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Direito e História: Genny Gleiser, o anti- semitismo na era Vargas e o Habeas Corpus nº 25906/1935. Um estudo de caso Texto extraído do Jus Navigandi http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=10474 Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy Professor universitário em Brasília (DF). Pós-doutor pela Universidade de Boston. Doutor e mestre em Direito pela PUC/SP. Procurador da Fazenda Nacional Sumário: 1) Introdução. 2) A Inicial do Habeas Corpus 25906/1935. 3) A Imprensa e as Primeiras Repercussões. 4) O Reforço do Pedido Inicial. 5) O Papel de Assis Chateaubriand. 6) As Informações do Ministro da Justiça. 7) O Julgamento no Supremo Tribunal Federal.8) Conclusões. Bibliografia 1) Introdução O presente ensaio pretende resgatar e polemizar habeas corpus impetrado em favor de Genny Gleiser, judia de origem romena, acusada de ligações com o comunismo, fatos que se desdobraram em meados da década de 1930. A história de Genny Gleiser me instigou quando eu lia um daqueles livros que marcam, e que parecem que foram escritos para mudar a vida das pessoas. Eu lia Maria Luiza Tucci Carneiro, O Anti-Semitismo na Era Vargas, e me impressionava com revelações impressionantes, fartamente documentadas, relativas ao anti- semitismo durante a ditadura de Getúlio Vargas. Eu pesquisava documentos e textos de Francisco Campos, eminência parda do Estado Novo, jurista oficial do regime, e tudo que se relacionava com aquele momento não me parecia estranho. Além disso, Maria Luiza desconstruía mitos dos bastidores do Estado Novo, alguns ligados ao integralismo, outros não, o que para um professor de direito propiciava manancial interessante para a problematização de nossas verdades normativas. Maria Luiza, questionava os papéis de Oswaldo Aranha, de algumas figuras do Itamaraty (que se pronunciavam sobre a nocividade da emigração judaica), bem como denunciava a função do jornal Acção, dirigido pelos integralistas, e que veiculava mensagens anti-semitas. O que, por outro lado, não era novidade, dada tradição que revela certo eugenismo em autores como Oliveira Vianna, Alberto Torres, Sílvio Romero, Euclides da Cunha e Nina Rodrigues, todos pranteados pela historiografia clássica que se tem entre nós. Além disso, Genny Gleiser havia sido formalmente acusada de ligações com o partido comunista, o que convergia para a pesquisa que eu desenvolvia. Genny Gleiser, judia, romena e comunista, jovem de 17 anos, havia sido presa, mal tratada e deportada pela ditadura Vargas, com aval das autoridades judiciárias, em 1935. Segundo Maria Luiza Tucci Carneiro, "(...) Gleiser teve seu trajeto interrompido ao ser resgatada na França, numa ação fantástica, pelos membros do Partido Comunista Francês" (CARNEIRO, 2001, p. 72). Os fatos remetiam a Olga Benário, então companheira de Prestes, também judia e comunista, alemã, que perdeu a vida em campo de concentração, tema de outro ensaio que redigi. O assunto me instigava. Que fazer? Tentei repassar literatura sobre a prisão de Genny, mas, ao que me consta, e até onde pude alcançar, não havia nada específico. Porém, o nome Gleiser me levava a Berta,

Direito e História: Genny Gleiser, o anti- semitismo na ... · a vaga acusação de ‘subversão’, o governo de Vargas decidira deportar uma garota de 17 anos, Genny Gleizer,

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Direito e História: Genny Gleiser, o anti-semitismo na era Vargas e o Habeas Corpus nº25906/1935. Um estudo de caso

Texto extraído do Jus Navigandihttp://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=10474

Arnaldo Sampaio de Moraes GodoyProfessor universitário em Brasília (DF). Pós-doutor pela Universidade de Boston. Doutor e mestre em Direito pelaPUC/SP. Procurador da Fazenda Nacional

Sumário: 1) Introdução. 2) A Inicial do Habeas Corpus 25906/1935. 3) A Imprensa e asPrimeiras Repercussões. 4) O Reforço do Pedido Inicial. 5) O Papel de Assis Chateaubriand.6) As Informações do Ministro da Justiça. 7) O Julgamento no Supremo Tribunal Federal.8)Conclusões. Bibliografia

1) Introdução

O presente ensaio pretende resgatar e polemizar habeas corpus impetrado em favor deGenny Gleiser, judia de origem romena, acusada de ligações com o comunismo, fatos que sedesdobraram em meados da década de 1930. A história de Genny Gleiser me instigou quandoeu lia um daqueles livros que marcam, e que parecem que foram escritos para mudar a vidadas pessoas. Eu lia Maria Luiza Tucci Carneiro, O Anti-Semitismo na Era Vargas, e meimpressionava com revelações impressionantes, fartamente documentadas, relativas ao anti-semitismo durante a ditadura de Getúlio Vargas. Eu pesquisava documentos e textos deFrancisco Campos, eminência parda do Estado Novo, jurista oficial do regime, e tudo que serelacionava com aquele momento não me parecia estranho. Além disso, Maria Luizadesconstruía mitos dos bastidores do Estado Novo, alguns ligados ao integralismo, outros não,o que para um professor de direito propiciava manancial interessante para a problematizaçãode nossas verdades normativas.

Maria Luiza, questionava os papéis de Oswaldo Aranha, de algumas figuras doItamaraty (que se pronunciavam sobre a nocividade da emigração judaica), bem comodenunciava a função do jornal Acção, dirigido pelos integralistas, e que veiculava mensagensanti-semitas. O que, por outro lado, não era novidade, dada tradição que revela certoeugenismo em autores como Oliveira Vianna, Alberto Torres, Sílvio Romero, Euclides daCunha e Nina Rodrigues, todos pranteados pela historiografia clássica que se tem entre nós.Além disso, Genny Gleiser havia sido formalmente acusada de ligações com o partidocomunista, o que convergia para a pesquisa que eu desenvolvia.

Genny Gleiser, judia, romena e comunista, jovem de 17 anos, havia sido presa, maltratada e deportada pela ditadura Vargas, com aval das autoridades judiciárias, em 1935.Segundo Maria Luiza Tucci Carneiro, "(...) Gleiser teve seu trajeto interrompido ao serresgatada na França, numa ação fantástica, pelos membros do Partido Comunista Francês"(CARNEIRO, 2001, p. 72). Os fatos remetiam a Olga Benário, então companheira de Prestes,também judia e comunista, alemã, que perdeu a vida em campo de concentração, tema deoutro ensaio que redigi. O assunto me instigava. Que fazer?

Tentei repassar literatura sobre a prisão de Genny, mas, ao que me consta, e até ondepude alcançar, não havia nada específico. Porém, o nome Gleiser me levava a Berta,

pude alcançar, não havia nada específico. Porém, o nome Gleiser me levava a Berta,antropóloga que fora casada com Darcy Ribeiro [01], misto de antropólogo, literato, político,filósofo e sociólogo que sempre admirei, e que sempre li. Nas Confissões de Darcy há apenasduas referências a Genny, sua cunhada, que ele grafou com J, escrevendo Jenny. A primeiradas passagens é lacônica, porém expressiva, e tem como foco Berta, e não Genny:

"Na verdade das coisas, eu me apaixonara por uma menina comunista quetinha uma história heróica. Conheci Berta num comício, quando pedi um cigarroa um companheiro que sustentava outra vara da faixa que abríamos. Ela veiotrazer. Nunca mais me deixou. Soube depois o segredo dos mistérios dela,complicadíssima para namorar. Ela era a irmã menor que ficara escondida noBrasil, quando Jenny, a mais velha, jovem ativista, foi banida junto com OlgaBenário, a mulher de Prestes, para ser mandada para um campo deconcentração na Alemanha. Olga cumpriu seu destino e foi morta lá. Jennyescapou porque portuários franceses, advertidos de sua presença no navio, atiraram de lá" (RIBEIRO, 2002, p. 138).

A segunda passagem também é esfíngica; Darcy Ribeiro apenas lembrou que Bertavivia preocupadíssima que descobrissem que "(...) era a irmã viva e escondida da célebreJenny Gleiser" (RIBEIRO, cit., p. 198). Fernando Morais, biógrafo de Olga, ocupou-se deGenny Gleiser, em passagem muito informativa, quando descreve a percepção que o EstadoNovo tinha de sua biografada, Olga, como estrangeira nociva. Genny é indicada comoprecedente perigosíssimo:

"(...) De todos os casos de expulsão de estrangeiros ‘indesejáveis’ de quetivera notícia- e eram centenas e centenas- um, particularmente, Olgaacompanhara de perto, ainda em liberdade, pelo noticiário dos jornais, e ficaraestarrecida com seu desfecho. Depois de manter presa durante quatro meses, soba vaga acusação de ‘subversão’, o governo de Vargas decidira deportar umagarota de 17 anos, Genny Gleizer, judia romena, apesar da manifestação decentenas de sindicatos e associações de estudantes e intelectuais, tanto do Brasilcomo do Exterior. Durante o processo de expulsão de Genny, a opinião públicatestemunhara alguns gestos comoventes de solidariedade. Quando se anunciou,por exemplo, que se ela casasse com um brasileiro as leis a protegeriam dadeportação, vários escritores e intelectuais se ofereceram como voluntários. Numcomício pela libertação de Genny, no centro de São Paulo- onde tinha sidopresa- o estudante Paulo Emílio Salles Gomes anunciou que sairia do palanquediretamente para o cartório, em busca de um juiz que oficializasse seucasamento com a garota. Chegou tarde. O jornalista Artur Piccinini, queacompanhava o ‘caso Genny’ para o diário A Platéia, tomara-lhe a frente ehavia solicitado ao Juízo de Paz do bairro da Sé, na capital paulista, apublicação dos proclamas para seu matrimônio. Insensível a tudo isto, emoutubro de 1935 o governo deportou Genny Gleizer para a Europa" (MORAIS,1988, p. 188).

