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GRADUAÇÃO 2012.1 DIREITO GLOBAL II AUTOR: PAULA ALMEIDA

Direito global ii_2012-1

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GRADUAÇÃO 2012.1

DIREITO GLOBAL IIAUTOR: PAULA ALMEIDA

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SumárioDireito Global II

PARTE I — INTRODUÇÃO AO DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO .................................................................................... 4Aula 1 — APRESENTAÇÃO DA DISCIPLINA .......................................................................... 5Aula 2 — DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO COMO DISCIPLINA AUTÔNOMA

E SUA RELAÇÃO COM O DIREITO INTERNACIONAL PÚBLICO E OS DIREITOS HUMANOS ........................................................................................ 8

Aula 3 — AS FONTES DO DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO .................................. 11Aula 4 — CONFLITO DE FONTES: LEI X TRATADO ......................................................... 18Aula 5 — CONFLITO DE FONTES: TRATADO X CONSTITUIÇÃO ................................. 20Aula 6 — CONFLITO DE FONTES: DIREITO INTERNO X DIREITO DA INTEGRAÇÃO ....26

PARTE II — APLICAÇÃO DO DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO PELOS TRIBUNAIS NACIONAIS E INTERNACIONAIS................... 28

TÍTULO I — MÉTODOS DE DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO...................................................................................... 29

CAPÍTULO I — A APLICAÇÃO DO MÉTODO CONFLITUAL. .............................................................................................. 30Aula 7 — UNIFORMIZAÇÃO, HARMONIZAÇÃO E UNIFICAÇÃO DE LEGISLAÇÕES:

TRATADOS DE DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO E LEIS MODELO ........ 31Aula 8 — O PLURALISMO DE MÉTODOS DE DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO ....33Aula 9 — MÉTODO CONFLITUAL, QUALIFICAÇÃO E ELEMENTOS DE CONEXÃO ......35Aula 10 — ELEMENTOS DE CONEXÃO, LEI APLICÁVEL E REENVIO ............................ 38

CAPÍTULO II — AS EXCEÇÕES À APLICAÇÃO DO MÉTODO CONFLITUAL ............................................................................ 40Aula 11 — ORDEM PÚBLICA E NORMAS DE APLICAÇÃO DIRETA................................ 41Aula 12 — AUTONOMIA DA VONTADE E LEI APLICÁVEL .............................................. 51Aula 13 — CLÁSULA DE ELEIÇÃO DE FORO ...................................................................... 58

TÍTULO II — PROCESSO CIVIL INTERNACIONAL ...................................................................................................... 114Aula 14 — COMPETÊNCIA INTERNACIONAL DOS TRIBUNAIS BRASILEIROS ......... 115Aula 15 — IMUNIDADE DE JURISDIÇÃO DE ESTADOS ................................................. 126Aula 16 — APLICAÇÃO INTERPRETAÇÃO E PROVA DO DIREITO ESTRANGEIRO .. 183Aula 17— ESTUDO DA LEI DE INTRODUÇÃO ÀS NORMAS DO

DIREITO BRASILEIRO (LINDB) — DECRETO-LEI Nº 4657/42 .......................... 187

TÍTULO III — COOPERAÇÃO INTERNACIONAL ......................................................................................................... 194Aula 18 — HOMOLOGAÇÃO DE SENTENÇAS ESTRANGEIRAS ................................... 195Aula 19 — CARTAS ROGATÓRIAS ....................................................................................... 236Aula 20 — AUXÍLIO DIRETO ................................................................................................ 255

BIBLIOGRAFIA ............................................................................................................................................... 328

ANEXOS ........................................................................................................................................................ 330

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1 LALIVE, Pierre. Tendances et méthodes

en droit international privé. Recueil des

Cours de l’Académie de Droit Interna-

tional de la Haye, 1977, t. 155. Alphen

aan den Rijn (The Netherlands): Sijthoff

& Noordhoff , 1979, p. 14. Tradução

livre: Por que um direito internacional

privado? Simplesmente porque o mun-

do não é único, do ponto de vista das

leis que o regem, e que, na sua grande

maioria, os homens não vivem, ou não

mais, dentro de sociedades fechadas,

como populações insulares, montanho-

sas ou rurais de outra época.

Pourquoi un droit international privé? Tout simplesment parce que le monde n’est pas un, du point de vue des lois qui le régissent, et que, dans leur très grande ma-jorité, les hommes ne vivent pas, ou plus, dans des societés closes, comme populations insulaires, montagnardes ou rurales d’autrefois. 1

Pierre Lalive

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PARTE I — INTRODUÇÃO AO DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO

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2 Dicionário Eletrônico Houaiss —

substantivo feminino — Rubrica:

termo jurídico. Situação jurídica do

indivíduo forâneo no país em que se

encontra.

AULA 1 — APRESENTAÇÃO DA DISCIPLINA

1. TÍTULO: INTRODUÇÃO AO CURSO E APRESENTAÇÃO DA DISCIPLINA

2. VISÃO GERAL:

O curso é uma introdução ao fenômeno do Direito Internacional Privado como disciplina jurídica e trata das relações jurídicas privadas de caráter in-ternacional. Nesse sentido, o foco desse segundo módulo da disciplina de Di-reito Global é o indivíduo. O Direito Internacional Privado, em oposição ao Direito Internacional Público, é eminentemente um ramo do direito interno, pois trata das relações privadas internas e plurilocalizadas de cada Estado.

Na primeira parte do curso trataremos das questões introdutórias, a re-lação entre o Direito Internacional Privado, Direito Internacional Público e Direitos Humanos, as fontes do Direito Internacional Privado (DIPr) e os confl itos de lei no espaço ou os chamado, por alguns autores, confl itos de fontes. Na segunda parte do curso, trataremos da aplicação das regras e da sistemática própria do Direito Internacional Privado pelos Tribunais Nacio-nais e Internacionais bem como dos principais temas e debates desse ramo jurídico. Por fi m, trataremos de algumas noções básicas de processo civil in-ternacional e cooperação internacional.

É preciso ter sempre em mente que o objetivo primordial do Direito In-ternacional Privado é solucionar relações jurídicas privadas internacionais, principalmente por meio da resolução de confl itos de leis no espaço, ou seja, “confl itos” entre leis de diversos ordenamentos jurídicos igualmente aplicá-veis a uma relação jurídica com elemento de estraneidade 2. Nesse sentido, o objetivo primordial do curso é conferir ao aluno as ferramentas necessárias à análise e a resolução desses confl itos.

3. HABILIDADES

Durante o curso os alunos trabalharão habilidades e competências relacio-nadas ao conhecimento, à compreensão, à análise, à aplicação, à síntese e à avaliação por meio de atividades realizadas antes, durante e depois das aulas.

Nas atividades pré-aula os alunos trabalharão habilidades e competências relacionadas ao conhecimento, à compreensão e à análise, por meio da reali-zação de leituras e estudos dirigidos, que pressupõem os processos de defi nir, identifi car, interpretar, explicar, descrever, diferenciar, relacionar e formular perguntas e hipóteses.

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Durante as aulas os alunos trabalharão habilidades e competências relacio-nadas à análise, à síntese e à avaliação por meio do debate, o qual pressupõe os processos de diferenciar, relacionar, interpretar, imaginar, formular per-guntas e hipóteses, argumentar, criticar, decidir e expressar-se oralmente em grande grupo. Além dessas, trabalharão também habilidades e competências relacionadas aos objetivos afetivos, tais como falar em público, respeito a opiniões diferentes e outras habilidades interpessoais.

Nas atividades pós-aula os alunos trabalharão habilidades e competências relacionadas à análise, à aplicação, à síntese e à avaliação por meio da realiza-ção de resenhas, resolução de casos e dissertações, atividades as quais pressu-põem os processos de organizar, consolidar, interpretar, aplicar, solucionar e expressar-se por escrito.

4. METODOLOGIA

Será utilizada a metodologia expositiva e participativa, bem como demais recursos didáticos. Serão realizados debates em grupo para discussão dos temas propostos, conjugados com análises jurisprudenciais comparadas. A maior parte dos pontos da disciplina serão contextualizados mediante situ-ações-problema específi cas, o que pressupõe uma constante participação do aluno em sala de aula.

Os principais métodos a serem utilizados poderão ser resumidos conforme segue:

(i) análise de casos;(ii) análise de julgados;(iii) aulas expositivo-participativas;(iv) estudos dirigidos;(v) debates;(vi) resenhas.

5. LEITURAS

As aulas são baseadas nos textos obrigatórios escolhidos para cada encon-tro, mas não estão limitadas a eles, podendo o programa ser modifi cado a qualquer tempo com a devida comunicação aos alunos.

Os debates, realizados por grupos pré-determinados de alunos, deverão se basear nos textos indicados pelo professor no presente material de apoio, podendo sofrer alterações. Os alunos devem estar preparados para discutir as leituras obrigatórias na sala de aula, que serão consideradas matéria dada para a prova.

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6. FORMA DE AVALIAÇÃO

Serão realizadas duas provas ao longo do curso. A primeira prova valerá 8,0 (oito) pontos. A nota da primeira prova será complementada pela nota referente aos debates realizados em grupo, que valerão 2,0 (dois) pontos. A segunda prova também valerá 8,0 (oito) pontos e a nota dessa prova também será complementada pela nota referente aos debates realizados em grupo, que valerão 2,0 (dois) pontos. As provas serão dissertativas, individuais e realiza-das sem consulta.

A nota dos debates corresponde (i) à qualidade da discussão oral, na qual o aluno deverá levantar pontos controversos sobre o assunto da aula em ques-tão, despertando o interesse da turma acerca do tema; e (ii) à postagem na WikiDireito da resenha do texto indicado baseada no debate realizado em sala. Durante os debates, o aluno será questionado acerca de conhecimentos específi cos relacionados às leituras indicadas para a promoção do debate.

A apresentação oral será avaliada de acordo com os seguintes critérios: (i) conteúdo; (ii) precisão no uso de conceitos jurídicos; (iii) capacidade de rela-cionar tópicos distintos da matéria; e (iv) clareza na exposição/concatenação de idéias.

7. PRESENÇA

A presença constante do aluno em sala de aula será rigorosamente verifi ca-da. As chamadas serão feitas a qualquer momento durante as aulas, a critério do professor. O aluno que não estiver presente na realização da chamada terá sua presença automaticamente desconsiderada.

8. COMPORTAMENTO EM SALA DE AULA

Caberá aos alunos e aos professores assegurar um ambiente propício ao aprendizado. Assim, pede-se manter telefones celulares desligados; evitar atrasos e interrupções desnecessárias; limitar as saídas da sala de aula a casos de urgência; e evitar conversas paralelas.

9. HORÁRIO DE ATENDIMENTO EXTRACLASSE

O horário de atendimento extraclasse será ______________________.

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AULA 2 — DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO COMO DISCIPLINA AUTÔNOMA E SUA RELAÇÃO COM O DIREITO INTERNACIONAL PÚ-BLICO E OS DIREITOS HUMANOS

1. TEMAS ESPECÍFICOS:

1) Direito Internacional Privado como disciplina jurídica autônoma;2) Situações jurídicas plurilocalizadas ou transnacionais;3) Concepções de Direito Internacional Privado;4) Interseção entre Direito Internacional Privado, Direito Internacional

Público e Direitos Humanos.

2. MÉTODO DE ENSINO:

Aula expositiva e participativa.

3. LEITURA PARA TODOS OS ALUNOS:

3.1. Leitura obrigatória:

DOLINGER, Jacob. Direito Internacional Privado: Parte Geral. 9ª Ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, pp. 1 — 24.

3.2. Leitura complementar:

RECHSTEINER, Beat Walter. Direito Internacional Privado: Teoria e Práti-ca. 13ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2010, pp.47-74 e pp.231-254.

DOLINGER, Jacob. Direito Internacional Privado — Parte Geral. 9ª Ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, pp. 127 — 154.

TEIXEIRA, Carla Noura. Direito Internacional Público, Privado e dos Direitos Humanos. Coleção Roteiros Jurídicos. São Paulo: Saraiva, 2007.

4. LEITURA PARA O DEBATE

4.1. LEITURA PARA O GRUPO

ARAUJO, Nadia de. Direito Internacional Privado: Teoria e Prática Brasileira. 3ª Ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, pp. 9-32.

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4.2. JURISPRUDÊNCIA

4.2.1. CASO: MILIKEN V. PRATT (ANEXO I).

4.2.2. FRAGMENTO DE JURISPRUDÊNCIA

Acórdão Inteiro Teor nº RR-186000-18.2004.5.01.0034 de 8ª Turma, 06 de Outubro de 2010.

TST — RR — 186000-18.2004.5.01.0034 — Data de publicação: 15/10/2010. 1ª TURMA VMF.

EMENTA

RECURSO DE REVISTA — CONFLITO DE LEIS NO ESPAÇO — CONTRATO INTERNACIONAL DE TRABALHO. A discussão sobre o mecanismo de solução do confl ito de leis no espaço ganha relevo no ponto de desenvolvimento do capitalismo brasileiro, em que as empresas nacionais ou transnacionais, cada vez mais, expandem seus negócios além das fronteiras, fazendo com que empregados brasileiros tenham seus contratos de trabalho executados, parcial ou totalmente, em outros países. Essa tendência crescente leva à refl exão se os modelos tradicionais de solução atendem a essa realidade complexa e em contínua mutação. Tradicionalmente, os modelos clássicos de solução de confl ito de leis no espaço têm seguido dois enfoques: i) norma do art. 9º da Lei de Introdução ao Código Civil, pela qual as obrigações são qualifi cadas e regidas pela lei do país em que se constitui o contrato; (ii) nor-ma do art. 198 do Código de Bustamante e consagrado na Súmula nº 207 do TST, que adota o princípio da territorialidade e estabelece a —lex loci execu-tionis-, na qual se pressupõe que o contrato de trabalho seja pactuado para a prestação dos serviços em país diverso do país onde efetuada a contratação, adotando-se as regras integrais daquele em detrimento das deste. Mais recen-temente, por construção jurisprudencial, tem sido, ainda, aplicada a norma do art. 3º da Lei nº 7.064/82, inicialmente prevista para os trabalhadores do ramo de engenharia civil, que relativiza a regra do art. 198 do Código de Bus-tamante, determinando a observação da lei brasileira, quando mais favorável do que a legislação territorial no conjunto de normas em relação à matéria. Aponta-se, ainda, como novo mecanismo de solução de confl itos o método unilateral, segundo o qual não se busca de maneira objetiva a lei aplicável, mas sim a norma aplicável que melhor solucione o litígio a partir de fatores relevantes, consagrado no direito americano no —Restatement Second of Confl ict of Law-, também concebido como princípio da proximidade ou da relação mais signifi cativa. Verifi ca-se que a situação do autor, contratado no Brasil, tendo aqui prestado serviços e, posterior e sucessivamente, sido trans-ferido a dois outros países, mas com manutenção do contrato de trabalho no

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Brasil, inclusive com depósitos na conta vinculado do FGTS, o que indiscu-tivelmente concede a expectativa de retorno, confi rmada pela conclusão do contrato de trabalho em território brasileiro, aponta uma dessas situações em que, pela unicidade contratual, não há elemento de conexão capaz de abran-ger a complexidade da contingência, fugindo aos enfoques clássicos de solu-ção. Nessa medida, a decisão da Corte Regional em que se adotou a regra do art. 3º da Lei nº 7.064/82 não contraria a Súmula nº 207 do TST. Recurso de revista não conhecido.

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AULA 3 — AS FONTES DO DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO

1. TEMAS ESPECÍFICOS:

1) Fontes do Direito Internacional;2) Fontes do Direito Internacional Privado.

2. MÉTODO DE ENSINO:

Aula expositiva e participativa.

3. LEITURA PARA TODOS OS ALUNOS:

3.1. Leitura obrigatória:

DOLINGER, Jacob. Direito Internacional Privado — Parte Geral. 9ª Ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, pp. 61 — 87.

ARAUJO, Nadia de. Direito Internacional Privado: Teoria e Prática Brasileira. 3ª Ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, pp. 129-135.

3.2. Leitura complementar:

RECHSTEINER, Beat Walter. Direito Internacional Privado: Teoria e Práti-ca. 13ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2010, pp.231-254.

FERREIRA JÚNIOR, Lier Pires; CHAPARRO, Verônica Zarete (Coord.). Curso de Direito Internacional Privado. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2006, pp. 69-90.

4. LEITURA PARA O DEBATE

4.1. LEITURA PARA O GRUPO

RECHSTEINER, Beat Walter. Direito Internacional Privado: Teoria e Práti-ca. 13ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2010, pp.140-157.

MORE, Rodrigo Fernandes. Fontes do Direito Internacional. Trabalho intro-dutório do Curso sobre Direito dos Tratados do autor, doutor em Direi-to Internacional pela USP e diretor do Instituto de Estudos Marítimos.

Disponível em: http://www.more.com.br/artigos/Fontes%20do%20Di-reito%20Internacional.pdf

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4.2. JURISPRUDÊNCIA

4.2.1. CASO: GRECO-BULGARIAN “COMMUNITIES”.

Permanent Court of International Justice Advisory Opinion of 31 July 1930

Disponível em:http://www.icj-cij.org/pcij/serie_B/B_17/01_Communautes_greco-bul-

gares_Avis_consultatif.pdf

4.2.2. FRAGMENTO DO CASO

Th e circumstances which led the Council to submit to the Court the above-mentioned Request for an opinion may be summarized as follows: Following upon the entry into force of the Greco-Bulgarian Convention res-pecting reciprocal emigration on August 9th, 1920, and in pursuance of a Resolution of the Council of the League of Nations dated September 20th, 1920, the Mixed Emigration Commission, which was provided for in Arti-cles 8 and 9 of the Convention l, assembled at Geneva on December 18th, 1920. Almost at the beginning of its sittings, it took up the question of the interpretation of the Emigration Convention, the provisions of which it examined, article by article, in the course of the 6th to the 48th meetings (December 24th, 1920 — July 11th, 1921) ; a very considerable part of this time — especially on and after February 17th (28th meeting) — was devo-ted to the discussion of Article 12 of the Convention. Th is article, which the Commission had considered very diffi cult to construe, formed the subject of a detailed report which had been drawn up by the neutral member of the Commission and the conclusions of which were adopted by the Commission on July 11th (48th meeting). On January 10th, 1921 (15th meeting), the question of the preparation of rules was raised in connection with Article 9; this work however was not seriously taken in hand until later (January-Mar-ch 1922) ; it was completed on March 4th, 1922 (96th meeting), when the Commission unanimously adopted “Rules for the reciprocal and voluntary emigration of the Greek and Bulgarian Minorities”.

It offi cially communicated these Rules to the two Governments concer-ned on March 6th, 1922. Not until this was done did the Commission un-dertake the practical application of the Convention. During the preliminary stages of its work and the early years of its existence, the Commission was led to adopt, more or less incidentally, a number of decisions aff ecting the interpretation of the Convention with respect to the position of communi-ties. Th ese decisions, which are enumerated in the written statement sent by

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the Commission to the Court at the latter’s request, related amongst others to the following points:

(…)Meantime, and in view of the fact that the documents relating to a num-

ber of cases of the verifi cation of the rights of ownership in and of the valu-ation of certain immovable property belonging to communities had reached it, the Commission in August 1926 put to the representatives of the two Governments concerned questions relating to the following points bearing on the interpretation of Articles 6 and 7 of the Convention: (…)

On these points, notes and written statements were presented to the Mi-xed Commission by the Bulgarian and Greek representatives. It was in these circumstances that the Commission decided “to instruct its President to put to the Legal Section of the League of Nations, on behalf of the Mixed Com-mission, such questions as he might consider advisable”. On the basis of the opinions obtained in this way and from other sources, the neutral members of the Commission, in August 1928, after a period of direct negotiation betwe-en the two Governments concerned, laid before the representatives of these Governments two interpretations of the clauses of the Convention relating to the points at issue. Th e Bulgarian and Greek members of the Commission expressed their views-by, means of letters to the President (meeting of August 24th,1928)-with regard to the proposals in question, the Greek member ac-cepting the second and the Bulgarian member adopting the fi rst without being able to agree upon a solution acceptable to both Parties. In these circumstan-ces, the President of the Commission, on September 15th, 1928, addressed to the Bulgarian and Greek Governments a letter in which he suggested for the fi rst time that it might perhaps be useful if the Permanent Court of Interna-tional Justice could be asked to give an advisory opinion upon the diffi culties encountered by the Commission with regard to the interpretation to be pla-ced on the clauses of the Emigration Convention relating to communities.

Th e suggestion, which remained for a considerable time without respon-se, was put forward again, more particularly in a letter of July 31st, 1929. A long series of discussions in the Mixed Commission followed; fi nally, at the beginning of December 1929, they culminated in the sending by the two Governments to the President of written declarations whereby they mutually consented in principle to a procedure consisting in obtaining an advisory opinion from the Court; this consent, however, was given on both sides sub-ject to an express reservation with regard to the fi nal form to be given to the questions to be submitted to the Court. In pursuance of a fi nal decision of the Commission, its President prepared and submitted to his colleagues a draft list of questions.

As this list was not accepted by the representatives of the two Govern-ments concerned, it was agreed that the latter might send to the Commis-

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sion any additions which they wished to make to the questionnaire. Herein lies the origin of the fact that fi rst the Council and subsequently the Court had before them three lists of questions, which constitute the questionnaires drawn up by the Mixed Commission, the Bulgarian Government and the Greek Government respectively and annexed to the Council’s Resolution. Th ose of the two national members were submitted at the meeting of De-cember 18th,1929. At the same meeting the Commission approved, fi rstly the letter-reproduced in the early part of the present Opinion —sent on the following day by the President of the Commission to the Secretary-General of the League of Nations, in order to set in motion the procedure for obtai-ning an opinion —and secondly the list of documents relating to the matter, which the Secretary-General would be requested to transmit to the Court. At a previous meeting (December 3rd), the President had already submitted to the Commission a statement indicating the procedure which he thought should be followed-or which, in his view, would be followed-for the purpose of obtaining the opinion of the Court.

Th is statement seems to have been offi cially transmitted to the two Go-vernments concerned on behalf of the Commission. Th is document, after analyzing the relevant provisions of Article 73 of the Rules of Court, says that “the [written] statements of the two Parties should conclude with their respective submissions. In these submissions, each Party should enumerate the submissions which it wishes the Court to confi rm.” Leaving aside the question of the correctness of the opinion thus expressed in relation to ad-visory procedure, it is to be observed that the two Governments concerned have conformed to it: the Memorial fi led by each of them is in fact termi-nated by a series of “submissions” containing the replies proposed by them to the various questions upon which the Court’s opinion is sought. Th ese submissions may usefully be reproduced here as authoritative summaries of the opposing contentions:

SUBMISSIONS OF THE BULGARIAN GOVERNMENT:[See List of questions drawn up by the Bulgarian Government in annex

of the case]SUBMISSIONS OF THE GREEK GOVERNMENT:[See List of questions drawn up by the Greek Government in annex of

the case](…)Before answering the questions put, the Court considers it necessary to

recall the general purpose which the Greco-Bulgarian Convention of No-vember 27th, 1919, respecting emigration, was designed to fulfi ll, as also those of its provisions which have to be applied and the scope of which should therefore be clearly defi ned. Th e Greco-Bulgarian Convention con-

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cerning emigration constitutes, according to its Preamble, the execution of Article 56, paragraph 2, of the Peace Treaty concluded the same day between the Allied and Associated Powers and Bulgaria. Th is article forms part of the provisions relating to the protection of minorities.

Th is shows the close relationship existing between the Convention and the general body of the measures designed to secure peace by means of the protec-tion of minorities. It was in this spirit, as stated in the Preamble, that the Prin-cipal Allied and Associated Powers considered it opportune that the reciprocal and voluntary emigration of minorities in Greece and Bulgaria should be regu-lated by the Convention. It follows that this Convention cannot apply to per-sons other than those who formed minorities in either one country or the other.

Th e general purpose of the instrument is thus, by as wide a measure of reciprocal emigration as possible, to eliminate or reduce in the Balkans the centres of irredentist agitation which were shown by the history of the prece-ding periods to have been so often the cause of lamentable incidents or serious confl icts, and to render more eff ective than in the past the process of pacifi ca-tion in the countries of Eastern Europe. With these objects in view, the Con-vention not only lays down that the departure of persons wishing to emigrate is not to be hindered in any way, but also contains clauses designed to prevent the material losses which their emigration might entai1 upon them.

Furthermore, but always in the same spirit, the Convention seeks to sta-bilize emigrations which have taken place in the past and, with this object, gives to these former emigrants —mostly refugees who had fl ed in conse-quence of wars or acts of violence-the possibility of recovering, if not the actual property, at all events the value of the property which they had been compelled to abandon on their departure. In both cases it will readily be understood that, without their clauses regarding property, there would have been hesitation in the reciprocal emigration desired by the Powers, and the permanent settlement of the former refugees would have remained a matter of uncertainty for lack of encouragement.

Th e general purpose of the Convention would thus have been compro-mised. In these circumstances, the Convention makes provision fi rst and foremost (Articles 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7) for emigration subsequent to the Con-vention and carried out in accordance with its terms, and, secondly and sub-sidiarily, in a special clause deals with emigration previous to the entry into force of the Convention. Th is clause constitutes Article 12.

It should be observed that the Convention, by its provisions, which lay down the conditions under which the right of emigration is to be exercised by the respective nationals of the two States, which remove any obstacles which might interfere with their departure-save of course for a serious conviction under the ordinary law-which fi x conditions as regards age, as also conditions respecting married women and children and which, in the case of the former

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refugees, stipulate that departure is to be followed by settlement, has clearly indicated that it was individuals who were entitled to take advantage of its terms. Nevertheless, the material benefi ts which from time immemorial in the East individuals of the same race, religion, language and traditions, have derived from uniting into communities, are well known.

Accordingly, the Convention does not confi ne itself to protecting the sepa-rate property of individuals (Article 2,paragraph 2, Article 6, paragraph 1, and Article 7), but also aims at securing for them, subject to certain conditions and formalities, the possibility of taking away with them the movable property and of receiving the value of the immovable property of the communities which are dissolved by reason of their emigration, collective property thus being assimi-lated to individual property. In the light of these preliminary observations, the various questions put to the Court cal1 for the following remarks:

QUESTIONS DRAWN UP BY THE MIXED COMMISSION:[See List of questions drawn up by the Mixed Commission in annex of

the case].(...)

5º “If the application of the Convention of Neuilly is at variance with a pro-vision of interna1 law in force in the territory of one of the two Signatory Powers, which of the confl icting provisions should be preferred-that of the law or that of the Convention?”

In the fi rst place, it is a generally accepted principle of international law that in the relations between Powers who are contracting Parties to a treaty, the provisions of municipal law cannot prevail over those of the treaty. In the second place, according to Article 2, paragraph 1, and Article 15 of the Greco-Bulgarian Convention, the two Governments have undertaken not to place any restriction on the right of emigration, notwithstanding any muni-cipal laws or regulations to the contrary, and to modify their legislation in so far as may be necessary to secure the execution of the Convention. In these circumstances, if a proper application of the Convention were in confl ict with some local law, the latter would not prevail over the convention.

FOR THESE REASONS,Th e Court is unanimously of opinion that the answers to the questions

submitted to it are as follows:1. — Answers to the questions drawn up by the Mixed Commission

(...)

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5. LEGISLAÇÃO

Anexo do Decreto nº 19.841, de 22 de outubro de 1945.(Estatuto da Corte Internacional de Justiça)Decreto-Lei Nº 4657/42 — Lei de Introdução às Normas do Direito Bra-

sileiro.

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AULA 4 — CONFLITO DE FONTES: LEI X TRATADO

1. TEMAS ESPECÍFICOS:

1) “Confl itos de Leis” no Direito Internacional Privado;2) O Problema do Confl ito de Fontes;3) Confl ito entre Lei e Tratado.

2. MÉTODO DE ENSINO:

Aula expositiva e participativa.

3. LEITURA PARA TODOS OS ALUNOS:

3.1. Leitura obrigatória:

DOLINGER, Jacob. Direito Internacional Privado — Parte Geral. 9ª Ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, pp. 88 — 126.

3.2. Leitura complementar:

REZEK, José Francisco. Direito Internacional Público: Curso Elementar. 12ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2010, pp. 9-24; 46-104; 120-142.

DOLINGER, Jacob. As soluções da Suprema Corte Brasileira para os Confl itos entre o Direito Interno e o Direito Internacional: um Exército de Ecletismo. Revista Forense, vol. 334, pp. 71-107.

TIBURCIO, Carmen. Temas de Direito Internacional. Rio de Janeiro: Reno-var, 2006, pp. 3-45.

4. LEITURA PARA O DEBATE

4.1. LEITURA PARA O GRUPO

ARAUJO, Nadia de. Direito Internacional Privado: Teoria e Prática Brasileira. 3ª Ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, pp. 136-170.

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4.2. JURISPRUDÊNCIA

4.2.1. CASE CONCERNING THE APPLICATION OF THE CONVENTION OF 1902 GO-VERNING THE GUARDIANSHIP OF INFANTS — JUDGMENT OF 28 NOVEMBER 1958.

Disponível em: http://www.icj-cij.org/docket/fi les/33/2265.pdf (resumo)http://www.icj-cij.org/docket/fi les/33/2263.pdf (íntegra)

4.2.2. OPINIÃO CONSULTIVA Nº 01/2007 DO TRIBUNAL PERMANENTE DE REVI-SÃO DO MERCOSUL

Disponível em:http://www.mercosur.int/innovaportal/fi le/PrimeraConsultiva_PT.pdf?c

ontentid=441&version=1&fi lename=PrimeraConsultiva_PT.pdf

* O PROFESSOR DEVE SELECIONAR UM DOS CASOS.

5. LEGISLAÇÃO

Decreto Nº 7.030/09 — Convenção de Viena Sobre o Direito dos Trata-dos.

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AULA 5 — CONFLITO DE FONTES: TRATADO X CONSTITUIÇÃO

1. TEMAS ESPECÍFICOS:

1) O Problema do Confl ito de Fontes;2) Confl ito entre Tratado e Constituição.

2. MÉTODO DE ENSINO:

Aula expositiva e participativa.

3. LEITURA PARA TODOS OS ALUNOS:

3.1. Leitura obrigatória:

PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacio-nal. 11ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2011, pp. 51-110.

3.2. Leitura complementar:

REZEK, José Francisco. Direito Internacional Público: Curso Elementar. 12ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2010, pp. 9-24; 46-104; 120-142.

DOLINGER, Jacob. As soluções da Suprema Corte Brasileira para os Confl itos entre o Direito Interno e o Direito Internacional: um Exército de Ecletismo. Revista Forense, vol. 334, pp. 71-107.

TIBURCIO, Carmen. Temas de Direito Internacional. Rio de Janeiro: Reno-var, 2006, pp. 3-45.

ARAUJO, Nadia de. Direito Internacional Privado: Teoria e Prática Brasileira. 3ª Ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, pp. 136-170.

FRANCESCHINI, José Inácio Gonzaga. Confl ito entre os Tratados Interna-cionais e as Normas de Direito Interno que lhes forem posteriores. Revista dos Tribunais, ano 71, v.556, fev. 1982.

Disponível em: http://www.fm-advogados.com.br/images/fm_artigos/52.pdf

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4. LEITURA PARA O DEBATE

4.1. LEITURA PARA O GRUPO

BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição: Fun-damentos de uma Dogmática Constitucional Transformadora. 6ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2004, pp. 13-50.

4.2. JURISPRUDÊNCIA

4.2.1. HC 94.307-1 / RS INTEIRO TEOR DO JULGAMENTO (STF)

Disponível em: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP =AC&docID=591313

4.2.2. RE 466.343 / SP — VOTO DO MINISTRO GILMAR MENDES (STF), PÁGINAS 1— 29.

Disponível em: http://www.stf.jus.br/imprensa/pdf/re466343.pdf

4.2.3. INFORMATIVO Nº 550 DO STF

TÍTULO: Depositário Infi el — Prisão Civil — Inadmissibilidade (Trans-crições)

PROCESSO: HC — 98893 — Depositário Infi el — Prisão Civil — Inadmissibilidade (Transcrições) HC 98893 MC/SP* RELATOR: MIN. CELSO DE MELLO.

EMENTA: “HABEAS CORPUS”. PRISÃO CIVIL. DEPOSITÁRIO JU-DICIAL. A QUESTÃO DA INFIDELIDADE DEPOSITÁRIA. TRATADOS INTERNACIONAIS DE DIREITOS HUMANOS. A JURISPRUDÊNCIA CONSTITUCIONAL DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ILEGITI-MIDADE JURÍDICA DA DECRETAÇÃO DA PRISÃO CIVIL DO DEPO-SITÁRIO INFIEL. MEDIDA CAUTELAR DEFERIDA. Não mais subsiste, no modelo normativo brasileiro, a prisão civil por infi delidade depositária, independentemente da modalidade de depósito, trate-se de depósito volun-tário (convencional) ou cuide-se de depósito necessário, como o é o depósito judicial. Incabível, desse modo, no sistema constitucional vigente no Brasil, a decretação de prisão civil do depositário infi el. Doutrina. Precedentes. DE-CISÃO: Trata-se de “habeas corpus”, com pedido de medida liminar, impe-

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trado contra decisão emanada de eminente Ministro do E. Superior Tribunal de Justiça, que, em sede de idêntico processo (HC nº 108.025/SP), negou seguimento ao “writ” constitucional deduzido perante aquela Alta Corte (fl s. 46/47), mantendo a decisão denegatória proferida pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo nos autos do HC nº 7.211.878-6 (fl s. 43/44). Pre-tende-se, nesta sede processual, a concessão da ordem de “habeas corpus”, para invalidar, ante a sua suposta ilegalidade, o decreto de prisão civil do ora paciente. Nas informações prestadas a fl s. 72, o MM. Juiz de Direito da 3ª Vara Cível da comarca de Itapetininga/SP esclareceu que subsiste, contra o ora paciente, o “decreto de prisão civil”. Sendo esse o contexto, passo a exa-minar o pedido de medida cautelar. E, ao fazê-lo, entendo plenamente aco-lhível a pretensão jurídica deduzida na presente causa. Com efeito, o Plenário desta Suprema Corte, no julgamento conjunto do RE 349.703/RS, Rel. p/ o acórdão Min. GILMAR MENDES, do RE 466.343/SP, Rel. Min. CEZAR PELUSO, do HC 87.585/TO, Rel. Min. MARCO AURÉLIO e do HC 92.566/SP, Rel. Min. MARCO AURÉLIO, fi rmou o entendimento de que não mais subsiste, em nosso sistema constitucional, a possibilidade jurídica de decretação da prisão civil do depositário infi el, inclusive a do depositário judicial. Nos julgamentos mencionados, o Supremo Tribunal Federal, ao as-sim decidir, teve presente o que dispõem, na matéria, a Convenção America-na sobre Direitos Humanos/Pacto de São José da Costa Rica (Artigo 7º, § 7º) e o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (Artigo 11). Em con-sequência de tais decisões plenárias, esta Suprema Corte, no julgamento do HC 92.566/SP, Rel. Min. MARCO AURÉLIO, declarou expressamente re-vogada a Súmula 619/STF, que autorizava a decretação da prisão civil do depositário judicial no próprio processo em que se constituiu o encargo, in-dependentemente do prévio ajuizamento da ação de depósito. Vê-se, daí, que a decretação da prisão civil do depositário infi el, inclusive a do depositário judicial, constitui ato arbitrário, sem qualquer suporte em nosso ordenamen-to positivo, porque absolutamente incompatível com o sistema de direitos e garantias consagrado na Constituição da República e nos tratados internacio-nais de direitos humanos (HC 89.634/SP, Rel. Min. MARCO AURÉLIO — HC 94.523/SP, Rel. Min. CARLOS BRITTO — HC 94.695/RS, Rel. Min. CELSO DE MELLO — HC 96.234/MS, Rel. Min. MENEZES DI-REITO, v.g.): “‘HABEAS CORPUS’ — PRISÃO CIVIL — DEPOSITÁ-RIO JUDICIAL — A QUESTÃO DA INFIDELIDADE DEPOSITÁRIA — CONVENÇÃO AMERICANA DE DIREITOS HUMANOS (ARTI-GO 7º, n. 7) — HIERARQUIA CONSTITUCIONAL DOS TRATADOS INTERNACIONAIS DE DIREITOS HUMANOS — PEDIDO DEFE-RIDO. ILEGITIMIDADE JURÍDICA DA DECRETAÇÃO DA PRISÃO CIVIL DO DEPOSITÁRIO INFIEL. — Não mais subsiste, no sistema nor-mativo brasileiro, a prisão civil por infi delidade depositária, independente-

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mente da modalidade de depósito, trate-se de depósito voluntário (conven-cional) ou cuide-se de depósito necessário, como o é o depósito judicial. Precedentes. TRATADOS INTERNACIONAIS DE DIREITOS HUMA-NOS: AS SUAS RELAÇÕES COM O DIREITO INTERNO BRASILEI-RO E A QUESTÃO DE SUA POSIÇÃO HIERÁRQUICA. — A Conven-ção Americana sobre Direitos Humanos (Art.7º, n. 7). Caráter subordinante dos tratados internacionais em matéria de direitos humanos e o sistema de proteção dos direitos básicos da pessoa humana. — Relações entre o direito interno brasileiro e as convenções internacionais de direitos humanos (CF, art. 5º e §§ 2º e 3º). Precedentes. — Posição hierárquica dos tratados inter-nacionais de direitos humanos no ordenamento positivo interno do Brasil: natureza constitucional ou caráter de supralegalidade? — Entendimento do Relator, Min. CELSO DE MELLO, que atribui hierarquia constitucional às convenções internacionais em matéria de direitos humanos. A INTERPRE-TAÇÃO JUDICIAL COMO INSTRUMENTO DE MUTAÇÃO INFOR-MAL DA CONSTITUIÇÃO. — A questão dos processos informais de mu-tação constitucional e o papel do Poder Judiciário: a interpretação judicial como instrumento juridicamente idôneo de mudança informal da Constitui-ção. A legitimidade da adequação, mediante interpretação do Poder Judiciá-rio, da própria Constituição da República, se e quando imperioso compati-bilizá-la, mediante exegese atualizadora, com as novas exigências, necessidades e transformações resultantes dos processos sociais, econômicos e políticos que caracterizam, em seus múltiplos e complexos aspectos, a sociedade con-temporânea. HERMENÊUTICA E DIREITOS HUMANOS: A NORMA MAIS FAVORÁVEL COMO CRITÉRIO QUE DEVE REGER A INTER-PRETAÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO. — Os magistrados e Tribunais, no exercício de sua atividade interpretativa, especialmente no âmbito dos tratados internacionais de direitos humanos, devem observar um princípio hermenêutico básico (tal como aquele proclamado no Artigo 29 da Conven-ção Americana de Direitos Humanos), consistente em atribuir primazia à norma que se revele mais favorável à pessoa humana, em ordem a dispensar-lhe a mais ampla proteção jurídica. — O Poder Judiciário, nesse processo hermenêutico que prestigia o critério da norma mais favorável (que tanto pode ser aquela prevista no tratado internacional como a que se acha positi-vada no próprio direito interno do Estado), deverá extrair a máxima efi cácia das declarações internacionais e das proclamações constitucionais de direitos, como forma de viabilizar o acesso dos indivíduos e dos grupos sociais, nota-damente os mais vulneráveis, a sistemas institucionalizados de proteção aos direitos fundamentais da pessoa humana, sob pena de a liberdade, a tolerân-cia e o respeito à alteridade humana tornarem-se palavras vãs. — Aplicação, ao caso, do Artigo 7º, n. 7, c/c o Artigo 29, ambos da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica): um caso típico de

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primazia da regra mais favorável à proteção efetiva do ser humano.” (HC 90.450/MG, Rel. Min. CELSO DE MELLO) É importante ressaltar que a diretriz jurisprudencial mencionada prevalece, sem maiores disceptações, na jurisprudência constitucional do Supremo Tribunal Federal, como resulta claro de decisão desta Suprema Corte, consubstanciada em acórdão assim ementado: “PRISÃO CIVIL. Inadmissibilidade. Depósito judicial. Deposi-tário infi el. Infi delidade. Ilicitude reconhecida pelo Plenário, que cancelou a súmula 619 (REs nº 349.703 e nº 466.343, e HCs nº 87.585 e nº 92.566). Constrangimento ilegal tipifi cado. HC concedido de ofi cio. É ilícita a prisão civil de depositário infi el, qualquer que seja a modalidade do depósito.” (HC 94.307/RS, Rel. Min. CEZAR PELUSO — grifei) Cabe destacar, neste pon-to, por relevante, que essa orientação tem o beneplácito de autorizado magis-tério doutrinário, que sustenta a insubsistência, em nosso sistema de direito positivo, da prisão civil do depositário infi el, valendo referir, dentre outros eminentes autores, as lições de VALERIO DE OLIVEIRA MAZZUOLI (“Prisão Civil por Dívida e o Pacto de San José da Costa Rica”, 2002, Foren-se), de GILMAR FERREIRA MENDES, INOCÊNCIO MÁRTIRES CO-ELHO e PAULO GUSTAVO GONET BRANCO (“Curso de Direito Constitucional”, p. 737/755, item n. 9.4.4, 4ª ed., 2009, IDP/Saraiva), de ANTÔNIO AUGUSTO CANÇADO TRINDADE (“Tratado de Direito Internacional dos Direitos Humanos”, 2ª ed., 2003, Fabris), de FLÁVIA PIOVESAN (“Direito Humanos e o Direito Constitucional Internacional”, 2006, Saraiva), de CELSO LAFER (“A Internacionalização dos Direitos Hu-manos: Constituição, Racismo e Relações Internacionais”, 2005, Manole), de LUIZ FLÁVIO GOMES (“Direito Penal”, vol. 4/45-64, 2008, RT, obra escrita em conjunto com VALERIO DE OLIVEIRA MAZZUOLI), de GUILHERME ALBERGE REIS e RODRIGO CÉSAR NASSER VIDAL (“A Prisão do Depositário Infi el à Luz da Constituição Federal de 1988”, “in” “Direito em Movimento”, vol. III/307-321, coordenação de MÁJEDA D. MOHD POPP e ANASSÍLVIA SANTOS ANTUNES, 2008, Juruá), de LUIZ ALBERTO PEREIRA RIBEIRO (“A Ilegalidade da Prisão Civil por Dívida do Depositário Infi el na Alienação Fiduciária em Garantia de Bem Móvel face aos Direitos Humanos”, “in” “Direito Internacional dos Direitos Humanos”, p. 277/285, 1ª ed./3ª tir., coordenação de MARIA DE FÁTIMA RIBEIRO e VALERIO DE OLIVEIRA MAZZUOLI, 2006, Juruá), de MAURÍCIO CORDEIRO (“Prisão Civil por Dívida e sua Proscrição Defi -nitiva”, 2008, Factash Editora) e de ODETE NOVAIS CARNEIRO QUEI-ROZ (“Prisão Civil e os Direitos Humanos”, 2004, RT). Em suma: a análise dos fundamentos em que se apóia a presente impetração leva-me a concluir que a decisão judicial de primeira instância, mantida pelo E. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo e pelo E. Superior Tribunal de Justiça, não pode prevalecer, eis que frontalmente contrária à Convenção Americana so-

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bre Direitos Humanos, ao Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políti-cos e à Constituição da República, considerada, no ponto, a jurisprudência que o Supremo Tribunal Federal fi rmou na matéria em causa, no sentido de que não mais subsiste, em nosso ordenamento positivo, a prisão civil do de-positário infi el, inclusive a do depositário judicial. Evidente, desse modo, a situação de injusto constrangimento imposta ao ora paciente. Sendo assim, e em face das razões expostas, defi ro o pedido de medida liminar, em ordem a suspender, cautelarmente, a efi cácia da decisão que decretou a prisão civil do ora paciente, determinando, em conseqüência, o imediato recolhimento do mandado de prisão civil expedido, contra mencionado paciente, nos autos do Processo nº 269.01.2006.0019121-5 (61/06), em tramitação perante o Juízo de Direito da 3ª Vara Cível da comarca de Itapetininga/SP. Caso o paciente tenha sido preso em decorrência da execução do mandado de prisão civil extraído do processo em referência (Processo nº 269.01.2006.0019121-5 (61/06)), deverá ser ele imediatamente colocado em liberdade, se por al não estiver preso. Comunique-se, com urgência, transmitindo-se cópia da pre-sente decisão, para seu imediato cumprimento, ao MM. Juiz de Direito da 3ª Vara Cível da comarca de Itapetininga/SP (Processo nº 269.01.2006.0019121-5 (61/06)), ao E. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (HC nº 7.211.878-6) e ao E. Superior Tribunal de Justiça (HC 108.025/SP). 2. Ou-ça-se a douta Procuradoria-Geral da República. Publique-se. Brasília, 09 de junho de 2009. Ministro CELSO DE MELLO Relator *decisão publicada no DJE de 15.6.2009

5. LEGISLAÇÃO

Decreto Nº 7.030/09 — Convenção de Viena Sobre o Direito dos Tratados.Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.Emenda Constitucional Nº 45/2004.

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AULA 6 — CONFLITO DE FONTES: DIREITO INTERNO X DIREITO DA INTEGRAÇÃO

1. TEMAS ESPECÍFICOS:

1) O Problema do Confl ito de Fontes;2) Confl ito entre Direito Interno e Direito da Integração.

2. MÉTODO DE ENSINO:

Aula expositiva e participativa.

3. LEITURA PARA TODOS OS ALUNOS:

3.1. Leitura obrigatória:

RODAS, João Grandino. Contratos Internacionais. 3ª Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, pp. 331-376.

3.2. Leitura complementar:

REZEK, José Francisco. Recepção da Regra de Direito Comunitário pelas Or-dens Jurídicas Nacionais, in VENTURA, Deisy (org.). Direito Comunitá-rio. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997, pp. 55 e seguintes.

TIBURCIO, Carmen. Temas de Direito Internacional. Rio de Janeiro: Reno-var, 2006, pp. 3-45.

4. LEITURA PARA O DEBATE

4.1. LEITURA PARA O GRUPO

A Decisão do Tribunal Constitucional Federal Alemão Sobre a Constitu-cionalidade do Tratado de Lisboa. Eleonora Mesquita Ceia. In: Revista da Faculdade de Direito UFPR, Curitiba, nº 49, pp. 89 —107, 2009.

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4.2. JURISPRUDÊNCIA

4.2.1. CR AGR 8279 — INTEIRO TEOR DO JULGAMENTO (STF)

Disponível em: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=324396

4.2.2. CASO:

Janko Rottman v. Freistaat Bayern (Anexo II)

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PARTE II — APLICAÇÃO DO DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO PE-LOS TRIBUNAIS NACIONAIS E INTERNACIONAIS

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TÍTULO I — MÉTODOS DE DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO

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CAPÍTULO I — A APLICAÇÃO DO MÉTODO CONFLITUAL.

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AULA 7 — UNIFORMIZAÇÃO, HARMONIZAÇÃO E UNIFICAÇÃO DE LEGISLAÇÕES: TRATADOS DE DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO E LEIS MODELO

1. TEMAS ESPECÍFICOS:

1) As diferenças entre harmonização (ex: diretivas da União Européia), uniformização (ex: CIDIPs) e unifi cação (Código Bustamante) das normas de Direito Internacional Privado;

2) A diferença entre uniformização de regras materiais (ex: Convenção de Viena e UNIDROIT) e uniformização de regras formais ou confl ituais (ex: Convenção de Roma e CIDIPs);

3) Tendências do Direito Internacional Privado.

2. MÉTODO DE ENSINO:

Aula expositiva e participativa.

3. LEITURA PARA TODOS OS ALUNOS:

3.1. Leitura obrigatória:

DOLINGER, Jacob. Direito Internacional Privado — Parte Geral. 9ª Ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, pp. 31 — 46.

3.2. Leitura complementar:

ARAUJO, Nadia de. Direito Internacional Privado: Teoria e Prática Brasileira. 3ª Ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, pp. 49-98.

FERREIRA JÚNIOR, Lier Pires; CHAPARRO, Verônica Zarete (Coord.). Curso de Direito Internacional Privado. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2006, pp. 523-551.

4. LEITURA PARA O DEBATE

4.1. LEITURA PARA O GRUPO

RECHSTEINER, Beat Walter. Direito Internacional Privado: Teoria e Práti-ca. 13ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2010, pp.75-139.

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4.2. LEITURA LEGISLATIVA

A Convenção e a Diretiva selecionadas para leitura pelo professor (Anexos III e IV).

5. LEGISLAÇÃO

Diretiva de Retorno para Imigrantes da União Europeia de 18/06/08CIDIP IV (1989) — Convenção Interamericana sobre Obrigações Ali-

mentaresConvenção de Bruxelas (1968) — Convenção Relativa à Competência

Judiciária e à Execução de Decisões em Matéria Civil e ComercialConvenção de Roma (1980) — Convenção sobre a Lei Aplicável às Obri-

gações Contratuais

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3 Disponível em: http://scholarship.

law.wm.edu/cgi/viewcontent.cgi?arti

cle=3139&context=wmlr&sei-redir=

1&referer=http%3A%2F%2http://

s c h o l a r s h i p . l a w . w m . e d u /

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AULA 8 — O PLURALISMO DE MÉTODOS DE DIREITO INTERNA-CIONAL PRIVADO

1. TEMAS ESPECÍFICOS:

1) Os métodos do Direito Internacional Privado;2) Método Confl itual Tradicional, Sistema Unilateral e Revolução Ame-

ricana;3) Tendências metodológicas do Direito Internacional Privado.

2. MÉTODO DE ENSINO:

Aula expositiva e participativa.

3. LEITURA PARA TODOS:

3.1. Leitura obrigatória:

DOLINGER, Jacob. Direito Internacional Privado — Parte Geral. 9ª Ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, pp. 47 — 60.

ARAUJO, Nadia de. Direito Internacional Privado: Teoria e Prática Brasileira. 3ª Ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, pp. 29-48.

3.2. Leitura complementar:

RECHSTEINER, Beat Walter. Direito Internacional Privado: Teoria e Práti-ca. 13ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2010, pp.158-200.

DOLINGER, Jacob. Direito Internacional Privado — Parte Geral. 9ª Ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, pp. 297 — 336.

FERREIRA JÚNIOR, Lier Pires; CHAPARRO, Verônica Zarete (Coord.). Curso de Direito Internacional Privado. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2006, pp. 69-90.

MARQUES, Cláudia Lima. Novos Rumos do Direito Internacional Privado quanto às Obrigações resultantes de Atos Ilícitos in Revista dos Tribunais 629, pp. 72-90.

CHAPPELL, R. Harvey. Lex Loci Delicti and Babcock v. Jackson. William and Mary Law Review 249 (1966).3

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4. LEITURA PARA O DEBATE

4.1. LEITURA PARA O GRUPO

Th e Impact of Babcock v. Jackson on Confl ict of Laws. T.J.B. Virginia Law Review, Vol. 52, No 2. (Mar., 1966), pp.302-321.

Disponível em: http://www.jstor.org/stable/pdfplus/1071613.pdf?acceptTC =true

4.2. JURISPRUDÊNCIA

Caso Babcock v. Jackson (Anexo V).

5. LEGISLAÇÃO

Convenção de Roma (1980) — Convenção sobre a Lei Aplicável às Obri-gações Contratuais. Artigo 4º.

Convenção do México (1994) — Convenção Interamericana sobre Direi-to Aplicável aos Contratos Internacionais ou CIDIP V. Artigo 9º.

Restatement Second of Confl ict of Law

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AULA 9 — MÉTODO CONFLITUAL, QUALIFICAÇÃO E ELEMENTOS DE CONEXÃO

1. TEMAS ESPECÍFICOS:

1) O método confl itual tradicional: escolha da lei aplicável;2) O processo da qualifi cação, as regras de conexão e os elementos de

conexão.

2. MÉTODO DE ENSINO:

Aula expositiva e participativa.

3. LEITURA PARA TODOS:

3.1. Leitura obrigatória:

DOLINGER, Jacob. Direito Internacional Privado — Parte Geral. 9ª Ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, pp. 47 — 60; 369 — 392.

ARAUJO, Nadia de. Direito Internacional Privado: Teoria e Prática Brasileira. 3ª Ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, pp. 180 — 185.

3.2. Leitura complementar:

RECHSTEINER, Beat Walter. Direito Internacional Privado: Teoria e Práti-ca. 13ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2010, pp.158-200.

FERREIRA JÚNIOR, Lier Pires; CHAPARRO, Verônica Zarete (Coord.). Curso de Direito Internacional Privado. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2006, pp. 69-90.

4. LEITURA PARA O DEBATE

4.1. LEITURA PARA O GRUPO

DOLINGER, Jacob. Direito Internacional Privado — Parte Geral. 9ª Ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, pp. 297 — 336.

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4.2. JURISPRUDÊNCIA

RECURSO ESPECIAL Nº 512.401 — SP, trechos selecionados (Anexo VI).RECURSO ESPECIAL Nº 134.246 — SP, trechos selecionados (Anexo VII).RECURSO ESPECIAL Nº 275.985 — SP, trechos selecionados (Anexo VIII).

5. LEGISLAÇÃO

Decreto-Lei Nº 4657/42 — Lei de Introdução às Normas do Direito Bra-sileiro.

6. MATERIAL DE APOIO AO ALUNO

6.1. Qualifi cação

Casos Clássicos“Três casos são considerados clássicos o estudo da Teoria das Qualifi cações: a

sucessão do maltês, o testamento hológrafo do holandês e o casamento do grego ortodoxo.

A sucessão do maltês refere-se a casamento ocorrido na ilha de Malta, sem pacto antenupcial, onde os noivos se estabeleceram. O casal emigrou para Argélia, então sob legislação francesa, onde o marido faleceu em 1889, sem descendentes, mas deixando muitos bens imóveis e outros herdeiros.

A viúva maltesa nada herdaria pela lei francesa, mas seria contemplada com a quarta parte dos bens se fosse aplicada a legislação vigente em Malta. Bartin, seu advogado, defendeu, perante o Tribunal de Argel, a tese de que a solução se encontrava no direito de família, devendo ser buscada no regime matrimonial (para casamento de estrangeiros, celebrado no estrangeiro, se aplicava a lei do primeiro domicílio conjugal). Portanto, a lei maltesa.

Se o tribunal colocasse a lide no direito sucessório, a legislação aplicável seria a francesa, pois a sucessão de bens imóveis era regulada pela lei da situação dos mesmos e estes se encontravam na Argélia. Tratava-se, pois, de um caso de qualifi -cação: direito de família ou direito sucessório. Venceu a tese de Bartin, recebendo a viúva a sua parte.

O testamento hológrafo do holandês, que protagonizou interessante lide en-volvendo a qualifi cação, diz respeito a cidadão dos Países Baixos que faleceu na França, onde viveu a maior parte de sua vida, deixando testamento hológrafo (testamento particular, proibido no ordenamento jurídico holandês, mas admiti-do pela legislação francesa).

A validade do testamento pelo tribunal francês dependia da qualifi cação: es-tatuto pessoal ou forma dos atos jurídicos. No primeiro caso, o testamento seria

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nulo, pois o holandês não teria capacidade para assiná-lo, mesmo fora de seu país. Na última hipótese, o documento teria plena validade, já que em matéria de forma a lei aplicável é a do local da realização do ato jurídico.

O casamento do grego ortodoxo, realizado civilmente na França, com mu-lher francesa, sem cerimônia religiosa obrigatória pela legislação grega (revogada somente em 1982), ensejou um problema de qualifi cação: condição de fundo ou condição de forma. Se a exigência da celebração religiosa se enquadrasse no primeiro caso, o casamento seria nulo, pois a lei francesa submete a validade das núpcias à lei nacional dos cônjuges. No último caso, condição de forma, a lei francesa seria aplicável, e o casamento seria válido.”

DEL’OMO, Florisbal. Curso de Direito Internacional Privado. 7ª Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009, pp. 42-43.

6.2. Principais Elementos de Conexão

Nome do elemento Ramo Critério (Útil. Brasil)

Lex PatriaeEstatuto Pessoal (D. de Família e Personalidade)

X

Lex Loci Domicili Estatuto pessoal Lei Domicílio (LICC art. 7º)

Lex Loci Celebrationis Formalidades casamento L. local celebração (7º §2º)

Lex Loci Obligacionis Obrigações L. local const. Obrig. (9º)

Lex Loci Contractus Contratos L. local. const. Cont. (9º)

Lex Rei Sitiae D. reais — bens imóveis L. da situação do bem

Mobilia Sequntum Persona Bens móveis L. domicílio do proprietário

Lex Sucessionis Sucessões L. domicílio falecido (10º)

Fonte: ARAUJO, Nadia de. Direito Internacional Privado: Teoria e Prática Brasileira. 3ª Ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006.

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AULA 10 — ELEMENTOS DE CONEXÃO, LEI APLICÁVEL E REENVIO

1. TEMAS ESPECÍFICOS:

1) Determinação do ordenamento jurídico que será consultado ou da lei aplicável ao caso;

2) Regras de conexão e elementos de conexão e a proibição ao reenvio.

2. MÉTODO DE ENSINO:

Aula expositiva e participativa.

3. LEITURA PARA TODOS:

3.1. Leitura obrigatória:

DOLINGER, Jacob. Direito Internacional Privado — Parte Geral. 9ª Ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, pp. 337 — 368.

3.2. Leitura complementar:

RECHSTEINER, Beat Walter. Direito Internacional Privado: Teoria e Práti-ca. 13ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2010, pp.158-200.

4. LEITURA PARA O DEBATE

4.1. LEITURA PARA O GRUPO

RECHSTEINER, Beat Walter. Direito Internacional Privado: Teoria e Práti-ca. 13ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2010, pp. 201-222.

VIANNA, Juliana Marcondes. Aplicabilidade da Lei Estrangeira: Reenvio e Reforma da Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro. Revista Brasi-leira de Direito Internacional, Curitiba, Vol.7, Nº 7, jan./jun 2008, pp. 203-224.

Disponível em: http://ojs.c3sl.ufpr.br/ojs2/index.php/dint/article/view/16036/ 10840

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4.2. JURISPRUDÊNCIA

RECURSO ESPECIAL Nº 512.401 — SP, trechos selecionados (Anexo VI).RECURSO ESPECIAL Nº 134.246 — SP, trechos selecionados (Anexo VII).RECURSO ESPECIAL Nº 275.985 — SP, trechos selecionados (Anexo

VIII).

5. LEGISLAÇÃO

Decreto-Lei Nº 4657/42 — Lei de Introdução às Normas do Direito Bra-sileiro

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CAPÍTULO II — AS EXCEÇÕES À APLICAÇÃO DO MÉTODO CON-FLITUAL

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AULA 11 — ORDEM PÚBLICA E NORMAS DE APLICAÇÃO DIRETA

1. TEMAS ESPECÍFICOS:

1) O fi ltro da ordem pública: uma exceção ao método confl itual;2) Ordem pública: um conceito próprio para o Direito Internacional Pri-

vado.

2. MÉTODO DE ENSINO:

Aula expositiva e participativa.

3. LEITURA PARA TODOS:

3.1. Leitura obrigatória:

DOLINGER, Jacob. Direito Internacional Privado — Parte Geral. 9ª Ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, pp. 393 — 440.

ARAUJO, Nadia de. Direito Internacional Privado: Teoria e Prática Brasileira. 3ª Ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, pp. 99-127.

3.2. Leitura complementar:

RECHSTEINER, Beat Walter. Direito Internacional Privado: Teoria e Práti-ca. 13ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2010, pp. 201-230.

RODAS, João Grandino. Contratos Internacionais. 3ª Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, pp. 195-229.

DOLINGER, Jacob. A Evolução a Ordem Pública no Direito Internacional Privado. Tese Apresentada à Faculdade de Direito da UERJ para o con-curso de cátedra de Direito Internacional Privado, 1979.

FRIEDRICH, Tatyana Scheila. Nomas Imperativas de Direito Internacional Privado — Lois de Police. Belo Horizonte: Fórum, 2007.

4. LEITURA PARA O GRUPO

4.1. LEITURA PARA O GRUPO

Supermandatory rules: history, concept, prospect. Nicolas Soubeyrand. Pallais Programme Dissertation, 2000, pp. 1-23.

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Disponível em: http://www.gourion.com/html_site_FR/Super-manda-tory_Rules.pdf

4.2. JURISPRUDÊNCIA

4.2.1. ORDEM PÚBLICA E DÍVIDA DE JOGO NO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

Supremo Tribunal FederalDECISÃO DÍVIDA DE JOGO — ATIVIDADE LÍCITA NA ORI-

GEM — AÇÃO — CONHECIMENTO — CARTA ROGATÓRIA — EXECUÇÃO DEFERIDA. 1. Com esta carta rogatória, originária do Tribu-nal Superior de Nova Jérsei, nos Estados Unidos da América, objetiva-se obter a citação de Sebastião de Almeida Pires, para responder a ação de co-brança de dívida decorrente da participação em jogo, movida por Trump Taj Mahal Casino Resort. De acordo com o artigo 226 e § 2º do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal, determinei, em 12 de agosto de 2002, fosse intimado o interessado (folha 95). Na impugnação de folha 111 a 115, aponta-se que o crédito reclamado, por decorrer de dívida de jogo, não sub-siste, inexistindo obrigação de pagar, consoante dispõe o artigo 1.477 do Código Civil. Além disso, sustenta-se que o valor “proporcionado ao Impug-nante foi destinado única e exclusivamente à própria Impugnada, com sua reaplicação pelo Impugnante, que se comportou como um jogador compul-sivo, em novas apostas malsucedidas, devendo ser realçado, ainda, que não foram emitidos pelo Impugnante quaisquer cheques bancários como garantia do mesmo” (folha 114). Assevera-se que a medida proposta, além de mani-festamente improcedente, implica atentado à ordem pública nacional e tem por “exclusivo objetivo causar danos ao Impugnante, cujo ressarcimento o mesmo irá buscar, através (sic) das vias próprias, no Juízo competente” (folha 115). O Procurador-Geral da República, no parecer de folha 120 a 123, pre-coniza o indeferimento da execução. 2. Após pedir vista dos autos da Senten-ça Estrangeira Contestada nº 5.404, relatada pelo ministro Sepúlveda Perten-ce, cujo julgamento encontra-se suspenso, tive oportunidade de refl etir sobre a espécie e elaborei voto, que não cheguei a proferir, nos seguintes termos: Na assentada em que teve início a apreciação do pedido de homologação de sen-tença estrangeira, pronunciou-se o Relator, ministro Sepúlveda Pertence, no sentido da incidência, na espécie, do disposto na parte fi nal do artigo 17 da Lei de Introdução ao Código Civil: Art. 17 As leis, atos e sentenças de outro país, bem como quaisquer declarações de vontade, não terão efi cácia no Bra-sil, quando ofenderem a soberania nacional, a ordem pública e os bons cos-tumes. Considerou o relator a circunstância de as dívidas de jogo ou aposta não obrigarem a pagamento — artigo 1.477 do Código Civil. Pedi vista dos autos para maior refl exão sobre a matéria e exame das peculiaridades do caso.

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Senhor Presidente, de há muito os brasileiros somos estigmatizados por uma tão suposta quanto propalada manemolência, secundada pelo não menos fa-moso “jeitinho”, traduzido, na maior parte das vezes, como um atalho ilegal ou pouco ético com vistas à rápida obtenção de algo que demandaria mais esforço se conseguido pelas vias normais. Não passa de lenda, sem a mínima comprovação, a frase atribuída a De Gaulle, de este não ser um país sério. Entretanto, tal folclore bem revela a visão debochada que têm de nós outros países nem sempre assim tão prósperos: a pouca seriedade de propósitos, o hedonismo generalizado no comportamento das massas populares (consoan-te o qual toda bem-aventurança advém tão-somente do prazer, e nele se resol-ve), uma quase atávica passividade teriam engendrado paulatinamente o epí-teto de “país do samba, suor e cerveja”, de recanto exótico do carnaval e do futebol. Eis a imagem do Brasil no exterior. No campo da Antropologia, houve quem propagasse, como que para reforçar a já baixíssima auto-estima brasileira, que tantas mazelas resultaram da fatalidade de termos descendido de degredados, expatriados, enfi m, bandidos de toda sorte, miscigenados ini-cialmente com tribos e mais tribos de índios ignorantes e preguiçosos, e ao depois com contingentes de negros inconformados, macambúzios e insurre-tos. Tal ideologia foi-nos ministrada em lentas, mas contínuas e efi cazes doses durante séculos, a exemplo das distorcidas lições sobre História colonial, apli-cadas ainda hoje, já no curso primário. Pois bem, chegamos às portas do terceiro milênio conquistando a duras penas o direito de pelo menos sermos considerados com respeito. Pagamos, com imensos sacrifícios e durante sécu-los, o tributo da miséria, do medo, do servilismo. Curvamo-nos seguidamen-te à prepotência dos poderosos, à ambição desmedida dos mais fortes, e por várias vezes tivemos que engolir a seco humilhações profundas à nossa sobe-rania nacional. Sobrevivemos a ditaduras subservientes e à exploração ganan-ciosa de todos os nossos valores — materiais e morais. Não obstante, supe-rando uma história de privações e abusos, com muito trabalho e criatividade, com o sacrifício de gerações inteiras — relembre-se a perdida década de 80 — estamos conseguindo impor-nos como país livre, democrático, em plena maturidade civil. Ainda que não tenhamos atingido a desejada democracia econômica, o estado de bem-estar social, lentamente, mas a passos fi rmes, estamos chegando à tão sonhada inserção na ordem econômica mundial, haja vista a incontestável liderança brasileira entre os países sul-americanos. So-mos a oitava economia do mundo, o quarto exportador de alimentos. Sim, a duras penas vamos conquistando nosso espaço. Repita-se: com o sacrifício de milhões que viveram e morreram à míngua de alguma assistência do Estado. É preciso ressaltar um ponto de supina importância. Nesta quadra de festeja-da globalização — cujo verdadeiro nome é hipercapitalismo —, a credibili-dade vem da segurança. Nos dicionários, as duas palavras se entrelaçam. E aí chegamos ao ponto nevrálgico desta discussão aparentemente banal, mas em

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cujo âmago residem valores caros à sociedade brasileira. Caberia à Suprema Corte do País dar como que um bill de indenidade, referendar um álibi de modo a tornar impune o comportamento irresponsável e amoral de inescru-pulosos para quem a dignidade é valor menor? Há poucos dias, Senhor Pre-sidente, Vossa Excelência manifestava preocupação ante as repercussões de uma possível greve de juízes na imagem do País. Guardadas as devidas pro-porções, sustento também neste caso que a honra de uma nação não pode fi car comprometida, sequer arranhada, por obra e graça, em última análise, da desfaçatez sem peias de playboys inconseqüentes: não esqueçamos em mo-mento algum que, na hipótese ora examinada, houve o reconhecimento consciente — até com o pagamento de uma primeira parcela — de uma dí-vida licitamente contraída, de acordo com a lei do local em que avençado o débito. A mim parece que, numa época na qual o famigerado hipercapitalis-mo corrói todos os valores, à Suprema Corte não cabe emprestar aval a pro-cedimento escuso de quem se pendura nas fi ligranas obscuras da letra fria — quiçá morta — da lei, mormente se o texto legal padece de notória longe-vidade. À data em que engenhado o texto civil em comento — 1916 — ob-jetivou-se proteger, em derradeira instância, os alimentos dos mais necessita-dos contra a insanidade trazida pelo vício hediondo, a corromper inexoravelmente perdulários irresponsáveis. Entrementes, hoje, o que temos? Grassa no nosso País a ofi cialização da jogatina. Às escâncaras, jogos de azar — bingos e loterias em incontáveis e inimagináveis formas — são abundan-temente oferecidos em todas as esquinas, a cada dia de uma maneira mais surpreendente, com ilusórios atrativos, mil chamarizes. A antinomia, na hi-pótese, é fl agrante: a proibição de antigamente contrasta com a habitualidade dos jogos patrocinados pela Administração Pública (em todas as esferas — federal, estadual e municipal) porque somente aos mais cínicos é possível diferenciar os azares da roleta dos reluzentes números — anunciados até pela mídia, em propaganda explícita de incentivo, na maioria das vezes de reco-nhecida qualidade — relacionados com loterias, bingos, “raspadinhas” e ou-tros concursos de igual jaez, nos quais também se manipula e explora o con-texto de esperança num possível revés da sorte. Atente-se para o agravante de que, nas roletas e cassinos, normalmente adentram os mais aquinhoados, cujas dívidas são supostamente incobráveis segundo o arbítrio da velha lei, o que não ocorre na jogatina ofi cial: quem paga um jogo de loteria com cheque destituído de provisões de fundo é processado e sumariamente executado, sem poder usar os argumentos ora articulados pelo Requerido. Por outro lado, imagine-se o rebuliço que adviria se o Governo, escancarando as corti-nas da hipocrisia, e encastelando-se na jurisprudência que agora se almeja recrudescida, retrucasse em brado altissonante: não posso pagar o prêmio prometido porque se trata de dívida de jogo, incobrável, portanto. Ainda que se abandone tal argumento, tido talvez por extremado, não se há de recusar

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que os tempos mudaram bastante de 1916 para cá: a impostura, o imediatis-mo, o despudor, enfi m, os escândalos são maiores e dissociam-se em muito do verdadeiro espírito que norteou a elaboração da lei que agora, em meio a sofi smas e falso tecnicismo, pretende-se fazer valer. Cabe repisar: a intenção do legislador não foi resguardar esbanjadores tão inconseqüentes quanto ar-gutos, e assim, por vias transversas, prejudicar a imagem desgastada, vilipen-diada do País, com dano irreparável. Se o vezo, o mau costume pega, não há quem controle a repercussão dessa nefasta jurisprudência, mormente nos dias de hoje, em que a notícia é sempre tão on line no mundo inteiro. Não será inverídica, então, a notícia de que no Brasil é possível gastar-se no exterior sem arcar com custos, isso com o endosso defi nitivo, irrecorrível do Supremo Tribunal Federal. Close para o devedor que, displicentemente, explica, mas-cando chicletes: devo, não nego, mas não pago porque a legislação do meu país protege pessoas como eu. Senhor Presidente, é preciso que seja observa-do um mínimo de decoro, principalmente se a questão envolve o respeito a normas legítimas de outros países. Frisemos, sublinhando, que a harmonia só acontece ante o absoluto respeito ao direito de outrem. Veja-se, por absurdo, a seguinte hipótese. Até recentemente, a venda de pílulas anticoncepcionais era terminantemente proibida no Japão. Vamos imaginar que um determina-do cidadão japonês houvesse comprado de nossa indústria farmacêutica algu-mas toneladas desse medicamento e faturasse a operação. Recebida a partida, na hora de pagar, retruca: esse contrato é nulo porque a origem da transação é obscura e rechaçada no meu país. Por isso, não pago e muito menos devol-vo o que adquiri. A hipótese beira as raias do ridículo, de tão absurda se afi -gura aos olhos do homem mediano. No entanto, rechaçamos a mesma lógica no caso em tela, em que o requerido adquiriu bens e serviços, usufruiu de um crédito, participou de uma atividade lícita pela qual se comprometeu a pagar. Daí a minha perplexidade e um certo inconformismo diante de situação que reputo das mais esdrúxulas. Assumindo a postura do Juiz atento à almejada Justiça, sem menosprezo à Lei e ao Direito, concluo de forma diversa da ex-ternada pelo Relator, vinculada a vetusta jurisprudência — e estou certo não fosse isso, à mercê de grande sensibilidade, outro seria o voto de Sua Excelên-cia sobre o real alcance das normas de regência. Aliás, pesquisa realizada nos anais da Corte mostrou-se infrutífera. Não encontrei um único acórdão do Plenário sobre o tema. Os precedentes dizem respeito a decisões da Presidên-cia da Corte negando o exequatur, sendo que nestas não foi analisada a ques-tão relativa à observância do artigo 9º da Lei de Introdução ao Código Civil. Confi ra-se com os processos de concessão de exequatur nºs 5332-1, 7424-7 e 7426-3. Conclamo a Corte a uma refl exão sobre o tema, mormente nesta quadra em que o artigo 1.477 do Código Civil ganha contornos mitigados, revelando ser fruto de proibição relativa. Ninguém desconhece a inexistência, no ordenamento jurídico nacional, de ação para cobrar dívida de jogo ou

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aposta proibidos. Todavia, não se está diante, em si, de ação ajuizada com o fi to de impor ao requerido sentença condenatória de pagamento. O caso é diverso. O Requerido contraiu, nos Estados Unidos da América do Norte, obrigação de satisfazer a quantia de quatrocentos e setenta mil dólares em prestações sucessivas, havendo honrado o compromisso somente no tocante a cinqüenta e cinco mil dólares. A origem do débito mostrou-se como sendo a participação em jogos de azar, mas isso ocorreu nos moldes da legislação regedora da espécie. No país em que mantida a relação jurídica, o jogo afi gu-ra-se como diversão pública propalada e legalmente permitida. Ora, norma de direito internacional, situada no mesmo patamar do artigo regedor da efi cácia das sentenças estrangeiras, revela que “para qualifi car e reger as obri-gações aplicar-se-á a lei do país em que se constituírem” — cabeça do artigo 9º da Lei de Introdução ao Código Civil. Esse dispositivo apenas é condicio-nado, quando a obrigação deva ser executada no Brasil, à observância de forma essencial, mesmo assim admitidas as peculiaridades da lei estrangeira quanto aos requisitos extrínsecos do ato — § 1º do aludido artigo 9º. Portan-to, não cabe, no caso, aplicar, relativamente à obrigação contraída e objeto de homologação em juízo, o artigo 1.477 do Código Civil, mas ter presente o direito estrangeiro. É certo estar a homologação de sentença estrangeira su-bordinada à ausência de desrespeito à soberania nacional, à ordem pública e aos bons costumes. Entretanto, na espécie não concorre qualquer dos obstá-culos. Dos três, todos previstos no artigo 17 da Lei de Introdução ao Código Civil, o que aqui se faz merecedor de análise é o concernente à ordem públi-ca, porquanto impossível é cogitar-se, em se buscando homologação de sen-tença estrangeira, de afronta à soberania nacional e aos bons costumes, no que envolvem conceitos fl exíveis. Ora, sob o ângulo do direito internacional privado, tem-se como ordem pública a base social, política e jurídica de um Estado, considerada imprescindível à própria sobrevivência. É o caso de in-dagar-se, à luz dos valores em questão: o que é capaz de colocar em xeque a respeitabilidade nacional: a homologação de uma sentença estrangeira, em-bora resultante de prática ilícita no Brasil, mas admitida no país requerente, ou o endosso, pelo próprio Estado, pelo Judiciário, de procedimento revela-dor de torpeza, no que o brasileiro viajou ao país-irmão e lá praticou o ato que a ordem jurídica local tem como válido, deixando de honrar a obrigação assumida? A resposta é desenganadamente no sentido de ter-se a rejeição da sentença estrangeira como mais comprometedora, emprestando-se ao territó-rio nacional a pecha de refúgio daqueles que venham a se tornar detentores de dívidas contraídas legalmente, segundo a legislação do país para o qual viajarem. Uma coisa é assentar-se que o jogo e a aposta, exceto as loterias fe-deral e estadual, a quina, a supersena, a megasena, a loteria esportiva, a loto-mania, a trinca, as diversas formas de raspadinha e os bingos, não são atos jurídicos no território nacional, fi cando as dívidas respectivas no campo do

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direito natural, na esfera da moral. Quanto a isso, a disciplina pátria não permite qualquer dúvida. Outra diversa é, olvidando-se a regra de sobredirei-to do artigo 9º da Lei de Introdução ao Código Civil — a afastar a normati-zação pelas leis do Brasil da prática implementada e segundo a qual, para qualifi car e reger as obrigações há de ser aplicada a lei do país em que se cons-tituírem — vir-se a recusar a prevalência de sentença prolatada consoante as normas do país em que situado o órgão julgador. Nem se diga que a homo-logação da sentença estrangeira ganha, em si, aspectos ligados a um verdadei-ro julgamento. As situações são díspares. Enquanto, defrontando-se com uma ação, o julgador deve apreciá-la na extensão total que possua, relativa-mente à homologação de sentença estrangeira cumpre perquirir tão-só a exis-tência de situação válida e a ausência de ofensa à soberania nacional, à ordem pública e aos bons costumes. Aliás, aqui mesmo no Brasil, restando prolatada sentença sobre dívida de jogo ou aposta ilegais e transitada em julgado (ante o fato de não se haver percebido a origem da dívida), admite-se a execução do título respectivo que, enquanto não desconstituído, tem força de sentença transitada em julgado. A hipótese equipara-se a ação versando sobre os jogos admitidos no Brasil. Ninguém se atreveria a dizer carecedor da ação alguém que viesse — e muitos já o fi zeram — a demandar visando a receber prêmio de uma das nossas múltiplas loterias. Somente o que passível de ser rotulado como contravenção é que não gera a possibilidade de exigir-se em juízo. Re-pita-se: o jogo nos Estados Unidos está em tudo igualizado àqueles jogos endossados pela nossa ordem jurídica. Concluindo, as regras do artigo 9º da Lei de Introdução ao Código Civil e do artigo 1.477 do Código Civil são incompatíveis. A primeira exclui a incidência da segunda, revelando lícito o jogo praticado na América do Norte, como, aliás, é o que, no Brasil, tem cunho ofi cial, sendo que a participação do Estado abre margem, por isso mesmo, a questionamentos na Justiça. Aqui, somente confl ita com os bons costumes o jogo ligado à contravenção, não aquele revelado pelos bingos e loterias supervisionados pelo Estado. Conclui-se, assim, sob pena de fl agran-te incoerência, estar o jogo gerador da dívida constante da sentença que se quer homologada em tudo equiparado aos permitidos no solo pátrio. Fora isso, é sofi smar; é adotar postura em detrimento da melhor brasilidade; é enveredar por caminho tortuoso; é solapar a respeitabilidade de nossas insti-tuições, tornando o Brasil um país desacreditado no cenário internacional, porque refúgio inatingível de jogadores pouco escrupulosos, no que, após perderem em terras outras, para aqui retornam em busca da impunidade ci-vil, da preservação de patrimônio que, por ato próprio, de livre e espontânea vontade, em atividade harmônica com a legislação de regência — do país-irmão (artigo 9º da Lei de Introdução ao Código Civil) —, acabaram por comprometer. Em última análise, peço vênia ao nobre Ministro Relator para entender que, relativamente à obrigação que deu margem à sentença, cumpre

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observar não o disposto no artigo 1.477 do Código Civil, mas a regra do ar-tigo 9º da Lei de Introdução dele constante, que direciona ao atendimento da legislação do país em que contraída a obrigação. Com isso, afasto algo que não se coaduna com a Carta da República, que é o enriquecimento sem cau-sa, mormente quando ligado ao abuso da boa-fé de terceiro, confi gurado no que o Requerido se deslocou do Brasil para a América do Norte, vindo a praticar jogos de azar legitimamente admitidos, e até incentivados como mais uma forma de atrair turistas, contraindo dívida e retornando à origem onde possui bens, quem sabe já tendo vislumbrado, desde o início, que não os teria ameaçados pelo credor. O Requerido assumiu livremente uma obrigação, e o fez, repita-se, em país no qual agasalhada pela ordem jurídica, devendo o pacto homologado ser, por isso mesmo, respeitado. Sopesando as peculiari-dades do caso, concluo que não se tem, na espécie, a incidência do disposto no artigo 1.477 do Código Civil e, por via de conseqüência, que descabe falar em sentença estrangeira contrária à ordem pública e, portanto, no óbice à homologação prevista no artigo 17 da Lei de Introdução ao Código Civil. Aliás, outro não foi o entendimento que acabou por prevalecer no julgamen-to, pelo Tribunal de Justiça do Distrito Federal, dos embargos infringentes interpostos por Wigberto Ferreira Tartuce — Processo nº 44.921/97, quan-do, em 14 de outubro do ano fi ndo de 1999, a Desembargadora Revisora Dra. Adelith de Carvalho Lopes, autora do primeiro voto divergente que formou na corrente majoritária, deixou consignada a incidência, na espécie, do artigo 9º em comento, isso ao defrontar-se com situação concreta menos favorável que a destes autos, porque ligada ao novo instituto de monitória. Eis a ementa redigida: DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO. DÍVI-DA DE JOGO CONTRAÍDA NO EXTERIOR. PAGAMENTO COM CHEQUE DE CONTA ENCERRADA. ART. 9º DA LEI DE INTRODU-ÇÃO AO CÓDIGO CIVIL. ORDEM PÚBLICA. ENRIQUECIMENTO ILÍCITO. 1. O ordenamento jurídico brasileiro não considera o jogo e a aposta como negócios jurídicos exigíveis. Entretanto, no país em que ocorre-ram, não se consubstanciam tais atividades em qualquer ilícito, representan-do, ao contrário, diversão pública propalada e legalmente permitida, donde se deduz que a obrigação foi contraída pelo acionado de forma lícita. 2. Dada a colisão de ordenamentos jurídicos no tocante à exigibilidade da dívida de jogo, aplicam-se as regras do Direito Internacional Privado para defi nir qual das ordens deve prevalecer. O art. 9º da LICC valorizou o locus celebrationis como elemento de conexão, pois defi ne que, “para qualifi car e reger as obri-gações, aplicar-se-á a lei do país em que se constituírem.” 3. A própria Lei de Introdução ao Código Civil limita a interferência do Direito alienígena, quando houver afronta à soberania nacional, à ordem pública e aos bons costumes. A ordem pública, para o direito internacional privado, é a base social, política e jurídica de um Estado, considerada imprescindível para a

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sua sobrevivência, que pode excluir a aplicação do direito estrangeiro. 4. Considerando a antinomia na interpenetração dos dois sistemas jurídicos, ao passo que se caracterizou uma pretensão de cobrança de dívida inexigível em nosso ordenamento, tem-se que houve enriquecimento sem causa por parte do embargante, que abusou da boa fé da embargada, situação essa repudiada pelo nosso ordenamento, vez que atentatória à ordem pública, no sentido que lhe dá o Direito Internacional Privado. 5. Destarte, referendar o enrique-cimento ilícito perpretado pelo embargante representaria afronta muito mais signifi cativa à ordem pública do ordenamento pátrio do que admitir a co-brança da dívida de jogo. 6. Recurso improvido. No mesmo sentido, ante o artigo 9º da Lei de Introdução ao Código Civil, decidiu o Tribunal de Alçada Criminal do Estado de São Paulo — apelações nºs 577.331 e 570.426 — precedentes citados pelo Requerente e noticiados no voto do relator. Portan-to, acolho o pedido de homologação formalizado. 3. Pelas razões acima, de-fi ro a execução desta carta rogatória, a ser remetida à Justiça Federal de Minas Gerais, para a ciência pretendida. 4. Publique-se. Brasília, 11 de dezembro de 2002. Ministro MARCO AURÉLIO Presidente

(CR 10415, Relator(a): Min. MARCO AURÉLIO)

Supremo Tribunal FederalMalgrado a carta rogatória ser o meio formalmente adequado à efetiva-

ção de atos citatórios em território brasileiro, torna-se inviável a concessão de exequatur sempre que houver, como no caso, situação caracterizadora de ofensa à ordem pública ou de desrespeito à soberania nacional. É que “não se deve perder de vista que a lei estrangeira, normalmente aplicável, encontra um limite nas leis locais de ordem pública.”

