainda que considerado como membro de um grupo ou classe da sociedade. As liberdades coletivas, ou Direitos de Solidariedade, ensejam a proteo da humanidade amplamente considerada contra os danos resultantes das prprias relaes humanas, nesse sentido, alcanando a proteo do meio ambiente e do mercado consumidor.Hoje, j consolidado o reconhecimento de uma quarta gerao de Direitos Humanos, englobando direitos de preservao da prpria espcie humana, como a proteo do Patrimnio Gentico humano.101 Art. XXVI 1. Toda pessoa tem direito instruo. A instruo ser gratuita, pelo menos nos graus elementares e fundamentais. A instruo elementar ser obrigatria. A instruo tcnico-profissional ser acessvel a todos, bem como a instruo superior, esta baseada no mrito. 2. A instruo ser orientada no sentido do pleno desenvolvimento da personalidade humana e do fortalecimento do respeito pelos direitos humanos e pelas liberdades fundamentais. A instruo promover a compreenso, a tolerncia e a amizade entre todas as naes e grupos raciais ou religiosos, e coadjuvar as atividades das Naes Unidas em prol da manuteno da paz. 3. Os pais tm prioridade de direito na escolha do gnero de instruo que ser ministrada a seus filhos. (g.n.)102 Conhecida como Lei 4024/61, a nossa primeira LDB garantiu igualdade de tratamento por parte do Poder Pblico para os estabelecimentos oficiais e particulares, o que garantia que as