Os fatos reportavam-se ao anticomunismo que o governo Vargas protagonizava. Porém,havia algo mais. À época dos fatos, Genny era moça, bem nova, ainda não tinha 17 anos.Vinha da Romênia. Era judia. E o livro de Maria Luiza Tucci Carneiro tratava justamente domodo como o governo Vargas sistematicamente hostilizou judeus, que desesperados na fugado nazismo não conseguiam vistos para desembarque no Brasil. São fantasmas de umageração (e a expressão é complemento ao titulo do livro). Francisco Campos, GustavoCapanema, Filinto Müller, todos pareciam envolvidos na trama. Com honrosas exceções, aexemplo do embaixador Souza Dantas, que tanto lutou pela causa judaica, tem-se a impressãode que o anti-semitismo fora característica muito importante de época que se quer esquecer,não obstante apelo populista prenhe de miopia, e que vê algum progresso em um tempo de

não obstante apelo populista prenhe de miopia, e que vê algum progresso em um tempo detanta violência. A referência à CLT é o exemplo mais recorrente. É que há quem aindaacredite que o avanço do trabalhismo fora conquista do proletariado. Pelo contrário,concessões é que marcaram a normatividade laboral. Ainda, a legislação trabalhista propicioua Getúlio amplo campo de manobra, explorado até o início da década de 1960, e refiro-me aJoão Goulart.

O puzzle referente ao anti-semitismo na época de Vargas torna-se ainda mais intrigante,quando se lê, por exemplo, o estudo de Stanley Hilton sobre Oswaldo Aranha. Entãochanceler brasileiro junto à ONU, segundo Hilton, "o papel de Aranha nas deliberações[sobre a criação de Israel] seria de apoio discreto, mas intenso, às reivindicações sionistas"(HILTON, 1994, p. 555). Historiografia tradicional vinculou fortemente Oswaldo Aranha àcriação do Estado de Israel. Mas não é bem isso que entendi lendo Maria Luiza TucciCarneiro; é que Oswaldo Aranha simboliza duas faces de um mito, e no entender de MariaLuiza:

"Oswaldo Aranha é considerado uma das maiores personalidades dogoverno Vargas. Como um dos principais mentores da Revolução de 30, marcoueste momento crítico da História do Brasil com uma presença de grandediplomata e mediador político. Analisando o seu desempenho político no períodode 1930-1945, rastreamos uma personalidade atuante e persistente ao lado deGetúlio Vargas de quem era amigo íntimo e de confiança (...) Da releitura dasbiografias escritas sobre Oswaldo Aranha emerge a existência de uma lacuna noque diz respeito a sua atuação como ministro das Relações Exteriores durante oEstado Novo. Foi justamente nessa fase de sua carreira que colocou em práticano Brasil uma política imigratória eminentemente restritiva aos judeus, vistotramitar pelos bastidores do Itamaraty um dos maiores ‘pacotes decorrespondência anti-semita´" (CARNEIRO, cit., p. 193).

Essa suposta dubiedade de Oswaldo Aranha poderia ser estendida para mais gente docírculo próximo a Vargas. Os fatos que marcaram o processo e a expulsão de Genny Gleiserpoderiam fomentar pesquisa nesse sentido. Esse anti-semitismo me aborrecia há muito tempo.E foi na biografia de Stefan Zweig, esplendidamente escrita por Alberto Dines, que o caso deGenny reaparecia:

"Fato que produz muitas manchetes no Rio de Janeiro e em São Paulo,desde outubro do ano anterior, são as incursões da polícia contra centrosoperários judeus no Rio de Janeiro. Na praça Onze, foram invadidos o centrocultural dos trabalhadores onde funcionava a redação do semanário judeucomunista Unhoid, ‘O Começo", assim como a cozinha popular e uma escolinhapara os filhos dos operários. Prenderam 23 militantes, dos quais 15, por estaremcom papéis irregulares, foram deportados para a Alemanha e jamaisencontrados. Entre eles, Motel Gleizer, redator do semanário. A polícia chegouaté ele porque sua filha Jenny (ou Schendla) foi presa sob a acusação deorganizar o primeiro Congresso da Juventude Proletária e Estudantil em SãoPaulo" (DINES, 2004, p. 50).

Em seguida, Alberto Dines apresentou mais um parágrafo, sumariando a história dajudia romena, presa e violentada por integrantes do Estado Novo:

"História dramática: um repórter localizou a moça numa prisão paulista,enquanto armou-se a grita na imprensa para libertá-la. Um aluno daUniversidade de São Paulo: Paulo Emílio Salles Gomes, mais tarde preso etorturado, foi um dos que se empenharam na cruzada. Em outubro de 1935, juntocom outros militantes judeus, Jenny é deportada secretamente através de Santos,no cargueiro francês Aurigny, para ser entregue ao governo fascista da Romênia.

no cargueiro francês Aurigny, para ser entregue ao governo fascista da Romênia.Na França, em conluio com o capitão do barco, estivadores e operários do portoa libertam. Jenny escapa dos nazistas, alguns dos companheiros foram lutar naEspanha, o pai desapareceu. Improvável que o editor Koogan não tivesse tomadoconhecimento do caso de Jenny, que foi manchete do vespertino A Noite ao longode outubro de 1935 e comoveu muita gente, judeus e não judeus" (DINES, cit.,loc.cit.).

Em nota de rodapé, Alberto Dines ampliou as informações e explicitou o desfecho dahistória. Observou que depois da guerra Genny Gleizer teria conseguido entrar nos EstadosUnidos, onde teve uma filha. Genny formou-se em psicologia. Em 1982 Genny teria contadosua história para Eva Blay, em Nova Iorque. Foi lá que Genny teria vivido até 1995 (cf.DINES, cit., loc.cit.). Ao que consta, Genny Gleizer nunca voltou ao Brasil. Como haviaprocesso judicial, relativo à expulsão de Genny, o caso também propiciava estudo de históriado direito, com base em fonte primária, e que poderia metodologicamente questionar essahistória do direito bufa e inocente, apologética e inconseqüente, que hoje se faz no Brasil,com algumas honrosas exceções.

Explico-me melhor. Agora que a história do direito foi incorporada aos currículos doscursos de direito percebe-se a proliferação de livros-texto, que apresentam uma história dodireito singela, baseada em fontes secundárias, sem nenhum nível de problematização,manipuladas, e que se prestam para justificar o que já existe. Não se avança. Transita-se doCódigo de Hamurábi para o direito romano, da idade média para a revolução francesa(sempre elogiada), da criação dos cursos jurídicos no Brasil para a constituição de 1988. Nãohá pesquisa específica, com base em fonte primária, e que possibilite investigação criativa eprospectiva da história. Apanha-se um fato do passado e apresenta-se a circunstância comopasso indicativo da evolução do direito.

É bem aí que me lembro de outro refugiado, Walter Benjamin, também judeu etambém perseguido. Walter Benjamin fugia da França, dominada pelos nazistas.Surpreendido na fronteira com a Espanha, suicidou-se; não conseguiu chegar até os EstadosUnidos, onde estavam pesquisadores da escola de Frankfurt, a exemplo de Max Horkheimer,Theodor W. Adorno e Erich Fromm. A propósito, há notícias de uma carta de ErichAuerbach, escrita a Walter Benjamin, e datada de 23 de setembro de 1935, que insinuavaeventual possibilidade do filósofo alemão lecionar no Brasil, na Universidade de São Paulo(cf. LÖWY, 2005, p. 9).

Walter Benjamin concebeu a imagem do salto do tigre, em sua XIV tese sobre ahistória. Segundo Benjamin, o filósofo da melancolia, o historiador avança para o passado, ecomo um predador apanha o que lhe interessa; usa o que apanhou como quer, faz do pretéritoobjeto da justificação do presente (cf. BENJAMIN, 1985, p. 261). E é um pouco disso que sevê em alguns livros de história do direito, bem como nas introduções históricas que os váriosmanuais apresentam. Tem-se relação equivocada entre direito e história, em âmbito dehistoriografia jurídica tradicional. É essa relação incestuosa que pretendo menosprezar, namedida em que fontes primárias qualificam o núcleo das pesquisas e das conclusões queseguem. Tenho notícias do uso dessa metodologia, em estudo sobre processos sociais,escravidão e justiça em Santos na década de 1880, tema do livro de André Rosemberg,Ordem e Bula (2006).

Foi com esse objetivo que no Supremo Tribunal Federal, junto ao arquivo, fiz carga dosautos do processo de habeas corpus nº 25.906, relativo ao caso de Genny Gleiser. É o estudodesse processo que se tem pela frente, com o objetivo de se vincular direito e história, combase em fonte primária.

2) A Inicial do Habeas Corpus 25906/1935

No dia 13 de setembro de 1935 o bacharel Sylvio de Fontoura Rangel protocolou naCorte Suprema (como então se denominava o Supremo Tribunal Federal) uma petição dehabeas corpus em favor de Genny Gleiser, natural da Romênia, menor de idade, e que seencontrava detida pela polícia do regime de Getúlio Vargas, em local desconhecido.Endereçada ao Ministro-Presidente daquela Corte, a peça é manuscrita, consta de duaslaudas, e dá início ao pedido de habeas corpus que levou o número 25.906. O MinistroOlympio de Sá foi indicado relator.

Segue a petição inicial, apenas alterando-se os modelos ortográficos, facilitando-se acompreensão do leitor contemporâneo:

"Exmo. Sr. Presidente e demais Ministros da Egrégia Corte Suprema.

O bacharel Sylvio de Fontoura Rangel, cidadão brasileiro, no gozo deseus direitos civis e políticos, casado, advogado com escritório a rua Evaristo daVeiga nº 16, 2º andar, nesta cidade [o Rio de Janeiro], com fundamento no art.113 nºs. 21, 23 e 24 combinado com o art. 76, letra h, da Constituição Federal,vem perante esta Egrégia Corte Suprema impetrar uma ordem de habeas corpusem favor da menor Genny Gleiser, natural da Romênia, e, que pelo fato dehaver, apenas, comparecido a uma reunião de socialistas, como mera assistente,foi seqüestrada pelo Polícia de São Paulo e se acho hoje a disposição do Sr.Ministro da Justiça, em lugar ignorado em infração flagrante e clamorosa dasliberdades e direitos consagrados no citado art. 113 da nossa lei magna, sem queao menos lhe seja lícito qualquer recurso de defesa ou assistência previstos nocitado nº 24 do art. 113. De resto, a competência desta Egrégio Tribunal éevidente tendo-se em consideração não só o fato de achar a paciente, adisposição do Sr. Ministro da Justiça, como ainda em face dos termos contidosna (...) citada disposição do art. (...) da lei constitucional em sua parte final.Nesta conformidade, o impetrante afirmando a verdade do alegado requer quetomado conhecimento do remédio ora impetrado e depois de ouvido o Sr.Ministro da Justiça, seja o pedido deferido na forma da lei e dos maiselementares princípios de solidariedade humana. E. deferimento ".