No caso, o objeto da ação movida por Trump Taj Mahal Casino Resort refere-se à dívida de jogo contraída por Carlos Buono — hipótese tipifi ca-da no ordenamento jurídico pátrio como contravenção penal (artigo 50 do Decreto-lei 3688/41) e inexigível, conforme dispõe o artigo 1477 do Código Civil de 1916, aplicável à época em que sucederam os fatos. 9. Por isso mes-mo, entendo que a diligência pretendida pela Justiça rogante atenta contra a ordem pública, o que impossibilita a concessão do exequatur, nos termos do RISTF, artigo 226, § 2º.

(Ag. Reg. CR 10.415. Relator(a): Min. MAURÍCIO CORRÊA)

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DIREITO GLOBAL II

FGV DIREITO RIO 50

4.2.1. ORDEM PÚBLICA E DÍVIDA DE JOGO NO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

Superior Tribunal de JustiçaCARTA ROGATÓRIA — CITAÇÃO — AÇÃO DE COBRANÇA DE

DÍVIDA DE JOGO CONTRAÍDA NO EXTERIOR — EXEQUATUR — POSSIBILIDADE.

— Não ofende a soberania do Brasil ou a ordem pública conceder exe-quatur para citar alguém a se defender contra cobrança de dívida de jogo contraída e exigida em Estado estrangeiro, onde tais pretensões são lícitas.

(Ag.Reg. na CR3.198/US, Rel. Ministro HUMBERTO GOMES DE BARROS,Corte Especial)

Fundamentação:Rel. Humberto Gomes de Barros: “Noutras palavras, não nos cabe avaliar

se o ato rogado pela Justiça estrangeira também seria determinado aqui se as situações fossem as mesmas. Insisto: não nos interessa se a ação que corre no Judiciário rogante teria pedido julgado procedente segundo nosso Direito in-terno, pois basta que o ato seja passível de cumprimento em nosso território sem violação à soberania nacional e à ordem pública.”(...) “A carta rogatória não nos pede para avaliar a eventual procedência do pedido formulado pe-rante o Jus rogante.”

Min. Fernando Gonçalves: “No caso, não se trata de homologação de sentença estrangeira para execução ou cobrança de dívida, apenas para a ci-tação de ação em que se discutirá a origem da dívida, o quantum debeatur, e se devido. Penso que haveria ofensa à ordem pública se fôssemos homologar sentença estrangeira para dar curso a cobrança de dívida de jogo.”

5. LEGISLAÇÃO

Decreto-Lei Nº 4657/42 — Lei de Introdução às Normas do Direito Bra-sileiro.

Resolução nº 9/05 do Superior Tribunal de Justiça.Convenção do México (1994) — Convenção Interamericana sobre Direi-

to Aplicável aos Contratos Internacionais ou CIDIP V.Convenção de Roma (1980) — Convenção sobre a Lei Aplicável às Obri-

gações Contratuais.

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DIREITO GLOBAL II

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AULA 12 — AUTONOMIA DA VONTADE E LEI APLICÁVEL

1. TEMAS ESPECÍFICOS:

1) Autonomia da vontade e escolha da lei aplicável;2) Contratos internacionais e seu elemento de conexão (lex loci contractus)i3) Dépeçage ou regra do fracionamento.

2. MÉTODO DE ENSINO:

Aula expositiva e participativa.

3. LEITURA PARA TODOS:

3.1. Leitura obrigatória:

TIBURCIO, Carmen; BARROSO, Luís Roberto (Org.). Direito Internacio-nal Contemporâneo: Estudos em Homenagem ao Professor Jacob Dolinger. São Paulo: Renovar, 2006, pp. 599-626.

3.2. Leitura complementar:

ARAUJO, Nadia de. Contratos Internacionais: Autonomia da Vontade, Mer-cosul e Convenções Internacionais. 4ª Ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2009, pp. 23-52.

ARAUJO, Nadia de. Direito Internacional Privado: Teoria e Prática Brasileira. 3ª Ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, pp. 345-362.

DOLINGER, Jacob. Direito Internacional Privado: Contratos e Obrigações no Direito Internacional Privado. 9ª Ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2007, pp. 421 — 483.

DREBES, Josué Scheer. O Contrato Internacional à Luz do Direito Internacio-nal Privado Brasileiro. Revista Eletrônica de Direito Internacional, vol. 6, 2010, pp. 190— 212. Disponível em: http://www.cedin.com.br/re-vistaeletronica/volume6/

RODAS, João Grandino. Contratos Internacionais. 3ª Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, pp. 195-229.

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MARQUES, Cláudia Lima; ARAUJO, Nadia de (org). O Novo Direito Inter-nacional: Estudos em homenagem a Erik Jayme. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, pp. 277-306.

4. LEITURA PARA O DEBATE

4.1. LEITURA PARA O GRUPO

RODAS, João Grandino. Contratos Internacionais. 3ª Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, pp. 19-64.

4.2. JURISPRUDÊNCIA

Agravo de Instrumento Nº 1.247.070 — 7 TJSP (seleção da apostila)Apelação 9193861-22.2005.8.26.0000 TJSP — Relator(a): Salles Vieira.Disponível em: http://esaj.tjsp.jus.br/cjsg/getArquivo.

do?cdAcordao=2391747

5. LEGISLAÇÃO

Decreto-Lei Nº 4657/42 — Lei de Introdução às Normas do Direito Bra-sileiro.

Lei Nº 3.071, de 1º de janeiro de 1916 — Código Civil de 1916.Convenção de Roma (1980) — Convenção sobre a Lei Aplicável às Obri-

gações Contratuais.Convenção do México (1994) — Convenção Interamericana sobre Direi-

to Aplicável aos Contratos Internacionais ou CIDIP V.

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AULA 13 — CLÁSULA DE ELEIÇÃO DE FORO

1. TEMAS ESPECÍFICOS:

1) Autonomia da vontade eleição de foro;2) Contratos internacionais e seu elemento de conexão (lex loci contractus);3) Cláusula de Eleição de Foro em Contratos Internacionais.

2. MÉTODO DE ENSINO:

Aula expositiva e participativa.

3. LEITURA PARA TODOS:

3.1. Leitura obrigatória:

ARAUJO, Nadia de. Direito Internacional Privado: Teoria e Prática Brasileira. 3ª Ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, pp. 362-396.

RODAS, João Grandino. Contratos Internacionais. 3ª Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, pp. 296-316.

3.2. Leitura complementar:

FERREIRA JÚNIOR, Lier Pires; CHAPARRO, Verônica Zarete (Coord.). Curso de Direito Internacional Privado. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2006, pp. 361-399.

RODAS, João Grandino. Contratos Internacionais. 3ª Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, pp. 66-121.

4. LEITURA PARA O DEBATE

4.1. LEITURA PARA O GRUPO

RODAS, João Grandino. Contratos Internacionais. 3ª Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, pp. 122-151; 173-189.

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4.2. JURISPRUDÊNCIA

Leading Case — Zapata X Bremen (Anexo IX)RE N° 251.438 — RJRE Nº 1.177.915 — RJRE Nº 1.168.547 — RJAI 639441 STJ(seleções da apostila)

5. LEGISLAÇÃO

Lei Nº 5.869 — Código de Processo CivilSúmula 335 Supremo Tribunal Federal.

CASO 1: RE N° 251.438 — RJ (STJ)

SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

RECURSO ESPECIAL N° 251.438 — RJ (2000⁄0024821-5)RELATOR:MINISTRO BARROS MONTEIRORECTE (S):AMERICAN HOME ASSURANCE COMPANY E OUTROADVDO(S):ARNOLDO WALD E OUTROSRECDO (S):BRASPETRO OIL SERVICES COMPANY — BRASOILADVDO (S):ATHOS GUSMÃO CARNEIRO E OUTROSINTERES.:INDÚSTRIAS VEROLME ISHIBRAS S⁄A — IVI E OUTROS

EMENTACOMPETÊNCIA INTERNACIONAL. CONTRATO DE CONVER-

SÃO DE NAVIO PETROLEIRO EM UNIDADE FLUTUANTE. GA-RANTIA REPRESENTADA POR “PERFOMANCE BOND” EMITIDO POR EMPRESAS ESTRANGEIRAS. CARÁTER ACESSÓRIO DESTE ÚLTIMO. JURISDIÇÃO DO TRIBUNAL BRASILEIRO EM FACE DA DENOMINADA COMPETÊNCIA CONCORRENTE (ART. 88, INC. II, DO CPC).

• O “Performance bond” emitido pelas empresas garantidoras é acessó-rio em relação ao contrato de execução de serviços para a adaptação de navio petroleiro em unidade fl utuante de tratamento, armazenamen-to e escoamento de óleo e gás.

• Caso em que empresas as garantes se sujeitam à jurisdição brasileira, nos termos do disposto no art. 88, inc. II, do CPC, pois no Brasil é

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que deveria ser cumprida a obrigação principal. Competência inter-nacional concorrente da autoridade judiciária brasileira, que não é suscetível de ser arredada pela vontade das partes.

— A justiça brasileira é indiferente que se tenha ajuizado ação em país estrangeiro, que seja idêntica a outra que aqui tramite. Incidência na espécie do art. 90 do CPC. Recurso especial não conhecido, prejudicada a medida cautelar.

ACÓRDÃOVistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas:Decide a Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça, por unanimi-

dade, não conhecer do recurso, julgando prejudicada a Medida Cautelar n° 1938⁄RJ, cessando os efeitos da medida liminar, na forma do relatório e notas taquigráfi cas precedentes que integram o presente julgado. Votaram com o Relator os Srs. Ministros Cesar Asfor Rocha e Ruy Rosado de Aguiar. Impe-dido o Sr. Ministro Aldir Passarinho Júnior. Afi rmou suspeição o Sr. Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira.

Brasília, 08 de agosto de 2000 (data do julgamento).Ministro Ruy Rosado de AguiarPresidenteMinistro Barros MonteiroRelator

RECURSO ESPECIAL N° 251.438 — RIO DE JANEIRO (2000⁄0024821-5)

RELATÓRIOO SR. MINISTRO BARROS MONTEIRO:“Braspetro Oil Services Company — Brasoil”, em decorrência de licitação

internacional vencida pelo consórcio integrado pelas empresas “Indústrias Verolme Ishibrás S.A. — IVI”. “Sade Vigesa S. A. “ e “lesa — Internacional de Engenharia S. A., celebrou com as mesmas um contrato que teve como objeto a execução de serviços para a conversão de um navio petroleiro em unidade fl utuante de tratamento, armazenamento e escoamento de óleo e gás. Como garantia da execução do ajuste, a “American Home Assurance Company’“ e a “United States Hdelily and Guaranty Company” emitiram um “performance bond” no valor máximo de US$ 163.000.021.00.

Sob a alegação de que o referido consórcio descumprira a avença, a “Bra-soil” ingressou, perante o Juízo da 42a Vara Cível da Comarca do Rio de Janeiro, com “ação ordinária de perdas e danos, cumulada com cobrança de apólice de seguro — garantia de execução das obrigações contratuais (“per-formance bond”)”, contra as três empresas componentes do aludido consór-

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cio (“IVI”, “Sade Vigesa” e “lesa”), objetivando das mesmas haver o ressar-cimento total dos prejuízos por elas diretamente causados, e ainda contra as empresas “American Home” e “United States Fidelity”, visando à condena-ção de ambas ao pagamento do valor estipulado na garantia (“performance bond”), no limite de US$ 163.000.021,00.

Frustrada a conciliação prevista no art. 331 do CPC, a MMa. Juíza de Direito proferiu a decisão reproduzida a fl s. 192⁄199, em que julgou extinto o processo, sem conhecimento do mérito, nos termos do art. 267, inc. IV, do CPC, com relação às co-rés “American Home” e “United States Fidelity” por falta de jurisdição brasileira. S. Exa. fundamentou o decisório nos seguintes aspectos: a) na relação jurídica entre a “Brasoil”, American Home” e “Uni-ted Slates Fidelity”, as envolvidas são empresas estrangeiras, domiciliadas no exterior; b) o “perfomance bond” foi emitido nos E. U. A. e o pagamento do eventualmente devido seria em dólares norte— americanos, também no exterior; c) o “perfomance bond” possui cláusula eletiva de foro (Corte Dis-trital de Nova York); d) o mencionado “perfomance bond” não é acessório do contrato de construção.

Embargos declaratórios opostos pela autora não foram conhecidos.Contra a decisão prolatada a demandante interpôs agravo de instrumento.

A Décima Sétima Câmara do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, à unani-midade de votos, rejeitou a preliminar de intempestividade do recurso e, no mérito, deu-lhe provimento para restabelecer a jurisdição da 42a Vara Cível, em Acórdão que porta a seguinte ementa:

“AGRAVO. AÇÃO ORDINÁRIA DE PERDAS E DANOS CUMU-LADA COM COBRANÇA DE APÓLICE SEGURO — GARANTIA DE EXECUÇÃO DAS OBRIGAÇÕES CONTRATUAIS “PERFORMANCE BOND”. DESCUMPRIMENTO DE CONTRATO FIRMADO COM CONSÓRCIO DE EMPRESAS. FORMALIZAÇÃO DE CONTRATO DE SEGURO PARA EFEITO DE GARANTIR A EXECUÇÃO DAS OBRIGAÇÕES CONTRATUAIS. EXTINÇÃO DO PROCESSO SEM JULGAMENTO DO MÉRITO COM RELAÇÃO ÀS EMPRESAS SEGU-RADORAS, SOB FUNDAMENTOS DE QUE SÃO ESTRANGEIRAS. ESTÃO DOMICILIADAS NO EXTERIOR, SENDO O CONTRATO FIRMADO NOS ESTADO UNIDOS, ELEITA A CORTE DE NOVA YORK PARA PROCESSAMENTO E JULGAMENTO DE AÇÕES DECORRENTES DO CONTRATO DE “PERFORMANCE BOND”. COMPETÊNCIA INTERNACIONAL. COMPETÊNCIA CONCOR-RENTE. COMPETÊNCIA DA AUTORIDADE JUDICIÁRIA BRASI-LEIRA, UMA DELAS COM FILIAL NO BRASIL. CUMPRIMENTO DA OBRIGAÇÃO NESTE PAÍS E AÇÃO SE ORIGINA DE FATO NELE OCORRIDO. ARTIGO 88, INCISOS I, II E III E PARÁGRAFO ÚNICO, DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL. REJEIÇÃO DA PRELI-

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MINAR DE INTEMPESTIVIDADE DO RECURSO ARGUIDA PELAS EMPRESAS SEGURADORAS, JÁ QUE A INTERRUPÇÃO DO PRAZO PARA RECORRER SE OPERA COM O INGRESSO DOS EMBARGOS DE DECLARAÇÃO, MESMO QUES ESTES NÃO SEJAM PROVIDOS OU NÃO CONHECIDOS, NÃO PODEM SER CONSIDERADOS INEXISTENTES. PROVIMENTO DO RECURSO” (fl s. 476).

Rejeitados os embargos de declaração, as co-rés “American Home” e “Uni-ted States Fidelity” manifestaram o presente recurso especial com fulcro nas alíneas “a” e “c’’ do admissor constitucional. Alegaram:

a) violação do art. 535, II, do CPC, sob o argumento de que o Acórdão dos aclaratórios não supriu as omissões apontadas:

b) afronta aos arts. 183, 467, 471, 473, 522, 538 e 560 do CPC; 6o, § 3o, da LICC, além de dissídio jurisprudencial a respeito do tema. uma vez que intempestivo o agravo interposto: não tendo sido conhecidos os embargos declaratórios pela Magistrada, nao tiveram eles o condão de interromper o prazo recursal;

c) contrariedade aos arts. 88, I, II e III, 100, IV, 292, § 1o, II, do CPC: 12 da LICC e 950 do Código Civil, em virtude da ausência de jurisdição brasileira. Sustentaram, neste tópico, que: I — tratando-se de competência concorrente da autoridade judiciária brasileira, é suscetível ela de ser afas-tada pela vontade das partes; Il — a existência de fi lial da co-ré “American Home” no país é irrelevante, seja porque isto não determina automatica-mente a competência obrigatória da Justiça nacional, seja porque nenhum dos atos relacionados à presente causa foram praticados na aludida fi lial; III — impossível a prorrogação da competência em razão da cumulação de pe-didos em face de outros réus sediados no Brasil, não podendo ela alcançar a “United States Fidelity”. que sequer possui representação no pais; IV — o “perfomance bond” foi emitido em Nova York, onde o prêmio foi pago; V — o eventual pagamento pelas garantidoras teria lugar nos E.U.A. com crédito em dólares norte-americanos, pelo que a obrigação deveria ser cumprida nos Estados Unidos, onde a moeda tem curso forçado; VI — na falta de con-venção expressa, as dívidas são quesíveis; VII — já existe uma ação em curso nos E.U.A. de modo que o reconhecimento da jurisdição pela Justiça norte-americana tornará inefi caz a decisão brasileira:

d) violação do princípio jurídico segundo o qual o “perfomance bond” é um contrato autônomo em relação ao garantido e dissidência interpretativa acerca do tema: as recorrentes não subscreveram um seguro-garantia de di-reito brasileiro, mas sim um “perfomance bond” de direito norte-americano, emitido em Nova York; autônoma a garantia, prevalece a sua eleição de foro e, outrossim, o local de cumprimento da obrigação sobre qualquer outra dis-posição que possa constar do contrato garantido:

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e) infringência dos arts. 85 e 1.090 do Código Civil e 130 e 131 do Có-digo Comercial em face da má interpretação das cláusulas contratuais, pois a decisão recorrida desprezou a vontade das partes, deu inteligência elástica a um contrato benéfi co e favoreceu o credor em detrimento do devedor.

Ordenada a retenção do REsp. na Medida Cautelar nº 1.938-RJ, o em. Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira houve por bem determinar o imediato processamento do recurso, sem prejuízo da apreciação dos requisitos de ad-missibilidade. Referendada a decisão pela Quarta Turma, o il. Ministro Re-lator em seguida afi rmou suspeição, motivo pelo qual os autos a mim foram redistribuídos.

Oferecidas as contra-razões, o apelo especial foi admitido pelo Exm°. Sr. Desembargador Terceiro Vice-Presidente do Colegiado a quo.

As recorrentes acostaram aos autos os documentos de fl s. 700⁄767, sobre os quais se manifestou a recorrida.

É o relatório.RECURSO ESPECIAL Nº 251.438 — RIO DE JANEIRO (2000⁄0024821-5)

VOTOO SR. MINISTRO BARROS MONTEIRO (RELATOR):1. Os embargos de declaração opostos pela autora à decisão de 1o grau

não foram conhecidos pela Drª. Juíza de Direito, uma vez que infringentes do julgado proferido. Deparando-se com uma mera questão de nomencla-tura, a Magistrada optou, no dispositivo do decisório, por não conhecer dos aclaratórios, quando poderia tê-los simplesmente como rejeitados. A técnica processual, todavia, é ai o que menos releva para a solução da preliminar aventada pelas ora recorrentes. O art. 538 do CPC, com a redação introduzi-da pela Lei nº 8.950, de 13.12.94, é inequívoco ao estatuir que os embargos declaratórios interrompem o prazo para a interposição de outras recursos. É exatamente isto o que ocorreu na espécie. Opostos os declaratórios, tiveram efeito interruptivo do prazo para a interposição de novos recursos. Nesse sen-tido a orientação traçada por este órgão fracionário do Tribunal: confi ram-se os REsp’s nºs. 173.876-SP, por mim relatado, e 153.324-RS, relator Ministro Cesar Asfor Rocha, que em seu douto voto acentuou: “A não se interromper o prazo toda vez que se verifi car a inexistência, ainda que manifesta, de omis-são ou contradição (o que acontece na maior parte dos casos), a parte embar-gante, sem poder contar com a certeza do acolhimento dos seus embargos, teria que interpor o recurso futuro praticamente junto com os embargos, o que vem a contrariar o intuito legislativo e a organicidade processual”.

Não há nesse ponto ofensa à lei federal, nem tampouco é passível de aper-feiçoar-se a dissonância interpretativa, seja porque as recorrentes não cuida-ram de observar o disposto nos arts. 541, parágrafo único, do CPC, e 255, § 2o, do RISTJ, seja porque, de todo modo, as situações jurídicas enfocadas nos

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arestos paradigmas não apresentam similitude com as circunstânciais pró-prias do caso em exame.

2. De outra parte, a decisão combatida nao incorreu em violação ao indi-gitado art. 535, II, da lei processual civil.

O Acórdão recorrido dirimiu, como lhe cabia, o cerne da lide, qual seja, a existência in casu da jurisdição brasileira, fazendo-o pelos motivos que repu-tara pertinentes. Não lhe era exigível que examinasse, uma a uma, as alega-ções produzidas pelas partes. O julgador não está obrigado a responder todas as alegações formuladas, quando já tenha encontrado elementos sufi cientes para embasar a sua decisão, uma vez que, ao qualifi car os fatos trazidos ao seu conhecimento, não fi ca adstrito ao fundamento legal invocado pelos litigan-tes. Assim tem decidido esta C. Turma em inúmeros precedentes, dos quais podem ser referidos os mais recentes (REsp nº 197.761-PR e AgRg no Ag nº 191.665-SP, de que fui relator).

3. O punctum dolens da controvérsia diz, consoante já assinalado, com a jurisdição do Juiz brasileiro para apreciar o litígio internacional instaurado, nos moldes do sistema adotado pela nossa lei processual civil (arts. 88. incisos e parágrafo único, 89 e 90). O julgado recorrido, reformando a decisão pro-latada pela Juíza singular, reconheceu a competência internacional da autori-dade judiciária nacional no caso, estribando-se substancialmente no disposto no art. 88, incisos I e lI, do CPC. Eis, em síntese, a motivação expendida pelo V. Acórdão:

a) a co-ré “American Home” possui fi lial no Brasil, razão por que, nos termos do disposto no art. 88, § único, do CPC, é de ser tida como aqui domiciliada: daí a aplicação, quanto a ela. da regra inscrita no art. 88, inc. I, do citado diploma processual civil;

a. a outra empresa co-ré, “United States Fidelity”, também se submete à jurisdição brasileira, pois a obrigação contraída deveria ser satisfei-ta no Brasil (art. 88, inc. II, do Código de Processo Civil);

b. “o ato não é apenas aquele praticado no Brasil, mas também aquele destinado a aqui produzir efi cácia” (fl s. 482);

d) trata-se, em relação a ambas as recorrentes, da denominada competên-cia concorrente, não restando afastada, pois. a possibilidade de ser ajuizada outra ação no exterior;

a. qualquer convenção entre as partes não tem força para obstaculizar o ingresso nos tribunais brasileiros pelos interessados;

b. o contrato de garantia (“performance bond”) não foi subscrito pela autora;

g) o foro de eleição estabelecido no “performance bond” constitui dispo-sição facultativa;

h) o contrato de garantia está subordinado ao contrato de construção, segundo se percebe pela leitura das cláusulas sob nºs. 1, 2, 6.1, 7, 9.1.9.1.2

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e 20.1 insertas no primeiro instrumento mencionado; assim, o “perfomance bond” é dependente do contrato de construção, nele integrando-se como um pacto acessório, garantindo a execução do contrato principal.

Em conformidade com a sistemática empregada pelo legislador pátrio, a competência internacional da autoridade judiciária brasileira pode ser con-corrente (art. 88 e seus incisos, do CPC) ou exclusiva (art. 89 do mesmo estatuto processual civil).

Segundo as recorrentes irrelevante mostra-se a circunstância de possuir a co-ré “American Home” fi lial no Brasil, isto porque a competência interna-cional da autoridade judiciária brasileira somente se justifi caria se porventura o ato em questão tivesse sido praticado pela dita fi lial, o que não ocorreu. Neste aspecto particular, a objeção colhe, porquanto, como adverte o eméri-to Prof. Celso Agrícola Barbi, em seus Comentários ao Código de Processo Civil.

“naturalmente, dentro dos princípios que levam os países a limitar sua ju-risdição, deve-se interpretar esse parágrafo (parágrafo único do art. 88) como aplicável às demandas oriundas de negócios dessas agências, fi liais ou sucur-sais, pois só essas causas é que podem interessar a ordem jurídica do país. Do contrário, um canadense residente em seu país natal poderia vir acionar aqui uma empresa norte-americana por questões surgidas nos Estados Unidos e sem qualquer ligação com o nosso País apenas porque a ré tem agência em nosso País” (pág. 296.10a ed. — Forense).

Nem por isso. entretanto, a co-ré “American Home” se subtrai no caso à jurisdição brasileira, desde que, excluída a hipótese prevista no art. 88. inc. I, do estatuto processual civil, pelo motivo apontado, coloca-se ela na mesma situação que o V. Acórdão classifi cou para a co— ré “United States Fidelity”. ou seja. cabível a jurisdição nacional porque aqui deveria ser cumprida a obrigação (art. 88. inc. II, do CPC). Aplicável a norma jurídica a uma co-ré. igual tratamento é de ser dispensado à outra.

Sob o prisma do referido art. 88, inc. II, do CPC, tem-se que o “perfo-mance bond”. ao reverso do que sustentam as ora recorrentes, é acessório, dependente, do contrato principal. que é o contrato de construção (contrato de execução de serviços para adaptação de um navio petroleiro em unidade fl utuante para tratamento, armazenamento e escoamento de óleo e gás).

O “performance bond” é uma espécie de seguro. Dessa forma o qualifi ca o mestre Caio Mário da Silva Pereira, in verbis: “É modalidade de seguro com a fi nalidade de garantir a perfeição ou acabamento de uma obra. Habitual-mente é contratado por um empreiteiro ou qualquer pessoa que se obriga pela realização de uma obra, obrigando-se o segurador pela perfeição do ser-viço, que deve ser realizado, na conformidade dos planos ou projetos e a sua execução” (Instituições de Direito Civil, vol. III, pág. 313, 10a ed.). O Prof. Amoldo Wald, em seu conhecido Curso de Direito Civil Brasileiro, lembra

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que a “Susep” houvera admitido várias modalidades de seguro-garantia na Circular nº 26. de 10.11.1989. tratando, dentre elas. do “performance bond” ou garantia da execução de obras (vol. II, pág. 344, 14ª ed.) O mesmo reno-mado jurista citado inclui, de modo explícito, o “perfomance bond” como uma das novas formas de seguro nos dias de hoje (ob. e pág. citadas)

Seja como uma espécie de seguro, seja como um contrato de garantia de execução, como alvitram as recorrentes, classifi quem-se estas como segura-doras ou como garantidoras, o certo é que o contrato de garantia celebrado entre as empresas integrantes do consórcio e as co— res constitui uma aven-ça acessória, subordinada ao contrato principal (o contrato de construção). As próprias recorrentes reconhecem, em razões do apelo excepcional, que o ‘’performance bond” se relaciona com o ajuste garantido. Não poderia ser de outra forma, pois o contrário seria negar a natureza própria das coisas. O contrato de garantia (“performance bond”) é contrato coligado ao principal — o contrato de conversão do navio petroleiro em unidade fl utuante. É aces-sório, depende lógica e juridicamente do pacto garantido, considerado como o principal. Assim se dá com qualquer outro tipo de garantia, seja ela, verbi gratia, a hipoteca, a caução e a fi ança. Todos eles são contratos dependentes. ‘’Acessorium sequitur naturam sui principalis”. “Os contratos acessórios nao têm vida autônoma, pois dependem sempre da existência dos contratos prin-cipais cujas obrigações visam garantir’ (Introdução ao Estudo do Contrato, Reynaldo Ribeiro Daiuto. pág. 75. ed. 1.995).

Ora, o contrato de garantia — “o performance bond” emitido pelas co-rés recorrentes — é acessório ao contrato de construção não só pela sua natureza acima salientada, como também em face dos termos em que realizadas ambas as pactuações. No contrato de execução dos serviços de adaptação do navio petroleiro, os termos da garantia passaram a fazer parte do seu Anexo X. De sua vez, o V. Acórdão hostilizado dessumiu o caráter de subordinação do con-trato de garantia através do exame de estipulações contratuais nele insertas. De sorte que, em última análise, não seria possível em sede de recurso espe-cial reverter-se tal qualifi cação, uma vez que importaria aí em reinterpretação de disposições contratuais, o que não é permitido pelo verbete sumular n° 05 desta Casa.

Já neste ponto, tem-se que o REsp interposto é claramente descabido. Para que se possa admitir o apelo especial em virtude de violação a um princípio jurídico, bem é de ver que deve este achar-se vinculado ao ordenamento ju-rídico pátrio, o que não acontece no caso vertente, em que a verifi cação da natureza do aludido “performance bond” está a demandar matéria de fato e, ainda, a perquirição de direito norte-americano e internacional. Tampouco há considerar-se como consumado o dissídio pretoriano neste tópico, à vista de que o paradigma trazido à colação, oriundo do antigo Tribunal de Alçada Cível do Rio de Janeiro, se reporta à liquidez e exigibilidade do contrato de

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garantia para fi ns de facultar o ajuizamento da execução pelo benefi ciário, ângulo este não focalizado no presente feito.

Por conseguinte, as co-rés “American Home” e “United States Fidelity” submetem— se, no caso, à jurisdição brasileira nos termos do estabelecido no art. 88, inc. II, do CPC, pois aqui deveria ser cumprida a obrigação principal. A hipótese é de competência internacional concorrente do Juiz brasileiro, irrelevantes, assim, os motivos abordados pela Magistrada de 1ª instância e alegados, por sinal, pelas recursantes para extinguir o processo sem conheci-mento do mérito: nao importa serem as litigantes empresas sediadas no ex-terior: nem tampouco haver sido o “performance bond” emitido nos E.U.A, onde a negociação teria sido realizada e onde o pagamento do prêmio foi efe-tuado; ou, ainda, ser o local de pagamento da garantia aquele país e a moeda de pagamento o dólar norte-americano. O que prevalece são as estipulações constantes do contrato principal; não as do acessório.

A autoridade judiciária brasileira, na espécie ora em apreciação, conforme insistentemente anotado, possui competência concorrente para julgar o lití-gio internacional, nos termos do referido art. 88, inc. II, do CPC

A competência concorrente do Juiz brasileiro não pode ser afastada pela vontade das partes. Em trabalho publicado na Revista de Processo, n° 50, o em. Prof. José Ignácio Botelho de Mesquita leciona a respeito do tema: “As normas que defi nem a extensão da jurisdição de um Estado são normas diretamente fundadas na soberania nacional e, por isto, não se acham sub-metidas à vontade das partes interessadas. Como disse Chiovenda, é ‘evi-dente que a jurisdição, que o Estado se arroga, inspirando-se em supremos interesses nacionais, não pode representar objeto de disposição da parte dos litigantes’ (Instituições, 1943, I⁄70). Os limites da jurisdição nacional não podem, por isto, ser ampliados, nem restringidos, por vontade das partes. As partes podem modifi car a competência territorial mas não podem modi-fi car a extensão da jurisdição nacional. Assim, a propositura, da ação peran-te um juiz internacionalmente incompetente, mesmo que sem oposição do réu. não prorroga a competência internacional desse juiz; do mesmo modo a propositura da ação perante a autoridade judiciária de um Estado internacio-nalmente competente para causa não previne a jurisdição deste contra a de autoridade de outro Estado que. pelas leis do primeiro, também seja (concor-rentemenle) competente a mesma causa. Salvo convenção internacional em contrário, é inoperante a litispendência estrangeira (CPC art. 90), de modo que a mesma causa pode ser simultaneamente proposta perante as autorida-des judiciárias de dois Estados diferentes. As normas de competência inter-nacional são, pois, normas de ordem pública. Por isto mesmo, não se aplica à competência internacional a conhecida classifi cação da competência interna que a divide em competência absoluta e relativa. Na verdade, ‘o fato de certa causa ser estranha à jurisdição do Estado não é a rigor caso de incompetência

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(signifi ca, no fundo, negação da ação) e, talvez, só por analogia se lhe possa aplicar a regra de incompetência ratione materiae’ (Liebman, ob. cit., pp. 24 e 25). Se por analogia quiséssemos aplicar esta classifi cação à competência internacional, teríamos que dizer que a competência internacional é sempre absoluta, ainda quando a lei admita a competência concorrente de outro Estado” (págs. 52⁄53).

Aliás, o Tribunal de Justiça de São Paulo já teve ocasião de decidir que a cláusula eletiva de foro. em hipótese de competência internacional con-corrente, não pode ter o condão de afastar a jurisdição brasileira por violar princípio constitucional: “válida a eleição de um foro estrangeiro, permanece a concorrência, isto é, a autoridade brasileira não estará impedida de apreciar a matéria: terá competência (ou, melhor, jurisdição)” (Revista dos Tribunais, vol. 632. pág. 84).

Postos estes aspectos todos, tem-se como inanes as argüições aventadas pe-las recorrentes em torno dos arts. 292, § 1o, inc. II, do CPC, e 950 do Código Civil. De nenhuma relevância. Outrossim, para a solução desta pendenga o fato de haverem as garantidoras ajuizado uma ação declaratória nos Estados Unidos da América. Nem tampouco a circunstância de que o Tribunal de Apelação do 2o Circuito dos Estados Unidos, confi rmando decisório de 1º grau, já deixou reconhecida a jurisdição norte-americana, onde a ora recorri-da chegou a oferecer reconvenção. Como dito, a competência internacional da autoridade judiciária brasileira é concorrente, donde não se achar obstada a Justiça norte-americana de admitir a própria jurisdição para julgar o mesmo litígio. Depois, nos termos do estatuído no art. 90 do Código de Processo Civil, “a ação intentada perante tribunal estrangeiro não induz litispendên-cia, nem obsta que a autoridade judiciária brasileira conheça da mesma causa e das que lhe são conexas”. Vale dizer, é irrelevante a litispendência interna-cional. Daí a pertinente e lúcida observação de Nelson Nery Junior e Rosa Maria Andrade Nery no sentido de que “à justiça brasileira é indiferente que se tenha ajuizado ação em país estrangeiro, que seja idêntica a outra que aqui tramite. O juiz brasileiro deve ignorá-la e permitir o regular prosseguimento da ação” (Código de Processo Civil Comentado e legislação processual civil extravagante em vigor, pág. 542.4a ed.).

Por derradeiro, a assertiva das recorrentes de consonância com a qual o Eg. Tribunal de origem conferiu má ou distorcida interpretação das cláusulas contratuais situa-se no plano dos fatos, não se erigindo em verdadeira ques-tão de direito federal a teor do que enuncia o já citado verbete sumular nº 05 desta Corte.

Em suma, não há falar-se, na hipótese em apreciação, em ofensa a nor-ma de lei federal, nem mesmo divergência em torno de sua interpretação, apresentando-se como escorreita, afi nal, a conclusão do Acórdão recorrido na diretriz de que a Justiça brasileira possui competência concorrente para julgar

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a demanda, prevalecendo no caso os termos era que vazada a cláusula 21 do contrato de construção.

4. Do quanto foi exposto, não conheço do recurso e, por via de con-seqüência, julgo prejudicada a Medida Cautelar nº 1.938-RJ, cessados os efeitos da liminar.

É o meu voto.

RECURSO ESPECIAL Nº 251.438 — RJ

VOTO (PRELIMINAR)O EXMO. SR. MINISTRO CESAR ASFOR ROCHA:— Sr. Presidente, afasto, de inicio, a pretendida ofensa ao art. 535 do

Código de Processo Civil por não perceber qualquer omissão no acórdão recorrido, dado que os temas principais, postos à apreciação do Tribunal a quo, foram bem examinados, a saber: a) a questão relativa à intempestividade da apelação em face do não-conhecimento dos embargos de declaração inter-postos na Primeira Instância, e, b) a questão de mérito, referente à jurisdição brasileira. Também desacolho a segunda preliminar, referente à intempestivi-dade da apelação. Já tenho ponto de vista fi rmado e expresso nos embargos declaratórios, que foram mencionados por Sua Excelência o eminente Minis-tro Relator, no sentido de que o só e só não-conhecimento dos embargos de aclaramento não conduz a que se tenha como inaplicável a interrupção da sua apresentação para fi ns de futura apresentação do recurso principal, salvo se o não-conhecimento decorrer da intempestividade dos embargos declara-tórios, o que não se dá na espécie. Na verdade, a Juíza rejeitou os embargos por entender que não se fundavam em nenhuma das hipóteses previstas no art. 535 do CPC, pois que teriam o caráter meramente infringente. Por isso, rejeito as duas preliminares.

Com relação ao mérito do recurso, não o conheço pelo dissídio, porque não confi gurada a similitude das bases fáticas do acórdão embargado e da-quele trazido à colação, como muito bem exposto pelo eminente Ministro-Relator.

Com relação à letra a, a rigor, seria também de não conhecê-lo, por im-portar em reexame de prova, dado que a confi guração fática que foi traçada pelo eg. Tribunal de origem, ao examinar o agravo de instrumento, não nos permite apreciar o que aduzido pelos recorrentes, em face do óbice contido nos verbetes 5 e 7 da Súmula⁄STJ, tanto por importar em reexame de prova quanto também por reclamar a interpretação de cláusula contratual, por-quanto o acórdão recorrido, tal como posto, disse expressamente: (lê)

“Note-se que o contrato de seguro.............................................................. o disposto neste contrato. Cláusula 2 22.2. “

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Vê-se, assim, que a pretensão dos recorrentes não pode superar aqueles óbices contidos nos verbetes 5 e 7 da Súmula desta Corte. Por isso, como afi r-mei de início, não haveria rigor desta Turma, como não há, em não conhecer do recurso especial por ausência dos pressupostos para o seu conhecimento. Mas, ainda que assim não fosse, tenho, ademais, que, no exame do mérito, da questão referente a jurisdição brasileira, o recurso igualmente não poderia ser conhecido, como, alias, esplendidamente exposto, com a sua habitual maes-tria, pelo eminente Ministro-Relator, não deixando margem a que seja feita qualquer complementação. De qualquer sorte que seja, observo, apenas por demasia, que “performance bond” é um contrato acessório, porque garante o cumprimento daquele contrato de serviços fi rmado pela aqui recorrida con-tra as outras três empresas rés, que formam o consórcio contratado. Na ver-dade, qualquer questionamento feito referente ao contrato de “performance bond” repercutirá no contrato de prestação de serviços.

Assim, é evidente que as seguradoras quando prestaram essa garantia para o cumprimento do referido contrato de prestação de serviços executados aqui no Brasil, já o sabiam que o questionamento que pudesse ocorrer seria neces-sariamente nos tribunais brasileiros. É claro que impressiona, mas apenas no primeiro momento, a expressão contida no contrato de “performance bond”, que foi aqui destacada, que aquele contrato referido poderia ser levado à apreciação da justiça americana. Digo que impressiona apenas no primeiro momento porque, na verdade, este contrato dá margem a dois tipos de dis-cussão: uma, entre as partes que o fi rmaram, isto é, as seguradoras e as em-presas a quem esse contrato objetivava prestar garantia; a outra é a que agora está sendo objeto de apreciação, qual seja: o direito que a recorrida possa ter de reclamar das empresas seguradoras que ofereceram a garantia. Ora, o ques-tionamento diz respeito a esta segunda repercussão. Com efeito, a discussão será sempre nos tribunais brasileiros. Aquela primeira pode interessar às segu-radoras para que o questionamento seja feito nos tribunais americanos. Daí existir expressão poderá.

De sorte, Sr. Presidente, e por tudo o mais que foi aqui exposto pelo emi-nente Ministro-Relator, não conheço do recurso, quer por ausência dos seus pressupostos, para conhecimento, e, ainda que assim não fosse, na apreciação do seu mérito, dele também não conheceria.

RECURSO ESPECIAL Nº 251.438 — RIO DE JANEIRO (2000⁄0024821-5)

VOTO VOGAL (PRELIMINAR)O MINISTRO RUY ROSADO DE AGUIAR (PRESIDENTE): —Srs. Ministros, inicialmente, registro que recebi das partes memoriais e

pareceres, que esclareceram perfeitamente a causa, tudo corroborado, agora, pelas sustentações orais.

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Estou convencido de que esse contrato de garantia é contrato internacio-nal, porque nele existe elemento determinante de conexão real com o orde-namento dos dois países, Estados Unidos e Brasil, estabelecido por empresas estrangeiras em favor de um consórcio nacional, em garantia de contrato de construção celebrado no Brasil, para execução de obra no Brasil. Há, tam-bém, uma questão de jurisdição internacional porque se trata de verifi car se algum órgão judiciário brasileiro tem poder de julgar a lide oriunda da rela-ção jurídica, que tem um elemento objetivo de estraneidade.

No caso, a lide versa sobre o contrato de construção e também sobre o de garantia (perfomace bond).

Portanto, estamos diante de dois contratos distintos, regulados por nor-mas diversas. O performace bond não fi gura na legislação brasileira, mas não se pode dizer que seja estranho ao Direito brasileiro, podendo ser aqui prati-cado e julgado, assim como tantos outros contratos que existiram de fato, no mercado, e só depois na lei.

Como entre os dois contratos há um nexo que os liga, são eles coligados. Para se defi nir o que seja contrato coligado, a melhor doutrina, talvez, seja aquela que recomenda o exame da causa, pela qual um não seria fi rmado sem o outro. No caso, temos um contrato de garantia, que certamente não seria celebrado sem que existisse previamente, ou em futuro próximo, o contrato de construção.

Como os contratos são coligados, devem ser vistos na sua totalidade, e é tam-bém a sua totalidade que vai servir para defi nir a competência do litígio. Essa perspectiva conduz à defi nição da jurisdição do Brasil, porque aqui é o foro com-petente para se decidir sobre o contrato principal e onde se exige, de forma aces-sória, a execução da garantia dada para aquele contrato de execução de serviço.

Assim, penso eu, não se poderia fugir da regra do art. 88, inciso II, a que se referiu o eminente Ministro Relator no seu excelente voto, a fi m de defi nir a competência da Justiça brasileira para a solução do litígio, assim como posto entre as partes.

Não impressiona a questão suscitada com relação à litispendência, porque, como bem mostrou e distinguiu o eminente Ministro Cesar Asfor Rocha, pode haver uma questão proposta nos Estados Unidos relativamente ao con-trato de garantia, especifi camente entre aqueles que nele foram partes, e uma outra questão proposta no Brasil com relação aos outros aspectos desse e do contrato principal. E mesmo que fosse uma ação proposta nos Estados Uni-dos relativamente à liberação da execução, da garantia e com isso afetando o interesse dessa que não foi parte no contrato de garantia, mas que é parte no contrato principal, ainda assim não vejo impedimento para que se proponha, no Brasil, a ação pela empresa que aqui fi rmou o contrato para construção de obra sua, garantida aqui pelo performace bond.

Acompanho o voto do eminente Ministro Barros Monteiro em todas as suas conclusões, sem deixar de acrescentar as ponderações do eminente Mi-

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nistro Cesar Asfor Rocha, porque, na verdade, assim como posta a questão, o que está pretendendo a recorrente é uma revisão dos conceitos emitidos no acórdão sobre as cláusulas do contrato e os fatos nele aceitos.

CERTIDÃO DE JULGAMENTOQUARTA TURMANro. Registro: 2000⁄0024821-5RESP 251438⁄RJPAUTA: 08⁄08⁄2000 JULGADO: 08⁄08⁄2000RelatorExmo. Sr. Min. BARROS MONTEIROPresidente da SessãoExmo. Sr. Min. RUY ROSADO DE AGUIARSubprocurador-Geral da RepúblicaEXMO. SR. DR. WASHINGTON BOLIVAR DE BRITO JUNIORSecretário (a)CLARINDO LUIZ DE SOUZA FLAUZINAAUTUAÇÃORECTE:AMERICAN HOME ASSURANCE COMPANY E OUTROADVOGADO:ARNOLDO WALD E OUTROSRECDO:BRASPETRO OIL SERVICES COMPANY — BRASOILADVOGADO:ATHOS GUSMAO CARNEIRO E OUTROSINTERES.:INDUSTRIAS VEROLME ISHIBRAS S⁄A — IVI E OUTROS

SUSTENTAÇÃO ORALSustentaram, oralmente, o Dr. Osmar Tognolo, pela recorrente; e o Dr.

Sérgio Tostes, pela recorrida.

CERTIDÃOCertifi co que a egrégia QUARTA TURMA ao apreciar o processo em epi-

grafe, em sessão realizada nesta data, proferiu a seguinte decisão:A Turma, por unanimidade, não conheceu do recurso, julgando prejudi-

cada a Medida Cautelar nr. 1938⁄RJ, cessando os efeitos da medida liminar.Votaram com o Relator os Srs. Ministros Cesar Asfor Rocha e Ruy Rosado

de Aguiar.Impedido o Sr. Ministro Aldir Passarinho Junior. Afi rmou suspeição o Sr.

Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira.O referido é verdade. Dou fé.Brasília, 8 de agosto de 2000CLARINDO LUIZ DE SOUZA FLAUZINASecretário (a)

Documento: 74411 Inteiro Teor do Acórdão — DJ: 02/10/2000

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CASO 2: RE Nº 1.177.915 — RJ

SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

RECURSO ESPECIAL Nº 1.177.915 — RJ (2010⁄0018195-5)RELATOR: MINISTRO VASCO DELLA GIUSTINA (DESEMBAR-

GADOR CONVOCADO DO TJ⁄RS)RECORRENTE: FÓRMULA F3 BRAZIL S⁄AADVOGADA: SANDRA SOARES CASTELLIANO DE LUCENA E

OUTRO(S)RECORRIDO: DUCATI MOTOR HOLDING S P AADVOGADOS: FERNANDO BOTELHO PENTEADO DE CAS-

TRO E OUTRO(S)PERICLES D’AVILA MENDES NETO

EMENTA

RECURSO ESPECIAL. EXCEÇÃO DE INCOMPETÊNCIA. CLÁU-SULA DE ELEIÇÃO DE FORO ESTRANGEIRO. CONTRATO IN-TERNACIONAL DE IMPORTAÇÃO. OFENSA AO ART. 535 DO CPC NÃO CONFIGURADA. INTERPRETAÇÃO DE CLÁUSULAS CON-TRATUAIS. REEXAME DE PROVAS. INCIDÊNCIA DAS SÚMULAS 05 E 07 DO STJ. AUSÊNCIA DE QUESTÃO DE ORDEM PÚBLICA.

1. Não se verifi ca ofensa ao art. 535 do CPC, tendo em vista que o acór-dão recorrido analisou, de forma clara e fundamentada, todas as questões pertinentes ao julgamento da causa, ainda que não no sentido invocado pelas partes.

2. A reforma do julgado demandaria a interpretação de cláusula contratual e o reexame do contexto fático-probatório, providências vedadas no âmbito do recurso especial, a teor do enunciado das Súmulas 5 e 7 do STJ.

3. As conclusões da Corte a quo no sentido de que, in casu, é de impor-tação a natureza do contrato entabulado entre as partes e de que é o país es-trangeiro o local de execução e cumprimento das obrigações, decorreram da análise de cláusulas contratuais e do conjunto fático-probatório carreado aos autos, pelo que proscrito o reexame da questão nesta via especial.

4. “A eleição de foro estrangeiro é válida, exceto quando a lide envolver in-teresses públicos” (REsp 242.383⁄SP, Rel. Ministro HUMBERTO GOMES DE BARROS, TERCEIRA TURMA, julgado em 03⁄02⁄2005, DJ 21⁄03⁄2005 p. 360).

5. Recurso especial desprovido.

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ACÓRDÃOVistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Terceira

Turma do Superior Tribunal de Justiça, por unanimidade, negar provimento ao recurso especial, nos termos do voto do(a) Sr(a). Ministro(a) Relator(a). Os Srs. Ministros Paulo Furtado (Desembargador convocado do TJ⁄BA), Nancy Andrighi e Massami Uyeda votaram com o Sr. Ministro Relator. Im-pedido o Sr. Ministro Sidnei Beneti.

Dr(a). SANDRA SOARES CASTELLIANO DE LUCENA, pela parte RECORRENTE: FÓRMULA F3 BRAZIL S⁄A

Dr(a). FERNANDO BOTELHO PENTEADO DE CASTRO, pela par-te RECORRIDA: DUCATI MOTOR HOLDING S P A

Brasília (DF), 13 de abril de 2010(Data do Julgamento)

MINISTRO VASCO DELLA GIUSTINA(DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TJ⁄RS)RelatorRECURSO ESPECIAL Nº 1.177.915 — RJ (2010⁄0018195-5)

RELATOR: MINISTRO VASCO DELLA GIUSTINA (DESEMBAR-GADOR CONVOCADO DO TJ⁄RS)

RECORRENTE: FÓRMULA F3 BRAZIL S⁄AADVOGADA: SANDRA SOARES CASTELLIANO DE LUCENA E

OUTRO(S)RECORRIDO: DUCATI MOTOR HOLDING S P AADVOGADOS: FERNANDO BOTELHO PENTEADO DE CAS-

TRO E OUTRO(S)PERICLES D’AVILA MENDES NETO

RELATÓRIO

O EXMO. SR. MINISTRO VASCO DELLA GIUSTINA (DESEM-BARGADOR CONVOCADO DO TJ⁄RS) (Relator): Trata-se de recurso es-pecial interposto por FÓRMULA F3 BRAZIL S⁄A, com arrimo no art. 105, inciso III, alínea “a”, da Constituição Federal, contra acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro.

Noticiam os autos que a ora recorrente ajuizou ação contra DUCATI MOTOR HOLDING S P A, objetivando a manutenção do contrato en-tabulado entre as partes ou, alternativamente, indenização pelos prejuízos decorrentes da extinção da relação contratual (fl s. 19-41).

Oposta exceção de incompetência pela ré, DUCATI MOTOR HOL-DING S P A (fl s. 206-219), invocando a existência de cláusula contratual de eleição do foro do juízo de Bolonha, na Itália, foi acolhida, reconhecendo a falta de jurisdição da Justiça brasileira para apreciar a causa (fl s. 297-303).

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Inconformado, o autor da demanda manejou recurso de agravo de instru-mento.

A Décima Câmara Cível do TJ⁄RJ, por unanimidade de votos dos seus in-tegrantes, manteve a decisão monocrática, que negara provimento ao agravo, em aresto que restou assim ementado:

AGRAVO INOMINADO CONTRA DECISÃO MONOCRÁTICA QUE NEGOU SEGUIMENTO AO RECURSO, NOS TERMOS DO ART. 557, DO CPC. EXCEÇÃO DE INCOMPETÊNCIA. CONTRATO INTERNACIONAL DE IMPORTAÇÃO. CLÁUSULA CONTRATUAL PREVENDO A COMPETÊNCIA DO JUÍZO ITALIANO PARA DI-RIMIR QUALQUER CONTROVÉRSIA. INSTRUMENTO DE CON-TRATO FIRMADO NA ITÁLIA. OBRIGAÇÕES CUMPRIDAS NA ITÁLIA. CLÁUSULA DE ELEIÇÃO DE FORO VÁLIDA, DESDE QUE NÃO ACARRETE IMPEDIMENTO À PARTE AO ACESSO À JUSTI-ÇA. INEXISTÊNCIA DE HIPOSSUFICIÊNCIA DA AGRAVANTE. A SÚMULA DO EXCELSO PRETÓRIO DISPÕE: É VÁLIDA A CLÁUSU-LA DE FORO PARA OS PROCESSOS ORIUNDOS DE CONTRATO. INCOMPETÊNCIA DA JUSTIÇA BRASILEIRA. DESPROVIMENTO DO RECURSO (fl . 479).

Opostos embargos de declaração, foram rejeitados, consignando-se apenas a correção de erro material no acórdão, “no que se refere à empresa não pos-suidora de domicílio ou fi lial no Brasil, que é a Agravada e não a Agravante, como constou” (fl . 501).

Nas razões do especial, a recorrente aponta violação dos artigos 17 da Lei de Introdução ao Código Civil; artigos 88 e 535, inciso II, do Código de Processo Civil; e artigos 1º e 30 da Lei 6.729⁄79. Sustenta, em síntese: (i) negativa de prestação jurisdicional, ao deixar o Tribunal de origem de se ma-nifestar sobre aspectos relevantes da demanda, relacionados à aplicação da Lei 6.729⁄79 ao caso concreto; (ii) que “o contrato em questão, cujas obrigações seriam cumpridas no Brasil, amolda-se perfeitamente à espécie de contrato de distribuição de veículos automotores (contratos de concessão comercial), disciplinado pela Lei nº 6.729⁄79” (fl . 506); (iii) “a necessidade de se obser-var a Lei n. 6.729⁄79, no presente caso, portanto, implica reconhecer como inválida a cláusula que elegeu o foro de Bolonha, na Itália, como competente para apreciar as demandas originadas da relação contratual entre as partes” (fl . 513); (iv) “a fi xação da competência, por ato de vontade, diversa daquela forma defi nida pelo art. 88 do CPC só pode ser aceita se não contrariar nor-mas de ordem pública” (fl . 515).

Com as contrarrazões (fl s. 529-562) e não admitido o recurso na origem (fl s. 568-570), adveio agravo de instrumento, cuja decisão de desprovimento

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do recurso (fl s. 575-579), foi atacada por agravo regimental, provido, para determinar a subida do recurso especial (fl . 586).

É o breve relatório.RECURSO ESPECIAL Nº 1.177.915 — RJ (2010⁄0018195-5)RELATOR: MINISTRO VASCO DELLA GIUSTINA (DESEMBAR-

GADOR CONVOCADO DO TJ⁄RS)RECORRENTE: FÓRMULA F3 BRAZIL S⁄AADVOGADA: SANDRA SOARES CASTELLIANO DE LUCENA E

OUTRO(S)RECORRIDO: DUCATI MOTOR HOLDING S P AADVOGADOS: FERNANDO BOTELHO PENTEADO DE CAS-

TRO E OUTRO(S)PERICLES D’AVILA MENDES NETO

VOTOO EXMO. SR. MINISTRO VASCO DELLA GIUSTINA (DESEM-

BARGADOR CONVOCADO DO TJ⁄RS) (Relator): Não merecem acolhi-da as pretensões da recorrente.

Da alegada violação do art. 535, II, do CPCDe início, verifi ca-se não ter havido a alegada negativa de prestação ju-

risdicional nos embargos declaratórios, visto que tal somente se confi gura quando, na apreciação do recurso, o Tribunal de origem insiste em omitir pronunciamento sobre questão que deveria ser decidida, e não foi. Não é o caso dos autos. A Corte de origem enfrentou a matéria posta em debate na medida necessária para o deslinde da controvérsia, consoante se pode facil-mente inferir dos fundamentos constantes do voto condutor do julgado ora impugnado, litteris:

(...) as provas apresentadas demonstram, cabalmente, que se trata de um contrato de âmbito internacional, sendo suas obrigações cumpridas essen-cialmente no país estrangeiro, qual seja, a Itália.

(...)(...) o ato ou fato, no caso, o contrato, foi realizado na Itália e, as obriga-

ções principais, que são a entrega das motos e a entrega dos valores respecti-vos, são realizadas no citado país estrangeiro.

Logo, natural que nessa relação contratual de âmbito internacional, onde o contrato foi fi rmado no exterior e as obrigações são cumpridas no mesmo local, que qualquer dissídio entre as partes contratantes seja dirimido pela Justiça do país que está abrigando tal negociação (fl s. 481-482).

Assim, resulta evidente, que a pretensão dos ora recorrentes, inserta em seus declaratórios (que apontavam, além de contradição, omissão quanto à análise do local do cumprimento das obrigações), tinha conteúdo meramente infringente, revelando o inconformismo do mesmo com as soluções encon-

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tradas pela Corte de origem, e não a omissão desta acerca da apreciação das questões suscitadas.

De toda sorte, sobreleva destacar que o órgão julgador não está obrigado a se pronunciar acerca de todo e qualquer ponto suscitado pelas partes, mas apenas sobre os considerados sufi cientes para fundamentar sua decisão, o que foi feito.

E mais, a motivação contrária ao interesse da parte ou mesmo omissa em relação a pontos considerados irrelevantes pelo decisum não se traduz em maltrato às normas apontadas como violadas. Nesse sentido:

CIVIL E PROCESSUAL CIVIL — AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO DE INSTRUMENTO — RESPONSABILIDADE CIVIL — AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS — INSCRIÇÃO EM CADASTRO DE INADIMPLENTES — CANCELAMENTO DO REGISTRO — INVIABILIDADE — SÚMULA 323⁄STJ — OMISSÃO, CONTRADIÇÃO OU OBSCURIDADE DO ACÓRDÃO RECORRI-DO — INOCORRÊNCIA — FALTA DE PREQUESTIONAMENTO DOS DEMAIS DISPOSITIVOS ELENCADOS NO RECURSO.

I — Não se pode confundir negativa de prestação jurisdicional com tutela jurisdicional desfavorável ao interesse da parte. O Tribunal de origem decidiu corretamente o feito, baseando-se, inclusive, na jurisprudência assente desta Corte sobre a matéria. Assim, não há que se falar em violação dos artigos 458, II e III, 515, §§ 1º e 2º, 535, I e II, do Código de Processo Civil. Os demais dispositivos não foram prequestionados.

II — O registro do nome do consumidor nos órgãos de proteção ao cré-dito não se vincula à prescrição atinente à espécie de ação cabível. Assim, se a via executiva não puder ser exercida, mas remanescer o direito à cobrança da dívida por outro meio processual, desde que durante o prazo de 5 (cinco) anos, não há óbice à manutenção do nome do consumidor nos órgãos de controle cadastral, em vista do lapso qüinqüenal (Súmula 323⁄STJ).

Agravo regimental improvido.(AgRg no Ag 1099452⁄RS, Rel. Ministro SIDNEI BENETI, TERCEIRA

TURMA, julgado em 17⁄02⁄2009, DJe 05⁄03⁄2009).

Da alegada violação dos artigos 1º e 30 da Lei 6.729⁄79 e do artigo 88 do CPC

A questão posta nos autos cinge-se a averiguar acerca da validade da cláu-sula de eleição de foro (Bolonha — Itália), prevista no contrato encetado entre as partes.

A solução da controvérsia passa necessariamente pela análise da qualifi ca-ção jurídica do contrato celebrado entre as partes, bem como pela identifi ca-ção do local do cumprimento das obrigações.

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DIREITO GLOBAL II

FGV DIREITO RIO 78

Sobre o primeiro tópico, o Tribunal de origem, instado, em sede de em-bargos de declaração à decisão monocrática de fl s. 425-430, a se manifestar sobre a natureza do contrato em análise, concluiu que se tratava de contrato de importação, afastando a incidência da Lei 6.729⁄79, que dispõe sobre a concessão comercial entre produtores e distribuidores de veículos automoto-res de via terrestre, assinalando expressamente:

Insta ser esclarecido que da análise percuciente do documento acostado às fl s. 61, item nº 1, fi cou claro que o objeto do contrato em questão é de importação (...) (fl . 445).

No tocante ao local de cumprimento das obrigações, assim consignou o acórdão recorrido, fi rmando convicção no sentido de que o local de execução e cumprimento das obrigações era o país estrangeiro, como se lê:

Com efeito, as razões trazidas pelo Agravante no sentido de modifi car o decisum monocrático, que negou provimento ao Agravo de Instrumento, não encontram o menor sustentáculo jurídico, até porque, como ali já foi asseverado, as provas apresentadas demonstram, cabalmente, que se trata de um contrato de âmbito internacional, sendo suas obrigações cumpridas es-sencialmente no país estrangeiro, qual seja, a Itália. (...)

Por sua vez, da leitura da cláusula nº 26, restou incontroverso o fato de que o Contrato em discussão é regido exclusivamente pelas Leis da Itália, ao passo que, qualquer divergência oriunda do mesmo ocorrerá dentro do foro exclusivo do Tribunal de Bolonha. (...)

Nesse passo, o art. 88 do CPC elenca hipóteses de competência concorren-te, porém competência que pode ser afastada por cláusula contratual válida. Assim, mesmo tal dispositivo não prevê a competência da Jurisdição brasileira para o presente caso, pois a Empresa-Agravante [leia-se: Empresa-Agravada] não possui domicílio ou mesmo fi lial no Brasil; o ato ou fato, no caso, o contra-to, foi realizado na Itália e, as obrigações principais, que são a entrega das motos e a entrega dos valores respectivos, são realizadas no citado país estrangeiro.

Logo, natural que nessa relação contratual de âmbito internacional, onde o contrato foi fi rmado no exterior e as obrigações são cumpridas no mesmo local, que qualquer dissídio entre as partes contratantes seja dirimido pela Justiça do país que está abrigando tal negociação (fl s. 481-482).

A partir de tais premissas, o acórdão recorrido extraiu a conclusão de que não aproveitava ao recorrente o disposto no art. 88 do CPC, porque não identifi cada qualquer das suas hipóteses de incidência:

Art. 88. É competente a autoridade judiciária brasileira quando:I — o réu, qualquer que seja a sua nacionalidade, estiver domiciliado no

Brasil;II — no Brasil tiver de ser cumprida a obrigação;III — a ação se originar de fato ocorrido ou de ato praticado no Brasil.

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DIREITO GLOBAL II

FGV DIREITO RIO 79

Nesse contexto, a verifi cação da procedência dos argumentos expendidos no recurso especial exigiria por parte desta Corte o reexame de cláusulas con-tratuais e do conjunto fático-probatório, o que é vedado pelos Enunciados nº 5 e 7 da Súmula deste Tribunal, consoante iterativa jurisprudência desta Corte.

Da alegada violação do artigo 17 da LICCQuanto ao ponto, o acórdão recorrido considerou válida a cláusula de

eleição do foro estrangeiro, porque não identifi cada hipossufi ciência da re-corrente, nem qualquer circunstância ensejadora de impedimento à parte ao acesso à Justiça, como se colhe dos seguintes excertos:

Insta ser enfatizado que o grande questionamento paira sobre a validade ou não da cláusula contratual de eleição da Justiça Italiana para dirimir os confl itos entre os contratantes. Por certo, tal cláusula, não poderia atingir o consumidor fi nal que adquirisse os produtos da revendedora no Brasil, contu-do, não há mácula sobre tal cláusula contratual, devendo as partes respeitá-la.

Nesse diapasão a súmula n º 335 do Excelso Pretório dispõe: “É válida a cláusula de eleição de foro para os processos oriundos de contrato”.

Em sendo assim, é válida a cláusula de eleição de foro, desde que não acar-rete impedimento à parte mais fraca de acesso ao Judiciário, com violação ao princípio constitucional.

Porém, não se vislumbra, in casu, qualquer hipossufi ciência da Agravante, eis que se tratar de contrato celebrado na Itália, de importação exclusiva, re-alizado entre a empresa Ré e Autora.

Por sua vez, da leitura da cláusula nº 26, restou incontroverso o fato de que o Contrato em discussão é regido exclusivamente pelas Leis da Itália, ao passo que, qualquer divergência oriunda do mesmo ocorrerá dentro do foro exclusivo do Tribunal de Bolonha.

Assim, não há, em relação às partes contratantes, ofensa à lei de ordem pública, pois o próprio Código de Processo Civil, ao elencar os casos em que a Jurisdição brasileira, deve e pode atuar. Por exclusão, determina os casos em que ela não deve e pode deixar de atuar (fl s. 481-482).

Referida solução está em perfeita harmonia com a orientação deste Soda-lício, no sentido de que “a eleição de foro estrangeiro é válida, exceto quando a lide envolver interesses públicos”, consoante se observa do seguinte prece-dente da Terceira Turma, proferido em caso análogo ao dos presentes autos:

RECURSO ESPECIAL — PREQUESTIONAMENTO — SÚMULAS 282⁄STF E 211⁄STJ — REEXAME DE PROVAS E INTERPRETAÇÃO CONTRATUAL — SÚMULAS 5 E 7 — JURISDIÇÃO INTERNACIO-NAL CONCORRENTE — ELEIÇÃO DE FORO ESTRANGEIRO — AUSÊNCIA DE QUESTÃO DE ORDEM PÚBLICA — VALIDADE — DIVERGÊNCIA NÃO-CONFIGURADA.

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DIREITO GLOBAL II

FGV DIREITO RIO 80

1. Em recurso especial não se reexaminam provas e nem interpretam cláu-sulas contratuais (Súmulas 5 e 7).

2. A eleição de foro estrangeiro é válida, exceto quando a lide envolver interesses públicos.

3. Para confi guração da divergência jurisprudencial é necessário demons-trar analiticamente a simetria entre os arestos confrontados.

Simples transcrição de ementa ou súmula não basta.(REsp 242.383⁄SP, Rel. Ministro HUMBERTO GOMES DE BARROS,

TERCEIRA TURMA, julgado em 03⁄02⁄2005, DJ 21⁄03⁄2005 p. 360).

Incide, in casu, portanto, a Súmula 83 do STJ, segundo a qual “não se conhece do recurso especial pela divergência, quando a orientação do tribu-nal se fi rmou no mesmo sentido da decisão recorrida”, aplicável a ambas as alíneas autorizadoras (AgRg no Ag 135461⁄RS, Rel. Ministro ANTÔNIO DE PÁDUA RIBEIRO, SEGUNDA TURMA, julgado em 19⁄06⁄1997, DJ 18⁄08⁄1997 p. 37856).

Por fi m, vale registrar que não apresenta repercussão no presente julga-mento o precedente colacionado pela recorrente em sede de memorias (REsp 804.306⁄SP, Rel. Ministra Nancy Andrighi, julgado em 19⁄08⁄2008), por-quanto ausente a similitude fática com o caso concreto.

Com efeito, naquele precedente, como se constata da leitura da própria ementa “o cumprimento do contrato de representação deu-se, efetivamente, em território brasileiro”, enquanto, in casu, as instâncias ordinárias consig-naram que “o ato ou fato, no caso, o contrato, foi realizado na Itália e, as obrigações principais, que são a entrega das motos e a entrega dos valores respectivos, são realizadas no citado país estrangeiro”. Além disso, naque-le caso concreto, o Tribunal de origem consignou estar evidente o prejuízo efetivo para a defesa, situação, aqui, inexistente, consoante já consignado na fundamentação supra.

Ante todo o exposto, nego provimento ao recurso especial.É o voto.

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DIREITO GLOBAL II

FGV DIREITO RIO 81

RECURSO ESPECIAL Nº 1.177.915 — RJ (2010⁄0018195-5)RELATOR: MINISTRO VASCO DELLA GIUSTINA (DESEMBAR-

GADOR CONVOCADO DO TJ⁄RS)RECORRENTE: FÓRMULA F3 BRAZIL S⁄AADVOGADA: SANDRA SOARES CASTELLIANO DE LUCENA E

OUTRO(S)RECORRIDO: DUCATI MOTOR HOLDING S P AADVOGADOS: FERNANDO BOTELHO PENTEADO DE CAS-

TRO E OUTRO(S)PERICLES D’AVILA MENDES NETO

VOTO-VOGALEXMO. SR. MINISTRO MASSAMI UYEDA:Srs. Ministros, eu também havia recebido os memoriais das partes, mas

o voto percuciente do eminente Relator deixa clara a não incidência de lei brasileira, mas sim da lei italiana, por isso há o contrato de importação.

Nego provimento ao recurso especial.

Ministro MASSAMI UYEDA

CERTIDÃO DE JULGAMENTOTERCEIRA TURMANúmero Registro: 2010⁄0018195-5 REsp 1177915 ⁄ RJNúmeros Origem: 20060011048890 200700224569 200813513503PAUTA: 13⁄04⁄2010 JULGADO: 13⁄04⁄2010RelatorExmo. Sr. Ministro VASCO DELLA GIUSTINA (DESEMBARGA-

DOR CONVOCADO DO TJ⁄RS)

Ministro ImpedidoExmo. Sr. Ministro : SIDNEI BENETIPresidente da SessãoExmo. Sr. Ministro MASSAMI UYEDA

Subprocurador-Geral da RepúblicaExmo. Sr. Dr. FRANCISCO DIAS TEIXEIRA

SecretáriaBela. MARIA AUXILIADORA RAMALHO DA ROCHA

AUTUAÇÃORECORRENTE: FÓRMULA F3 BRAZIL S⁄A

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DIREITO GLOBAL II

FGV DIREITO RIO 82

ADVOGADA: SANDRA SOARES CASTELLIANO DE LUCENA E OUTRO(S)

RECORRIDO: DUCATI MOTOR HOLDING S P AADVOGADOS: FERNANDO BOTELHO PENTEADO DE CAS-

TRO E OUTRO(S)PERICLES D’AVILA MENDES NETO

ASSUNTO: DIREITO INTERNACIONAL — Contratos Internacionais

SUSTENTAÇÃO ORALDr(a). SANDRA SOARES CASTELLIANO DE LUCENA, pela parte

RECORRENTE: FÓRMULA F3 BRAZIL S⁄ADr(a). FERNANDO BOTELHO PENTEADO DE CASTRO, pela par-

te RECORRIDA: DUCATI MOTOR HOLDING S P A

CERTIDÃOCertifi co que a egrégia TERCEIRA TURMA, ao apreciar o processo em

epígrafe na sessão realizada nesta data, proferiu a seguinte decisão:

A Turma, por unanimidade, negou provimento ao recurso especial, nos termos do voto do(a) Sr(a). Ministro(a) Relator(a). Os Srs. Ministros Paulo Furtado (Desembargador convocado do TJ⁄BA), Nancy Andrighi e Mas-sami Uyeda votaram com o Sr. Ministro Relator. Impedido o Sr. Ministro Sidnei Beneti.

Brasília, 13 de abril de 2010MARIA AUXILIADORA RAMALHO DA ROCHASecretária

Documento: 960242 Inteiro Teor do Acórdão — DJe: 24/08/2010Esse caso veio do TJ/RJOposta exceção de incompetência pela ré, DUCATI MOTOR HOL-

DING S P A (fl s. 206-219), invocando a existência de cláusula contratual de eleição do foro do juízo de Bolonha, na Itália, foi acolhida, reconhecendo a falta de jurisdição da Justiça brasileira para apreciar a causa.

Agravo de Instrumento desprovido.0038284-34.2007.8.19.0000 (2007.002.24569) — AGRAVO DE INS-

TRUMENTODES. CARLOS EDUARDO MOREIRA SILVA — Julgamento:

22/11/2007 — DECIMA CAMARA CIVEL

Agravo de Instrumento. Exceção de Incompetência. Contrato Internacio-nal de Importação. Cláusula contratual prevendo a competência do juízo ita-liano para dirimir qualquer controvérsia. Instrumento de Contrato fi rmado

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DIREITO GLOBAL II

FGV DIREITO RIO 83

na Itália. Obrigações cumpridas na Itália. Cláusula de eleição de foro válida, desde que não acarrete impedimento à parte ao acesso à Justiça. Inexistência de Hipossufi ciência da Agravante. A súmula do Excelso Pretório dispõe: È válida a cláusula de foro para os processos oriundos de contrato. Incompetên-cia da Justiça brasileira. Recurso que se nega seguimento

CASO 3: RE Nº 1.168.547 — RJ

SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

RECURSO ESPECIAL Nº 1.168.547 — RJ (2007⁄0252908-3)RELATOR: MINISTRO LUIS FELIPE SALOMÃORECORRENTE: WORLD COMPANY DANCE SHOW LTDAADVOGADO: SÉRGIO REYNALDO ALLEVATO E OUTRO(S)RECORRIDO: PATRÍCIA CHÉLIDA DE LIMA SANTOSADVOGADO: ANNA PAULA DE LIMA LEMOS

EMENTADIREITO PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE

INDENIZAÇÃO POR UTILIZAÇÃO INDEVIDA DE IMAGEM EM SÍTIO ELETRÔNICO. PRESTAÇÃO DE SERVIÇO PARA EMPRE-SA ESPANHOLA. CONTRATO COM CLÁUSULA DE ELEIÇÃO DE FORO NO EXTERIOR.

1. A evolução dos sistemas relacionados à informática proporciona a in-ternacionalização das relações humanas, relativiza as distâncias geográfi cas e enseja múltiplas e instantâneas interações entre indivíduos.

2. Entretanto, a intangibilidade e mobilidade das informações armazena-das e transmitidas na rede mundial de computadores, a fugacidade e instan-taneidade com que as conexões são estabelecidas e encerradas, a possibilidade de não exposição física do usuário, o alcance global da rede, constituem-se em algumas peculiaridades inerentes a esta nova tecnologia, abrindo ensejo à prática de possíveis condutas indevidas.

3. O caso em julgamento traz à baila a controvertida situação do impacto da internet sobre o direito e as relações jurídico-sociais, em um ambiente até o momento desprovido de regulamentação estatal. A origem da inter-net, além de seu posterior desenvolvimento, ocorre em um ambiente com características de auto-regulação, pois os padrões e as regras do sistema não emanam, necessariamente, de órgãos estatais, mas de entidades e usuários que assumem o desafi o de expandir a rede globalmente.

4. A questão principal relaciona-se à possibilidade de pessoa física, com do-micílio no Brasil, invocar a jurisdição brasileira, em caso envolvendo contrato

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DIREITO GLOBAL II

FGV DIREITO RIO 84

de prestação de serviço contendo cláusula de foro na Espanha. A autora, perce-bendo que sua imagem está sendo utilizada indevidamente por intermédio de sítio eletrônico veiculado no exterior, mas acessível pela rede mundial de com-putadores, ajuíza ação pleiteando ressarcimento por danos material e moral.

5. Os artigos 100, inciso IV, alíneas “b” e “c” c⁄c art. 12, incisos VII e VIII, ambos do CPC, devem receber interpretação extensiva, pois quando a legis-lação menciona a perspectiva de citação de pessoa jurídica estabelecida por meio de agência, fi lial ou sucursal, está se referindo à existência de estabeleci-mento de pessoa jurídica estrangeira no Brasil, qualquer que seja o nome e a situação jurídica desse estabelecimento.

6. Aplica-se a teoria da aparência para reconhecer a validade de citação via postal com “aviso de recebimento-AR”, efetivada no endereço do estabeleci-mento e recebida por pessoa que, ainda que sem poderes expressos, assina o documento sem fazer qualquer objeção imediata. Precedentes.

7. O exercício da jurisdição, função estatal que busca composição de con-fl itos de interesse, deve observar certos princípios, decorrentes da própria organização do Estado moderno, que se constituem em elementos essenciais para a concretude do exercício jurisdicional, sendo que dentre eles avultam: inevitabilidade, investidura, indelegabilidade, inércia, unicidade, inafastabi-lidade e aderência. No tocante ao princípio da aderência, especifi camente, este pressupõe que, para que a jurisdição seja exercida, deve haver correlação com um território. Assim, para as lesões a direitos ocorridos no âmbito do território brasileiro, em linha de princípio, a autoridade judiciária nacional detém competência para processar e julgar o litígio.

8. O Art. 88 do CPC, mitigando o princípio da aderência, cuida das hipó-teses de jurisdição concorrente (cumulativa), sendo que a jurisdição do Poder Judiciário Brasileiro não exclui a de outro Estado, competente a justiça brasi-leira apenas por razões de viabilidade e efetividade da prestação jurisdicional, estas corroboradas pelo princípio da inafastabilidade da jurisdição, que im-prime ao Estado a obrigação de solucionar as lides que lhe são apresentadas, com vistas à consecução da paz social.

9. A comunicação global via computadores pulverizou as fronteiras ter-ritoriais e criou um novo mecanismo de comunicação humana, porém não subverteu a possibilidade e a credibilidade da aplicação da lei baseada nas fronteiras geográfi cas, motivo pelo qual a inexistência de legislação interna-cional que regulamente a jurisdição no ciberespaço abre a possibilidade de admissão da jurisdição do domicílio dos usuários da internet para a análise e processamento de demandas envolvendo eventuais condutas indevidas reali-zadas no espaço virtual.

10. Com o desenvolvimento da tecnologia, passa a existir um novo con-ceito de privacidade, sendo o consentimento do interessado o ponto de refe-rência de todo o sistema de tutela da privacidade, direito que toda pessoa tem

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DIREITO GLOBAL II

FGV DIREITO RIO 85

de dispor com exclusividade sobre as próprias informações, nelas incluindo o direito à imagem.

11. É reiterado o entendimento da preponderância da regra específi ca do art. 100, inciso V, alínea “a”, do CPC sobre as normas genéricas dos arts. 94 e 100, inciso IV, alínea “a” do CPC, permitindo que a ação indenizatória por danos morais e materiais seja promovida no foro do local onde ocorreu o ato ou fato, ainda que a ré seja pessoa jurídica, com sede em outro lugar, pois é na localidade em que reside e trabalha a pessoa prejudicada que o evento negativo terá maior repercussão. Precedentes.

12. A cláusula de eleição de foro existente em contrato de prestação de serviços no exterior, portanto, não afasta a jurisdição brasileira.

13. Ademais, a imputação de utilização indevida da imagem da autora é um “posterius” em relação ao contato de prestação de serviço, ou seja, o direito de res-guardo à imagem e à intimidade é autônomo em relação ao pacto fi rmado, não sendo dele decorrente. A ação de indenização movida pela autora não é baseada, portanto, no contrato em si, mas em fotografi as e imagens utilizadas pela ré, sem seu consentimento, razão pela qual não há se falar em foro de eleição contratual.

14. Quando a alegada atividade ilícita tiver sido praticada pela internet, independentemente de foro previsto no contrato de prestação de serviço, ainda que no exterior, é competente a autoridade judiciária brasileira caso acionada para dirimir o confl ito, pois aqui tem domicílio a autora e é o local onde houve acesso ao sítio eletrônico onde a informação foi veiculada, inter-pretando-se como ato praticado no Brasil, aplicando-se à hipótese o disposto no artigo 88, III, do CPC.

15. Recurso especial a que se nega provimento.

ACÓRDÃOVistos, relatados e discutidos estes autos, os Ministros da QUARTA TUR-

MA do Superior Tribunal de Justiça acordam, na conformidade dos votos e das notas taquigráfi cas, prosseguindo no julgamento, após o voto-vista do Sr. Honildo Amaral de Mello Castro (Desembargador convocado do TJ⁄AP), negar provimento ao recurso especial, acompanhando os votos dos Srs. Mi-nistros Luis Felipe Salomão, Relator, e Fernando Gonçalves, e os votos dos Srs. Ministros Aldir Passarinho Junior e João Otávio de Noronha, no mesmo sentido., a Turma, por unanimidade, negou provimento ao recurso especial, nos termos do voto do Sr. Ministro Relator. Os Srs. Ministros Honildo Ama-ral de Mello Castro (Desembargador convocado do TJ⁄AP), Aldir Passarinho Junior e João Otávio de Noronha votaram com o Sr. Ministro Relator.

Brasília, 11 de maio de 2010(data do julgamento)

MINISTRO LUIS FELIPE SALOMÃORelator

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FGV DIREITO RIO 86

RECURSO ESPECIAL Nº 1.168.547 — RJ (2007⁄0252908-3)RECORRENTE: WORLD COMPANY DANCE SHOW LTDAADVOGADO: SÉRGIO REYNALDO ALLEVATO E OUTRO(S)RECORRIDO: PATRÍCIA CHÉLIDA DE LIMA SANTOSADVOGADO: ANNA PAULA DE LIMA LEMOS

RELATÓRIO

O EXMO. SR. MINISTRO LUIS FELIPE SALOMÃO (Relator):

1. Cuida-se de recurso especial interposto por World Company Dance Show Ltda com fundamento no artigo 105, inciso III, alínea “a” da Cons-tituição Federal, em autos de ação de reparação civil por danos materiais e morais proposta por Patrícia Chélida de Lima Santos.

Sustenta a autora, na inicial, que formalizou com a empresa World Company Dance Show Ltda. contrato temporário (03 meses, de 17.06 a 17.09.2004) para prestar serviços como dançarina e assistente de direção em show típico brasileiro, com apresentações nos continentes europeu e africano.

Aduz que, meses após o término do contrato, visitou por meio da inter-net o endereço eletrônico da empresa contratante (www.brasilcarnaval.2000.com) e constatou que a página continha montagens de imagens suas, recorta-das de várias fotografi as dos shows nos quais havia trabalhado; além de outras utilizadas para propaganda.

Alega que, de acordo com a cláusula oitava do contrato entabulado, há vedação expressa para a utilização de imagens, sem prévia autorização, para qualquer fi m diverso do objeto contratado.

Citada a ré e contestada a demanda, a sentença de fl s. 66-68 julgou extin-to o processo sem resolução do mérito, por entender o magistrado não ser a justiça brasileira competente para examinar e julgar o feito, nos termos do artigo 88 do CPC.

Inconformada, apelou a autora (fl s. 70-77), tendo o acórdão (fl s. 88-92) recebido a seguinte ementa:

“DIREITO PROCESSUAL CIVIL. COMPETÊNCIA. UTILIZAÇÃO DE IMAGEM INDEVIDA EM SITE NA INTERNET.

1. Se a imagem da apelante está sendo veiculada através do site da empresa ré na internet, o qual é normalmente acessado e mostrado através de computa-dores instalados em nosso país, considera-se que tal ato é praticado no Brasil.