Após datar e assinar, o impetrante estampou os selos indicadores do recolhimento decustas, bem como ainda adicionou mais um parágrafo:

"O impetrante declara que o presente pedido foi inspirado pelo programaa que está sujeito o Departamento de Assistência Judiciária do vespertino ‘ANota’, do qual se louva de fazer parte o advogado que toma a responsabilidadedesta medida".

O pedido impetrado pelo advogado Sylvio de Fontoura Rangel é de simplicidademarcante, e o fecho, que invoca os mais elementares princípios de solidariedade humana éargumento retórico de muita força. Nos termos da peça de habeas corpus, Genny Gleiser, queseria menor de idade (fato que as forças constituídas posteriormente negaram), apenasparticipara de uma reunião de socialistas, sem maior dedicação ao movimento, o que lhevaleu a prisão, o fato de estar incomunicável, e o desconhecimento de seu paradeiro,circunstâncias que o Dr. Rangel imputou à responsabilidade do Sr. Ministro da Justiça, o quejustificou o protocolo do habeas corpus junto ao Supremo Tribunal Federal.

O pedido foi instruído por excertos de jornal, e quase todos do vespertino A Nota,circunstanciando o problema. Além de menor de idade e acusada de vínculo com oscomunistas, Genny Gleiser era judia. Este fato pode ser um dos mais importantes quedesencadearam os episódios que serão aqui narrados, como já insinuei na sessão introdutória.

desencadearam os episódios que serão aqui narrados, como já insinuei na sessão introdutória.

3) A Imprensa e as Primeiras Repercussões

O jornal A Nota tomou a frente da defesa de Genny Gleiser, e o fez também mediante apublicação de notícias alusivas à sorte da moça, seqüestrada pela polícia política. O primeirodos excertos de jornal, do vespertino A Nota, que instruía a petição inicial do habeas corpus,dá conta da seguinte manchete: "Genny Gleiser era uma criança ignorante quando chegou aoBrasil". E em seguida, lê-se: "História de fome e miséria- estudando e trabalhando em SãoPaulo a jovem romena teria se tornado comunista". A página do referido jornal exibe foto deGenny Gleiser, que parece muito jovem. Ela estava com cabelos curtos, parcialmente cobertospor um chapéu delicado. O olhar é muito expressivo. Há também foto de seu pai, Sr. MotelGleiser. Ele aparentava ser de meia idade, cerca de 50 anos, usava óculos de aros redondos epossuía duas entradas acima da testa, o que lhe emprestava perfil intelectual. Reproduziu-setrecho de carta de Genny para seu pai. O jornal ainda publicou foto de pequeno excerto damissiva, na qual se via a caligrafia firme da moça. Reproduzo em seguida a notícia do jornal,literalmente:

"A história triste de Genny Gleiser que vem se arrastando por ai, sem quese tenha tomado até agora uma providência séria, parece ter chegado a seuúltimo capítulo com as declarações do chefe de segurança de São Paulo, de quea infeliz romena continuava presa, aguardando, apenas, o decreto que a expulsedo território brasileiro. Falando ao Globo o Sr. Barros Leite não se limitou aessas declarações. Foi mais longe. E acrescentou, ainda, que Genny Gleiser,jovem, bonita e perigosa, era um elemento extremista de temer, vindoespecialmente da Romênia para organizar e tomar parte do Congresso JuvenilComunista, que se realizou em São Paulo, e onde foi presa com outras dezesseismoças que assistiam aquelas comemorações".

Na coluna ao lado, publicou-se a versão do pai de Genny, da seguinte forma:

"Ontem, esteve em nossa redação o Sr. Motel Gleiser, pai da menina presana cadeia pública de São Paulo. Vinha, apenas, disse ele, contrariar um trechodas declarações do chefe de segurança. Justamente aquele em que Genny veio daRomênia especialmente para organizar o Congresso Comunista Juvenil. Econtou: - Vim para o Brasil em julho de 1929. A situação na Romênia eraprecária e eu precisava ter dinheiro para sustentar uma esposa e duas filhas.Vim para o Brasil, terra de liberdade e de trabalho. Ficaram na Romênia minhamulher Rosa e as nossas duas filhas menores, Genny, com 12 anos, e Bertha,com 4. Mas aqui, a sorte não me ajudou logo. E não podendo mandar buscarminha família, nem mandar-lhe o necessário para viver sem fome, fuisurpreendido com o suicídio de Rosa. Minha mulher não suportara a vidamiserável".

E continuava a entrevista:

"Motel Gleiser fez uma grande pausa: E, depois de um instante,mergulhado em recordações dolorosas, prosseguiu: As duas crianças ficaramabandonadas na Romênia. Sem família, sem teto, sem pão. E foi por intermédioda I.C.A., a organização internacional que fornece aos judeus meios paraemigrarem, que Genny e Bertha vieram para o Brasil em 1932. E isso foiconseguido pela intercessão do rabino Raffallovich, cidadão inglês e fascista,que as trouxe em sua companhia. Eram duas crianças que não sabiam ler nemescrever. E não conheciam política. E da vida só conheciam duas coisas: fome efrio. -Assim era Genny quando chegou ao Brasil- disse, depois. Em São Paulo

frio. -Assim era Genny quando chegou ao Brasil- disse, depois. Em São Pauloentrou para a escola e para a fábrica. Foi estudar e trabalhar. E naturalmente,ai, com muitas outras companheiras de serviço, é que teria adquirido, com aleitura e com as companhias, as idéias políticas que a levaram a assistir, comomuita gente, ao Congresso Juvenil".

O pai de Genny ainda insistia que o caso de sua filha configurava situação isolada.Lembrou que 17 garotas foram presas com sua filha, e que somente Genny não fora até entãolibertada. Perguntava: Por que somente Genny?

O jornal A Hora também publicou a carta que Genny escreveu a seu pai, cujo conteúdosegue, do modo como estampado no vespertino, adaptando-se tão-somente o regimeortográfico:

HHo

"São Paulo- 8-9-1935.

Querido pai.

Papai, não tenho palavras para lhe agradecer pelas boas notícias que osenhor me forneceu. Estava hoje triste, me sentia tão sozinha, longe de meu pai ede meus colegas, e me sentia com tanta vontade de ser libertada e de estar ondeeu pudesse trabalhar e conversar. Quando afinal recebi sua carta, fiquei tãocontente, senti-me tão feliz. Tem gente que me compreende, que me defende, queme quer bem. Se papai soubesse, como me consola tal notícia, como ficosatisfeita, como fico forte, que logo esqueço do que os malvados me fizeram,esqueço de minha tosse, da cadeia, e me sinto tão consolada. Agradeço-lhepapai, agradeço ao senhor e a todos que se interessam por mim. Quando forlibertada, saberei agradecer-lhe de outra maneira. Hoje veio me visitar a minhatia Marche. Ela me falou que o advogado vai requerer amanhã outro hábeascorpus. Que queria saber o resultado. Tenho muitas coisas a lhe escrever, masagora não posso papai. Já são 5 horas e vão fechar a porta. Na cadeia é assim...Amanhã vou lhe escrever de novo. Faça o passível para eu ser posta emliberdade aqui no Brasil, pois eu sou uma moça tão simples, eu penso que nãoposso prejudicar ninguém aqui no Brasil e fora disso eu gostaria tanto de ficaraqui... Papai, diga: o senhor não acha um absurdo ter medo de mim? Eu soucapaz de fazer mal a alguém? Papai nunca me abandone. Aceite um abraço desua filha que lhe quer muito bem. Genny. P.S. escreva em português".

Estudantes da Universidade do Rio de Janeiro compareceram à redação do jornal AHora e informaram que estavam se mobilizando com o objetivo de libertar Genny. Uma fotomostrava os estudantes, todos muito jovens, vestidos de terno e gravata, como ditava a modada época. O jornal noticiou que o governo se negava a dar informações objetivas, relativas aoparadeiro de Genny:

"O governo responde sempre com evasivas às interrogações sobre averdadeira situação de Genny Gleiser. O chefe da polícia, o "revolucionário"Filinto Muller, declarou a um vespertino que em obediência à lei, Genny estavapresa à disposição do Ministro da Justiça para ser deportada, por se ter tornadoum "elemento perigoso". Por outro lado, na seção de ordem social, negam queela ali se encontre, o policial português, Serafim Braga, diz, ingenuamente, quenada sabe a respeito. De São Paulo informam que Genny está no Rio e oMinistério do Interior só informa que Genny será deportada como extremista...De todos os pontos do pais as manifestações populares pela liberdade de GennyGleiser continuam a surgir. A revolta se avoluma e os gritos de protesto se

Gleiser continuam a surgir. A revolta se avoluma e os gritos de protesto semultiplicam".

Esse mesmo jornal comunicava que estudantes no Rio de Janeiro planejavam realizarprotesto em favor de Genny. Membros de um comitê acadêmico teriam adiantado ao jornalque estariam dispostos a recorrer à greve, se necessário para que se desse fim ao insulto quese perpetuava sobre o povo brasileiro. Noticiava-se também que na Câmara Federal houvemoções de protesto, por parte dos deputados João Neves e Abguar Bastos. Fora redigidorequerimento, como segue:

"Requeremos, ouvida a Câmara, que seja informado pelo sr. Ministro daJustiça o motivo da prisão da menor Genny Gleiser, quais as razões porquepermanece presa, assim como o local exato onde se encontra. Requeremos aindainformações se há no Ministério da Justiça algum processo de deportação sobrea referida menor. Assinam: Abguar Bastos, Otávio da Silveira, Paulo Sucider,João Neves, Barros Casal, Domingos Velasco, Bias Fortes, Artur Santos,Bandeira Wogan, Ademar Rocha, Acelino Leão, Plínio Tourinho, OtávioMangabeira, José Augusto, Mota Lima, Hupp Júnior, Oscar Fontoura, ArturBernardes, Roberto Moreira e Batista Luzardo".