2. Consoante dispõe o artigo 88, inciso III, do CPC, a Justiça Brasileira é competente para julgar o feito quando a ação se refere a fato ocorrido ou a ato praticado no Brasil.

3. Provimento do recurso.”

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FGV DIREITO RIO 87

Opostos embargos de declaração pela empresa (fl s. 94-96), foram estes rejeitados pelo acórdão de fl s. 97-99.

Nas razões do especial (fl s. 101-108), sustenta violação ao artigo 88, inciso III, do Código de Processo Civil, por entender que, embora o sítio eletrônico mantido pela recorrente seja acessado no território brasileiro, a justiça espa-nhola é que seria competente para julgar o caso em questão, pois:

a) o contrato de trabalho fi rmado entre as partes se deu na Espanha, sob a égide da legislação espanhola (R.D. 1.435⁄85);

b) a empresa contratante é espanhola e não possui sede ou fi lial no Brasil;c) o sítio eletrônico www.brasilcarnaval2000.com, onde as reclamadas

imagens⁄fotografi as da autora estão veiculadas, é espanhol;d) os shows onde as fotografi as⁄imagens foram obtidas, realizaram-se na

Espanha e em outros países da Europa;e) se a causa de pedir da indenização é o uso indevido da imagem da au-

tora em sítio eletrônico da empresa recorrente, imprescindível se faz a análise do contrato;

f ) o fato de um internauta poder acessar do Brasil o conteúdo de um sítio estrangeiro não tem o condão de fi xar a competência da jurisdição brasileira.

Informa que todas as fotografi as são dos bailarinos como profi ssionais e que somente foram utilizadas conforme previsto no contrato, para a expo-sição dos serviços anunciados pela empresa, qual seja, espetáculo de samba.

Sustenta que no contrato fi rmado entre as partes foi fi xado como foro de eleição a cidade de Málaga, na Espanha, para a solução de quaisquer con-trovérsia oriundas do contrato de prestação de serviços: “Los confl ictos que surjan entre los artistas em espectáculos Y las Empresas, como consecuencia del contrato de trabajo, serán competência de los Jueces y Tribunal del orden jurisdiccional social”.

É o relatório.RECURSO ESPECIAL Nº 1.168.547 — RJ (2007⁄0252908-3)RELATOR: MINISTRO LUIS FELIPE SALOMÃORECORRENTE: WORLD COMPANY DANCE SHOW LTDAADVOGADO: SÉRGIO REYNALDO ALLEVATO E OUTRO(S)RECORRIDO: PATRÍCIA CHÉLIDA DE LIMA SANTOSADVOGADO: ANNA PAULA DE LIMA LEMOS

EMENTADIREITO PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE

INDENIZAÇÃO POR UTILIZAÇÃO INDEVIDA DE IMAGEM EM SÍTIO ELETRÔNICO. PRESTAÇÃO DE SERVIÇO PARA EMPRE-SA ESPANHOLA. CONTRATO COM CLÁUSULA DE ELEIÇÃO DE FORO NO EXTERIOR.

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FGV DIREITO RIO 88

1. A evolução dos sistemas relacionados à informática proporciona a in-ternacionalização das relações humanas, relativiza as distâncias geográfi cas e enseja múltiplas e instantâneas interações entre indivíduos.

2. Entretanto, a intangibilidade e mobilidade das informações armazena-das e transmitidas na rede mundial de computadores, a fugacidade e instan-taneidade com que as conexões são estabelecidas e encerradas, a possibilidade de não exposição física do usuário, o alcance global da rede, constituem-se em algumas peculiaridades inerentes a esta nova tecnologia, abrindo ensejo à prática de possíveis condutas indevidas.

3. O caso em julgamento traz à baila a controvertida situação do impacto da internet sobre o direito e as relações jurídico-sociais, em um ambiente até o momento desprovido de regulamentação estatal. A origem da inter-net, além de seu posterior desenvolvimento, ocorre em um ambiente com características de auto-regulação, pois os padrões e as regras do sistema não emanam, necessariamente, de órgãos estatais, mas de entidades e usuários que assumem o desafi o de expandir a rede globalmente.

4. A questão principal relaciona-se à possibilidade de pessoa física, com do-micílio no Brasil, invocar a jurisdição brasileira, em caso envolvendo contrato de prestação de serviço contendo cláusula de foro na Espanha. A autora, perce-bendo que sua imagem está sendo utilizada indevidamente por intermédio de sítio eletrônico veiculado no exterior, mas acessível pela rede mundial de com-putadores, ajuíza ação pleiteando ressarcimento por danos material e moral.

5. Os artigos 100, inciso IV, alíneas “b” e “c” c⁄c art. 12, incisos VII e VIII, ambos do CPC, devem receber interpretação extensiva, pois quando a legis-lação menciona a perspectiva de citação de pessoa jurídica estabelecida por meio de agência, fi lial ou sucursal, está se referindo à existência de estabeleci-mento de pessoa jurídica estrangeira no Brasil, qualquer que seja o nome e a situação jurídica desse estabelecimento.

6. Aplica-se a teoria da aparência para reconhecer a validade de citação via postal com “aviso de recebimento-AR”, efetivada no endereço do estabeleci-mento e recebida por pessoa que, ainda que sem poderes expressos, assina o documento sem fazer qualquer objeção imediata. Precedentes.

7. O exercício da jurisdição, função estatal que busca composição de con-fl itos de interesse, deve observar certos princípios, decorrentes da própria organização do Estado moderno, que se constituem em elementos essenciais para a concretude do exercício jurisdicional, sendo que dentre eles avultam: inevitabilidade, investidura, indelegabilidade, inércia, unicidade, inafastabi-lidade e aderência. No tocante ao princípio da aderência, especifi camente, este pressupõe que, para que a jurisdição seja exercida, deve haver correlação com um território. Assim, para as lesões a direitos ocorridos no âmbito do território brasileiro, em linha de princípio, a autoridade judiciária nacional detém competência para processar e julgar o litígio.

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8. O Art. 88 do CPC, mitigando o princípio da aderência, cuida das hipó-teses de jurisdição concorrente (cumulativa), sendo que a jurisdição do Poder Judiciário Brasileiro não exclui a de outro Estado, competente a justiça brasi-leira apenas por razões de viabilidade e efetividade da prestação jurisdicional, estas corroboradas pelo princípio da inafastabilidade da jurisdição, que im-prime ao Estado a obrigação de solucionar as lides que lhe são apresentadas, com vistas à consecução da paz social.

9. A comunicação global via computadores pulverizou as fronteiras territoriais e criou um novo mecanismo de comunicação humana, porém não subverteu a possibilidade e a credibilidade da aplicação da lei baseada nas fronteiras geográfi -cas, motivo pelo qual a inexistência de legislação internacional que regulamente a jurisdição no ciberespaço abre a possibilidade de admissão da jurisdição do domicílio dos usuários da internet para a análise e processamento de demandas envolvendo eventuais condutas indevidas realizadas no espaço virtual.

10. Com o desenvolvimento da tecnologia, passa a existir um novo con-ceito de privacidade, sendo o consentimento do interessado o ponto de refe-rência de todo o sistema de tutela da privacidade, direito que toda pessoa tem de dispor com exclusividade sobre as próprias informações, nelas incluindo o direito à imagem.

11. É reiterado o entendimento da preponderância da regra específi ca do art. 100, inciso V, alínea “a”, do CPC sobre as normas genéricas dos arts. 94 e 100, inciso IV, alínea “a” do CPC, permitindo que a ação indenizatória por danos morais e materiais seja promovida no foro do local onde ocorreu o ato ou fato, ainda que a ré seja pessoa jurídica, com sede em outro lugar, pois é na localidade em que reside e trabalha a pessoa prejudicada que o evento negativo terá maior repercussão. Precedentes.

12. A cláusula de eleição de foro existente em contrato de prestação de serviços no exterior, portanto, não afasta a jurisdição brasileira.

13. Ademais, a imputação de utilização indevida da imagem da autora é um “posterius” em relação ao contato de prestação de serviço, ou seja, o di-reito de resguardo à imagem e à intimidade é autônomo em relação ao pacto fi rmado, não sendo dele decorrente. A ação de indenização movida pela auto-ra não é baseada, portanto, no contrato em si, mas em fotografi as e imagens utilizadas pela ré, sem seu consentimento, razão pela qual não há se falar em foro de eleição contratual.

14. Quando a alegada atividade ilícita tiver sido praticada pela internet, inde-pendentemente de foro previsto no contrato de prestação de serviço, ainda que no exterior, é competente a autoridade judiciária brasileira caso acionada para dirimir o confl ito, pois aqui tem domicílio a autora e é o local onde houve acesso ao sítio eletrônico onde a informação foi veiculada, interpretando-se como ato praticado no Brasil, aplicando-se à hipótese o disposto no artigo 88, III, do CPC.

15. Recurso especial a que se nega provimento.

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FGV DIREITO RIO 90

VOTOO EXMO. SR. MINISTRO LUIS FELIPE SALOMÃO (Relator):2. A questão principal é saber se a jurisdição brasileira pode ser invocada

em caso de contrato de prestação de serviço que contém cláusula de foro na Espanha, envolvendo uma pessoa física com domicílio no Brasil, perceben-do que sua imagem está sendo utilizada indevidamente, segundo alega, por intermédio de sítio eletrônico veiculado no exterior, mas acessível pela rede mundial de computadores, acarretando-lhe danos material e moral.

3. Inicialmente, importante realçar que a evolução dos sistemas relacio-nados à informática proporcionou a internacionalização das relações huma-nas em suas diversas vertentes, relativizando distâncias geográfi cas, ensejando múltipla e instantânea interação entre indivíduos, com acesso amplo da in-formação.

Por outro lado, contudo, a intangibilidade e mobilidade das informações armazenadas e transmitidas na rede mundial de computadores, a fugacidade e instantaneidade com que as conexões são estabelecidas, mantidas, encerra-das, a possibilidade de não exposição física do usuário, o alcance global da rede, constituem-se em algumas peculiaridades inerentes a esta nova tecnolo-gia que permitem a prática de possíveis condutas indevidas.

A origem da internet, além de seu posterior desenvolvimento, ocorre em um ambiente com características de auto-regulação, pois os padrões e as re-gras do sistema não emanam, necessariamente, de órgãos estatais, mas de entidades e usuários que assumem o desafi o de expandir a rede globalmente.

Certamente, o tratamento jurídico das questões que envolvem a internet e o ciberespaço¹ tornam-se um desafi o dos tempos modernos, uma vez que os progressivos avanços tecnológicos têm levado à fl exibilização e à alteração de alguns conceitos jurídicos até então sedimentados, como exemplo: liber-dade, espaço territorial, tempo, matéria, conceitos que refl etem diretamente na aplicação do direito.

¹ Termo do inglês cyberpace, extraído do romance Neuromancer, de William Gibson, publicado em 1984, que narra a história de um homem projetado em uma rede de informações e relações mantidas pelas novas tec-nologias eletrônico-comunicacionais.

“(...) um ambiente gerado eletronicamente, formado pelo homem, as má-quinas, a informática e as telecomunicações, onde é possível a prática de atos de vontade, dotado de limites diversos dos tradicionais, norteado e dimen-sionado fi sicamente por comprimentos de onda e freqüências, ao invés de pesos e medidas materiais, e não constituído por átomos, mas por correntes energéticas (...)”. HOESCHL, Hugo Cesar. Ciberespaço é o melhor produto da revolução da comunicação. Revista Consultor Jurídico, 17 maio. 2004.

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FGV DIREITO RIO 91

3.1 É neste contexto que se encaixa o presente caso, que traz à baila a controvertida situação do impacto da internet sobre o direito e as relações jurídico-sociais em um ambiente desprovido, até o momento, de regulamen-tação estatal.

A empresa recorrente World Company Dance Show Ltda. formalizou com a autora contrato temporário e sem vínculo empregatício, de prestação de serviços de dançarina e assistente de direção em shows brasileiros a serem realizados nos continentes europeu e africano.

Após o término do contrato, a autora visitou, por meio da internet, o endereço eletrônico da empresa contratante (www.brasilcarnaval.2000.com) e constatou que a página do sítio continha montagens de imagens suas (re-cortadas de vários shows nos quais havia trabalhado), bem como fotografi as utilizadas indevidamente para propaganda.

4. A alegação da recorrente de que é uma empresa espanhola e não possui sede ou fi lial no Brasil, não impede que seja aqui processada (art. 100, inciso IV, alíneas “b” e “c” c⁄c art. 12, incisos VII e VIII, ambos do CPC).

O processualista Nelson Nery Júnior elucida que:“quando a lei fala em agência, fi lial ou sucursal, está se referindo à exis-

tência de estabelecimento de pessoa jurídica estrangeira no Brasil, seja qual for o nome que se dê a esse estabelecimento”. (In: Código de processo civil comentado e legislação extravagante. 10. ed.— São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, p. 326)

Na mesma esteira, Arruda Alvim preleciona que esta competência da au-toridade judiciária nacional existirá mesmo nos casos de se tratar de agência, fi lial ou sucursal irregulares, pois a irregularidade não poderá benefi ciar a pessoa jurídica. (ALVIM, Arruda. Manual de Direito Processual Civil. São Paulo: RT, 2001).

Ademais, depreende-se dos autos que a recorrente foi devidamente citada no endereço constante de folhas 49, tendo apresentado contestação (fl s. 51-64) e se insurgido contra a demanda até esta Corte Superior.

O STJ tem entendimento fi rmado no sentido de que aplica-se a teoria da aparência para reconhecer a validade da citação realizada com “aviso de rece-bimento”, efetivada no endereço de estabelecimento e recebida por pessoa, ainda que sem poderes expressos para o ato, que assina o documento sem fazer qualquer objeção imediata.

Nesse sentido, confi ram-se:PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO REGIMENTAL EM AGRAVO DE INS-

TRUMENTO. PESSOA JURÍDICA. CITAÇÃO. TEORIA DA APARÊNCIA.1. Aplica-se a teoria da aparência para reconhecer a validade da citação via

postal com AR, efetivada no endereço da pessoa jurídica e recebida por pes-soa que, ainda que sem poder expresso para tanto, a assina sem fazer qualquer objeção imediata.

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2. Agravo regimental a que se nega provimento.(AgRg nos EDcl no Ag 958.237⁄RS, Rel. Ministro HONILDO AMA-

RAL DE MELLO CASTRO (DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TJ⁄AP), QUARTA TURMA, julgado em 15⁄12⁄2009, DJe 02⁄02⁄2010)

AGRAVO REGIMENTAL — AÇÃO MONITÓRIA —PESSOA JURÍ-DICA — CITAÇÃO — TEORIA DA APARÊNCIA —POSSIBILIDADE — PRECEDENTES — RECURSO IMPROVIDO.

1. Este Superior Tribunal de Justiça admite que a citação da pessoa jurídi-ca se realize validamente na pessoa daquele que, mesmo sem ter poderes de representação, se apresente como tal, mormente se não há a imediata oposi-ção. Precedentes.

2. Recurso improvido.(AgRg no Ag 989.921⁄SP, Rel. Ministro MASSAMI UYEDA, TERCEI-

RA TURMA, julgado em 21⁄08⁄2008, DJe 05⁄09⁄2008)

5. Tampouco afasta a jurisdição brasileira a circunstância de que o sítio eletrônico www.brasilcarnaval2000.com seja espanhol e que as fotografi as nele veiculadas tenham sido obtidas durante shows realizados na Espanha e em outros países da Europa, pois o sítio eletrônico pode ser acessado pela rede mundial de computadores, indistintamente, em todos os países do mun-do, nele incluindo o Brasil.

Além disso, em ação indenizatória por danos morais e materiais, é reitera-do o entendimento da preponderância da regra específi ca do art. 100, inciso V, alínea “a”, do CPC sobre as normas genéricas dos arts. 94 e 100, inciso IV, alínea “a” do CPC.

Assim, a demanda pode ser promovida no foro do local onde ocorreu o ato ou fato, ainda que a ré seja pessoa jurídica, com sede em outro lugar, pois é na localidade em que reside e trabalha a pessoa prejudicada que o evento negativo terá maior repercussão.

Nesse sentido: confi ram-se:PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE INDENI-

ZAÇÃO. DANOS MORAIS E MATERIAIS. COMPETÊNCIA. NOR-MA DE CARÁTER ESPECÍFICO, ART.

100, V, “a”, QUE PREVALECE SOBRE A GENÉRICA, ARTS. 94 E 100, IV, “a”. LUGAR DO ATO OU FATO.

1. A ação indenizatória por danos morais e materiais tem por foro o local onde ocorreu o ato ou o fato, ainda que a demandada seja pessoa jurídica, com sede em outro lugar. Precedentes.

2. Prevalência da regra específi ca do art. 100, inc. V, letra “a”, do CPC, sobre as normas genéricas dos artigos 94 e 100, IV, “a”, do mesmo diploma.

3. Recurso não conhecido.

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(REsp 533556⁄SP, Rel. Ministro JORGE SCARTEZZINI, QUARTA TURMA, julgado em 02⁄12⁄2004, DJ 17⁄12⁄2004 p. 556)

PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO INDENIZATÓRIA. PUBLICAÇÃO DE MATÉRIA JORNALÍSTICA. DANO MORAL. COMPETÊNCIA. FORO DO LUGAR DO ATO OU FATO. CPC, ART. 100, V, LETRA “A”.

I. No caso de ação de indenização por danos morais causados pela veicu-lação de matéria jornalística em revista de circulação nacional, considera-se “lugar do ato ou fato”, para efeito de aplicação da regra especial e, portanto, preponderante, do art. 100, V, letra “a”, do CPC, a localidade em que resi-dem e trabalham as pessoas prejudicadas, pois é na comunidade onde vivem que o evento negativo terá maior repercussão para si e suas famílias.

II. Inaplicabilidade tanto do inciso IV, letra “a” do mesmo dispositivo pro-cessual, por ser mera regra geral, não extensível às exceções legais, como a do art. 42 da Lei de Imprensa, eis que dirige-se esta ao processo penal.

III. Recurso não conhecido, confi rmada a competência da Justiça do Dis-trito Federal.

(REsp 191169⁄DF, Rel. Ministro ALDIR PASSARINHO JUNIOR, QUARTA TURMA, julgado em 06⁄04⁄2000, DJ 26⁄06⁄2000 p. 178)

6. A questão principal, de fato, é saber se a cláusula de eleição de foro, prevista em contrato de prestação de serviços que deveriam ser realizados no exterior, seria sufi ciente para afastar a jurisdição brasileira, especialmente quando a ação onde se pleiteia danos materiais e morais é proposta por autora domiciliada no Rio de Janeiro, sendo que a demanda se originou de fato⁄ato consistente na veiculação de imagens em sítio eletrônico também acessado no Brasil.

6.1. Releva notar, de início, que a fi xação da jurisdição quando a ação decorre de utilização de imagem divulgada pela web desafi a, primeiro, com-preender o principal fenômeno gerado pelo desenvolvimento das tecnologias da informação.

“(...) A discussão sobre jurisdição na Internet envolve, em primeiro plano, a questão de se saber se o cyberspace, nome que se dá ao ambiente das redes eletrônicas onde é feito o intercâmbio de informações, deve ser visto como um lugar, como meios de comunicação ou, ainda, como um simples estado tecnológico da mente. Em outras palavras, o que se discute é se o ato de uma pessoa conectar-se à rede mundial transporta-a para um novo local, mes-mo que esse passo em direção a esse novo lugar seja resultado de um estado mental produzido pela tecnologia, ou se, de outro modo, isso refl ete sim-plesmente o uso de diferentes meios de comunicação, à semelhança do que ocorre quando se utiliza um telefone, um aparelho de fax ou uma ligação por satélite. Dependendo de como se convencione tratá-lo, isso vai resultar em

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importantes conseqüências quanto à lei (ou conjunto de leis) a ser aplicado e quanto à autoridade que detém competência para regulamentá-lo e fazer impor seu poder coercitivo (...)” (REINALDO FILHO, Demócrito (cord.). Direito da Informática — Temas Polêmicos. São Paulo: Edipro, 2002)

Certamente, a comunicação global via computadores pulverizou as fron-teiras territoriais e criou um novo mecanismo de comunicação humana, po-rém não subverteu a possibilidade e a credibilidade da aplicação da lei basea-da nas fronteiras geográfi cas.

6.2. Como se sabe, jurisdição é a função do Estado visando compor con-fl itos de interesse, aplicando a lei ao caso concreto.

Os doutrinadores Cintra, Grinover e Dinamarco a defi nem como sendo “uma das funções do Estado, mediante a qual este se substitui aos titulares dos interesses em confl ito para, imparcialmente, buscar a pacifi cação do con-fl ito que os envolve, com justiça”.

Em outras palavras, apregoam os autores que:“através do exercício da função jurisdicional, o que busca o Estado é fazer

com que se atinjam, em cada caso concreto, os objetivos das normas de direi-to substancial”. (CINTRA, A.; GRINOVER, A., DINAMARCO, C. Teoria geral do processo. São Paulo: Malheiros, 19ª ed., 2003, p. 131-133).

O exercício da jurisdição deve observar alguns princípios, decorrentes da própria organização do Estado moderno. Os princípios da jurisdição, dou-trinariamente, têm caráter universal e constituem-se de elementos essenciais para a concretude do exercício jurisdicional, sendo que dentre eles avultam: inevitabilidade, investidura, indelegabilidade, inércia, unicidade, inafastabi-lidade e aderência.

No tocante ao princípio da aderência, especifi camente, este pressupõe que, para que a jurisdição seja exercida, deve haver correlação com um território.

Ada Pellegrini e Cândido Rangel Dinamarco, esclarecem:“No princípio da aderência ao território manifesta-se, em primeiro lugar,

a limitação da própria soberania nacional ao território do país: assim como os órgãos do Poder Executivo ou Legislativo, também os magistrados só têm autoridade nos limites territoriais do Estado.” (Teoria Geral do Processo. 9ª Edição. Malheiros. São Paulo, 1992, p. 118).

Vale dizer, portanto, que para as lesões a direitos ocorridos no âmbito do território brasileiro, em linha de princípio, a autoridade judiciária nacional detém competência para processar e julgar o litígio.

6.3. Não sendo assim, poder-se-ia colher a sensação incômoda de que a in-ternet é um refúgio, uma zona franca, por meio da qual tudo seria permitido sem que daqueles atos adviessem responsabilidades.

Contudo, com o desenvolvimento da tecnologia passamos a ter um novo conceito de privacidade que corresponde ao direito que toda pessoa tem de dispor com exclusividade sobre as próprias informações, ou seja, o consen-

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timento do interessado é o ponto de referência de todo o sistema de tutela da privacidade. (PAESANI, Liliana Minardi — Direito e internet: liberdade de informação, privacidade e responsabilidade civil, 3ª ed. São Paulo: Atlas, 2006, p. 36-60)

7. Com efeito, impende salientar que “casos existem nos quais a Justiça Brasileira se considera competente para julgar uma demanda, mas não exclui a possibilidade de a dita causa ser julgada por Justiça estrangeira”. (CARNEI-RO, Athos Gusmão. Jurisdição e competência. 16. ed. — São Paulo: Saraiva, 2009, p. 78)

O artigo 88 do CPC, inserido sob o título “competência internacional”, cuida das hipóteses de jurisdição concorrente (cumulativa), em que a compe-tência do Poder Judiciário Brasileiro não afasta a de outro Estado.

Dispõe o preceito em comento:“Art. 88. É competente a autoridade judiciária brasileira quando:I — o réu, qualquer que seja a sua nacionalidade, estiver domiciliado no

Brasil;II — no Brasil tiver de ser cumprida a obrigação;III — a ação se originar de fato ocorrido ou de ato praticado no Brasil.Parágrafo único: Para o fi m do disposto no nº I, reputa-se domiciliada no

Brasil a pessoa jurídica estrangeira que aqui tiver agência, fi lial ou sucursal.”Tem-se, pois, que o juiz brasileiro somente atua relativamente às causas de

algum modo vinculadas a país estrangeiro se houver possibilidade de tornar efetiva, de realmente fazer cumprir sua sentença, de molde a justifi car como razoável o exercício da soberania estatal.

Conveniente esclarecer que a denominação “competência internacional” não se justifi ca relativamente “a algum caráter pretensamente ‘internacional’ da autoridade judiciária brasileira que a exerce, mas em razão das relações jurídicas que são objeto do litígio; ou em razão dos elementos de estraneidade que compõem o litígio.” (MORI, Celso Cintra e NASCIMENTO. Edson Bueno. A Competência Geral Internacional do Brasil: Competência Legisla-tiva e Competência Judiciária no Direito Brasileiro. Revista de Processo, n° 73, abril⁄março 1996)

Assim, eventual ação que envolva uma das três hipóteses previstas no ar-tigo em comento, pode ser proposta perante a justiça brasileira, ou de outro país, desde que também seja competente para analisá-la.

Nesses casos, há uma mitigação do princípio da aderência, tornando-se competente a justiça brasileira apenas por razões de viabilidade e efetividade da prestação jurisdicional.

Enquanto o princípio da aderência condiciona o exercício da jurisdição ao território no qual o Estado exerce sua soberania, restando afastada a rede mundial de computadores de qualquer intervenção estatal (pois não se en-contra circunscrita a nenhum território específi co), o princípio da inafasta-

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bilidade da jurisdição imprime ao Estado a obrigação de resolver as lides que lhes são apresentadas, com vistas à consecução da paz social.

8. Como se sabe, inexiste, até o presente momento, uma legislação inter-nacional que regulamente a atuação no ciberespaço.

Por esta razão, os cidadãos afetados pelas informações contidas em sítios eletrônicos ou por relações mantidas no ambiente virtual não podem ser to-lhidos do direito de acesso à justiça para a análise de eventuais danos ou ameaças de lesões decorrentes de direitos de privacidade, intimidade, consu-midor, dentre outros.

Certamente, a legitimidade de usuários da internet em buscar as medidas judiciais protetivas nos tribunais locais, além de concretizar a jurisdição do domicílio dos usuários, coincide com o local em que os possíveis prejuízos decorrentes da violação tenham sido sentidos com maior intensidade.

Desta forma, admissível a jurisdição brasileira para tratar da questão, em-bora, eventualmente, seja necessário o exame do contrato de prestação de serviços para aferir a existência de cláusula autorizativa da publicação de fo-tografi as e imagens da autora, tal análise é facultada ao magistrado de origem.

9. Ademais, a cláusula de eleição de foro existente no contrato de presta-ção de serviços no exterior, embora admitida pelo sistema jurídico brasileiro, não impede que a ação seja proposta no Brasil, ainda que se trate de compe-tência concorrente.

Assim já decidiu o Superior Tribunal de Justiça, oportunidade na qual fi cou assentado que: “a competência concorrente do juiz brasileiro não pode ser afastada pela vontade das partes”; “válida a eleição de um foro estrangeiro, permanece a concorrência, isto é, a autoridade brasileira não estará impedida de apreciar a matéria” (REsp 251438⁄RJ, Rel. Ministro BARROS MONTEI-RO, QUARTA TURMA, julgado em 08⁄08⁄2000, DJ 02⁄10⁄2000 p. 173)

E ainda que não fosse assim, a cláusula de eleição não poderia ser aplicada.É que, ao que se dessume da inicial, a imputação de utilização indevida

da imagem da autora é um “posterius” em relação ao contato de prestação de serviço. Ou seja, o direito de resguardo à imagem e à intimidade é autônomo em relação ao pacto fi rmado, não sendo dele decorrente.

A ação de indenização movida pela autora não é baseada, portanto, no contrato em si, mas em fotografi as e imagens utilizadas pela ré, sem seu con-sentimento. Por isso que não há se falar em foro de eleição contratual.

10. Em suma, quando a alegada atividade ilícita tiver sido praticada pela internet, independentemente de foro previsto no contrato de prestação de serviço, ainda que no exterior, é competente a autoridade judiciária brasileira caso acionada para dirimir o confl ito, pois aqui também houve acesso ao sítio eletrônico onde a informação foi veiculada, interpretando-se como ato prati-cado no Brasil, aplicando-se à hipótese o disposto no artigo 88, III, do CPC.

11. Diante do exposto, nego provimento ao recurso especial.

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É como voto.RECURSO ESPECIAL Nº 1.168.547 — RJ (2007⁄0252908-3)

VOTO-ANTECIPADOO SR. MINISTRO FERNANDO GONÇALVES: Srs. Ministros, acompa-

nho o voto do Sr. Ministro Relator, no sentido de não conhecer do recurso especial.CERTIDÃO DE JULGAMENTOQUARTA TURMANúmero Registro: 2007⁄0252908-3 REsp 1168547 ⁄ RJNúmeros Origem: 158372007 200700115837 200713508781

200713710383 87812007

PAUTA: 06⁄04⁄2010 JULGADO: 06⁄04⁄2010RelatorExmo. Sr. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃOPresidente da SessãoExmo. Sr. Ministro FERNANDO GONÇALVESSubprocurador-Geral da RepúblicaExmo. Sr. Dr. ANTÔNIO CARLOS FONSECA DA SILVASecretáriaBela. TERESA HELENA DA ROCHA BASEVI

AUTUAÇÃORECORRENTE: WORLD COMPANY DANCE SHOW LTDAADVOGADO: SÉRGIO REYNALDO ALLEVATO E OUTRO(S)RECORRIDO: PATRÍCIA CHÉLIDA DE LIMA SANTOSADVOGADO: ANNA PAULA DE LIMA LEMOS

ASSUNTO: DIREITO CIVIL — Responsabilidade Civil

CERTIDÃOCertifi co que a egrégia QUARTA TURMA, ao apreciar o processo em

epígrafe na sessão realizada nesta data, proferiu a seguinte decisão:

Após o voto do Sr. Ministro Luis Felipe Salomão, Relator, não conhecen-do do recurso especial, no que foi acompanhado pelo Sr. Ministro Fernando Gonçalves, PEDIU VISTA o Sr. Ministro Honildo Amaral de Mello Castro (Desembargador convocado do TJ⁄AP). Aguardam os Srs. Ministros Aldir Passarinho Junior e João Otávio de Noronha.

Brasília, 06 de abril de 2010TERESA HELENA DA ROCHA BASEVISecretária

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RECURSO ESPECIAL Nº 1.168.547 — RJ (2007⁄0252908-3)RELATOR: MINISTRO LUIS FELIPE SALOMÃORECORRENTE: WORLD COMPANY DANCE SHOW LTDAADVOGADO: SÉRGIO REYNALDO ALLEVATO E OUTRO(S)RECORRIDO: PATRÍCIA CHÉLIDA DE LIMA SANTOSADVOGADO: ANNA PAULA DE LIMA LEMOS

VOTO-VISTAO EXMO. SR. MINISTRO HONILDO AMARAL DE MELLO CAS-

TRO (DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TJ⁄AP):

Sr. Presidente, Patrícia Chélida de Lima Santos e World Company Dan-ce Show Ltda. entabularam, em língua estrangeira, contrato temporário de prestação de serviço, cujo foro de eleição para eventual solução de controvér-sia seria a cidade de Málaga, Espanha. Os serviços contratados de dançarina e assistente de direção de shows brasileiros seriam executados nos continentes Europeu e Africano.

O contrato, no tocante aos serviços prestados e remuneração, fora devida-mente adimplido.

Todavia, ao retornar ao seu país de origem, no caso, o Brasil, Patrícia constatou, meses depois, em visita ao sítio eletrônico hospedado na Espanha (www.brasilcarnaval.2000.com), que montagens contendo suas fotos naque-les shows foram inseridas sem sua prévia autorização. Alega que o contrato veda a divulgação de sua imagem para fi ns diversos àqueles avençados.

Com a propositura da ação em face da empresa espanhola World Com-pany Dance Show Ltda., a autora Patrícia Chélida requer ao Poder Judiciário brasileiro a reparação civil por danos materiais e morais que alega ter sofrido.

A empresa, em defesa, sustenta a incompetência da Justiça brasileira, pois além do sítio eletrônico estar hospedado na Espanha, o contrato elegeu o foro de Málaga para solução de confl itos dele decorrente.

O juiz de primeiro grau, acolhendo a tese de incompetência da Justiça brasileira, julgou extinto o processo. O Eg. Tribunal a quo, no entanto, refor-mou a sentença, afi rmando que a competência é da Justiça brasileira porque o ato é considerado praticado no Brasil, vez que a imagem divulgada pela in-ternet pode ser acessada de qualquer computador instalado neste país. Invoca a aplicabilidade do art. 88, III, do CPC.

Os embargos declaratórios foram rejeitados.Inconformada, a empresa interpõe recurso especial com supedâneo no art.

105, III, alínea “a” da Constituição Federal. Sustenta violação ao art. 88, III, do CPC.

O recurso extremo não foi admitido na origem, tendo sido interposto Agravo de Instrumento. O eminente relator, Ministro Luis Felipe Salomão,

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por força da decisão de f. 152, converteu o agravo em recurso especial (art. 544, §2º, CPC).

Em substancioso voto, o eminente relator defi ne a jurisdição da Justiça brasileira para julgar a causa, assentando, em resumo:

a) que embora a empresa alegue que não possua sede ou fi lial no Brasil, comprova-se sua citação no endereço de f. 49, tanto que apresentou contes-tação às fs. 51⁄64. Reforça-se o regular trâmite processual pela sua conduta de interpor recursos até esta Eg. Corte Superior;

b) a preponderância da regra específi ca do art. 100, inciso V, alínea “a” do CPC sobre as normas genéricas dos artigos 94 e 100, inciso IV, alínea “a” do CPC. Destaca que é na localidade em que reside e trabalha a pessoa prejudi-cada que o evento negativo terá maior repercussão;

c) que as três hipóteses previstas nos incisos do art. 88, do CPC, não excluem a jurisdição estrangeira, porquanto trata-se de competência concor-rente. Considera-se o ato praticado no Brasil, uma vez que acesso ao sítio eletrônico ocorreu neste país e foi acionada a autoridade judiciária brasileira. Ademais, a cláusula de eleição de foro não prevalece porque o contrato foi devidamente cumprido. A utilização da imagem da autora é posterior ao en-cerramento do contrato.

Após o voto do eminente relator, pedi vistas para melhor analisar a matéria.É, no essencial, a síntese dos fatos.Examino os autos, e adianto que comungo do judicioso voto do eminente

ministro Luis Felipe Salomão.Há, neste caso concreto, um direito fundamental que prevalece sobre

qualquer outro direito: a dignidade da pessoa humana (art. 5º, X, da CF⁄88), porque este alberga o direito à imagem da autora.

Com efeito, a Convenção Americana de Direitos Humanos de 1969 (Pacto de San José da Costa Rica), reconhece que “os direitos essenciais da pessoa humana não derivam do fato de ser ela nacional de determinado Estado, mas sim do fato de ter como fundamento os atributos da pessoa humana, razão porque justifi cam uma proteção internacional, de natureza convencional, coadjuvante ou comple-mentar da que oferece o direito interno dos Estados americanos” (preâmbulo).

No mais, em seu art. 11, relativamente à Proteção da honra e da dignida-de, a Convenção Americana dispõe:

“Art. 11.1. Toda pessoa tem direito ao respeito de sua honra e ao reconhecimento

de sua dignidade.2. Ninguém pode ser objeto de ingerência arbitrárias ou abusivas em sua

vida privada, na de sua família, em seu domícilio ou em sua correspondência, nem de ofensas ilegais à sua honra ou reputação.

3. Toda pessoa tem direito à proteção da lei contra tais ingerências ou tais ofensas.”

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Invoco a proteção constitucional à dignidade da pessoa humana porque a ausência de previsão sobre normas de “ciberespaço” não pode gerar um ‘bu-raco negro’ na aplicação do direito.

Na espécie, uma pessoa brasileira, residente no Brasil, alegando que a empresa estrangeira violou direito à sua imagem não pode fi car à mercê de exclusiva jurisdição estrangeira tão-somente porque, no passado, as partes ce-lebraram contrato de prestação de serviços em outro país. O contrato, como se extrai dos autos, foi devidamente cumprido em todos os seus termos. Não se pretende exigir o seu adimplemento.

O ato de divulgar a imagem (por montagem de foto) de pessoa residente neste país pela internet é independente, isolado, traduzindo-se num ilícito, e como tal, deve ser combatido pela Justiça brasileira, porque provocada.

A hospedagem do sítio eletrônico é indiferente para fi ns de defi nição de competência, critério esse, aliás, sem suporte legal.

Correta é, a meu ver, no caso concreto, a aplicabilidade de regras do art. 88 e incisos do CPC, porquanto prevê as hipóteses de competência concor-rente, e porque a autora reside no Brasil.

A ação indenizatória, tal como posta, pode ser demandada tanto na Justiça brasileira como na estrangeira. Esta última jurisdição não se exclui.

Vê-se, portanto, o enquadramento da defi nição de competência concor-rente do Brasil, prevista no art. 88, inciso III, do CPC (“a ação se originar de fato ocorrido ou de ato no praticado no Brasil”), porquanto, como bem ex-plicitado pelo eminente ministro relator, o acesso ao sítio eletrônico ocorreu pela própria autora dentro dos limites do Brasil.

Ademais, e reforçando a violação de direito fundamental, a divulgação da imagem gerou um suposto dano em pessoa aqui residente, repercutindo negativamente com maior intensidade na localidade em que a pessoa reside e trabalha (Brasil), independentemente do local em que esteja a pessoa jurídica (exterior).

Dessa forma, os precedentes citados pelo eminente ministro relator bem defi nem a hipótese sub examine.

Com esses fundamentos, acompanho integralmente o eminente relator, para conhecer do recurso especial, mas negar-lhe provimento.

É como voto.

RECURSO ESPECIAL Nº 1.168.547 — RJ (2007⁄0252908-3)

VOTOEXMO. SR. MINISTRO ALDIR PASSARINHO JUNIOR: Sr. Presi-

dente, prefi ro acompanhar o voto do Sr. Ministro Luis Felipe Salomão, com ressalvas.

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FGV DIREITO RIO 101

Acompanho o voto do Sr. Ministro Luis Felipe Salomão, mas exclusiva-mente pela circunstância de o domicílio da parte ser no Brasil, apenas por esse fundamento; e afasto, decididamente, o fundamento de que é o local de onde se fez o acesso ao site da internet que fi rma a competência. Não acolho, com a máxima vênia, esse fundamento.

CERTIDÃO DE JULGAMENTOQUARTA TURMANúmero Registro: 2007⁄0252908-3 REsp 1168547 ⁄ RJNúmeros Origem: 158372007 200700115837 200713508781

200713710383 87812007PAUTA: 11⁄05⁄2010 JULGADO: 11⁄05⁄2010RelatorExmo. Sr. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃOPresidente da SessãoExmo. Sr. Ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHASubprocurador-Geral da RepúblicaExmo. Sr. Dr. FERNANDO HENRIQUE OLIVEIRA DE MACEDOSecretáriaBela. TERESA HELENA DA ROCHA BASEVI

AUTUAÇÃO

RECORRENTE: WORLD COMPANY DANCE SHOW LTDAADVOGADO: SÉRGIO REYNALDO ALLEVATO E OUTRO(S)RECORRIDO: PATRÍCIA CHÉLIDA DE LIMA SANTOSADVOGADO: ANNA PAULA DE LIMA LEMOS

ASSUNTO: DIREITO CIVIL — ResponSabilidade Civil

CERTIDÃOCertifi co que a egrégia QUARTA TURMA, ao apreciar o processo em

epígrafe na sessão realizada nesta data, proferiu a seguinte decisão:

Prosseguindo no julgamento, após o voto-vista do Sr. Honildo Amaral de Mello Castro (Desembargador convocado do TJ⁄AP), negando provimento ao recurso especial, acompanhando os votos dos Srs. Ministros Luis Felipe Salomão, Relator, e Fernando Gonçalves, e os votos dos Srs. Ministros Aldir Passarinho Junior e João Otávio de Noronha, no mesmo sentido, a Turma, por unanimidade, negou provimento ao recurso especial, nos termos do voto do Sr. Ministro Relator.

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FGV DIREITO RIO 102

Os Srs. Ministros Honildo Amaral de Mello Castro (Desembargador con-vocado do TJ⁄AP), Aldir Passarinho Junior e João Otávio de Noronha vota-ram com o Sr. Ministro Relator.

Brasília, 11 de maio de 2010TERESA HELENA DA ROCHA BASEVISecretária

Documento: 959347 Inteiro Teor do Acórdão — DJe: 07/02/2011

CASO 4: AI 639441 STJ

SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇAInformativo STJCancelada indenização a investidor estrangeiro por aplicação que gerou

perdas de US$ 2 milhões.A Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) cancelou inde-

nização concedida a investidor estrangeiro que alegou ter perdido US$ 2 milhões em aplicações desastrosas feitas por corretoras brasileiras. Por falhas processuais, os ministros restabeleceram a sentença que extinguiu o processo sem julgamento de mérito.

A ação de indenização por perdas e danos foi ajuizada por Ned Smith Junior e sua empresa, Dryford Investment S/A, contra quatro pessoas jurí-dicas e uma física que atuam no Brasil: Discount Bank, Cetro Corretora de Títulos e Valores Mobiliários Ltda., Ernesto Corrêa da Silva Filho, Prodese-nho Participações Ltda. e Credibanco S/A Distribuidora de Títulos e Valores Mobiliários.

O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, reformando a sentença, aca-tou a alegação de que o dinheiro teria sido mal aplicado pelos réus e deter-minou a devolução dos US$ 2 milhões investidos em compras de ações no Brasil.

Ao analisar o recurso do Discount Bank e da Cetro Corretora, o ministro Sidnei Beneti (relator) constatou as falhas processuais alegadas pelos recor-rentes. A Dryford não prestou a caução imposta a empresas estrangeiras pelo artigo 835 do Código de Processo Civil. Para isentar-se da caução, a empresa cedeu os direitos da ação a uma pessoa física, seu presidente Ned Smith Ju-nior, que buscou assistência judiciária gratuita.

Beneti observou que a cessão de direitos ocorreu após a determinação de depósito da caução fi xada no valor de R$ 100 mil em 11/4/2000, montante que considerou “singelo” numa causa de milhões de dólares. “Essa cessão

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FGV DIREITO RIO 103

não podia ter validade, pois, evidentemente, levava a contornar a exigência da caução para acionamento por pessoa jurídica”, entendeu. A cessão seria possível se a parte contrária tivesse concordado — o que não ocorreu.

Para o relator, o investidor também não poderia ter sido benefi ciado com a assistência judiciária gratuita sob o argumento de que o prejuízo com o investimento em discussão o teria tornado hipossufi ciente a ponto de não poder arcar com as custas processuais e honorários advocatícios, caso perdesse a ação, sem prejudicar o sustento de sua família. Beneti considerou que o in-vestidor, presidente de empresa e proprietário de imóvel, é homem experiente que não se enquadra na hipótese legal de gratuidade processual.

Ver o caso do TJRS (Rio Grande do Sul), seguido do RESP não conhecido por decisão monocrática no agravo de instrumento no STJ, que segue depois do acórdão. Há um segundo agravo, da lavra da M. Nanci Andrighi.

AGRAVO DE INSTRUMENTO. COMPETÊNCIA INTERNACIO-NAL. JURISDIÇÃO CONCORRENTE. FORO DE ELEIÇÃO. ILÍCI-TO CONTRATUAL.

O foro local não é o competente, eis que o contrato fi rmou a competência do Uruguai para eventual demanda, que ora se processa. Não há como se relativizar a competência do foro, eis que os agravados não são hipossufi cien-tes — são autores de outras ações do porte que corre em primeiro grau —, podendo se deslocarem ao foro do Uruguai para se defenderem na demanda que ajuizaram contra o agravante. AGRAVO PROVIDO.

AGRAVO DE INSTRUMENTO DÉCIMA NONA CÂMARA CÍVEL Nº 70005228440 PORTO ALEGRE

BANKBOSTON N A SUCURSAL URUGUAI E FEDERAL STRE-ET INVESTIMENTOS S/A, AGRAVANTES; NED SMITH JUNIOR E DYRFORD INVESTMENT S/A, AGRAVADOS; BANK BOSTON BANCO MÚLTIPLO S A, ERNESTO CORREA DA SILVA FILHO, CE-TRO CORRETORA DE TÍTULOS E VALORES MOBILIÁRIOS LTDA E PRODESENHO PARTICIPAÇÕES SOCIETÁRIAS LTDA., INTE-RESSADOS. ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos os autos. Acordam os Desembargadores in-tegrantes da Décima Nona Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado, à unanimidade, em dar provimento ao recurso. Custas na forma da lei.

Participaram do julgamento, além do signatário, os eminentes Senhores Desembargadores GUINTHER SPODE, Presidente/Revisor e MÁRIO JOSÉ GOMES PEREIRA.

Porto Alegre, 08 de abril de 2003.DES. LUÍS AUGUSTO COELHO BRAGA,Relator.

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RELATÓRIODES. LUÍS AUGUSTO COELHO BRAGA (RELATOR) — Trata-se de

Agravo de Instrumento interposto por BANKBOSTON N A SUCURSAL URUGUAI E FEDERAM STREET INVESTIMENTOS S/A, em face da decisão que julgou improcedente a exceção de incompetência que propôs contra NED SMITH JÚNIOR E DYRFORD INVESTIMENT S/A. Alega que os ora agravantes entraram com Ação de Indenização contra o Banco de Boston genericamente, sem fazer distinção entre o ora agravante e o Bank-Boston Banco Múltiplo S/A, que são pessoas jurídicas distintas, dotadas, cada uma, de personalidade jurídica própria, não possuindo uma ingerên-cia na outra. Aduz que o contrato foi fi rmado com ora agravante, elegendo como foro de eleição o Uruguai. Sustenta que a exceção de incompetência que argüiu não poderia ter sido decidida como a Exceção de n.º 10568462, que foi proposta pelo interessado Bankboston. Postula a concessão do efeito suspensivo ao recurso e, ao fi nal, o provimento do mesmo, para que seja de-clarada a incompetência da Justiça Brasileira para conhecer e julgar a Ação Ordinária de Indenização ajuizada pelos ora agravados, estabelecendo-se, por via de conseqüência, como competente o foro contratual livremente eleito pelas partes, qual seja, a Justiça Uruguaia.

Foi deferido o efeito suspensivo.Em resposta, alegou NED SMITH JÚNIOR e DYRFORD INVEST-

MENT S.A, preliminarmente, em apertada síntese, que a 2ª Câmara Espe-cial Cível está preventa para o julgamento do agravo, pois já discutiu a ma-téria, quando ventilada em agravo anterior. Quanto ao mérito, alegou que a competência para o julgamento da causa é brasileira, pois o Banco de Boston uruguaio é uma fi lial da matriz, que se encontra nos Estados Unidos da Amé-rica, assim como o Banco brasileiro também é uma fi lial do poderoso grupo econômico. Desta forma a empresa que se benefi cia de marca mundialmente conhecida tem o dever de responder por meio de sua fi lial pelos atos ilícitos praticados pela sua congênere não podendo a causadora do ilícito se benefi -ciar da distinção da personalidade jurídica para se esquivar de sua obrigação. Destacou que com escopo no art. 88, I, III e § único do CPC o banco tem que responder sob a jurisdição brasileira. Alega que o banco demandado deve compor a lide como litisconsórcio passivo.

Destaca que a cláusula de eleição do foro deve ser declarada inefi caz, pois a competência do juiz brasileiro para apreciar a causa não pode ser afastada pela vontade das partes.Por fi m, propugnou que fosse declinada a competên-cia para a 2ª Câmara Especial Cível e, ou, fosse negado provimento ao recur-so. O feito foi levado para julgamento, sendo que em sessão de 26.11.2002, após este relator ter votado pelo provimento do agravo, em regime de discus-são foi adiado o mesmo. Em seguimento, no dia 3.12.2002, a Câmara deter-

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minou diligências, a fi m de que o Banco Central verifi casse o confi namento ou não da operação realizada entre as partes, no Brasil. Ofi ciou o Banco Central dizendo que não tem interesse no feito, bem como informando que “não conseguiu identifi car, em seu banco de dados que contém informações sobre saídas e ingressos de recursos de/para o País, seja em moeda nacional ou estrangeira, quais dos registros ali encontrados podem ter como origem as operações descritas pelos autores da ação de indenização. De qualquer forma, continuam sendo efetuadas diligências nesse sentido, bem como para identifi car possíveis irregularidades na esfera cambial envolvendo as citadas operações” (fl . 212).

É o sucinto relatório.

VOTODES. LUÍS AUGUSTO COELHO BRAGA (RELATOR) — Tenho que

deva ser dado provimento ao agravo, conforme já me manifestara por ocasião do início do julgamento: “A causa posta em discussão é quanto à compe-tência em razão do lugar para o julgamento da presente ação, face contrato assinado por parte brasileira com parte uruguaia, onde existia cláusula de eleição de Foro.

O contrato em tela é um contrato internacional, conforme convenciona-do pela Convenção Interamericana sobre Direito Aplicável aos contratos in-ternacionais — México — 1994, cujo Brasil é signatário1, onde está previsto que: “Artigo 1 — Entende-se que um contrato é internacional quando as partes no mesmo tiverem sua residência habitual ou estabelecimento sediado em diferentes Estados Partes ou quando o contrato tiver vinculação objetiva com mais de um Estado parte”. Jacob Dolinger Carmem Tiburcio in Direito internacional privado. Ed. Renovar. Pgs. 278, 291, 364 e 374

Assim, as normas pertinentes à aplicação no caso concreto estão inseridas no artgs. 9º e 12 da LICC e artgs. 88/90 do Código de Processo Civil, bem como convenções e tratados cujo Brasil é signatário. “Antes de adentrar-se no mérito, urge a necessidade de afastar-se a competência da 2ª Câmara Especial Cível para o julgamento da causa, posto que a mesma tem somente compe-tência para julgamento quando da distribuição nas férias regulares desta casa, pois terminados os recessos de julho ou janeiro a competência para julgamen-to é das Câmaras regulares, rompendo com qualquer vinculação existente. Desta forma desacolho a preliminar de incompetência.

“Quanto ao mérito, após longo pensamento, tenho que a competência para o julgamento da causa é do Uruguai, pois no contrato fi rmado pelas par-tes existe foro de eleição. “Diferente do que possa parecer, as partes agravadas, NED SMITH JÚNIOR e DYRFORD INVESTMENT S.A, não são hipos-sufi cientes frente ao banco, já que Ned Smith é o responsável pela empresa Dyrford, conhecendo os meandros dos mercados, devendo não ser aplicado o

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Código de Defesa do Consumidor a causa por esta razão e, também, porque a parte não era consumidor fi nal do serviço contratado, já que, conforme dito na p. 166, o agravado concentrou seus investimento e de terceiros que tinha responsabilidade no banco, claramente demonstrando que não era o consu-midor fi nal do serviço prestado.

“Afastada a aplicação do CDC, norma que permitiria a relativização da cláusula de eleição do foro, tenho que não se aplica o art. 88, I e III e § único do CPC à espécie, pois o foro de eleição é válido. “A obrigação foi contraída por pessoa maior e capaz, não sendo demonstrado qualquer vício de consen-timento que pudesse macular o clausulado. Desta forma, conforme art. 9º da LICC, tenho que para qualifi car e reger a obrigação contratada deve-se a lei do país onde se constituiu a obrigação. Caso não houvesse foro clausulado, entendo que aí prevaleceria o art. 88, I e III e § único do CPC, mas como se trata de direito disponível, entendo que não é possível manter a competência em território Pátrio, sob pena de causar uma instabilidade jurídica. Aliás, nesta senda, já explicitou Caio Mário em sua obra Lesão nos Contratos, 4ª ed. p. 110, que: “Ter-se-á assim, sob o pretexto de resguardar a regra moral, e restabelecer a justiça no contrato, um resultado que na essência é divorcia-do da mesma regra moral e atentatória da mesma justiça. “Uma vez que o direito forneça o meio de faltar o contratante à fé jurada, e venha em abono da atitude assumida pela parte inadimplente, é todo o comércio jurídico que sofre, é a insegurança que se institui como norma, é a infi delidade protegida pela lei que abala e ameaça todo o edifício do direito obrigacional, lançando o germe da desconfi ança e do receio nos meandros da vida econômica. “Se o pretexto de fazer justiça é que leva à própria injustiça e se é o direito que consagra a quebra da fi delidade sob color de afi nar-se com a regra moral, no fundo que se desprestigia é a justiça e quem se desvaloriza é o direito.” “A cláusula de eleição de foro, no direito pátrio, encontra-se em pleno vigor, eis por que o art. 111 do CPC preconiza a faculdade das partes de disporem da competência territorial para a solução de suas lides. “Assim também está cristalizado na súmula 355 do Supremo Tribunal Federal que preceitua: “É válida a clausula de eleição de foro para os processos oriundos do contrato”. “Ademais, como se trata de contrato internacional, cabe à espécie a aplicação do Código de Bustamente, ou seja, da Convenção de Direito Internacional Privado Dos Estados Americanos, fi rmada em Havana, na data de 1928 e promulgada pelo Brasil em 13-8-1929 pelo Decreto nº 18.871, já que a mes-ma preceitua em seus artigos, que seguem, a obediência do convencionado em contrato, como segue:

“Art. 166 — As obrigações que nascem dos contratos têm força de lei entre as partes contratantes e devem cumprir-se segundo o teor dos mesmos, salvo as limitações estabelecidas neste Código.

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“Art. 318 — O juiz competente, em primeira instância, para conhecer dos pleitos a que dê origem o exercício das ações cíveis e mercantis de qualquer espécie, será aquele a quem os litigantes se submeterem expressa ou tacita-mente, sempre que um deles, pelo menos, seja nacional do Estado contratan-te a que o juiz pertença ou tenha nele o seu domicilio e salvo o direito local em contrário.

“Art. 321 — Entender-se-á por submissão expressa a que for feita pelos interessados com renúncia clara e determinante do seu foro próprio e a desig-nação precisa do juiz a quem se submetem.”

“Assim, pelo exposto, voto pela rejeição da preliminar e provimento do agravo para reconhecer a ilegitimidade da justiça local para conhecer da ação, face o foro eleito pelas partes”. (fl s. 179/185).

É como voto.DES. GUINTHER SPODE, Presidente — De acordo com o Relator.DES. MÁRIO JOSÉ GOMES PEREIRA — A hipótese em exame en-

volve contrato internacional impendendo que se examine da competência do juízo estatal e da legislação que rege o caso concreto. Na esfera do direito internacional privado cumpre analisar-se o conteúdo das cláusulas referentes à escolha da lei e do foro do contrato, pois apesar de distintos, uma tem im-plicação direta na outra.

Em decorrência da cláusula de eleição de foro, é estipulado o foro no qual ser]ao apreciadas e julgadas eventuais controvérsias do contrato. As partes podem, a princípio, livremente convencionarem esta cláusula, salvo eventu-ais limitações existentes no ordenamento jurídico do foro eleito e também daquele das partes contratantes. Difere da cláusula de eleição da lei aplicável ao contrato, através da qual é convencionada a legislação a ser observada tan-to pelas partes quanto pelo órgão julgador. Além da limitação imposta pela ordem pública, há ordenamentos que expressamente vedam a livre estipula-ção da lei aplicável ao contrato. E em relação às cláusulas de eleição da lei, o art. 9º, caput, da Lei de Introdução ao Código Civil, não contemplou, no direito pátrio, a autonomia da vontade como elemento de conexão, impossi-bilitando que as partes livremente estipulem qual a lei aplicável ao contrato internacional fi rmado pelas mesmas.

Esta distinção é de suma importância, pois, conforme salienta Nadia de Araújo, apesar da infl uência que uma cláusula exerce na outra, ambas não se confundem: “É preciso deixar bem claro que a cláusula de eleição de foro e de lei aplicável ao contrato não se confundem. Pode-se escolher um determina-do foro para discutir os litígios advindos da relação contratual e naquele local utilizar-se a lei de um terceiro país no que diz respeito às regras materiais con-cernentes ao contrato em questão. No entanto, a redação e a escolha dessas cláusulas deve ser feita em conjunto, de modo que se o foro escolhido proibir a autonomia da vontade, a cláusula de lei aplicável poderá ser invalidada

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pelo juiz que estiver discutindo a questão em face de uma proibição da lei local. Dessa forma, estão interligadas e as conseqüências de uma determinada escolha infl ui na outra cláusula” (A autonomia da vontade nos contratos in-ternacionais —0 direito brasileiro e países do Mercosul: Considerações sobre a necessidade de alterações no Direito Internacional Privado Obrigacional do Bloco. Palestra proferida no Curso de Especialização ‘O Novo Direito Internacional’ promovido pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 16.07.1999, p. 7).

Assim também já se posicionava Arnoldo Wald acerca do tema, ao ressal-tar que embora as cláusulas de eleição de foro e de lei aplicável a um contrato sejam distintas, devem ser analisadas conjuntamente: “Os dois problemas, embora materialmente conexos, são distintos, importando a cláusula eletiva de foro na concessão de uma competência contratual à Justiça de determi-nada cidade ou de certo país, enquanto a escolha de lei estrangeira para fi r-mar as conseqüências jurídicas do contrato se fundamentam no princípio da autonomia da vontade e estabelece o regime jurídico substantivo aplicável à relação jurídica. A primeira questão é puramente processual e se apresenta tanto no plano nacional como internacional, sendo a segunda tipicamente de direito internacional privado” (Validade das Convenções sobre foro de con-trato. Estudos e pareceres de Direito Comercial. São Paulo. Revista dos Tri-bunais, 1972, p. 261). Como visto e consoante os ensinamentos de Eduardo Espínola, “quando se suscita balguma questão de direito internacional pri-vado, o primeiro problema, que se apresenta, é o da autoridade competente para o exame e decisão da controvérsia” e superada a questão da competência do órgão julgador deverá este verifi car qual a legislação aplicável ao caso. A primeira questão a ser abordada é, portanto, a da competência e validade da cláusula de eleição de foro para que, após, possa ser analisado o disposto pelas partes no tocante à lei aplicável ao contrato fi rmado pelas mesmas.

No caso em apreço, considera-se válido o pacto de eleição do foro e tam-bém da lei a ser aplicada, qual seja, a da República Oriental do Uruguai. E obrigacional a matéria, procede-se à verifi cação da validade à luz do orde-namento jurídico do país em que se constituiu a obrigação, cabendo notar que a resultante de contrato se reputa constituída no lugar em que residir o proponente (Lei de Introdução ao Código Civil, art. 9º, caput e 2º).

Repita-se: O caso presente diz com a cláusula de lei aplicável aos contratos e também com a eleição de foro para solver as controvérsias. E no passo, há que se prestigiar o princípio da autonomia da vontade na determinação do foro e da lei aplicável. Na espécie, indeterminado o local da celebração dos contratos, deve prevalecer o do proponente (ora agravante), qual seja, a Re-pública Oriental do Uruguai. A hipótese repita-se, é de legislação e jurisdição uruguaia, sendo incompetente a justiça local para conhecer e decidir as cau-sas que aqui tramitam.

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Por tais razões, manifesto-me pelo provimento do recurso de agravo. Agra-vo de Instrumento n.º 70005228440, de PORTO ALEGRE — A decisão é a seguinte:

“DERAM PROVIMENTO AO RECURSO. UNÂNIME”.

Agravo STJ 639441SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

Relator(a)Ministro CARLOS ALBERTO MENEZES DIREITOData da Publicação24/06/2005DecisãoAGRAVO DE INSTRUMENTO Nº 639.441 — RS (2004/0156167-4)RELATOR: MINISTRO CARLOS ALBERTO MENEZES DIREITOAGRAVANTE: NED SMITH JÚNIOR E OUTROADVOGADO: JOSÉ LUIZ TEIXEIRA MARCANTONIO E OUTROSAGRAVADO : BANK BOSTON N. A. SUCURSAL URUGUAI E

OUTROADVOGADO: HEBE BONAZZOLA RIBEIRO E OUTROSINTERES. : BANK BOSTON BANCO MÚLTIPLO S/AADVOGADO: MILTON MARTINS NEVES JUNIOR E OUTROSDECISÃOVistos.

Ned Smith Júnior e outro interpõem agravo de instrumento contra o des-pacho que não admitiu recurso especial assentado em ofensa aos artigos 9º da Lei de Introdução ao Código Civil, 88 e 111 do Código de Processo Ci-vil, além de dissídio jurisprudencial. Insurgem-se, no apelo extremo, contra acórdão assim ementado:

“AGRAVO DE INSTRUMENTO. COMPETÊNCIA INTERNACIO-NAL. JURISDIÇÃO CONCORRENTE. FORO DE ELEIÇÃO. ILÍCI-TO CONTRATUAL. O foro local não é o competente, eis que o contrato fi rmou a competência do Uruguai para eventual demanda, que ora se pro-cessa. Não há como se relativizar a competência do foro, eis que os agravados não são hipossufi cientes — são autores de outras ações do porte que corre em primeiro grau —, podendo se deslocarem ao foro do Uruguai para se defenderem na demanda que ajuizaram contra o agravante. AGRAVO PRO-VIDO” (fl . 240).

Decido.Tratam os autos de discussão acerca de competência internacional. Os jul-

gadores, além de considerarem a incidência da Lei de Introdução ao Código Civil e do Código de Processo Civil ao caso presente, entenderam que, “como

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se trata de contrato internacional, cabe à espécie a aplicação do Código de Bustamente, ou seja, da Convenção de Direito Internacional Privado Dos Es-tados Americanos, fi rmada em Havana, na data de 1928 e promulgada pelo Brasil em 13-8-1929 pelo Decreto nº 18.871, já que a mesma preceitua em seus artigos, que seguem, a obediência do convencionado em contrato” (fl . 245). A aplicação da referida legislação, contudo, não foi impugnada pelos recorrentes, o que seria de rigor. Ante o exposto, nego provimento ao agravo.

Intime-se.Brasília (DF), 15 de junho de 2005.MINISTRO CARLOS ALBERTO MENEZES DIREITORelator

Agravo STJ 833673SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

Relator(a)Ministra NANCY ANDRIGHIData da Publicação 14/03/2008DecisãoAGRAVO DE INSTRUMENTO Nº 833.673 — RS (2006/0236167-4)RELATORA: MINISTRA NANCY ANDRIGHIAGRAVANTE: NED SMITH JÚNIORADVOGADO: JAURO DUARTE GEHLEN E OUTRO(S)AGRAVADO : BANKBOSTON BANCO MÚLTIPLO S/AADVOGADOS: PÉRICLES D’ÁVILA M. NETO E OUTRO(S)ANNE FERREIRA E SILVA FARACO E OUTRO(S)AGRAVADO : FEDERAL STREET INVESTIMENTS S/A — ASSIS-

TENTEAGRAVADO : BANKBOSTON NATIONAL ASSOCIATION SU-

CURSAL URUGUAY —ASSISTENTEADVOGADO: HEBE BONAZZOLA RIBEIRO E OUTROAGRAVADO : CETRO CORRETORA DE TÍTULOS E VALORES

MOBILIÁRIOS LTDAAGRAVADO : ERNESTO CORREA DA SILVA FILHOAGRAVADO : PRODESENHO PARTICIPAÇÕES SOCIETÁRIAS

LTDA E OUTROADVOGADO: JOSÉ AUGUSTO DE ARAÚJO LEAL E OUTRO(S)INTERES. : DYRFORD INVESTMENT S/A

Processo civil — competência concorrente — foro de eleição — ilícito contratual — incompetência justiça brasileira — decisão transitada em jul-gado — fundamento não atacado.

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— É inadmissível recurso especial quando a decisão recorrida possuir mais de um fundamento sufi ciente, por si só, para mantê-la e o recurso não ataca todos eles.

— Agravo de instrumento não conhecido.DECISÃOTrata-se de agravo de instrumento manifestado por NED SMITH JÚ-

NIOR, contra despacho denegatório de admissibilidade do recurso especial proferido pelo Terceiro Vice-Presidente do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul (fl s. 333 a 335v). NED SMITH JÚNIOR e DYRFORD INVESTMENTS S.A. ajuizaram ação de indenização por perda e danos contra BANCO DE BOSTON, CETRO — Corretora de Títulos e Valores Mobiliários Ltda. e PRODESENHO — Participações Societárias Ltda por aplicação temerária em bolsa de valores, amargando um prejuízo na ordem de US$ 3.000.000,00 (três milhões de dólares norte-americanos).

BANKBOSTON N.A.— Sucursal do país Uruguai — e FEDERAL STREET INVESTMENTS S.A ingressaram nos autos como assistentes li-tisconsorciais. Os assistentes litisconsorciais, desde logo, apresentaram exce-ção de incompetência sustentando foro de eleição, em que foi negado o seu provimento pelo Juízo de primeiro grau. Aviado agravo de instrumento ao Tribunal de Justiça Estadual, a eg. 19ª Câmara Cível deu provimento para reconhecer a ilegitimidade da justiça local para conhecer da ação, face o foro eleito pelas partes, resumidamente ementa nestes termos, fl . 160:

AGRAVO DE INSTRUMENTO. COMPETÊNCIA INTERNACIO-NAL. JURISDIÇÃO CONCORRENTE. FORO DE ELEIÇÃO. ILÍCI-TO CONTRATUAL.

O foro local não é o competente, eis que o contrato fi rmou a competência do Uruguai para eventual demanda, que ora se processa. Não há como se relativizar a competência de foro, eis que os agravados não são hipossufi cien-tes — são autores de outras ações do porte que corre em primeiro grau-, po-dendo se deslocarem ao foro do Uruguai para defenderem na demanda que ajuizarem contra o agravante.

AGRAVO PROVIDO.Já no âmbito do Superior Tribunal de Justiça, o i. Ministro Carlos Alberto

Menezes Direito negou provimento ao agravo de instrumento (AG 639441/RS), esse proveniente de despacho denegatório do recurso especial manifes-tado contra o julgado acima mencionado, com o seu trânsito em julgado em 01/07/2005.

Antes do trânsito em julgado da exceção de incompetência, NED SMITH compareceu ao Juízo da Décima Vara Cível requerendo a substituição pro-cessual da autora DYRFORD, bem como o prosseguimento do feito, tendo o Juiz decidido nos termos seguintes (f. 33):

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Vistos. Pela decisão de fl s. 728 e segs., proferida no agravo 70005228440, da 19ª CC do TJE/RS, a competência para o presente é da justiça uruguaia, a quem deverão ser os autos encaminhados, oportunamente, uma vez que haja trânsito em julgado defi nitivo, Pendem de recurso, contudo, segundo noti-ciado, agravo ou REsp perante STJ. Aguardem, assim, em cartório, pela solu-ção defi nitiva quanto à competência. Intimem-se; nada requerido, arquive-se administrativamente, de início por 6 meses. Dessa decisão foi interposto um novo agravo de instrumento para a Nona Câmara Cível do Tribunal local que negou provimento, por unanimidade, resumidamente ementado nestes termos (fl . 267-v):

AGRAVO DE INSTRUMENTO. INCOMPETÊNCIA DA JUSTIÇA LOCAL DETERMINADA E MANTIDA PELO STJ, QUE DENEGOU A SUBIDA DE RECURSO ESPECIAL QUE VISAVA O DESLOCA-MENTO PARA A BRASILEIRA, E NÃO PARA O URUGUAI. TENTA-TIVA DE REMETER SOMENTE, PARA O FORO DO URUGUAI, OS RÉUS ESTRANGEIROS, MANTENDO-SE OS BRASILEIROS SOB A JURISDIÇÃO BRASILEIRA. ASSISTENTES LITISCONSORCIAIS QUE, POR FORÇA DO ART. 54 DO CPC SUSCITARAM A INCOM-PETÊNCIA DA JUSTIÇA LOCAL, ESTENDENDO, POIS, O FORO URUGUAIO COMO COMPETENTE PARA O DESLINDE DA AÇÃO DE INDENIZAÇÃO. ADEMAIS, NÃO INTERPOSTOS EMBARGOS DE DECLARAÇAÕ NO MOMENTO OPORTUNO, RESTOU PREJU-DICADO O PREQUESTIONAMENTO, SENDO ESTE O MOTIVO DA DENEGAÇÃO DA SUBIDA DO RECURSO ESPECIAL. AGRAVO IMPROVIDO.

Opostos embargos de declaração, ao fi nal rejeitados. Agora, analisando o recurso especial, o agravante alega violação aos arts. 54, 88, I, 90, 471, 535, I e II do CPC e 12 da LICC, sustentando, em suma, que os réus brasileiros estão sujeitos à jurisdição nacional. Distribuído o agravo de instrumento, por prevenção, ao Ministro Carlos Alberto Menezes Direito, posteriormente, atribuído ao Ministro Sidnei Beneti, o qual declarou suspeito para atuar no presente feito (fl . 642).

É o relatório. Passo a decidir: O agravo de instrumento não merece ser co-nhecido. De início, verifi co que a alegada negativa ao art. 535, incisos I e II, do Código de Processo Civil, não prospera, vez que a totalidade da matéria recursal foi abordada pelo órgão julgador, com fundamentos claros e nítidos, enfrentando as questões suscitadas ao longo da instrução, tudo em perfeita consonância com os ditames da legislação civil adjetiva.

Quanto aos demais artigos, acolho os fundamentos do decisum recorrido, fl . 269-v, que o recorrente deixou de atacar no âmbito do recurso especial:... mais, os artigos que os agravantes citam acima, do CPC e da LICCv, não fo-ram objeto de embargos de declaração no momento oportuno, o que infl uiu

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na denegação do agravo interposto da denegação da subida do Recurso Espe-cial (fl s. 159/160). Ademais, em nenhum momento constou, no julgamento da apelação cível que declarou a incompetência da justiça brasileira, que os réus brasileiros não seriam julgados pela justiça uruguaia.

No tocante ao dissídio jurisprudencial não restou comprovado, já que o tema deixou de ser analisado pelo Tribunal de origem. Por tais razões, não conheço do agravo de instrumento.

Brasília (DF), 10 de março de 2008.MINISTRA NANCY ANDRIGHIRelatora

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TÍTULO II — PROCESSO CIVIL INTERNACIONAL

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AULA 14 — COMPETÊNCIA INTERNACIONAL DOS TRIBUNAIS BRASILEIROS

1. TEMAS ESPECÍFICOS:

1) Os conceitos de soberania, jurisdição e competência jurisdicional;2) Competência judiciária exclusiva e competência judiciária concorrente;3) Forum non conviniens e forum shopping

2. MÉTODO DE ENSINO:

Aula expositiva e participativa.

3. LEITURA PARA TODOS:

3.1. Leitura obrigatória:

ARAUJO, Nadia de. Direito Internacional Privado: Teoria e Prática Brasileira. 3ª Ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, pp. 213-238.

3.2. Leitura complementar:

DOLINGER, Jacob. Direito Internacional Privado — Parte Geral. 9ª Ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, pp. 441 — 456.

4. LEITURA PARA O DEBATE

4.1. LEITURA PARA O GRUPO

RECHSTEINER, Beat Walter. Direito Internacional Privado: Teoria e Práti-ca. 13ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2010, pp.277-300.

4.2. LEITURA PARA A TURMA

“ELEIÇÃO DE FORO ESTRANGEIRO NO NOVO CPC.”Matéria veicula no Jornal Valor Econômico Online (18/03/2011)Por Carmen Tiburcio e Daniel Gruenbaum

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A escolha do foro onde uma demanda será proposta é decisão estratégica da qual muitas vezes depende o próprio êxito da causa. Variações nos sistemas jurídicos (como prazo de prescrição ou validade da cláusula penal moratória) e certas circunstâncias (como o local de bens do devedor) são fatores tão rele-vantes que nenhum autor deveria escolher o foro onde iniciará um processo com a mesma tranquilidade com que escolheria a cidade de suas próximas férias — embora algumas cidades se prestem a ambos. Por isso, a eleição de foro é, ao lado da cláusula compromissória (sua “irmã funcional”), funda-mental nos negócios transnacionais e amplamente aceita nos mais diversos sistemas jurídicos.

Com grande convicção doutrinária, afi rma-se que para a maioria dos li-tígios empresariais a eleição de foro estrangeiro é compatível com o direito brasileiro. Com acerto, portanto, já na década de 1950 o Supremo Tribunal Federal (STF) afi rmava que “o direito brasileiro reconhece o foro contratual, salvo quando existir impedimento de ordem pública” (RE 30.636), posição geralmente seguida pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) (Resp 242.383, Resp 505.208, Resp 1.177.915).

A admissibilidade do acordo ainda é, contudo, marcada por incerteza na prática jurídica. Primeiro, as poucas normas escritas que o permitem — como o artigo 4º, parágrafo 1º do Protocolo de Buenos Aires (Decreto nº 2.095, de 1996) — são de aplicação geográfi ca e materialmente limitada. Segundo, há julgados desfavoráveis de tribunais estaduais e — em casos com excepcio-nais particularidades — do próprio STJ (eleição de foro alegada apenas em ação rescisória — AR 133; contida em contrato acessório não celebrado pela autora do processo — Resp 251.438; contida em contrato de distribuição aparentemente celebrado por adesão — Resp 804.306).

As partes podem não se valer do Judiciário nacional e optar por tribunal estrangeiro.

Nesse contexto, de forma didática e para conferir certeza ao direito bra-sileiro, o art. 24 do anteprojeto de novo Código de Processo Civil afasta-va a competência internacional da autoridade judiciária brasileira “quando houver cláusula de eleição de foro exclusivo estrangeiro, arguida pelo réu na contestação”, assegurando a chamada efi cácia negativa da eleição de foro. O dispositivo não consta, porém, da versão do Projeto ao fi nal aprovada no Senado (PLS 166/2010). Lamentável supressão.

Um primeiro ponto é que a admissibilidade da eleição de foro atende a interesses dos empresários individualmente e do comércio internacional

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brasileiro em geral, ao reduzir o custo de transação. Isso ocorre por vários motivos, mas aqui basta ressaltar a diminuição de custos relacionados ao risco jurisdicional: já sabendo de antemão qual foro apreciará eventual contro-vérsia e, assim, do direito que será aplicável, as partes podem estimar a pro-babilidade de sucesso de sua posição. Por óbvio, saber se e quando convém atribuir competência internacional exclusiva a foro estrangeiro é decisão que depende da ponderação de diversos fatores. À lei conviria apenas assegurar a mobilidade jurisdicional daquele que, dentro da esfera de liberdade assegu-rada pela livre iniciativa e autonomia negocial, queira explorar sua empresa transnacionalmente.

A não aceitação expressa da eleição de foro gera — e aqui um segundo ponto — incongruência no sistema, ante o regime favorável conferido, com inteira razão, à cláusula compromissória. Nada justifi ca que todo processo ajuizado no Brasil seja, salvo raríssimas exceções (art. II (3) da Convenção de Nova Iorque, Dec. 4311/02), extinto sem julgamento do mérito se as partes tiverem se comprometido a se submeter a arbitragem conduzida em Londres (art. 267, VII CPC), mas permitir que o mesmo processo prossiga se, no mesmo caso, em vez de à arbitragem, as partes tiverem se comprometido a se submeter à “High Court of Justice”.

Uma séria objeção à eleição de foro estrangeiro se baseia na inafastabilida-de da jurisdição (art. 5º, XXXV da Constituição). A respeito — e como últi-mo ponto — deve-se partir da mesma premissa para a constitucionalidade do efeito negativo da cláusula compromissória (STF, AgRg SE 5.206): embora a lei não possa impedir o acesso à Justiça, as partes — em razão dos princípios dispositivo e da inércia da jurisdição — podem não se valer do Judiciário nacional e optar por tribunal judicial estrangeiro. Daí, aliás, a distinção entre competências internacionais concorrente e exclusiva (art. 88 e 89 CPC), a revelar que o importante é crises jurídicas serem resolvidas em um processo justo, não necessariamente em foro brasileiro.

O dispositivo deveria, por isso, ser reincluído no projeto por ocasião de sua apreciação pela Câmara dos Deputados, sob pena de, ao menos em ma-téria de processo civil internacional, o eventual novo Código já nascer em descompasso com seu tempo, alheio às necessidades do mundo que pretende regular e contraditório com princípios estruturais do sistema jurídico do qual fará parte.

Carmen Tiburcio e Daniel Gruenbaum são, respectivamente, doutora em direito pela University of Virginia (EUA), professora adjunta da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e da pós-graduação da UG e consultora jurídica; Doutor em direito pela Universidade de São Paulo (USP), professor contratado da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e advogado.

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Este artigo refl ete as opiniões do autor, e não do jornal Valor Econômico. O jornal não se responsabiliza e nem pode ser responsabilizado pelas infor-mações acima ou por prejuízos de qualquer natureza em decorrência do uso dessas informações.

Disponível em: http://www.valor.com.br/arquivo/877971/eleicao-de-fo-ro-estrangeiro-no-novo-cpc

4.2. JURISPRUDÊNCIA

MC 15.398/RJ (STJ)PROCESSO CIVIL. MEDIDA CAUTELAR VISANDO A ATRIBUIR

EFEITO SUSPENSIVO A RECURSO ESPECIAL. AÇÃO PROPOSTA PELA REQUERENTE, PERANTE JUSTIÇA ESTRANGEIRA. IMPROCE-DÊNCIA DO PEDIDO E TRÂNSITO EM JULGADO DA DECISÃO. RE-PETIÇÃO DO PEDIDO, MEDIANTE AÇÃO FORMULADA PERANTE A JUSTIÇA BRASILEIRA. EXTINÇÃO DO PROCESSO, SEM RESOLUÇÃO DO MÉRITO, PELO TJ/RJ, COM FUNDAMENTO NA AUSÊNCIA DE JURISDIÇÃO BRASILEIRA PARA A CAUSA. IMPOSSIBILIDADE.

PEDIDO DE MEDIDA LIMINAR PARA A SUSPENSÃO DOS ATOS COERCITIVOS A SEREM TOMADOS PELA PARTE QUE SAGROU-SE VITORIOSA NA AÇÃO JULGADA PERANTE O TRIBUNAL ESTRAN-GEIRO. INDEFERIMENTO. COMPORTAMENTO CONTRADITÓRIO DA PARTE VIOLADOR DO PRINCÍPIO DA BOA-FÉ OBJETIVA, EX-TENSÍVEL AOS ATOS PROCESSUAIS.

— É condição para a efi cácia de uma sentença estrangeira a sua homologa-ção pelo STJ. Assim, não se pode declinar da competência internacional para o julgamento de uma causa com fundamento na mera existência de trânsito em julgado da mesma ação, no estrangeiro.

Essa postura implicaria a aplicação dos princípios do ‘formum shopping’ e ‘forum non conveniens’ que, apesar de sua coerente formulação em países estrangeiros, não encontra respaldo nas regras processuais brasileiras.

— A propositura, no Brasil, da mesma ação proposta perante Tribunal es-trangeiro, porém, consubstancia comportamento contraditório da parte. Do mesmo modo que, no direito civil, o comportamento contraditório implica violação do princípio da boa-fé objetiva, é possível também imaginar, ao me-nos num plano inicial de raciocínio, a violação do mesmo princípio no pro-cesso civil. O deferimento de medida liminar tendente a suspender todos os

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atos para a execução da sentença estrangeira, portanto, implicaria privilegiar o comportamento contraditório, em violação do referido princípio da boa-fé.

Medida liminar indeferida e processo extinto sem resolução de mérito.

(MC 15.398/RJ, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TUR-MA, julgado em 02/04/2009, DJe 23/04/2009)

SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

MEDIDA CAUTELAR Nº 15.398 — RJ (2009/0051622-9)REQUERENTE: MARÍTIMA PETRÓLEO E ENGENHARIA LTDAADVOGADO: HÉLIO JOSÉ CAVALCANTI BARROS E OUTRO(S)REQUERIDO: PETRÓLEO BRASILEIRO S/A — PETROBRÁSRELATÓRIOA EXMA. SRA. MINISTRA NANCY ANDRIGHI (Relator):Trata-se de medida cautelar proposta por MARÍTIMA PETRÓLEO E

ENGENHARIA LTDA. objetivando atribuir efeito suspensivo a recurso es-pecial interposto para impugnação de acórdão exarado pelo TJ/RJ, no julga-mento de agravo de instrumento.

Ação: declaratória, com pedido de antecipação dos efeitos da tutela, pro-posta pela requerente em face de PETROBRÁS — PETRÓLEO BRASILEI-RO S.A. Na inicial, a MARÍTIMA argumenta participou da modernização de três plataformas de petróleo: P-36, P-38 e P-40. Para a viabilização dessa atividade, que envolvia prestação de serviços em diversos países, fez-se ne-cessária a criação de pessoas jurídicas estrangeiras. Assim, foram criadas as empresas FPSO Construction/FSO Construction, FSO Engineering e FPSO Engineering Inc, por parte da requerente, e a sociedade BRASPETRO OIL SERVICES COMPANY, por parte da PETROBRÁS.

Tendo em vista desentendimentos surgidos durante a execução dos servi-ços, duas ações foram propostas, pelas sociedades subsidiárias da MARÍTI-MA, perante a justiça do Reino Unido. O motivo do ajuizamento das ações no estrangeiro é o de que o contrato fi rmado continha cláusula de eleição de foro, na qual se previa, em primeiro lugar, a regência das obrigações pela lei inglesa e, em segundo lugar, a possibilidade de propositura das ações decor-rentes da relação jurídica contratada perante a justiça inglesa.

Pelo que se depreende da análise da petição inicial, a MARÍTIMA, por suas subsidiárias, restou vencida nas ações que tramitaram na Inglaterra. Conforme argumenta, o motivo foi o de que, do ponto de vista substancial, a Lei inglesa apresenta severas limitações ao conhecimento de questões que dariam corpo a seu direito. Entre outros fundamentos, argumenta, por exem-plo, que naquele país há limitações quanto à oposição de exceção de contra-to não cumprido, ou à compensação de créditos. Além disso, afi rma que a

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interposição de recursos contra decisões de primeiro grau é extremamente dispendiosa na Inglaterra, o que inviabilizaria o litígio.

Por esse motivo, em que pese sua derrota na jurisdição inglesa, optou por não recorrer daquela decisão e propôs novamente a ação no Brasil. Aqui, formula pedido de antecipação de tutela para: (i) que se suspenda a exigi-bilidade, por parte das Rés (PETROBRÁS e BRASPETRO), de quaisquer valores da Autora (MARÍTIMA), seus sócios ou empresas coligadas, relativos a supostos adiantamentos ou pagamentos feitos nas obras e serviços das pla-taformas P-36, P-38 e P-40; (ii) a intimação da PETROBRÁS e da BRAS-PETRO para que “se abstenham de, no Brasil ou no Exterior, adotarem ou requererem medidas coercitivas com base em tais supostos créditos até apu-ração e decisão fi nal desta ação”.

Decisão: deferiu o pedido de antecipação dos efeitos da tutela, reco-nhecendo, preliminarmente, a jurisdição brasileira para tratar da questão. Agravos de instrumento: interpostos, tanto pela PETROBRÁS, como pela BRASPETRO, objetivando a reforma da decisão de 1º grau, seja porque a autoridade judiciária brasileira é incompetente para julgar a matéria, seja porque a antecipação, no mérito, não se justifi ca.

Acórdão: deu provimento ao agravo, para o fi m de reconhecer a ausência de jurisdição brasileira. Eis a ementa:

“TUTELA ANTECIPADA. CONTRATO INTERNACIONAL. LEI BRASILEIRA. FORO DE ELEIÇÃO. LEI INGLESA. JURISDIÇÃO. Agravos contra a decisão que deferiu tutela antecipada, em sede de ação de-claratória ordinária, para o fi m de reconhecer ‘ab initio’ a competência da Justiça do Brasil para dirimir o confl ito de interesse das partes. No contrato fi rmado, as partes, dentre outras avenças, escolheram o foro de Londres como aquele que teria jurisdição para dirimir seus confl itos, prevendo por óbvio, a aplicação da legislação inglesa. As ações foram propostas na Corte de Lon-dres. A Agravada, após sair-se vencida na justiça inglesa, volta seus pleitos à Justiça Brasileira.

Portanto, preliminarmente se deve verifi car se a Justiça do Brasil tem ju-risdição para conhecer e julgar a demanda principal. O Código de Processo Civil, nos artigos 88, 89 e 90, embora sob a rubrica de competência interna-cional, nada mais faz senão indicar a jurisdição da justiça brasileira para os casos ali elencados. Também fê-lo o art. 12 da Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro.

É de sabença que a jurisdição da justiça brasileira, diante de tribunais es-trangeiros, pode ser cumulativa ou exclusiva.

O art. 88 do CPC é exemplo de competência cumulativa ou concorrente. Já o art. 89 dita regra de competência exclusiva e, ‘in casu’, é absolutamente inaplicável. O art. 90 deve ser analisado juntamente com o art. 88, i.e., nos casos de competência concorrente, em que tanto uma ação pode tramitar

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aqui ou alhures, a ‘ação intentada perante tribunal estrangeiro não induz a litispendência, nem obsta a que a autoridade judiciária brasileira conheça da mesma causa e das que lhe são conexas’, mas evidentemente, enquanto a sen-tença estrangeira não houver sido homologada. Das Agravantes, rés no feito principal, uma tem sede no Brasil. Os serviços contratados têm por objeto obrigações e, pelo que os autos relatam, foram cumpridas em diversos países.

Num primeiro e superfi cial enfoque, poder-se-ia admitir a concorrência de jurisdição, por força dos incisos I e II, do art. 88 do CPC, pois afi nal, um dos réus, ora agravante, tem sede no Brasil. Em relação ao inciso II, não se verifi ca a hipótese e isto porque as obrigações constituídas não eram para ser cumpridas no Brasil. Acontece que este raciocínio é simplista, pois o exame da questão manda que se vá além, na medida em que há um ‘plus’, consisten-te na opção livre que as partes fi zeram pelo foro inglês e pela escolha da lei inglesa para dirimir seus confl itos.

Ora, ainda que concorrentemente, temos que as partes aceitaram fi rmar no contrato, de forma livre e consciente, a sujeição de suas controvérsias à justiça e às leis inglesa (sic). Mesmo que as partes tenham eleito o foro sem exclusividade, ainda assim prevalece a jurisdição inglesa porque no momento que se propôs a demanda em Londres e a parte contrária não se insurgiu, ambas aceitando, de direito e de fato, a jurisdição inglesa, tornou-se clara e defi nitiva aquela escolha, não podendo agora, apenas pela conveniência da Agravada, que se viu perdedora na Corte Inglesa, a busca da prestação juris-dicional sobre fatos já julgados, a pretexto da concorrência da jurisdição.

No que toca à aplicação da lei inglesa, temos que as obrigações foram constituídas, na Inglaterra e pela lei local deverão ser qualifi cadas, conforme preceitua o art. 9º da Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro.

Por fi m, embora a jurisprudência trate da matéria como sendo o caso de competência relativa, já se disse que, de fato, a hipótese é de jurisdição, para o que não se pode falar de relatividade, pois a falta de jurisdição traz como conseqüência a absoluta falta de competência. Em outras palavras, se não há jurisdição brasileira, então nenhum órgão jurisdicional terá competência. É a conclusão lógica, pelo que a exceção não é necessária.

Extinção do feito principal, nos termos do art. 267, IV do CPC.”Recurso especial: interposto por MARÍTIMA, com a alegação de que fo-

ram violados os arts. 535, inc. II, 88 e seus incisos e 90, todos do CPC. Além disso, também se alega a violação dos arts. 12 e 17 da LICC.

Admissibilidade: o recurso foi admitido na origem.Medida cautelar: ajuizada para atribuição de efeito suspensivo ao recurso

especial.É o relatório.VOTOA EXMA. SRA. MINISTRA NANCY ANDRIGHI (Relator):

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Para deferimento de liminar em medida cautelar é necessária a conjuga-ção de dois elementos, consubstanciados na aparência do direito (“fumus boni iuris”) e no perigo de demora na prestação jurisdicional (“periculum in mora”). Especifi camente quando se trata da atribuição de efeito suspensivo a recurso especial, esses dois requisitos devem ser analisados com as vistas volta-das ao próprio recurso, ou seja: A plausibilidade do direito será pautada pela possibilidade de êxito na impugnação, e o interesse processual do requerente deve ser analisado, sempre, com base nos efeitos que se poderão extrair do eventual provimento do especial.

Pelo que se depreende do acórdão recorrido, foi a própria MARÍTIMA, ou suas subsidiárias estrangeiras, que optaram por ajuizar perante a justiça inglesa as ações ora discutidas, em face da PETROBRÁS e de sua subsidiária BRASPETRO. Tanto que o principal argumento em que se fundamenta o acórdão é o de que “mesmo que as partes tenham eleito o foro sem exclusi-vidade, como aliás o fi zeram (fi nal da cláusula 14.2), ainda assim prevalece a jurisdição inglesa porque no momento que se propôs a demanda em Londres e a parte contrária não se insurgiu, ambas aceitando, de direito e de fato, a jurisdição inglesa, tornou-se clara e defi nitiva aquela escolha, não podendo agora, a busca da prestação jurisdicional sobre litígios já julgados, a pretexto da concorrência da jurisdição” (fl s. 144). Com esse fundamento, o TJ/RJ extinguiu o processo, considerando a inexistência de jurisdição da justiça brasileira.

Em que pese não haver menção expressa no acórdão recorrido, o TJ/RJ aplicou à espécie dois princípios, pouco aplicados no Brasil, mas amplamente reconhecidos no direito estrangeiro, notadamente nos países que adotam o sistema da common law: Trata-se dos princípios do formum shopping e do forum non conveniens.

Conforme aponta VERA MARIA BARRERA JATAHY (Do confl ito de jurisdições: a competência internacional da justiça brasileira, Rio de Janeiro: Forense, 2003, pág. 36 e ss.), esses dois princípios aplicam-se complemen-tarmente. O princípio do formum shopping, decorrente da autonomia da vontade das partes, “consiste na procura, dentre jurisdições de competência concorrente para apreciar determinada lide, daquela onde o autor ou as par-tes supõem possa ser obtida uma decisão mais favorável aos seus interesses, em razão da lei a ser aplicada, ou em decorrência de normas processuais que permitem maior agilização nos julgamentos”. O princípio do forum non conveniens, por sua vez, atua para mitigar os exageros a que essa procura pode levar. Segundo este princípio, deixa-se “ao arbítrio do juízo acionado a possibilidade de recusar a prestação jurisdicional internacional invocada como concorrente e mais adequada para atender aos interesses das partes, ou aos reclamos da justiça em geral. No juízo de valoração são apreciadas mi-

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nuciosamente questões pertinentes aos interesses privados das partes, assim como o interesse público envolvido”.

Ou seja: ao declinar da competência para o julgamento da causa com fundamento em que “no momento que se propôs a demanda em Londres e a parte contrária não se insurgiu, ambas aceitando, de direito e de fato, a jurisdição inglesa, tornou-se clara e defi nitiva aquela escolha”, o TJ/RJ cla-ramente aplicou a mesma idéia que está na base do princípio do forum non conveniens.

Em que pesem os argumentos utilizados pelo TJ/RJ e a racionalidade dos princípios supracitados, porém, é importante observar que eles não encon-tram previsão expressa no ordenamento jurídico brasileiro. No Brasil, vigora a regra do art. 90 do CPC, que determina a inexistência de litispendência entre as causas ajuizadas perante um Tribunal estrangeiro e as causas ajuizadas perante a autoridade judiciária nacional. A regra, no Brasil, é a de que asen-tença estrangeira somente terá efi cácia depois de homologada pelo Superior Tribunal de Justiça (art. 483 do CPC, com leitura conforme à regra do art. 105, inc. I, alínea “j” da CF, com a redação dada pela EC 45/2004).

Sendo assim, não está, ao menos em princípio, entre as atribuições do TJ/RJ antecipar-se ao provimento do Tribunal Superior, atribuindo efi cácia imediata à sentença estrangeira. Consoante autorizada doutrina, nem mes-mo o pedido de homologação tem o condão de obstar, automaticamente, o prosseguimento de ação ajuizada no Brasil (Pontes de Miranda, Comentários ao CPC, Tomo X, pág. 20). Vale mencionar, inclusive, que para Barbosa Mo-reira (apud Vera Jatahy, cit., pág. 151), mesmo que uma ação seja proposta, no Brasil, posteriormente à ação proposta no estrangeiro, prevalecerá a que primeiro obtiver a autoridade de coisa julgada perante a Justiça Nacional. E para tanto, é imprescindível a homologação da sentença estrangeira pelo STJ.

Pelo que se depreende de rápida análise dos processos distribuídos perante o STJ, tudo indica que já foi requerida, pela BRASPETRO, a homologação da sentença proveniente dos Tribunais da Inglaterra (SE nº 3.932/GB). Tal pedido de homologação, contudo, ainda não foi julgado, de modo que a sen-tença estrangeira ainda não tem, aqui, sua efi cácia reconhecida. A suspensão do processo que corre no Brasil, portanto, deve ser requerida pelo interessado naquele processo de homologação, mediante requerimento a ser formulado nos termos do art. 4º, §3º, da Resolução 9/STJ.

Todos esses argumentos, até aqui desenvolvidos, levam, ao menos em prin-cípio, à conclusão de que merece reforma o acórdão recorrido. Mas essas ob-servações não implicam, necessariamente, a possibilidade de se restabelecer, aqui, a antecipação de tutela que foi concedida pelo Juízo de 1º Grau. É im-portante frisar que, entre reconhecer que o TJ/RJ não deveria, simplesmente, ter extinguido a ação proposta no Brasil, e reconhecer que a autora tem direi-to à antecipação de tutela que pleiteia, há uma grande distância. Para além da

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discussão acerca da existência de jurisdição brasileira, não se pode deixar de lado uma outra questão, de todo importante, que é a verifi cação do compor-tamento processual contraditório da ora requerente. Com efeito, em um pri-meiro momento, a requerente, ou empresas por ela controladas, ajuízam uma ação para defesa de seus direitos perante a justiça inglesa. Depois, porém, ao verem frustrada sua pretensão perante aquele Tribunal, repetem a ação, desta vez no Brasil, tentando melhor sorte. Assim, ainda que não seja possível, ao menos no plano do direito positivado, aplicar no Brasil os já citados prin-cípios do formum shopping e do formum non conveniens para extinguir a ação, deferir uma medida liminar que suspenda os atos tendentes à execução daquela sentença implicaria privilegiar o comportamento contraditório. Do mesmo modo que, no direito civil, o comportamento contraditório implica violação do princípio da boa-fé objetiva, é possível também imaginar, ao me-nos num plano inicial de raciocínio, a violação do mesmo princípio no plano processual. O elenco de condutas que atentam contra a boa-fé processual que está contido no art. 17 do CPC poderia ser posto ao lado de um elenco de novas condutas que, para além das regras postas, subsumem-se dos princípios gerais do ordenamento jurídico. A violação da boa-fé objetiva, portanto, re-presentada pelo comportamento contraditório da parte, também poderia se estender aos atos processuais — o que implica o indeferimento da medida liminar aqui pleiteada.

Friso, porém, ainda que desnecessário, que estas conclusões não podem ser tomadas como defi nitivas, dado que decorrem da perfunctória análise que é dado a esta relatora fazer em sede cautelar, análise essa a ser novamente promovida, por ocasião do julgamento do mérito do recurso especial.

Forte em tais razões, indefi ro a medida liminar e julgo extinta a presente medida cautelar, sem resolução de mérito.

MEDIDA CAUTELAR Nº 15.398 — RJ (2009/0051622-9)RELATORA: MINISTRA NANCY ANDRIGHIREQUERENTE: MARÍTIMA PETRÓLEO E ENGENHARIA LTDAADVOGADO: HÉLIO JOSÉ CAVALCANTI BARROS E OUTRO(S)REQUERIDO: PETRÓLEO BRASILEIRO S/A — PETROBRÁS

VOTOO SR. MINISTRO VASCO DELLA GIUSTINA (DESEMBARGADOR

CONVOCADO DO TJ/RS): Eminentes Colegas, enquanto a Sra. Ministra Relatora lia seu voto, debrucei-me no processualista Marinoni, que comenta o art. 90, aliás, na linha do que disse a eminente Relatora, e preleciona:

“A ação intentada perante órgão jurisdicional estrangeiro não tem a efi -cácia de obstar o exame da mesma causa e das que lhe são conexas pela ju-risdição nacional. Se há competência internacional concorrente e duas ações

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idênticas tramitando simultaneamente no Brasil e no estrangeiro, há, por óbvio, litispendência; esta, contudo, não determina a extinção do segundo processo sem a solução do mérito.

Vale dizer, há litispendência, mas não há efi cácia de litispendência. À ju-risdição brasileira é indiferente que se tenha ajuizado a ação em um país estrangeiro, ainda que idêntica a outra que aqui tramite.”

E continua: “Ainda que já tenha transitado em julgado a decisão estrangei-ra, não tem o juiz brasileiro de extinguir o processo em que tem curso a causa lá decidida, porque a coisa julgada estrangeira é só efi caz no Brasil depois de homologada pelo STJ.”

Nessa linha, parece-me que, realmente, enquanto não estiver homologa-da, não há como dar-se por defi nitiva a jurisdição estrangeira e também, de outra parte, havendo essa perspectiva, não há como adiantar-se a antecipação de tutela na decisão do voto da eminente Relatora.

Por essas razões, acompanho integralmente o voto da Sra. Ministra Re-latora, indeferindo a medida liminar pleiteada e julgando extinta a presente cautelar.

MINISTRO VASCO DELLA GIUSTIN

5. LEGISLAÇÃO

Decreto-Lei Nº 4657/42 — Lei de Introdução às Normas do Direito Bra-sileiro.

Lei Nº 5.869 — Código de Processo CivilConvenção de Haia de 2005Decreto nº 2.095 de 17 de dezembro de 1996 — Protocolo de Buenos

Aires Sobre Jurisdição Internacional em matéria contratual (1994).

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AULA 15 — IMUNIDADE DE JURISDIÇÃO DE ESTADOS

1. TEMAS ESPECÍFICOS:

1) Imunidade de jurisdição dos Estados;2) O problema da Responsabilização do Estado e a hipossufi ciência do

indivíduo.

2. MÉTODO DE ENSINO:

Aula expositiva e participativa.

3. LEITURA:

3.1. Leitura obrigatória:

ARAUJO, Nadia de. Direito Internacional Privado: Teoria e Prática Brasileira. 3ª Ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, pp. 239-252.

3.2. Leitura complementar:

REZEK, José Francisco. Direito Internacional Público: Curso Elementar. 12ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2010, pp. 179-184.

TIBURCIO, Carmen; BARROSO, Luís Roberto. O Direito Internacional Contemporâneo: Estudos em homenagem ao Professor Jacob Dolinger. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, pp. 9-48.

4. LEITURA PARA O DEBATE

4.1. LEITURA PARA O GRUPO

RECHSTEINER, Beat Walter. Direito Internacional Privado: Teoria e Práti-ca. 13ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2010, pp.301-310.

TIBURCIO, Carmen; BARROSO, Luís Roberto. O Direito Internacional Contemporâneo: Estudos em homenagem ao Professor Jacob Dolinger. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, pp.145-174.

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4.2. JURISPRUDÊNCIA

SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

INFORMATIVO Nº 545 STFTÍTULOReclamação Trabalhista contra a ONU/PNUD: Imunidade de Jurisdição

e Execução (Transcrições)PROCESSO: RE — 578543ARTIGO

Reclamação Trabalhista contra a ONU/PNUD: Imunidade de Jurisdição e Exe-cução (Transcrições) RE 578543/MT* RELATORA: MIN. ELLEN GRACIE

VOTO: Inicialmente, não conheço dos recursos extraordinários interpos-tos na parte em que buscam fundamento no art. 102, III, b, da Constituição Federal. No tocante à alegação, contida no apelo extremo da ONU/PNUD, de que teria havido, no acórdão recorrido, uma transversa declaração de in-constitucionalidade da Seção 2 da Convenção sobre Imunidades e Privilégios das Nações Unidas, noto que aquela manifestação judicial não chegou a re-jeitar a imunidade jurisdicional reclamada pela ONU/PNUD com base numa eventual incompatibilidade entre aquele dispositivo legal e a Consti-tuição Federal. Para o acórdão ora impugnado, a legitimidade da atuação da Justiça do Trabalho no caso concreto encontraria fundamento bastante no art. 114 da Carta Magna, que prevê a competência desse órgão do Poder Ju-diciário para julgar os confl itos trabalhistas que envolvam os entes de direito público externo. Nem mesmo um mero ato de afastamento da norma de imunidade invocada pela recorrente é possível detectar. Quanto ao recurso da União, o não conhecimento pela alínea b do permissivo constitucional ba-seia-se, tão-somente, no fato de que não há na peça recursal qualquer trecho que explicite a ocorrência, no acórdão recorrido, de uma eventual declaração de inconstitucionalidade de tratado ou lei federal. Embora reconheça o esfor-ço bem sucedido da ONU/PNUD pelo prequestionamento das alegações de ofensa ao artigo 5º, incisos II, XXXV e LIII, da Constituição Federal, tenho que essas violações seriam indiretas, pois a afi rmada recusa na aplicação do art. 485, V, do CPC, e da Seção 2 do Convênio sobre Imunidades e Privilé-gios das Nações Unidas seriam, primeiramente, afrontas ao próprio texto desses dispositivos infraconstitucionais. Já o exame da violação, defendida pela União em seu recurso, aos artigos 5º, LIV, 49, I, e 84, VIII, todos da Constituição Federal, encontra óbice claro na falta do revolvimento dessas matérias no acórdão recorrido. Desponta, assim, neste julgamento, a análise de violação aos artigos 5º, § 2º, e 114 da Carta Magna. 2. Busca-se, como

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visto, por meio do presente recurso extraordinário, pronunciamento desta Supre-ma Corte que defi na, de uma vez por todas, se, à luz da Constituição Federal e da jurisprudência deste Supremo Tribunal Federal, as imunidades de jurisdição e de execução invocadas pelas organizações internacionais podem ser afastadas quando essas entidades de direito público externo são demandadas perante a Jus-tiça do Trabalho brasileira. As organizações intergovernamentais modernas, segundo ensinamento do professor Celso de Albuquerque Mello, nasceram no século XX, num cenário de associacionismo internacional, por terem os Estados compreendido “que existem certos problemas que não podem ser resolvidos por eles sem a colaboração dos demais membros da sociedade in-ternacional.” (Curso de Direito Internacional Público. Rio de Janeiro, Reno-var, 14ª ed., 2002, p. 49.) É o Direito Internacional de cooperação ou de colaboração, que sucede ao Direito Internacional de coexistência. Atores im-prescindíveis à convivência pacífi ca e à cooperação entre os povos, os organis-mos internacionais não podem ser confundidos com os Estados que os cons-tituem. Celso de Albuquerque Mello, para defi ni-los, valeu-se do conceito de Angelo Piero Sereni, para quem a organização internacional “é uma associa-ção voluntária de sujeitos de Direito Internacional, constituída por ato inter-nacional e disciplinada nas relações entre as partes por normas de Direito Internacional, que se realiza em um ente de aspecto estável, que possui um ordenamento jurídico interno próprio e é dotado de órgãos e institutos pró-prios, por meio dos quais realiza as fi nalidades comuns de seus membros mediante funções particulares e o exercício de poderes que lhe foram confe-ridos.” (Curso de Direito Internacional Público. Rio de Janeiro, Renovar, 14ª ed., 2002, p. 583.) José Cretella Neto, de forma concisa, porém não menos percuciente, explica que a organização internacional interestatal é “uma asso-ciação de Estados estabelecida por meio de uma convenção internacional, que persegue objetivos comuns aos membros e específi cos da organização, dispondo de órgãos próprios permanentes e dotada de personalidade jurídica distinta da dos Estados-membros.” (Teoria Geral das Organizações Interna-cionais. São Paulo, Saraiva, 2007, p. 44.) Relevante lembrar, invocando-se, mais uma vez, doutrina de Celso de Albuquerque Mello, que o ingresso de um Estado em uma organização internacional é um ato de natureza voluntá-ria, “isto é, nenhum Estado é obrigado a ser membro de uma organização contra a sua vontade.” (Curso de Direito Internacional Público. Rio de Janei-ro, Renovar, 14ª ed., 2002, p. 584.). A organização internacional ora recor-rente é a Organização das Nações Unidas, sucessora da Liga das Nações e criada com a assinatura da Carta das Nações Unidas, em 26.06.1945, duran-te os trabalhos da célebre Conferência de São Francisco. O Brasil, que é um de seus membros fundadores, promulgou a Carta das Nações Unidas por meio do Decreto 19.841, de 22.10.1945. Segundo a lição do professor An-tônio Augusto Cançado Trindade, a ONU ocupa posição de destaque em

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relação a todas as demais organizações internacionais pela amplitude de sua esfera de ação e porque, “diferentemente das organizações regionais, a exten-são e o alcance de suas competências são extremamente vastos e a realização de seus propósitos é marcada por sua vocação universal.” (Direito das Orga-nizações Internacionais. Belo Horizonte, Del Rey, 3ª ed., 2003, p. 10.) A recorrente, que hoje conta com 192 países-membros, é dotada de personali-dade jurídica internacional que lhe permite, nas palavras do professor Antô-nio Augusto Cançado Trindade, “atuar no cenário internacional como enti-dade distinta, independentemente dos Estados-membros tomados individualmente.” (Direito das Organizações Internacionais. Belo Horizonte, Del Rey, 3ª ed., 2003, p. 12.) Todavia, conforme adverte o internacionalista Hildebrando Accioly, a Organização das Nações Unidas não é um superesta-do, “embora reúna a quase-totalidade dos estados existentes.” (Manual de Direito Internacional Público. São Paulo, Saraiva, 16ª ed., 2008, p. 396.) Já o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento — PNUD, institu-ído, em 22.11.1965, pela Resolução 2.029 da Assembléia-Geral das Nações Unidas, embora sua atividade tenha particular importância para os países em desenvolvimento, não possui a personalidade jurídica internacional de que se valem os organismos especializados das Nações Unidas, como a UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura), a FAO (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura) e a OMS (Organização Mundial da Saúde). Trata-se o PNUD, formalmente, de órgão subsidiário da própria ONU, fomentador de políticas de desenvolvi-mento, diretamente subordinado à Assembléia-Geral e ao Conselho Econô-mico e Social das Nações Unidas. Feito esse breve reconhecimento da parte recorrente, passo, agora, ao exame específi co do tema das imunidades de ju-risdição e de execução. 3. Assim procedendo, tomo como ponto de partida obrigatório a minuciosa análise dos precedentes mais relevantes desta Casa a respeito da matéria ora debatida. Na ordem constitucional pretérita, esta Supre-ma Corte, em diversas ocasiões, foi chamada a se manifestar em causas nas quais cidadãos brasileiros, em busca de indenização fundada na rescisão de contrato de trabalho ou na responsabilidade civil, ajuizavam ações em face dos Estados es-trangeiros, que se faziam representar por suas respectivas embaixadas e consula-dos. Os demandantes eram, em sua grande maioria, ex-empregados demiti-dos pelas representações diplomáticas ou consulares e proprietários de veículos avariados em acidentes de trânsito. A relativa facilidade de acesso a esta Casa, encontrada por muitas dessas causas, explicava-se, em parte, pela previsão contida no art. 119, II, a, da Emenda Constitucional 1/69, que atri-buía ao Supremo Tribunal Federal a competência para processar e julgar, em grau recursal ordinário, as causas em que fossem partes “Estados estrangeiros ou organismo internacional, de um lado, e, de outro, município ou pessoa domiciliada ou residente no País”. Nas decisões proferidas por esta Corte naque-

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la época, prevaleceu a força da doutrina clássica da imunidade absoluta, prove-niente de norma costumeira incorporada ao Direito das Gentes, segundo a qual nenhum Estado poderia ser submetido à condição de parte perante o Judiciário local de outra Nação, a não ser que viesse a manifestar, nesse sentido, a sua von-tade soberana. O brocardo par in parem non habet jurisdictionem bem sintetiza-va essa construção jurídica. Assim decidiu o Supremo Tribunal Federal, por exemplo, nos seguintes julgados: Apelações Cíveis 9.684, rel. Min. Rafael Mayer, DJ 04.03.1983 (Iraque), 9.686, rel. Min. Néri da Silveira, DJ de 31.08.1984 (França), 9.695, rel. Min. Oscar Corrêa, DJ de 12.06.1987 (Hungria), 9.704, rel. Min. Carlos Madeira, DJ de 26.06.1987 (Líbano), 9.705, rel. Min. Moreira Alves, DJ 23.10.1987 (Espanha), e 9.707, rel. Min. Aldir Passarinho, DJ de 11.03.1988 (Estados Unidos da América). Dos pre-cedentes fi rmados naquela específi ca fase histórica, destaco que, pelo fato de algumas ações ajuizadas perante as instâncias originárias terem apontado, como demandados, tanto o representante da missão diplomática ou consular como o próprio Estado estrangeiro, duas soluções jurídicas distintas e conco-mitantes eram dadas pelo Supremo Tribunal Federal a esses feitos, com rela-ção à imunidade de jurisdição. No tocante à pretensão de responsabilização do Estado estrangeiro propriamente dito, aplicava esta Casa, como acima exposto, a teoria da imunidade absoluta por imposição de norma consuetudinária de Direi-to Internacional Público, independentemente da existência, em nosso ordena-mento jurídico, de regra positivada nesse sentido. Já no que concerne à imunida-de de jurisdição das autoridades diplomáticas ou consulares, tinha essa prerrogativa fundamento completamente diverso daquele utilizado para justifi car a imunidade dos Estados estrangeiros. Baseava-se, neste caso, na Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas, de 1961, e na Convenção de Viena sobre Relações Consulares, de 1963. Ambos esses atos internacionais, devidamente assi-nados pelo Brasil, foram aprovados por decretos legislativos, ratifi cados e depois promulgados, respectivamente, pelos Decretos 56.435/65 e 61.078/67. No julga-mento do RE 94.084, iniciado em 13.02.1985 e concluído em 12.03.1986, de relatoria do eminente Ministro Aldir Passarinho, este Plenário assentou a impossibilidade de os Estados Unidos da América submeterem-se à jurisdi-ção brasileira para responder a ação trabalhista proposta por ex-empregado de sua embaixada. O eminente Ministro Francisco Rezek, no voto-vista que proferiu naquele caso, assim asseverou a respeito da nítida diversidade de fundamentação para o reconhecimento, naquela época, da imunidade dos Estados ou dos agentes diplomáticos e consulares, verbis (DJ de 20.06.1986): “Sabe-se, com efeito, que em mais de um caso concreto sucedeu que juízes federais, ou juízes do trabalho, negassem a referida imunidade [aos Estados estrangeiros] por não encontrá-la prescrita nas Convenções de Viena de 1961 e 1963, nem em qualquer outro tópico do nosso direito escrito. As Convenções, efetivamente, ver-saram imunidades e outros privilégios do pessoal diplomático e do pessoal consu-

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lar. Aos Estados pactuantes — entre os quais o Brasil — não pareceu necessário lançar no texto daquelas avenças a expressão escrita de uma norma costumeira sólida, incontrovertida, plurissecular e óbvia como a que poupa todo Estado sobe-rano de uma submissão involuntária ao juízo doméstico de qualquer de seus pa-res.” Em 22.10.1987, este Plenário apreciou a questão da imunidade de juris-dição em causa na qual um cônsul da Polônia havia provocado acidente de trânsito conduzindo veículo de propriedade do Consulado daquele País (Apelação Cível 9.701, rel. Min. Néri da Silveira, DJ de 04.12.1987). Reque-rida a condenação conjunta do cônsul e do Consulado à reparação do dano causado, aplicou esta Corte, mais uma vez, solução distinta para cada um dos demandados. Como o Consulado proprietário do automóvel era, obviamen-te, repartição da República da Polônia, este Supremo Tribunal reconheceu, mais uma vez, a imunidade de jurisdição do Estado estrangeiro com base na regra de costume internacional de respeito absoluto à soberania das Nações. Quanto ao cônsul responsável pelo acidente, verifi cou-se que a Convenção de Viena sobre Relações Consulares, de 1963, diferentemente da Convenção sobre Relações Diplomáticas de 1961, abria, em seu art. 43, 2, b, expressa exceção à regra de imunidade de jurisdição dos funcionários consulares, exa-tamente na hipótese de ação civil proposta por particular em decorrência de danos provocados, no território do Estado receptor, por acidente de veículo, navio ou aeronave. A ementa do julgado, da lavra do eminente Ministro José Néri da Silveira, possui o seguinte teor:”Imunidade de jurisdição. Ação de reparação de danos, por acidente de trânsito, movida contra o Consulado-Geral da Polônia e o Cônsul da Polônia. Sentença que deu pela extinção do processo, sem julgamento do mérito, reconhecendo a imunidade de jurisdi-ção. Veículo de propriedade do Consulado, mas dirigido, na ocasião do aci-dente, pelo Cônsul. Aplicação ao caso da Convenção de Viena sobre Relações Consulares, de 1963 (art. 43, § 2º, letra ‘b’) e não da Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas, de 1961. Imunidade de jurisdição, que é de acolher-se, em relação à República Popular da Polônia, de que o Consulado-Geral é uma repartição. No que respeita ao Cônsul, mesmo admitindo que o veículo automotor, envolvido no acidente de trânsito, pertença ao Consula-do-Geral da Polônia, certo era o condutor do automóvel que não goza, no caso, de imunidade de jurisdição (Convenção de Viena sobre Relações Con-sulares de 1963, art. 43, § 2º, letra ‘b’), podendo, em conseqüência, a ação movida, também, contra ele, prosseguir, para fi nal apuração de sua responsa-bilidade, ou não, no acidente, com as conseqüências de direito. Provimento, em parte, à apelação dos autores, para determinar que prossiga a ação contra o Cônsul, mantida a extinção do processo sem julgamento do mérito, relati-vamente à República Popular da Polônia (Consulado-Geral da Polônia em Curitiba).” Diante desse panorama, é possível chegar, nesse momento, a uma primeira conclusão relevante no sentido de que, mesmo quando pairava no Supre-

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mo Tribunal Federal, sobranceira, a teoria da imunidade absoluta dos Estados Estrangeiros, havia a plena consciência de que co-existiam duas ordens distintas de imunidade jurisdicional: uma que, positivada, era fruto de normas escritas constantes de tratados internacionais solenemente celebrados pelo Brasil, e outra, revelada na atividade jurisprudencial, que se escorava, exclusivamente, em nor-ma de direito consuetudinário internacional. Das primeiras, gozavam, tão-so-mente, os agentes diplomáticos e consulares. Da segunda, aproveitavam os Estados estrangeiros. 4. Veio, então, já sob a ordem constitucional vigente, o célebre julgamento da Apelação Cível 9.696, de relatoria do eminente Ministro Sydney Sanches. Tratava-se, mais uma vez, de demanda trabalhista, ajuizada por viúva de ex-empregado da Representação Comercial da extinta República Democrática Alemã que, depois, passou a ser o Escritório Comercial da Embai-xada daquele País no Brasil. Na sessão de julgamento de 23.02.1989, o emi-nente relator, Ministro Sydney Sanches, registrou inicialmente em seu voto as alterações introduzidas pela Constituição de 1988 nas competências origi-nária e recursal do Supremo Tribunal Federal. Concentrou-se S. Exa., em seguida, na interpretação do texto no art. 114 da Carta Magna, concluindo, em primeiro lugar, que o novel dispositivo constitucional havia redefi nido a competência da Justiça do Trabalho, que passava a julgar as reclamações tra-balhistas envolvendo os entes de direito público externo, como os Estados estrangeiros. Asseverou aquele notável juiz que o art. 114 da Constituição Federal, indo mais além, representou, no que diz respeito às causas de natureza trabalhista, a própria eliminação da imunidade dos estados estrangeiros à juris-dição brasileira, por prever que “os dissídios individuais e coletivos entre trabalha-dores e empregadores, pode abranger, entre estes últimos, os entes de direito públi-co externo”.Não obstante o brilhantismo e o seu valor pela percepção das profundas mudanças trazidas pela nova Constituição, o voto do eminente relator trazia duas incongruências que não podiam subsistir. A primeira delas consubstanciava-se na observação de que a imunidade dos Estados estrangei-ros, antes do surgimento do referido art. 114 da Carta de 1988, estava calca-da na Convenção de Viena. Ora, como já visto, esta Suprema Corte, em mais de uma oportunidade, já havia constatado que o privilégio sob exame pos-suía, quanto ao seu fundamento, duas diferentes vertentes: a consuetudiná-ria, do Direito das Gentes, voltada para os Estados estrangeiros e a legal, fruto de tratado internacional celebrado pelo Brasil, para o pessoal diplomá-tico e consular. A segunda impropriedade estava na interpretação de que o afas-tamento da imunidade jurisdicional dos Estados estrangeiros estaria restrito, por força do disposto no art. 114, às causas de natureza trabalhista. Como será visto adiante, não foi o deslocamento de competência contido no art. 114 que provocou a relativização da imunidade de jurisdição das Nações estrangei-ras. Abrangeu essa inovação, além dos atos de contratação de pessoal, todas as demais interações dos Estados estrangeiros, no âmbito das relações pri-

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vadas, ocorridas no território brasileiro. Prosseguindo no exame do julga-mento da Apelação Cível 9.696, naquela mesma assentada de 23.02.1989, pediu vista o eminente Ministro Francisco Rezek, que proferiu seu voto da sessão plenária de 31.05.1989. Em sua valiosa manifestação, debruçou-se S. Exa. na exegese do caput do art. 114 da Constituição Federal, que, naquela época, ainda contava com a sua redação original, nos seguintes termos:”Compete à Justiça do Trabalho conciliar e julgar os dissídios indivi-duais e coletivos entre trabalhadores e empregadores, abrangidos os entes de direito público externo e da administração pública direta e indireta dos Mu-nicípios, do Distrito Federal, dos Estados e da União, e, na forma da lei, outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho, bem como os litígios que tenham origem no cumprimento de suas próprias sentenças, inclusive coletivas.”Aproveito, nesse ponto, para ressaltar que as modifi cações promo-vidas pela Emenda Constitucional 45/2004 no texto do art. 114 da Carta Magna em nada interferem na questão ora debatida, uma vez que a referência feita aos entes de direito público externo, agora situada em seu inciso I, per-maneceu inalterada. Essa é a sua atual redação:”Art. 114. Compete à Justiça do Trabalho processar e julgar: I — as ações oriundas da relação de trabalho, abrangidos os entes de direito público externo e da administração pública direta e indireta da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municí-pios;” O eminente Ministro Francisco Rezek, em seu voto, asseverou que a norma do art. 114 da Constituição de 1988 tratou, tão-somente, de uma questão de competência. Esclareceu S. Exa., que a fi nalidade desse comando foi deixar claro, de uma vez por todas, que o litígio trabalhista que tivesse pessoa de direito públi-co externo como empregadora seria “afeto, desde a sua origem, à Justiça do Traba-lho”. Impunha-se tal medida, conforme rememorou o eminente Ministro Francisco Rezek, pelo fato de que a Constituição de 1967, alterada pela EC 1/69, previa, em seu art. 125, II, que competia à primeira instância da Justiça Federal comum o julgamento das causas entre Estado estrangeiro ou organis-mo internacional e municípios ou pessoa domiciliada ou residente no Brasil. Noticiou S. Exa. que esta Casa, ainda naquela ordem constitucional pretéri-ta, ao apreciar confl itos de jurisdição entre órgãos da Justiça do Trabalho e da Justiça Federal, acabou por atribuir a esta última a exclusiva competência para o julgamento das causas envolvendo os entes de direito público externo, mesmo que tivessem natureza trabalhista. Essas foram as suas lúcidas palavras a respeito do tema, verbis:”Tudo quanto há de novo, no texto de 1988, é um deslocamento da competência: o que até então estava afeto à Justiça Federal co-mum passou ao domínio da Justiça do Trabalho. Não há mais, no art. 114, que uma regra relacionada com o foro hábil para dar deslinde a esse gênero de demanda, sem embargo da eventual subsistência de normas que possam ex-cluir a jurisdicionabilidade do demandado, quando seja este pessoa jurídica de direito público externo. Tenho a informação — e apreciaria trazê-la à mesa

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—de que foi intenção de alguns membros da Assembléia Nacional Consti-tuinte fazer do art. 114 não só uma regra redeterminante de competência, mas uma regra votada a deixar claro que esse tipo de demanda é agora possí-vel entre nós. Se foi essa a intenção de membros ilustres da Assembléia Na-cional Constituinte, não foi o que afi nal deixaram expresso no texto. O art. 114, por quanto sua redação exprime, diz apenas da competência da Justiça do Trabalho, e não exclui a possibilidade de que essa competência resulte acaso inexercitada, se concluímos que a norma consagratória da imunidade prossegue valendo entre nós.”O eminente Ministro Aldir Passarinho, ao acompanhar integralmente a linha de raciocínio desenvolvida pelo eminente Ministro Francisco Rezek a respeito da melhor interpretação a ser dada ao art. 114 da Constituição Federal, assim asseverou, verbis: No tocante à ques-tão posta pelo Sr. Ministro Relator parece-me que não houve nenhuma alte-ração sobre o tema, na nova Constituição. O art. 114 da nova Carta Política realmente fi xou a competência da Justiça do Trabalho para as demandas de natureza trabalhista quando houvesse o interesse de Estado estrangeiro, mas é de ver que ali se encontra fi xada apenas regra de competência, podendo-se, assim, até admitir que possa ela estar prevendo a hipótese de o Estado estran-geiro concordar em submeter-se à jurisdição brasileira. Já anteriormente, na Constituição de 1967, o que foi repetido na E.C. nº 1/69, com a criação da Justiça Federal, se encontrava explicitado que cabia aos juízes federais proces-sar e julgar, em primeira instância, ‘as causas entre Estado estrangeiro ou or-ganismo internacional e municípios ou pessoa domiciliada ou residente no Brasil’, no que se incluía, deste modo, a competência para julgamento das questões trabalhistas, mas sem que, com isso, se pudesse entender como regra de submissão automática do Estado estrangeiro à jurisdição brasileira.” Todas essas considerações, ao fi nal adotadas pelo próprio relator do feito, Minis-tro Sydney Sanches, demonstraram, de forma cabal, que o art. 114 da Constituição Federal não desafi ou qualquer princípio de direito internacio-nal público nem provocou qualquer alteração no campo da imunidade ju-risdicional dos Estados estrangeiros. Como visto, já havia, na Carta Consti-tucional anterior, norma, materialmente mais abrangente, dispondo sobre a competência para julgar as causas em que presente num dos pólos processuais o Estado estrangeiro ou o organismo internacional (EC 1/69, art. 125, II). Nem por isso se entendeu que esses entes de direito público externo deveriam ser automaticamente submetidos à jurisdição brasileira. Muito pelo contrário, os Es-tados estrangeiros obtiveram nesta Corte, sistematicamente, o reconhecimento de suas imunidades, invocadas com base na norma costumeira de Direito Interna-cional acima explicitada. A novidade trazida pelo art. 114 da Constituição de 1988, embora de grande valor, apenas defi niu que mesmo que o empregador seja ente de direito público externo, o julgamento da causa trabalhista, caso transpos-to o óbice da imunidade jurisdicional, ainda assim permanecerá no âmbito da

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Justiça do Trabalho. Em outras palavras, a Constituição de 1988, invertendo a ordem de valores constante da Carta anterior, passou a dar maior importân-cia à matéria tratada do que à pessoa envolvida no litígio, pondo em desta-que, portanto, a competência ratione materiae em detrimento da competên-cia ratione personae. Fixadas essas premissas, passou o eminente Ministro Francisco Rezek, em seu voto-vista, a expor o que verdadeiramente havia ocorrido para que fosse possível ao Supremo Tribunal Federal, numa postura inovadora, afastar, em certos casos, a imunidade de jurisdição dos Estados estrangeiros. Demonstrou S. Exa. que a mudança havia se dado no plano do direito internacional, e não em nossa ordem jurídica interna. Noticiou aquele julgador que, a partir da década de setenta, o princípio da imunida-de absoluta de jurisdição foi sendo confrontado, em vários países do mun-do, pela percepção de que a imunidade deveria comportar temperamentos. Ganhava força, naquela época, a consciência de que os Países, além de atuarem no território de outras Nações por meio de atividades administrativas típicas de representação, os chamados atos de império, relacionavam-se muitas vezes com o meio local sem o caráter de ofi cialidade. Construiu-se, dessa forma, o entendi-mento de que os atos praticados nessas circunstâncias pelas missões diplomáticas e consulares dos Estados estrangeiros, os chamados de atos de mera gestão, não deve-riam servir de fundamento para o exercício da imunidade de jurisdição. O Mi-nistro Francisco Rezek trouxe, em seu voto, exemplos de convenções e leis internacionais da Europa e dos Estados Unidos que, ao tornarem relativa a imunidade dos Estados estrangeiros à jurisdição doméstica, afastaram-na, por exemplo, nas causas em que discutidos contratos de trabalho fi rmados com cidadãos locais e indenizações decorrentes de responsabilidade civil. Es-tava demonstrado, assim, que não havia mais como invocar regra sólida de direito consuetudinário internacional para se atribuir imunidade jurisdicio-nal absoluta ao Estado estrangeiro. E como as bases normativas escritas exis-tentes sobre imunidade, as Convenções de Viena, conforme já esclarecido, somente se aplicavam aos agentes diplomáticos e consulares, estavam os Paí-ses, a partir daquele momento, sujeitos à jurisdição brasileira toda vez que em discussão atos por eles aqui praticados no âmbito das relações de direito privado. Por último, mas não menos importante, afastou o eminente Ministro Francisco Rezek, em seu voto, argumento que, se levado às últimas conseqüências, fulminaria do universo do Direito Internacional Público o próprio instituto da imunidade de jurisdição. Trata-se da alegação de que o reconhecimento da imu-nidade jurisdicional de um ente de direito público externo seria incompatível com a garantia constitucional da inafastabilidade da apreciação, pelo Poder Judiciá-rio, de lesão ou ameaça a direito. Essa garantia, hoje insculpida no art. 5º, XXXV, da atual Constituição Federal e que já esteve presente nas Constitui-ções de 1946 (art. 141, § 4º), de 1967 (art. 150, § 4º) e de 1969 (art. 153, § 4º), surgiu, conforme demonstra José Cretella Júnior, como uma reação dos

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constituintes de 1946 “à tendência de certa legislação do regime da Consti-tuição de 1937, que excluía de apreciação judicial as providências nela consa-gradas”, tudo em nome do interesse público. (Comentários à Constituição Brasileira de 1988. Rio de Janeiro. Forense Universitária, 3ª ed., 1997, vol. I, p. 434.) Essa não é, obviamente, a fi nalidade das imunidades de jurisdição e de execução inseridas no contexto das relações de coexistência e de cooperação entre os Países e entre estes e as organizações internacionais de que se fazem membros. É preciso ter em conta que o Poder Judiciário de um País é parcela indissociável do próprio Estado e está, com este, sujeito a todo o regime de normas que formam o Direito Internacional Público. Se o disposto no art. 5º, XXXV, da Constitui-ção, fosse entendido como um direito absoluto, então todas as convenções de imunidade jurisdicional fi rmadas, pelo Brasil, com as pessoas de direito pú-blico internacional estariam automaticamente revogadas e denunciadas, in-clusive aquelas que possibilitam as atividades diplomáticas e consulares em nosso País. Creio não ser essa a melhor exegese da referida garantia funda-mental. O eminente Ministro Francisco Rezek, sobre essa questão, assim ponderou, verbis:”Já se viu insinuar, neste Plenário mesmo, a tese de que, não obstante o que prescreva o direito internacional público, a imunidade teria desaparecido por força da regra constitucional onde se vê que a lei não pode excluir da apreciação do Judiciário lesão ou ameaça a direito. Essa regra não é nova — ela está na Carta há muitos anos —, nem é exato que o Supremo tenha sido fi el à imunidade por não ter vindo à mesa o preceito constitucio-nal. Em pelo menos dois casos — na Primeira Turma o RE 104.262, sob a relatoria do Presidente Rafael Mayer, em 1985, e neste Plenário a célebre Ação Cível Originária 298, que opôs a República Árabe da Síria à República Árabe do Egito — aventou-se a norma constitucional que diz da generalida-de do controle judiciário. E se se confi rmou, então, a tese de que a imunida-de deve operar em prol do Estado estrangeiro, foi por haver-se convencido a Casa, com acerto, de que quando o constituinte brasileiro promete a prestação jurisdicional a todos, ele o faz sobre a presunção de que a parte demandada é jurisdicionável.”Acolhidos, por unanimidade, todos os fundamentos do voto do eminente Ministro Francisco Rezek, afastou o Supremo Tribunal Fede-ral, pela primeira vez, a imunidade de um Estado estrangeiro que a ela não havia renunciado, permitindo, no caso, o prosseguimento da ação traba-lhista ajuizada contra a Embaixada da República Democrática Alemã. To-davia, não foi, como visto, a regra de reajuste de competência contida no art. 114 da Constituição Federal que provocou essa mudança, mas sim a consta-tação de que o único fundamento jurídico que sustentava a imunidade ab-soluta dos Estados estrangeiros, além de não estar presente em norma escri-ta, situava-se em regra consuetudinária há muito superada por convenções e leis internacionais. Em duas outras oportunidades, essa relevante constru-ção jurisprudencial foi confi rmada nesta Suprema Corte no âmbito de seus

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órgãos fracionários. Na Primeira Turma, por meio do julgamento do AI 139.671-AgR, DJ de 29.03.1996. Na Segunda Turma, com o julgamento do RE 222.368-AgR, DJ de 14.02.2003. Ambos os feitos tiveram como relator o eminente Ministro Celso de Mello e trataram, especifi camente, do afasta-mento da imunidade de jurisdição dos Estados Estrangeiros em litígios traba-lhistas. Extraio, do primeiro julgado, a seguinte passagem do voto do emi-nente relator, Ministro Celso de Mello, verbis: “Esta Suprema Corte, ao acentuar o caráter meramente relativo da imunidade de jurisdição em de-terminadas questões, tem afastado a incidência dessa extraordinária prerro-gativa institucional pertinente às soberanias estatais naqueles casos que se refi ram (a) a reclamações trabalhistas, (b) a processos de indenização civil por danos ou, ainda, (c) a outros litígios decorrentes de situações ordinárias em que o Estado estrangeiro pratique atos de comércio ou, agindo como um simples particular, atue more privatorum (RTJ 133/159, Rel. Min. Sydney Sanches). É preciso ter presente, neste ponto, que a imunidade de jurisdição do Estado estrangeiro — de origem consuetudinária, historica-mente associada à prática internacional da comitas gentium — não resulta do texto da Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas, eis que esse tra-tado multilateral, subscrito com a fi nalidade de garantir o efi caz desempenho das funções de representação dos Estados pelas Missões diplomáticas, desti-na-se a conferir prerrogativas, como as imunidades de caráter pessoal ou aquelas de natureza real, vocacionadas à proteção do agente diplomático no desempenho de suas atividades (art. 31, p. ex.) ou à preservação da inviolabi-lidade dos locais da Missão (art. 22, v.g.).”É possível, mais uma vez, extrair relevante conclusão para o deslinde da presente causa. Nesses três últimos precedentes citados, consagradores da teoria da imunidade jurisdicional rela-tiva dos Estados estrangeiros, houve grande preocupação em demonstrar que um dos principais fatores que possibilitaram, em certos casos, o afastamento da imunidade das Nações estrangeiras foi, justamente, a inexistência de pre-visão dessa prerrogativa em acordos ou tratados internacionais celebrados pelo Brasil. Além disso, o novo entendimento fi rmado em nada interferiu na autoridade das normas de imunidade contidas nas Convenções de Viena so-bre Relações Diplomáticas e Consulares de 1961 e 1963, das quais o Brasil é signatário, que seguem vigendo, normalmente, até os dias atuais. Em suma, por maiores que tenham sido as mudanças promovidas por esta Corte a par-tir do julgamento da Apelação Cível 9.696, nada foi alterado com relação ao respeito que deve o Estado brasileiro a todos os acordos e tratados internacio-nais por ele regularmente celebrados. 5. Conforme visto, toda a evolução do tema da imunidade jurisdicional no Supremo Tribunal Federal alcançou, especifi camente, os Estados estrangeiros, que deixaram de ter, em seu favor, norma consuetudinária internacional de imunidade absoluta fundada no princípio da igualdade entre as soberanias estatais. É preciso que se diga,

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categoricamente, que em nenhuma passagem de qualquer dos relevantes precedentes anteriormente citados foi abordada a questão da imunidade jurisdicional das organizações internacionais. Não foram poucos os pro-nunciamentos judiciais que encontrei, de todas as instâncias judiciárias, que, invocando o precedente fi rmado na Apelação Cível 9.696, declararam, equivocadamente, ter esta Suprema Corte enfrentado a questão da imuni-dade dando aos Estados estrangeiros e aos organismos internacionais idên-tica solução. Na verdade, a construção jurisprudencial que resultou na rela-tivização da imunidade de jurisdição dos Estados estrangeiros mostra-se de todo inaplicável às organizações internacionais, que são pessoas de direito público internacional dotadas de características completamente distintas dos Estados que as formam. Não se coaduna com os organismos internacio-nais, por exemplo, a noção de soberania, elemento essencial ao conceito de Estado. Sua atuação, poderes, prerrogativas e limites são defi nidos, em trata-do constitutivo, pelos próprios Estados-membros, que os criam com a fi nali-dade de alcançar determinados interesses comuns. Também não cabe falar, no que diz respeito às organizações internacionais, na prática de atos de império, porque igualmente inadequadas, quanto a elas, as ideias de supremacia e de von-tade estatal. Além disso, as organizações internacionais não possuem territó-rio próprio. Sempre atuarão, portanto, nos domínios territoriais dos Estados. No tocante à imunidade de jurisdição das organizações intergovernamentais, sua origem e fi nalidade, como não poderia ser diferente, são igualmente di-versas daquela usufruída pelos Países. Enquanto estes a têm, ainda que de forma abrandada, por força de direito consuetudinário internacional, os or-ganismos interestatais a recebem por expressa e formal vontade dos Estados-membros que os constituem. É preciso fi car claro que a imunidade de juris-dição não é um atributo inerente à condição de organização internacional. A regra é, portanto, que elas não as tenha. Esses entes de direito público externo somente a gozarão, perante o Estado brasileiro, se existente norma específi ca nesse sentido, ou seja, tratados constitutivos e acordos de sede solenemente celebrados pelo Brasil nos quais estejam defi nidos os privilé-gios e imunidades que terão determinada organização internacional e seu pessoal no âmbito jurisdicional do Estado receptor. Caso contrário, não haverá qualquer distinção, para efeito de exercício da jurisdição, entre essas entidades de direito público externo e as demais pessoas jurídicas de direito interno. Aliás, esta Casa já enfrentou caso no qual a verifi cação da existência de acordo internacional, perfeito e acabado, mostrou-se determinante para o reconhecimento da imunidade jurisdicional de determinado organismo in-ternacional do qual o Governo Brasileiro havia se tornado membro. Assim ocorreu no RE 67.544, de relatoria do eminente Ministro Luiz Gallotti, acórdão publicado em 02.09.1970, no qual uma ex-funcionária brasileira do Comitê Intergovernamental para Migrações Européias — CIME buscou dar

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prosseguimento à reclamação que havia proposto perante a Justiça do Traba-lho contra aquela referida entidade. Verifi cou-se, naquele caso, que embora o tratado constitutivo da referida organização previsse, em seu favor, a conces-são de privilégios e imunidades necessários para o exercício independente de suas funções, exigia aquele documento a celebração de um novo acordo, nes-se sentido, entre o próprio organismo citado e os governos interessados. Constatou-se, com base em pareceres elaborados pelo Ministério das Rela-ções Exteriores, que esse específi co acordo com o Brasil ainda estaria em fase de elaboração, motivo pelo qual a imunidade jurisdicional não poderia ser reconhecida. Tendo prevalecido essa posição, ajuizou o recorrido, o Comitê Intergovernamental para Migrações Européias — CIME, a Ação Rescisória 909, de relatoria do eminente Ministro Carlos Th ompson Flores, acórdão publicado em 12.06.1974. Nesse processo, demonstrou o relator que embora o referido acordo garantidor da imunidade de jurisdição fosse inexistente no momento do ajuizamento da reclamação trabalhista, já estava regularmente celebrado, aprovado e promulgado à época em que julgado o recurso extraor-dinário. O acórdão rescindendo havia sido prolatado, portanto, em afronta a literal disposição de lei, motivo pelo qual o pedido foi julgado procedente. Esta é a ementa do julgado:”Ação Rescisória fundada no art. 798, I, c, e II, do Código de Processo Civil, contra acórdão do Supremo Tribunal Federal que admitiu reclamação trabalhista, formulada contra Comitê Intergoverna-mental para Migrações Européias, ao qual não se reconheceu imunidade de jurisdição, por depender de acordo com o Governo do Brasil. II. Procedência com base no primeiro fundamento, porque o acordo em questão, cuja falta admitiu o acórdão, já vigorava então.”Já na Apelação Cível 9.703, de relatoria do eminente Ministro Djaci Falcão e julgada em 28.09.1988 (DJ de 27.10.1989), esta Corte reconheceu, por unanimidade, a imunidade da Or-ganização de Aviação Civil Internacional à jurisdição da Justiça do Trabalho brasileira. Verifi cou-se, naquela oportunidade, ser aquele organismo uma das agências especializadas do Sistema das Nações Unidas, da qual o Brasil é par-te. Demonstrou o eminente relator, Ministro Djaci Falcão, que o Brasil, ao assinar o Acordo Básico de Assistência com a ONU e suas Agências Especia-lizadas, promulgado pelo Decreto 59.298/66, havia se comprometido a apli-car àquela organização a Convenção sobre Privilégios e Imunidades das Agências Especializadas, promulgada pelo Decreto 52.288/63, que reza, em seu art. 3º, 4ª Seção, que “as agências especializada, seus bens e ativo, onde estiverem localizados e qualquer que seja o seu depositário, gozarão de imu-nidade de todas as formas de processo legal, exceto na medida em que, em qualquer caso determinado houverem expressamente renunciado à sua imu-nidade. Fica entendido, porém, que nenhuma renúncia de imunidade se es-tenderá a qualquer medida de execução”.Vê-se, portanto, que o exame já realizado pelo Supremo Tribunal Federal no que concerne à imunidade de

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jurisdição dos organismos internacionais não guarda qualquer relação com a matéria da imunidade jurisdicional dos Estados estrangeiros, pois, naque-la primeira hipótese, o que prevalece não é a verifi cação da prática de atos de império ou de gestão e da possibilidade de afastamento de norma con-suetudinária internacional, mas sim a averiguação da existência de tratados regularmente celebrados por meio dos quais o Brasil tenha se comprometi-do, no plano internacional, a garantir a imunidade de jurisdição à organi-zação de que se tornou participante. O eminente Ministro Francisco Rezek traz em uma de suas obras doutrinárias a seguinte advertência a respeito da singularidade que emerge do tema da imunidade das organizações interna-cionais, verbis: “A organização não goza de privilégios apenas no seu lugar de sede. Ela tem o direito de fazer-se representar tanto no território de Estados-membros quanto no de Estados estranhos ao seu quadro, mas que com ela pretendam relacionar-se desse modo. Seus representantes exteriores, em am-bos os casos, serão integrantes da secretaria — vale dizer, do quadro de fun-cionários neutros — e gozarão de privilégios semelhantes àqueles do corpo diplomático de qualquer soberania representada no exterior. Por igual, suas instalações e bens móveis terão a inviolabilidade usual em direito diplomáti-co. Problema distinto deste dos privilégios estabelecidos pelo direito diplo-mático (basicamente a Convenção de Viena de 1961) é o da imunidade da própria organização internacional à jurisdição brasileira, em feito de natureza trabalhista ou outro. A jurisprudência assentada no Supremo Tribunal Fede-ral desde 1989 (...) somente diz respeito aos Estados estrangeiros, cuja imu-nidade, no passado, entendia-se resultante de ‘velha e sólida regra costumei-ra’, na ocasião declarada insubsistente. No caso das organizações internacionais, essa imunidade não resultou essencialmente do costume, mas de tratados que a determinam de modo expresso: o próprio tratado coletivo institucional, de que o Brasil seja parte, ou um tratado bilateral específi co. A imunidade da organização, em tais circunstâncias, não pode ser ignorada, mesmo no processo de conhecimen-to, e ainda que a demanda resulte de uma relação regida pelo direito material brasileiro. É possível que essa situação mude e que um dia, em nome da coerência e de certos interesses sociais merecedores de cuidado, às organizações internacio-nais acabem por se encontrar em situação idêntica à do Estado estrangeiro ante a Justiça local. Isso reclamará, de todo modo, a revisão e a derrogação de tratados que, enquanto vigentes, devem ser cumpridos com rigor.” (Direito Internacional Público: Curso Elementar. São Paulo, Saraiva, 10ª ed., 2007, p. 255-256.) Ao proferir palestra em seminário, realizado em abril de 2002, quando ainda ocupava o cargo de Juiz da Corte Internacional de Justiça, teceu o eminente Ministro Francisco Rezek mais essas relevantes considerações a respeito da necessidade de observância às normas de direito internacional que prevejam a imunidade jurisdicional dos organismos internacionais, verbis: “É nesse sentido que não se há de dizer que existe ou que tenda a existir no Século XXI

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uma imunidade generalizada para as organizações internacionais. Mas é nesse mesmo sentido que se há de garantir que algumas delas — e o número não é grande, é bem limitado — estão estabelecidas no território nacional median-te tratados celebrados com o Brasil, da natureza do acordo de sede, e que, no caso destas, é absolutamente imperativo que se observe a regra da imunidade, tal como o tratado a consagra, querendo-a ver obedecida. (...) Não há, por força de nenhuma regra geral, privilégio algum para as organizações. Elas, sobretudo quando tenham o Brasil como Estado-parte e tenham se estabele-cido com a perfeita concordância e o desejo mesmo do Estado brasileiro em nosso território, hão de ver honrados pelo poder público, pela Justiça em particular, os termos dos respectivos compromissos. Não há falar em que é dado ao juiz ignorar esses compromissos, fazer analogias com o abandono da imunidade absoluta pelo Supremo, porque, naquele caso, o que se estava di-zendo é que uma regra costumeira não existe mais, e, neste caso, não falamos de regras costumeiras, mas de compromissos convencionais escritos e perfei-tamente precisos nos seus efeitos. Quanto ao conteúdo mesmo desses precei-tos convencionais, ele costuma ser bastante uniforme. Ou seja, são poucas — e é bom que sejam poucas — as organizações internacionais representadas no território brasileiro. Mas com elas, de um modo quase que generalizado, temos compromissos consacratórios da imunidade não só dos agentes da or-ganização em termos inspirados no direito diplomático, mas também e so-bretudo da própria organização, fi cando seus bens cobertos pela inviolabili-dade.” (A imunidade das organizações internacionais no Século XXI, in A imunidade de jurisdição e o Judiciário brasileiro. Coord. de Márcio Garcia e Antenor Pereira Madruga Filho. Brasília, Centro de Estudos de Direito Inter-nacional, 2002, p. 17 e 20.) 6. No presente processo, a Organização das Nações Unidas invocou sistematicamente, desde sua contestação à reclamação trabalhis-ta, proposta pelo recorrido na 1ª Vara do Trabalho de Cuiabá, até o presente re-curso extraordinário, o complexo de normas, decorrentes de tratados internacio-nais celebrados pelo Brasil, que lhe asseguram imunidade de jurisdição e de execução perante o Judiciário brasileiro. Invocou, em primeiro lugar, disposi-ção geral extraída da própria Carta das Nações Unidas, promulgada pelo Decreto 19.841, de 22.10.1945. O art. 105 do referido documento possui o seguinte teor:”1. A Organização gozará, no território de cada um de seus Membros, dos privilégios e imunidades necessários à realização de seus pro-pósitos. 2. Os representantes dos Membros das Nações Unidas e os funcioná-rios da Organização gozarão, igualmente, dos privilégios e imunidades neces-sários ao exercício independente de suas funções relacionadas com a Organização. 3. A Assembléia Geral poderá fazer recomendações com o fi m de determinar os pormenores da aplicação dos parágrafos 1 e 2 deste Artigo ou poderá propor aos Membros das Nações Unidas convenções nesse sentido.”Apontou, igualmente, norma presente no Acordo Básico de Assis-

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tência Técnica com a Organização das Nações Unidas, suas Agências Especia-lizadas e a Agência Internacional de Energia Atômica, promulgado pelo De-creto 59.308, de 23.09.1966. Nesse acordo, estão estabelecidos os direitos e obrigações de cada parte na execução dos projetos de cooperação. É com base nesse estatuto de direito internacional que a ONU, por intermédio do PNUD, promove a cooperação com o Brasil em empreendimentos voltados para o desenvolvimento do País. Em seu art. V, 1, a, há a expressa previsão de que o Governo celebrante deverá aplicar, com relação à Organização das Na-ções Unidas, seus bens, fundos e haveres, a Convenção sobre Privilégios e Imunidades das Nações Unidas. Finalmente, este último diploma referido, promulgado pelo Decreto 27.784, de 16.02.1950, prevê, em sua Seção 2, que “A Organização das Nações Unidas, seus bens e haveres, qualquer que seja sua sede ou o seu detentor, gozarão de imunidade de jurisdição, salvo na medida em que a Organização a ela tiver renunciado em determinado caso. Fica, todavia, entendido que a renúncia não pode compreender medidas executivas.”O professor Luiz Olavo Baptista, em parecer publicado em obra que reúne vários de seus estudos, asseverou que a Convenção sobre Privilé-gios e Imunidades das Nações Unidas “é também um instrumento de coope-ração internacional, pois objetiva garantir as Nações Unidas e seus órgãos subsidiários a necessária independência para agirem conforme seus propósi-tos institucionais, sem as pressões circunstanciais e arbitrárias de um Estado”. Afi rma aquele respeitável jurista, em conclusão, que “o PNUD não está obri-gado a se submeter a qualquer ato de jurisdição do Estado Brasileiro — cita-ções, intimações, dentre outros — que possa envolver restrições a direitos relativos a bens de sua propriedade, inclusive moedas, e é totalmente ilícito qualquer ato jurisdicional que imponha restrições ao exercício do direito de propriedade — ou seja aqueles relativos à imunidade de execução”. (Imuni-dade de Jurisdição na Execução dos Projetos de Cooperação entre o PNUD e o Governo Brasileiro, in Lições de Direito Internacional — Estudos e Pare-ceres de Luiz Olavo Baptista. Organização de Maristela Basso e Patrícia Lu-ciane de Carvalho. Curitiba, Juruá Editora, 2008, p. 309.) O acórdão recorri-do, deixando de lado todas essas normas incorporadas ao nosso ordenamento jurídico e que exprimem compromissos internacionais solenemente assumidos pelo Estado brasileiro, afastou a imunidade jurisdicional da ONU/PNUD asseveran-do ter a Constituição Federal estabelecido, em seu art. 114, a competência da Justiça do Trabalho para julgar as demandas trabalhistas que envolvam os entes de direito público externo. Esse entendimento contraria, em primeiro lugar, a interpretação que esta Suprema Corte deu, por unanimidade, ao art. 114 da Constituição Federal, por ocasião do julgamento da Apelação Cível 9.696, de que foi relator o eminente Ministro Sydney Sanches. Como já exposto no presente voto, esta Casa constatou, naquele julgado, que o dispositivo cons-titucional ora em exame promoveu, tão-somente, uma redefi nição de compe-

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tência que, na ordem constitucional pretérita, era atribuída a outro órgão do Poder Judiciário brasileiro, a Justiça Federal comum. Conforme esclareceu, naquela ocasião, o eminente Ministro Francisco Rezek, esse comando “não exclui a possibilidade de que essa competência resulte acaso inexercitada”, não tendo, assim, provocado qualquer alteração no campo da imunidade de jurisdição das organizações internacionais. Além disso, a interpretação im-pugnada do art. 114 da Carta Magna, dada pelo Tribunal Superior do Traba-lho, incorre em fl agrante equívoco técnico, pois confunde os institutos pro-cessuais da competência e da jurisdição. Enquanto esta se defi ne como uma das mais relevantes atribuições do Estado, qual seja, a aplicação do Direito, aquela se constitui numa repartição da função jurisdicional entre os juízes e Tribunais que formam o Poder Judiciário. Nesse sentido, assim discorreu, com precisão, o professor Luiz Olavo Baptista sobre o posicionamento do art. 114 com relação a esses conceitos, verbis:”A regra do art. 114 da Consti-tuição é de competência judiciária. Ela outorga à Justiça do Trabalho a com-petência para apreciar e julgar dissídios trabalhistas entre empregadores e empregados, ‘abrangidos os entes de direito público externo’, o que compre-ende a competência ratione materiae, para resolver essas questões assim como a ratione personae. Mas ela não é atributiva de jurisdição quando esta não existe. A imunidade de jurisdição é disciplinada por normas internacionais e nacionais, e produz o efeito de excluir certas categorias de pessoas e bens à jurisdição de um ente soberano. Havendo imunidade, exclui-se a jurisdição daquele ente, e naturalmente, da esfera de competência atribuída aos seus diferentes órgãos judiciais. Desta forma, a citada norma da Constituição — que é claramente de distribuição ou repartição de competência — possui apenas alcance no raio de ação da jurisdição nacional. (...) A regra do art. 114 é, sem sombra de dúvida, de competência judiciária, e resulta da divisão do poder jurisdicional do Estado brasileiro. O que ela estabelece é que, nos casos de imunidade relativa, ou seja, da não aplicação da imunidade de jurisdição e de execução em relação a certos atos, bens e funcionários de outros Estados ou de Organizações Internacionais, a Justiça do Trabalho é o órgão compe-tente. Isto porque, interpretando as regras gerais de Direito Internacional Público, o Brasil, como outros países, relativizou a extensão dessa imunidade. Mas, para que a competência seja exercida, preliminarmente, deve-se consta-tar se há jurisdição do Estado sobre a pessoa. Ora, a regra da imunidade de jurisdição, repetindo, foi reconhecida pelo costume internacional. Tratados Internacionais vieram a estabelecê-la entre seus signatários. Em tese, esses Tratados seriam desnecessários, pois os costumes constituem-se em normas de Direito Internacional. Mas passaram a ser celebrados, justamente para estabelecer a imunidade e seus limites, em especial quando esta passou a ser vista como relativa. Visavam esses acordos, eliminar a possibilidade de inter-pretação restritiva da imunidade (relativizando-a) ou defi nir claramente seus

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limites.” (Imunidade de Jurisdição na Execução dos Projetos de Cooperação entre o PNUD e o Governo Brasileiro, in Lições de Direito Internacional — Estudos e Pareceres de Luiz Olavo Baptista. Organização de Maristela Basso e Patrícia Luciane de Carvalho. Curitiba, Juruá Editora, 2008, p. 304 e 306-307.) É de ser reconhecer, portanto, diante de tudo que aqui foi ex-posto, que a Justiça do Trabalho, interpretando de forma equivocada a ju-risprudência do Supremo Tribunal Federal a respeito da relativização da imunidade jurisdicional dos Estados estrangeiros e o texto do art. 114 da Constituição, tem afrontado, como parte do Estado brasileiro que é, rele-vantes acordos internacionais celebrados pelo País e que garantem a imuni-dade de jurisdição e de execução de organizações internacionais de impor-tância mundial. Trata-se de assunto da maior gravidade, pois seria ilusão pensar que essas entidades, chamando o País à sua responsabilidade inter-nacional, não reagirão de forma veemente contra tal inadimplência, em patente prejuízo ao desenvolvimento social e econômico do Brasil, em tão grande parte incentivados pela essencial cooperação técnica promovida por tais organismos. Não é demais lembrar que o Brasil tem como princípio basilar a cooperação entre os povos para o progresso da humanidade (CF, art. 4º, IX). Conforme lição de Luiz Olavo Baptista, “o Estado brasileiro deve criar as condições para a execução de atividades de cooperação internacional, ativa e passiva. Está obrigado a adotar as medidas legislativas e administrati-vas necessárias para atender a esse objetivo constitucional, e seus órgãos de-vem agir de modo a facilitar a execução dessas atividades”. (Imunidade de Jurisdição na Execução dos Projetos de Cooperação entre o PNUD e o Go-verno Brasileiro, in Lições de Direito Internacional — Estudos e Pareceres de Luiz Olavo Baptista. Organização de Maristela Basso e Patrícia Luciane de Carvalho. Curitiba, Juruá Editora, 2008, p. 294.) Acrescente-se, a tudo isso, que as contratações temporárias de pessoas dotadas de determinada expertise (consultores), realizadas pelo PNUD no âmbito dos projetos de cooperação técnica desenvolvidos no Brasil, tal como a que foi fi rmada com o ora recor-rido, estão inseridas em realidade completamente distinta daquela lamenta-velmente vivida pelos ex-empregados brasileiros de embaixadas e consulados que, após anos de trabalho como motoristas, secretários, jardineiros ou cozi-nheiros, eram sumariamente dispensados sem o mínimo respeito às garantias trabalhistas locais. Os referidos contratos temporários, fi rmados de acordo com as normas de pessoal estabelecidas nos regulamentos internos do PNUD e nos documentos de cooperação, prevêem, além da remuneração, diárias de viagem, licença anual, licença em caso de doença, licença-maternidade e ou-tros benefícios complementares. Além disso, os contratos fi rmados por inter-médio do PNUD atendem ao que disposto na Seção 29, a, da Convenção sobre Privilégios e Imunidades das Nações Unidas, que determina, à ONU, o estabelecimento de processos adequados de solução para “as controvérsias

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em matéria de contratos ou outras de direito privado nas quais a Organização seja parte”. Prevêem, nesse sentido, que qualquer disputa relacionada à sua interpretação ou à sua execução que não puder ser dirimida de forma amigá-vel será resolvida por corpo de arbitragem composto por um representante da agência nacional executora e outro do próprio PNUD. Vê-se, portanto, que os técnicos contratados nessas circunstâncias não estão desprovidos, em razão da imunidade de jurisdição gozada pela ONU, de mecanismo de solução de controvérsias eventualmente surgidas durante a vigência do contrato de pres-tação de serviço celebrado. Em último caso, numa hipótese extremada em que o PNUD viesse a dar as costas a uma eventual reivindicação, estaria ele mesmo descumprindo a referida Seção 29 da Convenção sobre Privilégios e Imunidades das Nações Unidas, abrindo aí a possibilidade de o Governo brasileiro reclamar internacionalmente desse fato perante a Organização das Nações Unidas. Registro, por fi m, que esse regime de contratação de pessoal especializado é tão alheio ao ordenamento jurídico brasileiro que nos contra-cheques do recorrido, juntados às fl s. 87-92, não há sequer os descontos usuais de imposto de renda e de previdência ofi cial. A Justiça Trabalhista brasileira, ao deixar de reconhecer, nas reclamações trabalhistas ajuizadas por ex-contratados da ONU/PNUD, a imunidade de jurisdição dessa organiza-ção internacional benefi ciada por acordos e convenções regularmente assina-dos pelo Governo brasileiro, presta enorme desserviço ao País, pondo em risco a continuidade da cooperação técnica recebida desse ente de direito público internacional. 7. Assim, o acórdão recorrido, ao dar interpretação extravagante à regra de competência insculpida no art. 114 da Constituição Federal, declarando-o abolitivo de toda e qualquer norma de imunidade de jurisdição porventura existente em matéria trabalhista, violou, frontalmen-te, o próprio texto desse mesmo dispositivo constitucional. Desrespeitou o acórdão contestado, igualmente, o art. 5º, § 2º, da Carta de 1988, pois ig-norou o teor de tratados internacionais celebrados pelo País e que garantem a imunidade de jurisdição e de execução da recorrente. Por essa razão, co-nheço em parte, pelo art. 102, III, a, da Carta Magna, dos recursos extraor-dinários interpostos pela ONU/PNUD e pela União, e, nessa parte, a eles dou provimento para, reconhecendo a violação, nos termos no art. 485, V, do CPC, à literal disposição contida na Seção 2 da Convenção sobre Privilégios e Imunidades das Nações Unidas, julgar procedente o pedido rescisório for-mulado, fi cando desconstituído o acórdão do Tribunal Regional do Trabalho da 23ª Região (fl s. 202-211) e reconhecida a imunidade de jurisdição e de execução da ONU/PNUD. Condeno o recorrido ao pagamento de custas e honorários advocatícios, que fi xo em R$ 1.000,00 (hum mil reais).*

* JULGAMENTO PENDENTE DE CONCLUSÃO.

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CASO 1: AG 1118724/RS (STJ)

SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

DIREITO PROCESSUAL CIVIL E DIREITO INTERNACIONAL PÚBLICO. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MATERIAIS E COMPENSAÇÃO POR DANOS MORAIS.

TURISTA BRASILEIRO. INGRESSO EM PAÍS ESTRANGEIRO. DEPORTAÇÃO.

IMUNIDADE DE JURISDIÇÃO. INDEFERIMENTO DE CITAÇÃO DO ESTADO ESTRANGEIRO. CONHECIMENTO DA LIDE POR OUTROS MEIOS. MANIFESTAÇÃO EXPRESSA. DIREITO À IMU-NIDADE JURISDICIONAL. OPÇÃO. MANIFESTAÇÃO EXPRESSA.

1. Contra decisão interlocutória do Juiz Federal em processo no qual seja parte o Estado estrangeiro cabe a interposição de agravo de instrumento, que deve ser protocolizado diretamente na Secretaria desta Corte ou postado no correio dentro do prazo legal, a teor dos artigos 539 e 540 combinados com os artigos 524 e 525, do CPC.

2. Uma vez reconhecida a imunidade de jurisdição do Estado estrangeiro, deve ser dada a oportunidade para que ele manifeste sua opção pelo direito à imunidade jurisdicional ou pela renúncia a essa prerrogativa.

3. A comunicação ao Estado estrangeiro não se trata da citação prevista no art. 213 do CPC, e nem mesmo de intimação, porquanto nenhum ônus decorre ao ente estrangeiro. Precedentes.

4. Em observância ao princípio da economia processual e da instrumen-talidade das formas, deve se reconhecer que nota verbal, por meio da qual o país estrangeiro informa não aceitar a jurisdição nacional, direcionada ao Ministério das Relações Exteriores e trazida por esse aos autos, cumpre a con-tento a exigência de se oportunizar ao Estado acionado sua prévia oitiva, por-quanto sufi ciente para que possa expressar e reafi rmar a sua soberania, ainda que da existência da demanda o país estrangeiro tenha tomado conhecimento por meios não formais, como pela mídia.

5. Agravo de instrumento não provido.(Ag 1118724/RS, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA

TURMA, julgado em 16/09/2010, DJe 02/03/2011)

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CASO 2: RE Nº 39 — MG (STJ)

SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

RECURSO ORDINÁRIO Nº 39 — MG (2004⁄0088522-2)RELATOR: MINISTRO JORGE SCARTEZZINIRECORRENTE: JUCELINO NÓBREGA DA LUZADVOGADO: CARLOS ALBERTO FERREIRA E OUTROSRECORRIDO: ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA

EMENTAPROCESSO CIVIL E INTERNACIONAL — RECURSO ORDI-

NÁRIO — — COMPETÊNCIA DO STJ — ESTADO ESTRANGEI-RO — PROMESSA DE RECOMPENSA — CIDADÃO BRASILEIRO — PARANORMALIDADE — AÇÃO ORDINÁRIA VISANDO AO RECEBIMENTO DA GRATIFICAÇÃO — COMPETÊNCIA CON-CORRENTE DA JUSTIÇA BRASILEIRA — IMUNIDADES DE JU-RISDIÇÃO E EXECUÇÃO — POSSIBILIDADE DE RENÚNCIA — CITAÇÃO⁄NOTIFICAÇÃO DO ESTADO RÉU — NECESSIDADE — EXTINÇÃO DO PROCESSO SEM JULGAMENTO DO MÉRITO — AFASTAMENTO — RECURSO PROVIDO.

1 — Competência ordinária deste Colegiado para o julgamento da pre-sente via recursal, porquanto integrada por “Estado estrangeiro (...), de um lado, e, do outro, (...) pessoa residente ou domiciliada no País” (art. 105, II, “c”, da CF⁄88).

2 — Recurso Ordinário interposto contra r. sentença que, concluindo pela incompetência da Justiça pátria, extinguiu, sem exame de mérito, Ação Ordinária proposta por cidadão brasileiro contra ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA — EUA, sob alegação de constituir-se em credor da promessa de recompensa publicamente efetivada pelo Estado recorrido, equivalente a US$ 25.000.000,00 (vinte e cinco milhões de dólares norte-americanos), porquanto, possuindo o dom da premonição, teria indicado o esconderijo do ex-ditador iraquiano Saddam Hussein, capturado aos 14.12.2003.

3 — Conquanto o local de constituição⁄cumprimento da obrigação uni-lateral decorrente da promessa de recompensa não sirva à determinação da competência judiciária nacional (art. 88, II, do CPC), o local em que supos-tamente praticado o fato do qual deriva a presente ação (ou seja, em que re-metidas as cartas indicativas do paradeiro do ex-ditador), é dizer, o território brasileiro, mediante a qual se busca justamente provar o adimplemento das condições impostas pelo Estado ofertante, a fi m de que lá se possa buscar a recompensa prometida, confi gura a competência das autoridades judiciárias

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pátrias (art. 88, III, do CPC), não obstante, como assinalado, em concorrên-cia à competência das autoridades jurisdicionais norte-americanas.

4 — Contudo, em hipóteses como a vertente, a jurisdição nacional não pode ser reconhecida com fulcro, exclusivamente, em regras interiores ao ordenamento jurídico pátrio; ao revés, a atividade jurisdicional também en-contra limitação externa, advinda de normas de Direito Internacional, con-substanciado aludido limite, basicamente, na designada “teoria da imunidade de jurisdição soberana” ou “doutrina da imunidade estatal à jurisdição estran-geira”.

5 — In casu, seja com fulcro na distinção entre atos de império e gestão, seja com lastro na comparação das praxes enumeradas em leis internas de di-versas Nações como excludentes do privilégio da imunidade, inviável consi-derar-se o litígio, disponente sobre o recebimento, por cidadão brasileiro, de recompensa prometida por Estado estrangeiro (EUA) enquanto participante de confl ito bélico, como afeto à jurisdição nacional. Em outros termos, na hipótese, tal manifestação unilateral de vontade não evidenciou caráter me-ramente comercial ou expressou relação rotineira entre o Estado promitente e os cidadãos brasileiros, consubstanciando, ao revés, expressão de soberania estatal, revestindo-se de ofi cialidade, sendo motivada, de forma atípica, pela defl agração de guerra entre o Estado ofertante (EUA) e Nação diversa (Ira-que), e conseqüente persecução, por aquele, de desfecho vitorioso; por outro lado, não se inclui a promessa de recompensa, despida de índole negocial, entre as exceções habitualmente aceitas pelos costumes internacionais à regra da imunidade de jurisdição, quais sejam, ações imobiliárias e sucessórias, li-des comerciais e marítimas, trabalhistas ou concernentes à responsabilidade civil extracontratual, pelo que de rigor a incidência da imunidade à jurisdição brasileira.

6 — Ademais, releva consignar a previsão, em princípio, no tocante ao Estado estrangeiro, do privilégio da imunidade à execução forçada de bens de sua propriedade, eventualmente localizados em território pátrio, não obs-tante traduzindo-se tal argumento em mera corroboração à imunidade de jurisdição já reconhecida, porquanto “o privilégio resultante da imunidade de execução não inibe a justiça brasileira de exercer jurisdição nos processos de conhecimento instaurados contra Estados estrangeiros” (STF, AgRg RE nº 222.368-4⁄PE, Rel. Ministro CELSO DE MELLO, DJU 14.02.2003).

7 — Mesmo vislumbrando-se, em tese, a incidência ao réu, Estado estran-geiro, das imunidades de jurisdição e execução a obstaculizar o exercício da atividade jurisdicional pelo Estado brasileiro, cumpre não olvidar a prerroga-tiva soberana dos Estados de renúncia a mencionados privilégios.