Também na Câmara dos Vereadores do Rio de Janeiro houve protestos. Noticiou-seque o vereador Frederico Trota criticara o Ministro da Justiça, Vicente Rao reproduzindo umexcerto da inflamada fala:

"A opinião pública já está formada a respeito deste caso. A condenaçãoformal das autoridades constituídas está lavrada pelo tribunal popular e é umacondenação sem apelação nem agravo. Não é possível continuarmos neste estadode coisas. A vingar o modo de agir da polícia, nós teremos, sem dúvida, deproteger contra incursões dessa ordem, os nossos próprios lares, os nossos filhosmenores".

E comentava o redator do jornal:

"Aludindo às lutas populares na França, o orador acrescenta que, apesarde tudo, o governo francês consentiu que nas manifestações de 13 de julho,comunistas e socialistas, democratas e liberais, fossem para a rua defender assuas convicções. E diz que no Brasil o que se vê, é o governo meter no xadrezuma criança, sob o pretexto de que é extremista".

4) O reforço do pedido inicial

Em 20 de setembro de 1935 o escritório dos advogados Malcher da Cunha, AntonioDias Tavares Bastos e Helvécio Monassa, todos do Rio de Janeiro, por delegação daComissão Executiva do Partido Socialista do Brasil, representado especificamente porTavares Bastos, protocolou petição, reforçando o pedido inicial, e aduzindo razões,protestando pela liberdade de Genny Gleiser. A petição é datilografada, conta com quatrolaudas, e em seguida reproduzo; a citação é extensa, porém suscita que se aprecie a técnica deredação forense da época, bem como o jogo retórico que se desenhava:

"Exmo. Sr. Ministro Presidente da Corte Suprema-

O abaixo-assinado, brasileiro, solteiro, advogado inscrito na Ordem sob onº 286, com escritório nesta Capital, a Rua do Carmo nº 5, 4º andar, nos autosde hábeas corpus nº 25.906, impetrado em favor de Genny Gleiser, menor de 17anos de idade, que se acha recolhida à prisão em lugar incerto e não sabido, em

anos de idade, que se acha recolhida à prisão em lugar incerto e não sabido, emvirtude de abuso de poder e autoridade do Ministro da Justiça, vem peranteV.Excia. expor e requerer o seguinte: A paciente, que conta idade pela qual nãoé lícito fazê-la responder a processo crime, qual seja ele, sem a observância doque prescreve o Código de Menores, arts. 69 e 86, foi presa há cerca de doismeses em São Paulo, quando assistia a uma reunião estudantil, sem que seuspais tivessem tido notícia de seu paradeiro, que continuou ignorado a todos, atéque veio a imprensa descobrir achar-se ela recolhida à prisão comum de umxadrez na cidade de Campinas, estado de São Paulo. Requerida na capitaldaquele Estado uma ordem de hábeas corpus, perante a instância inferior daJustiça local, considerou-se o juiz a quo incompetente para tomar conhecimentodo pedido, em virtude da qualidade da autoridade coatora. Renovado o pedido,desta vez perante uma das varas federais daquele Estado, ainda essa medida nãopode ser tomada em conhecimento pelo magistrado de 1ª instância, por ter ficadoo mesmo ciente de tratar-se de paciente sofrendo de coação por parte deautoridade cuja jurisdição escapava a sua competência. Acontece que, a 13 docorrente, deu entrada nesta Egrégia Corte um pedido de hábeas corpus em favorda mesma paciente, impetrado pelo serviço de Assistência Judiciária dovespertino A Nota, por seu advogado, Dr. Sylvio Rangel de Fontoura, o qualtomou o número 25.906 e foi distribuído ao Sr. Ministro Relator Olimpio Sá,sendo somente a este remetido o processo a 19 do corrente mês. Entretanto, poruma entrevista coletiva dada à imprensa, e divulgada a 17 deste pela AgênciaMeridional de publicidade, autorizada a funcionar no país, o chefe da polícia doEstado de São Paulo, de regresso à capital daquele Estado, torna público enotório que a menor presa, Genny Gleiser, "deverá ser brevemente expulsa dopaís, pois a sua ordem de expulsão já está perfeitamente legalizada, faltandoapenas ser visado o seu passaporte". O suplicante, assim entende de aditar aopedido ajuizado, em processo nesta Egrégia Corte, a preliminar de que sejamandado oficiar, por despacho do Exmo. Sr. Ministro Presidente, ordenandotambém juntada desta aos autos, com a indispensável urgência, ao Sr. Ministroda Justiça, no sentido de que não seja consumada a expulsão, sustando-se oembarque a que se obrigará a paciente, a vista do que tão claramente deixamperceber as autoridades, até julgar-se este. Pelo que se evidencia ainda, não sódas entrevistas das ditas autoridades policiais, cumpridoras de determinaçõesemanadas do Ministro da Justiça, como mesmo pela pena de certos jornalistasoficiosos, de acordo com o que se depara num artigo de O Jornal de 14 docorrente sob a epígrafe de Doux Pays, onde se procura justificar a reclusão e aexpulsão da menor paciente, aquelas citadas autoridades teriam forgicado [sic]um processo de expulsão, onde não teve ela as garantia sequer conferidas em lei,desde a nomeação de curador, direito e prazos para produzir defesa, como nemseus pais jamais tiveram notícia do procedimento legal porventura intentadocontra sua filha, menor de 17 anos, a quem portanto cabia prover o seu amparoem semelhante transe.Havendo pois uma forma processual a seguir, para quetenha lugar a medida extrema e rigorosa, que é a expulsão, mesmo quando nãose trate de uma menor, evidentíssimo se torna que esse banimento imposto àpaciente é a culminância a que visava a violência da autoridade coatora, com aprisão efetuada, mantendo a paciente em prisão "incomunicável", de sorte a lhenão ser possível defender-se das acusações com que foram solícitos emmimosear-lhe os aficionados da mentalidade policial que atualmente infelicita apsique ministerial do palácio da Praia do Peixe.Releva acrescentar que apaciente, onde quer que se encontra-se presa, nunca foi dado conhecer pelaprópria polícia, no frisante propósito de evitar que lhe fosse tentado um meio dedefesa à tramóia do processo de expulsão, cujas provas nunca se exibiram, jáque se tornava fácil seqüestrá-la, como até hoje, sem nota legal de culpa, comoexige a Constituição Federal. Somente pelo que deixa transparecer a societas

exige a Constituição Federal. Somente pelo que deixa transparecer a societassceleris autoritatis empenhada na expulsão de Genny Gleiser, procura-seenredar contra ela o pressuposto de que seja uma terrível agitadora comunista,fichada na polícia, com missões secretas da Terceira Internacional, vinda aoBrasil, onde chegou aos 15 anos de idade, especialmente para encabeçar umarevolução social, etc., etc., e mais outras tantas fantasias da deliranteimaginação da Ordem Político-Social, como se vê da própria entrevista domesmo famigerado chefe da polícia paulista. Ora, pela idade evidentemente tenrada paciente, não é crível que possam também os venerandos Srs. Ministros destavetusta Corte achar que se encontre ela investida de quaisquer missões de ordema despertar temores de parte de nossas tão consolidadas e nobres instituiçõessociais.Muito pelo contrário, parece-nos bem que mais atentam contra aessência dessas instituições as más autoridades que investem sem cerimôniacontra a família, arrancando do poder de seus pais uma jovem de 17 anos, paraexpulsá-la do país e expô-la à aventura dos sem destino e ao infortúnio dos quelhe provêm ao sustento e educação. A vingar tal princípio, no pseudo regimedemocrático em que supomos viver, não estaremos longe algum dia de verbeleguins alçados à condição de julgadores e defensores da segurança pública,virem tomar dos braços das amas crianças ainda de peito, para lhes darem odestino que a sua mentalidade preventiva de futuros surtos revolucionáriosentender melhor lhes traçar: é o caminho a que se pretende internacionalizaçãodas polícias, como ali mesmo preconiza ainda a subserviente inclinação doentrevistado chefe de polícia de São Paulo: a mentalidade policial ditando leisao mundo! Valha-nos a consciência profundamente jurídica dos nossos tribunais,diante do cafarnaum que se anuncia. Nestes tribunais, ainda resta a sorte daJustiça. Egrégios Srs. Ministros, a salvação de Genny Gleiser está na coragemde afirmardes que todas as menores filhas de família ainda estarão amparadaspela lei contra o golpe de autoridades que abusam de seu poder, no mais funestodos atentados à sociedade. Fazendo pois o presente pedido para que, urgente epreliminarmente seja oficiado ao Ministro da Justiça, a fim de que suste oembarque da paciente, cuja presença se reclama à sessão de julgamento, espera-se afinal seja concedida a medida impetrada como o foi, com fundamento naConstituição Federal, art. 113, nº 23, tomando o Ministério Público emconseqüência as medidas que entender, ditadas pelo nº 21, in fine, do mesmoartigo do nosso estatuto básico, como de JUSTIÇA".

Essa petição também juntava excertos de jornal, dando conta de movimentação quehavia em favor de Genny Gleiser. De São Paulo, publicava-se a seguinte notícia:

"Regressou hoje de sua viagem à capital do país o Sr. Arthur Leite deBarros, secretário de Segurança Pública de São Paulo, que foi tratar deassuntos relativos à sua pasta. O secretário de Segurança Pública foi recebidona estação do Norte por altas autoridades do Estado, delegados de polícia,deputados e numerosas outras pessoas. Em palestra com a nossa reportagem, osr. Leite de Barros, depois de nos expor os fins de sua viagem, abordourapidamente o caso da menor Genny Gleiser, secundando as declarações que fezà imprensa carioca informando depois que a menor deverá ser brevementeexpulsa do país, pois a sua ordem de expulsão já está perfeitamente legalizada,faltando apenas ser visado o seu passaporte. Finalmente, o secretário deSegurança Pública informou-nos que um dos pontos de seu trabalho consiste emtrabalhar para melhor aproximação entre as polícias de S.Paulo e do Rio. Épartidário da internacionalização das polícias, o que significa estreita unidadede vistas e de ação entre as organizações policiais internacionais".