8 — Recurso Ordinário conhecido e provido para, reconhecendo-se a competência concorrente da autoridade judiciária brasileira, nos termos do art. 88, III, do CPC e, simultaneamente, as imunidades de jurisdição e exe-

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cução ao Estado estrangeiro, determinar o prosseguimento do feito, com a notifi cação ou citação do Estado demandado, a fi m de que exerça o direito à imunidade jurisdicional ou submeta-se voluntariamente à jurisdição pátria.

ACÓRDÃOVistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Srs. Ministros da

QUARTA TURMA do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos votos e das notas taquigráfi cas a seguir, por unanimidade, em conhecer do Recurso Ordinário e dar-lhe provimento, nos termos do voto do Sr. Minis-tro Relator, com quem votaram os Srs. Ministros BARROS MONTEIRO, CESAR ASFOR ROCHA, FERNANDO GONÇALVES e ALDIR PASSA-RINHO JÚNIOR.

Brasília, DF, 6 de outubro de 2005 (data do julgamento).

MINISTRO JORGE SCARTEZZINI, Relator

CERTIDÃO DE JULGAMENTOQUARTA TURMANúmero Registro: 2004⁄0088522-2 RO 39 ⁄ MG

Números Origem: 2004174994 200438000174994

PAUTA: 03⁄02⁄2005 JULGADO: 05⁄04⁄2005

RelatorExmo. Sr. Ministro JORGE SCARTEZZINI

Presidente da SessãoExmo. Sr. Ministro FERNANDO GONÇALVES

Subprocurador-Geral da RepúblicaExmo. Sr. Dr. FERNANDO HENRIQUE OLIVEIRA DE MACEDO

SecretáriaBela. CLAUDIA AUSTREGÉSILO DE ATHAYDE BECK

AUTUAÇÃO

RECORRENTE: JUCELINO NÓBREGA DA LUZADVOGADO: CARLOS ALBERTO FERREIRA E OUTROSRECORRIDO: ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA

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ASSUNTO: Civil — Responsabilidade Civil — Indenização

CERTIDÃO

Certifi co que a egrégia QUARTA TURMA, ao apreciar o processo em epígrafe na sessão realizada nesta data, proferiu a seguinte decisão:

O processo foi retirado de pauta por indicação do Sr. Ministro Relator.

Brasília, 05 de abril de 2005

CLAUDIA AUSTREGÉSILO DE ATHAYDE BECKSecretária

RECURSO ORDINÁRIO Nº 39 — MG (2004⁄0088522-2)RELATÓRIO

O Exmo. Sr. Ministro JORGE SCARTEZZINI (Relator): Infere-se dos autos que JUCELINO NÓBREGA DA LUZ ajuizou Ação Ordinária contra ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA — EUA, objetivando o recebimento, a título de recompensa, do importe equivalente a US$ 25.000.000,00 (vinte e cinco milhões de dólares norte-americanos), publicamente prometido pelo Estado réu, nos idos de 2003, ao informante do paradeiro do ex-ditador ira-quiano Saddam Hussein, fi nalmente capturado aos 14.12.2003 (fl s. 03⁄09).

Aduzindo prognosticar eventos futuros em sonhos premonitórios, narrou que, desde antes da defl agração do confl ito bélico entre EUA e Iraque, havia endereçado missivas a diversas autoridades norte-americanas (fl s. 11⁄15 e ver-sos: à embaixatriz dos EUA no Brasil, aos 13.09.2001 — carta com AR; ao Presidente dos EUA, George W. Bush, aos 01.10.2001 — carta sem AR; ao Presidente do Senado dos EUA, aos 24.06.2002 — carta sem AR), nas quais indicava precisamente o esconderijo de Saddam Hussein, consoante se infere dos seguintes excertos extraídos da carta remetida ao próprio Presidente dos EUA:

“Você terá duas guerras para enfrentar nos próximos anos, uma contra o Afeganistão e uma outra contra o Iraque. Mas irei dizer adiantado onde você (V. Sª.) irá encontrar Saddam Hussein, pois ele irá fugir quando as forças americanas vencerem o Iraque.

Ele estará escondido em: ‘Ad Dawr’, próximo a ‘Tikrit’ — lá você encon-trará um pôster da Arca de Noé, ele estará escondido num buraco com 1,8

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m de comprimento e 65 cm de largura, coberto com gravetos e um tapete de borracha num sítio na costa do rio Tigre. Haverá tijolos, lama (barro) e lixo para disfarçar a entrada.” (fl . 05)

Outrossim, asseverou, não obtendo quaisquer respostas às missivas e ini-ciada a guerra entre EUA e Iraque, procedeu à remessa de novas cartas, rei-terando as informações acerca do paradeiro de Saddam Hussein e, uma vez divulgada a promessa de recompensa pelo Governo norte-americano, solici-tando a percepção do respectivo numerário (fl s. 16⁄20 e versos: ao Cônsul dos EUA na cidade de São Paulo, Brasil, aos 05.06.2003 — carta com AR; ao Diretor da Polícia Federal Americana — FBI, aos 17.07.2003 — carta sem AR; novamente ao Presidente dos EUA, George W. Bush, aos 25.08.2003 — carta sem AR).

Por derradeiro, acerca de seus prognósticos, alegou ser previamente co-nhecido pelas autoridades norte-americanas, bem como brasileiras e espa-nholas, porquanto também havia previsto e fartamente relatado às mesmas o atentado terrorista de 11.09.2001 (fl s. 21⁄43 e versos: aos Ex-Presidentes dos EUA, George Bush, aos 26.09.1989, e Bill Clinton, aos 28.10.1998; ao En-carregado da Unidade de Pesquisa Pública da Organização das Nações Uni-das — ONU, Hasan Ferdous, aos 28.10.1998, 09.08.2000 e 21.05.2001; ao Embaixador da Espanha no Brasil, aos 10.09.1999; ao Ex-Presidente brasi-leiro, Fernando Henrique Cardoso, aos 03.08.2000; todas sem AR, obtendo resposta somente às enviadas ao Embaixador espanhol e aos Srs. Hasan Fer-dous e Fernando Henrique Cardoso).

O d. Juízo Federal da 5ª Vara da Seção Judiciária de Minas Gerais extin-guiu o processo sem julgamento de mérito, por extrapolar a causa os limites da jurisdição pátria, haja vista não se enquadrar a pretensão deduzida nas hipóteses de competência internacional previstas nos arts. 88 e 89 do CPC, rechaçando, ademais, com fulcro no art. 9º, caput, e § 2º, da LICC, a in-cidência, in casu, da legislação brasileira, porquanto, em se tratando de ato unilateral de vontade (promessa de recompensa), de rigor a aplicação da lei vigente no país onde constituída a obrigação, é dizer, onde residente o pro-mitente (fl s. 46⁄53):

“Entrementes, nem todo litígio pode ser aforado no Brasil e submetido à jurisdição brasileira.

Assim é que o vigorante Código de Processo Civil pátrio delimita a juris-dição, fi xando o competência da autoridade judiciária brasileira nas situações elencadas nos arts. 88 (competência concorrente) e 89 (competência exclu-siva). (...).

Pelo que se assimila, a partir das normas supratranscritas, o Réu não pode-ria ser demandado no Brasil para o fi m proposto pelo Autor. A um, porque não tem domicílio no País (sendo certo que representação diplomática não

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se confunde com agência, fi lial ou sucursal). A dois, máxime, porque os fatos que teriam dado origem à ação não ocorreram no País. (...).

Em prolepse, afaste-se o argumento de que a obrigação de pagar recom-pensa teria que ser cumprida no Brasil. Careceria de juridicidade tal adução. (...).

Pretende o Autor, com base na lei nacional, compelir o Réu a cumprir aventada obrigação. Invoca o Requerente os preceitos dos arts. 854 e 855 do vigente Código Civil brasileiro, (...).

Segundo estatui a Lei de Introdução ao Código Civil (Decreto-Lei nº 4.657⁄1942), que contém regras de Direito Internacional Privado (consti-tuindo um conjunto de normas de sobredireito), ‘para qualifi car e reger as obrigações, aplicar-se-á a lei do país em que se constituírem’ (artigo 9°, ‘ca-put’). No caso de manifestação unilateral de vontade (como promessa de recompensa), deve-se reputar constituída a obrigação no lugar em que residir o proponente, como se dessume do § 2, art. 9º⁄LICC. Portanto, descabe a invocação do Código Civil brasileiro como aplicável ao dissídio instaurado e posto em dirimência. (...).

Desarrazoadamente, cita o Demandante em sua peça de ingresso o § 3º do art. 94⁄CPC (‘Quando o réu não tiver domicílio nem residência no Brasil, a ação será proposta no foro do domicílio do autor’). Ora, aquele dispositi-vo legal trata de competência territorial, não sendo pertinente para fi rmar a jurisprudência brasileira além das hipóteses preconizadas pelos arts. 88 e 89.

Destarte, afi gura-se incognoscível, pela jurisdição brasileira, o pleito for-mulado pelo Autor.”

Irresignado, interpõe o autor o presente Recurso Ordinário (art. 105, II, “c”, da CF⁄88), sob alegação de que, por se cuidar de obrigação decorrente de manifestação unilateral de vontade (promessa de recompensa), inaplicável o art. 9º, § 2º, da LICC, referente a obrigações oriundas de contratos, regendo-se a hipótese, ao revés, pelo art. 12, caput, da LICC, vez que compete à Justi-ça brasileira julgar litígios que envolvam obrigações cujo cumprimento deva ocorrer em território nacional. Desta feita, argúi, sendo domiciliado no Brasil o credor da promessa efetuada, bem como daqui remetidas as cartas indica-tivas do paradeiro de Saddam Hussein, também no Brasil há de ser efetivado o pagamento do numerário prometido (fl s. 55⁄60).

Ausentes as contra-razões, porquanto não citado sequer o recorrido para os termos da demanda.

O d. Ministério Público Federal opina pelo não provimento do recurso (fl s. 73⁄75), em parecer ementado nos seguintes termos:

“Recurso Ordinário. Competência Internacional. Ação objetivando o re-cebimento de recompensa. Obrigação a ser cumprida no domicílio do réu, Estado estrangeiro. Não incidência das demais hipóteses legais dos arts. 88,

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90 e 94, § 3º, do CPC. Incompetência da Justiça brasileira. Improvimento do recurso.”

Após, vieram-me os autos conclusos.É o relatório.RECURSO ORDINÁRIO Nº 39 — MG (2004⁄0088522-2)VOTO

O Exmo. Sr. Ministro JORGE SCARTEZZINI (Relator): Sr. Presidente, inicialmente, destaco a competência ordinária deste Colegiado Superior para o conhecimento e julgamento da presente via recursal, com fulcro no art. 105, II, “c”, da CF⁄88, porquanto integrada por “Estado estrangeiro (...), de um lado, e, do outro, (...) pessoa residente ou domiciliada no País”.

Trata-se de Recurso Ordinário interposto contra r. sentença de fl s. 46⁄53 que, concluindo pela incompetência da Justiça pátria, extinguiu, sem exame de mérito, Ação Ordinária proposta pelo ora recorrente contra ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA — EUA, sob alegação de constituir-se em cre-dor da promessa de recompensa publicamente efetivada pelo Estado recor-rido, equivalente a US$ 25.000.000,00 (vinte e cinco milhões de dólares norte-americanos), porquanto, possuindo o dom da premonição, teria indi-cado o esconderijo do ex-ditador iraquiano Saddam Hussein, capturado aos 14.12.2003.

Como relatado, o d. Juízo a quo, ao extinguir o feito sem julgamento de mérito, embasou-se na ausência de confi guração de qualquer das hipóteses determinantes da competência internacional das autoridades judiciárias bra-sileiras, preconizadas pelos arts. 88 (competência concorrente) e 89 (compe-tência exclusiva) do CPC, rechaçando, ademais, com fulcro no art. 9º, caput, e § 2º, da LICC, a incidência da legislação material pátria, porquanto, em se tratando de ato unilateral de vontade (promessa de recompensa), de rigor a aplicação da lei vigente no país onde constituída a obrigação, é dizer, onde residente o promitente.

O autor, na razões deste Recurso Ordinário, alegou a inaplicabilidade do art. 9º, § 2º, da LICC, referente a obrigações oriundas de contratos, por-quanto, em se cuidando de obrigação decorrente de declaração unilateral de vontade (promessa de recompensa), rege-se a hipótese pelo art. 12, caput, da LICC, vez que compete à Justiça brasileira julgar litígios que envolvam obrigações cujo cumprimento deva ocorrer em território nacional. Destarte, aduziu que, sendo domiciliado no Brasil o credor da promessa efetuada, bem como daqui remetidas as cartas indicativas do paradeiro de Saddam Hussein, também no Brasil há de ser efetivado o pagamento do numerário prometido.

De início, ao correto deslinde da questão perfaz-se imprescindível digres-sionar acerca dos caracteres da promessa de recompensa, instituto equiva-

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lente, em linhas amplas, à declaração unilateral de vontade, manifestada em circunstâncias legalmente autorizadas, dirigida ao público em geral e, por-tanto, absolutamente independente do consentimento de eventual credor (a publicidade da declaração ocupa o lugar reservado, nos contratos, à aceita-ção), mediante a qual o declarante obriga-se a gratifi car o indivíduo (não se olvidando a possibilidade de serem plúrimos os eventuais credores) que se encontrar em certa situação ou executar determinado serviço.

A propósito da concepção da declaração volitiva una como fonte de obri-gações, adotada pelas legislações de certos Estados, revela-se inarredável a transcrição dos seguintes excertos, extraídos da obra do insuperável PON-TES DE MIRANDA:

“Se existe uma lei que faz vinculativa a promessa (e quando dizemos lei não nos referimos somente à lei escrita), a relação desde logo se estabelece entre promitente e sociedade, pela lei, que é o instrumento para se realizar um dos processos adaptativos de sociedade. Se não há, como em vários países, a vinculação é nenhuma, antes da aceitação. De modo que, sem lei, a relação é direta entre promitente e promissário, mas apenas a partir da aceitação, prestação do serviço, entrega do objeto inventado etc.; com a lei, a relação é direta entre promitente e sociedade (...).

Na atualidade, a promessa de recompensa não se dirige a ‘ninguém’, mas a ‘todos’ ou, precisamente, a quem, dentre todos, preste o serviço, exercite o que se estipula, exiba o que se perdeu etc. (...). Na promessa de recompensa não há, no momento da formação da ‘obligatio’ uma coincidência entre a vontade do promitente e a do benefi ciário incerto, mas não basta isto para que se negue a coincidência entre a vontade da lei e a do declarante, porque sem a estipulação legal não nasceria do ato unilateral o vínculo. (...).

Os negócios jurídicos só podem ser unilaterais (isto é, pode não se dar neles a convergência das vontades de mais de um fi gurante) se intervém a lei, como expressão da política jurídica. Então a outra fi gura é a sociedade. (...). O instituto da declaração unilateral não é peculiar ao direito civil e só se opera quando a sociedade tem de acautelar interesses de alguém, que ainda ou já não pode fi gurar, imediata ou cientemente, no negócio bilateral. Assim na oferta de contrato, quer a pessoa indeterminada, quer determinada, por meio de cartas, anúncios, verbalmente, em pregões ou em autômatos; na estipulação em favor de terceiro; nas promessas de recompensa; nos títulos ao portador etc. Mas a explicação do fato só deve e somente poderá ser entre pessoas, porque se passa no mundo social. A oferta é obrigativa e mantém-se vinculante do seu autor, ainda que esse morra ou caia em incapacidade. Mas liga-o a quem? A si mesmo, respondem uns, sem atenderem a que, assim, reduzem o direito a um caso de consciência, a um simples fato interno. Ao ‘alter’, dizemos nós. É a lei quer prescreve, no interesse social, esta vinculari-dade. O direito é um mínimo ético, como quer Jellinek; mas as raias do mí-

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nimo quem as fi xa é a lei, o Estado, a sociedade, e no precisá-las há a política jurídica, que fecunda os atos e as omissões para a criação de laços jurídicos, de relações.” (“Da Promessa de Recompensa”, atualizado por VILSON RO-DRIGUES ALVES, 1ª ed., Campinas, Ed. Bookseller, 2001, pp. 13, 26, 143⁄144)

Ainda, quanto à natureza jurídica da promessa de recompensa, duas teo-rias, tradicionalmente, buscaram outorgar-lhe a devida explicação:

a) teoria contratual, cujos adeptos, entendendo inconcebível a constitui-ção de uma obrigação a partir da tão-só manifestação de vontade do deve-dor, dissociada do imediato consentimento do credor, viam na promessa de recompensa verdadeira oferta contratual a pessoa indeterminada, protraindo a respectiva vincularidade ao momento de aceitação da proposta, revelada através da execução do ato ou serviço. Cuida-se de corrente elidente do pró-prio instituto, na medida em que reduz o mesmo à mera fase preliminar de contratação, embora, como consabido, não se confunde a promessa de re-compensa com “a oferta, que é a substantivação da primeira fase do processo mecânico-jurídico do negócio jurídico bilateral: oferta + aceitação = acordo ou contrato” (PONTES DE MIRANDA, op. cit., p. 29);

b) teoria da policitação ou promessa, oriunda da pollicitatio romana e, analogamente à teoria contratual, insufi ciente à explicação contemporânea do fenômeno sob comento. Os teóricos da policitação admitiam que a mani-festação unilateral, por si só, constituísse obrigação ao declarante, mas igno-ravam a indispensabilidade da lei a emprestar força vinculativa ao instituto. Ora, hodiernamente, não há como se admitir que da simples promessa feita ao público, independentemente de regra jurídica que a revele, decorra a obri-gação; ao revés, frise-se, o que concede à promessa de recompensa atual força vinculativa e obrigacional é justamente a intervenção legal. A propósito da teoria da policitação, já J. M. CARVALHO SANTOS explicitava a inviabi-lidade de se conceber “que a simples manifestação unilateral da vontade se tornasse obrigatória, sem que houvesse a intervenção da lei, como expressão da vontade social” (“Código Civil Brasileiro Interpretado”, v. XX, 10ª ed., Rio de Janeiro, Freitas Bastos, 1982, p. 131).

Trata-se, pois, de manifestação de vontade de uma só pessoa, emanada em condições legalmente consideradas idôneas à constituição da obrigação, a qual se forma “a partir do instante em que o agente se manifesta com inten-ção de se obrigar, independentemente da existência ou não de uma relação creditória, que poderá surgir posteriormente” (MARIA HELENA DINIZ, “Curso de Direito Civil Brasileiro”, v. 3, 19ª ed., São Paulo, Ed. Saraiva, 2003, p. 748).

De todo o esposado defl ui-se que, ao revés do que se verifi ca quanto à for-mação dos contratos, negócios jurídicos bilaterais, reputados perfeitos apenas

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no momento em que convergem as vontades do proponente e do aceitante (deveras, em nosso ordenamento jurídico, consideram-se vinculadas as par-tes, nos contratos inter praesentes, no instante em que aceita a proposta pelo oblato e, nos inter absentes, de regra, quando da expedição da resposta posi-tiva à proposta), as obrigações originárias de declaração unilateral de vontade e, em específi co, a obrigação de fazer oriunda da promessa de recompensa, acha-se constituída no instante em que se torna pública a oferta de gratifi ca-ção ao executor de determinado ato ou serviço; precisamente nesta ocasião, em que se confere publicidade à promessa, considera-se existente e válida a obrigação (planos da existência e da validade), e vinculado o proponente perante a sociedade, perfazendo-se irrelevante à confi guração da obrigação a imediata manifestação alheia de vontade.

A propósito, na seara da promessa de recompensa, a declaração volitiva alheia poderá verifi car-se posteriormente, não importando à constituição da obrigação, reitere-se, mas dando origem a uma relação creditória, integrada ativamente pelo executor da condição ou serviço almejados, o unus ex pu-blico, e passivamente pelo emitente da promessa de recompensa. Ou seja, da execução do ato visado nasce apenas a pretensão concernente ao recebimen-to das alvíssaras, revelada em relação jurídica posterior (plano da efi cácia), e que pode ser judicialmente buscada em face do promitente, haja vista a previsão legal relativa à acionabilidade (ação de adimplemento) da promessa de recompensa (deveras, na atualidade, a par da contemplação, por diversas legislações internacionais, da declaração unilateral de vontade como fonte obrigacional, encontra-se a previsão de exigibilidade, pelo executor do ato ou serviço, da gratifi cação prometida, ainda que sua atuação não se tenha embasado no interesse da respectiva conquista).

Nesta esteira, buscam-se, novamente, as judiciosas lições de PONTES DE MIRANDA:

“Observamos, desde logo, que os argumentadores pensam em relação ju-rídica, que é feito, para exigirem que todos os negócios jurídicos sejam bi-laterais. Não percebiam e não percebem que a unilateralidade é da vontade: um, só do seu lado, se vincula e se obriga. A relação jurídica, que se constitui, irradiando-se do negócio jurídico unilateral, essa é bilateral, tem os dois pó-los, o devedor e o credor. (...).

Em vez de verem a relação jurídica como efi cácia dos fatos jurídicos, viram a relação entre manifestantes de vontade. Ora, a relação jurídica é ‘posterius’. Não é preciso que entre os manifestantes de vontade haja bilateralidade. (...).

Se confundíssemos a unilateralidade da manifestação de vontade com a unilateralidade (absurda) da relação jurídica, teríamos o subjetivismo: ve-ríamos o fato, a relação, somente do lado do devedor. Pelo exame do ato do declarante da vontade, e do destinatário, pressupõe-se entre eles vínculo? Seria a ortodoxia do contratualismo absoluto, que se forma por duplo exame

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subjetivo, auxiliado de frágil dedução. Outro deverá ser o processo: a análise das relações. Essa nos mostrou: a) que não há vínculo obrigacional entre o promitente e o ‘unus ex publico’ antes da apresentação; b) que os títulos ao portador não se explicam como laços entre subscritor e o primeiro, ou, muito menos, todos os portadores; c) que há vínculo, necessariamente, e a análise nos aponta os dois pólos: promitente e todos; d) que esse laço inicial vincular constitui a preforma de outro, que é direito entre promitente ou subscritor e o ‘unus ex publico’ ou apresentante do título; (...).

Se não há lei (direito), a obrigação (jurídica) de manter não existe. A obri-gação de cumprir deriva da outra, extrinsecamente; entre elas há mais do que justaposição: aquela é preforma dessa. Nasce o dever, com a conclusão da promessa; nasce a obrigação, com a apresentação do ‘unus ex publico’.” (“Tratado de Direito Privado”, t. XXXI, atualizado por VILSON RODRI-GUES ALVES, 1ª ed., Campinas, Ed. Bookseller, 2004, pp. 341, 357, 361, 363)

Pois bem, expostas as linhas mestras do instituto da promessa de recom-pensa, cumpre analisar o respectivo enquadramento nos dispositivos legais apontados, quer pelo recorrente, quer pelo d. Juízo a quo, como regentes da hipótese sub judice, é dizer, os arts. 9º, caput e § 2º, e 12, caput, da LICC (Decreto-lei nº 4.657⁄42), consoante os quais:

“Art. 9º. Para qualifi car e reger as obrigações, aplicar-se-á a lei do país em que se constituírem.

(...).§ 2º A obrigação resultante do contrato reputa-se constituída no lugar em

que residir o proponente.”

“Art. 12. É competente a autoridade judiciária brasileira, quando for o réu domiciliado no Brasil ou aqui tiver de ser cumprida a obrigação.”

À primeira, cumpre esclarecer que, segundo abalizados doutrinadores pá-trios (cf. VICENTE GRECO FILHO, “Direito Processual Civil Brasileiro”, v. 1, 14ª ed., São Paulo, Ed. Saraiva, 1999, pp. 175⁄177; CÂNDIDO RAN-GEL DINAMARCO, “Instituições de Direito Processual Civil”, v. I, 4ª ed., São Paulo, Malheiros Ed., 2004, p. 335), o supracitado art. 12, caput, da LICC, encontra-se tacitamente revogado pelo art. 88, I e II, do CPC, que regulamentou globalmente a matéria, preconizando:

“Art. 88. É competente a autoridade judiciária brasileira quando:I — o réu, qualquer que seja a sua nacionalidade, estiver domiciliado no

Brasil;II — no Brasil tiver de ser cumprida a obrigação;”

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Destarte, quando da análise das alegações do recorrente, ao revés de se cogitar do art. 12, caput, da LICC, perquirir-se-á acerca do eventual enqua-dramento da demanda aos ditames do art. 88, II, do CPC (competência das autoridades judiciárias pátrias em face da exeqüibilidade da obrigação no território nacional, conquanto contraída no estrangeiro).

De início, quanto à regência material da promessa de recompensa sub judice, implica considerar o disposto no art. 9º, caput, da LICC, norma de Direito Internacional Privado confl itual, regra de conexão (e não norma competencial), a qual “objetiva indicar, em situações conectadas com dois ou mais sistemas jurídicos, qual dentre eles deva ser aplicado. (...). O aplicador da lei seguirá a norma de Direito Internacional Privado como se fora uma seta indicativa do direito aplicável, e, neste, procurará as normas jurídicas que regulam o caso ‘sub judice’.” O Direito Internacional Privado “cuida primei-ramente de classifi car a situação ou relação jurídica dentre um rol de qualifi -cações, i. e., de categorias jurídicas; em seguida, localiza a sede jurídica desta situação ou relação e, fi nalmente, determina a aplicação do direito vigente nesta sede” (JACOB DOLINGER, “Direito Internacional Privado — Parte Geral”, 8ª ed., Rio de Janeiro, Renovar, 2005, pp. 49⁄50, 291).

Assim, na hipótese do art. 9º, caput, da LICC, infere-se, quanto à quali-fi cação da questão jurídica, cuidar-se de constituição de obrigação, cuja sede jurídica ou elemento de conexão consiste no local ou país em que confi gura-do o ato jurídico, sendo o direito material deste país o regulador da situação. Ora, in casu, à luz dos mecanismos específi cos da promessa de recompensa, constituída, conforme explicitado, no momento em que manifestada uni-lateralmente a vontade pelo Estado promitente, tem-se como elemento co-nector entre as legislações pátria e norte-americana o país em confi gurada a obrigação, qual seja, os EUA e, pois, como exata a incidência da respectiva legislação, segundo disposto pelo d. Juízo a quo.

Todavia, ao revés do preconizado pelo d. Magistrado singular, o tão-só fato de a hipótese concretamente reger-se por normas estrangeiras é insufi ciente a elidir, em princípio, a competência das autoridades judiciárias pátrias, de modo que, restando a mesma eventualmente caracterizada, apenas cumprirá à parte que se valer da legislação adventícia provar-lhe “o teor e a vigência, se assim o determinar o juiz” (art. 337 do CPC). Confi ra-se:

“O princípio que, fundamentalmente, rege nesta matéria, vem defi nido (...) nestes textuais termos: ‘nenhum Estado pode editar leis que, por sua pró-pria força, sejam aplicáveis em países estrangeiros; em cada Estado soberano, a única lei em vigor é a deste mesmo Estado. Mas de conformidade com esta lei, os direitos e os demais interesses, em certos casos, podem depender das leis vigentes em um ou mais Estados’.

Portanto, o princípio segundo o qual a lei de cada Estado impera sobera-namente sobre os respectivos cidadãos e sobre todos quantos se acharem em

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seu território, atingindo suas pessoas, bens e relações, ou sobre os atos que hajam de ser praticados ou executados em seu território, sofre em certos casos a restrição decorrente da incidência e do alcance das leis estrangeiras, quan-do assim dispuser o direito interno do mesmo Estado.” (VICENTE RÁO, “O Direito e a Vida dos Direitos”, 1º v., t. I, 2ª ed., São Paulo, Ed. Resenha Universitária, 1976, p. 390)

Prosseguindo, ainda no tocante ao art. 9º da LICC, cujo § 2º dispõe que “a obrigação resultante do contrato reputa-se constituída no lugar em que re-sidir o proponente”, tem-se que tal dispositivo, concernente à determinação do local onde se deva considerar concluídos os negócios jurídicos bilaterais, da qual depende, além da especifi cação da legislação aplicável ao caso, a apu-ração do foro competente, conquanto não incida expressamente à hipótese vertente, relativa a obrigação advinda de declaração volitiva unilateral, pode, sim, de forma analógica, ser aplicado à mesma.

Neste particular, cumpre esclarecer que, no relacionado à determinação do lugar de conclusão dos contratos, o ordenamento jurídico pátrio utiliza critério diverso do verifi cado quanto ao momento da respectiva formação. Deveras, enquanto se considera ultimada a vinculação das partes, nos con-tratos inter praesentes, no instante em que aceita a proposta pelo oblato e, diversamente, nos inter absentes, estipulados por correspondência epistolar ou telegráfi ca, quando da expedição da resposta positiva à proposta, adotan-do-se, em regra, a teoria da agnição ou declaração, na modalidade expedição, ao revés, considera-se ultimado o negócio jurídico, entre partes presentes ou ausentes, no local em que proposto, em que manifestada pelo proponente a vontade de vincular-se. Ora, se para os contratos, nos quais se distinguem duas etapas, é dizer, a proposta e a aceitação, somente releva considerar, para fi ns de determinação do lugar da respectiva conclusão e, pois, do foro com-petente, o local da proposta, com maior razão devem-se reputar concluídas as obrigações originárias de atos unilaterais, a cuja formação se mostra to-talmente irrelevante a aceitação alheia, no local em que divulgada a vontade única de obrigar-se.

Destarte, confi gura-se lídima a aplicação, por analogia, do § 2º do art. 9º da LICC à promessa sub judice, rechaçando-se, com esteio em tal argu-mento, a competência nacional, porquanto o Estado estrangeiro promitente vinculou-se perante a humanidade no local em que publicamente ofertou a gratifi cação, é dizer, no território norte-americano.

Seguindo tal premissa, impõe-se, ademais, afastar a incidência do dispos-to no art. 88, II, do CPC, não se delineando, ao contrário do argüido pelo recorrente, a competência das autoridades judiciárias pátrias em razão de su-postamente dever cumprir-se a obrigação de fazer o pagamento da recom-pensa no território nacional. Com efeito, as alegações referentes ao domicílio

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brasileiro do suposto credor da promessa efetuada e à postagem no Brasil das cartas indicativas do paradeiro de Saddam Hussein não importam na trans-ladação ao território pátrio do local de cumprimento da obrigação, o qual remanesce coincidindo com o lugar em que emitida a declaração unilateral de vontade pelo Estado estrangeiro e concluída a correlata obrigação, qual seja, o território norte-americano.

Ainda, a propósito do local de cumprimento da obrigação de outorga das alvíssaras, esclarece PONTES DE MIRANDA:

“O lugar da entrega da recompensa é determinado pelo teor da promessa, atendido aos casos concretos. Já C. F. Reatz (‘Der Erfüllungsort, Gutachten aus dem Anwaltstande’, I, 559) mostrara que as promessas de recompensa, se são mais do que interesse do promitente, produzem dívidas de levar (‘Brin-gschuld’), ao passo que as feitas mais no interesse dos candidatos são causa-doras de dívidas de vir buscar (‘Holschuld’).” (“Tratado de Direito Privado”, t. XXXI, atualizado por VILSON RODRIGUES ALVES, 1ª ed., Campinas, Ed. Bookseller, 2004, p. 455)

In casu, obrigando-se o Estado estrangeiro, através da publicidade dada à promessa de recompensa correspondente ao pagamento de US$ 25.000.000,00 (vinte e cinco milhões de dólares norte-americanos) ao infor-mante do paradeiro de ex-ditador, e já estando o território iraquiano sob total domínio das forças bélicas norte-americanas à época em que dirigida aludida promessa de recompensa a todos os povos e nações do mundo, vislumbra-se o predomínio do interesse de eventual prestador da informação em perceber o montante prometido. Logo, a obrigação de entrega do numerário ofertado confi gura autêntica dívida de “vir buscar”, impondo-se àquele que entender fazer jus à gratifi cação e, em específi co, ao ora recorrente, a submissão à juris-dição alienígena do Estado ofertante.

Frise-se, outrossim, que, a despeito do alegado pelo recorrente, no sentido de que, em se cuidando de obrigação em pecúnia, o pagamento deve ser efe-tuado no domilício do credor, a regra geral sinaliza, justamente, orientação oposta, é dizer, o dever de efetivação do pagamento no domicílio do devedor (“dívida quérable”), notadamente em não se verifi cando, como na hipótese, disposição legal ou declaração unilateral em contrário, nos peremptórios ter-mos do art. 327 do CC⁄2002:

“Art. 327. Efetuar-se-á o pagamento no domicílio do devedor, salvo se as partes convencionarem diversamente, ou se o contrário resultar da lei, da natureza da obrigação ou das circunstâncias”.

Desta feita, nos termos do art. 88, II, do CPC, é dizer, em decorrência do lugar de cumprimento da obrigação de fazer o pagamento da gratifi cação

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prometida, não resta caracterizada a competência das autoridades judiciárias pátrias, mas, sim, dos órgãos jurisdicionais norte-americanos.

Aliás, como bem salientado pelo i. membro do Parquet Federal, o recor-rente, ao defender a competência nacional com base no art. 88, II, do CPC, “confunde cumprimento da obrigação com eventual nascimento do direito subjetivo à recompensa, que poderia sim ter ocorrido no Brasil, ou em qual-quer outro lugar, se eventualmente tivessem sido cumpridas as condições impostas pelo proponente” (fl s. 75).

Neste diapasão, porém, torna-se imperioso digressionar quanto ao conte-údo do inciso III do art. 88 do CPC, segundo o qual:

“Art. 88. É competente a autoridade judiciária brasileira quando:(...);III — a ação se originar de fato ocorrido ou de ato praticado no Brasil.”

Isso porque, conquanto o surgimento da pretensão à recompensa, verifi ca-do no momento e no local do suposto adimplemento, pelo unus ex publico, da condição ou do serviço imposto pelo promitente, não se confunda com cumprimento da obrigação de fazer o pagamento da gratifi cação prometida, para fi ns de caracterização da competência nos termos do art. 88, II, do CPC, mencionado fato pode e, mesmo, deve ser considerado com vistas à confi gu-ração da hipótese competencial prevista no supracitado art. 88, III, do CPC.

Deveras, segundo assinalado, a obrigação oriunda da promessa de re-compensa considera-se existente e válida tão logo se torna pública a oferta de gratifi cação ao executor de ato ou serviço estipulados; precisamente aí o promitente vincula-se perante a sociedade, independentemente de qual-quer convergência volitiva alheia. Esta, contudo, pode, e mesmo espera-se que se verifi que posteriormente à vinculação promitente⁄sociedade, dando origem a uma relação jurídica creditória, determinante da efi cácia da obriga-ção unilateralmente constituída, e integrada, no pólo ativo, pelo executor da condição ou serviço (unus ex publico) e, no pólo passivo, pelo ofertante da recompensa. Em outros termos, a execução do ato ou da condição estipula-dos, conquanto não constitua a obrigação advinda da oferta de recompensa, dá origem, sim, à pretensão concernente ao recebimento das alvíssaras e, por conseguinte, em se fazendo necessário, à correlata ação judicial para auferi-la.

Pois bem, nos precisos termos do inciso III do art. 88 do CPC, denotar-se-á a competência das autoridades judiciárias pátrias quando “a ação se ori-ginar de fato ocorrido ou de ato praticado no Brasil”. Ora, in casu, a ação com vistas à percepção dos US$ 25.000.000,00 (vinte e cinco milhões de dólares norte-americanos), numerário publicamente prometido pelo Estado réu (EUA) ao informante do paradeiro de ex-ditador iraquiano, originou-se de fato ocorrido no Brasil, qual seja, a remessa de cartas contendo a informa-

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ção almejada pelo promitente, consoante se infere dos documentos acostados às fl s. 11⁄20 dos presentes autos.

Em conclusão, conquanto o local de constituição⁄cumprimento da obri-gação unilateral decorrente da promessa de recompensa não sirva à determi-nação da competência judiciária nacional (art. 88, II, do CPC), o local em que supostamente praticado o fato do qual deriva a presente ação, é dizer, o território brasileiro, mediante a qual se busca justamente provar o adimple-mento das condições impostas pelo Estado ofertante, a fi m de que lá se possa buscar a recompensa prometida, confi gura a competência das autoridades judiciárias pátrias (art. 88, III, do CPC), não obstante, como assinalado, em concorrência à competência das autoridades jurisdicionais norte-americanas.

Contudo, em hipóteses como a vertente, a jurisdição, o poder respeitante à dicção do direito pelo Judiciário nacional não pode ser reconhecida com fulcro, exclusivamente, em regras interiores ao ordenamento jurídico pátrio, vez que, como cediço, a competência, internacional (geral) ou interna (espe-cial), traduz-se na delimitação, consoante as normas de determinado país, de um poder maior, qual seja, a jurisdição; em outros termos, consoante bem defi nida pelo i. ATHOS GUSMÃO CARNEIRO, “a ‘competência’, assim, ‘é a medida da jurisdição’, ou, ainda, é a jurisdição na medida em que pode e deve ser exercida pelo juiz” (“Jurisdição e Competência”, 10ª ed., São Paulo, Ed. Saraiva, 2000, p. 53).

Ao revés, a atividade jurisdicional dos Estados também encontra limitação externa, é dizer, advinda de normas de Direito Internacional, consubstancia-do aludido limite, basicamente, na designada “teoria da imunidade de juris-dição soberana” ou “doutrina da imunidade estatal à jurisdição estrangeira”. Deveras, “indaga-se se o Estado estrangeiro pode ser acionado perante a jus-tiça de outro Estado soberano e seu patrimônio, situado no território deste, judicialmente executado, baseado em decisão que lhe seja desfavorável. Se não for possível demandá-lo, resultará sua imunidade de jurisdição, isto é, não estará sujeito à jurisdição de outro Estado soberano, não obstante a jus-tiça desse país, em princípio, ser internacionalmente competente para julgar a relação jurídica objeto da disputa judicial” (BEAT WALTER RECHSTEI-NER, “Direito Internacional Privado — Teoria e Prática”, 5ª ed., São Paulo, Ed. Saraiva, 2002, pp. 238⁄239).

Daí que, in casu, não obstante constituir a análise da competência inter-nacional questão preliminar ao mérito do litígio, deve a mesma ser acompa-nhada pelo exame de eventual imunidade do réu, Estado estrangeiro (ora não se cogitando das imunidades diplomáticas, dos chefes de Estado e das orga-nizações internacionais e correlatos agentes), à própria jurisdição do Estado brasileiro, tema do qual se ocupará a seguir.

Pois bem, da soberania dos Estados decorre a imunidade de jurisdição, é dizer, a prerrogativa conferida aos mesmos de não se sujeitarem a decisões

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provenientes de órgãos judiciários estrangeiros, a faculdade soberana dos Es-tados de se perceberem imunes à jurisdição estrangeira; de fato, como ex-ceção ao princípio da territorialidade, segundo o qual os Estados, dentro dos respectivos limites territoriais, exercem com plenitude e exclusividade o poder jurisdicional, vedada a exceção, a priori e presumidamente, de quais-quer situações, o princípio da soberania determina que, face à natureza do réu, Estado soberano, encontra-se limitada a jurisdição dos demais Estados, equivalendo tal contenção à regra da imunidade de jurisdição. A propósito, têm-se como defi nições emprestadas a mencionado fenômeno:

“Imunidade internacional de jurisdição é a isenção para certas pessoas, da jurisdição civil, penal e administrativa, por força de normas jurídicas interna-cionais, originalmente costumeiras, praxe, doutrina, jurisprudência, ultima-mente convencionais, constantes de tratados e convenções.” (HAROLDO VALLADÃO, “Direito Internacional Privado — Parte Especial”, v. III, Rio de Janeiro, Freitas Bastos, 1978, p. 145)

“Como entes soberanos, desfrutam os Estados, no plano internacional, de certas imunidades. Quando na prática de atos protegidos por imunidade, o primeiro direito que se lhes reconhece é o de não se submeterem à jurisdição de outro Estado soberano. A esse privilégio dá-se o nome de ‘imunidade de jurisdição’. Desdobramento da imunidade de jurisdição, mas que diz respeito especifi camente à proteção de que gozam seus bens, outra imunidade assegu-rada a Estados soberanos é a ‘de execução’, assim entendido o privilégio que impede sejam aqueles bens objeto de medidas constritivas no território de outro Estado soberano.” (LUIZ CARLOS STURZENEGGER, Imunidades de jurisdição e de execução dos Estados: proteção a bens de bancos centrais, in “Revista de Direito Administrativo” v. 174, Rio de Janeiro, Ed. Fundação Getúlio Vargas, out.-dez.⁄1988, pp. 19⁄20)

Nestes termos, consiste a imunidade de jurisdição (da imunidade de exe-cução, conquanto aspecto do mesmo instituto, se cuidará em separado) em fenômeno usualmente norteador das relações entre Estados estrangeiros, não obstante divirjam os mesmos quanto à respectiva natureza jurídica. De fato, conquanto empregada amiúde, não equivale a norma de Direito Interno (a legislação específi ca de cada país presta-se, tão-somente, a limitar a própria imunidade de jurisdição), tampouco fundamentando-se nas Convenções de Viena de 1961 e 1963, regulamentadoras, seqüencialmente, das relações di-plomáticas e consulares, vigentes no Brasil mediante a promulgação dos De-cretos nºs 56.435⁄65 e 61.078⁄67. Neste particular, fortemente elucidativo o voto proferido quando do julgamento da AC nº 2⁄DF (DJU 03.09.1990), no qual o e. Ministro Relator BARROS MONTEIRO, após, de início, embasar a imunidade de jurisdição não apenas no Direito Internacional Costumeiro,

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mas principalmente na “Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas”, procede à retifi cação de seu voto, dispondo, então:

“As Convenções de Viena sobre ‘Relações Diplomáticas’ e sobre ‘Relações Consulares’ aplicam-se tão-somente aos agentes diplomáticos e aos funcioná-rios consulares (...). A imunidade de jurisdição assentava-se exclusivamente no direito consuetudinário, na conformidade, aliás, com o primitivo pro-nunciamento do então Procurador da República, Dr. FRANCISCO REZEK (RTJ 66, p. 728) e, ao depois, com o voto que S. Exª prolatou na qualidade de Ministro do STF em data de 31.05.1989 [AC nº 9.696⁄SP], de cujas notas taquigráfi cas se colhe o seguinte excerto: ‘Numa vertente, temos as imunida-des pessoais resultantes das duas Convenções de Viena, de 61 e de 63, ambas em vigor para o Brasil e relacionadas a primeira com o serviço diplomático e a segunda com serviço consular. Quando se cuide, portanto, de um processo de qualquer natureza, penal ou cível, cujo pretendido réu seja membro do serviço diplomático estrangeiro aqui creditado, ou em determinadas hipóte-ses bem reduzidas do serviço consular estrangeiro, operam em sua plenitude textos de Direito Internacional escrito, Tratados, que, num certo momento, se convencionaram lá fora e que entraram em vigor para o Brasil, sendo aqui promulgados. Ficou claro, não obstante, que nenhum dos dois textos de Vie-na, do romper da década de 60, dizem da imunidade daquele que, na prática corrente, é o réu preferencial, ou seja, o próprio Estado estrangeiro.”

Da mesma forma, não se há considerar como fonte normativa da imu-nidade de jurisdição a mera cortesia internacional (“comitas gentium”) do Estado do foro com relação ao Estado estrangeiro, porquanto, a seguir-se tal entendimento, estaria a imunidade de jurisdição despojada de qualquer juridicidade, quando, ao revés, prevalece a orientação conforme a qual a prer-rogativa do Estado estrangeiro de ser imune à jurisdição de outro Estado é obrigação legal, embora, atualmente, desprovida de sua originária extensão absoluta, consoante se abordará, consubstanciando-se em verdadeira norma de Direito Consuetudinário Internacional Público.

Prosseguindo, no concernente à origem histórica da imunidade de jurisdi-ção, situa-se a respectiva gênese, majoritariamente, na equiparação da pessoa dos monarcas aos Estados e, por conseqüência, na aplicação indiscriminada do princípio da igualdade soberana dos Estados, oriundo da regra feudal “par in parem non habet imperium” (“entre iguais não há império”); é di-zer, a imunidade de jurisdição própria dos Estados decorre da transferência da titularidade da imunidade, então absoluta, que se reconhecia às pessoas dos soberanos, e acompanha o surgimento do próprio conceito moderno de Estado (na prática, considera-se o “Th e Schooner Exchange v. McFaddon”, julgado pela Suprema Corte dos EUA aos 24.02.1812, como o caso pionei-ro de incidência da imunidade estatal, ocasião em que restou consignado:

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“A jurisdição das cortes é um ramo do que a nação possui como um Poder soberano e independente. A jurisdição da nação dentro do seu próprio ter-ritório é necessariamente exclusiva e absoluta. Não é susceptível de qualquer limitação, senão imposta por ela mesma. Qualquer restrição a ela, que derive sua validade de uma fonte externa, implicaria numa diminuição de sua so-berania, nos limites de tal restrição e uma investidura daquela soberania, nos mesmos limites em que aquele poder que poderia impor tal restrição”, apud GUIDO FERNANDO DA SILVA SOARES, “Das Imunidades de Jurisdi-ção e de Execução”, Rio de Janeiro, Ed. Forense, 1984, p. 34). Desta feita, num primeiro momento, tem-se que a imunidade de jurisdição, fulcrada na igualdade soberana dos Estados, era absoluta ou extensiva, não se admitindo, em hipótese alguma, a sujeição de um Estado às decisões proferidas pelos Tribunais de outros Estados (conquanto, na realidade, aludido caráter abso-luto jamais tenha se revelado ao extremo de coibir a sujeição de um Estado à jurisdição alheia em causas relativas a imóveis e direitos sucessórios).

Durante o século XX, porém, e, notadamente, a partir da década de 1970, em acompanhamento ao crescente intervencionismo econômico estatal, vis-lumbrou-se tendência universal à relativização da imunidade de jurisdição, movimento que, na atualidade, encontra-se praticamente consolidado em defi nitivo (novamente, os EUA, antecipando-se à propensão mundial, já em 1952, em atenção a interesses comerciais, passaram ofi cialmente a rechaçar a imunidade absoluta aos Estados estrangeiros, consoante se infere do do-cumento denominado “Tate Letter”, consistente em carta, com real intui-to normativo, remetida pelo então Consultor Jurídico do Departamento de Estado — Jack Tate — ao Procurador-Geral dos EUA). A propósito, em percuciente análise acerca da restrição do conceito clássico de imunidade ju-risdicional, leciona o e. JOSÉ CARLOS DE MAGALHÃES:

“Essa concepção, no entanto, evoluiu com a dinâmica da comunidade internacional. O Estado, que se mantinha afastado das atividades próprias e típicas da comunidade, adotou, progressivamente, postura diversa.

De fato, com a intervenção dos Estados na economia, alterou-se o quadro em que se moldou o princípio da imunidade de jurisdição. O Estado deixou de ser apenas a entidade organizada da comunidade nacional destinada a representá-la na ordem internacional e a exercer funções políticas próprias e características, para ser, também, promotor do desenvolvimento nacional, in-fl uindo no processo econômico ativamente, celebrando contratos comerciais e agindo como pessoa jurídica interessada em resultados econômicos.

O princípio da imunidade de jurisdição, por isso, foi adaptando-se a essa realidade, preservando o seu fundamento: o Estado é imune à jurisdição de outro somente quando atua em sua qualidade específi ca e própria e no exer-cício de sua competência política.

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Já nos atos em que participa objetivando um resultado econômico, a imu-nidade de jurisdição passou a ser questionada e deixou de ser aceita pacifi ca-mente.” (Da imunidade de jurisdição do Estado estrangeiro perante a Justiça brasileira, in JACOB DOLINGER (coord.), “A Nova Constituição e o Direi-to Internacional”, Rio de Janeiro, Freitas Bastos, 1987, p. 210)

No Brasil, o Supremo Tribunal Federal (competente, à época, para aprecia-ção da matéria), após anos de relutância, acabou por acatar a inclinação mun-dial respeitante à relativização da imunidade jurisdicional, considerando-se emblemático o acórdão proferido quando do julgamento, aos 31.05.1989, da AC nº 9.696-3⁄SP (caso “Genny de Oliveira”), de Relatoria do e. Mi-nistro SYDNEY SANCHES (DJU 12.10.1990), no qual restou fi nalmente afastada a imunidade de jurisdição das pessoas jurídicas de direito público externo quanto às causas de natureza trabalhista. Entretanto, não obstante a indiscutível preclaridade do e. Relator, constata-se que o mesmo optou por embasar seu posicionamento no ordenamento jurídico, mais exatamente na então recém-publicada CF⁄88 que, em seu art. 114, norma, em verdade, de competência interna, incumbiu à Justiça do Trabalho o julgamento dos “dissídios individuais e coletivos entre trabalhadores e empregadores, abran-gidos os entes de direito público externo”. Daí avultar o magistral voto-vista prolatado pelo e. internacionalista, o Ministro FRANCISCO REZEK, peça erigida em referência obrigatória quanto ao tema da imunidade relativa de jurisdição, da qual imprescindível a extração dos seguintes excertos:

“Antes de defi nir as razões do meu voto, lembro, à luz do voto do Relator, Ministro SYDNEY SANCHES, que a Constituição de 1988, no seu art. 114, diz que compete à Justiça do Trabalho o feito de índole trabalhista, o litígio entre trabalhador e empregador, nesta categoria incluídos os entes de direito público externo.

Parece-me — é neste ponto que divirjo do eminente Relator — que essa é uma norma relacionada tão-só com a competência. (...).

Tudo quanto há de novo, no texto de 1988, é um deslocamento da com-petência: o que até então estava afeto à Justiça Federal comum passou ao domínio da Justiça do Trabalho. (...).

Volto ao tema de fundo. Aquela antiga e sólida regra costumeira de direito internacional público, a que repetidamente este Plenário se referiu, deixou de existir na década de setenta. Em 1972 celebrou-se uma convenção euro-péia sobre imunidade do Estado à jurisdição doméstica dos demais Estados (‘European Convention on State Immunity’, Basiléia, 16 de maio de 1972). Nessa convenção, que é casuística como diversos textos de igual origem, tal-vez o leitor não possa detectar o substrato fi losófi co da fronteira que se terá estabelecido entre aquilo que é alcançado pela imunidade e aquilo que não o

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é mais; entre o que os Estados pactuantes entenderam estar no domínio dos atos de império e no dos atos de mera gestão.

Bem antes da celebração desse tratado, já fermentava em bom número de países a tese de que a imunidade não se deveria mais admitir como ‘absoluta’. A imunidade deveria comportar temperamentos. Naquela época o Supre-mo, embora ciente dessa realidade, preservava sua postura fi el à tradição da imunidade absoluta. A nosso ver, certas quebras tópicas do princípio da imu-nidade absoluta estavam ocorrendo nas capitais de determinados países do Ocidente, onde Estados estrangeiros se faziam representar não só para atos de rotina diplomática ou consular, mas também para atividades inteiramente estranhas a esse intento. (...). Era mais do que natural que os Governos locais em certo momento se advertissem de que semelhante ação não podia ser alcançada pela imunidade. Por quê entendíamos, nós, que essa idéia variante da velha tradição não nos alcançava? (...).

Nos anos setenta o que sucedeu de novo foi (...) uma postura excludente da imunidade em feitos decorrentes de toda interação entre a agência repre-sentativa do Estado estrangeiro e o meio local desvestido de ofi cialidade. (...).

Não bastasse a convenção européia, vem depois o legislador norte-ameri-cano e edita, em 21 de outubro de 1976, o ‘Foreign Sovereign Immunities Act’, lei minuciosa naquilo que dispõe, e que assume a mesma diretriz da convenção. (...).

Em 1978, no Reino Unido, promulga-se o ‘State Immunity Act’. Esse texto, inspirado ao legislador britânico pela Convenção Européia e pela lei norte-americana, diz, naquilo que operacionalmente nos interessa, a mesma coisa: a imunidade não é mais absoluta. (...).

Em 1986, na Academia de Direito Internacional de Haia, o Professor Peter Troobof, de Nova York, dava um curso sobre esse exato tema: o apare-cimento de um consenso sobre os princípios relacionados com a imunidade do Estado. E deixava claro que o princípio da imunidade absoluta não mais prevalece (P. D. Troobof, ‘Foreign State Immunity: Emerging Consensus on Principles’, Recueil des Cours, vol. 200, 1986, pp. 235 e ss.).

Independentemente da questão de saber se há hoje maioria numérica de países adotantes da regra da imunidade absoluta, ou daquela da imunidade limitada — que prevalece na Europa ocidental e que já tem fustigado, ali, algumas representações brasileiras —, uma coisa é certíssima: não podemos mais, neste Plenário, dizer que há uma ‘sólida regra de direito internacional costumeiro, a partir do momento em que desertam dessa regra os Estados Unidos da América, a Grã-Bretanha e tantos outros países do hemisfério nor-te. Portanto, o único fundamento que tínhamos — já que as convenções de Viena não nos socorrem a tal propósito — para proclamar a imunidade do Estado estrangeiro em nossa tradicional jurisprudência, desapareceu: podia

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dar-nos por raquítico ao fi nal da década de setenta, e hoje não há mais como invocá-lo. (...).

O quadro interno não mudou. O que mudou foi o quadro internacional. O que ruiu foi o nosso único suporte para a afi rmação da imunidade numa causa trabalhista contra Estado estrangeiro, em razão da insubsistência da regra costumeira que se dizia sólida — quando ela o era —, e que assegurava a imunidade em termos absolutos.”

Pois bem, relativizada a noção de imunidade estatal às jurisdições estran-geiras, remanesce como principal desafi o aos Estados a percepção dos crité-rios de temperamento que separam as causas ditas jurisdicionáveis daquelas acobertadas pela imunidade soberana, daí advindo, em inúmeras hipóteses, ora a recusa injustifi cada ao privilégio consagrado pelo Direito Costumeiro Internacional, em autêntico exercício indevido da jurisdição, ora a admissão indiscriminada da imunidade estatal, em violação à inafastabilidade da juris-dição. Com efeito, os limites exatos da relativização da imunidade somente poderiam ser uniformemente traçados mediante consenso internacional, por exemplo, com a aprovação do projeto de “Convenção Internacional sobre Imunidades de Jurisdição dos Estados e de seus Bens”, elaborado pela Comis-são de Direito Internacional do ONU. Por outro lado, inexistindo legislação terminante a respeito, podem ser resumidas em duas as soluções adotadas pelos Estados com vistas à delimitação das hipóteses em que presente a imu-nidade de jurisdição, face à respectiva relativização, sempre em observância à evolução dos costumes advindos do Direito Internacional:

1) a distinção entre atos de império (“acta jure imperii”) e gestão (“acta jure gestionis”), de modo que somente quanto aos últimos, corresponden-tes aos atos praticados pelo Estado enquanto particular (em regra, atividade estatal de natureza comercial), por não estarem alicerçados na igualdade so-berana, seria possível restringir-se a imunidade estatal, criando-se, destarte, verdadeira regra de jurisdição “ratione materiae” entre os Estados.

Aludida diferenciação, no entanto, perfaz-se fortemente subjetiva, valen-do-se os Estados, em suma, de dois critérios à respectiva efetivação, sendo que “um caracteriza o ato governamental por sua natureza jurídica, negando imunidade às atividades que são igualmente empreendidas pelos particulares; outro perquire a fi nalidade ou o objetivo do ato, concedendo a imunidade para os atos diretamente ligados a funções públicas” (JACOB DOLINGER (coord.), A imunidade estatal à jurisdição estrangeira, in “A Nova Constitui-ção e o Direito Internacional”, Rio de Janeiro, Freitas Bastos, 1987, p. 196).

Neste particular, entendem-se relacionados a funções públicas, consoante preconizam os i. LUÍS ROBERTO BARROSO e CARMEN TIBURCIO, os “a) atos legislativos; b) atos concernentes à atividade diplomática; c) os relativos às forças armadas; d) atos da administração interna dos Estados; e)

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empréstimos públicos contraídos no estrangeiro” (Imunidade de jurisdição: o Estado Federal e os Estados-membros, parecer a integrar obra coletiva, provisoriamente intitulada “Estudos em Homenagem ao Professor Jacob Do-linger”, atualmente no prelo, cujo original nos foi gentilmente cedido pelos autores, em referência a JEAN-FLAVIEN LALIVE, L’immunité de juridic-tion, in “Recueil des Cours”, t. 84-III, 1953, pp. 285⁄286: “Sont considérés comme actes de puissance publique: a) les actes d’administration intérieure de l’Etat (p. ex. expulsion d’un étranger, refus d’autorisation de séjour); il est clair que des faits de cet ordre ne sauraient entraîner une action en res-ponsabilité devant des tribunaux étrangers; b) les actes législatifs (p. ex. loi de nationalisation: une loi de cette nature ne saurait être attaquée devant un tribunal étranger); c) les actes concernant les forces armées, navales et aériennes de l’Etat (on échapperait ainsi à la diffi culté soulevée par le systè-me que le Juge Weiss préconisait il y a quelque trente ans à l’Académie de droit international en s’attachant à la nature de l’acte, ce qui autorisait une action judiciaire relative à l’achat ou à la construction d’un cuirassé); d) les actes relatifs à l’activité diplomatique de l’Etat (de la sorte, le domaine des immunités diplomatiques au sens étroit ne serait pas aff ecté; par exemple, une action judiciaire relative à un immeuble occupé par la mission diploma-tique de l’Etat étranger serait déclarée irrecevable); e) d’après certains auteurs et d’après l’Institut de droit international, on pourrait ajouter les emprunts publics contractés à l’étranger. La question est délicate. Les arguments con-traires à l’immunité paraissent toutefois devoir l’emporter en principe”).

De outra feita, estariam imediatamente vinculados às funções privadas dos Estados, em regra, os atos ditos “comerciais”, neste aspecto prevalecendo a teoria da “lex fori” (lei do foro) como a usualmente utilizada pelos Estados para a qualifi cação dos atos de gestão; ou seja, a classifi cação dos atos de um Estado estrangeiro como comerciais, determinante da respectiva submissão à jurisdição de outro Estado, é efetuada segundo a legislação interna deste último.

Destarte, a admissão da diferenciação, altamente subjetiva, entre atos de império e gestão como fundamento único e sufi ciente à delimitação da imunidade de jurisdição, à vista de sua concepção relativa, encontra severas objeções, na medida em que, com efeito, torna o fenômeno sob estudo com-preensível segundo a diversidade dos modelos político-econômicos abertos aos Estados:

“A verdade é que a conceituação de atos governamentais ‘jure gestionis’, ou seja, da atividade estatal de natureza comercial, exige um julgamento que depende da fi losofi a política que se adote quanto à esfera específi ca da ati-vidade estatal e das prioridades da política governamental.” (JACOB DO-LINGER, A imunidade jurisdicional dos Estados, in “Revista de Informação Legislativa” v. 76, Brasília, Senado Federal, out.-dez.⁄1982, p. 12)

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“Se, outrora, havia certa uniformidade quanto ao papel do Estado, no-tadamente na concepção do ‘laissez-faire’ que predominou no Século XIX, hodiernamente há grande disparidade, sobretudo entre os países de econo-mia capitalista, em confronto com os comunistas. Mesmo os que adotam o mesmo modelo político-econômico não seguem o idêntico padrão, havendo os que interferem com maior ou menor intensidade no processo de desen-volvimento social. A esse propósito é signifi cativa a observação da Suprema Corte dos Estados Unidos na decisão do caso ‘Pesaro’: ‘não conhecemos ne-nhum costume internacional que nos obrigue a considerar como atribuição pública menos importante, em tempos de paz, a conservação e a melhoria da prosperidade econômica de um povo do que a manutenção e o treino de uma força naval’.” (JOSÉ CARLOS DE MAGALHÃES, op. cit., p. 211).

2) a adoção do critério normativo, é dizer, a verifi cação de iniciativas esta-tais unilaterais no tocante ao estabelecimento de normas internas limitadoras da imunidade jurisdicional, de regra, mediante a técnica de enumeração ex-pressa e taxativa das atividades em que inviável aos Estados benefi ciarem-se do privilégio da imunidade de jurisdição, sendo aludido rol especifi cado não em razão, tão-somente, da confi guração do ato como de gestão, mas basica-mente em atenção à evolução dos próprios costumes internacionais (relati-vização histórica da imunidade quanto às ações imobiliárias e sucessórias, e evolutiva no concernente, entre outras, às lides comerciais e marítimas, tra-balhistas, indenizatórias, societárias). Trata-se de critério perfeitamente possí-vel, já que, não se afastando a imunidade, norma de Direito Consuetudinário Internacional, de observância obrigatória, são os Estados, como consabido, soberanos para legislar internamente em seus territórios, impondo limites que reputarem convenientes ao privilégio da imunidade de jurisdição.

Cuida-se mesmo, aliás, de parâmetro plenamente recomendável, porquan-to “à falta de uma convenção internacional, os interesses de todos os envolvi-dos no problema da imunidade de jurisdição estarão mais bem resguardados se os Estados dispuserem, em leis internas, quais causas envolvendo Estados soberanos que interpretam poder submeter à jurisdição de suas cortes. O Es-tado soberano defi nirá suas ações no território estrangeiro com mais certeza quanto à extensão do seu privilégio de foro, os particulares farão negócios com Estados estrangeiros em ambiente jurídico mais seguro e o Estado do foro reduzirá a probabilidade de ser chamado à responsabilidade internacio-nal que, na ausência de lei interna, potencializa-se em cada sentença judicial que interpreta os obscuros limites do direito consuetudinário internacional” (ANTENOR PEREIRA MADRUGA FILHO, “A Renúncia à Imunidade de Jurisdição pelo Estado Brasileiro e o Novo Direito da Imunidade de Jurisdi-ção”, Rio de Janeiro, Ed. Renovar, 2003, p. 243).

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O Legislativo brasileiro, contudo, optou por não especifi car, em lei pró-pria, os limites à imunidade de jurisdição. Ademais, tal orientação prevaleceu mesmo em se cuidando de regulamentação esparsa (salvo raras hipóteses, relativas, na verdade, à competência, v. g., a previsão do art. 114 da CF⁄88, com a redação da EC nº 45⁄2004, consoante o qual, no que releva ao feito, “Compete à Justiça do Trabalho processar e julgar: I — as ações oriundas da relação de trabalho, abrangidos os entes de direito público externo (...);”), segundo se verifi cou, recentemente, quando da elaboração do novo Estatuto Civil (2002). Deveras, a novel legislação, ao distinguir as pessoas jurídicas de direito público interno e externo (art. 40 do CC⁄2002), caracterizando-as (arts. 41 e 42 do CC⁄2002), optou por excluir de seu regime de respon-sabilidade civil as pessoas jurídicas de direito público externo (art. 43 do CC⁄2002), relegando a respectiva regência ao Direito Internacional Público.

Desta feita, conquanto tais normas internas não se constituam, por óbvio, em normas de Direito Internacional e, por conseguinte, não demandem res-peito pelos demais Estados integrantes da comunidade externa, confi guram relevante substrato à análise dos costumes internacionais vigentes na atuali-dade, a serem observados no tocante à relativização da imunidade jurisdicio-nal. Portanto, com base, notadamente, na “European Convention on State Immunity” e respectivo Protocolo Adicional (1972), na “Foreign Sovereign Immunity Act” (EUA⁄1976), na “State Immunity Act” (Reino Unido⁄1978), bem como no projeto de “Convenção Internacional sobre Imunidades de Jurisdição dos Estados e de seus Bens” (ONU), têm-se como exceções recor-rentes ao princípio da imunidade de jurisdição:

a) lides imobiliárias e sucessórias (inventário e partilha), que, aliás, como assinalado, já eram tidas por excepcionais mesmo quando interpretada a imunidade de forma absoluta;

b) ações relativas a atos comerciais, inclusive aquelas referentes ao comér-cio marítimo, bem como ao Direito Comercial Societário (participação em sociedades comerciais), por serem atividades tipicamente de gestão, exercidas pelo Estado enquanto interventor na economia, extraindo-se, como exem-plos, o transporte de passageiros, o fornecimento de bens e serviços, até mes-mo bancários;

c) lides trabalhistas, em sendo as relações laborais fi rmadas entre Estado estrangeiro empregador e particular nacional empregado, quer se cogite de contrato de trabalho ou de prestação de serviços, salvo se para o exercício de funções diplomáticas;

d) causas relativas a responsabilidade civil, em regra, desde que soberano o caráter do ato ilícito praticado.

Nesta esteira, o i. HAROLDO VALLADÃO, representante da doutrina pátria referente à imunidade restrita dos Estados estrangeiros face ao Poder Judiciário brasileiro, preconizava mesmo antes da promulgação da CF⁄88,

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em orientação que remanesce integralmente aplicável na atualidade, vez que consonante aos costumes internacionais consagrados, como visto, pelas leis internas supracitadas:

“A doutrina brasileira segue a orientação da imunidade restrita (...). As-sim, os Estados estrangeiros podem ser acionados no Brasil nas seguintes hipóteses: a) ações reais, referentes a uma coisa, móvel ou imóvel, encontrada no território; b) ações fundadas na qualidade do Estado como herdeiro ou legatário ou cessionário de sucessão aberta no território; c) ações referentes a um estabelecimento mercantil, industrial ou a uma estrada de ferro, explora-dos no território; d) ações decorrentes de contratos concluídos pelo Estado estrangeiro no território, se a execução completa no mesmo território pode ser pedida por cláusula expressa ou segundo a própria natureza da ação; e) ações de perdas e danos oriundas de delito ou quase delito praticado no ter-ritório; f ) litígios em virtude de um ato que não é do poder público.” (op. cit., p. 153)

A propósito, confi ram-se os arestos, emanados deste Tribunal Superior (art. 105, II, “c”, da CF⁄88), segundo os quais se denota a limitação em-prestada pela jurisprudência pátria à imunidade internacional de jurisdição, rechaçada em sua forma absoluta:

a) quanto a lides imobiliárias, especifi camente no que se refere à cobrança de impostos e taxas decorrentes da aquisição e do uso de imóveis:

“DIREITO INTERNACIONAL PÚBLICO — IMUNIDADE DE JU-RISDIÇÃO DO ESTADO ESTRANGEIRO — EVOLUÇÃO DA IMU-NIDADE ABSOLUTA PARA A IMUNIDADE RELATIVA — ATOS DE GESTÃO — AQUISIÇÃO E UTILIZAÇÃO DE IMÓVEL — IM-POSTOS E TAXAS COBRADAS EM DECORRÊNCIA DE SERVIÇOS PRESTADOS PELO ESTADO ACREDITANTE.

Agindo o agente diplomático como órgão representante do Estado estran-geiro, a responsabilidade é deste e não do diplomata.

A imunidade absoluta de jurisdição do Estado Estrangeiro só foi admitida até o século passado.

Modernamente se tem reconhecido a imunidade ao Estado Estrangeiro nos atos de império, submetendo-se à jurisdição estrangeira quando pratica atos de gestão.

O Estado pratica ato ‘jure gestiones’ quando adquire bens imóveis ou mó-veis.

O Egrégio Supremo Tribunal Federal, mudando de entendimento, passou a sustentar a imunidade relativa.

Também o Colendo Superior Tribunal de Justiça afasta a imunidade abso-luta, adotando a imunidade relativa do Estado Estrangeiro.

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Não se pode alegar imunidade absoluta de soberania para não pagar im-postos e taxas cobradas em decorrência de serviços específi cos prestados ao Estado Estrangeiro.

Recurso provido.” (RO nº 6⁄RJ, Rel. Ministro GARCIA VIEIRA, DJU 10.05.1999)

Todavia, aludida orientação, atualmente, é objeto de questionamentos nesta Corte Superior, em consonância à orientação do Pretório Excelso:

“TRIBUTÁRIO. EXECUÇÃO FISCAL PROMOVIDA CONTRA ES-TADO ESTRANGEIRO. IMUNIDADE DE JURISDIÇÃO.

1. As questões de direito público referentes à cobrança de débitos tribu-tários estão abrangidas pela regra de imunidade de jurisdição de que goza o Estado Estrangeiro. Aplica-se, na hipótese vertente, as Convenções de Viena, de 1961 e 1963. Precedentes do Supremo Tribunal Federal.

2. Recurso a que se nega provimento.” (RO nº 35⁄RJ, Rel. Ministro TEO-RI ALBINO ZAVASCKI, DJU 23.08.2004)

b) quanto a ações fulcradas em atos comerciais:“Estado estrangeiro. Imunidade de jurisdição. Inocorrência. Precedentes.

Competência da Justiça brasileira. Recurso desprovido.— O Direito Internacional Público atual não tem prestigiado como ab-

soluto o princípio da imunidade de jurisdição de Estado estrangeiro, impon-do-se à confi rmação a erudita decisão que deu pela competência da Justiça brasileira. (...).

Finalmente, esta Quarta Turma aderiu ao entendimento restritivo da imu-nidade absoluta de jurisdição do Estado estrangeiro (...), afi rmando não ser o Estado estrangeiro imune à jurisdição brasileira enquanto cuida de atividades comerciais rotineiras em território pátrio.

Essa, inegavelmente, é a hipótese vertida nos autos, nos quais a recorri-da pretende haver da recorrente crédito correspondente ao fornecimento de materiais (vidros) para a construção da Chancelaria daquele país em Brasília. Assunto marcadamente rotineiro e de natureza comercial, que não isenta a recorrente de se ver demandada, quanto ao ponto, perante a Justiça brasileira (...).” (Ag nº 757⁄DF, Rel. Ministro SÁLVIO DE FIGUEIREDO TEIXEI-RA, DJU 01.10.1990)

c) quanto a lides trabalhistas:“Estado estrangeiro — Reclamação trabalhista — Imunidade de jurisdi-

ção.O princípio da imunidade de jurisdição de Estados estrangeiros era entre

nós adotado, não por força das Convenções de Viena, que cuidam de imuni-dade pessoal, mas em homenagem aos costumes internacionais. Ocorre que

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esses tendo evoluído, não mais se considera essa imunidade como absoluta, inaplicável o princípio quando se trata de litígios decorrentes de relações roti-neiras entre o Estado estrangeiro, representados por seus agentes, e os súditos do país em que atuam.

Precedente do Supremo Tribunal Federal [AC nº 9.696-3⁄SP].” (AC nº 7⁄BA, Rel. Ministro EDUARDO RIBEIRO, DJU 30.04.1990)

“DIREITO INTERNACIONAL E TRABALHISTA. RECLAMATÓ-RIA MOVIDA CONTRA CONSULADO-GERAL DE PAÍS ESTRAN-GEIRO, POSTULANDO VERBAS LABORAIS POR SERVIÇOS PRES-TADOS NO BRASIL. IMUNIDADE JURISDICIONAL AFASTADA.

I. A imunidade de jurisdição de Estado estrangeiro não alcança litígios de ordem trabalhista decorrentes de relação laboral prestada em território nacio-nal e tendo por reclamante cidadã brasileira aqui domiciliada.

II. Precedentes do STJ.III. Recurso ordinário improvido.” (RO nº 23⁄PA, Rel. Ministro ALDIR

PASSARINHO JUNIOR, DJU 19.12.2003)

d) quanto a ações versando responsabilidade civil:“Ação de indenização. Estado estrangeiro. Alegação de imunidade de juris-

dição. Não reconhecimento. Recurso cabível da sentença.Responsabilidade pelo fato de terceiro. Falta de comprovação de ter o ter-

ceiro agido com culpa. (...).II — A apelação é o recurso ordinário adequado, endereçado diretamente

ao STJ, para impugnar sentença proferida em causa em que forem partes Estado estrangeiro, de um lado, e, de outro, pessoa residente ou domiciliada no País (CF, art. 105, II, ‘c’).

III — Não há imunidade de jurisdição para o Estado estrangeiro, em cau-sa relativa a responsabilidade civil.

IV — Não comprovado que o seu preposto tenha agido com imperícia ou imprudência, como terceiro participante de fato causador do evento danoso [acidente automobilístico], não há como impor-se ao réu o dever de indeni-zar.

V — Agravo de instrumento e apelação desprovidos.” (AC nº 14-2⁄DF, Rel. Ministro ANTÔNIO DE PÁDUA RIBEIRO, DJU 19.09.1994)

Ante todo o esposado, em sendo repelida, na atualidade, a imunidade de jurisdição dos Estados em sua concepção absoluta, porém, inexistindo legislação fi rmada consensualmente pela comunidade internacional acerca dos exatos limites da relativização do instituto sob comento, conclui-se que a imunidade jurisdicional deve ser aferida de forma casuística, inadmitindo-se generalizações, mesmo face à presença de leis internas.

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In casu, portanto, não se verifi cando, segundo os costumes internacio-nais, quaisquer hipóteses excludentes da regra da imunidade de jurisdição, mostra-se devida a respectiva aplicação. Deveras, seja com fulcro na distinção entre atos de império e gestão, seja com lastro na comparação das praxes enu-meradas em leis internas de diversas Nações como excludentes do privilégio da imunidade, inviável considerar-se o presente litígio, disponente sobre o recebimento, por cidadão brasileiro, de recompensa prometida por Estado estrangeiro (EUA) enquanto participante de confl ito bélico, como afeto à jurisdição nacional.

Em outros termos, conquanto não se ignore a possibilidade de efetivação de promessa de recompensa por particulares, na hipótese vertente, tal ma-nifestação unilateral de vontade não evidenciou caráter meramente comer-cial, tampouco expressou relação rotineira entre o Estado estrangeiro (EUA) e os cidadãos brasileiros; muito ao revés, aludida promessa de recompensa consubstanciou verdadeira expressão de soberania estatal, revestindo-se de ofi cialidade, sendo motivada, de forma atípica, pela defl agração de guerra entre o Estado estrangeiro promitente (EUA) e Nação diversa (Iraque), e conseqüente persecução, por aquele, de desfecho vitorioso; por outro lado, não se inclui o ato unilateral de vontade (promessa de recompensa), despido de índole negocial, entre as exceções habitualmente aceitas pelos costumes internacionais à regra da imunidade de jurisdição, quais sejam, ações imobili-árias e sucessórias, lides comerciais e marítimas, trabalhistas ou concernentes à responsabilidade civil extracontratual. Desta feita, de rigor a incidência ao réu, Estado estrangeiro, da imunidade à jurisdição brasileira.

Ademais, in casu, encontra-se a imunidade de jurisdição corroborada pela de execução, perfazendo-se oportunas breves digressões acerca do tema, por-quanto, conforme salientado alhures, não obstante consistam ambas em as-pectos ou desdobramentos do mesmo fenômeno (daí falar-se em imunidades de cognição e de execução como espécies do gênero imunidade de jurisdi-ção), recebem tratamento dualista pelo Direito Internacional (a propósito, releva salientar que o projeto de “Convenção Internacional sobre Imunidades de Jurisdição dos Estados e de seus Bens”⁄ONU evoluciona a abordagem da matéria, na medida em que disciplina ambos os aspectos da imunidade juris-dicional de forma unitária).

Deveras, a imunidade estatal de execução, é dizer, a prerrogativa confe-rida aos Estados soberanos de não terem seus bens submetidos a medidas constritivas em território alheio, traduzindo-se, analogamente à imunidade de jurisdição, em norma de Direito Consuetudinário Internacional Público, também teve sua concepção originária absoluta gradualmente relativizada a partir da segunda metade do século XX, sendo, atualmente, majoritária a orientação, entre os integrantes da comunidade internacional, acerca da existência de bens que, conquanto pertencentes a Estados soberanos, não se

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encontram acobertados pela imunidade de execução. Todavia, não obstante admitida a relativização da imunidade de execução soberana, as respectivas hipóteses excepcionais, em comparação às excludentes da imunidade cog-nitiva, apresentam-se sobremaneira reduzidas, sendo inferidas por critérios extremamente rigorosos (daí haver autores que, não obstante a aceitação da existência de bens não imunes à constrição em território alheio, entendem a imunidade de execução não como fenômeno relativo, mas “quase absoluto”).

Desta feita, ressalte-se, à primeira, que, classifi cam-se como absolutamen-te imunes à execução em foro alheio: segundo convencionado internacio-nalmente: a) os bens de Estados soberanos que se encontrem afetados às res-pectivas atividades diplomáticas e consulares (art. 22, § 3º, da “Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas”⁄1963: “Os locais da Missão, seu mo-biliário e demais bens neles situados, assim como os meios de transporte da Missão, não poderão ser objeto de busca, requisição, embargos ou medida de execução”); b) os navios e embarcações pertencentes a Estados estrangeiros (“Convenção das Nações Unidas sobre Direito do Mar”⁄1982); conforme as praxes internacionais: c) os bens pertencentes a bancos centrais e autoridades monetárias de Estados estrangeiros (cf. “Foreign Sovereign Immunity Act”, EUA⁄1976, § 1.611, “State Immunity Act”, Reino Unido⁄1978, Seção 14); d) os bens de caráter militar ou utilizados para fi ns militares.

De outro extremo, estabelecem os costumes internacionais, consagrados, a seu turno, em leis internas de diversas Nações, a ausência de imunidade à exe-cução por Estado soberano de bem localizado em seu território e pertencente a Estado estrangeiro, desde que utilizado para fi ns comerciais (cf. “Foreign Sovereign Immunity Act”, EUA⁄1976, § 1.610, “State Immunity Act”, Reino Unido⁄1978, Seção 3; trata-se, outrossim, do critério adotado pelo projeto de “Convenção Internacional sobre Imunidades de Jurisdição dos Estados e de seus Bens”⁄ONU, art. 18). Em outros termos, o propósito comercial mani-festado pelo Estado estrangeiro no aproveitamento dos bens assume capital importância na confi guração das exceções à imunidade de execução, ao revés do que se verifi ca quanto à imunidade de jurisdição cognitiva, cujas exclu-dentes caracterizam-se com esteio na natureza negocial do ato praticado. No tocante a tal distinção, confi ra-se a exposição do caso “Procafe”:

“Em abril de 1998, a empresa alemã Procafe GmbH, portadora de um títu-lo executivo judicial contra a República Federativa do Brasil, no valor de DM 85 mil (oitenta e cinco mil marcos alemães), decorrente de decisão da Justiça Italiana proferida em ação originalmente proposta contra o extinto Instituto Brasileiro do Café, tentou executar seu crédito sobre divisas do Brasil deposi-tadas em bancos na Alemanha, que haviam sido obtidas pela emissão de 750 milhões de marcos em títulos públicos. Entre outros argumentos, alegavam os credores que os recursos obtidos com a comercialização de títulos públicos por Estados estrangeiros [ato de natureza comercial] não seriam imunes à execução.

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(...), o Brasil precisou demonstrar na jurisdição alemã que os recursos ob-tidos com a venda de títulos públicos tinham uma fi nalidade soberana: eram destinados a refi nanciar a dívida interna e controlar a infl ação [propósito não comercial do ato]. Cópias de resoluções do Senado e até uma declaração juramentada do Ministro da Fazenda, Pedro Malan, foram juntadas como provas do propósito dos recursos captados na Alemanha. A Justiça alemã, à vista da fi nalidade dos recursos do Estado brasileiro, considerou os bens imunes à execução.” (apud ANTENOR PEREIRA MADRUGA FILHO, op. cit., pp. 307⁄308)

Por fi m, convém mencionar, conquanto não se olvide o âmbito restri-to de sua aplicação, que a “Foreign Sovereign Immunity Act”, EUA⁄1976, § 1.610 (acompanhada, porém, pelo projeto de “Convenção Internacional sobre Imunidades de Jurisdição dos Estados e de seus Bens”⁄ONU), além da fi nalidade negocial, prescreve a obrigatoriedade de conexão entre o bem executado e a lide, é dizer, a necessidade de que a propriedade de um Estado estrangeiro, sobre a qual se tenciona a execução, esteja relacionada com o litígio cuja sentença se visa a executar.

No Estado brasileiro, embora se admita certa fl exibilização à imunidade de execução soberana, na esteira do posicionamento internacional, tal fenô-meno, em comparação à imunidade jurisdicional, remanesce dotado de co-notação mais ampla e rígida, conforme se dessome da escassa jurisprudência sobre o tema:

“É bem verdade que o Supremo Tribunal Federal, tratando da questão pertinente à imunidade de execução (matéria que não se confunde com o tema concernente à imunidade de jurisdição ora em exame), continua, quan-to a ela (imunidade de execução), a entendê-la como prerrogativa institucio-nal de caráter mais abrangente, ressalvadas as hipóteses excepcionais (a) de renúncia, por parte do Estado estrangeiro, à prerrogativa da intangibilidade dos seus próprios bens (RTJ 167⁄761, Rel. Min. ILMAR GALVÃO — ACO 543⁄SP, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE) ou (b) de existência, em ter-ritório brasileiro, de bens que, embora pertencentes ao Estado estrangeiro, não tenham qualquer vinculação com as fi nalidades essenciais inerentes às legações diplomáticas ou representações consulares mantidas em nosso País.” (STF, AgRg RE nº 222.368-4⁄PE, Rel. Ministro CELSO DE MELLO, DJU 14.02.2003)

“EXECUÇÃO FISCAL MOVIDA PELA FAZENDA FEDERAL CON-TRA ESTADO ESTRANGEIRO. IMUNIDADE DE JURISDIÇÃO.

A imunidade de jurisdição não sofreu alteração em face do novo quadro normativo que se delineou no plano do direito internacional e no âmbito do direito comparado (cf. AgRg 139.671, Min. Celso de Mello, e AC 9.696,

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Min. Sydney Sanches), quando o litígio se trava entre o Estado brasileiro e o Estado estrangeiro, notadamente em se tratando de execução. Orientação ratifi cada pela Corte (AGRACOs 522 e 527).

Agravo regimental improvido.” (STF, AgRg ACO nº 634-9⁄SP, Rel. Mi-nistro ILMAR GALVÃO, DJU 31.10.2002)

“RECLAMAÇÃO TRABALHISTA. EXECUÇÃO MOVIDA CON-TRA ESTADO ESTRANGEIRO. PENHORA. INADMISSIBILIDADE. IMUNIDADE DE EXECUÇÃO. EXPEDIÇÃO DE CARTA ROGATÓ-RIA PARA A COBRANÇA DO CRÉDITO.

— Os bens do Estado estrangeiro são impenhoráveis em conformidade com o disposto no art. 22, inciso 3, da ‘Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas (Decreto nº 56.435, de 8.6.1965)’.

Agravo provido parcialmente para determinar-se a expedição de carta ro-gatória com vistas à cobrança do crédito.” (STJ, Ag nº 230.684⁄DF, Rel. Mi-nistro BARROS MONTEIRO, DJU 10.03.2003)

Destarte, na hipótese sub judice, releva consignar a previsão, em princí-pio, no tocante ao réu, Estado estrangeiro (EUA), do privilégio da imunidade à execução forçada de bens de sua propriedade, eventualmente localizados em território pátrio, não obstante traduzindo-se tal argumento em mera cor-roboração, ressalte-se, à imunidade de jurisdição já reconhecida, porquanto, consoante judiciosamente fi rmado pelo e. Ministro CELSO DE MELLO, ao julgar o AgRg RE nº 222.368-4⁄PE (DJU 14.02.2003), a prerrogativa de-corrente tão-só da imunidade de execução não obsta o exercício, pelo Estado brasileiro, da jurisdição cognitiva face a Estados estrangeiros:

“O PRIVILÉGIO RESULTANTE DA IMUNIDADE DE EXECUÇÃO NÃO INIBE A JUSTIÇA BRASILEIRA DE EXERCER JURISDIÇÃO NOS PROCESSOS DE CONHECIMENTO INSTAURADOS CON-TRA ESTADOS ESTRANGEIROS.

A imunidade de jurisdição, de um lado, e a imunidade de execução, de outro, constituem categorias autônomas, juridicamente inconfundíveis, pois — ainda que guardem estreitas relações entre si — traduzem realidades in-dependentes e distintas, assim reconhecidas quer no plano conceitual, quer, ainda, no âmbito de desenvolvimento das próprias relações internacionais. (...).

Isso signifi ca, portanto, que eventual impossibilidade jurídica de efetiva-ção executória de determinada condenação, imposta, em sede de cognição, a ente de direito público externo, não inviabiliza o pleno exercício, pelos órgãos judiciários do Estado receptor (o Brasil, na espécie), de sua atividade jurisdicional, no âmbito do processo de conhecimento instaurado em face de Estados estrangeiros.

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A difi culdade adicional de realização prática do título judicial condenató-rio, representada pela prerrogativa da imunidade de execução, não se revela sufi ciente para obstar, só por si, a instauração, perante Tribunais brasilei-ros, de processos de conhecimento contra Estados estrangeiros, notadamente quando se tratar — como no caso — de litígio de natureza trabalhista.”

Por outro lado, mesmo vislumbrando-se, in casu, a incidência ao réu, Es-tado estrangeiro, das imunidades de jurisdição e execução a obstaculizar o exercício da atividade jurisdicional pelo Estado brasileiro, cumpre não olvidar a prerrogativa soberana dos Estados de renúncia às imunidades de jurisdição e execução, já que, como cediço, “outra exceção ao princípio da imunidade estatal à jurisdição estrangeira ocorre quando o Estado renuncia ao privilégio, o que lhe é facultado fazer com relação a qualquer processo, refi ra-se ele a ‘acta jure gestionis’ ou ‘acta jure imperii’“ (JACOB DOLINGER (coord.), A imunidade estatal à jurisdição estrangeira, in “A Nova Constituição e o Direito Internacional”, Rio de Janeiro, Freitas Bastos, 1987, p. 198).

A propósito, ainda, insta transcrever as judiciosas considerações dos i. LUÍS ROBERTO BARROSO e CARMEN TIBURCIO:

“A tese que aqui se afi rma ser a melhor é a de que, independentemente da natureza do ato discutido, a submissão de um Estado à jurisdição de outro em si já é uma forma de relacionamento com um Estado estrangeiro e, mais que isso, uma forma de relacionamento subordinativo, pois envolve neces-sariamente a renúncia à imunidade e, em conseqüência, a um aspecto da soberania. Isso porque, na relação triangular que se forma em todo processo judicial (juiz — autor — réu), as partes subordinam-se à autoridade jurisdi-cional, de modo que o Estado-parte estará subordinado ao Estado-juiz. Por seu turno, o Estado estrangeiro que exerce jurisdição pratica um ato típico de sua soberania. Em suma: submeter-se à autoridade jurisdicional estrangeira é manter relação com Estado estrangeiro e, independentemente da questão de fundo objeto da disputa, já é por si só um ato de império que acarreta uma opção pela subordinação, pois importa renúncia à imunidade, prerro-gativa inerente à soberania.” (Imunidade de jurisdição: o Estado Federal e os Estados-membros, parecer a integrar obra coletiva, provisoriamente intitula-da “Estudos em Homenagem ao Professor Jacob Dolinger”, atualmente no prelo, cujo original nos foi gentilmente cedido pelos autores)

Neste particular, incumbe ressaltar que, conquanto extremada a generali-zação acerca da exigência, em qualquer hipótese, de renúncia expressa às imu-nidades de jurisdição e execução (considerando-se, v. g., como manifestação tácita de renúncia a propositura de ação pelo Estado, impeditiva da invocação de imunidade em reconvenção ou ações conexas), vigora o entendimento de que o silêncio do Estado demandado não importa submissão voluntária à ju-

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risdição do Estado estrangeiro, devendo, bem ao revés, ser interpretado como afi rmação ou exercício do direito às imunidades de jurisdição e execução:

“Ação movida por advogado contra Estado estrangeiro, cobrando hono-rários profi ssionais, julgada procedente. Apelação. Imunidade de jurisdição. O silêncio do Estado-réu, não atendendo ao chamamento judicial, não con-fi gura, por si, renúncia à imunidade de jurisdição. Precedentes do STF. Ape-lação provida, julgando-se extinto o processo (art. 267, inc. VI, do CPC).” (AC nº 9.687-4⁄DF, Rel. Ministro DJACI FALCÃO, DJU 21.09.1984. No mesmo sentido: AC nºs 9.707⁄RJ, Rel. Ministro ALDIR PASSARINHO, DJU 11.03.1988; 9.705-6⁄DF, Rel. Ministro MOREIRA ALVES, DJU 23.10.1987; 9.684-0⁄DF, Rel. Ministro RAFAEL MAYER, DJU 04.03.1983).

Destarte, in casu, vislumbrando-se, em princípio, a competência concor-rente das autoridades judiciárias pátrias para processar e julgar a presente Ação Ordinária e, simultaneamente, a prerrogativa soberana de imunidade de juris-dição ao Estado estrangeiro, impõe-se o prosseguimento do feito, incumbindo ao d. Juízo Federal da 5ª Vara da Seção Judiciária de Minas Gerais determinar a citação do Estado réu (EUA), para, em querendo, exercer o direito à imuni-dade jurisdicional ou submeter-se voluntariamente à jurisdição pátria.

Neste particular, convém ressaltar, quanto à citação de Estado estrangeiro, a prática consuetudinária internacional no sentido de que a mesma, não ne-cessitando ser feita por carta rogatória, seja dirigida, por vias diplomáticas, ao Ministério das Relações Exteriores do Estado demandado, que providenciará a respectiva comunicação ao destinatário. A propósito, a “Foreign Sovereign Immunity Act”, EUA⁄1976, § 1.608, admite a efetivação da citação: 1) nos termos de acordo especial fi rmado entre o Estado do foro e o Estado réu; 2) à falta de procedimento previamente acertado, segundo o previsto em con-venção internacional aplicável; 3) em falhando os dois primeiros recursos, mediante remessa de cópia do ato citatório ao Ministro das Relações Exte-riores do Estado demandado, por qualquer forma de correio com aviso de recebimento; 4) e, em última hipótese, por meio de canais diplomáticos, com remessa do ato ao Ministério das Relações Exteriores do Estado réu.

Por derradeiro, ressalve-se a possibilidade de, ao revés da citação do Estado estrangeiro, optar o d. Magistrado pela respectiva notifi cação, conforme já decidido pelo e. Ministro CELSO DE MELLO (STF, ACO nº 575⁄DF, DJU 18.09.2000):

“Sendo assim, e considerando-se a natureza do fato ensejador do ajuiza-mento da presente ação, parece viável a instauração desta causa perante o Supremo Tribunal Federal (CF, art. 102, I, ‘e’). Antes de ordenar a citação, no entanto — e atento às implicações que desse ato podem resultar, em face do que dispõem os Artigos 22 e 30 da Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas (...) — determino que se transmita o inteiro teor do presente

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despacho ao Senhor Ministro de Estado das Relações Exteriores, para que Sua Excelência inste a República de Camarões a pronunciar-se, por intermé-dio de sua Missão Diplomática, sobre a sua eventual submissão à jurisdição do Poder Judiciário brasileiro.”

Por tais fundamentos, conheço e dou provimento ao presente Recurso Ordinário para, reconhecendo a competência concorrente da autoridade ju-diciária brasileira, nos termos do art. 88, III, do CPC e, simultaneamente, as imunidades de jurisdição e execução ao Estado estrangeiro, determinar o prosseguimento do feito, notifi cando-se ou citando-se o demandado, ESTA-DOS UNIDOS DA AMÉRICA, a fi m de que exerça o direito à imunidade jurisdicional ou submeta-se voluntariamente à jurisdição pátria.

É o voto.

RECURSO ORDINÁRIO Nº 39 — MG (2004⁄0088522-2)

VOTO

O SR. MINISTRO BARROS MONTEIRO:Sr Presidente, acompanho o voto do Sr. Ministro relator por estar na linha

dos precedentes deste Tribunal, inclusive em conformidade com o voto que proferi no Agravo de Instrumento nº 230.684⁄DF, de que fui Relator, no qual se tratou do problema da imunidade de jurisdição.

Estou de acordo com S. Exa. quanto à competência concorrente no caso e ao cabimento da intimação da Nação que fi gura como ré neste feito para dizer se recusa ou não a jurisdição brasileira.

Conheço do recurso ordinário e dou-lhe provimento.

CERTIDÃO DE JULGAMENTOQUARTA TURMANúmero Registro: 2004⁄0088522-2 RO 39 ⁄ MG

Números Origem: 2004174994 200438000174994

PAUTA: 06⁄10⁄2005 JULGADO: 06⁄10⁄2005

RelatorExmo. Sr. Ministro JORGE SCARTEZZINI

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Presidente da SessãoExmo. Sr. Ministro FERNANDO GONÇALVES

Subprocurador-Geral da RepúblicaExmo. Sr. Dr. DURVAL TADEU GUIMARÃES

SecretáriaBela. CLAUDIA AUSTREGÉSILO DE ATHAYDE BECK

AUTUAÇÃO

RECORRENTE: JUCELINO NÓBREGA DA LUZADVOGADO: CARLOS ALBERTO FERREIRA E OUTROSRECORRIDO: ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA

ASSUNTO: Civil — Responsabilidade Civil — Indenização

CERTIDÃO

Certifi co que a egrégia QUARTA TURMA, ao apreciar o processo em epígrafe na sessão realizada nesta data, proferiu a seguinte decisão:

A Turma, por unanimidade, conheceu do recurso ordinário e deu-lhe pro-vimento, nos termos do voto do Sr. Ministro Relator.

Os Srs. Ministros Barros Monteiro, Cesar Asfor Rocha, Fernando Gonçal-ves e Aldir Passarinho Junior votaram com o Sr. Ministro Relator.

Brasília, 06 de outubro de 2005

5. LEGISLAÇÃO

Convenção das Nações Unidas sobre a imunidade de jurisdição do Estado e de seus bens

Decreto Nº 19.841, de 22 de outubro de 194 — Carta das Nações UnidasDecreto 27.784 de 16 de fevereiro de 1950 — Convenção sobre Privilé-

gios e Imunidades das ONU

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AULA 16 — APLICAÇÃO INTERPRETAÇÃO E PROVA DO DIREITO ESTRANGEIRO

1. TEMAS ESPECÍFICOS:

1) Aplicação do direito estrangeiro pelos tribunais nacionais;2) Como deve se dar a interpretação do direito estrangeiro pelos tribunais

nacionais;3) Como se prova o direito estrangeiro nos tribunais nacionais.

2. MÉTODO DE ENSINO:

Aula expositiva e participativa.

3. LEITURA:

3.1. Leitura obrigatória:

DOLINGER, Jacob. Direito Internacional Privado: Parte Geral. 9ª Ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, pp. 277 — 296.

3.2. Leitura complementar:

RECHSTEINER, Beat Walter. Direito Internacional Privado: Teoria e Práti-ca. 13ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2010, pp.255-276.

4. LEITURA PARA O DEBATE

4.1. LEITURA PARA O GRUPO

ARAUJO, Nadia de. Direito Internacional Privado: Teoria e Prática Brasileira. 3ª Ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, pp. 253-260.

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4.2. JURISPRUDÊNCIA

CASO 1: RE 254.544/MG (STJ)

SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

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CASO 2: RE 93131/MG (STJ)

SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

EQUIPARAÇÃO DA LEI ESTRANGEIRA, APLICADA NO BRA-SIL, A LEGISLAÇÃO FEDERAL BRASILEIRA, PARA EFEITO DE AD-MISSIBILIDADE DE RECURSO EXTRAORDINÁRIO. DAÇÃO EM CUMPRIMENTO. SUB-ROGAÇÃO LEGAL. CÓDIGO CIVIL POR-TUGUES (ARTS. 592, 593 E 837). INEXISTÊNCIA DE NEGATIVA DE VIGENCIA DO ARTIGO 9 DA LEI DE INTRODUÇÃO AO CÓDIGO CIVIL. DISSIDIO DE JURISPRUDÊNCIA NÃO DEMONSTRADO. A LEI ESTRANGEIRA, APLICADA POR FORÇA DE DISPOSITIVO DE DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO BRASILEIRO (NA ESPÉCIE, O ARTIGO 9 DA LEI DE INTRODUÇÃO AO CÓDIGO CIVIL), SE EQUIPARA A LEGISLAÇÃO FEDERAL BRASILEIRA, PARA EFEITO DE ADMISSIBILIDADE DE RECURSO EXTRAORDINÁRIO. NÃO OCORRENCIA, NO CASO, DE DAÇÃO EM CUMPRIMENTO (DA-TIO IN SOLUTUM) E DE SUB-ROGAÇÃO LEGAL. NEGATIVA DE VIGENCIA DOS ARTIGOS 837, 592 E 593 DO CÓDIGO CIVIL POR-TUGUES. RECURSO EXTRAORDINÁRIO CONHECIDO E PROVI-DO.

(RE 93131, Relator(a): Min. MOREIRA ALVES, SEGUNDA TURMA, julgado em 17/12/1981, DJ 23-04-1982 PP-03669 EMENT VOL-01251-02 PP-00328 RTJ VOL-00101-03 PP-01149)

CASO 3: AC 19221/2003 (TJRJ)

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO DE JANEIRO

EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO SUMÁRIA DE INDENIZA-ÇÃO. COLISÃO DE VEÍCULOS COM VÍTIMA FATAL. RESPON-SABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL E SUBJETIVA... AFFI-DAVIT — ACEITABILIDADE DA PROVA PRODUZIDA NO PAÍS ESTRANGEIRO.

“(...) Afi gura-se razoável a insurgência das autoras no que diz respeito à aceitação das declarações fi rmadas pelo Contador da vítima, considerando-se a validade do affi davit (declaração sobre juramento), no caso concreto, obje-tivando a comprovação dos ganhos da vítima.

(...) Uma regra já consagrada no nosso Direito Internacional Privado é a de que os documentos devem ser considerados válidos de acordo com a lei do lugar em que foram expedidos (locus regit actum)”

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(...) Os affi davits, em regra, são aceitos para comprovação do direito es-trangeiro, para aplicação pelo juiz.

(...) Na hipótese, as declarações prestadas pelo Contador inglês se fi zeram sob juramento e na presença de notário público, até mesmo porque eventual falsidade poderia importar em ilícito reconhecido tanto pela lex fori quanto pela lex loci.”

(Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. AC 19221/2003, Rel. Des. José Carlos de Figueiredo).

CASO 4: RECLAME 2.645-SP

SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

COMPARTILHAMENTO DE PROVAA Corte Especial, prosseguindo o julgamento, por maioria, entendeu ser

legal o pedido de compartilhamento de material probatório existente no Bra-sil, e feito por autoridade estrangeira (Procuradoria Geral da Federação da Rússia), no exercício de atividade investigatória sobre possíveis ilícitos pe-nais praticados pelo reclamante naquele país, dirigido à autoridade brasileira congênere (Procuradoria Geral da República) e não sujeito à carta rogatória, exequatur ou a qualquer outra manifestação do STJ. Reiterou-se, em con-sonância com a jurisprudência do STF, que o compartilhamento de prova, uma das medidas características da cooperação jurídica internacional, é itera-tivamente previsto nos acordos bilaterais e multilaterais dos quais o Brasil é signatário (Convenção da ONU contra o Crime Organizado Transnacional e Convenção contra a Corrupção, Convenção de Mérida, Convenção de Pa-lermo). Desse modo, a legitimidade do ato impugnado não se sujeita neces-sariamente a controle por via de reclamação. Cabem, no caso, outros meios recursais comuns que podem ser utilizados para tal fi m.

(Rcl 2.645-SP, Rel. Min. Teori Albino Zavascki, julgada em 18/11/2009.)

5. LEGISLAÇÃO

Lei Nº 5.869 — Código de Processo CivilDecreto-Lei Nº 4657/42 — Lei de Introdução às Normas do Direito Bra-

sileiro;

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AULA 17— ESTUDO DA LEI DE INTRODUÇÃO ÀS NORMAS DO DIREITO BRASILEIRO (LINDB) — DECRETO-LEI Nº 4657/42

1. TEMAS ESPECÍFICOS:

1) Questões de família, casamento, divórcio e bens;2) Questões de sucessão, obrigações, contratos e atos de representantes do

Estado no exterior.

2. MÉTODO DE ENSINO:

Aula expositiva e participativa.

3. LEITURA:

3.1. Leitura obrigatória:

PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil, Vol. 1. 23ª Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2010, pp.143-157.

Decreto-Lei Nº 4657/42 — Lei de Introdução às Normas do Direito Bra-sileiro (inteiro teor).

3.2. Leitura complementar:

VALLADÃO, Haroldo. A Lei de Introdução ao Código Civil e sua Reforma. In: MENDES, Gilmar Ferreira; STOCO, Rui. Doutrinas Essenciais — Direi-to Civil. Parte Geral. Volume II. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011.

4. LEITURA PARA O DEBATE

4.1. LEITURA PARA O GRUPO

ARAUJO, Nadia de. Direito Internacional Privado: Teoria e Prática Brasileira. 3ª Ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, pp. 397-443.

4.2. LEITURA PARA A TURMA

TEXTO NA ÍNTEGRA:

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4 Possui Graduação em Direito pela

Universidade do Estado do Rio de Ja-

neiro (1958) e Doutorado em Direito

pela mesma Universidade (1969). Tem

experiência na área de Direito e presta

consultoria jurídica, com ênfase em

Direito Internacional Privado, atuando

principalmente nos seguintes temas:

Direito Internacional Privado, Direito

Comparado, Confl ito de Leis, Ordem

Publica e Direito Estrangeiro.

Nova Lei para o Direito Internacional Privado

UMA LEI PARA SOLUCIONAR CONFLITOS DE NORMAS

Jacob Dolinger.4

Desde a década de 60 que tentativas têm sido feitas para criar uma mo-derna legislação de direito internacional privado para nosso país. A Lei de Introdução ao Código Civil, que cuida dos confl itos de leis no tempo (direito intertemporal) e no espaço (direito internacional privado), tem 68 anos. Foi aprovada em 1942 por decreto-lei durante a ditadura Vargas.

O primeiro grande esforço para criar um novo estatuto foi empreendido pelo professor Haroldo Valladão, que apresentou um anteprojeto de 91 ar-tigos, revisto e aprovado por comissão formada pelo autor, professor Oscar Tenório e ministro Luiz Galotti. O projeto foi apresentado ao Congresso, mas não vingou.

A segunda tentativa para substituir a Lei de Introdução ao Código Civil deu-se em 1994, durante a presidência Itamar Franco, mediante mensagem nº 1.293, convertida no projeto de lei nº 4.905, que dispõe sobre a aplicação das normas jurídicas, preparado por uma comissão presidida pelo professor João Grandino Rodas, da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), atualmente reitor da universidade.

O projeto mereceu parecer favorável da Comissão de Constituição e Jus-tiça da Câmara dos Deputados. Por motivos até hoje não esclarecidos, a Pre-sidência da República requisitou a devolução do projeto, que assim morreu no nascedouro.

Passados dez anos, em 2004, o senador Pedro Simon apresentou o projeto de lei nº 269, dispondo sobre a aplicação das normas jurídicas, baseado no projeto nº 4.905, com algumas importantes adições. Nada de concreto resul-tou até o momento.

Esse projeto é inovador. Ele atualiza as regras de direito intertemporal e mais ainda do direito internacional privado. Além de dispor sobre relações entre os cônjuges no plano internacional — pessoais e patrimoniais — de acordo com o entendimento da moderna doutrina, divorciada da dogmática e voltada para a praticidade, garantir às crianças, adolescentes e incapazes, cujos pais tenham domicílios diversos, a aplicação da lei “que resulte no me-lhor interesse” das pessoas protegidas (princípio da proteção tão defendido por Valladão), é no campo das obrigações contratuais internacionais que o projeto veio para modernizar nosso direito internacional e facilitar os negó-cios transnacionais. Onde há incertezas, obscuridades, regras incompletas no diploma de 1942, o projeto do senador Simon fi rma normas seguras, claras e precisas, em harmonia com as legislações modernas e as convenções inter-

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nacionais de Haia e da Conferência Interamericana de Direito Internacional Privado (CIDIP).

Ali está consagrada a autonomia da vontade das partes para escolher a lei a ser aplicada ao contrato e, na hipótese de não ter havido escolha pelas partes, as obrigações serão regidas “pela lei do país com o qual mantenham os vínculos mais estreitos” — o mui importante e modernamente consagrado princípio da proximidade. O projeto estende o mesmo princípio aos atos jurídicos em geral.

As formalidades do ato jurídico serão as do local onde efetuado, mas as partes são livres para escolher outra forma. Os contratos realizados no exte-rior sobre bens situados no país poderão ser realizados na forma escolhida pelas partes, mas dependerão, para sua efi cácia, de registro no Brasil, na con-formidade da nossa legislação.

As obrigações decorrentes de atos ilícitos serão regidas pela lei com vincu-lação mais estreita, seja a do país onde praticado o ato, seja a lei do país em que o prejudicado sofreu o dano (lex loci delicti commissi ou lex damni).

O projeto aceita o reenvio da lei por nós indicada quando esta aponta para a aplicação de outra lei, inclusive da nossa. A qualifi cação dos institutos obe-decerá às defi nições do nosso direito. Os direitos adquiridos de acordo com outro sistema jurídico serão respeitados e a ordem pública continua como obstáculo à aplicação de leis que fi ram nossos princípios fundamentais.

A pessoa jurídica continuará regida pela lei do país onde tiver sido cons-tituída, e para funcionar no Brasil fi cará sujeita às nossas leis e aos nossos tribunais.

No plano processual, os contratantes internacionais serão livres para submeter-se à jurisdição estrangeira. Além de serem reconhecidas no Brasil sentenças estrangeiras, nossos tribunais poderão conceder medidas cautelares visando a garantir a efi cácia em nosso território de decisões que venham a ser prolatadas em ações judiciais no estrangeiro.

O projeto consagra a cooperação jurídica internacional, determinando o atendimento das solicitações de autoridades estrangeiras, e todos pedidos de informações ou documentos que sejam requisitados do estrangeiro deverão, como regra, ser dirigidos por meio de carta rogatória.

É um projeto curto, com 30 artigos, muito menos detalhista do que as modernas leis da Alemanha (1986), da Suíça (1987), da Itália (1995) e mui-tas outras, refl etindo confi ança na nossa doutrina e na experiência de nossos tribunais.

É uma proposta inteligente, moderna e absolutamente necessária para re-forçar a confi ança do mundo no nosso direito, facilitando os contratos entre nossas empresas e interesses estrangeiros, garantindo os investimentos do ex-terior, enfi m, criando uma atmosfera de mais segurança e mais confi abilidade em nosso sistema jurídico no plano internacional privado.

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5 Professor Doutor do departamento

de direito civil da Universidade de São

Paulo – Largo de São Francisco. Doutor

e Mestre em Direito Civil pela Universi-

dade de São Paulo. Professor de Direito

Civil da Faculdade de Direito da Funda-

ção Armando Álvares Penteado- FAAP

e do Curso de Especialização da Escola

Paulista de Direito.

O Congresso aprovou em 2002 um novo Código Civil, para substituir o código de Clovis Bevilaqua, aprovado congressualmente que, coadjuvado por uma série de leis suplementares, formava um sistema jurídico coerente e sustentável. No entanto, não tocou na lei de introdução, aprovada por um decreto-lei, mal redigido, desatualizado, em desarmonia com várias conven-ções internacionais e com os modernos princípios que regem a ciência que soluciona os confl itos de leis.

Caberá ao futuro Congresso debruçar-se sobre a iniciativa do senador Pe-dro Simon e, depois de bem analisada, aprová-la, trazendo grande benefício às relações jurídicas do Brasil com o mundo exterior.

Jacob Dolinger é professor titular aposentado da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Professor visitante dos cursos de pós graduação em direito da USP e da UERJ. Professor visitante da Universidade de Miami. Conferencista da Academia de Direito Internacional da Haia no ano de 2000.

Este artigo refl ete as opiniões do autor, e não do jornal Valor Econômico. O jornal não se responsabiliza e nem pode ser responsabilizado pelas infor-mações acima ou por prejuízos de qualquer natureza em decorrência do uso dessas informações

Publicação Valor Econômico

TEXTO NA ÍNTEGRA:

LICC OU LINDB? A triste mudança e mediocridade legislativa.

UMA HOMENAGEM AO MARCELO, MARMELO, MARTELO.

José Fernando Simão.5

Início de ano e caixa postal cheia de e-mails. Uma alegria receber a felici-tação dos amigos pelo ano que se inicia.

Para minha surpresa, vejo um e-mail enviado pelo sempre atualizado e amigo de longa data Professor Flávio Tartuce intitulado: “NOME DA LICC ALTERADO!!!!! Feliz 2011!” O conteúdo da mensagem eletrônica era sucin-to como todas as mensagens do remetente: a simples cópia do texto da Lei 12.376 de 30 de dezembro de 2010.

De maneira singela dispõe a lei:

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Art. 1º Esta Lei altera a ementa do Decreto-Lei no 4.657, de 4 de setem-bro de 1942, ampliando o seu campo de aplicação.

Art. 2º A ementa do Decreto-Lei no 4.657, de 4 de setembro de 1942, passa a vigorar com a seguinte redação:

“Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro.”Art. 3º Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.

“Esta lei altera a ementa do Decreto-lei 4.657 de 4 de setembro de 1942, ampliando seu campo de aplicação.” Este é o texto do artigo 1º da Lei 12.376/10. A grande pergunta que se faz é a seguinte: será que a mudança do nome da LICC amplia seu campo de atuação?

É fato incontroverso que a Lei de Introdução ao Código Civil não é nem nunca foi uma regra para ser aplicada apenas às relações civis e que seu con-teúdo de lei geral é mais amplo do que o nome indicava. Daí, dizer-se que a LICC é a considerada lex legum.

Perfeitas as observações de Pablo Stolze Gagliano ao dizer que “o fato é que o referido Decreto-Lei, originariamente intitulado de ‘Lei de Introdução ao Código Civil’, sempre teve um alcance normativo muito mais vasto e pro-fundo, na medida em que não apenas traçava diretrizes fundamentais para o Direito Civil propriamente dito, como também para diversos outros ramos da dogmática jurídica, incluindo-se o próprio Direito Constitucional’.

A grande pergunta é a seguinte: porque mudar o nome da lei de introdu-ção se o seu conteúdo não foi alterado?

Navegando na internet achei a seguinte consideração: “Pessoal, o fi nal de 2010 assistiu uma mudança no mínimo inusitada na LICC. Uma lei mudou o seu nome, mas não seu conteúdo, que permanece o mesmo desde 1942! E não culpem o Titirica, porque ele ainda não exercia seu mandato. Vejam o texto abaixo”.

Perfeita a colocação. A mudança do nome das coisas não signifi ca mudan-ça de sua essência.

Ainda navegando, li no blog do Professor Marcelo Hugo da Rocha uma colocação irônica e perfeita: “O objetivo? Para ampliar o seu campo de apli-cação. Ora, alguém tinha dúvida de que a antiga LICC se aplicava a todas as normas de direito brasileiro?? Bem, talvez LULA imaginou em deixar uma herança jurídica para o nosso direito. Quem vai saber, até porque o novo CPC fi cou para Dilma assinar”.

Para aqueles que gostaram da mudança, pois esta dá clareza ao campo de aplicação da LICC, pois é bom para esclarecer os alunos (como se lei servisse para dar aulas...), deixo uma lembrança de minha infância que poderia ser alguma valia ao legislador brasileiro.

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Ruth Rocha criou uma história fantástica a respeito das coisas e seu nome. A personagem Marcelo (título destas linhas) vivia fazendo perguntas a todo mundo e certo dia cismou com o nome das coisas...

“Mamãe, por que é que eu chamo Marcelo? E por que não escolheram martelo? Por que é que não escolheram marmelo?” Os pais responderam: “Porque marmelo é nome de fruta, menino!”.

Daí, retorquiu Marcelo com uma indagação genial: “E a fruta não podia chamar Marcelo e eu chamar marmelo?”

Eu, em 2011, respondo ao Marcelo: claro que você poderia chamar mar-melo, mas por uma questão de convenção lingüística, o fruto recebeu, antes de você, o nome de marmelo.

A lei que disciplina a aplicação de normas no direito brasileiro, desde 1916, quando da edição do Código Civil revogado, recebeu um nome do legisla-dor: Lei de Introdução ao Código Civil. Poderia ter recebido outro nome? É claro: “lei de introdução às normas jurídicas”, “lei geral sobre aplicação de leis”, “Lex legum”, “lindeb”, ou qualquer outro tal como “Lei Sbrubbles” (a grafi a com dois “b” decorre simplesmente de meu apreço pela duplicação de consoantes).

Se conhecesse Marcelo, o legislador brasileiro jamais teria alterado o nome da LICC. Isto porque, Marcelo, em sua obsessão por mudar o nome das coisas, resolveu que “as coisas deveriam ter nomes mais apropriados”. Real-mente, travesseiro deveria chamar “cabeceiro”, colher, “mexedor”, leite, suco de vaca e assim por diante.

Marcelo via na mudança uma forma de dar lógica e tornar mais claro o idioma. Até que, certo dia, em uma situação de emergência, gritou para seus pais: “Embrasou a moradeira do latildo! Embrasou a moradeira do latildo!”. Evidentemente não se podia compreender o que Marcelo queria dizer e, en-tão, quando os pais descobriram o signifi cado daquilo era tarde demais: a casa do cão da família havia queimado e estava irremediavelmente destruída.

A LICC, com seu novo nome e velha roupa, agora é LINDB! Mudou-se algo que assim era chamado há quase 100 anos. Centenas ou milhares de obras precisarão de atualização para, apenas, se atender a um capricho do legislador e para dar um novo nome a um velho diploma.

Ao legislador brasileiro, que certamente tem poucas questões com as quais se preocupar, pois as reformas políticas e tributárias são coisas absolutamente desnecessárias (estou sendo irônico), sugiro que, dando sequência à política de mudança de nomes, altere o nome dos seguintes institutos:

a) o direito real de USO (art. 1412 do CC) passaria a se chamar USU-FRUTO LIMITADO, pois como sabe, o titular do direito de uso pode re-ceber os frutos do bem, ainda que de maneira limitada e de acordo com suas necessidades e de sua família (art. 1412, § º do CC).

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b) contrato ESTIMATÓRIO (arts. 534 a 537 do CC) passaria a se cha-mar VENDA EM CONSIGNAÇÃO, pois é o nome que recebe na praxe comercial;

c) CONSIGNAÇÃO poderia se chamar DEPÓSITO PARA EXTIN-ÇÃO DA OBRIGAÇÃO, pois é isto que realmente signifi ca.

Pergunto: se o legislador medíocre perde tempo para mudar o nome da LICC, melhor não seria a mudança do próprio conteúdo da norma? É acho que precisaremos de muito esforço para explicar o que é esta tal de LINDB.

Eu já fi z uma opção. Se for perguntado por um aluno: “Professor, o que é a ‘Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro?’“ Responderei: é o novo nome da velha lei de introdução ao Código Civil.

Texto veiculado na Carta Forense

4. LEGISLAÇÃO

Decreto-Lei Nº 4657/42 — Lei de Introdução às Normas do Direito Bra-sileiro.

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TÍTULO III — COOPERAÇÃO INTERNACIONAL

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AULA 18 — HOMOLOGAÇÃO DE SENTENÇAS ESTRANGEIRAS

1. TEMAS ESPECÍFICOS:

1) Cooperação Internacional;2) Homologação de sentença estrangeira como modalidade;3) Tratados Internacionais sobre Homologação de Sentenças Estrangeiras.

2. MÉTODO DE ENSINO:

Aula expositiva e participativa.

3. LEITURA:

3.1. Leitura obrigatória:

ARAUJO, Nadia de. Direito Internacional Privado: Teoria e Prática Brasileira. 3ª Ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, pp. 292-320.

3.2. Leitura complementar:

ARAUJO, Nadia de. Cooperação Jurídica Internacional no Superior Tribunal de Justiça: Comentários à Resolução n. 9/2005. Rio de Janeiro: Renovar, 2010, pp. 32-49.

TIBURCIO, Carmen; BARROSO, Luís Roberto (Org). Direito Internacio-nal Contemporâneo: Estudos em homenagem ao Professor Jacob Dolinger. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, pp.1-8.

4. LEITURA PARA O DEBATE

4.1. LEITURA PARA O GRUPO

TIBURCIO, Carmen; BARROSO, Luís Roberto (Org.). Direito Internacio-nal Contemporâneo: Estudos em Homenagem ao Professor Jacob Dolinger. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, pp. 549-558; 643-650.

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4.2. JURISPRUDÊNCIA

CASO 1: SENTENÇA ESTRANGEIRA CONTESTADA Nº 3.383 — US

SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

SENTENÇA ESTRANGEIRA CONTESTADA Nº 3.383 — US (2009⁄0238455-0)

RELATOR: MINISTRO TEORI ALBINO ZAVASCKIREQUERENTE: P C SADVOGADO: CELSO ANTÔNIO ROSSIREQUERIDO: F T SADVOGADO: LUIZ CARLOS O ESTEVES

EMENTASENTENÇA ESTRANGEIRA CONTESTADA. HOMOLOGAÇÃO.

DIVÓRCIO. CÔNJUGE RESIDENTE NO BRASIL AO TEMPO DO AJUIZAMENTO DA DEMANDA NO ESTRANGEIRO. CITAÇÃO POR EDITAL E POR SERVIÇO POSTAL. INVIABILIDADE. NECES-SIDADE DE CARTA ROGATÓRIA. PRECEDENTES DO STF E STJ.

PEDIDO INDEFERIDO.

ACÓRDÃOVistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, decide

a Egrégia CORTE ESPECIAL do Superior Tribunal de Justiça, por una-nimidade, indeferir o pedido de homologação, nos termos do voto do Sr. Ministro Relator. Os Srs. Ministros Castro Meira, Arnaldo Esteves Lima, Ari Pargendler, Felix Fischer, Aldir Passarinho Junior, Eliana Calmon, Nancy Andrighi, Laurita Vaz, Luiz Fux e João Otávio de Noronha votaram com o Sr. Ministro Relator.

Ausentes, justifi cadamente, os Srs. Ministros Gilson Dipp, Hamilton Car-valhido e Francisco Falcão.

Brasília, 18 de agosto de 2010.MINISTRO CESAR ASFOR ROCHAPresidenteMINISTRO TEORI ALBINO ZAVASCKIRelator

SENTENÇA ESTRANGEIRA CONTESTADA Nº 3.383 — US (2009⁄0238455-0)

RELATOR: MINISTRO TEORI ALBINO ZAVASCKI

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REQUERENTE: P C SADVOGADO: CELSO ANTÔNIO ROSSIREQUERIDO: F T SADVOGADO: LUIZ CARLOS O ESTEVES

RELATÓRIO

O EXMO. SR. MINISTRO TEORI ALBINO ZAVASCKI:Trata-se de pedido de homologação de sentença estrangeira proferida pela

Corte Superior do Condado de Cobb — Estado da Geórgia⁄EUA, que aco-lheu o pedido de divórcio formulado por Paulo César Sinhoreli em face de Fernanda Teixeira Sinhoreli, bem assim concedeu a guarda dos fi lhos meno-res do casal ao requerente.

Embora regularmente citada por carta de ordem (fl . 48), a requerida não se manifestou no prazo legal (fl . 50⁄51). A Defensoria Pública da União, na qualidade de curadora especial, contestou o pedido (fl s. 57⁄58), sustentando a impossibilidade de homologação da referida sentença porque não se juntou aos autos o seu inteiro teor nem a respectiva certidão de trânsito em julgado. Afi rmou, ademais, que “sem o inteiro teor da sentença homologanda não é possível aferir se o decreto de divórcio foi precedido de separação judicial ocorrida há mais de 3 (três) anos, para que possa ser reconhecido no Brasil”, nos termos do art. 7º, § 6º, da LICC, com a redação dada pela Lei 6.515⁄77, ou ainda “aferir-se eventual ofensa à soberania ou à ordem pública nacional” (fl . 58).

Às fl s. 60-61, a requerida informou que “não concorda (...) com a preten-são exposta pelo requerente, Sr. Paulo César Sinhoreli, quando alude sobre a guarda dos fi lhos, já que esta situação, conforme aduzido, está em debate perante a Vara da Família da Comarca de Sarandi⁄PR, apenas concorda (...) com a dissolução do casamento, por força do divórcio, sem estender à ques-tão dos fi lhos” (fl . 61).

Em manifestação à fl . 66, o Ministério Público Federal afi rma que “nada tem a opor à homologação parcial da sentença, no que se refere ao divórcio do casal, mas opina pela intimação da requerida para que informe a este juízo o andamento do citado processo de guarda de menor, que tramita na Vara de Família da comarca de Sarandi-PR”.

Em réplica (fl s. 96⁄98), o requerente reitera o seu pedido de homologação integral da sentença, já que “não foi apontado nenhum vício na sentença estrangeira (...)” (fl . 98). Ás fl s. 108-129, o requerente juntou cópia integral do processo de divórcio.

O Juízo da Vara de Família da Comarca de Sarandi⁄PR prestou informa-ções acerca do processamento da ação de guarda e responsabilidade dos me-nores proposta pela requerida (fl s. 133-261). Às fl s. 318-325, o requerente

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acostou aos autos a tradução dos documentos referidos no despacho de fl s. 104.

Em manifestação de fl . 333, o MPF pleitea que “o requerente comprove através de certidão expedida pelo Tribunal a regular citação da requerida por carta rogatória, tendo em vista que ela reside no Brasil, conforme informado na sentença”. Intimado do pedido formulado pelo MPF, o requerente afi rma que “segundo as normas vigentes no país de origem da sentença cuja homo-logação se pretende (Estados Unidos), é possível o chamamento ao processo mediante citação pelo correio” e “foi o que se fez no caso presente” (fl . 347).

Em parecer conclusivo de fl s. 355-357, o MPF opina pelo indeferimen-to do pedido de homologação, “por considerar inexistente a citação da re-querida no processo em que proferida a decisão homologanda, não estando, portanto, preenchido requisito indispensável à homologação de sentença es-trangeira no Brasil, qual seja: terem sido as partes devidamente citadas ou haver-se legalmente verifi cado a revelia” (fl . 357).

É o relatório.SENTENÇA ESTRANGEIRA CONTESTADA Nº 3.383 — US

(2009⁄0238455-0)RELATOR: MINISTRO TEORI ALBINO ZAVASCKIREQUERENTE: P C SADVOGADO: CELSO ANTÔNIO ROSSIREQUERIDO: F T SADVOGADO: LUIZ CARLOS O ESTEVES

EMENTA: SENTENÇA ESTRANGEIRA CONTESTADA. HOMO-LOGAÇÃO. DIVÓRCIO. CÔNJUGE RESIDENTE NO BRASIL AO TEMPO DO AJUIZAMENTO DA DEMANDA NO ESTRANGEIRO. CITAÇÃO POR EDITAL E POR SERVIÇO POSTAL. INVIABILIDA-DE. NECESSIDADE DE CARTA ROGATÓRIA. PRECEDENTES DO STF E STJ.

PEDIDO INDEFERIDO.

VOTOO EXMO. SR. MINISTRO TEORI ALBINO ZAVASCKI (Relator):1.Conforme registrado pelo Ministério Público Federal em seu parecer, há

óbice intransponível ao deferimento do pedido. É fi rme a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça no sentido de que “para homologação de sen-tença estrangeira de divórcio proferida em processo que tramitou contra pes-soa residente no Brasil, indispensável que a citação tenha sido regular, assim considerada a que fora efetivada mediante carta rogatória” (SEC 4.611⁄FR, CE, Min. João Otávio de Noronha, DJe de 22⁄04⁄2010). No mesmo senti-do, confi ram-se outros precedentes da Corte Especial: SEC 1.483⁄LU, Min.

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Ari Pargendler, DJe de 29⁄04⁄2010; SEC 2.493⁄DE, Min. Arnaldo Esteves Lima, DJe de 25⁄06⁄2009; SEC 113⁄DF, Min. João Otávio de Noronha, DJe de 04⁄08⁄2008; SEC 200⁄US, Min. Francisco Peçanha Martins, DJ de 14⁄08⁄2006. Nessa mesma linha de consideração, colhem-se os seguintes jul-gados do Plenário do STF: SEC 6.684, Min. Sepúlveda Pertence, DJ de 08⁄10⁄2004; SEC 7.394, Min. Ellen Gracie, DJ de 07⁄05⁄2004; AgRg na SE 4.605, Min. Carlos Velloso, DJ de 13⁄12⁄1996.

No caso dos autos, apesar de a requerida já residir no Brasil ao tempo do ajuizamento da ação de divórcio nos Estados Unidos da América (às fl s. 319⁄325), sua citação foi realizada por edital e serviço postal, e não por carta rogatória.

2.Com essas considerações, indefi ro o pedido de homologação, conde-nando o requerente ao pagamento de honorários advocatícios, fi xados em R$-1.000,00. Sem custas (Resolução STJ 09⁄2005, art. 1º, parágrafo único). É o voto.

CERTIDÃO DE JULGAMENTOCORTE ESPECIALNúmero Registro: 2009⁄0238455-0 SEC 3.383 ⁄ USRelatorExmo. Sr. Ministro TEORI ALBINO ZAVASCKIPresidente da SessãoExmo. Sr. Ministro CESAR ASFOR ROCHASubprocurador-Geral da RepúblicaExmo. Sr. Dr. HAROLDO FERRAZ DA NOBREGAREQUERENTE: P C SADVOGADO: CELSO ANTÔNIO ROSSIREQUERIDO: F T SADVOGADO: LUIZ CARLOS O ESTEVES

ASSUNTO: DIREITO CIVIL — Família — Casamento — Dissolução

CERTIDÃOCertifi co que a egrégia CORTE ESPECIAL, ao apreciar o processo em

epígrafe na sessão realizada nesta data, proferiu a seguinte decisão:A Corte Especial, por unanimidade, indeferiu o pedido de homologação,

nos termos do voto do Sr. Ministro Relator.Os Srs. Ministros Castro Meira, Arnaldo Esteves Lima, Ari Pargendler, Fe-

lix Fischer, Aldir Passarinho Junior, Eliana Calmon, Nancy Andrighi, Laurita Vaz, Luiz Fux e João Otávio de Noronha votaram com o Sr. Ministro Relator.

Ausentes, justifi cadamente, os Srs. Ministros Gilson Dipp, Hamilton Car-valhido e Francisco Falcão.

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Texto:Resultado de Julgamento Final: A Corte Especial, por unanimidade, ne-

gou provimento ao agravo regimental, nos termos do voto do Sr. Ministro Relator.

— Petição Nº 2080⁄2010 — AgRg na SS 2312Brasília, 18 de agosto de 2010.VANIA MARIA SOARES ROCHASecretária

CASO 2: SENTENÇA ESTRANGEIRA CONTESTADA Nº 4.172 — ES

SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

SENTENÇA ESTRANGEIRA CONTESTADA Nº 4.172 — ES (2010⁄0218010-1) (f )

RELATOR: MINISTRO TEORI ALBINO ZAVASCKIREQUERENTE: S P MADVOGADO: LUÍS ROBERTO FONSECA FERRÃO E OUTRO(S)REQUERIDO: F J O EADVOGADO: DEFENSORIA PÚBLICA DA UNIÃO — CURADOR

ESPECIAL

EMENTA:SENTENÇA ESTRANGEIRA CONTESTADA. ESPANHA. DIVÓRCIO. CERTIDÃO EM QUE CONSTA A EXPRESSÃO EM LÍN-GUA ESPANHOLA “ES FIRME”. ATENDIMENTO DO REQUISITO DA COMPROVAÇÃO DO TRÂNSITO EM JULGADO. PRECEDEN-TE: SEC 834⁄AR. SENTENÇA ESTRANGEIRA HOMOLOGADA.

ACÓRDÃOVistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, decide

a Egrégia CORTE ESPECIAL do Superior Tribunal de Justiça, por unanimi-dade, deferiu o pedido de homologação de sentença estrangeira, nos termos do voto do Senhor Ministro Relator. Os Srs. Ministros Castro Meira, Arnal-do Esteves Lima, Humberto Martins, Maria Th ereza de Assis Moura, Sidnei Beneti, Mauro Campbell Marques, Cesar Asfor Rocha, Felix Fischer, Gilson Dipp, Eliana Calmon, Laurita Vaz e João Otávio de Noronha votaram com o Sr. Ministro Relator.

Ausentes, justifi cadamente, o Sr. Ministro Francisco Falcão e a Sra. Minis-tra Nancy Andrighi e, ocasionalmente, o Sr. Ministro Massami Uyeda.

Convocados os Srs. Ministros Sidnei Beneti e Mauro Campbell Marques para compor quórum.

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Brasília, 09 de junho de 2011.MINISTRO ARI PARGENDLERPresidenteMINISTRO TEORI ALBINO ZAVASCKIRelator

SENTENÇA ESTRANGEIRA CONTESTADA Nº 4.172 — ES (2010⁄0218010-1) (f )

RELATOR: MINISTRO TEORI ALBINO ZAVASCKIREQUERENTE: S P MADVOGADO: LUÍS ROBERTO FONSECA FERRÃO E OUTRO(S)REQUERIDO: F J O EADVOGADO: DEFENSORIA PÚBLICA DA UNIÃO — CURA-

DOR ESPECIAL

RELATÓRIOO EXMO. SR. MINISTRO TEORI ALBINO ZAVASCKI:Trata-se de pedido de homologação de sentença estrangeira proferida pelo

Juízo de Primeira Instância Nº 25 de Madri, Espanha, que acolheu o pedido de divórcio, formulado por Francisco Javier Oteo Expósito em face da reque-rente, Simone Pereira Minaes.

Embora citado por carta de ordem (fl s. 101⁄104), o requerido não se ma-nifestou no prazo legal (fl . 95). A Defensoria Pública da União, na qualidade de curadora especial, contestou o pedido (fl s. 110-114), sustentando a im-possibilidade de homologação da referida sentença porque não se juntou aos autos a respectiva certidão de trânsito em julgado.

Em manifestação à fl . 120, o Ministério Público Federal afi rma que, “con-forme consta no carimbo aposto às fl s. 14, traduzindo à fl . 21, a sentença transitou em julgado em 12 de novembro de 2007. A expressão em língua espanhola se encuentra fi rme ou es fi rme corresponde, em língua portuguesa, ao trânsito em julgado da sentença, nos termos da SE 834”.

Em réplica (fl s. 127-129), o requerido, representado pela Defensoria Pú-blica da União, alega que “a competência para traduzir o dizeres da sentença estrangeira é do tradutor público ofi cial ou juramentado no Brasil. Ressalta-se que a expressão es fi rme (fl . 14) está traduzida por tradutor público como é válido (fl . 21), portanto não podemos concluir pelo trânsito em julgado da sentença” (fl . 129).

É o relatório.

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SENTENÇA ESTRANGEIRA CONTESTADA Nº 4.172 — ES (2010⁄0218010-1) (f )

RELATOR: MINISTRO TEORI ALBINO ZAVASCKIREQUERENTE: S P MADVOGADO: LUÍS ROBERTO FONSECA FERRÃO E OUTRO(S)REQUERIDO: F J O EADVOGADO: DEFENSORIA PÚBLICA DA UNIÃO — CURA-

DOR ESPECIAL

EMENTA: SENTENÇA ESTRANGEIRA CONTESTADA. ESPA-NHA. DIVÓRCIO. CERTIDÃO EM QUE CONSTA A EXPRESSÃO EM LÍNGUA ESPANHOLA “ES FIRME”. ATENDIMENTO DO RE-QUISITO DA COMPROVAÇÃO DO TRÂNSITO EM JULGADO. PRECEDENTE: SEC 834⁄AR. SENTENÇA ESTRANGEIRA HOMO-LOGADA.

VOTOO EXMO. SR. MINISTRO TEORI ALBINO ZAVASCKI (Relator):1. Questiona-se o atendimento, no caso, do requisito estabelecido pelo

art. 5º, III, da Resolução STJ 09, de 05⁄05⁄05, segundo o qual “Constituem requisitos indispensáveis à homologação de sentença estrangeira: (...) III — ter transitado em julgado”.

Apreciando caso análogo, na SEC 834⁄AR (Min. Ari Pargendler, DJ de 01⁄08⁄2005), a Corte Especial acolheu voto sintetizado na seguinte ementa:

HOMOLOGAÇÃO DE SENTENÇA ESTRANGEIRA. TRÂNSITO EM JULGADO. A expressão, em língua espanhola, “se encuentra fi rme”, quando referida a uma sentença, corresponde, em língua portuguesa, a “trân-sito em julgado”. Sentença homologada.

No voto de Relator, o Min. Ari Pargendler, assim se manifestou:As irregularidades apontadas na contestação de Transportes Fink S⁄A já

foram sanadas (...).A de maior relevância, relativa à ausência de comprovação do trânsito

em julgado da sentença estrangeira, foi refutada inclusive pelo parecer do Ministério Público Federal, no qual se afi rma acertadamente que o trânsito em julgado “está comprovado na certidão de fl s. 22, onde se assinala ‘...se encuentra fi rme’ “ (fl . 138).

No caso dos autos, o carimbo de fl . 14, onde se assinala “es fi rme”, com-prova o trânsito em julgado da sentença sujeita à homologação.

2. Assim, caracterizada a presença dos requisitos formais exigidos para a homologação, bem como verifi cado que a sentença estrangeira em causa não

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ofende a soberania nacional nem a ordem pública (arts. 5º e 6º da Resolução STJ nº 9⁄2005), merece ser deferido o pedido, como recomenda o parecer do Ministério Público Federal (fl . 120).

3. Ante o exposto, julgo procedente o pedido de homologação da sen-tença estrangeira. O sucumbente deve arcar com os honorários advocatícios, inclusive do seu curador especial (que faz jus à verba, independentemente de ser sucumbente ou não o seu representado — SEC 63, Rel. Min. Eliana Cal-mon, DJ de 27⁄03⁄2006). Considerados os parâmetros do art. 20, §§ 3º e 4º, do CPC, arbitro os honorários em R$ 1.000,00 (mil reais) para o patrono da requerente e em R$ 1.000,00 (mil reais) para o curador especial. Sem custas (Resolução STJ nº 09⁄2005, art. 1º). É o voto.

CERTIDÃO DE JULGAMENTOCORTE ESPECIALPAUTA: 01⁄06⁄2011 JULGADO: 09⁄06⁄2011SEGREDO DE JUSTIÇARelatorExmo. Sr. Ministro TEORI ALBINO ZAVASCKIPresidente da SessãoExmo. Sr. Ministro PRESIDENTE DO STJSubprocurador-Geral da RepúblicaExmo. Sr. Dr. HAROLDO FERRAZ DA NOBREGASecretáriaBela. VANIA MARIA SOARES ROCHA

CASO 3: SENTENÇA ESTRANGEIRA CONTESTADA Nº 1.271 — EX

SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

SENTENÇA ESTRANGEIRA CONTESTADA Nº 1.271 — EX (2006⁄0257419-8)

RELATOR: MINISTRO CASTRO MEIRAREQUERENTE: M CADVOGADO: ALESSANDRO ARTHUR RAMOZZI CHIAROTTI-

NO E OUTRO(S)REQUERIDO: G GADVOGADO: FLÁVIO GUILHERME RAIMUNDO E OUTRO

EMENTA: HOMOLOGAÇÃODE SENTENÇA ESTRANGEIRA. SEPARAÇÃO JUDICIAL. GUARDA DE MENOR. QUESTÃO APRE-CIADA PELA JUSTIÇA PÁTRIA. SENTENÇA BRASILEIRA TRANSI-TADA EM JULGADO.

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1. Trata-se de pedido de homologação de sentença estrangeira de sepa-ração judicial em que fora deferida a guarda de fi lha menor ao genitor, ora requerente.

2. Nos termos dos artigos 5º e 6º, da Resolução nº 09⁄05 do Superior Tribunal de Justiça e do artigo 15 da Lei de Introdução ao Código Civil, constituem requisitos indispensáveis à homologação de sentença estrangeira: haver sido proferida por autoridade competente; terem as partes sido citadas ou haver-se legalmente verifi cado a revelia; ter transitado em julgado; estar autenticada pelo cônsul brasileiro e acompanhada de tradução por tradutor ofi cial ou juramentado no Brasil; não ofender a soberania ou ordem pública.

3. O requerente apresentou a sentença homologanda, original e traduzida, devidamente chancelada pelo Consulado Brasileiro e certidão comprovando o trânsito em julgado. No entanto, diante da informação prestada pelo ilustre Juízo da 1ª Vara de Família, Órfão e Sucessões do Foro Regional de Jabaquara do Estado de São Paulo⁄SP, de que houve o trânsito em julgado referente aos processos nos 003.03.009294-1 e 003.03.012013-9, em que se discutiam, respectivamente, a guarda da menor e o divórcio das partes, não há como acolher o pedido de homologação sob pena de ofensa à ordem pública na-cional.

4. Não se trata de mera litispendência, mas de matéria soberanamente julgada no Brasil sobre a mesma lide, o que obsta a homologação do pedido.

5. Homologação de sentença estrangeira indeferida.

ACÓRDÃOVistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indica-

das, acordam os Ministros da Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça, por unanimidade, indeferir o pedido de homologação de sentença estrangei-ra, nos termos do voto do Senhor Ministro Relator. Os Srs. Ministros Arnal-do Esteves Lima, Humberto Martins, Maria Th ereza de Assis Moura, Sidnei Beneti, Mauro Campbell Marques, Cesar Asfor Rocha, Felix Fischer, Gilson Dipp, Eliana Calmon, Laurita Vaz, João Otávio de Noronha e Teori Albino Zavascki votaram com o Sr. Ministro Relator. Ausentes, justifi cadamente, o Sr. Ministro Francisco Falcão e a Sra. Ministra Nancy Andrighi e, ocasional-mente, o Sr. Ministro Massami Uyeda. Convocados os Srs. Ministros Sidnei Beneti e Mauro Campbell Marques para compor quórum.

Brasília, 09 de junho de 2011(data do julgamento)..Ministro Ari PargendlerPresidenteMinistro Castro MeiraRelator

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FGV DIREITO RIO 205

SENTENÇA ESTRANGEIRA CONTESTADA Nº 1.271 — EX (2006⁄0257419-8)

RELATOR: MINISTRO CASTRO MEIRAREQUERENTE: M CADVOGADA: ESTEFANIA FERREIRA DE SOUZA DE VIVEIROS

E OUTRO(S)REQUERIDO: G GADVOGADO: FLÁVIO GUILHERME RAIMUNDO E OUTRO

RELATÓRIOO EXMO. SR. MINISTRO CASTRO MEIRA (Relator): M C, cidadão

italiano, requer a homologação de sentença estrangeira de separação judicial, proferida pelo Tribunal de Trieste, República Italiana, em que fora deferida a guarda de sua fi lha menor.

Alega que “a justiça italiana atribuiu a guarda da menor ao Suplicante, decisão essa posteriormente confi rmada por sentença datada de 28 de julho de 2004 e já transitada em julgado” (fl . 03). Sustenta que se encontram pre-enchidos todos os requisitos necessários à homologação da sentença italiana, quais sejam:

(i) informação ao juízo da 1ª Vara de Família, Órfão e Sucessões do Foro Regional de Jabaquara-SP, onde tramita ação de guarda promovida pela re-querida (Sra. GG);

(ii) trânsito em julgado da sentença;(iii) autenticação do cônsul brasileiro;(iv) e cópias traduzidas por tradutor ofi cial (fl s. 04-05).Relata, ainda, que “diante da decisão judicial italiana transitada em jul-

gado, o suplicante, com base na Convenção de Haia, promoveu, perante o Ministério de Justiça Italiano, pedido de restituição da menor, tendo essa autoridade, de pronto, contatado o Ministério da Justiça do Brasil, que, por intermédio da Advocacia-Geral da União, moveu ação de busca e apreensão da menor perante a 24ª Vara Federal de São Paulo” (fl . 03).

Nesse contexto, a Secretaria Especial de Direitos Humanos, com base no artigo 16 da Convenção de Haia, requereu ao douto Juízo da 1ª Vara de Fa-mília, Órfão e Sucessões do Foro Regional de Jabaquara⁄SP, o qual deferiu a guarda da menor à requerida, a suspensão do processo (fl s. 61-62).

A requerida ofertou contestação alegando, em preliminar, litispendência da ação, ao argumento de que “há ação de busca e apreensão e repatriação de menor, proposta contra a requerida, a pedido do requerente, pela União Federal em trâmite perante a Justiça Federal em São Paulo, 24ª Vara, pro-cesso nº 2003.61.00.024.950-8” (fl . 140). No mérito, aduz, em resumo, o seguinte:

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a) que o requerente tenta iludir o judiciário brasileiro, “tanto neste pedido, quanto na ação de busca e apreensão de menor promovido pela União Fede-ral, pois junta apenas a documentação conveniente ao seu pedido, omitindo e mentindo sobre vários fatos relevantes que impedem a procedência da repa-triação da menor” (fl . 141);

b) “a requerida não sequestrou sua fi lha, deixou o território italiano com autorização do requerente, que inclusive pagou a passagem da requerida e sua fi lha, passagem apenas de ida (fl . 141);

c) “que a menor está adaptada ao Brasil, vive bem com sua mãe, que deve-rá fi car claro que NÃO SEQUESTROU SUA FILHA” (fl . 143);

d) “quando da prolação da sentença em 27 de julho de 2004, no mesmo Tribunal, a requerida estava totalmente sem representação, não foi intimada da decisão” (fl . 144);

e) “A guarda provisória da menor foi deferida à requerida, tanto pelo Juízo Federal, como já citado, quanto pelo Juízo Estadual, uma vez que o pedido deferido pela MM. Juíza da 1ª Vara da Família e Sucessões do Foro Regional do Jabaquara, o requerente foi citado e não contestou o pedido” (fl . 145);

f ) “o requerente é pessoa violenta, gerando inclusive um procedimento na Justiça Italiana, por ter agredido fi sicamente a requerida (fl s. 120⁄123 do Doc 2) não fala o português, sem condições mínimas de ter a guarda da menor Gaja Cebulec” (fl . 145).

Ao fi nal, requer o indeferimento do pedido de homologação da sentença italiana (fl . 149).

O requerente ofertou réplica à contestação, sustentando que:a) a requerida pretende debater questões de mérito, circunstância vedada

nos termos do artigo 9º da Resolução nº 09⁄05 do STJ (fl . 597);b) inexistência de litispendência (fl s. 597-598);c) “insubsistência das questões fáticas levantadas pela suplicada” (fl s. 598-599);d) ausência de participação do requerente no processo brasileiro que defe-

riu a guarda provisória à requerida (fl s. 601-602);e) “os laudos psicológicos trazidos pela suplicada nada revelam no sentido

de justifi car a conduta ilícita que adotara, impedindo o direito do outro ge-nitor de exercer o seu pátrio-poder” (fl . 602);

f ) “ausência de revelia, pois a suplicada participou de todas as fases proces-suais no feito italiano” (fl s. 603-605);

g) houve acusação infundada de violência contra o requerente (fl s. 605-606).

O Ministério Público Federal, em parecer da lavra do ilustre Subprocu-rador-Geral da República Dr. Edson Oliveira de Almeida, opinou pelo in-deferimento de homologação, pois “o deferimento do pedido ora formulado implicaria na prevalência de uma sentença estrangeira sobre uma decisão da justiça pátria, acarretando grave ofensa à soberania nacional” (fl . 618).

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Por despacho exarado à fl . 622, solicitei informações ao Juízo da 1ª Vara de Família, Órfão e Sucessões do Foro Regional de Jabaquara do Estado de São Paulo⁄SP e à 24ª Vara Cível da Seção Judiciária do Estado de São Paulo sobre o andamento dos processos nos 003.03.009294-1 e 003.03.012013-9 (fl . 294 e 532) e 2003.61.00.024950-8 (fl . 227), respectivamente.

Em resposta, o Juízo de Direito informou a ocorrência de trânsito em julgado dos processos que ali tramitavam e o Juízo Federal noticiou que a União Federal requereu a extinção do processo sem resolução de mérito (fl s. 633 e 645).

É o relatório.

SENTENÇA ESTRANGEIRA CONTESTADA Nº 1.271 — EX (2006⁄0257419-8)

EMENTA: HOMOLOGAÇÃODE SENTENÇA ESTRANGEIRA. SEPARAÇÃO JUDICIAL. GUARDA DE MENOR. QUESTÃO APRE-CIADA PELA JUSTIÇA PÁTRIA. SENTENÇA BRASILEIRA TRANSI-TADA EM JULGADO.

1. Trata-se de pedido de homologação de sentença estrangeira de sepa-ração judicial em que fora deferida a guarda de fi lha menor ao genitor, ora requerente.

2. Nos termos dos artigos 5º e 6º, da Resolução nº 09⁄05 do Superior Tribunal de Justiça e do artigo 15 da Lei de Introdução ao Código Civil, constituem requisitos indispensáveis à homologação de sentença estrangeira: haver sido proferida por autoridade competente; terem as partes sido citadas ou haver-se legalmente verifi cado a revelia; ter transitado em julgado; estar autenticada pelo cônsul brasileiro e acompanhada de tradução por tradutor ofi cial ou juramentado no Brasil; não ofender a soberania ou ordem pública.

3. O requerente apresentou a sentença homologanda, original e traduzida, devidamente chancelada pelo Consulado Brasileiro e certidão comprovando o trânsito em julgado. No entanto, diante da informação prestada pelo ilustre Juízo da 1ª Vara de Família, Órfão e Sucessões do Foro Regional de Jabaquara do Estado de São Paulo⁄SP, de que houve o trânsito em julgado referente aos processos nos 003.03.009294-1 e 003.03.012013-9, em que se discutiam, respectivamente, a guarda da menor e o divórcio das partes, não há como acolher o pedido de homologação sob pena de ofensa à ordem pública na-cional.

4. Não se trata de mera litispendência, mas de matéria soberanamente julgada no Brasil sobre a mesma lide, o que obsta a homologação do pedido.

5. Homologação de sentença estrangeira indeferida.

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VOTOO EXMO. SR. MINISTRO CASTRO MEIRA (Relator): Trata-se de pe-

dido de homologação de sentença estrangeira de separação judicial em que fora deferida a guarda de fi lha menor ao genitor, ora requerente. Na inicial, alega estarem preenchidos todos os requisitos necessários à homologação da sentença italiana.

Este Superior Tribunal de Justiça exerce juízo meramente delibatório quando da homologação de sentença estrangeira, vale dizer, cabe-lhe, apenas, verifi car se a pretensão atende aos requisitos previstos no art. 5º da Resolução n.º 09⁄2005⁄STJ e se não fere o disposto no art. 6º do mesmo ato normativo. Eventuais questionamentos acerca do mérito da decisão alienígena são estra-nhos aos quadrantes próprios da ação de homologação.

Nos termos dos artigos 5º e 6º, da Resolução nº 09⁄05 do Superior Tribu-nal de Justiça e do artigo 15 da Lei de Introdução ao Código Civil, consti-tuem requisitos indispensáveis à homologação de sentença estrangeira: haver sido proferida por autoridade competente; terem as partes sido citadas ou haver-se legalmente verifi cado a revelia; ter transitado em julgado; estar au-tenticada pelo cônsul brasileiro e acompanhada de tradução por tradutor ofi cial ou juramentado no Brasil; não ofender a soberania ou ordem pública.

O requerente apresentou a sentença homologanda, original e traduzida, devidamente chancelada pelo Consulado Brasileiro e certidão comprovando o trânsito em julgado.

No entanto, também consta a informação prestada pelo ilustre Juízo da 1ª Vara de Família, Órfão e Sucessões do Foro Regional de Jabaquara do Estado de São Paulo⁄SP, de que houve o trânsito em julgado referente aos processos nos 003.03.009294-1 e 003.03.012013-9 (fl . 633), em que as partes discu-tiam, respectivamente, a guarda da menor e o divórcio, pelo que não há como ser acolhido o pedido de homologação, sob pena de ofensa à ordem pública nacional.

Com efeito, se fosse o caso de lkitispendência e a decisão homologatória transitasse em julgado antes da sentença proferida na demanda interna, have-ria inbição do prosseguimento do processo perante a jurisdição nacional, eis que seria extinto, com esteio no inciso V do art. 267 do CPC.

In casu, não se trata de mera litispendência, mas de coisa soberanamente julgada no Brasil sobre a mesma lide, caso em que fi ca obstado o deferimento do pedido de homologação, porque haveria violação à res judicata.

Sobre o tema e a contrario sensu, aplica-se a lição de Nelson Nery:3. Coisa julgada. Mesmo que a ação já tenha sido decidida no país estran-

geiro, com trânsito em julgado, tal circunstância deve ser ignorada pelo juiz brasileiro, que deve determinar a continuação do processo de ação ajuizada no Brasil.

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Somente depois de homologada pelo STJ (CF 105, I, i; CPC 483 e 484; Res. STJ 9⁄05 — ao contrário da Constituição, estes dois artigos do CPC não foram modifi cados, muito embora tenha havido revogação tácita dos mes-mos coma reforma constitucional) é que a sentença estrangeira terá efi cácia no Brasil. Caso haja notícia nos autos do processo brasileiro, de que o STJ homologara sentença estrangeira sobre a mesma lide, o juiz deverá extinguir o processo brasileiro sem julgamento do mérito, reconhecendo a existência de coisa julgada (CPC 267 V) estrangeira, caracterizada pelo acórdão do STJ que homologou a sentença estrangeira. Pode fazê-lo a pedido da parte ou ex offi cio (CPC 267, § 3º) (Código de Processo Civil Comentado e Legislação Extravagante — 9ª Edição — RT — pág. 327).

Nesse sentido, manifestei-me por ocasião do voto-vista proferido nos au-tos do AgRg na Sec 854⁄US, relator o Exmo. Senhor Ministro Luiz Fux, re-latora para acórdão Exma. Sra. Ministra Nancy Andrighi, DJe de 16.02.11. Para melhor elucidação, reproduzo excertos do voto que então proferi:

Assim, não há prejudicialidade externa entre o processo de homologação de sentença estrangeira e o processo que tramita no Judiciário nacional sobre a mesma matéria, já que no primeiro é vedado ao julgador conhecer da ques-tão de mérito, somente sendo possível examinar se a decisão homologanda não fere a soberania nacional, a ordem pública e os bons costumes e se ob-serva questões ligadas ao devido processo legal, entre elas a legitimidade do contraditório e a competência do juízo prolator.

Essa orientação é endossada pelo Supremo Tribunal Federal — a quem foi conferida a atribuição de homologar as sentenças estrangeiras em nosso país até a edição da EC 45⁄2004 — para o qual não há impedimento à homolo-gação da sentença estrangeira pelo fato de tramitar no Brasil um processo com o mesmo objeto da sentença homologanda, como se observa da seguinte ementa que transcrevo:

SENTENÇA ESTRANGEIRA — CONEXÃO — AÇÃO EM CURSO NO BRASIL — IDENTIDADE DE OBJETO. A identidade de objeto en-tre a sentença estrangeira trânsita em julgado e a ação em curso no Brasil não e de molde à obstacularizar a homologação. SENTENÇA ESTRANGEIRA — HOMOLOGAÇÃO. Atendendo o pedido de homologação ao disposto nos artigos 216 a 218 do Regimento Interno, impõe-se seja deferido. SEN-TENÇA ESTRANGEIRA — TRADUÇÃO — AUTORIA. A necessidade de o tradutor contar com fé pública direciona a exigência de tratar-se de bra-sileiro devidamente credenciado segundo as normas nacionais. (SE⁄PG 5116, Rel. Min. Marco Aurélio, Tribunal Pleno, DJ de 07.08.1998).

Na lição de BARBOSA MOREIRA, “o simples fato de estar pendente no Brasil — em qualquer grau de jurisdição — processo relativo a lide anterior-mente julgada noutro Estado não constitui óbice a que se pleiteie a homolo-

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gação da sentença alienígena, nem exclui que o Supremo Tribunal Federal a conceda” (Comentários ao Código de Processo Civil, vol. V: arts. 476 a 565 — Rio de Janeiro: Forense, p. 96).

O Código de Processo Civil, em seu art. 90, dispõe que “a ação inten-tada perante tribunal estrangeiro não induz litispendência, nem obsta a que a autoridade judiciária brasileira conheça da mesma causa e das que lhe são conexas”.

Evidentemente que o dispositivo está a tratar de jurisdição concorrente entre dois Estados soberanos, que é a regra. Todavia, se a competência jurisdi-cional for exclusiva do Estado alienígena, deverá a ação ser extinta pelo juízo nacional. Caso se trate de jurisdição exclusiva do Estado brasileiro, como as matérias do art. 89 do CPC (imóveis situados no Brasil e inventário e partilha de bens situados no país), deverá o STJ negar a homologação da sentença estrangeira, já que somente a jurisdição nacional poderá, livremente, decidir sobre a questão.

No caso de competência concorrente, como não há litispendência nem está a autoridade judiciária brasileira impedida de processar a ação e as que lhe são conexas, nos termos do já citado art. 90 do CPC, e para se evitar o confl ito jurídico pela existência de duas sentenças — uma nacional e outra estrangeira — com resultados possivelmente distintos para a mesma contro-vérsia, deve-se adotar o critério temporal, verifi cando a data do trânsito em julgado, para saber-se qual deve prevalecer no caso concreto.

Em outras palavras, se já há coisa julgada no Brasil sobre a mesma lide, fi ca obstado o deferimento do pedido de homologação, porque haveria violação à res judicata. Por outro lado, se a decisão homologatória transitou em julgado antes da sentença proferida na demanda interna, inibe-se o prosseguimento do processo perante a jurisdição nacional, que deve ser extinto com base no inciso V do art. 267 do CPC.

Em outras palavras, o processo de homologação de sentença estrangeira deve correr simultânea e paralelamente ao processo sobre o mérito que tra-mita no Judiciário brasileiro, sendo, pois, inconcebível a suspensão de qual-quer deles. Tratando-se de jurisdição concorrente, a suspensão de um dos processos equivale à opção defi nitiva por uma das jurisdições, pois o processo que prosseguir certamente transitará em julgado primeiro, inibindo qualquer decisão no outro processo (sem destaques no original).

Reporto-me, ainda, à seguinte passagem da manifestação do ilustre Sub-procurador-Geral da República Dr. Edson Oliveira de Almeida:

Ambas as partes se entretem em alegações relativas ao mérito da decisão qual seja, a atribuição da guarda da menor Gaja Cebulec.

Entretanto, consoante determinação ao art. 9º da Resolução nº 09, de 04 de maio de 2005, dessa Corte Superior, em sede de contestação à homo-logação de sentença estrangeira somente poderá ser arguida a autenticidade

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dos documentos apresentados, a inteligência da decisão e a observância dos requisitos estabelecidos naquele mesmo Estatuto.

De fato, os requisitos extrínsecos para a homologação foram atendidos, como se pôde observar, uma vez que consta dos autos a cópia da decisão estrangeira, autenticada apela autoridade consular e devidamente traduzida, bem como a prova do trânsito da decisão.

Ocorre, porém, que dos autos também se extrai a informação da existên-cia de decisão proferida pela justiça brasileira deferindo a guarda da menor, provisoriamente, à sua mãe.

O referido processo encontra-se suspenso, em virtude da existência de ação que visa a busca, apreensão e repatriamento da menor, proposta pela Advocacia Geral da União, assistida por Mitja Cebulec, consubstanciada no procedimento previsto na Convenção de Sequestro Internacional de Criança (Decreto nº 3413, de 14⁄04⁄200), perante a 24ª Vara Federal Cível (fl . 531).

Entendeu o M.M Juiz que a questão a ser decidida nos autos da ação que corre perante a Justiça Federal é prejudicial à pretensão de guarda formulada pela mãe da menor.

De outro lado, nos autos da ação de busca, apreensão e repatriamento, promovida pela AGU, em decorrência de audiência realizada em 19 de ou-tubro de 2004, fi cou determinado que a menor deveria permanecer com a mãe, e aprofundado o exame da sua situação através de avaliação social e psicológica pelo Juízo (fl . 437⁄438).

Em que pese se tratar de determinação provisória proferida pela justiça brasileira, o deferimento do pedido ora formulado implicaria na prevalência de uma sentença estrangeira sobre uma decisão da justiça pátria, acarretando grave ofensa à soberania nacional.

Por oportuno, trago à lembrança excerto do voto proferido pela eminente Relatora Min. Ellen Gracie na SEC 5.526-1⁄ Reino da Noruega, verbis:

“A preexistência desses julgados alienígenas não retira a validade da cisão proferida pelo Juízo da 2ª Vara de Família da Comarca de Niterói — RJ que, em sede de medida cautelar preparatória de ação de divórcio direto, conferiu a guarda provisória de menor à requerida. É que ‘enquanto a autoridade bra-sileira for competente, na forma do CPC 88 I a III e 89 I e II, e não houver homologação da sentença estrangeira no Brasil (CF 102 I h), remanesce para o Estado Brasileiro o poder de julgar a causa já ajuizada (não se induz litis-pendência), ou já julgada (não se reconhece coisa julgada) em outro país.’ (Nelson Nery Junior, Código de Processo Civil Comentado, RT, São Paulo, 4ª edl, 1999, p. 542).

Além disso, as diligências efetuadas no curso da presente sentença estran-geira constataram que, com a suspensão dos processo que tramitam perante a 2ª Vara de Família de Niterói, a autoridade do referido provimento caute-

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lar ainda subsiste. O deferimento do pedido de homologação representaria, dessa forma, a prevalência da sentença norueguesa sobre a decisão de um juiz brasileiro que, embora proferida em sede liminar, seria modifi cada, impor-tando numa clara ofensa aos princípios da soberania nacional (...)’.

Na mesma linha o julgamento da SEC nº 841 — EX, Relator Min. José Arnaldo da Fonseca, nessa Corte Superior:

“Ementa: SENTENÇA ESTRANGEIRA — HOMOLOGAÇÃO IN-DEFERIDA. Não é de se homologar a sentença estrangeira se resulta dos autos que, para a lide movida nos estados Unidos da América, visando obter a guarda dos fi lhos menores do casal, com ordem de busca e apreensão, a requerida, embora ré no processo, não foi previamente citada.

Ademais, no caso, se há sentença do juiz no Brasil sobre o mesmo tema, não há como se dar prevalência a sentença norte-americana, sob pena de incorrer-se em ofensa à soberania nacional, o que contraria o art. 216 do R.I.S.T.F.’ Grifamos.

Por todo o exposto, é que opino pelo indeferimento do pedido de homo-logação, posto que não há como prevalecer a decisão italiana, sob pena de incorrer-se em ofensa à soberania nacional, uma vez que existe decisão de juiz brasileiro sobre o tema, em observância ao disposto no art. 6º da Resolução nº 09⁄STJ, de 04 de maio de 2005. (fl s. 617 — 619).

Assim, em face da existência de sentença brasileira transitada em julgado antes do término do processo de homologação de sentença estrangeira que trata da mesma matéria no presente requerimento, não há como acolher o pedido de homologação sob pena de ofensa à ordem pública nacional.

Ante o exposto, indefi ro o pedido de homologação.Condeno o requerente ao pagamento de honorários advocatícios, que ar-

bitro em R$ 2.500,00 (dois mil e quinhentos reais).É como voto.CERTIDÃO DE JULGAMENTOCORTE ESPECIALPAUTA: 18⁄05⁄2011 JULGADO: 09⁄06⁄2011SEGREDO DE JUSTIÇARelatorExmo. Sr. Ministro CASTRO MEIRAPresidente da SessãoExmo. Sr. Ministro ARI PARGENDLERSubprocurador-Geral da RepúblicaExmo. Sr. Dr. HAROLDO FERRAZ DA NOBREGASecretáriaBela. VANIA MARIA SOARES ROCHAAUTUAÇÃO

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REQUERENTE: M CADVOGADO: ALESSANDRO ARTHUR RAMOZZI CHIAROTTI-

NO E OUTRO(S)REQUERIDO: G GADVOGADO: FLÁVIO GUILHERME RAIMUNDO E OUTRO

ASSUNTO: DIREITO CIVIL — Família — Relações de Parentesco — Guarda

CERTIDÃO

Certifi co que a egrégia CORTE ESPECIAL, ao apreciar o processo em epígrafe na sessão realizada nesta data, proferiu a seguinte decisão:

A Corte Especial, por unanimidade, indeferiu o pedido de homologação de sentença estrangeira, nos termos do voto do Senhor Ministro Relator.

Os Srs. Ministros Arnaldo Esteves Lima, Humberto Martins, Maria Th e-reza de Assis Moura, Sidnei Beneti, Mauro Campbell Marques, Cesar Asfor Rocha, Felix Fischer, Gilson Dipp, Eliana Calmon, Laurita Vaz, João Otávio de Noronha e Teori Albino Zavascki votaram com o Sr. Ministro Relator.

Ausentes, justifi cadamente, o Sr. Ministro Francisco Falcão e a Sra. Minis-tra Nancy Andrighi e, ocasionalmente, o Sr. Ministro Massami Uyeda.

Convocados os Srs. Ministros Sidnei Beneti e Mauro Campbell Marques para compor quórum.

CASO 4: SENTENÇA ESTRANGEIRA CONTESTADA 1.185/EX

SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

HOMOLOGAÇÃO DE SENTENÇA ESTRANGEIRA. ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA.

CONDENAÇÃO A PAGAMENTO DE VALORES. REQUISITOS PREENCHIDOS.

1. Não se constitui em óbice à homologação de sentença estrangeira o fato de não haver nos autos documentação que comprove ter o Requerido oferecido defesa na ação respectiva ou ter sido intimado do teor da referida sentença.

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FGV DIREITO RIO 214

2. Para a homologação da sentença estrangeira, exige-se a comprovação da regular citação da parte; não se exige comprovação de efetivação de inti-mações acerca de atos realizados no processo alienígena. Precedentes do STF.

3. A verifi cação do trânsito em julgado da sentença estrangeira não pres-supõe a intimação da parte residente no Brasil sobre o teor da decisão. Aliás, as regras que determinam o trânsito em julgado das decisões proferidas em território alienígena é matéria que diz respeito ao direito estrangeiro.

4. Restaram atendidos os requisitos regimentais com a constatação da re-gularidade da citação para processo julgado por juiz competente, cuja senten-ça, transitada em julgado, foi autenticada pela autoridade consular brasileira e traduzida por profi ssional juramentado no Brasil, com o preenchimento das demais formalidades legais.

5. Pedido de homologação deferido. Custas ex lege. Condenação do Re-querido ao pagamento dos honorários advocatícios.

(SEC 1.185/EX, Rel. Ministra LAURITA VAZ, CORTE ESPECIAL, jul-gado em 12/05/2011, DJe 10/06/2011)

CASO 5: SENTENÇA ESTRANGEIRA CONTESTADA Nº 5.302 — EX

SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

SENTENÇA ESTRANGEIRA CONTESTADA Nº 5.302 — EX (2010⁄0069865-9)

RELATORA: MINISTRA NANCY ANDRIGHIREQUERENTE: T A M MADVOGADO: DANILO DE ARAÚJO CARNEIRO E OUTRO(S)REQUERIDO: A F S MADVOGADO: GILBERTO MARTINS FILHO E OUTRO(S)

EMENTA: HOMOLOGAÇÃO DE SENTENÇA ESTRANGEIRA. DISSOLUÇÃO DE CASAMENTO. EC 66, DE 2010. DISPOSIÇÕES ACERCA DA GUARDA, VISITAÇÃO E ALIMENTOS DEVIDOS AOS FILHOS. PARTILHA DE BENS. IMÓVEL SITUADO NO BRASIL. DE-CISÃO PROLATADA POR AUTORIDADE JUDICIÁRIA BRASILEIRA. OFENSA À SOBERANIA NACIONAL.

1. A sentença estrangeira encontra-se apta à homologação, quando aten-didos os requisitos dos arts. 5º e 6º da Resolução STJ n.º 9⁄2005: (i) a sua prolação por autoridade competente; (ii) a devida ciência do réu nos autos da decisão homologanda; (iii) o seu trânsito em julgado; (iv) a chancela consular brasileira acompanhada de tradução por tradutor ofi cial ou juramentado; (v) a ausência de ofensa à soberania ou à ordem pública.

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2. A nova redação dada pela EC 66, de 2010, ao § 6º do art. 226 da CF⁄88 tornou prescindível a comprovação do preenchimento do requisito temporal outrora previsto para fi ns de obtenção do divórcio.