No processo há também juntada de notícia publicada na edição de 15 de setembro de1935, que informava que o Partido Socialista do Brasil envidava esforços para libertar GennyGleiser, documento que se encontra nos autos do processo que se descreve:

"Solidarizando-se com os que lutam pela libertação da menor GennyGleiser, arbitrariamente encarcerada pela polícia política, há mais de cinqüentadias, o C.E. do P.S.B. delegou poderes ao advogado Dr. Tavares Bastos paraacompanhar esse caso, no terreno judiciário, para libertação da referidamenor".

5) O papel de Assis Chateaubriand

Juntou-se artigo de autoria atribuída ao jornalista Assis Chateaubriand, hostil a GennyGleiser e partidário de ação mais agressiva, por parte das autoridades policiais. Chateaubriandtinha língua afiada. Por exemplo, certa vez afirmou que "Rui Barbosa era um dos maisnotáveis escritores estrangeiros de nosso idioma, deveria ser lido de dicionário em punho"(cf. MORAIS, 1994, p. 103). O paraibano Assis Chateaubriand, a quem Fernando Morais deuo epíteto de Rei do Brasil, viveu relação de amor de ódio com Getúlio Vargas; fora um dosprimeiros a apoiar o golpe de 1930, alcançou dramaticamente as forças rebeldes no RioGrande do Sul. Chateaubriand passava por germanófilo (até onde lhe interessou).Chateaubriand conhecia o idioma alemão, fizera viagem glamorosa à Alemanha do IIIº Reich,registrando a excursão em curioso livro de divulgação. Quanto ao problema de GennyGleiser, porquanto ela era comunista, Chateaubriand protestava por medidas drásticas e ofazia por meio de artigo virulento, cujo conteúdo segue:

"Quem não está enxergando limpidamente a técnica e tática comunistasneste alarido em torno de uma jovem romena, agitadora da seção juvenil da IIIInternacional, e a quem os "camaradas" pretendem fazer passar por uma mártirda truculência policial de São Paulo. A manobra comunista poderá ter sidopreparada nas trevas. Mas ela grita as suas origens, acusa a sua procedência,dentro das circunstâncias mais comprometedoras, para aqueles que pensam quenão defendem o bolchevismo, senão apenas a liberdade de uma criança. Aimprensa carioca está quase toda ela dentro da trama de uma das maisgrosseiras mistificações que nossa conhecida Aliança Nacional Libertadora jáurdiu estes últimos tempos, para fazer sentir que ela não morreu do mal de setedias. Um decreto do Ministério da Justiça considerando-a fora da lei e ofechamento de sua sede oficial aqui e nos Estados não seriam o bastante paradestruir este esplêndido organismo, concebido e estruturado segundo o sistemamoscovita. Os "outlaws" libertadores acabem de promover uma sortida anti-policial e os seus resultados a ninguém é lícito dizer que fracassaram. Faz-se nopaís inteiro um movimento de simpatia em torno da pequena romena. A maioriada imprensa pinta o aparelho de segurança pública de São Paulo com coresexecrandas. O famigerado sentimentalismo brasileiro faz correr rios de tintaurdindo grande e pequenas misérias contra o organismo preposto à defesa daordem social paulista. O grande público, em horas tais, é o titular de umparadoxal direito de imparcialidade, que é a imparcialidade da ignorância. Elenão examina os fatos. Não os estuda e nem os investiga. Estabelece um ente derazão pela linguagem lavosa e incendiária dos jornais, quando os jornais, no seunoticiário de acontecimentos como esse de Genny Gleiser, traduzem as curvastendenciosas do repórter simpatizante do comunismo, ao qual a Aliança, dofundo de seus porões de conspiradora, mandou a palavra de ordem. Não revestenenhum colorido sedutor de perseguição o caso da pequena romena, que oscomunistas da imprensa diária de São Paulo e Rio decidiram transformar numaespécie de Joana D´Arc oriental, em véspera de ser queimada pelos borguinhões

espécie de Joana D´Arc oriental, em véspera de ser queimada pelos borguinhõese pelos ingleses da Ordem Política e Social do Sr. Salles Oliveira. Eu estava emSão Paulo quando se suscitou o caso da prisão de Genny. Mandei pesquisar napolícia o que ocorria de verdade a seu respeito. A resposta, haurida de boafonte, não se fez esperar. Logo no dia de sua detenção puderam as autoridadespaulistanas identificar-lhe o retrato no algum de família do nosso confradeMangabeira Júnior. Ele tinha em seu poder instruções que a III Internacionalsomente confere a filiados de certa envergadura. Genny não era apenas ummembro juvenil da seção de estudantes comunistas. Na sua pasta figuravamdocumentos demonstrando que ela pesava um pouco mais no seio dos comitês deação e propaganda do partido na América do Sul. Não era possível, nessascondições, tratá-los como um desses escribas analfabetos que redigem, seminteligência, com penas rombudas, os dois diários russos nas metrópoles do Rioe São Paulo. A polícia anda certa deixando em paz o muladar sonolento dessaspacatas alimárias. Elas não ofendem o regime e nem a sociedade. Arranham tãosomente a gramática, desossam o português e trucidam o bom gosto. Masacabam sempre inofensivos, sem que, no seu zelo satânico pela causa,arregimentem um prosélito, conquistem um militante. Tal não era o caso deGenny Gleiser. Na monotonia do rebanho dos seus companheiros de ideal, ela sedestacava como uma revelação, pelo menos, de vivacidade e de desembaraçoprecoces (...) Comprovada a sua temibilidade, a polícia só tinha que agir comoagiu e está agindo. Ele é uma flor de púrpura insolente, no meio deste espessotrigal de devoradores de ouro moscovita. Jogou a liberdade com destemor, e se adeportarem, honra que lhe seja por ter tido uma coragem de que os seusvelhacos defensores não se mostram capazes.A impressão que nos fica doepisódio das atividades de Genny Gleiser no Brasil não recomenda a bravurados que dela se serviram para as manobras de aliciamento em que se encontrouenvolvida a polícia de São Paulo. Que cavalheirismo haverá de parte de homensque se utilizam de uma moça de 19 anos para a execução de missões arriscadasda causa? Qual de nós iria servir-se de uma rapariga de tão verdes anos, paravê-la mais tarde dentro da emboscada que lhe armaram os planos inábeis dosseus próprios companheiros? A Aliança Nacional Libertadora será, se assim oquiserem, um partido, com muitos soldados e vários chefes, mas nenhum desseschefes é um "gentleman". Já não era pouco que eles fosses todos jovensburgueses ricos, solidamente montados em palácios e patacões. Agora verifica-se, pelo uso que fazem de mulheres para o exercício de missões que deveriamnormalmente caber a homens, que na Aliança Nacional Libertadora asvanguardas competem a Eva, e aos Adões fica esse "doux payx" que o Sr. GetúlioVargas lhes concedeu, depois que os dissolveu como partido e deixou-os por aísoltos e livres, a ver se podiam lavrar o tento da greve geral de que oameaçaram tantas vezes".

6) As Informações do Ministro da Justiça

Com data de 6 de setembro de 1935 foi encaminhado ao Supremo Tribunal ofício doMinistério da Justiça e Negócios Interiores, assinado pelo Ministro, Vicente Rao, com oconteúdo que segue, e que explicita a posição do governo, no caso cujas proporçõesaumentavam:

"Em resposta ao ofício nº 330, de 23 do corrente mês, tenho a honra detransmitir a V. Exa. as informações que me foram solicitadas para instruir ojulgamento do hábeas corpus impetrado em favor de Genny Gleiser. Para essefim, por serem os mais minuciosos possíveis, reporto-me aos esclarecimentosprestados à Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo pelo Sr. Dr. Artur

prestados à Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo pelo Sr. Dr. ArturLeite de Barros, Secretário de Segurança Pública do mesmo Estado. É o seguinteo teor desses esclarecimentos:

MOTIVOS QUE DETERMINARAM A PRISÃO

1º Quais os motivos da prisão de Genny Gleiser?

Genny Gleiser foi detida em virtude de sua atividade como propagandistade idéias subversivas. Há vários meses vinha-se notando intenso trabalho daJuventude Comunista, órgão auxiliar do Partido Comunista Brasileiro. Paramelhor propagar-se entre os jovens, aquela organização promoveu o chamadoCongresso da Juventude Proletária Estudantil. Este Congresso anunciou umareunião para a noite de 15 de julho do corrente ano em sua sede, no palaceteSanta Helena, nesta capital (S.Paulo), onde seriam tratados assuntos referentesao fechamento da Aliança Nacional Libertadora e as medidas a serem tomadascontra esse ato do governo. Pois bem: essa reunião se instalou sob a presidênciade Genny Gleiser. Ignorando a presença da polícia, Genny Gleiser convocou oscircunstantes com esta frase textual: Sentem-se, camaradas. A reunião nãodemora. O momento era de grande agitação; os objetivos daquele congresso,francamente subversivos. A polícia teve, pois, que o dissolver. Genny foi detidanessa ocasião. Ela estava armada de revólver e acabava de expedir ao‘camarada Artur’ um recado, escrito a lápis, o qual lhe determinava as tarefas aserem realizadas na quinta-feira próxima (dia 17), junto à MetalúrgicaMatarazzo, isto é, a realização de um comício com operários daquela indústria,a fim de levá-los a greve. Esse bilhete, devidamente fotografado, foi junto aosautos do inquérito referente à expulsão da perigosa romena. Em seu poder foramencontradas duas cartas, provenientes de Recife, a ela enviadas por umconhecido comunista militante, das quais se depreende claramente que a mesmahavia sido enviada para São Paulo pelo Partido Comunista. Nessas cartas, oremetente, que se revela grande admirador de Genny, lamenta que o PartidoComunista a tenha enviado para esta Capital e ao mesmo tempo lhe comunicahaver escrito ao Partido para conseguir sua remoção para Recife. Essas cartastambém foram juntas [sic] aos autos em cópias fotográficas.

PROPAGANDA EXTREMISTA

Ainda em poder de Genny foi encontrado um documento de sua autoria,que diz o seguinte: ‘Preparar uma reunião para 6 e 10 horas, discutir asquestões da Fábrica Ítalo-Brasileira. Ligar-se com 2 membros da diretoria eresolver junto que a diretoria tire um manifesto e convide todos os quecomparecerem a uma assembléia geral". Genny (...) foi operária da Ítalo-Brasileira; mas, de acordo com as instruções do P.C.B., ela devia ligar-se aosmembros da diretoria do sindicato dos tecelões, para poder obter resultadospráticos para o partido. Em poder de Genny foi encontrado mais o documento desua autoria em três folhas de papel de jornal, sob o título ‘Por que motivo aciência proletária é superior à ciência burguesa.’ Em uma carta dirigida a seupai, datada de julho deste ano, Genny revela, ainda, nas entrelinhas, seu ideal esuas práticas comunistas. Finalmente, na residência de Genny a polícia foiencontrar tudo o que necessita o agitador comunista. Além de inúmeros volumesmarxistas, documentos de indiscutível valor probante de sua atividadedemolidora; boletins, jornais, folhetos extremistas, grande número de listas desubscrição em benefício do Partido, do Socorro Vermelho e da Juventude, e, omais importante, material interno do Partido Comunista- o que revela a grandeatividade subversiva da expulsanda, pois o ‘material interno’, que consiste em

instruções fornecidas aos membros do Partido, sobre quais os métodos e práticasa serem seguidas, não se encontra senão no poder de membros de confiançadaquela organização. Esses documentos todos, que bem revelam a atuação deGenny, constam do auto de apreensão e reconhecimento, então lavrado, e foramjuntos [sic] aos autos. Entre os documentos pessoais de Genny, consta umacaderneta de Serviço Sanitário, a ela fornecida em 29.1.935, na qual declaranascida em 7.11.913 9(ter 22 anos, portanto). Em seu passaporte, no qual,porém, baseia a prova oficial de sua idade, consta ter ela 19 anos.

PROCESSO POLICIAL

Na sede do Congresso da Juventude Proletária e Estudantil a Delegacia deOrdem Social dói encontrar, na mesma data de 15 de julho, (...) documentaçãosubversiva, que ficou constante em auto regular de apreensão, devidamenteassinado por testemunhas. Tratando-se de um elemento altamente perigoso enocivo à ordem pública, a Delegacia de Ordem Social de São Paulo, como lhecumpria, instaurou contra Genny Gleiser o necessário processo, de acordo comas leis vigentes, apurando, de modo cabal, sua ação perniciosa não só junto àsclasses operárias como estudantinas, as quais, aliás, era completamenteestranha, embora ligada pelos ideais comunistas através de seus companheirosinfiltrados, em massa apreciável, na juventude de escolas e das fábricas, ondefácil se torna a propaganda, graças às promessas de amor livre e de umautópica distribuição de fortunas. O processo policial apurou, de modo completo,o grau acentuado de nocividade dessa propagandista; e, com esses elementos, apolícia pediu e obteve fosse decretada a expulsão de Genny Gleiser. Expedido odecreto, impunha-se a detenção da expulsanda, de acordo com os dispositivoslegais em vigor.

EXPLORAÇÕES

Foi o que se fez; e aí está o motivo por que Genny Gleiser se acha detida.Em torno disso, levantaram seus adeptos grande celeuma, procurando, por meiode toda a sorte de explorações, criar um caso político, apresentando-a, aopúblico, como vítima das maiores perseguições por parte da polícia, para o quese forjou um martirológico em torno de sua pessoa, fantasiando-se, até, umaodisséia a seu respeito.

2º Qual o local onde presentemente se encontra?

Encontra-se na Cadeia Pública da Capital, à disposição da Delegacia deVigilância e Capturas, aguardando o cumprimento do decreto de expulsão.

3º Se essa menor se acha em prisão comum com outros detentos?

Genny Gleiser está ocupando, na Cadeia Pública da Capital, uma dasprisões do pavilhão reservado a mulheres.

4º Há processo regular determinando sua expulsão?

Sim, por intermédio do Ministro da Justiça e Negócios Interiores.

5º Qual a autoridade judiciária que funcionou no processo?

Tratando-se de processo administrativo, de acordo com a lei, nenhumaautoridade judiciária funcionou no mesmo.

6º Quais os termos da promoção do Dr. Curador de Órfãos e qual asentença do M. Juiz de Menores?

Não sendo Genny Gleiser menor de 18 anos, não está sob a jurisdição doM. Juiz de Menores.

Cumpre-me acrescentar que a expulsão de Genny Gleiser, cujo verdadeironome, aliás, é Senidler Gleiser, foi ordenado por decreto de 21 de agosto docorrente ano, continuando a expulsanda na Cadeia de São Paulo à espera deembarque.

Reitero a V.Exa. os meus protestos de alta estima e distinta consideração.

O Ministro da Justiça e Negócios Interiores:

Vicente Ráo".

Nos autos do processo de habeas corpus de Genny Gleiser há também cópia derelatório preparado pelo Gabinete de Investigações da Polícia em São Paulo. Os governosfederal e estadual falavam no mesmo tom. Segue o referido relatório, também colhido dodocumento processual:

"Ao mesmo tempo em que se iniciavam nesta Capital as atividades daAliança Nacional Libertadora, membros já identificados por esta Delegaciacomo militantes da Federação da Juventude Comunista Internacional, lançavamas primeiras bases para um Primeiro Congresso da Juventude Proletária,Estudantil e Anti-Guerreira de São Paulo. Seus iniciadores, que a princípio secontavam por reduzido núcleo, multiplicaram-se, desde logo, por uma numerosaComissão Organizadora do Primeiro Congresso e a Delegacia de Ordem Socialteve imediato conhecimento de que sob o rótulo desse Congresso se pretendiamascarar as atividades da Juventude Comunista. Obedecia, além disso, aorganização desse Congresso à mesma concatenação de atividades desenvolvidasem torno a palavra de ordem das ‘frentes únicas’, desdobrando-se por todos ossetores e dando a aparência e rótulo legal a todos os organismos do PartidoComunista e tendo, como espetacular fecho de abóbada, a Aliança NacionalLibertadora, já sobejamente desmascarada para que sobre ela ainda sejanecessário falar. – Iniciados os trabalhos da organização do Primeiro CongressoJuvenil, nome porque ultimamente ficou sendo conhecida essa organização daJuventude Comunista, ficou-se logo sabendo que o Partido enviara do Rio algunsde seus membros jovens, como ‘técnicos de organização’ (entre eles o militanteque aqui usou o pseudônimo de Nestor Contreras e que logo regressou para aCapital Federal, não dando tempo a que se identificasse) e recrutou em SãoPaulo mesmo outros jovens de destacada atividade, quase todos conhecidos destaDelegacia como militantes ou simpatizantes comunistas. Não se conseguiaidentificar, porém, um dos membros de ligação com o Rio que aqui ficara econseguia, com muita habilidade, subterraneamente trabalhar. – Decretado ofechamento da Aliança Nacional Libertadora, a treze de julho, esta Delegaciarecebeu também instruções no sentido de trancar as portas a todas asorganizações irregulares a ele aderentes, muito especialmente as que haviam seprestado a camuflar atividades do Partido Comunista. – Escolheu-se a noite dequinze de julho, segunda-feira, para a diligência de fechamento do PrimeiroCongresso, porque para esse dia se convocara para sua sede, no Palacete SantaHelena, desta Capital, uma reunião de adesistas. Não se conseguiram encontrar,no ato do fechamento do Congresso, os elementos de organização que alideveriam estar. Assustados antes com o fechamento da Aliança, muitos deles

prudentemente se conservavam afastados de atividades. – Entre os que ali seencontravam, porém, chamou desde logo a atenção, pela vivacidade de espírito epelo conhecimento que revelava sobre táticas e tarefas do Partido, a expulsandaGenny Gleiser, que também se assina Seindla Gleiser, de nacionalidade romena,e vinda para São Paulo, segundo então declarou, sete meses antes. – Dada umabusca em sua residência, à Rua Riachuelo 59, desde logo se constatou, pelaquantidade e pela qualidade do material comunista ali encontrado, que oelemento de ligação com o Rio, ainda não identificado, não poderia ser outrosenão a própria Genny. – Embora terminantemente negue, em suas declarações,qualquer ligação com o Partido ou com a Juventude e confesse ser muito ligeiras[sic] suas ligações com o Congresso e com a Aliança, é inegável, peladocumentação apreendida, pelas contradições evidentes em que se emaranha epela fragilidade dos álibis invocados, que a expulsanda desenvolvia nestaCapital grande atividade comunista, não limitando sua ação ao setor que seconcentrava no Primeiro Congresso, mas estendendo-a, ainda, a trabalhosdiretamente ligados a sindicatos e fábricas, atividade essa que o Partidodenominava de ‘trabalhos de base’. Da documentação apreendida fizeram-sejuntar exemplares muito eloqüentes a estes autos. Os documentos de números de1 a 4 dizem bem da intimidade da expulsanda com o Primeiro Congresso e aANL. Os de números 6, 10, 11, 12, 13 e 14 revelam o cuidado com quecolecionava material de propaganda do Partido. – Apreenderam-se, ainda, comos documentos 7, 8, 15, 16 e 17, material que só se tem encontrado em poder demilitantes responsáveis. Principalmente os de números 7 e 17, que são de altareserva entre as fileiras do Partido. O documento intitulado ‘Como Receber naFederação um Jovem Novo’, evidentemente contém instruções a serem confiadasa alguém que forme na vanguarda de Juventude Comunista. O documentoanterior (número 15) também é editado por esse mesmo organismo do PCB. De18 a 21 poder-se-ão ver dois números de ‘A Classe Operária’, órgão oficial doPCB, o número 2 de ‘Juventude’, órgão do ´Primeiro Congresso’, sob a direçãodo comunista carioca Ivan Pedro de Martins, e um número de ‘L’Humanité’. –As cópias fotográficas documentaram exemplares de papéis apreendidos comGenny e todos por ela reconhecidos. Desmentem, com eloqüência, os tópicos dedeclarações da expulsanda quando procura se inocentar e mostrar-se alheia aqualquer atividade, quer do Partido, quer da Juventude Comunista, quer aindado Primeiro Congresso ou da Aliança. – A primeira delas resume atividadespartidárias a cargo de Genny, incluindo tarefas junto a grevistas da Ítalo-Brasileira. – A segunda dessas cópias é originária de um bilhetezinho cujaredação estava sendo elaborada quando da chegada da caravana policial à sededo Primeiro Congresso, não tendo podido, por isso, ser terminada.- As demaisfotografias definem o que a expulsanda recusou confessar em suas declarações, ea carta assinada ‘Natal’, documento 25, destruiria qualquer dúvidarelativamente à expulsanda, quando eloqüentemente não falassem, sobre suaação partidária, os demais documentos já analisados. – A expulsanda, alémdisso, foi encontrada armada com um pequeno revólver marca ‘Gallant’ e dessefato dá, nas declarações de folhas, uma explicação evidentemente inverossímil.Agitadora precoce, de grande inteligência, e de notável cultura marxista,transformou-se em elemento nocivo à segurança do país. – Sua grande atividade,revelada pelo pouco que se conhece de sua vida de militante comunista, está aaconselhar medida enérgica e preservadora da ordem pública. Estrangeira queé, os interesses nacionais estão a pedir contra ela se aplique o ato de soberaniafacultado pelo artigo 113, nº 15, da Constituição da República. – Sobre anecessidade de ser decretada a expulsão da indiciada representamos, assim, aoExcelentíssimo Senhor Ministro dos Negócios do Interior e Justiça, a quemrequeiro se faça remessa desse processo, para os fins de direito, através doSenhor Superintendente de Ordem Política e Social e Senhor Secretário da