3. Afronta a homologabilidade da sentença estrangeira de dissolução de casamento a ofensa à soberania nacional, nos termos do art. 6º da Resolução n.º 9, de 2005, ante a existência de decisão prolatada por autoridade judiciária brasileira a respeito das mesmas questões tratadas na sentença homologanda.

4. A exclusividade de jurisdição relativamente a imóveis situados no Brasil, prevista no art. 89, I, do CPC, afasta a homologação de sentença estrangeira na parte em que incluiu bem dessa natureza como ativo conjugal sujeito à partilha.

5. Pedido de homologação de sentença estrangeira parcialmente deferido, tão somente para os efeitos de dissolução do casamento e da partilha de bens do casal, com exclusão do imóvel situado no Brasil.

ACÓRDÃOVistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Corte

Especial do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos votos e das notas taquigráfi cas constantes dos autos, por unanimidade, deferir em parte o pedido de homologação, nos termos do voto da Sra. Ministra Relatora. Os Srs. Ministros Laurita Vaz, Castro Meira, Arnaldo Esteves Lima, Massami Uyeda, Humberto Martins, Luis Felipe Salomão, Mauro Campbell Marques, Raul Araújo, Paulo de Tarso Sanseverino, Cesar Asfor Rocha, Felix Fischer, Gilson Dipp e Francisco Falcão votaram com a Sra. Ministra Relatora. Au-sentes, justifi cadamente, os Srs. Ministros Eliana Calmon, João Otávio de Noronha, Teori Albino Zavascki e Maria Th ereza de Assis Moura. Convoca-dos os Srs. Ministros Luis Felipe Salomão, Mauro Campbell Marques, Raul Araújo e Paulo de Tarso Sanseverino para compor quórum.

Brasília (DF), 12 de maio de 2011(Data do Julgamento).MINISTRO ARI PARGENDLERPresidenteMINISTRA NANCY ANDRIGHIRelatora

SENTENÇA ESTRANGEIRA CONTESTADA Nº 5.302 — EX (2010⁄0069865-9)

REQUERENTE: T A M MADVOGADO: DANILO DE ARAÚJO CARNEIRO E OUTRO(S)REQUERIDO: A F S MADVOGADO: GILBERTO MARTINS FILHO E OUTRO(S)

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RELATÓRIOA EXMA. SRA. MINISTRA NANCY ANDRIGHI (Relatora):Trata-se de pedido de homologação de sentença estrangeira de dissolução

de casamento — que também decidiu acerca da guarda e visitação dos fi lhos, pensão alimentícia e partilha de bens do casal — formulado por T. A. M. M. em face de A. F. S. M.

Na inicial, a requerente sustenta que as partes se casaram em 26 de novem-bro de 1993, no Brasil, optando pelo regime da comunhão parcial de bens. Dessa união nasceram dois fi lhos: G. F. M. S. M., em 16.7.1994, e M. M. M., em 8.8.1997.

Relata que o núcleo familiar, formado pelo casal e fi lhos, transferiu-se domicílio para os Estados Unidos da América, no início da década de 2000, com o intuito de conferir incremento à carreira profi ssional de T. A. M. M. e de A. F. S. M., por meio de Curso de Mestrado. Afi rma, entretanto, que optaram “por se estabelecer defi nitivamente naquele país por motivos de saú-de, tendo em vista os dois fi lhos do casal terem sido diagnosticados com uma síndrome rara (autismo)” (sic — fl . 3).

Sustenta que no ano de 2005 ingressou com pedido de separação, em ra-zão de comportamento agressivo do requerido, o que tornou, segundo aduz, a relação entre o casal insustentável. Informa que, em sequência, o requerido retornou ao Brasil, onde fi xou residência. Acrescenta, ainda, que o ex-marido “desde então nunca mais procurou pelos fi lhos, tampouco forneceu ajuda fi nanceira com os remédios que as crianças tomavam ou com as consultas médicas a que tinham que ir, e nunca pagou pensão” (fl . 3).

Menciona que em 28 de agosto de 2006 a sentença de dissolução do ca-samento foi prolatada pela 17ª Corte de Circuito do Tribunal do Distrito de Broward, Flórida, Estados Unidos, a qual é competente para julgar ações que envolvem pessoas residentes em Parkland, domicílio da requerente e de seus fi lhos. Assegura que houve a regular citação do requerido e que foi decretada a sua revelia. Comprova o trânsito em julgado da aludida decisão, bem como a devida autenticação pelo cônsul brasileiro, com tradução ofi cial. Por fi m, afi rma inexistir qualquer ofensa à soberania, à ordem pública ou aos bons costumes, de forma que busca a homologação dessa sentença, a fi m de que produza seus efeitos no Brasil.

Decisão liminar (fl s. 90⁄93): o i. Min. Presidente indeferiu o pedido de tutela antecipada, aos seguintes fundamentos:

A tutela de urgência, prevista no art. 4º, § 3º, da Resolução n. 9, de 4⁄5⁄2005, somente deve ser deferida quando atendidos os requisitos legais que autorizam a sua concessão. A preservação e o acautelamento dos direitos da parte requerente não podem ferir a uma outra ordem de interesses, igual-mente fundamental em uma sociedade de direito, pautada nos princípios constitucionais do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa.

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No caso, observo que a alegada situação de urgência foi gerada pela pró-pria parte, uma vez que a sentença estrangeira foi proferida em 28⁄8⁄2006, sem que a subsequente ação de homologação fosse intentada, a qual, se pro-movida em tempo oportuno, não envolveria o diferimento de etapas funda-mentais ao bom andamento do processo.

Ademais, não fi cou demonstrado o intuito do requerido em prejudicar os interesses da requerente e dos seus fi lhos menores, pois intentou a ação judi-cial no Brasil, em 6 de outubro de 2008, antes de ser instaurada, portanto, a presente ação de homologação de sentença, no bojo da qual formulou pedido para que se alterasse a guarda e o sustento dos fi lhos menores (fl s. 74-79).

Embora se reconheça que o juízo homologatório não deva empreender análise sobre o mérito e a justiça da sentença homologanda, o exame dos pe-didos de medidas urgentes, de que é exemplo o instituto da tutela antecipada, envolve, ao menos no que tange ao periculum in mora, considerar a tutela concedida no provimento alienígena, para inferir se um eventual reconhe-cimento tardio do direito o expõe a um risco tal, que poderá tornar inútil a própria homologação.

No presente caso, fi cou registrado na sentença estrangeira que “atualmente existe um saldo em atraso de $28.027,23 (vinte e oito mil, vinte e sete dólares e vinte e três cents)”, correspondentes a 9 (nove) meses de saldos atrasados desde a data da separação em 17 de novembro de 2005 até 31 de agosto de 2006, não tendo sido comprovado nos autos se o requerido adimpliu ou não as suas obrigações. Igualmente, constata-se que, após o período de agosto de 2006, não foi feita a comprovação da ausência de pagamento da pensão alimentícia, não sendo possível deduzir essa circunstância pelos elementos trazidos aos autos.

Quanto à ocorrência de danos psicológicos aos menores pela mudança na responsabilidade pela guarda dos menores, cumpre ressaltar que nas ins-tâncias judiciais esse tema pode ser revisto a qualquer tempo sempre em be-nefício dos menores. No caso em exame, cumpre salientar que atualmente a requerente mantém a guarda dos fi lhos menores nos E.U.A. e na sentença estrangeira fi cou registrado que “a Flórida é o estado onde residem os fi lhos e, consequentemente, é o único estado jurisdicional para a determinação da guarda dos fi lhos e defi nição de visitas” (fl . 41), não se confi gurando, portan-to, qualquer possibilidade iminente de alteração da situação presente.

Por fi m, cumpre salientar que eventuais questionamentos sobre a proprie-dade do bem imóvel, doado ao casal na constância do casamento, não devem ser considerados para a concessão da tutela de urgência que ora se requer, por não estar demonstrada a relação do imóvel com a ocorrência de algum dano possivelmente irreparável.

Ademais, conforme entendimento pacifi cado por este Tribunal e pela Su-prema Corte, quando o acordo de partilha contemplar bens imóveis situa-

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dos no Brasil, o juízo estrangeiro somente está autorizado a ratifi cá-lo, não podendo dispor sobre bens aqui situados, sob pena de ofensa à soberania nacional, ao disposto no art. 89, I, do Código de Processo Civil e ao art. 12, § 1º, da LICC (SE 3633, Ministro Moreira Alves, publicado em 24⁄6⁄1986, SE 4844, Ministro Octávio Gallotti, publicado em 18⁄10⁄1993, SEC 4512, Ministro Paulo Brossard, Pleno, publicado em 2⁄1⁄1994, SEC 7146, Ministro Ilmar Galvão, Pleno, publicado em 2⁄8⁄2002).

No caso em exame, o juízo estrangeiro, embora aparentemente tenha de-cidido acerca dos bens do casal, conforme registrado à fl . 57, em cuja partilha se incluiu bem sediado em território nacional, considerado um ativo con-jugal sujeito à partilha amigável, o mencionado juízo declarou, em seguida, “que não possui jurisdição com competência pela situação da coisa e orienta as partes no sentido de litigar sobre quaisquer questões relativas a essa pro-priedade em um juízo com jurisdição competente no Brasil” (fl . 60), o que retrata não estar demonstrada a exclusiva titularidade do imóvel em nome do requerido, em detrimento dos possíveis interesses da requerente (fl s. 91-93).

Contestação (fl s. 104⁄116): A. F. S. M. alega que “além do processo de divórcio nos Estados Unidos, cuja sentença ora se busca validar no território nacional, há outro, distribuído para a 4ª Vara de Família de Vitória⁄ES, sob nº 024.080.369.473 (doc. anexo)”, ao qual está “apensado o de partilha de bens, ambos propostos pelo ora Requerido” (fl . 106). Rebate todas as afi rma-ções feitas pela requerente na inicial, notadamente aquelas que mencionam conduta agressiva do requerido, além de asseverar que sua “revelia foi minu-ciosamente forjada” (fl . 111). Sustenta, ainda, que, ao deixar de contemplar o pleno exercício do direito ao contraditório e à ampla defesa, a sentença homologanda ofende a ordem pública. Ao argumento de que “um pai que propõe o divórcio pedindo a guarda defi nitiva dos fi lhos não tem o interesse de abandoná-los e nem de prejudicá-los” (fl . 115), aduz que só não vê os próprios fi lhos há quase 05 (cinco) anos, porque se pisar em solo americano corre o sério risco de parar atrás das grades, por falta de pagamento de pen-são. Nem tampouco houve permissão para que os avôs paternos os vissem (fl . 114).

Destaca, por fi m, que além dos valores enviados periodicamente à Reque-rente pelo pai do Requerido, este jamais se recusou a dar o que os fi lhos lhe pedem, isso sem falar no cuidado com a saúde e com o futuro deles, na me-dida em que paga mensalmente plano de saúde completo, conforme se nota do comprovante anexo (fl . 115).

Pugna, assim, pelo indeferimento do pedido de homologação da sentença proferida pela Justiça americana, com a condenação da requerente no paga-mento das custas processuais e dos honorários advocatícios.

Réplica (fl s. 206⁄221): T. A. M. M. refuta “a tentativa de se imputar ao caso pretensa revelia ilegal” (fl . 207 — com destaques no original), argu-

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mentando que, “além de pleno conhecimento sobre a ação de dissolução de matrimônio movida pela Requerente, o Requerido tinha ainda total ciência da data marcada para a audiência fi nal de julgamento do processo”. Salienta que o requerido “chegou a pedir a redesignação da audiência, não tendo, to-davia, obtido sucesso em seu pleito” (fl . 208), tudo conforme por ele mesmo aduzido em sua defesa.

Informações (fl s. 233⁄256): foram prestadas pelo i. Juiz de Direito, Titular da 4ª Vara de Família de Vitória, Espírito Santo, noticiando a prolação de sentença que decretou o divórcio das partes, além de:

i) consignar que a mulher voltará a usar o nome de solteira;ii) indeferir o pedido de guarda formulado pelo autor, permanecendo,

assim, a mãe, como guardiã da prole;iii) disciplinar o direito de visitas do pai aos fi lhos;iv) fi xar os alimentos a serem pagos pelo pai aos fi lhos no valor de 4 (qua-

tro) salários mínimos para cada um;v) condenar “os litigantes ao pagamento pro rata das custas e demais des-

pesas processuais” (fl . 255), bem como distribuir a verba honorária.Parecer do Ministério Público Federal (fl . 261⁄264): da lavra do i. Sub-

procurador-Geral da República Dr. Edson Oliveira de Almeida, opinando pela homologação parcial da sentença estrangeira, em relação tão somente à decretação do divórcio, “afastada a divisão do bem imóvel situado no Brasil, bem como as disposições acerca da guarda, visitas e alimentos” (fl . 264).

Petição (fl s. 266⁄293): a requerente sustenta que opôs embargos de decla-ração contra a sentença prolatada nos autos do divórcio direto ajuizado pelo requerido perante o Judiciário brasileiro.

É o relatório.SENTENÇA ESTRANGEIRA CONTESTADA Nº 5.302 — US

(2010⁄0069865-9)RELATORA: MINISTRA NANCY ANDRIGHIREQUERENTE: T A M MADVOGADO: DANILO DE ARAÚJO CARNEIRO E OUTRO(S)REQUERIDO: A F S MADVOGADO: GILBERTO MARTINS FILHO E OUTRO(S)

VOTOA EXMA. SRA. MINISTRA NANCY ANDRIGHI (Relatora):Cinge-se a lide à possibilidade de homologação da sentença estrangeira de

dissolução de casamento apresentada a esta Corte, com as seguintes peculia-ridades:

a) antes de formulado o presente pedido, a outra parte ajuizou ação idên-tica perante o Judiciário brasileiro, com sentença prolatada que decidiu sobre os mesmos temas tratados na decisão que se pretende homologar;

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b) o Juízo estrangeiro considerou bem imóvel situado no Brasil como “um ativo conjugal sujeito à partilha amigável dos bens do casal”, declarando, todavia, em seguida, que

não possui jurisdição com competência pela situação da coisa no que se re-fere à propriedade mencionada, e orienta as partes no sentido de litigar sobre quaisquer questões relativas à essa propriedade em um juízo com jurisdição competente no Brasil (fl . 60).

I. Do juízo de delibação adstrito à análise dos requisitos indispensáveis à homologação de sentença estrangeira.

De acordo com o art. 5º da Resolução n.º 9, de 4 de maio de 2005,Constituem requisitos indispensáveis à homologação de sentença estran-

geira: I — haver sido proferida por autoridade competente; II — terem sido as partes citadas ou haver-se legalmente verifi cado a revelia; III — ter transi-tado em julgado; e IV — estar autenticada pelo cônsul brasileiro e acompa-nhada de tradução por tradutor ofi cial ou juramentado no Brasil.

Consta, ainda, da referida norma, que “não será homologada sentença es-trangeira ou concedido exequatur a carta rogatória que ofendam a soberania ou a ordem pública” (art. 6º).

Verifi ca-se, inicialmente, que a sentença em questão foi proferida por au-toridade competente para decretar a dissolução do casamento nas cidades abrangidas pelo Circuito de Broward, no Estado da Flórida, Estados Unidos da América, entre elas Parkland, onde a requerente reside com os dois fi lhos do casal.

Nota-se, por outro lado, que fi cou demonstrada, por meio de tradução ofi cial da sentença estrangeira, a ciência do requerido acerca da referida ação de dissolução do casamento, tendo inclusive contestado o pedido inicial e se manifestado nos autos (fl . 40). Deixou, contudo, de comparecer a inúmeras audiências de discussão da causa bem assim do julgamento fi nal, atos para os quais o requerido havia sido regularmente intimado, o que ensejou a decre-tação de sua revelia (fl . 86).

Nesse particular, o próprio requerido afi rma, em sua contestação, que “não deixou de participar do processo nos Estados Unidos”, para o qual “constituiu advogado para representá-lo até o momento em que não pôde mais arcar com os custos da verba honorária”. Sustenta, ainda, em confi rmação ao que se lê da sentença homologanda, que “apresentou defesa tempestiva e compareceu a audiências e tentativas de conciliação” (fl . 109), e que “foi intimado para a última audiência, que seria realizada no dia 25 de agosto de 2006” (fl . 110). Contudo, ao constatar que não estava com o seu passaporte válido, segundo alude, requereu o adiamento da audiência, pedido esse que foi indeferido.

Induvidosa se mostra, portanto, a ciência do requerido a respeito do pro-cesso, de modo que a revelia ao tempo da sentença, por conseguinte, foi legalmente decretada.

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Salienta-se, ainda, que a sentença homologanda transitou em julgado, porquanto decorridos mais de 3 (três) anos de sua prolatação sem a interpo-sição de recurso, está autenticada pelo Consulado Geral do Brasil em Miami, o qual possui jurisdição no Estado da Flórida, bem como foi devidamente acompanhada de tradução, por tradutora juramentada (fl s. 40⁄66).

A documentação apresentada preenche, portanto, neste juízo de deliba-ção, os requisitos enunciados pelo art. 5º da Resolução n.º 9, de 2005.

Ressalta-se, por oportuno, em consideração à nova redação dada pela EC 66, de 2010, ao § 6º do art. 226 da CF⁄88, a prescindibilidade de compro-vação do preenchimento do requisito temporal outrora previsto para fi ns de obtenção do divórcio.

Todavia, releva estabelecer, no tocante às peculiaridades já destacadas, no sentido da existência de sentença prolatada pelo Judiciário brasileiro versan-do sobre as mesmas questões decididas na sentença homologanda, bem como da inclusão nesta de imóvel situado no Brasil como ativo conjugal sujeito à partilha, muito embora com a ressalva já mencionada, a atração de intranspo-nível óbice. Isso porque afronta a homologabilidade da sentença estrangeira a ofensa à soberania nacional, nos termos do art. 6º da Resolução n.º 9, de 2005, ante a existência de decisão prolatada por autoridade judiciária brasi-leira a respeito da guarda, visitação e pensão alimentícia relativa à prole do casal, bem assim acerca da partilha de imóvel situado no Brasil, em relação ao qual se observa o disposto no art. 89, I, do CPC.

Dessa forma, impõe-se o acolhimento apenas parcial do pedido formula-do na inicial, a fi m de homologar tão somente a dissolução do casamento e da partilha de bens do casal, com ressalva das cláusulas referentes aos alimentos, à guarda e visitação dos fi lhos, bem como da divisão do imóvel situado no Brasil.

Em similitude à hipótese, citam-se os precedentes da lavra do i. Min. Ha-milton Carvalhido, nas SECs 2.576-EX, DJe 5.2.2009; e 2.547-EX, DJe 12.5.2010.

Forte nessas razões, DEFIRO PARCIALMENTE o pedido de homolo-gação da sentença estrangeira, apenas para fi ns de dissolução do casamento e partilha de bens, excluindo as disposições acerca da guarda, visitação e ali-mentos devidos aos fi lhos, bem como da partilha do bem imóvel localizado no Brasil.

Em razão da sucumbência recíproca, condeno as partes ao pagamento dos honorários advocatícios, que fi xo no valor de R$ 5.000,00 (cinco mil reais), e que serão reciprocamente distribuídos, suportados na proporção de 50% pela requerente e de 50% pelo requerido, devidamente compensados, con-forme a Súmula 306 do STJ. Sem custas (Resolução STJ nº 09⁄2005, art. 1º, parágrafo único).

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CERTIDÃO DE JULGAMENTOCORTE ESPECIALPAUTA: 28⁄04⁄2011 JULGADO: 12⁄05⁄2011SEGREDO DE JUSTIÇARelatoraExma. Sra. Ministra NANCY ANDRIGHIPresidente da SessãoExmo. Sr. Ministro ARI PARGENDLERSubprocurador-Geral da RepúblicaExmo. Sr. Dr. BRASILINO PEREIRA DOS SANTOSSecretáriaBela. VANIA MARIA SOARES ROCHAAUTUAÇÃOREQUERENTE: T A M MADVOGADO: DANILO DE ARAÚJO CARNEIRO E OUTRO(S)REQUERIDO: A F S MADVOGADO: GILBERTO MARTINS FILHO E OUTRO(S)

ASSUNTO: DIREITO CIVIL — FamíliaCERTIDÃOCertifi co que a egrégia CORTE ESPECIAL, ao apreciar o processo em

epígrafe na sessão realizada nesta data, proferiu a seguinte decisão:

A Corte Especial, por unanimidade, deferiu em parte o pedido de homo-logação, nos termos do voto da Sra. Ministra Relatora.

Os Srs. Ministros Laurita Vaz, Castro Meira, Arnaldo Esteves Lima, Mas-sami Uyeda, Humberto Martins, Luis Felipe Salomão, Mauro Campbell Mar-ques, Raul Araújo, Paulo de Tarso Sanseverino, Cesar Asfor Rocha, Felix Fis-cher, Gilson Dipp e Francisco Falcão votaram com a Sra. Ministra Relatora.

Ausentes, justifi cadamente, os Srs. Ministros Eliana Calmon, João Otávio de Noronha, Teori Albino Zavascki e Maria Th ereza de Assis Moura.

Convocados os Srs. Ministros Luis Felipe Salomão, Mauro Campbell Marques, Raul Araújo e Paulo de Tarso Sanseverino para compor quórum.

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CASO 6: SENTENÇA ESTRANGEIRA CONTESTADA Nº 3.932 — GB

SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

SENTENÇA ESTRANGEIRA CONTESTADA Nº 3.932 — GB (2009⁄0225877-0)

RELATOR: MINISTRO FELIX FISCHERREQUERENTE: BRASPETRO OIL SERVICES COMPANY BRA-

SOILADVOGADO: LUÍS ROBERTO BARROSO E OUTRO(S)REQUERENTE: PETRÓLEO BRASILEIRO S⁄A PETROBRASADVOGADO: LUÍS ROBERTO BARROSO E OUTRO(S)REQUERIDO: MARÍTIMA PETRÓLEO E ENGENHARIA LTDAADVOGADOS: HÉLIO JOSÉ CAVALCANTI BARROS E

OUTRO(S)FERNANDO MAGALHÃES MILMAN E OUTRO(S)ISABEL A M MILMAN E OUTRO(S)

ADVOGADOS: JOSIMEIRE FERNANDES DA SILVA E OUTRO(S)MARCUS VINÍCIUS LENCASTRE E OUTRO(S)

ADVOGADOS: CLÁUDIA TERUE SUGAWARA MITSUYA E OUTRO(S)JULIANA ESTEVÃO LIMA DIAS E OUTRO(S)DANIEL ROCHA MAIA E OUTRO(S)CLAUDI CUNHA FRAGOSO E OUTRO(S)JOSÉ ROBERTO DE ANDRADE COUTINHO E OUTRO(S)

REQUERIDO: PETROMEC INCADVOGADO: DEFENSORIA PUBLICA DA UNIÃO — CURA-

DOR ESPECIAL

EMENTA: SENTENÇAS ESTRANGEIRAS CONTESTADAS. CON-TRATOS DE COMPRA, CONVERSÃO, ADAPTAÇÃO E SEGURO DA PLATAFORMA DE PETRÓLEO P-36. TRAMITAÇÃO DE PROCES-SO NO BRASIL. ATO HOMOLOGATÓRIO. AUSÊNCIA DE ÓBI-CE. HOMOLOGAÇÃO REQUERIDA PELOS RÉUS NO PROCESSO ORIGINAL. CITAÇÃO VÁLIDA. COMPROVAÇÃO DISPENSADA. PRINCÍPIO SOLVE ET REPETE. NATUREZA DE ORDEM PÚBLI-CA. AUSÊNCIA. APRECIAÇÃO DO MÉRITO. IMPOSSIBILIDADE. HOMOLOGAÇÃO. DEFERIMENTO.

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I — O ajuizamento de ação perante a Justiça Brasileira, após o trânsito em julgado das rr. sentenças proferidas pela Justiça estrangeira, não constitui óbice à homologação pretendida. Precedentes desta e. Corte e do e. STF: SEC 646⁄US, Corte Especial, Rel. Min. Luiz Fux, DJe de 11⁄12⁄2008; e SEC 7209, Tribunal Pleno, Rel. Min. Ellen Gracie, Rel. para o acórdão Min. Mar-co Aurélio, DJ de 29⁄9⁄2006.

II — “O Art. 88 do CPC, mitigando o princípio da aderência, cuida das hipóteses de jurisdição concorrente (cumulativa), sendo que a jurisdição do Poder Judiciário Brasileiro não exclui a de outro Estado” (REsp 1.168.547⁄RJ, Quarta Turma, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, DJe de 7⁄2⁄2011).

III — In casu, as partes optaram livremente em propor as demandas pe-rante a Justiça Britânica, diante da eleição do foro inglês nos contratos fi r-mados.

IV — Dispensa-se a comprovação da citação válida quando é o próprio réu no processo original que requer a homologação da sentença estrangeira. Ademais, ambas as partes se manifestaram no processo, por meio de advoga-do, e foram ouvidas em juízo. Nesse sentido: SEC 2259⁄CA, Corte Especial, Rel. Min. José Delgado, DJe de 30⁄06⁄2008, e SEC 3535⁄IT, Corte Especial, Rel. Min. Laurita Vaz, DJe de 16⁄2⁄2011.

V — Ausência de ofensa à soberania nacional, à ordem pública ou aos bons costumes, uma vez que o princípio solve et repete — assim como a regra da exceção do contrato não cumprido — não possui natureza de ordem pú-blica, razão pela qual foge à apreciação por esta via. Precedente: SEC 507⁄GB, Corte Especial, Rel. Min. Gilson Dipp, DJ de 13⁄11⁄2006.

VI — Incabível a análise do mérito da sentença que se pretende homolo-gar, uma vez que o ato homologatório está adstrito ao exame dos seus requi-sitos formais. Precedentes: SEC 269⁄RU, Corte Especial, Rel. Min. Fernando Gonçalves, DJe de 10⁄06⁄2010 e SEC 1.043⁄AR, Corte Especial, Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, DJe de 25⁄06⁄2009.

Homologação deferida.

ACÓRDÃOVistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indica-

das, acordam os Ministros da CORTE ESPECIAL do Superior Tribunal de Justiça, por unanimidade, deferir o pedido de homologação e fi xar os hono-rários em R$ 20.000,00 (vinte mil reais), nos termos do voto do Sr. Ministro Relator. Os Srs. Ministros Gilson Dipp, Hamilton Carvalhido, Eliana Cal-mon, Nancy Andrighi, Laurita Vaz, João Otávio de Noronha, Castro Meira, Arnaldo Esteves Lima, Massami Uyeda, Humberto Martins e Cesar Asfor Rocha votaram com o Sr. Ministro Relator.

Ausentes, justifi cadamente, os Srs. Ministros Francisco Falcão e Teori Al-bino Zavascki e, ocasionalmente, o Sr. Ministro Aldir Passarinho Junior.

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Convocado o Sr. Ministro Humberto Martins para compor quórum.Sustentaram oralmente a Dra. Ana Paula de Barcellos, pelas requerentes,

e o Dr. Hélio José Cavalcanti Barros, pela requerida — Marítima Petróleo e Engenharia Ltda.

Brasília (DF), 06 de abril de 2011 (Data do Julgamento).MINISTRO ARI PARGENDLERPresidenteMINISTRO FELIX FISCHERRelator

SENTENÇA ESTRANGEIRA CONTESTADA Nº 3.932 — GB (2009⁄0225877-0)

RELATÓRIOO EXMO. SR. MINISTRO FELIX FISCHER: PETRÓLEO BRASI-

LEIRO S.A. — PETROBRÁS, sociedade de economia mista, constituída segundo as leis brasileiras, e BRASPETRO OIL SERVICES COMPANY — BRASOIL, sua subsidiária integral no exterior, sociedade constituída se-gundo as leis das Ilhas Cayman, requerem a homologação de rr. sentenças estrangeiras proferidas em demandas ajuizadas perante a Justiça Britânica, em desfavor de MARÍTIMA PETRÓLEO E ENGENHARIA LTDA., so-ciedade limitada constituída de acordo com as leis da República Federativa do Brasil, e PETROMEC INC., sociedade constituída segundo as leis das Ilhas Virgens Britânicas.

A petição inicial foi instruída com documentos societários da BRASOIL (fl s. 19⁄43 e tradução para o vernáculo às fl s. 44⁄121) e da PETROBRÁS (fl s. 123⁄143); procurações (fl s. 145⁄154); e as sentenças proferidas pela Commer-cial Court de Londres, acompanhadas de autenticação e tradução feita por tradutor juramentado no Brasil (fl s. 155⁄703), entre outros documentos (fl s. 704⁄1.009).

A requerida MARÍTIMA PETRÓLEO E ENGENHARIA LTDA. apre-sentou contestação às fl s. 1.152⁄1.186 (e documentos de fl s. 1.187⁄1.524), em que alegou violação ao art. 9º da Resolução n.º 9⁄2005 desta e. Corte Superior, bem como ao art. 17 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (antiga Lei de Introdução ao Código Civil, que teve a sua ementa alterada, a teor do disposto na Lei nº 12.376⁄2010), por suposta ofensa à ordem pública nacional.

Afi rmou que, a respeito do mesmo tema, ajuizou ação perante a Justiça Brasileira, por se tratar, no caso, de competência internacional concorrente, não obstante a PETROBRÁS pretenda se eximir da aplicação da lei brasileira.

A segunda requerida, denominada PETROMEC INC., foi citada por hora certa (fl s. 1.138⁄1.139), deixando de se manifestar no prazo legal, con-

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FGV DIREITO RIO 226

forme certidão de fl . 1.527. Designou-se Defensor Público da União para atuar como Curador Especial (despacho de fl . 1.533), que ofereceu contesta-ção às fl s. 1.540⁄1.548.

Preliminarmente, aduziu a segunda requerida (PETROMEC INC.) por meio de Curador Especial, a nulidade de sua citação, ao fundamento de que não haveria prova nos autos acerca de sua representação legal pelo Sr. Ger-man Efromovich.

No mérito, sustentou que houve ofensa à ordem pública, pois “as senten-ças estrangeiras, no que condenaram as requeridas ao pagamento de elevadas somas em favor das requerentes, vedando a compensação de débitos e crédi-tos decorrente do não adimplemento contratual imputável às mesmas reque-rentes, atenta contra princípios consagrados explicita ou implicitamente em nossa ordem pública, do direito à propriedade, da vedação do enriquecimen-to sem causa e da proporcionalidade das decisões judiciais” (fl . 1.542).

Aduziu, ainda, que as sentenças estrangeiras teriam aplicado, implicita-mente, a cláusula contratual solve et repete, ou seja, teriam determinado o pagamento integral daquilo que foi contratado, para que somente depois as ora requeridas pudessem pleitear a devolução do que fosse indevido, o que, igualmente, não seria condizente com a ordem pública brasileira.

Alegou ausência de demonstração inequívoca da competência da autori-dade estrangeira e questionou, ainda, a validade da citação dos réus no pro-cesso de origem.

As requerentes, às fl s. 1.559⁄1.569, se manifestaram acerca das contesta-ções apresentadas.

A d. Subprocuradoria-Geral da República opinou pela procedência do pedido de homologação (fl s. 1.630⁄1.640).

É o relatório.

SENTENÇA ESTRANGEIRA CONTESTADA Nº 3.932 — GB (2009⁄0225877-0)

EMENTA: SENTENÇAS ESTRANGEIRAS CONTESTADAS. CON-TRATOS DE COMPRA, CONVERSÃO, ADAPTAÇÃO E SEGURO DA PLATAFORMA DE PETRÓLEO P-36. TRAMITAÇÃO DE PROCES-SO NO BRASIL. ATO HOMOLOGATÓRIO. AUSÊNCIA DE ÓBI-CE. HOMOLOGAÇÃO REQUERIDA PELOS RÉUS NO PROCESSO ORIGINAL. CITAÇÃO VÁLIDA. COMPROVAÇÃO DISPENSADA. PRINCÍPIO SOLVE ET REPETE. NATUREZA DE ORDEM PÚBLI-CA. AUSÊNCIA. APRECIAÇÃO DO MÉRITO. IMPOSSIBILIDADE. HOMOLOGAÇÃO. DEFERIMENTO.

I — O ajuizamento de ação perante a Justiça Brasileira, após o trânsito em julgado das rr. sentenças proferidas pela Justiça estrangeira, não constitui

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óbice à homologação pretendida. Precedentes desta e. Corte e do e. STF: SEC 646⁄US, Corte Especial, Rel. Min. Luiz Fux, DJe de 11⁄12⁄2008; e SEC 7209, Tribunal Pleno, Rel. Min. Ellen Gracie, Rel. para o acórdão Min. Mar-co Aurélio, DJ de 29⁄9⁄2006.

II — “O Art. 88 do CPC, mitigando o princípio da aderência, cuida das hipóteses de jurisdição concorrente (cumulativa), sendo que a jurisdição do Poder Judiciário Brasileiro não exclui a de outro Estado” (REsp 1.168.547⁄RJ, Quarta Turma, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, DJe de 7⁄2⁄2011).

III — In casu, as partes optaram livremente em propor as demandas pe-rante a Justiça Britânica, diante da eleição do foro inglês nos contratos fi r-mados.

IV — Dispensa-se a comprovação da citação válida quando é o próprio réu no processo original que requer a homologação da sentença estrangeira. Ademais, ambas as partes se manifestaram no processo, por meio de advoga-do, e foram ouvidas em juízo. Nesse sentido: SEC 2259⁄CA, Corte Especial, Rel. Min. José Delgado, DJe de 30⁄06⁄2008, e SEC 3535⁄IT, Corte Especial, Rel. Min. Laurita Vaz, DJe de 16⁄2⁄2011.

V — Ausência de ofensa à soberania nacional, à ordem pública ou aos bons costumes, uma vez que o princípio solve et repete — assim como a regra da exceção do contrato não cumprido — não possui natureza de ordem pú-blica, razão pela qual foge à apreciação por esta via. Precedente: SEC 507⁄GB, Corte Especial, Rel. Min. Gilson Dipp, DJ de 13⁄11⁄2006.

VI — Incabível a análise do mérito da sentença que se pretende homolo-gar, uma vez que o ato homologatório está adstrito ao exame dos seus requi-sitos formais. Precedentes: SEC 269⁄RU, Corte Especial, Rel. Min. Fernando Gonçalves, DJe de 10⁄06⁄2010 e SEC 1.043⁄AR, Corte Especial, Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, DJe de 25⁄06⁄2009.

Homologação deferida.

VOTOO EXMO. SR. MINISTRO FELIX FISCHER: Os requerentes preten-

dem a homologação de 4 (quatro) sentenças estrangeiras e de 2 (dois) acór-dãos, proferidos pela Corte Real de Justiça, em Londres — Inglaterra, em ações ajuizadas pela segunda requerida (PETROMEC INC.), todas relacio-nadas a contratos de compra, conversão, adaptação e seguro da plataforma de petróleo denominada P-36, que veio a afundar, em março de 2001, na Bacia de Campos — RJ: Sentença n.º [2003] EWHC 179 (Comm), de 18⁄2⁄2003 (fl s. 155⁄167 e tradução às fl s. 169⁄184); Acórdão n.º [2004] EWCA Civ 156, de 17⁄2⁄2004 (fl s. 187⁄196 e tradução às fl s. 198⁄211); Sentença n.º [2004] EWHC 1180 (Comm), de 20⁄5⁄2004 (fl s. 214⁄243 e tradução às fl s. 245⁄287); Sentença n.º [2004] EWHC 127 (Comm), de 2⁄2⁄2004 (fl s. 411⁄470 e tra-dução às fl s. 472⁄553); Acórdão n.º [2005] EWCA Civ 891, de 15⁄7⁄2005

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(fl s. 290⁄343 e tradução às fl s. 345⁄408); e Sentença n.º [2006] EWHC 1443 (Comm), de 16⁄6⁄2006 (fl s. 556⁄621 e tradução às fl s. 623⁄703).

Inicialmente, cabe ressaltar que, ao promover a homologação de sentença estrangeira, compete ao e. Superior Tribunal de Justiça verifi car se a preten-são atende aos requisitos preconizados pela Resolução nº 09⁄2005⁄STJ, mais especifi camente aos comandos dos artigos 5º e 6º, verbis:

“Art. 5º Constituem requisitos indispensáveis à homologação de sentença estrangeira:

I — haver sido proferida por autoridade competente;II — terem sido as partes citadas ou haver-se legalmente verifi cado a re-

velia;III — ter transitado em julgado; eIV — estar autenticada pelo cônsul brasileiro e acompanhada de tradução

por tradutor ofi cial ou juramentado no Brasil.Art. 6º Não será homologada sentença estrangeira ou concedido exequa-

tur a carta rogatória que ofendam a soberania ou a ordem pública.”

Vale dizer, não há neste juízo discussão acerca da matéria de fundo da sentença estrangeira ou mesmo do mérito da causa, porquanto estranho ao próprio objeto da homologação, ressalvada a análise de aspectos relacionados à ordem pública e soberania nacional, ao contraditório e ampla defesa, e ao devido processo legal.

O e. Supremo Tribunal Federal, Corte à qual competia a homologação de sentença estrangeira até a edição da EC nº 45⁄2004, já se manifestou sobre o juízo exercido quando do processo homologatório. Cito nesse sentido, pre-cedente:

“SENTENÇA ESTRANGEIRA — HOMOLOGAÇÃO — SISTEMA DE DELIBAÇÃO — LIMITES DO JUÍZO DELIBATÓRIO — PRESSU-POSTOS DE HOMOLOGABILIDADE — AUSÊNCIA DE AUTENTI-CAÇÃO CONSULAR DA CERTIDÃO DE TRÂNSITO EM JULGADO — CONDENAÇÃO DA PARTE SUCUMBENTE A VERBA HONO-RARIA — POSSIBILIDADE — RECUSA DE HOMOLOGAÇÃO POR AUSÊNCIA DE UM DE SEUS REQUISITOS — EXTINÇÃO DO PRO-CESSO SEM JULGAMENTO DO MÉRITO.

— (...).— O SISTEMA DE CONTROLE LIMITADO QUE FOI INSTITUÍ-

DO PELO DIREITO BRASILEIRO EM TEMA DE HOMOLOGAÇÃO DE SENTENÇA ESTRANGEIRA NÃO PERMITE QUE O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, ATUANDO COMO TRIBUNAL DO FORO, PROCEDA, NO QUE SE REFERE AO ATO SENTENCIAL FORMA-DO NO EXTERIOR, AO EXAME DA MATÉRIA DE FUNDO OU A APRECIAÇÃO DE QUESTÕES PERTINENTES AO MERITUM CAU-

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SAE, RESSALVADA, TÃO-SOMENTE, PARA EFEITO DO JUÍZO DE DELIBAÇÃO QUE LHE COMPETE, A ANALISE DOS ASPECTOS CONCERNENTES A SOBERANIA NACIONAL, A ORDEM PÚBLICA E AOS BONS COSTUMES. NÃO SE DISCUTE, NO PROCESSO DE HOMOLOGAÇÃO, A RELAÇÃO DE DIREITO MATERIAL SUBJA-CENTE A SENTENÇA ESTRANGEIRA HOMOLOGANDA. — (...)”.

(SEC 4738⁄EU, Tribunal Pleno, Rel. Min. Celso de Mello, DJe de 07⁄04⁄1995).

Nesse mesmo sentido, a c. Corte Especial deste e. Superior Tribunal de Justiça, conforme se verifi ca do seguinte precedente:

”PROCESSUAL CIVIL. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. ART. 535 DO CPC. AUSÊNCIA DOS PRESSUPOSTOS. HOMOLOGAÇÃO DE SENTENÇA ARBITRAL ESTRANGEIRA. LEI 9.307⁄96. APLICA-ÇÃO IMEDIATA. CONSTITUCIONALIDADE. UTILIZAÇÃO DA ARBITRAGEM COMO SOLUÇÃO DE CONFLITOS. AUSÊNCIA DE VIOLAÇÃO À ORDEM PÚBLICA. IMPOSSIBILIDADE DE ANÁLI-SE DO MÉRITO DA RELAÇÃO DE DIREITO MATERIAL. OFENSA AO CONTRADITÓRIO E À AMPLA DEFESA. INEXISTÊNCIA. FIXA-ÇÃO DA VERBA HONORÁRIA. ART. 20, § 4º DO CPC. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO REJEITADOS. (...)

VI — O ato homologatório da sentença estrangeira limita-se à análise dos seus requisitos formais. Isto signifi ca dizer que o objeto da delibação na ação de homologação de sentença estrangeira não se confunde com aquele do processo que deu origem à decisão alienígena, não possuindo conteúdo econômico. É no processo de execução, a ser instaurado após a extração da carta de sentença, que poderá haver pretensão de cunho econômico. (...)”.

(EDcl na SEC 507⁄GB, Corte Especial, Rel. Min. Gilson Dipp, DJ de 05⁄02⁄2007).

Dessa forma, pode-se concluir que o ajuizamento de ação perante a Justiça Brasileira não constitui óbice à homologação ora pretendida, conforme juris-prudência desta e. Corte e do e. STF, verbis:

“PROCESSUAL CIVIL. SENTENÇA ESTRANGEIRA. HOMOLO-GAÇÃO. CONTRATO FIRMADO POR MÚTUO CONSENTIMEN-TO. EXCLUSÃO DE RESPONSABILIDADE. POSSIBILIDADE. RE-QUISITOS LEGAIS ATENDIDOS. HOMOLOGAÇÃO DEFERIDA. AUSÊNCIA DE OFENSA À ORDEM PÚBLICA OU À SOBERANIA. INTERVENÇÃO DE TERCEIRO. ASSISTENTE LITISCONSORCIAL. POSSIBILIDADE. (...)

6. A sentença estrangeira, cumpridos os requisitos erigidos pelo art. 5º in-cisos I, II, III e IV da Resolução 09⁄STJ, revela-se apta à homologação perante o STJ, em consonância com a Lei de Introdução ao Código Civil, artigo 15, a

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saber: Será executada no Brasil a sentença proferida no estrangeiro, que reuna os seguintes requisitos:

a) haver sido proferida por juiz competente;b) terem sido os partes citadas ou haver-se legalmente verifi cado à revelia;c) ter passado em julgado e estar revestida das formalidades necessárias

para a execução no lugar em que, foi proferida;d) estar traduzida por intérprete autorizado;e) ter sido homologada pelo Supremo Tribunal Federal.Parágrafo único. Não dependem de homologação as sentenças meramente

declaratórias do estado das pessoas.(...)10. O juízo de delibação é meramente formal, sem o denominado ‘Revi-

sion au fond’, sendo certo que o art. 90 do CPC torna a existência de ação posterior no território nacional indiferente para fi ns de homologação. Prece-dente desta Corte: SEC 611⁄US, DJ 11⁄12⁄2006.

11. Homologação de sentença estrangeira deferida”.(STJ — SEC 646⁄US, Corte Especial, Rel. Min. Luiz Fux, DJe de

11⁄12⁄2008).“SENTENÇA ESTRANGEIRA — TRAMITAÇÃO DE PROCESSO

NO BRASIL — HOMOLOGAÇÃO. O fato de ter-se, no Brasil, o cur-so de processo concernente a confl ito de interesses dirimido em sentença estrangeira transitada em julgado não é óbice à homologação desta última. BENS IMÓVEIS SITUADOS NO BRASIL — DIVISÃO — SENTEN-ÇA ESTRANGEIRA — HOMOLOGAÇÃO. A exclusividade de jurisdição relativamente a bens imóveis situados no Brasil — artigo 89, inciso I, do Código de Processo Civil — afasta a homologação de sentença estrangeira a versar a divisão.”

(STF — SEC 7209, Tribunal Pleno, Rel. Min. Ellen Gracie, Rel. para o acórdão Min. Marco Aurélio, DJ de 29⁄9⁄2006).

No julgado acima transcrito, o em. Ministro Sepúlveda Pertence, em Vo-to-Vista, transcrevendo a lição de Barbosa Moreira, assim consignou: ”O fato de estar pendente — em qualquer grau de jurisdição — processo brasileiro sobre a lide anteriormente julgada noutro Estado não constitui óbice a que se requeira a homologação da sentença alienígena, nem exclui que o Supremo Tribunal Federal a conceda, satisfeitos os pressupostos legais. (...)

Por outro lado, é certo que não poderão coexistir a sentença nacional so-bre a causa e a sentença estrangeira homologada. Se o Supremo Tribunal Federal, por acórdão irrecorrível, rejeitar o pedido de homologação ainda na pendência do processo brasileiro, este prosseguirá normalmente, em direção ao julgamento da lide. Se, todavia, estiverem satisfeitos todos os pressupostos legais da homologação, as conseqüências variarão conforme a decisão homo-logatória passe em julgado antes ou depois da sentença brasileira — pouco importando, vale insistir, que divirjam ou não as soluções dadas ao litígio

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pelo órgão pátrio e pelo alienígena. Destarte, se, quando transitar em jul-gado a decisão homologatória, ainda pender o processo brasileiro, já não se poderá, neste, julgar o mérito: a sentença defi nitiva que porventura nele se viesse a proferir ofenderia a res iudicata e seria, por conseguinte, rescindível. A providência adequada é a extinção do processo nacional sem julgamento do mérito, de ofício ou por provocação da parte”.

In casu, as rr. decisões homologandas são anteriores à propositura da ação perante a justiça brasileira, que se deu tão-somente em 12⁄12⁄2006 (data da distribuição, conforme consulta ao sítio eletrônico do e. Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro — Processo nº 0154250-76.2006.8.19.0001 — 1ª instância).

Conforme se verifi ca às fl s. 992⁄1.009, o e. Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro extinguiu o processo, sem resolução de mérito, consignando que “no contrato fi rmado, as partes, entre outras avenças, escolheram o foro de Lon-dres como aquele que teria jurisdição para dirimir seus confl itos, prevendo, por óbvio, a aplicação da legislação inglesa. As ações foram propostas na Corte de Londres. A Agravada, após sair-se vencida na justiça inglesa, volta seus pleitos à Justiça brasileira.” (fl . 992).

A decisão proferida pela justiça brasileira, no caso, ainda não transitou em julgado, mas aguarda o julgamento dos Recursos Especiais nº 1.091.299⁄RJ e 1.090.720⁄RJ, ambos de relatoria do em. Ministro Aldir Passarinho Júnior (Quarta Turma desta e. Corte).

Constata-se, portanto, que as próprias requeridas optaram pelo foro in-glês, e, tendo sido sucumbentes, ajuizaram ação perante a Justiça brasileira. Não podem, portanto, alegar, nesse momento, que as ora requerentes preten-deriam fraudar a lei brasileira, diante da aplicação da lei inglesa aos contratos fi rmados.

Ressalte-se que “o Art. 88 do CPC, mitigando o princípio da aderência, cuida das hipóteses de jurisdição concorrente (cumulativa), sendo que a ju-risdição do Poder Judiciário Brasileiro não exclui a de outro Estado, compe-tente a justiça brasileira apenas por razões de viabilidade e efetividade da pres-tação jurisdicional, estas corroboradas pelo princípio da inafastabilidade da jurisdição, que imprime ao Estado a obrigação de solucionar as lides que lhe são apresentadas, com vistas à consecução da paz social” (REsp 1.168.547⁄RJ, Quarta Turma, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, DJe de 7⁄2⁄2011).

Outrossim, não se aplica nenhuma das hipóteses de competência interna-cional exclusiva da autoridade judiciária brasileira, previstas no art. 89 do CPC, uma vez que as próprias requeridas optaram por propor as demandas perante a Justiça Britânica, diante da eleição do foro inglês nos contratos fi rmados.

Assim, inexiste a necessária prejudicialidade entre o processo de homo-logação, que não discute a relação de direito material subjacente à sentença estrangeira homologanda, e o objeto dos Recursos Especiais 1.091.299⁄RJ e 1.090.720⁄RJ, que discutem questão material. Como asseverado nos julgados

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acima, a sentença estrangeira, desde que cumpridos os requisitos estabeleci-dos pelo art. 5º incisos I, II, III e IV da Resolução 09⁄STJ, revela-se apta à homologação perante esta e. Corte Superior.

In casu, os requisitos indispensáveis à homologação de sentença estrangeira foram atendidos, uma vez que as decisões homologandas foram proferidas por autoridade competente (Commercial Court de Londres), estão devidamente autenticadas por cônsul brasileiro e acompanhadas de tradução juramentada.

Verifi ca-se, às fl s. 1.655⁄1.657 (tradução para o vernáculo às fl s. 1.658⁄1.662), certidão expedida pela Corte Inglesa, que atesta o trânsito em julgado das rr. sentenças cuja homologação ora se pleiteia.

Quanto à citação dos réus no processo original, cabe ressaltar que são eles os próprios requerentes da homologação, estando satisfeito, portanto, tal requisito.

Nesse sentido, cito o seguinte precedente:HOMOLOGAÇÃO DE SENTENÇA ESTRANGEIRA. ITÁLIA. DI-

VÓRCIO, COM ACORDO SOBRE A GUARDA E PENSÃO DO FI-LHO. REQUISITOS PREENCHIDOS.

1. Se a homologação é pedida pela própria parte Ré da sentença estran-geira, não há se exigir a comprovação da citação, mormente porque houve regular constituição de advogado, além do comparecimento dos cônjuges, pessoalmente, para a audiência perante a autoridade judicial sentenciante.

2. “O divórcio consensual, por sua natureza, permite inferir a ocorrência do trânsito em julgado. Precedente da Corte Especial: SEC n. 352” (AgRg na SE 3.731⁄FR, CORTE ESPECIAL, Rel. Ministro CESAR ASFOR RO-CHA, DJe de 01⁄03⁄2010).

3. Não se constitui em óbice à homologação de sentença estrangeira o eventual inadimplemento de obrigações dela decorrentes, a teor do art. 9.º da Resolução⁄STJ n.º 09, de 4 de maio de 2005, porquanto o objetivo do ato homologatório é tão-só o reconhecimento da validade da decisão, para que, assim, possa estender sua efi cácia ao território brasileiro.

4. Pedido de homologação deferido. Custas ex lege. Condenação do Re-querido ao pagamento dos honorários advocatícios.

(SEC 3535⁄IT, Corte Especial, Rel. Min. Laurita Vaz, DJe de 16⁄2⁄2011).Ademais, ambas as partes se manifestaram no processo alienígena, por

meio de advogado e foram ouvidas em juízo.Ilustrativamente:

“SENTENÇA ESTRANGEIRA. DIVÓRCIO. HOMOLOGAÇÃO.1. Homologa-se sentença estrangeira de divórcio que não viola a soberania

nacional, os bons costumes e a ordem pública.2. Alegação de ausência de citação que não tem procedência. O requerido

compareceu à audiência de instrução e julgamento realizada pelo juízo es-trangeiro e formulou reivindicações.

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3. Preenchimento das condições legais para a homologação da sentença estrangeira que se reconhece.

4. O divórcio realizado no estrangeiro, se um ou ambos os cônjuges forem brasileiros, produzirá efeitos ao Brasil somente após um ano da sentença, ou mais de dois anos de separação de fato.

5. Sentença homologada para que produza os seus jurídicos e legais efeitos.(SEC 2259⁄CA, Corte Especial, Rel. Min. José Delgado, DJe de 30⁄06⁄2008).Já no que toca à regularidade da representação legal da requerida PE-

TROMEC INC., não há dúvidas de que fi gura nessa posição, como seu representante, o Sr. German Efromovich, conforme se verifi ca do contrato de supervisão fi rmado com a PETROBRÁS, que contém a sua assinatura (fl s. 1.210⁄1.219 e tradução às fl s. 1.222⁄1.239), e das próprias sentenças estran-geiras, em especial, à fl . 626 do relatório (traduzido) referente ao processo [2006] EWHC 1443 (Comm): “A Marítima foi constituída pelo Sr. German Efromovich (doravante denominado ‘Sr. Efromovich’) e seu irmão. Em todas as ocasiões pertinentes, a Marítima e a Petromec foram detidas e⁄ou controla-das pelo Sr. Efromovich e⁄ou seus familiares. Com relação às questões às quais este processo diz respeito, todas as decisões comerciais foram essencialmente tomadas pelo Sr. Efromovich, apesar de ele ter recebido consultoria e suporte de outros (...)”.

Esclareça-se que a PETROMEC INC. (segunda requerida), uma das sub-sidiárias da MARÍTIMA PETRÓLEO E ENGENHARIA LTDA. (primeira requerida), foi por esta criada com a fi nalidade precípua de gerenciar o apri-moramento da Plataforma P-36.

Registre-se, ainda, que tais decisões não ofendem a soberania nacional, a ordem pública ou os bons costumes, consoante o disposto no art. 15 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro.

As rr. sentenças homologandas, no caso, cuidam de matéria eminente-mente contratual, referente à responsabilidade das partes quanto à compra, conversão, adaptação e seguro da plataforma de petróleo denominada P-36.

No processo de homologação, não se permite ao e. STJ adentrar o mérito da sentença estrangeira, a fi m de discutir se aquele julgado solucionou acerta-damente a questão discutida nos autos, conforme jurisprudência pacífi ca do e. STF e desta e. Corte Superior, anteriormente transcritos.

Desse modo, não procedem as alegações da segunda requerida (PETRO-MEC INC.) quando afi rma que as decisões estrangeiras teriam vedado a pos-sibilidade de compensação e estipulado o princípio solve et repete, uma vez que, assim como a regra da exceção do contrato não cumprido, referida ques-tão não possui natureza de ordem pública, razão pela qual foge à apreciação por esta via, conforme se verifi ca do seguinte precedente:

“HOMOLOGAÇÃO DE SENTENÇA ARBITRAL ESTRANGEIRA. CAUÇÃO. DESNECESSIDADE. LEI 9.307⁄96. APLICAÇÃO IMEDIATA.

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CONSTITUCIONALIDADE. UTILIZAÇÃO DA ARBITRAGEM COMO SOLUÇÃO DE CONFLITOS. AUSÊNCIA DE VIOLAÇÃO À ORDEM PÚBLICA. IMPOSSIBILIDADE DE ANÁLISE DO MÉRITO DA RELA-ÇÃO DE DIREITO MATERIAL. OFENSA AO CONTRADITÓRIO E À AMPLA DEFESA. INEXISTÊNCIA. REGRA DA EXCEÇÃO DO CON-TRATO NÃO CUMPRIDO. FIXAÇÃO DA VERBA HONORÁRIA. ART. 20, § 4º DO CPC. PEDIDO DE HOMOLOGAÇÃO DEFERIDO.

(...)VI — A Eg. Corte Especial deste Tribunal já se manifestou no sentido de

que a questão referente à discussão acerca da regra da exceção do contrato não cumprido não tem natureza de ordem pública, não se vinculando ao conceito de soberania nacional. Ademais, o tema refere-se especifi camente ao mérito da sentença homologanda, sendo inviável sua análise na presente via.

VII — O ato homologatório da sentença estrangeira limita-se à análise dos seus requisitos formais. Isto signifi ca dizer que o objeto da delibação na ação de homologação de sentença estrangeira não se confunde com aquele do processo que deu origem à decisão alienígena, não possuindo conteúdo econômico. É no processo de execução, a ser instaurado após a extração da carta de sentença, que poderá haver pretensão de cunho econômico.

VIII — Em grande parte dos processos de homologação de sentença es-trangeira — mais especifi camente aos que se referem a sentença arbitral — o valor atribuído à causa corresponde ao conteúdo econômico da sentença ar-bitral, geralmente de grande monta. Assim, quando for contestada a homo-logação, a eventual fi xação da verba honorária em percentual sobre o valor da causa pode mostrar-se exacerbada.

IX — Na hipótese de sentença estrangeira contestada, por não haver con-denação, a fi xação da verba honorária deve ocorrer nos moldes do art. 20, § 4º do Código de Processo Civil, devendo ser observadas as alíneas do §3º do referido artigo. Ainda, consoante o entendimento desta Corte, neste caso, não está o julgador adstrito ao percentual fi xado no referido §3º.

X— Pedido de homologação deferido.”(SEC 507⁄GB, Corte Especial, Rel. Min. Gilson Dipp, DJ de 13⁄11⁄2006).

Com efeito, segundo a jurisprudência do e. Supremo Tribunal Federal, a homologação da sentença estrangeira “deve limitar-se, estritamente, aos ter-mos que emergem do conteúdo desse ato sentencial, não podendo abranger e nem estender-se a tópicos, acordos ou cláusulas que não se achem formal-mente incorporados ao texto da decisão homologanda.” (SE 5.590⁄AO, Rel. Min. Celso de Mello, DJU de 26⁄5⁄1998).

Assim, conclui-se que o pedido formulado está de acordo com as disposi-ções contidas na Resolução n.º 9, de 4⁄5⁄2005, desta e. Corte Superior, bem como no art. 17 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro.

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No que tange à verba honorária, tratando-se de sentenças estrangeiras contestadas, a sua fi xação deverá observar o disposto no art. 20, § 4º, do CPC, uma vez que não há condenação, tendo sido atribuída à causa o valor de R$ 1.000,00 (mil reais), sem impugnação.

Ante o exposto, voto pelo deferimento do pedido de homologação das rr. sentenças estrangeiras, e fi xo a verba honorária em R$ 20.000,00 (vinte mil reais).

É o voto.

5. LEGISLAÇÃO

Decreto-Lei Nº 4657/42 — Lei de Introdução às Normas do Direito Bra-sileiro;

Resolução 9/05 STJLei Nº 5.869 — Código de Processo Civil

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AULA 19 — CARTAS ROGATÓRIAS

1. TEMAS ESPECÍFICOS: 1) COOPERAÇÃO INTERNACIONAL;

2) Cartas Rogatórias como modalidade;3) Tratados Internacionais sobre Cartas Rogatórias.

2. MÉTODO DE ENSINO:

Aula expositiva e participativa.

3. LEITURA:

3.1. Leitura obrigatória:

ARAUJO, Nadia de. Direito Internacional Privado: Teoria e Prática Brasileira. 3ª Ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, pp.265-291.

3.2. Leitura complementar:

TIBURCIO, Carmen. STF — HC 85.558/RJ: O Debate sobre a Dispensa da Carta Rogatória para o atendimento de Solicitações Provenientes do Ex-terior. Revista de Direito do Estado, N.º 02. Rio de Janeiro: Renovar, abril/junho 2006, pp. 353-358.

4. LEITURA PARA O DEBATE

4.1. LEITURA PARA O GRUPO

RECHSTEINER, Beat Walter. Direito Internacional Privado: Teoria e Práti-ca. 13ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2010, pp.337-357.

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4.2. JURISPRUDÊNCIA

CASO 1: AGRG NA CR Nº 4.215

SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

AgRg na CARTA ROGATÓRIA Nº 4.215 — EX (2009⁄0128108-4)

RELATOR: MINISTRO PRESIDENTE DO STJAGRAVANTE: NÉLIO PESTANA DA CORTEADVOGADO: FLAVIANO VETER TAUSCHECKAGRAVADO: SERVIÇOS DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO FUNCHALEMENTA

AGRAVO REGIMENTAL. CARTA ROGATÓRIA. DILIGÊNCIA ROGADA. INTERROGATÓRIO E TOMADA DOS TERMOS DE CONSTITUIÇÃO DE ARGUIDO E DE IDENTIDADE E RESIDÊN-CIA, PREVISTOS NA LEGISLAÇÃO PORTUGUESA. ALEGAÇÃO DE PRESCRIÇÃO DO CRIME SEGUNDO A LEGISLAÇÃO BRASILEIRA. QUESTÃO A SER ANALISADA PELA JUSTIÇA ROGANTE.

— O pedido formulado nesta comissão não atenta contra a soberania nacional ou contra a ordem pública, pois objetiva a realização de atos de co-municação e instrução processual, plenamente admissíveis no instrumento.

— A alegação de prescrição deve ser deduzida na Justiça estrangeira, pois, diversamente do que ocorre com os pedidos de extradição, na carta rogatória não se examina a ocorrência de prescrição segundo a legislação brasileira.

Agravo regimental improvido.

ACÓRDÃOVistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indica-

das, acordam os Ministros da Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos votos e das notas taquigráfi cas a seguir, por unani-midade, negar provimento ao agravo regimental nos termos do voto do Sr. Ministro Relator. Os Srs. Ministros Felix Fischer, Aldir Passarinho Junior, Hamilton Carvalhido, Eliana Calmon, Francisco Falcão, Nancy Andrighi, Laurita Vaz, Luiz Fux, João Otávio de Noronha, Teori Albino Zavascki e Castro Meira votaram com o Sr. Ministro Relator.

Ausentes, justifi cadamente, os Srs. Ministros Gilson Dipp e Arnaldo Es-teves Lima.

Presidiu o julgamento o Sr. Ministro Ari Pargendler.Brasília, 29 de junho de 2010(data do julgamento).

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MINISTRO ARI PARGENDLER, PresidenteMINISTRO CESAR ASFOR ROCHA, Relator

AgRg na CARTA ROGATÓRIA Nº 4.215 — PT (2009⁄0128108-4)RELATÓRIOO EXMO. SR. MINISTRO CESAR ASFOR ROCHA:Trata-se de agravo regimental interposto por Nélio Pestana da Corte,

cidadão português, contra decisão que concedeu exequatur (fl s. 201-203) a pedido formulado pelos Serviços do Ministério Público do Funchal, República Portuguesa, para a realização do interrogatório do interessado acerca da prática, em tese, do crime de insolvência dolosa, bem como para a tomada dos Termos de Constituição de Arguido e de Identidade e Residência.

O agravante sustenta que o delito, ocorrido em Portugal, estaria prescrito de acordo com a legislação brasileira, uma vez que “o aludido crime fali-mentar teria acontecido antes de julho de 2005”, a atrair a aplicação ao caso do Decreto-Lei n. 7.661⁄1945. Segundo a referida legislação, a prescrição do crime falimentar ocorre após o decurso do prazo de quatro anos sem o oferecimento da denúncia, contados da data da sentença de falência. Aduz, ainda, a prescrição da pretensão punitiva também em Portugal, em razão de observação constante dos autos que aponta o prazo prescricional para 11 de janeiro do corrente ano. Conclui, assim, que “a extinção da punibilidade pela prescrição da pretensão punitiva é considerada como questão de ordem pú-blica, sendo impositivo o seu reconhecimento ex offi cio, a qualquer tempo, em qualquer fase da ação penal, pelo juiz ou Tribunal, sem entrar em exame de mérito, que fi cará prejudicado conforme preceitua o artigo 61 do Código de Processo Penal” (fl . 221).

Requer a concessão de efeito suspensivo ao recurso.É o relatório.

AgRg na CARTA ROGATÓRIA Nº 4.215 — PT (2009⁄0128108-4)EMENTAAGRAVO REGIMENTAL. CARTA ROGATÓRIA. DILIGÊNCIA

ROGADA. INTERROGATÓRIO E TOMADA DOS TERMOS DE CONSTITUIÇÃO DE ARGUIDO E DE IDENTIDADE E RESIDÊN-CIA, PREVISTOS NA LEGISLAÇÃO PORTUGUESA. ALEGAÇÃO DE PRESCRIÇÃO DO CRIME SEGUNDO A LEGISLAÇÃO BRASILEIRA. QUESTÃO A SER ANALISADA PELA JUSTIÇA ROGANTE.

— O pedido formulado nesta comissão não atenta contra a soberania nacional ou contra a ordem pública, pois objetiva a realização de atos de co-municação e instrução processual, plenamente admissíveis no instrumento.

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DIREITO GLOBAL II

FGV DIREITO RIO 239

— A alegação de prescrição deve ser deduzida na Justiça estrangeira, pois, diversamente do que ocorre com os pedidos de extradição, na carta rogatória não se examina a ocorrência de prescrição segundo a legislação brasileira.

Agravo regimental improvido.VOTOO EXMO. SR. MINISTRO CESAR ASFOR ROCHA (Relator):Sem razão o agravante.O pedido formulado nesta comissão não atenta contra a soberania nacio-

nal ou contra a ordem pública, pois objetiva a realização de atos de comuni-cação e instrução processual, plenamente admissíveis no instrumento. Nesse sentido, deve-se enfatizar que o interrogatório não está revestido de elemen-tos inquisitoriais, mas é palco para o exercício do direito de defesa.

Ademais, nos termos do já ressaltado na decisão agravada, ao transcrever parte da manifestação do Ministério Público Federal, a prescrição da preten-são punitiva é “matéria de mérito, cujo exame cabe à autoridade rogante, não sendo oponível em carta rogatória, mesmo porque não prevista como um dos motivos de recusa do auxílio elencados no art. 3º do Tratado de Auxílio Mútuo em Matéria Penal vigente entre Brasil e Portugal (Decreto 1.320⁄94). Com efeito, ao contrário do que ocorre com os pedidos de extradição, na carta rogatória não se examina a ocorrência de prescrição, muito menos é possível examinar a pretensão de reconhecimento da prescrição a partir da invocação da lei brasileira” (fl . 199). Ressalte-se, por oportuno, que segundo o art. 1º, n. 4, do citado tratado, “o auxílio é independente da extradição, podendo o mesmo ser concedido nos casos em que aquela seria recusada”.

Nesse sentido, confi ra-se o seguinte precedente:“CARTA ROGATÓRIA. AGRAVO REGIMENTAL. DILIGÊNCIA

ROGADA. CITAÇÃO. ALEGADO PREJUÍZO NA DEFESA. OFENSA À ORDEM PÚBLICA E À SOBERANIA NACIONAL. INOCORRÊN-CIA. PRESCRIÇÃO E FRAUDE À LEI. QUESTÕES A SEREM ANALI-SADAS PELA JUSTIÇA ROGANTE.

— A prática de ato de comunicação processual é plenamente admissível em carta rogatória. A simples citação, por si só, não apresenta qualquer situ-ação de afronta à ordem pública ou à soberania nacional e destina-se, apenas, a dar conhecimento da ação em curso e permitir a defesa da interessada.

— As questões relativas à prescrição e fraude à lei são matérias de defesa e devem ser deduzidas no juízo em que proposta a ação.

Agravo regimental improvido” (AgRg na CR n. 2.449⁄IT, relator Ministro Barros Monteiro, Corte Especial, DJ de 17⁄9⁄2007).

Por fi m, não se verifi ca previsão legal para a concessão de efeito suspensivo ao presente recurso.

Ante o exposto, nego provimento ao agravo regimental.

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DIREITO GLOBAL II

FGV DIREITO RIO 240

CERTIDÃO DE JULGAMENTOCORTE ESPECIALAgRg na CR Nº 4.215Número Registro: 2009⁄0128108-4 CR 4.215 ⁄ PTMATÉRIA CRIMINALNúmeros Origem: 133482009 13752009JULGADO: 29⁄06⁄2010RelatorExmo. Sr. Ministro PRESIDENTE DO STJPresidente da SessãoExmo. Sr. Ministro ARI PARGENDLERSubprocurador-Geral da RepúblicaExmo. Sr. Dr. JOSÉ BONIFÁCIO BORGES DE ANDRADASecretáriaBela. VANIA MARIA SOARES ROCHAAUTUAÇÃO

JUSROGANTE: SERVIÇOS DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO FUNCHAL

INTERES.: NÉLIO PESTANA DA CORTEADVOGADO: FLAVIANO VETER TAUSCHECK

ASSUNTO: DIREITO PENAL

AGRAVO REGIMENTAL

AGRAVANTE: NÉLIO PESTANA DA CORTEADVOGADO: FLAVIANO VETER TAUSCHECKAGRAVADO: SERVIÇOS DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO FUN-

CHAL

CERTIDÃOCertifi co que a egrégia CORTE ESPECIAL, ao apreciar o processo em

epígrafe na sessão realizada nesta data, proferiu a seguinte decisão:

A Corte Especial, por unanimidade, negou provimento ao agravo regi-mental, nos termos do voto do Sr. Ministro Relator.

Os Srs. Ministros Felix Fischer, Aldir Passarinho Junior, Hamilton Carva-lhido, Eliana Calmon, Francisco Falcão, Nancy Andrighi, Laurita Vaz, Luiz Fux, João Otávio de Noronha, Teori Albino Zavascki e Castro Meira votaram com o Sr. Ministro Relator.

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DIREITO GLOBAL II

FGV DIREITO RIO 241

Ausentes, justifi cadamente, os Srs. Ministros Gilson Dipp e Arnaldo Es-teves Lima.

Presidiu o julgamento o Sr. Ministro Ari Pargendler.Brasília, 29 de junho de 2010VANIA MARIA SOARES ROCHASecretária

CASO 2: AGRG NA CR Nº 4.893 — US

SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

AgRg na CARTA ROGATÓRIA Nº 4.893 — US (2010⁄0071770-0)RELATOR: MINISTRO PRESIDENTE DO STJAGRAVANTE: CORDOARIA SÃO LEOPOLDO S⁄AADVOGADO: JOSÉ ANTÔNIO GOMES PINHEIRO MACHADO

E OUTRO(S)AGRAVADO: DOMINION EXPLORATION E PRODUCTION

INC E OUTROSJUSROGANTE: JUSTIÇA FEDERAL DE PRIMEIRA INSTÂNCIA

DOS ESTADOS UNIDOS DISTRITO ORIENTAL DE LOUISIANA

EMENTACARTA ROGATÓRIA. AGRAVO REGIMENTAL. APLICAÇÃO

DOS ARTS. 214, § 1º, DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL E 13, § 3º, DA RESOLUÇÃO N. 9 DE 2005 DESTE TRIBUNAL. PRECEDENTES DESTA CORTE. QUESTÕES REFERENTES AO MÉRITO DA AÇÃO AJUIZADA NO EXTERIOR. REMESSA À ANÁLISE DA JUSTIÇA RO-GANTE.

Nos termos da jurisprudência desta Corte, é dispensável a remessa da carta rogatória à Justiça Federal, após a concessão do exequatur, quando a parte interessada é considerada citada em razão do comparecimento aos autos para apresentar impugnação. Questões referentes ao mérito da ação ajuizada no exterior devem ser remetidas à análise da Justiça rogante, tendo em vista o juízo meramente delibatório exercido por este Tribunal no cumprimento das rogatórias.

Agravo regimental improvido.

ACÓRDÃOVistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indica-

das, acordam os Ministros da CORTE ESPECIAL do Superior Tribunal de

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DIREITO GLOBAL II

FGV DIREITO RIO 242

Justiça, por unanimidade, negar provimento ao agravo regimental nos ter-mos do voto do Sr. Ministro Relator. Os Srs. Ministros Cesar Asfor Rocha, Aldir Passarinho Junior, Gilson Dipp, Hamilton Carvalhido, Nancy Andri-ghi, Laurita Vaz, Luiz Fux, Teori Albino Zavascki, Castro Meira, Arnaldo Esteves Lima, Massami Uyeda e Luis Felipe Salomão votaram com o Sr. Mi-nistro Relator. Ausentes, justifi cadamente, a Sra. Ministra Eliana Calmon e o Sr. Ministro Francisco Falcão e, ocasionalmente, o Sr. Ministro João Otávio de Noronha. Convocados os Srs. Ministros Massami Uyeda e Luis Felipe Salomão para compor quorum. Presidiu o julgamento o Sr. Ministro Felix Fischer.

Brasília, 15 de dezembro de 2010 (data do julgamento).

MINISTRO FELIX FISCHERPresidenteMINISTRO ARI PARGENDLERRelatorAgRg na CARTA ROGATÓRIA Nº 4.893 — US (2010⁄0071770-0)

RELATÓRIOEXMO. SR. MINISTRO ARI PARGENDLER:O agravo regimental ataca a decisão concessiva de exequatur, in verbis (fl s.

822-825):”A Justiça Federal de Primeira Instância dos Estados Unidos da América,

Distrito Oriental de Louisiana, solicita, mediante esta carta rogatória, a cita-ção da Cordoaria São Leopoldo S.A. para a Ação de Reparação de Danos n. 07-9492, conforme tradução do texto rogatório.

Segundo o texto rogatório, as autoras da ação de reparação, Dominion Exploration & Production, Inc. (DEPI), Statoilhydro USA E & P, Inc. (Sta-toil) e Anadarko Petroleum Corporation (Andarko), visando a exploração de petróleo em alto-mar, celebraram com a empresa Delmar Systems, Inc. um contrato de locação de sistema de ancoragem, instalado em 6⁄9⁄2006. Em 24⁄4⁄2007, esse sistema apresentou defeito, ocasionando perdas e danos às autoras. A interessada foi incluída no polo passivo da demanda, juntamente com a corré Delmar Systems, por ter sido a responsável pela fabricação dos cabos de ancoragem. Por oportuno, extraio o seguinte trecho da petição ini-cial:

‘[...] A parte do sistema de ancoragem que apresentou defeito foi uma linha de ancoragem de poliéster medindo 609,60 m de comprimento e 16 cm de largura, fornecida pela Delmar e fabricada pela CSL, conforme evi-dencia a declaração comprobatória de Brady Como, anexa à presente como documento n. 1.

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Sabe-se que a linha em questão foi fabricada pela CSL, conforme consta da carta-contrato datada de 21 de dezembro de 1999 e fi rmada por Shell Off shore, Inc., Delmar, AlliedSignal, Inc., CSL e Edison Chouest Off shore, evidenciado no parágrafo 4 da declaração comprobatória acima referida e no documento ‘B’ que acompanha a mesma.

Depois disso, a CSL entregou a linha de ancoragem para a Shell Off sho-re, Inc. em Port Fourchon, Louisiana, conforme atesta o conhecimento de embarque de número POCLRIG00399555 expedido pela P & O Nedlloyd, evidenciado no parágrafo 3 da declaração comprobatória já referida e pelo documento ‘C’ que acompanha a mesma.

Em 25 de janeiro de 2001, a Delmar adquiriu a linha de ancoragem da Shell Off shore, Inc., conforme atesta o parágrafo 4 da declaração comproba-tória acima mencionada.

A linha em seguida foi usada pela Delmar no contexto das operações re-alizadas de acordo com o contrato de prestação de serviços para as autoras, DEPI, Statoil e Anardarko, tal como evidencia o parágrafo 2 da declaração anexa e pelo documento ‘C’ qua acompanha a referida declaração.

A linha de ancoragem que apresentou defeito por volta de 24 de abril de 2007 foi a mesma linha de poliéster medindo 609,60 m de comprimento e 16 cm de largura que fora fabricada pela CSL para ser usada pela Shell Off shore e vendida à Delmar em 25 de janeiro de 2001, conforme evidencia a declaração comprobatória anexa à presente como documento n. 1’ (fl s. 17-18).

Devidamente intimada (fl . 410), a interessada apresentou impugnação à carta rogatória (fl s. 412-799), na qual sustenta, em resumo: a) ilegitimidade passiva para a ação estrangeira, uma vez que ‘não há nenhum elemento técni-co’ que indique ter fabricado os referidos cabos (fl . 420); b) a comissão é rei-teração da CR n. 3.308⁄US, devolvida à origem sem cumprimento em razão de defi ciência na instrução, irregularidade que atinge também esta comissão, porquanto não houve a identifi cação do cabo que supostamente se rompeu; c) não há prova da realização de negócio entre a interessada e as autoras da ação de reparação; d) inexiste responsabilidade civil da interessada, pois só vende cabos novos e o cabo que se rompeu foi repassado à Delmar Systems pela Shell no ano de 1999, apresentando defeito após o uso intenso no ocea-no pelo período de oito anos; e) o direito à reparação civil está prescrito, nos termos do art. 206, § 3º, inciso V, do Código Civil brasileiro.

O Ministério Público Federal opinou pelo não-acolhimento da impug-nação e pela concessão da ordem, aos seguintes fundamentos (fl s. 802-804):

‘Diferentemente da Carta Rogatória n. 3.308, cujo objeto era o mesmo desta rogatória e que foi devolvida à origem por defi ciência na instrução, a petição inicial que acompanha a presente comissão possui elementos sufi -cientes, ainda que não tão precisos como gostaria a empresa impugnante, que possibilitam a CSL entender a controvérsia e realizar a sua defesa. Tanto as-

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DIREITO GLOBAL II

FGV DIREITO RIO 244

sim que a impugnante apresenta vários argumentos relativos ao produto por ela produzido e aos negócios com ele realizados que fi ndam em sua utilização na ancoragem objeto da ação.

As questões relativas à ausência de responsabilidade da CSL e sua ilegiti-midade passiva são matérias de defesa, cujo conhecimento é da competência exclusiva do juízo ao qual a causa está submetida.

Como a diligência requerida é a realização de citação da empresa interessada que não apresenta qualquer ofensa à ordem pública ou à soberania nacional, pois destina-se, tão-somente, a dar conhecimento da ação em curso na Justiça Estrangeira à interessada permitindo sua defesa naquela jurisdição, e esta já foi cumprida com o comparecimento espontâneo da empresa interessada, o parecer é pela concessão da ordem e devolução dos autos à origem’ (fl . 804).

Passo a decidir.Uma vez que se objetiva a citação da interessada, mero ato de comunica-

ção processual, não se vislumbra a apontada violação à ordem pública nem à soberania nacional.

Em razão do juízo meramente delibatório exercido por esta Corte no cum-primento das rogatórias, nos termos do art. 9º da Resolução n. 9⁄2005 deste Tribunal, ‘a defesa somente poderá versar sobre a autenticidade dos docu-mentos, inteligência da decisão e observância dos requisitos desta Resolução’.

No caso dos autos, os requisitos da Resolução n. 9⁄2005 deste Tribunal foram cumpridos. Conforme o parecer do Ministério Público Federal, a ile-gitimidade passiva da interessada em razão da falta de identifi cação do cabo, a inexistência de negócio entre as partes e a ausência de responsabilidade civil são matérias de defesa e devem ser apreciadas pela Justiça estrangeira, pois na concessão do exequatur não incumbe a esta Corte analisá-las (cf. AgRg na CR n. 4.218⁄PT, de minha relatoria, Corte Especial, DJe de 3⁄8⁄2010).

Quanto à prescrição do direito à reparação de danos, tal circunstância não impede a concessão do exequatur para a citação da interessada. Acerca do tema, confi ram-se os seguintes precedentes:

‘AGRAVO REGIMENTAL. CARTA ROGATÓRIA. DILIGÊNCIA ROGADA. INTERROGATÓRIO E TOMADA DOS TERMOS DE CONSTITUIÇÃO DE ARGUIDO E DE IDENTIDADE E RESIDÊN-CIA, PREVISTOS NA LEGISLAÇÃO PORTUGUESA. ALEGAÇÃO DE PRESCRIÇÃO DO CRIME SEGUNDO A LEGISLAÇÃO BRASILEIRA. QUESTÃO A SER ANALISADA PELA JUSTIÇA ROGANTE.

— O pedido formulado nesta comissão não atenta contra a soberania nacional ou contra a ordem pública, pois objetiva a realização de atos de co-municação e instrução processual, plenamente admissíveis no instrumento.

— A alegação de prescrição deve ser deduzida na Justiça estrangeira, pois, diversamente do que ocorre com os pedidos de extradição, na carta rogatória não se examina a ocorrência de prescrição segundo a legislação brasileira.

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FGV DIREITO RIO 245

Agravo regimental improvido’ (AgRg na CR n. 4.215⁄PT, de minha rela-toria, Corte Especial, DJe de 12⁄8⁄2010).

‘CARTA ROGATÓRIA. AGRAVO REGIMENTAL. DILIGÊNCIA ROGADA. CITAÇÃO. ALEGADO PREJUÍZO NA DEFESA. OFENSA À ORDEM PÚBLICA E À SOBERANIA NACIONAL. INOCORRÊN-CIA. PRESCRIÇÃO E FRAUDE À LEI. QUESTÕES A SEREM ANALI-SADAS PELA JUSTIÇA ROGANTE.

— A prática de ato de comunicação processual é plenamente admissível em carta rogatória. A simples citação, por si só, não apresenta qualquer situ-ação de afronta à ordem pública ou à soberania nacional e destina-se, apenas, a dar conhecimento da ação em curso e permitir a defesa da interessada.

— As questões relativas à prescrição e fraude à lei são matérias de defesa e devem ser deduzidas no juízo em que proposta a ação.

Agravo regimental improvido’ (AgRg na CR n. 2.449⁄IT, Rel. Ministro Barros Monteiro, Corte Especial, DJ de 17⁄9⁄2007).

Ante o exposto, ausente violação à soberania nacional ou à ordem pública, concedo o exequatur (art. 2º da Resolução n. 9⁄2005 deste Tribunal).

Diante do comparecimento da interessada, nos termos do art. 214, § 1º, do Código de Processo Civil, considero consumada a sua citação na data da publicação desta decisão. Desnecessária, portanto, a remessa dos autos à Justiça Federal.

Devidamente cumprida a rogatória, após o trânsito em julgado, devol-vam-se os autos à Justiça rogante por intermédio do Ministério da Justiça (art. 14 da mencionada Resolução).

Publique-se.”Insurge-se a agravante, inicialmente, contra a parte do exequatur que con-

sidera realizada a citação em razão do comparecimento da interessada aos au-tos para apresentar impugnação, apontando violados os arts. 5º, inciso LV, da Constituição Federal, 213 e 214 do Código de Processo Civil e 13 da Resolu-ção n. 9 de 2005 desta Corte. Sustenta, ainda, que a concessão do exequatur descumpre decisão que determinou a devolução de carta rogatória anterior por defi ciência na instrução. Por fi m, reproduz argumentos apresentados na impugnação referentes ao mérito da ação em curso na Justiça estrangeira, quais sejam, prescrição da pretensão de reparação civil, ilegitimidade passiva da interessada, ausência de demonstração de sua ligação comercial com o caso e falta de fundamentação da ação.

O Ministério Público Federal manifestou-se pelo não provimento do agra-vo regimental, por entender que o ato de citação não ofende a ordem pública nem a soberania nacional, aplicando-se ao caso o princípio da instrumenta-lidade de formas.