Senhor Superintendente de Ordem Política e Social e Senhor Secretário daSegurança Pública deste Estado. São Paulo, 14 de agosto de 1935. (a) LousadaRocha. Delegado Adido à Ordem Social".

7) O Julgamento no Supremo Tribunal Federal

O Supremo Tribunal Federal se manifestou e os votos começam a ser colhidos. Segue aprimeira decisão, com relatório e voto, de autoria de Olimpio de Sá e Albuquerque, que o fezna qualidade de Juiz Federal:

"Em favor de Genny Gleiser foi requerido a esta Egrégia Corte Supremauma ordem de habeas corpus (...) Depois de ter sido distribuído o feito, foiapresentado o requerimento de fls. 10, o qual mandei juntar aos autos comoaditamento à petição inicial. As informações enviadas pelo Exmo. Sr. Ministro daJustiça e que se encontram a fls. 16 e seguintes são extensas (...) As duaspetições a que me referi estão desacompanhadas de documentos de origemoficial. Com elas apenas foram juntas [sic] retalhos de jornais, dando notícia dadetenção da paciente, a sua não culpabilidade, e a sua menoridade. Emcontrário a tais notícias encontra-se o que foi afirmado nas informações oficiaiscuja leitura fiz – e que julgo merecedoras de fé até prova em contrário. Delas severifica que a paciente é propagandista de idéias subversivas o que não épermitido pelo art. 113, nº 9 da Constituição Federal. Verifica-se eu ela não émenor de 17 anos, pois entre os documentos pessoais que foram apresentadoscontra uma caderneta de Serviço Sanitário, a ela fornecido em 20-1-935, no qualdeclara ter nascido em 7-11-913, isto é que tem 22 anos. No seu passaporte noqual se baseia a prova oficial de sua idade consta ter ela 19 anos. O seuverdadeiro nome é Senildes Gleiser. Em vista do exposto, não estando aindaexcedido o prazo estabelecido no art. 45 da lei nº 38, de 4 de abril de 1935,denego a ordem impetrada".

Em seguida, colheu-se o voto do Ministro Costa Manso. Nascido emPindamonhangaba, no estado de São Paulo, Manoel da Costa Manso formou-se em 1895, foiadvogado em Mogi-Mirim e posteriormente foi nomeado juiz de direito em Costa Branca,onde judicou de 1903 a 1918. Nesse ano alcançou o Tribunal de Justiça de São Paulo, do qualfoi desembargador. Costa Branco presidiu esse tribunal nos anos de 1932 e 1933, isto é, aolongo da revolução constitucionalista. Nomeado por Getúlio Vargas em 1933, Costa Mansosucedeu a Soriano de Souza no Supremo Tribunal Federal, onde permaneceu até 1939. Osalão nobre do Tribunal de Justiça de São Paulo leva o nome de Costa Manso (cf. BOECHATRODRIGUES, cit., p. 376 e ss.). A indicação do presidente do Tribunal de Justiça de SãoPaulo para o Supremo Tribunal Federal no ano que sucedeu a revolução constitucionalista éindicativo seguro de aproximação de Getúlio Vargas com aquele estado da federação. Segue ovoto de Costa Manso, no caso Genny Gleiser:

"Sr. Presidente, devo reafirmar o conceito que faço das atribuições dopoder executivo, em matéria de expulsão e da ação que o judiciário podeexercer, na hipótese. Para mim, o poder judiciário só tem o direito de verificar alegalidade do ato. Não nos cabe examinar a prova produzida pelas autoridadesou pela parte, para verificar se a expulsão é justa ou injusta. Julgar danecessidade ou da conveniência da medida é atribuição que a lei confiou aopoder executivo. A lei é expressa nesse sentido. A meu ver, a prisão doexpulsando antes da expulsão é ilegal. Penso que o prazo de três meses da lei desegurança é para a execução do decreto. Como nem sempre esse decreto podeser posto imediatamente em prática, a lei concede ao governo uma dilação. Aparte parece que insinua a ilegalidade do decreto, por três motivos: 1) porque a

paciente é menor de 21 anos; 2) porque não teve curador; 3) porque, se apaciente incorreu disposição de lei penal, não pode ser expulsa antes deprocessada e julgada".

Houve intervenção do Ministro Artur Ribeiro que lembrou que em princípio a pacientenão havia incorrido em crime algum. Artur Ribeiro de Oliveira era ministro do SupremoTribunal Federal desde 1923. Nasceu em Minas Gerais. Formou-se em São Paulo (na turmade 1888), atuou como promotor juiz de direito, procurador do estado de Minas Gerais, bemcomo participou da comissão organizadora do anteprojeto da Constituição de 1934 (cf.BOECHAT RODRIGUES, cit., p. 348). Artur Ribeiro não fora nomeado por Getúlio Vargas.De qualquer modo, o Ministro Costa Manso retomou a palavra:

"É outra questão. O impetrante alude à lei de segurança. Sustenta que apaciente deve ser processada pelo poder judiciário e não expulsa do país. Aviolência que diz ter sofrido é alegada para que a Corte mande apurar o fato. Aprimeira argüição diz respeito à menoridade da paciente. Essa menoridade émuito duvidosa. Ela declarou, em São Paulo, para obter uma cadernetasanitária, que tinha, na ocasião, 19 anos. Este documento é expedido em face dedeclarações do interessado. A paciente, pois, ora afirma ter 19, ora 22 anos. Nãose sabe onde está a verdade. Além disso entendo que não há disposição legal queimpeça a expulsão de menor de 21 anos".

O Ministro Artur Ribeiro observou que para efeitos de expulsão a lei só exigia que oexpulsando fosse estrangeiro. Costa Manso retomou a condução do julgamento:

"Desde que o menor seja nocivo à segurança pública e aos interesses dopaís, o governo pode decretar a expulsão, pouco importando que os pais nãoestejam na mesma situação. Se quiserem, acompanharão o filho para oestrangeiro; se não quiserem acompanhá-lo, tomarão as providências queentenderem convenientes. O fato é que o país não pode abrir mão da faculdade,de que todos os povos se utilizam, de expurgar o seu território de elementosalienígenas, cuja permanência não seja conveniente à ordem pública, poucoimportando sejam maiores ou menores. Assim, sob esse aspecto, o ato não éilegal. A falta de curador seria uma conseqüência do reconhecimento damenoridade. Mas, ainda que estivesse provada a idade, não seria o caso de seanular o decreto de expulsão. A lei só alude, como base decreto, a investigaçõespoliciais. Depois é que o interessado poder recorrer para a própria autoridadeadministrativa, alegando e provando fatos que evidenciam a improcedência doato governamental. A circunstância de ter a paciente violado a lei penal nãoimpede a expulsão. Se o Poder Judiciário já tivesse iniciado o processo ouproferido sentença condenatória, talvez fosse possível decidir de outro modo.Mas não há processo algum. Não se alega que a paciente seja brasileira. Seriamotivo para que o Tribunal interviesse no caso e impedisse a expulsão. Porconseguinte, o ato é perfeitamente legal; obedeceu à forma estabelecida em lei efoi decretado pela autoridade competente. Portanto, deve subsistir. O Tribunalnão tem autoridade para impedir a execução desse ato. A circunstância de tersido a paciente presa ilegalmente e violentada, como se alega, seria motivo paraseu advogado se dirigisse às autoridades locais, requisitando as providênciasnecessárias para a punição do culpado. A Justiça paulista não deixaria impuneum crime. E a Corte Suprema não tem o poder de expedir ordens à Justiça local,para instaurar processos por crimes estranhos à jurisdição federal. Penso que oSr. relator conclui bem, denegando a ordem".

Na continuidade do animado debate seguiu o voto do Ministro Carvalho Mourão. JoãoMartins de Carvalho Mourão nasceu em São João Del Rei, no estado de Minas Gerais.

Martins de Carvalho Mourão nasceu em São João Del Rei, no estado de Minas Gerais.Formou-se em São Paulo (em 1892), advogou em Minas Gerais, atuou no escritório deRodrigo Otávio no Rio de Janeiro (cf. BOECHAT RODRIGUES, cit., p. 366). CarvalhoMourão ascendeu ao Supremo Tribunal Federal em 1931, nomeado por Getúlio Vargas.Segue o teor de seu voto no caso Genny Gleiser:

"Sr. Presidente, também estou de acordo com o senhor Relator, peloseguinte: Na verdade, como salientou o Ministro Costa Manso, ao Tribunal évedado conhecer da conveniência ou oportunidade da medida, quer dizer, darealidade dos motivos alegados pelo Governo para a expulsão. A expulsão é umato de soberania, em todos os países, porque entende-se ser o estrangeiro umhóspede do país; assim considerado enquanto não perturbar a ordem pública. Alei estabelece dois casos de expulsão: - Por motivo de ordem pública; - Emconseqüência de crime. No primeiro caso, não deve haver nenhum recurso, parao poder judiciário, do próprio ato de expulsão, mas somente para o Governo. Nosegundo caso, pode haver recurso para o Poder Judiciário. A Constituição nãodistingue. Deu ao poder executivo o direito de expulsar o estrangeiro que fornocivo à ordem pública ou perigoso aos interesses do país. De sorte que oGoverno é único juiz dessa nocividade, sob sua responsabilidade. O poderjudiciário não pode tomar conhecimento desses motivos. Pode, entretanto, edeve, examiná-los sob o aspecto que falou o Ministro Costa Manso, dalegalidade da medida. Assim, pode conceder hábeas corpus quando tratar-se debrasileiro, porque o Governo não pode expulsar cidadão brasileiro. Se setratasse de autoridade inferior- um Chefe de Polícia do Estado-, a Cortedeferiria o hábeas corpus; não para obstar a medida, mas simplesmente parafazer cessar o constrangimento da prisão ilegal, porque a prisão não é umaconseqüência necessária da expulsão, como tenho dito tantas vezes. Ficoutambém estabelecido, na Lei de Segurança, que o governo poderá prender por 90dias. Como o Senhor Ministro Costa Manso, julgo que a prisão antes do decretode expulsão, é incontestavelmente ilegal. Se o prazo fosse contado da data daprisão provisória, seria legalizar a prisão, que consistiu em um ato de abuso depoder. Por conseguinte, só conto o prazo da data do decreto, porque a prisãoanterior é um ato arbitrário, contra o qual existiria o hábeas corpus, antes dodecreto, e eu a faria cessar com o meu voto. Sob o aspecto da legalidade, trata-se de uma estrangeira: pode ser expulsa. A paciente é menor e realmente estoucom dúvida se o Governo pode expulsá-la ou não, porque o menor de menos de14 anos, segundo a legislação vigente, é criminalmente irresponsável. Emboranão se trate de verdadeira pena, mas sim de grave medida administrativa derestrição de direito e que não parece ser aplicável, no caso. Além disso, a razãode humanidade não pode ser invocada, pela sua inadmissibilidade".

O Ministro Otávio Kelly lembrou que a expulsanda nessa circunstância estaria emidade escolar. Kelly nasceu em 1872. Formou-se em direito no Rio de Janeiro, na turma de1899. Advogou, foi deputado estadual de 1907 a 1909, foi juiz federal de 1909 a 1917. Kellyparticipou da comissão que elaborou o Código Eleitoral de 1934. Assumiu a vaga do MinistroRodrigo Otávio no Supremo Tribunal Federal; foi nomeado por Getúlio Vargas (cf.BOECHAT RODRIGUES, cit., p. 385).

Na continuidade do julgamento, Carvalho Mourão observou que também a expulsandaestaria no desampara absoluto, longe da família. E Costa Manso obtemperou que aexpulsanda poderia ser internada. Ao que Carvalho Mourão acrescentou que um princípio dejustiça pressuporia que a expulsanda fosse responsável, de modo que um louco não poderiaser expulso do país. Costa Manso também lembrou que a lei permitia que se obstaculizasse odesembarque de quem quer que fosse, por razões de conveniência pública. Carvalho Mourãoretomou a palavra:

retomou a palavra:

"Comecei dizendo que a expulsão não é uma punição de crime, mas umagrave medida que, pelo menos à primeira vista, pareceu-me inadmissível quandoaplicada a irresponsáveis. O louco pode ser removido, por indesejável; mas nãoé afastado do país, como a lei estabelece, com o caráter de expulsão, porqueseria transferido como medida de assistência, que todos os Estados devem aosloucos, presentes no seu território. Não poderia expulsá-lo, jogá-lo em qualquerlugar, deixá-lo ao desamparo. Por isso, tenho muita dúvida sobre a legalidadeda expulsão de um menor de 14 anos. A lei não distingue. Portanto, parece que aexpulsão não seria justa. O problema é digno de toda a meditação. Não merefiro a menor, no sentido de direito civil, mas no de direito penal, em que o de18 anos é considerado irresponsável, havendo para os de 14 anos medidasespeciais e entre 14 e 18 anos, medidas de reeducação criminal. Mas a paciente,segundo se verifica nos autos, é maior de 18 anos. Entendo que ela é mesmomaior de 21 anos, porque, conforme informação nos autos, declarou ter 22 anospara a caderneta do serviço sanitário; e essa declaração julgo não estar emcontradição com o passaporte. Não é de crer-se, logo in limine, que a menortenha mentido. Ora, se declarou ter 22 anos para obter a caderneta, e nopassaporte 19, é de presumir-se que, pelo tempo decorrido até a presente data,tenha 21 ou 22 anos. A redação da informação é esta: de seu passaporte, querdizer; do contexto dos documentos, consta ter 19 anos. Portanto, é atualmente,maior. Assim sendo, não há nenhum obstáculo a sua expulsão. É evidentetambém que, se, abusando-se da detenção dessa moça, foi ela estuprada, oestupro constitui um crime comum, da competência da justiça local. Sobre estefato o Tribunal não teria que tomar providência alguma, sobretudo num hábeascorpus em que se trata de discutir e apurar outras questões. O processo criminaldo coator deve ser ordenado, em conseqüência do hábeas corpus, quando, pelofato da prisão, reconhecida a ilegalidade desta, haja responsabilidade daautoridade coatora, por abuso de poder. Só me cabe, pois, impossibilitado queestou de conhecer dos motivos da prisão, que é um ato de soberania deatribuição privativa do Poder Executivo, negar a ordem impetrada de acordocom o voto do Sr. Ministro Relator".

Votou em seguida o Ministro Artur Ribeiro, manifestando-se como segue:

"Sr. Presidente, para a expulsão, a lei exige duas condições: - que oindivíduo seja estrangeiro, - e nocivo à ordem pública e aos interesses da nação.Na primeira hipótese, o Tribunal deve verificar se é ou não estrangeiro. Asegunda hipótese é de competência do poder civil. Assim, nego a ordem, deacordo com o Senhor Relator".

Após o voto do Ministro Artur Ribeiro há certidão do assistente técnico dando conta dadecisão final, no seguinte sentido:

"Como consta da ata a decisão foi a seguinte: indeferiram o pedido, docomparecimento da paciente que se alega ter sido violada, unanimemente. Enegaram a ordem de hábeas corpus, também, unanimemente".

Segue o acórdão:

"Vistos e relatados os autos de petição de hábeas corpus em que épaciente Genny Gleiser; Acórdão os Ministros da Corte Suprema,unanimemente, indeferir o pedido de comparecimento da paciente que se alegater sido violada, e negar a ordem de hábeas corpus, também unanimemente, tudode acordo com os votos especificados na conformidade das notas taquigráficas

de acordo com os votos especificados na conformidade das notas taquigráficasjuntas aos autos. Custas ex-lege".

Com data de 30 de setembro de 1935 assinaram o acórdão Hermenegildo de Barros eAtaulfo de Paiva, nas qualidades, respectivamente, de Presidente da Corte e de relator.Hermenegildo de Barros integrava o Supremo Tribunal Federal desde 1919. A Constituiçãode 1937 diminuiu a idade de aposentadoria compulsória de 75 para 68 anos; Hermenegildoconsiderou-se automaticamente aposentado e não mais voltou ao tribunal (cf. BOECHATRODRIGUES, cit., p. 345). Hermenegildo escreveu livro de memórias, em quatro volumes,Memórias do Juiz Mais Antigo do Brasil. Ataulfo de Paiva fora nomeado para o SupremoTribunal Federal por Getúlio Vargas, em 1934. Ataulfo é reconhecido pelas obras de caridadee de assistência para as quais se dedicou, a exemplo da Liga Brasileira contra a Tuberculose(cf. BOECHAT RODRIGUES, cit., p. 389). Quanto a Genny, como visto, por unanimidade,não se deferiu seu pedido. A moça foi expulsa do país.

8) Conclusões

A Suprema Corte entendeu que Genny era estrangeira e nociva à ordem pública, o quejustificaria a legalidade do decreto de expulsão. Invocou-se que eventuais maus tratosdeveriam ser discutidos com as autoridades responsáveis, isto é, junto à polícia do estado deSão Paulo. A aproximação com comunistas comprovaria a nocividade à ordem pública, noentender dos Ministros do Supremo Tribunal Federal. O julgado desconcerta o intérpretecontemporâneo, habituado e forçado a perceber hipotético distanciamento entre direito epolítica, como ensinado recorrentemente nas escolas de direito. Perde-se tempo precioso noestudo de aspectos muito pretéritos e distantes da história da normatividade, deixando-se delado a análise de casos realmente eloqüentes, como o presente, que denuncia época perversa,maniqueísta, chauvinista, racista e machista. E boa parte do direito e dos autores quedigerimos são frutos deste tempo.

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Nota

01 A propósito do papel de Darcy Ribeiro, visto pelo Superior Tribunal Militar, consultar Hábeas Corpus nº29.824-Guanabara, Relator Ministro João Mendes, in Renato Lemos (org.), Justiça Fardada, o General PeriBevilaqua no Superior Tribunal Militar (1965-1969), p. 318 e ss.

Sobre o autorArnaldo Sampaio de Moraes Godoy

E-mail: Entre em contatoHome-page: www.arnaldogodoy.adv.br

Sobre o texto:Texto inserido no Jus Navigandi nº1550 (29.9.2007)Elaborado em 09.2007.

Informações bibliográficas:Conforme a NBR 6023:2000 da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto científico publicado emperiódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma:GODOY, Arnaldo Sampaio de Moraes. Direito e História: Genny Gleiser, o anti-semitismo na eraVargas e o Habeas Corpus nº 25906/1935. Um estudo de caso. Jus Navigandi, Teresina, ano 11, n.1550, 29 set. 2007. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=10474>. Acessoem: 30 jun. 2008.