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FGV DIREITO RIO 246

AgRg na CARTA ROGATÓRIA Nº 4.893 — US (2010⁄0071770-0)VOTOEXMO. SR. MINISTRO ARI PARGENDLER (Relator):A questão referente à possibilidade de se dispensar a remessa dos autos à

Justiça Federal após a concessão do exequatur, em razão da aplicação do dis-posto no art. 214, § 1º, do Código de Processo Civil, já foi objeto de análise pela Corte Especial em diversas ocasiões. Confi ra-se a ementa do acórdão proferido no julgamento do AgRg na CR n. 2498, da relatoria do Ministro Cesar Asfor Rocha, publicado no DJ de 3⁄11⁄2008:

”AGRAVO REGIMENTAL. CARTA ROGATÓRIA. COMPARE-CIMENTO ESPONTÂNEO DO INTERESSADO. APLICAÇÃO AO CASO DO ART. 214, § 1°, DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL. CI-TAÇÃO. REMESSA DOS AUTOS À JUSTIÇA FEDERAL. AUSÊNCIA DE NECESSIDADE.

— Nos termos do art. 214, § 1º, do Código de Processo Civil, o compa-recimento espontâneo do réu supre a falta de citação. Desnecessária, assim, a remessa dos autos à Justiça Federal para cumprimento do exequatur.

— Agravo regimental improvido.”No mesmo sentido: AgRg na CR n. 2495, AgRg na CR n. 2496, AgRg na

CR n. 3548, AgRg na CR n. 327 e AgRg na CR n. 544.Assim, inequívoca a ciência da interessada dos termos do pedido formula-

do na comissão, a ponto de vir aos autos para impugná-lo.Ademais, o art. 13, § 3º, da Resolução n. 9 de 2005 deste Tribunal indica

que “quando cabível, o Presidente ou o Relator do Agravo Regimental poderá ordenar diretamente o atendimento à medida solicitada”.

A rogatória objetiva a citação da interessada, ato de comunicação proces-sual no qual não se vislumbra violação da ordem pública nem da soberania nacional.

No caso dos autos, a comissão está devidamente instruída, e não se cons-tata cerceamento de defesa da interessada. Em razão do juízo meramente delibatório exercido por este Tribunal, as questões referentes à ilegitimidade passiva e ausência de demonstração de negócio entre as partes, de fundamen-tação da ação e de prescrição são matérias de defesa e devem ser apreciadas pela Justiça estrangeira, pois, na concessão do exequatur, não incumbe a esta Corte analisá-las (nesse sentido: AgRg na CR n. 4.218⁄PT, relator Ministro Cesar Asfor Rocha, Corte Especial, DJe de 3⁄8⁄2010 e, no que se refere à pres-crição: AgRg na CR n. 4.215⁄PT, relator Ministro Cesar Asfor Rocha, DJe de 12⁄8⁄2010, e AgRg na CR n. 2.449⁄IT, relator Ministro Barros Monteiro, Corte Especial, DJ de 17⁄9⁄2007).

Voto, por isso, no sentido de negar provimento ao agravo regimental.

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DIREITO GLOBAL II

FGV DIREITO RIO 247

CERTIDÃO DE JULGAMENTOCORTE ESPECIALAgRg naNúmero Registro: 2010⁄0071770-0 CR 4.893 ⁄ USRelatorExmo. Sr. Ministro PRESIDENTE DO STJPresidente da SessãoExmo. Sr. Ministro FELIX FISCHERSubprocurador-Geral da RepúblicaExmo. Sr. Dr. HAROLDO FERRAZ DA NOBREGASecretáriaBela. VANIA MARIA SOARES ROCHAAUTUAÇÃOJUSROGANTE: JUSTIÇA FEDERAL DE PRIMEIRA INSTÂNCIA

DOS ESTADOS UNIDOS DISTRITO ORIENTAL DE LOUISIANA

INTERES.: CORDOARIA SÃO LEOPOLDO S⁄AADVOGADO: JOSÉ ANTÔNIO GOMES PINHEIRO MACHADO

E OUTRO(S)PARTE: DOMINION EXPLORATION E PRODUCTION INC E

OUTROS

ASSUNTO: DIREITO INTERNACIONAL — Cooperação Internacional

AGRAVO REGIMENTAL

AGRAVANTE: CORDOARIA SÃO LEOPOLDO S⁄AADVOGADO: JOSÉ ANTÔNIO GOMES PINHEIRO MACHADO

E OUTRO(S)AGRAVADO: DOMINION EXPLORATION E PRODUCTION

INC E OUTROSJUSROGANTE: JUSTIÇA FEDERAL DE PRIMEIRA INSTÂNCIA

DOS ESTADOS UNIDOS DISTRITO ORIENTAL DE LOUISIANA

CERTIDÃOCertifi co que a egrégia CORTE ESPECIAL, ao apreciar o processo em

epígrafe na sessão realizada nesta data, proferiu a seguinte decisão:

A Corte Especial, por unanimidade, negou provimento ao agravo regi-mental, nos termos do voto do Sr. Ministro Relator.

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FGV DIREITO RIO 248

Os Srs. Ministros Cesar Asfor Rocha, Aldir Passarinho Junior, Gilson Dipp, Hamilton Carvalhido, Nancy Andrighi, Laurita Vaz, Luiz Fux, Teori Albino Zavascki, Castro Meira, Arnaldo Esteves Lima, Massami Uyeda e Luis Felipe Salomão votaram com o Sr. Ministro Relator.

Ausentes, justifi cadamente, a Sra. Ministra Eliana Calmon e o Sr. Ministro Francisco Falcão e, ocasionalmente, o Sr. Ministro João Otávio de Noronha.

Convocados os Srs. Ministros Massami Uyeda e Luis Felipe Salomão para compor quórum.

Presidiu o julgamento o Sr. Ministro Felix Fischer.Brasília, 15 de dezembro de 2010VANIA MARIA SOARES ROCHASecretária

Documento: 1030586 Inteiro Teor do Acórdão — DJe: 18/02/2011

CASO 3: AGRG NA CR Nº 3.560 — EX

SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

AgRg na CARTA ROGATÓRIA Nº 3.560 — EX (2008⁄0209694-2)

RELATOR: MINISTRO PRESIDENTE DO STJAGRAVANTE: JL COMERCIAL AGROQUÍMICA LTDAADVOGADO: CAIRO ROBERTO BITTAR HAMÚ SILVA JÚNIOR

E OUTRO(S)AGRAVANTE: LAGINHA AGRO INDUSTRIAL S⁄AADVOGADO: RODRIGO ALBUQUERQUE DE VICTOR E

OUTRO(S)AGRAVADO: PHOSPHATE CHEMICALS EXPORT ASSOCIA-

TION INCJUSROGANTE: TRIBUNAL DISTRITAL DOS ESTADOS UNI-

DOS — DISTRITO DO NORTE DE ILLINOISEMENTAAGRAVOS REGIMENTAIS. CARTA ROGATÓRIA. ALEGADA DE-

FICIÊNCIA NA INSTRUÇÃO E IRREGULARIDADE FORMAL. ART. 3° DO PROTOCOLO ADICIONAL À CONVENÇÃO INTERAMERI-CANA SOBRE CARTAS ROGATÓRIAS. ART. 202 DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL. APONTADA INCOMPETÊNCIA DA JURISDI-ÇÃO ESTRANGEIRA. ARTS. 88 E 89 DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL. CITAÇÃO. AUSÊNCIA DE NATUREZA EXECUTÓRIA.

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DIREITO GLOBAL II

FGV DIREITO RIO 249

— Uma vez que a comissão está acompanhada das peças indicadas no art. 3º do Protocolo Adicional à Convenção Interamericana sobre Cartas Rogató-rias, em Matéria Civil e Comercial, não há falar em defi ciência na instrução ou em irregularidade formal.

— Os requisitos do art. 202 do Código de Processo Civil são exigíveis apenas para as cartas rogatórias ativas.

— Nos termos do art. 88 do Código de Processo Civil, a hipótese dos autos trata de matéria de competência relativa, ou seja, de conhecimento concorrente entre a jurisdição brasileira e a estrangeira.

— A prática de ato de comunicação processual é plenamente admissível em carta rogatória. A simples citação não tem natureza executória nem ofen-de a ordem pública ou a soberania nacional, destinando-se, apenas, a dar conhecimento da ação em curso e permitir a defesa das interessadas.

Agravos regimentais improvidos.

ACÓRDÃOVistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indica-

das, acordam os Ministros da Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos votos e das notas taquigráfi cas a seguir, por unanimi-dade, negar provimento aos agravos regimentais nos termos do voto do Sr. Ministro Relator. Os Srs. Ministros Felix Fischer, Aldir Passarinho Junior, Hamilton Carvalhido, Eliana Calmon, Francisco Falcão, Nancy Andrighi, Laurita Vaz, Luiz Fux, João Otávio de Noronha, Teori Albino Zavascki e Castro Meira votaram com o Sr. Ministro Relator.

Ausentes, justifi cadamente, os Srs. Ministros Gilson Dipp e Arnaldo Es-teves Lima.

Presidiu o julgamento o Sr. Ministro Ari Pargendler.Brasília, 29 de junho de 2010(data do julgamento).MINISTRO ARI PARGENDLER, PresidenteMINISTRO CESAR ASFOR ROCHA, Relator

AgRg na CARTA ROGATÓRIA Nº 3.560 — US (2008⁄0209694-2)

RELATÓRIOEXMO. SR. MINISTRO CESAR ASFOR ROCHA:Trata-se de agravos regimentais interpostos por JL Comercial Agroquí-

mica Ltda. e Laginha Agro Industrial S.A. contra a decisão de fl s. 604-606, que concedeu o exequatur a pedido formulado pelo Tribunal Distrital dos Estados Unidos — Distrito do Norte de Illinois, Estados Unidos da América, para a citação das referidas empresas em ação civil ajuizada perante a Justiça daquele país.

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DIREITO GLOBAL II

FGV DIREITO RIO 250

No presente agravo regimental, as agravantes repisam os argumentos tra-zidos na impugnação, quais sejam: irregularidade formal da rogatória, em ofensa ao art. 3º do Protocolo Adicional à Convenção Interamericana sobre Cartas Rogatórias; ausência da procuração outorgada ao advogado da em-presa demandante; efi cácia executória da comissão; incompetência da Justiça americana, porquanto a interessada possui domicílio no Brasil e execução do contrato em território nacional.

O Ministério Público Federal (fl s. 639-640) ressaltou que “o pedido roga-tório visa tão somente dar ciência às empresas interessadas de que contra elas foi ajuizada perante a Justiça rogante uma ação de indenização por quebra de contrato e a documentação que acompanha esta comissão propicia o exercí-cio do direito de defesa das demandadas, de modo que não há razão para se reformar a decisão agravada” (fl . 640).

É o relatório.

AgRg na CARTA ROGATÓRIA Nº 3.560 — US (2008⁄0209694-2)

EMENTA: AGRAVOS REGIMENTAIS. CARTA ROGATÓRIA. ALEGADA DEFICIÊNCIA NA INSTRUÇÃO E IRREGULARIDADE FORMAL. ART. 3° DO PROTOCOLO ADICIONAL À CONVENÇÃO INTERAMERICANA SOBRE CARTAS ROGATÓRIAS. ART. 202 DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL. APONTADA INCOMPETÊNCIA DA JURISDIÇÃO ESTRANGEIRA. ARTS. 88 E 89 DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL. CITAÇÃO. AUSÊNCIA DE NATUREZA EXECU-TÓRIA.

— Uma vez que a comissão está acompanhada das peças indicadas no art. 3º do Protocolo Adicional à Convenção Interamericana sobre Cartas Rogató-rias, em Matéria Civil e Comercial, não há falar em defi ciência na instrução ou em irregularidade formal.

— Os requisitos do art. 202 do Código de Processo Civil são exigíveis apenas para as cartas rogatórias ativas.

— Nos termos do art. 88 do Código de Processo Civil, a hipótese dos autos trata de matéria de competência relativa, ou seja, de conhecimento concorrente entre a jurisdição brasileira e a estrangeira.

— A prática de ato de comunicação processual é plenamente admissível em carta rogatória. A simples citação não tem natureza executória nem ofen-de a ordem pública ou a soberania nacional, destinando-se, apenas, a dar conhecimento da ação em curso e permitir a defesa das interessadas.

Agravos regimentais improvidos.

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DIREITO GLOBAL II

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VOTOEXMO. SR. MINISTRO CESAR ASFOR ROCHA (Relator):Uma vez que as agravantes não apresentaram argumentos novos, reprodu-

zo os fundamentos da decisão que concedeu o exequatur:”A comissão não está defi cientemente instruída, pois encontra-se nos au-

tos a peça que determina a expedição da rogatória.Dispõe claramente o art. 3º do Protocolo Adicional à Convenção Intera-

mericana sobre Cartas Rogatórias, em Matéria Civil e Comercial:‘Art. 3°As cartas rogatórias serão elaboradas em formulários impressos nos quatro

idiomas ofi ciais da Organização dos Estados Americanos ou nos idiomas dos Estados requerente e requerido, de acordo com o Modelo A do Anexo deste Protocolo.

As cartas rogatórias deverão ser acompanhadas de:a) cópia da petição com que se tiver iniciado o procedimento no qual se

expede a carta rogatória, bem como sua tradução para o idioma do Estado Parte requerido;

b) cópia, sem tradução, dos documentos que se tiverem juntado à petição;c) cópia, sem tradução, das decisões jurisdicionais que tenham determina-

do a expedição da carta rogatória;d) formulário elaborado de acordo com o Modelo B do Anexo deste Pro-

tocolo e do qual consta informação essencial para a pessoa ou autoridade a quem devam ser entregues ou transmitidos os documentos, e

e) formulário elaborado de acordo com o Modelo C do Anexo deste Pro-tocolo e no qual a autoridade central deverá certifi car se foi cumprida ou não a carta rogatória’ (grifou-se).

A peça referida encontra-se às fl s. 43-44, no que se refere à interessada Lagi-nha Agro Industrial S.A., e às fl s. 261-262, quanto à JL Comercial Agroquími-ca Ltda. Lê-se claramente da tradução que a determinação foi assinada por Juiz norte-americano e solicita a citação das interessadas mediante esta rogatória.

Ressalto, por oportuno, ser este o procedimento padrão em todas as roga-tórias oriundas do Estados Unidos da América e que o documento de fl . 50, assinado por escrivão, é apenas a determinação de citação da interessada, não o pedido de expedição de rogatória, conforme determinado no referido art. 3º.

Ademais, não prospera a afi rmação de vício formal por ausência da procu-ração conferida ao patrono da autora, uma vez que os requisitos do art. 202 do Código de Processo Civil são exigíveis apenas para as cartas rogatórias ativas. Nesse sentido:

‘CARTA ROGATÓRIA. CITAÇÃO PARA RESPONDER A UMA AÇÃO PROPOSTA NO PAÍS ALIENÍGENA. INOCORRÊNCIA DE OFENSA À SOBERANIA OU A ORDEM PÚBLICA (RESOLUÇÃO Nº 9⁄05, ART. 6º). EXEQUATUR CONCEDIDO. AGRAVO REGIMENTAL.

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DIREITO GLOBAL II

FGV DIREITO RIO 252

AUTENTICIDADE DE DOCUMENTOS. CERCEAMENTO DE DE-FESA. REQUISITOS DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL, ART. 202.

[...]3. O requisitos do Código de Processo Civil, art. 202, são aplicáveis tão

somente às cartas rogatórias ativas.4. Agravo Regimental não provido’ (CR 6, Corte Especial, Rel. Min. Ed-

son Vidigal, DJU de 21⁄11⁄2005).Quanto à alegação de incompetência da jurisdição estrangeira para a cau-

sa, segundo os arts. 88 e 89 do Código de Processo Civil, a hipótese dos autos trata de matéria de competência relativa da autoridade brasileira, e, dessa forma, de conhecimento concorrente entre as duas jurisdições.”

Ademais, deve-se enfatizar que o objeto da rogatória é a citação das inte-ressadas, ou seja, a realização de ato de comunicação processual.

A simples citação, como sabido, não tem natureza executória nem ofende a soberania nacional ou a ordem pública, pois objetiva tão somente cienti-fi car as interessadas da ação ajuizada na Justiça rogante, permitindo-lhes o exercício do direito de defesa.

Ante o exposto, nego provimento aos agravos regimentais.CERTIDÃO DE JULGAMENTOCORTE ESPECIALRelatorExmo. Sr. Ministro PRESIDENTE DO STJPresidente da SessãoExmo. Sr. Ministro ARI PARGENDLERSubprocurador-Geral da RepúblicaExmo. Sr. Dr. JOSÉ BONIFÁCIO BORGES DE ANDRADASecretáriaBela. VANIA MARIA SOARES ROCHAAUTUAÇÃO

JUSROGANTE: TRIBUNAL DISTRITAL DOS ESTADOS UNI-DOS — DISTRITO DO NORTE DE ILLINOIS

INTERES.: LAGINHA AGRO INDUSTRIAL S⁄AADVOGADO: RODRIGO ALBUQUERQUE DE VICTOR E

OUTRO(S)INTERES.: JL COMERCIAL AGROQUÍMICA LTDAADVOGADO: CAIRO ROBERTO BITTAR HAMÚ SILVA JÚNIOR

E OUTRO(S)PARTE: PHOSPHATE CHEMICALS EXPORT ASSOCIATION INC

ASSUNTO: DIREITO CIVIL — Obrigações — Espécies de ContratosAGRAVO REGIMENTAL

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FGV DIREITO RIO 253

AGRAVANTE: JL COMERCIAL AGROQUÍMICA LTDAADVOGADO: CAIRO ROBERTO BITTAR HAMÚ SILVA JÚNIOR

E OUTRO(S)AGRAVANTE: LAGINHA AGRO INDUSTRIAL S⁄AADVOGADO: RODRIGO ALBUQUERQUE DE VICTOR E

OUTRO(S)AGRAVADO: PHOSPHATE CHEMICALS EXPORT ASSOCIA-

TION INCJUSROGANTE: TRIBUNAL DISTRITAL DOS ESTADOS UNI-

DOS — DISTRITO DO NORTE DE ILLINOIS

CASO 4: CR 005026 (STJ)

SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇARelator (a): Min. ARI PARGENDLERData da Publicação: 02/12/2010

Decisão:CARTA ROGATÓRIA Nº 5.026 — TR (2010/0097130-4) JUSRO-

GANTE: TRIBUNAL DE FAMÍLIA DE SINCANINTERES: H. V. K. ADVOGADO: DEFENSORIA PÚBLICA DA UNIÃO. PARTE: T. E. A. DECISÃO 1. O Tribunal de Família de Sincan, República da Turquia, solicita, mediante esta carta rogatória, a citação de H. V. K. para ação de divórcio, conforme tradução do texto rogatório.Intimada previamente (fl . 19), a interessada, representada pela Defensoria Pública da União, apresen-tou impugnação na qual alega que a petição inicial “é insufi ciente para que a Defensoria Pública da União possa emitir juízo de valor acerca do pedido de divórcio.Assim, a questão requer cautela redobrada, sendo necessário contes-tar o pedido por negativa geral haja vista a pretensão autoral” (fl . 24-25).O Ministério Público Federal opinou pela improcedência da impugnação e pela concessão da ordem (fl . 31).2. Segundo o artigo 9º da Resolução nº 9/2005 deste Tribunal, “a defesa somente poderá versar sobre a autenticidade dos documentos,inteligência da decisão e observância dos requisitos desta Reso-lução”.No caso dos autos, não se verifi ca a alegada defi ciência na instrução da rogatória, uma vez que a questão controvertida e a pretensão do autor estão claras na petição inicial. Ademais, o objeto desta carta rogatória não atenta contra a soberania nacional nem a contra ordem pública, pois solicita a ci-tação da interessada, ato de comunicação processual que permite a apresen-tação de defesa na Justiça estrangeira. Ante o exposto, concedo o exequatur (artigo 2º da mencionada resolução).Diante do comparecimento da interes-

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sada, nos termos do artigo 214, §1º, do Código de Processo Civil, considero consumada a sua citação na data da publicação desta decisão. Desnecessária, portanto, a remessa dos autos à Justiça Federal. Devidamente cumprida a ro-gatória, após o trânsito em julgado,devolvam-se os autos à Justiça rogante por intermédio do Ministério da Justiça (artigo 14 da mencionada resolução). Intimem-se. Brasília, 26 de novembro de 2010.

MINISTRO ARI PARGENDLER (Presidente).

5. LEGISLAÇÃO

Decreto-Lei Nº 4657/42 — Lei de Introdução às Normas do Direito Bra-sileiro.

Resolução 9/05 STJ.Lei Nº 5.869 — Código de Processo Civil.

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AULA 20 — AUXÍLIO DIRETO

1. TEMAS ESPECÍFICOS:

1) Cooperação Internacional;2) Auxílio Direto como modalidade;3) Tratados Internacionais de Auxílio Direto.

2. MÉTODO DE ENSINO:

Aula expositiva e participativa.

3. LEITURA:

3.1. Leitura obrigatória:

SILVA, Ricardo Perlingeiro Mendes da. Cooperação Jurídica Internacional e Auxílio Direto. Revista CEJ, Brasília, n. 32, jan./mar., 2006, pp. 75-79.

Disponível em: http://www2.cjf.jus.br/ojs2/index.php/cej/article/viewFi-le/701/881

3.2. Leitura complementar:

LOULA, Maria Rosa Guimarães. Auxílio Direto — Novo Instrumento de Co-operação Jurídica Internacional Civil. 1ª Ed. Belo Horizonte: Fórum, 2011.

ARAUJO, Nadia de. Direito Internacional Privado: Teoria e Prática Brasileira. 3ª Ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, pp. 477-496 ; 497-512.

4. LEITURA PARA O DEBATE

4.1. LEITURA PARA O GRUPO

TIBURCIO, Carmen; BARROSO, Luís Roberto (Org.). Direito Internacio-nal Contmporâneo: Estudos em Homenagem ao Professor Jacob Dolinger. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, pp. 797-810.

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4.2. JURISPRUDÊNCIA

INFORMATIVO STJ

STJ defi ne limites para compartilhamento de prova contra Bóris Bere-zovsky

O Superior Tribunal de Justiça (STJ) começou a decidir se foi lícito o compartilhamento de provas sobre o empresário Boris Abramovich Berezo-vsky entre a Justiça brasileira e o Ministério Público russo. A Corte Especial, órgão julgador máximo do Tribunal, está defi nindo os limites de sua própria competência quanto a pedidos de cooperação jurídica internacional em que não há expedição de carta rogatória, como ocorreu no caso. O relator é o ministro Teori Albino Zavascki e o julgamento foi interrompido por pedido de vista do ministro João Otávio de Noronha.

A reclamação em análise foi proposta pelo empresário russo. Berezovsky é réu numa ação penal que tramita na 6ª Vara Federal Criminal de São Paulo, a qual investiga supostas ligações dele com a empresa Media Sports Investment (MSI), que investiu no Sport Club Corinthians Paulista de 2004 a 2007. A suspeita é que tenha ocorrido lavagem de dinheiro no negócio. Depois da ação penal instaurada, houve apreensão de computadores do empresário, fruto de um ato judicial.

Sabendo da situação de Berezovsky no Brasil, o Ministério Público russo solicitou à Justiça brasileira cópias de provas que existiriam contra o empre-sário. No país estrangeiro, ele também é investigado. Ocorre que o pedido foi encaminhado ao Brasil por meio de ofícios trazidos da Rússia por um membro do Ministério Público Federal brasileiro. O juiz federal atendeu o pedido e forneceu cópia de discos rígidos dos computadores apreendidos, antes mesmo de o material ser periciado.

O empresário protesta contra esta decisão. Diz que a competência para analisar o pedido seria do STJ. A Emenda Constitucional 45 transferiu ao Tribunal a responsabilidade de apreciar cartas rogatórias (medidas judiciais para o cumprimento de atos ou diligências necessários à movimentação de um processo no foro do país de origem).

Competência: O relator da reclamação, ministro Teori Albino Zavascki, considerou-a improcedente. Ele observou que a intervenção do Poder Judi-ciário está prevista para situações específi cas, como a apreciação das cartas rogatórias. No entanto, como o pedido do Ministério Público russo não foi feito por esse trâmite, não houve usurpação da competência do STJ pelo juiz federal ao fornecer cópias das provas contra Berezovsky.

No entender do ministro relator, o que houve foi um pedido de coope-ração jurídica internacional para compartilhamento de provas. Essa posição foi acompanhada pelos ministros Felix Fischer, Gilson Dipp, Eliana Calmon,

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FGV DIREITO RIO 257

Paulo Gallotti, Francisco Falcão, Nancy Andrighi, Laurita Vaz, Luiz Fux, Castro Meira, Denise Arruda, Arnaldo Esteves Lima, Massami Uyeda e Sid-nei Beneti.

Outro entendimento foi manifestado pela ministra Maria Th ereza de Assis Moura. Para ela, a reclamação encaminhada ao STJ é procedente. A ministra afi rma que a solicitação de cópias dos discos rígidos se coloca à margem da investigação. Em seu voto-vista, ela distinguiu atos de investigação de atos de prova. Os primeiros se dão no âmbito pré-processual, enquanto os segundos são praticados perante o juiz que julgará a causa.

A ministra Maria Th ereza defende que, como a descoberta e apreensão dos discos rígidos se deram por medida judicial cumprida após a instauração da ação penal, o fornecimento de cópias das provas não poderia ser feito de forma alheia ao ordenamento jurídico. De acordo com a ministra, trata-se de atos de prova e não de atos de investigação. Acompanharam a divergência os ministros Nilson Naves, Ari Pargendler, Fernando Gonçalves, Aldir Passari-nho Junior e Hamilton Carvalhido.

A Corte Especial volta a se reunir no dia 18 de março, mas não há data prevista para o julgamento ser retomado. O ministro João Otávio de Noro-nha é o último a votar, mas até que o julgamento seja encerrado, qualquer ministro que já se manifestou pode alterar seu posicionamento.

CASO 1: AGRG NA CARTA ROGATÓRIA Nº 3.162 — EX

SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

AgRg na CARTA ROGATÓRIA Nº 3.162 — EX (2008⁄0057033-2)

RELATOR: MINISTRO PRESIDENTE DO STJAGRAVANTE: VALERIA MARINO RODRIGUES SALAADVOGADO: MARISA SCHUTZER DEL NERO POLETTI E

OUTRO(S)AGRAVADO: MINISTÉRIO PÚBLICO DA CONFEDERAÇÃO

SUÍÇAINTERES.: GUNTER HANS SCHILLERINTERES.: MARIA DULCE TOLEDO ZANARDI TELINIINTERES.: RICCARDO ARTIOLIINTERES.: PAUL NAGIB AKELINTERES.: FERNANDO CAPOZZI BALDANINTERES.: GIOVANI CORREIA DE AMORININTERES.: JUDITE FELIX DE LIMA SALAPARTE: VAUGHN MELFORD NETO E OUTROS

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EMENTA

AGRAVO REGIMENTAL. CARTA ROGATÓRIA. PEDIDO DE SEQUESTRO DE BEM. AUSÊNCIA DE DECISÃO PROFERIDA NA ORIGEM. JUÍZO MERAMENTE DELIBATÓRIO A SER EXERCIDO POR ESTA CORTE. ART. 7º DA RESOLUÇÃO N. 9⁄2005 DESTE TRI-BUNAL. CUMPRIMENTO DO PEDIDO POR AUXÍLIO DIRETO. PRECEDENTES DESTA CORTE.

— Nos termos do decidido no julgamento do Agravo Regimental na Car-ta Rogatória n. 998⁄IT e da Reclamação n. 2645⁄SP, a realização de quebra de sigilo bancário ou de sequestro de bens por meio de carta rogatória depende de decisão proferida na Justiça estrangeira, a ser delibada por esta Corte.

— Ausente a decisão a ser submetida a juízo de delibação, como ocorre no caso dos autos, o cumprimento do pedido se dá por meio do auxílio direto, previsto no parágrafo único do art. 7º da Resolução n. 9⁄2005 deste Tribunal.

Agravo regimental improvido.

ACÓRDÃOVistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indica-

das, acordam os Ministros da Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos votos e das notas taquigráfi cas a seguir, por unanimida-de, negar provimento ao agravo regimental nos termos do voto do Sr. Minis-tro Relator. Os Srs. Ministros Felix Fischer, Aldir Passarinho Junior, Eliana Calmon, Nancy Andrighi, Laurita Vaz, Luiz Fux, João Otávio de Noronha, Teori Albino Zavascki, Castro Meira e Arnaldo Esteves Lima votaram com o Sr. Ministro Relator.

Ausentes, justifi cadamente, os Srs. Ministros Gilson Dipp, Hamilton Car-valhido e Francisco Falcão.

Presidiu o julgamento o Sr. Ministro Ari Pargendler.

Brasília, 18 de agosto de 2010(data do julgamento).MINISTRO ARI PARGENDLER, PresidenteMINISTRO CESAR ASFOR ROCHA, Relator

AgRg na CARTA ROGATÓRIA Nº 3.162 — CH (2008⁄0057033-2)

RELATÓRIOEXMO. SR. MINISTRO CESAR ASFOR ROCHA (Relator):Trata-se de agravo regimental interposto por Valéria Marino Rodrigues

Sala contra a decisão de fl s. 239-243, cujo teor se transcreve:“Cuida-se de pedido de cooperação internacional em matéria penal ex-

pedido pelo Ministério Público da Confederação Helvética — Procuradoria

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FGV DIREITO RIO 259

de Lugano, para instruir procedimento criminal referente ao ‘caso Parmalat’, por suspeita de lavagem de dinheiro e falsifi cação de documentos.

Pela via da assistência direta, a Justiça Federal do Estado de São Paulo rea-lizou as oitivas de Riccardo Artioli e Antônio Pires de Almeida (fl s. 198-206) e posteriormente remeteu os autos a esta Corte para a análise do pedido de sequestro do bem imóvel referido à fl . 130.

O Ministério Público Federal (fl s. 215-219), referente às oitivas já reali-zadas, opinou pela concessão do exequatur e pela imediata remessa das in-formações à Justiça rogante. Quanto ao pedido de sequestro de bem imóvel, manifestou-se pela devolução dos autos à Justiça Federal para o prossegui-mento do pedido pela via da assistência direta.

A decisão de fl s. 221-222 determinou a continuação do procedimento pelos trâmites da carta rogatória e a juntada da decisão, proferida pela Justiça rogante, que decretou o sequestro do bem.

O Ministério Público Federal interpôs o agravo regimental de fl s. 226-233, pelo qual reitera os fundamentos anteriormente apresentados.

Passo a decidir.Referente ao pedido de sequestro de bem, após a análise cuidadosa dos au-

tos e considerando a natureza transnacional do crime de lavagem de dinheiro, verifi co que o caso cuida de verdadeira notitia criminis, pela qual se solicita à Justiça brasileira a instauração de procedimento investigatório amplo.

O Ministro Gilson Dipp, no voto-vista proferido no julgamento do Agra-vo Regimental na Carta Rogatória n. 998-IT, enfatizou, na ocasião, que não havia ‘uma decisão de quebra de sigilo bancário ou de sequestro de bens, mas um pedido para que essa decisão seja obtida perante o Poder Judiciário brasileiro. Não se trata, portanto, de pedido de delibação, mas de pedido de auxílio jurídico’. Conclui-se, assim, que a solicitação da autoridade estrangei-ra para o sequestro do bem deve estar acompanhada pela decisão judicial que a determinou na Justiça rogante.

Ausente a decisão a ser submetida a juízo de delibação, como ocorre no caso dos autos, o cumprimento do pedido se dá por meio do auxílio direto, previsto no parágrafo único do art. 7º da Resolução n. 9⁄2005 deste Tribunal, segundo o qual ‘os pedidos de cooperação jurídica internacional que tiverem por objeto atos que não ensejem juízo de delibação pelo Superior Tribunal de Justiça, ainda que denominados como carta rogatória, serão encaminhados ou devolvidos ao Ministério da Justiça para as providências necessárias ao cumprimento por auxílio direto’.

A possibilidade do cumprimento de pedido de cooperação jurídica inter-nacional sem a intervenção obrigatória deste Tribunal foi objeto de análise pela Corte Especial no julgamento da Reclamação n. 2645-SP, ocorrido em 18⁄11⁄2009, cuja ementa se transcreve:

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‘CONSTITUCIONAL. COMPETÊNCIA DO STJ. EXEQUATUR. CARTA ROGATÓRIA. CONCEITO E LIMITES. COOPERAÇÃO JURÍDICA INTERNACIONAL. TRATADOS E CONVENÇÕES IN-TERNACIONAIS, APROVADOS E PROMULGADOS PELO BRASIL. CONSTITUCIONALIDADE. HIERARQUIA, EFICÁCIA E AUTORI-DADE DE LEI ORDINÁRIA.

1. Em nosso regime constitucional, a competência da União para ‘manter relações com estados estrangeiros’ (art. 21, I), é, em regra, exercida pelo Pre-sidente da República (CF, art. 84, VII), ‘auxiliado pelos Ministros de Estado’ (CF, art. 76). A intervenção dos outros Poderes só é exigida em situações especiais e restritas. No que se refere ao Poder Judiciário, sua participação está prevista em pedidos de extradição e de execução de sentenças e de cartas rogatórias estrangeiras: ‘Compete ao Supremo Tribunal Federal [...] processar e julgar, originariamente [...] a extradição solicitada por Estado estrangeiro’ (CF, art. 102, I, g); ‘Compete ao Superior Tribunal de Justiça [...] processar e julgar originariamente [...] a homologação de sentenças estrangeiras e a concessão de exequatur às cartas rogatórias’ (CF, art. 105, I, i); e ‘Aos Juízes federais compete processar e julgar [...] a execução de carta rogatória, após o exequatur, e de sentença estrangeira, após a homologação’ (CF, art. 109, X).

2. As relações entre Estados soberanos que têm por objeto a execução de sentenças e de cartas rogatórias representam, portanto, uma classe peculiar de relações internacionais, que se estabelecem em razão da atividade dos res-pectivos órgãos judiciários e decorrem do princípio da territorialidade da jurisdição, inerente ao princípio da soberania, segundo o qual a autoridade dos juízes (e, portanto, das suas decisões) não pode extrapolar os limites ter-ritoriais do seu próprio País. Ao atribuir ao STJ a competência para a ‘con-cessão de exequatur às cartas rogatórias’ (art. 105, I, i), a Constituição está se referindo, especifi camente, ao juízo de delibação consistente em aprovar ou não o pedido feito por autoridade judiciária estrangeira para cumprimento, em nosso país, de diligência processual requisitada por decisão do juiz rogan-te. É com esse sentido e nesse limite, portanto, que deve ser compreendida a referida competência constitucional.

3. Preocupados com o fenômeno da criminalidade organizada e transna-cional, a comunidade das Nações e os Organismos Internacionais aprovaram e estão executando, nos últimos anos, medidas de cooperação mútua para a prevenção, a investigação e a punição efetiva de delitos dessa espécie, o que tem como pressuposto essencial e básico um sistema efi ciente de comunica-ção, de troca de informações, de compartilhamento de provas e de tomada de decisões e de execução de medidas preventivas, investigatórias, instrutórias ou acautelatórias, de natureza extrajudicial. O sistema de cooperação, esta-belecido em acordos internacionais bilaterais e plurilaterais, não exclui, evi-dentemente, as relações que se estabelecem entre os órgãos judiciários, pelo

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regime das cartas precatórias, em processos já submetidos à esfera jurisdicio-nal. Mas, além delas, engloba outras muitas providências, afetas, no âmbito interno de cada Estado, não ao Poder Judiciário, mas a autoridades policiais ou do Ministério Público, vinculadas ao Poder Executivo.

4. As providências de cooperação dessa natureza, dirigidas à autoridade central do Estado requerido (que, no Brasil, é o Ministério da Justiça), serão atendidas pelas autoridades nacionais com observância dos mesmos padrões, inclusive dos de natureza processual, que devem ser observados para as provi-dências semelhantes no âmbito interno (e, portanto, sujeitas a controle pelo Poder Judiciário, por provocação de qualquer interessado). Caso a medida solicitada dependa, segundo o direito interno, de prévia autorização judicial, cabe aos agentes competentes do Estado requerido atuar judicialmente visan-do a obtê-la. Para esse efeito, tem signifi cativa importância, no Brasil, o papel do Ministério Público Federal e da Advocacia-Geral da União, órgãos com capacidade postulatória para requerer, perante o Judiciário, essas especiais medidas de cooperação jurídica.

5. Conforme reiterada jurisprudência do STF, os tratados e convenções internacionais de caráter normativo, ‘[...] uma vez regularmente incorpora-dos ao direito interno, situam-se, no sistema jurídico brasileiro, nos mesmos planos de validade, de efi cácia e de autoridade em que se posicionam as leis ordinárias’ (STF, ADI-MC 1480-3, Min. Celso de Mello, DJ de 18.05.2001), fi cando sujeitos a controle de constitucionalidade e produzindo, se for o caso, efi cácia revogatória de normas anteriores de mesma hierarquia com eles in-compatíveis (lex posterior derrogat priori). Portanto, relativamente aos tra-tados e convenções sobre cooperação jurídica internacional, ou se adota o sistema neles estabelecido, ou, se inconstitucionais, não se adota, caso em que será indispensável também denunciá-los no foro próprio. O que não se admite, porque então sim haverá ofensa à Constituição, é que os órgãos do Poder Judiciário pura e simplesmente neguem aplicação aos referidos precei-tos normativos, sem antes declarar formalmente a sua inconstitucionalidade (Súmula vinculante 10⁄STF).

6. Não são inconstitucionais as cláusulas dos tratados e convenções sobre cooperação jurídica internacional (v.g. art. 46 da Convenção de Mérida — ‘Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção’ e art. 18 da Convenção de Palermo — ‘Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional’) que estabelecem formas de cooperação entre autoridades vin-culadas ao Poder Executivo, encarregadas da prevenção ou da investigação penal, no exercício das suas funções típicas. A norma constitucional do art. 105, I, i, não instituiu o monopólio universal do STJ de intermediar essas relações. A competência ali estabelecida — de conceder exequatur a cartas ro-gatórias —, diz respeito, exclusivamente, a relações entre os órgãos do Poder

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Judiciário, não impedindo nem sendo incompatível com as outras formas de cooperação jurídica previstas nas referidas fontes normativas internacionais.

7. No caso concreto, o que se tem é pedido de cooperação jurídica consis-tente em compartilhamento de prova, formulado por autoridade estrangeira (Procuradoria-Geral da Federação da Rússia) no exercício de atividade inves-tigatória, dirigido à congênere autoridade brasileira (Procuradoria-Geral da República), que obteve a referida prova também no exercício de atividade in-vestigatória extrajudicial. O compartilhamento de prova é uma das mais carac-terísticas medidas de cooperação jurídica internacional, prevista nos acordos bilaterais e multilaterais que disciplinam a matéria, inclusive na ‘Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional’ (Convenção de Palermo), promulgada no Brasil pelo Decreto 5.015, de 12.03.04, e na ‘Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção’ (Convenção de Mérida), de 31.10.03, promulgada pelo Decreto 5.687, de 31.01.06, de que a Fede-ração da Rússia também é signatária. Consideradas essas circunstâncias, bem como o conteúdo e os limites próprios da competência prevista no art. 105, I, i da Constituição, a cooperação jurídica requerida não dependia de expe-dição de carta rogatória por autoridade judiciária da Federação da Rússia e, portanto, nem de exequatur ou de outra forma de intermediação do Superior Tribunal de Justiça, cuja competência, consequentemente, não foi usurpada.

8. Reclamação improcedente’ (grifo nosso).Nos termos do assentado no referido precedente, uma vez que a medida

de sequestro de bem depende de autorização judicial, incumbe ao Ministério Público Federal e à Advocacia-Geral da União provocar o Judiciário para obter essa autorização.

À vista do exposto, reconsidero a decisão de fl s. 221-222 e determino a remessa dos autos ao Ministério da Justiça para o cumprimento do pedido de sequestro de bem por auxílio direto.

Por fi m, enfatizando a aplicação do princípio da economia processual e tendo em vista que a oitiva de pessoas não atenta contra a ordem pública nem contra a soberania nacional, concedo o exequatur quanto ao ponto e conside-ro cumprida a comissão no que se refere às oitivas solicitadas (fl s. 198-206).Proceda-se às anotações pertinentes à baixa desta comissão na distribuição. Publique-se.”

Após manifestação do Ministério Público Federal (fl s. 248-249), retifi cou-se a referida decisão para remeter os autos diretamente ao Juízo da 6ª Vara Criminal Federal de São Paulo, a fi m de se prosseguir no cumprimento do pedido por auxílio direto.

No recurso, a agravante insurge-se contra a devolução dos autos à Justiça Federal por entender que a comissão deveria ser remetida ao Ministério da Justiça, “que deverá providenciar decisão judicial de sequestro de bens junto

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à Justiça rogante, exatamente na linha do que foi decidido nos autos da CR 998, deste Tribunal” (fl . 261).

O Ministério Público Federal manifestou-se pelo improvimento do agra-vo regimental (fl . 331) aos seguintes fundamentos: “O agravo regimental da interessada invoca, equivocadamente, o acórdão da Carta Rogatória 998⁄IT. Conforme decidido pela Corte Especial, no julgamento daquele caso ante-rior, as medidas de segundo nível (v.g. quebra de sigilo bancário ou bloqueio de bens), para serem processadas pela via da carta rogatória dependem da existência de sentença estrangeira que tenha decretado tais medidas. Não ha-vendo decisão judicial estrangeira, como ocorre neste caso, em que a solicita-ção provém do Ministério Público suíço, a medida rogada escapa do âmbito estrito do juízo delibatório do exequatur, sendo necessário provocar a Justiça brasileira para que seja decretado o sequestro. Como está no acórdão dos Embargos de Declaração na CR 998⁄IT, necessita-se de autorização judicial. Donde a inadequação da carta rogatória e a adequação do ajuizamento do pedido direto na Justiça Federal de primeiro grau, para realização do que so-licitado pela autoridade estrangeira (parágrafo único do art. 7º da Resolução n. 9⁄2005).”

É o relatório.AgRg na CARTA ROGATÓRIA Nº 3.162 — CH (2008⁄0057033-2)

EMENTA: AGRAVO REGIMENTAL. CARTA ROGATÓRIA. PEDI-DO DE SEQUESTRO DE BEM. AUSÊNCIA DE DECISÃO PROFE-RIDA NA ORIGEM. JUÍZO MERAMENTE DELIBATÓRIO A SER EXERCIDO POR ESTA CORTE. ART. 7º DA RESOLUÇÃO N. 9⁄2005 DESTE TRIBUNAL. CUMPRIMENTO DO PEDIDO POR AUXÍLIO DIRETO. PRECEDENTES DESTA CORTE.

— Nos termos do decidido no julgamento do Agravo Regimental na Car-ta Rogatória n. 998⁄IT e da Reclamação n. 2645⁄SP, a realização de quebra de sigilo bancário ou de sequestro de bens por meio de carta rogatória depende de decisão proferida na Justiça estrangeira, a ser delibada por esta Corte.

— Ausente a decisão a ser submetida a juízo de delibação, como ocorre no caso dos autos, o cumprimento do pedido se dá por meio do auxílio direto, previsto no parágrafo único do art. 7º da Resolução n. 9⁄2005 deste Tribunal.

Agravo regimental improvido.

VOTOEXMO. SR. MINISTRO CESAR ASFOR ROCHA (Relator):Não prospera a irresignação.A decisão agravada apresentou fundamentação baseada em precedente da

Corte Especial, proferido em 18⁄11⁄2009 no julgamento da Reclamação n. 2645⁄SP, segundo o qual é possível o cumprimento de pedido de cooperação

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jurídica internacional sem a intervenção obrigatória deste Tribunal, utilizan-do-se a via do auxílio direto.

No referido precedente, assentou-se que, diversamente do que ocorre com as cartas rogatórias e com a homologação de sentenças estrangeiras, nas quais o Superior Tribunal de Justiça exerce juízo meramente delibatório, o auxí-lio direto é pedido administrativo intergovernamental fundado em tratado internacional de cooperação judiciária, no qual o juiz do Estado requerido é provocado por autoridade nacional a proferir decisão em processo de cog-nição plena.

Na ocasião, destaquei trecho do voto do Ministro Gilson Dipp proferido no julgamento do Agravo Regimental na Carta Rogatória n. 998⁄IT, que en-fatizou que a realização de quebra de sigilo bancário ou de sequestro de bens por meio de carta rogatória depende de decisão proferida na Justiça estran-geira, a ser delibada por esta Corte.

Ausente a decisão a ser submetida a juízo de delibação, como ocorre no caso dos autos, o cumprimento do pedido se dá por meio do auxílio direto, previsto no parágrafo único do art. 7º da Resolução n. 9⁄2005 deste Tribunal, a informar que “os pedidos de cooperação jurídica internacional que tiverem por objeto atos que não ensejem juízo de delibação pelo Superior Tribunal de Justiça, ainda que denominados como carta rogatória, serão encaminhados ou devolvidos ao Ministério da Justiça para as providências necessárias ao cumprimento por auxílio direto”.

Uma vez que o sequestro de bens depende de autorização judicial, in-cumbe ao Ministério Público Federal provocar o Judiciário para obter essa autorização.

Daí a remessa dos autos à Justiça Federal, a fi m de que o Juízo de primeiro grau prossiga na análise da solicitação já formulada pelo Ministério Público Federal.

Com tais considerações, nego provimento ao agravo regimental.

CERTIDÃO DE JULGAMENTOCORTE ESPECIALAgRg naRelatorExmo. Sr. Ministro PRESIDENTE DO STJPresidente da SessãoExmo. Sr. Ministro ARI PARGENDLERSubprocurador-Geral da RepúblicaExmo. Sr. Dr. HAROLDO FERRAZ DA NOBREGASecretáriaBela. VANIA MARIA SOARES ROCHA

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JUSROGANTE: MINISTÉRIO PÚBLICO DA CONFEDERAÇÃO SUÍÇA

INTERES.: GUNTER HANS SCHILLERINTERES.: MARIA DULCE TOLEDO ZANARDI TELINIINTERES.: RICCARDO ARTIOLIINTERES.: PAUL NAGIB AKELINTERES.: FERNANDO CAPOZZI BALDANINTERES.: GIOVANI CORREIA DE AMORININTERES.: VALERIA MARINO RODRIGUES SALAADVOGADO: MARISA SCHUTZER DEL NERO POLETTI E

OUTRO(S)INTERES.: JUDITE FELIX DE LIMA SALAPARTE: VAUGHN MELFORD NETO E OUTROS

ASSUNTO: DIREITO PENAL.

AGRAVO REGIMENTAL

AGRAVANTE: VALERIA MARINO RODRIGUES SALAADVOGADO: MARISA SCHUTZER DEL NERO POLETTI E

OUTRO(S)AGRAVADO: MINISTÉRIO PÚBLICO DA CONFEDERAÇÃO

SUÍÇAINTERES.: GUNTER HANS SCHILLERINTERES.: MARIA DULCE TOLEDO ZANARDI TELINIINTERES.: RICCARDO ARTIOLIINTERES.: PAUL NAGIB AKELINTERES.: FERNANDO CAPOZZI BALDANINTERES.: GIOVANI CORREIA DE AMORININTERES.: JUDITE FELIX DE LIMA SALAPARTE: VAUGHN MELFORD NETO E OUTROS

CERTIDÃOCertifi co que a egrégia CORTE ESPECIAL, ao apreciar o processo em

epígrafe na sessão realizada nesta data, proferiu a seguinte decisão:

A Corte Especial, por unanimidade, negou provimento ao agravo regi-mental, nos termos do voto do Sr. Ministro Relator.

Os Srs. Ministros Felix Fischer, Aldir Passarinho Junior, Eliana Calmon, Nancy Andrighi, Laurita Vaz, Luiz Fux, João Otávio de Noronha, Teori Al-bino Zavascki, Castro Meira e Arnaldo Esteves Lima votaram com o Sr. Mi-nistro Relator.

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Ausentes, justifi cadamente, os Srs. Ministros Gilson Dipp, Hamilton Car-valhido e Francisco Falcão.

Presidiu o julgamento o Sr. Ministro Ari Pargendler.Brasília, 18 de agosto de 2010VANIA MARIA SOARES ROCHASecretária

Documento: 995131 Inteiro Teor do Acórdão — DJe: 06/09/2010

CASO 2: SEMINÁRIO RECLAMAÇÃO 2645/STJ

SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

RECLAMAÇÃO Nº 2.645 — SP (2007⁄0254916-5)

RELATOR: MINISTRO TEORI ALBINO ZAVASCKIRECLAMANTE: BÓRIS ABRAMOVICH BEREZOVSKYADVOGADO: ALBERTO ZACHARIAS TORON E OUTRO(S)ADVOGADA: HELOÍSA ESTELLITA E OUTRO(S)RECLAMADO: JUIZ FEDERAL DA 6A VARA CRIMINAL DA SE-

ÇÃO JUDICIÁRIA DO ESTADO DE SÃO PAULOINTERES.: MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL

EMENTA: CONSTITUCIONAL. COMPETÊNCIA DO STJ. EXE-QUATUR. CARTA ROGATÓRIA. CONCEITO E LIMITES. COOPE-RAÇÃO JURÍDICA INTERNACIONAL. TRATADOS E CONVEN-ÇÕES INTERNACIONAIS, APROVADOS E PROMULGADOS PELO BRASIL. CONSTITUCIONALIDADE. HIERARQUIA, EFICÁCIA E AUTORIDADE DE LEI ORDINÁRIA.

1. Em nosso regime constitucional, a competência da União para “man-ter relações com estados estrangeiros” (art. 21, I), é, em regra, exercida pelo Presidente da República (CF, art. 84, VII), “auxiliado pelos Ministros de Estado” (CF, art. 76). A intervenção dos outros Poderes só é exigida em situações especiais e restritas. No que se refere ao Poder Judiciário, sua par-ticipação está prevista em pedidos de extradição e de execução de sentenças e de cartas rogatórias estrangeiras: “Compete ao Supremo Tribunal Federal (...) processar e julgar, originariamente (...) a extradição solicitada por Esta-do estrangeiro” (CF, art. 102, I, g); “Compete ao Superior Tribunal de Jus-tiça (...) processar e julgar originariamente (...) a homologação de sentenças estrangeiras e a concessão de exequatur às cartas rogatórias” (CF, art. 105, I, i); e “Aos Juízes federais compete processar e julgar (...) a execução de carta

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rogatória, após o exequatur, e de sentença estrangeira, após a homologação” (CF, art. 109, X).

2. As relações entre Estados soberanos que têm por objeto a execução de sentenças e de cartas rogatórias representam, portanto, uma classe peculiar de relações internacionais, que se estabelecem em razão da atividade dos res-pectivos órgãos judiciários e decorrem do princípio da territorialidade da jurisdição, inerente ao princípio da soberania, segundo o qual a autoridade dos juízes (e, portanto, das suas decisões) não pode extrapolar os limites ter-ritoriais do seu próprio País. Ao atribuir ao STJ a competência para a “con-cessão de exequatur às cartas rogatórias” (art. 105, I, i), a Constituição está se referindo, especifi camente, ao juízo de delibação consistente em aprovar ou não o pedido feito por autoridade judiciária estrangeira para cumprimento, em nosso país, de diligência processual requisitada por decisão do juiz rogan-te. É com esse sentido e nesse limite, portanto, que deve ser compreendida a referida competência constitucional.

3. Preocupados com o fenômeno da criminalidade organizada e transna-cional, a comunidade das Nações e os Organismos Internacionais aprovaram e estão executando, nos últimos anos, medidas de cooperação mútua para a prevenção, a investigação e a punição efetiva de delitos dessa espécie, o que tem como pressuposto essencial e básico um sistema efi ciente de comunica-ção, de troca de informações, de compartilhamento de provas e de tomada de decisões e de execução de medidas preventivas, investigatórias, instrutórias ou acautelatórias, de natureza extrajudicial. O sistema de cooperação, esta-belecido em acordos internacionais bilaterais e plurilaterais, não exclui, evi-dentemente, as relações que se estabelecem entre os órgãos judiciários, pelo regime das cartas precatórias, em processos já submetidos à esfera jurisdicio-nal. Mas, além delas, engloba outras muitas providências, afetas, no âmbito interno de cada Estado, não ao Poder Judiciário, mas a autoridades policiais ou do Ministério Público, vinculadas ao Poder Executivo.

4. As providências de cooperação dessa natureza, dirigidas à autoridade central do Estado requerido (que, no Brasil, é o Ministério da Justiça), serão atendidas pelas autoridades nacionais com observância dos mesmos padrões, inclusive dos de natureza processual, que devem ser observados para as providências semelhan-tes no âmbito interno (e, portanto, sujeitas a controle pelo Poder Judiciário, por provocação de qualquer interessado). Caso a medida solicitada dependa, segundo o direito interno, de prévia autorização judicial, cabe aos agentes competentes do Estado requerido atuar judicialmente visando a obtê-la. Para esse efeito, tem signifi cativa importância, no Brasil, o papel do Ministério Público Federal e da Advocacia Geral da União, órgãos com capacidade postulatória para requerer, perante o Judiciário, essas especiais medidas de cooperação jurídica.

5. Conforme reiterada jurisprudência do STF, os tratados e convenções in-ternacionais de caráter normativo, “(...) uma vez regularmente incorporados

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ao direito interno, situam-se, no sistema jurídico brasileiro, nos mesmos pla-nos de validade, de efi cácia e de autoridade em que se posicionam as leis or-dinárias” (STF, ADI-MC 1480-3, Min. Celso de Mello, DJ de 18.05.2001), fi cando sujeitos a controle de constitucionalidade e produzindo, se for o caso, efi cácia revogatória de normas anteriores de mesma hierarquia com eles in-compatíveis (lex posterior derrogat priori). Portanto, relativamente aos tra-tados e convenções sobre cooperação jurídica internacional, ou se adota o sistema neles estabelecido, ou, se inconstitucionais, não se adota, caso em que será indispensável também denunciá-los no foro próprio. O que não se admite, porque então sim haverá ofensa à Constituição, é que os órgãos do Poder Judiciário pura a simplesmente neguem aplicação aos referidos precei-tos normativos, sem antes declarar formalmente a sua inconstitucionalidade (Súmula vinculante 10⁄STF).

6. Não são inconstitucionais as cláusulas dos tratados e convenções sobre cooperação jurídica internacional (v.g. art. 46 da Convenção de Mérida — “Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção” e art. 18 da Convenção de Palermo — “Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organiza-do Transnacional”) que estabelecem formas de cooperação entre autoridades vinculadas ao Poder Executivo, encarregadas da prevenção ou da investigação penal, no exercício das suas funções típicas. A norma constitucional do art. 105, I, i, não instituiu o monopólio universal do STJ de intermediar essas relações. A competência ali estabelecida — de conceder exequatur a cartas ro-gatórias —, diz respeito, exclusivamente, a relações entre os órgãos do Poder Judiciário, não impedindo nem sendo incompatível com as outras formas de cooperação jurídica previstas nas referidas fontes normativas internacionais.

7. No caso concreto, o que se tem é pedido de cooperação jurídica consis-tente em compartilhamento de prova, formulado por autoridade estrangeira (Procuradoria Geral da Federação da Rússia) no exercício de atividade inves-tigatória, dirigido à congênere autoridade brasileira (Procuradoria Geral da República), que obteve a referida prova também no exercício de atividade in-vestigatória extrajudicial. O compartilhamento de prova é uma das mais carac-terísticas medidas de cooperação jurídica internacional, prevista nos acordos bilaterais e multilaterais que disciplinam a matéria, inclusive na “Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional” (Convenção de Palermo), promulgada no Brasil pelo Decreto 5.015, de 12.03.04, e na “Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção” (Convenção de Mé-rida), de 31.10.03, promulgada pelo Decreto 5.687, de 31.01.06, de que a Federação da Rússia também é signatária. Consideradas essas circunstâncias, bem como o conteúdo e os limites próprios da competência prevista no art. 105, I, i da Constituição, a cooperação jurídica requerida não dependia de expedição de carta rogatória por autoridade judiciária da Federação da Rús-sia e, portanto, nem de exequatur ou de outra forma de intermediação do

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Superior Tribunal de Justiça, cuja competência, conseqüentemente, não foi usurpada.

8. Reclamação improcedente.

ACÓRDÃOVistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, decide

a Egrégia CORTE ESPECIAL do Superior Tribunal de Justiça, prosseguindo no julgamento, após o voto-vista do Sr. Ministro João Otávio de Noronha, por maioria, julgar improcedente a reclamação, nos termos do voto do Sr. Ministro Relator. Vencidos os Srs. Ministros Nilson Naves, Ari Pargendler, Fernando Gonçalves, Aldir Passarinho Junior, Hamilton Carvalhido e Maria Th ereza de Assis Moura. Os Srs. Ministros Castro Meira, Denise Arruda, Arnaldo Esteves Lima, Massami Uyeda, Sidnei Beneti, Felix Fischer, Gilson Dipp, Eliana Calmon, Paulo Gallotti, Francisco Falcão, Nancy Andrighi, Laurita Vaz, Luiz Fux e João Otávio de Noronha votaram com o Sr. Ministro Relator.

Ausentes, justifi cadamente, o Sr. Ministro Francisco Falcão e, ocasional-mente, o Sr. Ministro Gilson Dipp.

Brasília DF, 18 de novembro de 2009.MINISTRO CESAR ASFOR ROCHAPresidenteMINISTRO TEORI ALBINO ZAVASCKIRelator

RECLAMAÇÃO Nº 2.645 — SP (2007⁄0254916-5)RECLAMANTE: BÓRIS ABRAMOVICH BEREZOVSKYADVOGADO: ALBERTO ZACHARIAS TORON E OUTRO(S)RECLAMADO: JUIZ FEDERAL DA 6A VARA CRIMINAL DA SE-

ÇÃO JUDICIÁRIA DO ESTADO DE SÃO PAULOINTERES.: MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL

RELATÓRIOO EXMO. SR. MINISTRO TEORI ALBINO ZAVASCKI (Relator):

Trata-se de reclamação apresentada por Boris Abramovich Berezovsky, ao fundamento de que o Juiz da 6ª Vara Federal Criminal da Subsecção Judici-ária de São Paulo, SP, nos autos do Processo 2006.61.81.008647-8, usurpou a competência do Superior Tribunal de Justiça, defi nida no art. 105, I, i, da CF⁄88, para a concessão de exequatur a cartas rogatórias. A usurpação consis-tiu na decisão de autorizar, a pedido do Ministério Público Federal, a remessa de cópia do ‘hard disk do computador apreendido em poder de Boris Berezo-

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vsky’ para a Procuradoria Geral da Federação Russa” (fl . 08), em atendimento a ofício encaminhado pelo Vice-Procurador Geral daquele país.

Sustenta o reclamante, em síntese, que (a) o exercício da cooperação ju-rídica internacional não prescinde do controle da legalidade e admissibili-dade do ato no território nacional, o que se dá por via de carta rogatória sujeita a exequatur pelo STJ; (b) ainda que o parágrafo único do art. 7º da Resolução⁄STJ nº 9, de 05⁄05⁄2005, preveja o “cumprimento por auxílio direto” nos casos de “pedidos de cooperação jurídica internacional que tive-rem por objeto atos que não ensejem juízo de delibação”, está assentado na jurisprudência do STF (Rcl 1819) a indispensável observância das formali-dades relativas a carta rogatória e seu endosso; (c) no caso dos autos, além de não haver tratado de cooperação internacional entre o Brasil e a Federação Russa, o pedido foi encaminhado por ofício subscrito pelo Vice-Procurador Geral daquele País (e não por autoridade judiciária) diretamente ao Minis-tério Público Federal brasileiro, não havendo prova de autenticidade dos documentos (eis que não tramitaram pela via diplomática e nem foram ob-jeto de chancela consular), inexistindo, sequer, tradução para o vernáculo (foram “apresentados em idioma russo e inglês” — fl . 04). Alegando, assim, o desatendimento “de todas as regras que regulam os atos de cooperação ju-dicial com autoridade estrangeira em matéria penal” (fl . 14), especialmente o disposto no art. 105, I, i, da Constituição e nos artigos 780 e seguintes do CPP, postula (a) diante da iminência de dano irreparável, “seja determinada a imediata suspensão da execução da decisão proferida pela autoridade ora reclamada que deferiu o envio ao Ministério Público russo das cópias dos hards disks dos computadores apreendidos em posse de Boris Abramovich Berezovsky, nos autos n. 2006.61.81.00511-8⁄ Apenso VII (doc. 3), ofi cian-do-se especialmente a embaixada da Federação Russa para que se abstenha de remeter tal material à Federação Russa ou, tendo-os remetido, que pro-videncie de imediato a sua devolução até a decisão fi nal desta Reclamação” (fl . 15); (b) a procedência da presente reclamação com a cassação defi nitiva da decisão impugnada.

Por decisão de fl s. 652-653 (v. 3), a liminar foi deferida para suspender o cumprimento do ato atacado até o julgamento da presente reclamação.

Prestando as informações (fl s. 663⁄676), noticia a autoridade reclamada que tramita no juízo reclamado ação penal contra o reclamante e outros acu-sados, com denúncia recebida em 11⁄07⁄2007, pela prática do crime descrito no “art. 288 do Código Penal, bem como da ocultação da origem e da pro-priedade de valores oriundos da prática de crimes contra a Administração Pública e praticados por organização criminosa” (fl . 664), e acrescenta:

“O Ministério Público Federal ao oferecer a denúncia postulou a formação de Apenso com os documentos (em russo e em inglês) encaminhados ao Pro-

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curador Geral da República pela Procuradoria Geral da República da Fede-ração da Rússia, bem como das respectivas traduções públicas (fl s. 163⁄165).

Na cota introdutória ao despacho de recebimento daquela peça (fl s. 167⁄168), este Juízo determinou a formação de Apensos com os aludidos documentos, que receberam a seguinte denominação: ‘Apensos XII e XIII’. Restou deferido no item ‘c’ da decisão exarada às fl s. 169⁄214 o pedido tam-bém formulado pelo Parquet Federal para encaminhamento de cópia dos hard disks à Procuradoria Geral da Federação da Rússia, nos termos em que requerido por aquela Autoridade.

Referidos aparelhos estavam na Diretoria de Inteligência da Polícia Fe-deral em Brasília para realização de perícia e foram apreendidos em maio de 2006, em poder de Boris Abramovich Berezovisk, por força de decisão que determinou a realização de Busca e Apreensão, bem como a expedição de Mandado de Condução Coercitiva do então investigado até a sede da Procu-radoria da República, nesta capital, para que prestasse depoimento sobre os fatos em apuração no Brasil relacionados, em tese, ao crime de quadrilha (art. 288, C.P.), dada a suposta associação do investigado e de outras pessoas, com o propósito estável e permanente de cometer crime de ‘lavagem’ de valores, valendo-se da parceria celebrada entre a MSI e o Sport Club Corinthians Paulista.

Por ocasião da apreensão, considerou-se, também, o fato de ter o investi-gado ingressado no Brasil utilizando-se do nome Platon Ilyich Yelenin, bem ainda por estar incluído na ‘Difusão Vermelha’ expedida pela Interpol para localização e Prisão Preventiva com fi ns Extradicionais, não obstante até aquele momento o referido Mandado não tivesse trâmite no Brasil com vis-tas à sua homologação pelo Colendo Supremo Tribunal Federal (fl s. 932⁄934, 1052, 1057⁄1060, 1061, 1063⁄1064, 1065⁄1072, 1082⁄1084, 1092, 1094 e 1098 dos autos n.º 2006.61.81.005118-0⁄Apenso VII, distribuídos por de-pendência à Ação Penal).

Por meio do ofi cio n.º 1040⁄2007-rba, datado de 28.09.2007, foram as aludidas cópias encaminhadas ao Excelentíssimo Senhor Embaixador da Rússia no Brasil, Sua Exa. Wladimir Turdenev, a fi m de serem remetidos à Procuradoria Geral da Rússia (cf. fl . 75 do Apenso formado nos termos da Portaria n.º 18⁄2005 deste Juízo).

A Federação Russa, assim como o Brasil, é signatária da Convenção ONU contra a Corrupção, conhecida como Convenção de Mérida, cidade mexica-na onde ocorreu sua assinatura, tendo sido fi rmada, por 150 países, dos quais 95 já a internacionalizaram, destacando-se ainda dentre eles, Argentina, Aus-trália, Espanha, Estados Unidos da América, China, França e Reino Unido.

O procedimento adotado por este Juízo ao atender ao pleito formulado pelo órgão ministerial observou o rito estabelecido pela aludida Convenção, notadamente no capítulo relativo à Cooperação Internacional, em seus artigos

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43, 46, dentre outros, bem como pela Convenção ONU de Palermo, de 2000, quanto ao Crime Organizado Transnacional, em especial, nos artigos 18, 27 e 28. E assim o fez, sem desatender o ordenamento jurídico interno, porquanto se atentou também para a forma preconizada pelo parágrafo único do art. 7° da Resolução n.º 09, de 04.05.2005, da Presidência dessa Colenda Corte, a saber:

‘Art. 7° As cartas rogatórias podem ter por objeto atos decisórios ou não decisórios.

Parágrafo único. Os pedidos de cooperação jurídica internacional que tiverem por objeto atos que não ensejem juízo de delibação pelo Superior Tribunal de Justiça, ainda que denominados como carta rogatória, serão en-caminhados ou devolvidos ao Ministério da Justiça para as providências ne-cessárias ao cumprimento por auxilio direto’ (grifos nossos).

A assistência direta, s.m.j., decorre tanto da aplicação do rito das Con-venções de Mérida e Palermo quanto da natureza da medida pleiteada pelo Ministério Público Federal, sem contar o preceito da reciprocidade do qual se baseiam, na ausência de normativo, as relações internacionais. Por isso não se aventou ser o caso de concessão de exequatur na forma estabelecida no artigo 105, inciso I, alínea ‘i’, da C.F.

Aliás, a Convenção de Palermo preceitua o dever de assistência judiciária recíproca entre as Partes quando o Estado Requerente tiver motivos razoáveis para suspeitar que a infração tenha caráter transnacional, com previsão do dever de ser prestada toda cooperação jurídica (artigo 18, itens 1 e 2), bem ainda a recomendação de se utilizar técnicas especiais de investigação, como a vigilância eletrônica (artigo 20, item 1). Prevê, ainda, o intercâmbio de infor-mações visando fornecer aos Estados Partes o conhecimento das tendências da criminalidade organizada no seu território, as circunstâncias em que opera e os grupos profi ssionais e tecnologias envolvidos, podendo, para tanto, haver compartilhamento entre si (artigo 28, itens 1 e 2), bem ainda, e em especial, o concurso para a detecção e vigilância das movimentações do produto do crime, de métodos de transferência, dissimulação ou disfarce destes produtos e de ‘luta contra a lavagem de dinheiro e outras infrações fi nanceiras’ (artigo 29, item 1, ‘d’).

O referido diploma internacional, já devidamente integrado como norma juridicamente efi caz no país, lastreia a investigação, e mais do que isso, con-cita os Estados Partes a reprimir de forma contundente organizações crimi-nosas transnacionais.

As Convenções ONU contra o Crime Organizado Transnacional e contra a Corrupção, pode-se mesmo dizer, afi guram-se tentativa de todos os Estados soberanos de aniquilar grupos que deitam raízes em uma certa modalida-de delitiva que sistematicamente lança mão da obstrução à Justiça, além da prática de delitos que atentam à Administração Pública, havendo freqüente poder de intimidação. Trata-se, pois, de marcos jurídicos globais.

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Não se tem notícia de realização de perícia nos hard disks, mas é impor-tante realçar que a prova documental em exame já constava dos autos que tramitam perante este Juízo, pois foi produzida em razão de diligência de Busca e Apreensão determinada pela Justiça Federal brasileira em maio de 2006 nos autos sob n.º 2006.61.81.005118-0⁄Apenso VII, como salientado anteriormente, e NÃO DECORREU de pedido formulado por autorida-de estrangeira, não sendo hipótese de juízo de delibação. Trata-se apenas de compartilhamento de prova legítima aqui produzida.

Na Reclamação apresentada perante essa Colenda Corte, o Reclamante sustenta também que os documentos estrangeiros ofi ciais ressentiriam-se de tradução para o vernáculo e de encaminhamento pela via diplomática ou autenticação consular para que produzissem efeitos no país em qualquer ins-tância, juízo ou tribunal, bem ainda postula a aplicação dos artigos 780 e ss. do C.P.P., e assim o fez também por ocasião da impetração do Habeas Corpus n.º 2007.03.00.091069-0.

Tal argumentação não caberia, s.m.j., no bojo da Reclamação que versaria apenas sobre competência usurpada. De qualquer forma no writ acima cita-do, que tem seu trâmite perante a Segunda Turma do Eg. T.R.F. da 3a Região, foi indeferida a liminar pela Eminente Relatora do Habeas Corpus, Sua Exa. a Des. Fed. Cecília Mello.

A documentação excogitada, em língua estrangeira, está acompanhada de tradução juramentada, dando pleno atendimento ao artigo 236 do C.P.P. Assim, nada de irregular pode ser atribuído à juntada de tais documentos ou afronta à disposição legal, já que se cuida de cópia fi el devidamente encami-nhada por órgão do Estado Russo.

Entende este Juízo não terem também aplicação as disposições constantes dos artigos 780 e ss. do C.P.P., como aduz o Reclamante, por não se tratar in casu, de instrução de cartas rogatórias. Nada pode desmerecer as razões produzidas nos documentos que integram os autos, já que foi dado pleno atendimento às disposições do Código de Processo Penal, disposições que re-gem a matéria. É importante aqui realçar que o Reclamante nas razões de sua impetração no referido writ reconheceu que o ‘... Código de Processo Penal não tenha disposição especifi ca a respeito das condições de admissibilidade de documentos estrangeiros destinados a fazer prova no processo penal...’ somente o exigindo expressamente em cartas rogatórias (fl s. 952⁄953).

A admissibilidade dos documentos estrangeiros é regular, mormente consi-derando ter sido obtida de autoridade estrangeira a quem não se pode imputar prática de ato ilegal ante a ausência de qualquer substrato mínimo que apon-tasse nesse sentido. Certo é que as recomendações internacionais hoje buscam a simplifi cação dos procedimentos e a cooperação internacional, desde que não exista, como é o caso, qualquer elemento para duvidar-se da autenticida-de, e desde que não haja infringência ao ordenamento jurídico interno.

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Não fosse por tudo isso, poder-se-ia ainda argumentar que o Reclamante é cidadão russo e vive no Reino Unido há longa data, circunstância que au-toriza concluir que tanto ele, quanto sua defesa constituída, detêm aptidão para o conhecimento do material probatório. Aliás, o citado artigo 236 da legislação processual nem mesmo obriga a tradução quando ela se apresentar desnecessária.

Embora não tenha este Juízo vislumbrado qualquer irregularidade em do-cumentação encaminhada pela Autoridade Russa, anotou-se em ocasião an-terior que se desejasse a Defesa poderia providenciar nova tradução dos docu-mentos a fi m de dirimir suas dúvidas. E assim o fez, já que solicitou a versão para o português dos documentos encartados às fl s. 08, 11 e 12 do Apenso n.º 12, tendo o pedido sido atendido pelo despacho exarado em 14.11.2007 (fl s. 1392 e 1400⁄1414).” (fl s. 665⁄669).

O Ministério Público Federal, em parecer de fl s. 797⁄802, opina pela im-procedência da Reclamação.

Em petição de fl s. 810⁄815 o reclamante reitera os fundamentos da inicial, salientando que o pedido, na reclamação, é restrito à suspensão do envio do material probatório do Brasil para a Federação Russa sem o devido exequatur desta Corte a carta rogatória.

É o relatório.

RECLAMAÇÃO Nº 2.645 — SP (2007⁄0254916-5)RELATOR: MINISTRO TEORI ALBINO ZAVASCKIRECLAMANTE: BÓRIS ABRAMOVICH BEREZOVSKYADVOGADO: ALBERTO ZACHARIAS TORON E OUTRO(S)RECLAMADO: JUIZ FEDERAL DA 6A VARA CRIMINAL DA SE-

ÇÃO JUDICIÁRIA DO ESTADO DE SÃO PAULOINTERES.: MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL

EMENTA

CONSTITUCIONAL. COMPETÊNCIA DO STJ. EXEQUATUR. CARTA ROGATÓRIA. CONCEITO E LIMITES. COOPERAÇÃO JURÍDICA INTERNACIONAL. TRATADOS E CONVENÇÕES IN-TERNACIONAIS, APROVADOS E PROMULGADOS PELO BRASIL. CONSTITUCIONALIDADE. HIERARQUIA, EFICÁCIA E AUTORI-DADE DE LEI ORDINÁRIA.

1. Em nosso regime constitucional, a competência da União para “manter relações com estados estrangeiros” (art. 21, I), é, em regra, exercida pelo Pre-sidente da República (CF, art. 84, VII), “auxiliado pelos Ministros de Estado” (CF, art. 76). A intervenção dos outros Poderes só é exigida em situações es-peciais e restritas. No que se refere ao Poder Judiciário, sua participação está

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prevista em pedidos de extradição e de execução de sentenças e de cartas ro-gatórias estrangeiras: “Compete ao Supremo Tribunal Federal (...) processar e julgar, originariamente (...) a extradição solicitada por Estado estrangeiro” (CF, art. 102, I, g); “Compete ao Superior Tribunal de Justiça (...) processar e julgar originariamente (...) a homologação de sentenças estrangeiras e a concessão de exequatur às cartas rogatórias” (CF, art. 105, I, i); e “Aos Juízes federais compete processar e julgar (...) a execução de carta rogatória, após o exequatur, e de sentença estrangeira, após a homologação” (CF, art. 109, X).

2. As relações entre Estados soberanos que têm por objeto a execução de sentenças e de cartas rogatórias representam, portanto, uma classe peculiar de relações internacionais, que se estabelecem em razão da atividade dos res-pectivos órgãos judiciários e decorrem do princípio da territorialidade da jurisdição, inerente ao princípio da soberania, segundo o qual a autoridade dos juízes (e, portanto, das suas decisões) não pode extrapolar os limites ter-ritoriais do seu próprio País. Ao atribuir ao STJ a competência para a “con-cessão de exequatur às cartas rogatórias” (art. 105, I, i), a Constituição está se referindo, especifi camente, ao juízo de delibação consistente em aprovar ou não o pedido feito por autoridade judiciária estrangeira para cumprimento, em nosso país, de diligência processual requisitada por decisão do juiz rogan-te. É com esse sentido e nesse limite, portanto, que deve ser compreendida a referida competência constitucional.

3. Preocupados com o fenômeno da criminalidade organizada e transna-cional, a comunidade das Nações e os Organismos Internacionais aprovaram e estão executando, nos últimos anos, medidas de cooperação mútua para a prevenção, a investigação e a punição efetiva de delitos dessa espécie, o que tem como pressuposto essencial e básico um sistema efi ciente de comunica-ção, de troca de informações, de compartilhamento de provas e de tomada de decisões e de execução de medidas preventivas, investigatórias, instrutórias ou acautelatórias, de natureza extrajudicial. O sistema de cooperação, esta-belecido em acordos internacionais bilaterais e plurilaterais, não exclui, evi-dentemente, as relações que se estabelecem entre os órgãos judiciários, pelo regime das cartas precatórias, em processos já submetidos à esfera jurisdicio-nal. Mas, além delas, engloba outras muitas providências, afetas, no âmbito interno de cada Estado, não ao Poder Judiciário, mas a autoridades policiais ou do Ministério Público, vinculadas ao Poder Executivo.

4. As providências de cooperação dessa natureza, dirigidas à autoridade central do Estado requerido (que, no Brasil, é o Ministério da Justiça), serão atendidas pelas autoridades nacionais com observância dos mesmos padrões, inclusive dos de natureza processual, que devem ser observados para as provi-dências semelhantes no âmbito interno (e, portanto, sujeitas a controle pelo Poder Judiciário, por provocação de qualquer interessado). Caso a medida solicitada dependa, segundo o direito interno, de prévia autorização judicial,

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cabe aos agentes competentes do Estado requerido atuar judicialmente visan-do a obtê-la. Para esse efeito, tem signifi cativa importância, no Brasil, o papel do Ministério Público Federal e da Advocacia Geral da União, órgãos com capacidade postulatória para requerer, perante o Judiciário, essas especiais medidas de cooperação jurídica.

5. Conforme reiterada jurisprudência do STF, os tratados e convenções in-ternacionais de caráter normativo, “(...) uma vez regularmente incorporados ao direito interno, situam-se, no sistema jurídico brasileiro, nos mesmos pla-nos de validade, de efi cácia e de autoridade em que se posicionam as leis or-dinárias” (STF, ADI-MC 1480-3, Min. Celso de Mello, DJ de 18.05.2001), fi cando sujeitos a controle de constitucionalidade e produzindo, se for o caso, efi cácia revogatória de normas anteriores de mesma hierarquia com eles in-compatíveis (lex posterior derrogat priori). Portanto, relativamente aos tra-tados e convenções sobre cooperação jurídica internacional, ou se adota o sistema neles estabelecido, ou, se inconstitucionais, não se adota, caso em que será indispensável também denunciá-los no foro próprio. O que não se admite, porque então sim haverá ofensa à Constituição, é que os órgãos do Poder Judiciário pura a simplesmente neguem aplicação aos referidos precei-tos normativos, sem antes declarar formalmente a sua inconstitucionalidade (Súmula vinculante 10⁄STF).

6. Não são inconstitucionais as clausulas dos tratados e convenções sobre cooperação jurídica internacional (v.g.. art. 46 da Convenção de Mérida — “Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção” e art. 18 da Convenção de Palermo — “Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organiza-do Transnacional”) que estabelecem formas de cooperação entre autoridades vinculadas ao Poder Executivo, encarregadas da prevenção ou da investigação penal, no exercício das suas funções típicas. A norma constitucional do art. 105, I, i, não instituiu o monopólio universal do STJ de intermediar essas relações. A competência ali estabelecida — de conceder exequatur a cartas ro-gatórias —, diz respeito, exclusivamente, a relações entre os órgãos do Poder Judiciário, não impedindo nem sendo incompatível com as outras formas de cooperação jurídica previstas nas referidas fontes normativas internacionais.

7. No caso concreto, o que se tem é pedido de cooperação jurídica consis-tente em compartilhamento de prova, formulado por autoridade estrangeira (Procuradoria Geral da Federação da Rússia) no exercício de atividade inves-tigatória, dirigido à congênere autoridade brasileira (Procuradoria Geral da República), que obteve a referida prova também no exercício de atividade in-vestigatória extrajudicial. O compartilhamento de prova é uma das mais carac-terísticas medidas de cooperação jurídica internacional, prevista nos acordos bilaterais e multilaterais que disciplinam a matéria, inclusive na “Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional” (Convenção de Palermo), promulgada no Brasil pelo Decreto 5.015, de 12.03.04, e na

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“Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção” (Convenção de Mérida), de 31.10.03, promulgada pelo Decreto 5.687, de 31.01.06, de que a Fede-ração da Rússia também é signatária. Consideradas essas circunstâncias, bem como o conteúdo e os limites próprios da competência prevista no art. 105, I, i da Constituição, a cooperação jurídica requerida não dependia de expe-dição de carta rogatória por autoridade judiciária da Federação da Rússia e, portanto, nem de exequatur ou de outra forma de intermediação do Superior Tribunal de Justiça, cuja competência, conseqüentemente, não foi usurpada.

8. Reclamação improcedente.

VOTOO EXMO. SR. MINISTRO TEORI ALBINO ZAVASCKI (Relator):1. A reclamação, no STJ, é ação originária destinada à “preservação da

sua competência e garantia da autoridade de suas decisões” (CF, art. 105, I, f ). No caso concreto, observados esses limites, o que se tem como objeto específi co da controvérsia é a alegada confi guração, nos episódios descritos no relatório, de ato de usurpação da competência constitucional do STJ de conceder exequatur a cartas rogatórias (CF, art. 105, I, i). O que se deve deci-dir, portanto, é se o pedido formulado pela Procuradoria Geral da Federação Russa à Procuradoria Geral da República do nosso País — de envio de cópia do material probatório constantes de autos de ação penal em curso no Brasil (hards disks de computadores) —, estava ou não sujeito ao regime de carta rogatória e de exequatur pelo Superior Tribunal de Justiça.

A resposta a essa questão, de superior importância e atualidade, impõe exame de algumas premissas de ordem geral sobre o regime constitucional das relações internacionais e, mais especifi camente, do sistema de cooperação jurídica entre o Brasil e as demais Nações.

2. Em nosso regime constitucional, “compete à União (...) manter re-lações com estados estrangeiros” (art. 21, I), competência essa que é exer-cida, privativamente,pelo Presidente da República (CF, art. 84, VII), com observância dos princípios indicados no art. 4º da Constituição, a saber: “I — independência nacional; II — prevalência dos direitos humanos; III — autodeterminação dos povos; IV — não-intervenção; V — igualdade entre os Estados; VI — defesa da paz; VII — solução pacífi ca dos confl itos; VIII — repúdio ao terrorismo e ao racismo; IX — cooperação entre os povos para o progresso da humanidade; X — concessão de asilo político”.

A regra geral, portanto, é a de que as relações do Brasil com outros países são mantidas pelo Poder Executivo da União, que “é exercido pelo Presidente da República, auxiliado pelos Ministros de Estado” (CF, art. 76). Na área es-pecífi ca, o Presidente da República é auxiliado principalmente pelo Ministro de Estado das Relações Exteriores.

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Há certas relações internacionais, todavia, para as quais a Constituição exige o concurso ou a aprovação dos outros Poderes. Assim, embora seja de competência privativa do Presidente da República “celebrar tratados, con-venções e atos internacionais” (CF, art. 84, VIII), cabe ao Congresso Nacio-nal “resolver defi nitivamente sobre tratados, acordos ou atos internacionais que acarretem encargos ou compromissos gravosos ao patrimônio nacional” (CF, art. 49, I). Da mesma forma, a competência privativa do Presidente da República de “declarar guerra”, “celebrar a paz” e “permitir (...) que forças estrangeiras transitem pelo território nacional ou nele permaneçam tempo-rariamente” (CF, art. 84, XIX, XX e XXII), está subordinada à aprovação do Congresso Nacional (art. 49, II).

No que se refere ao Poder Judiciário, a sua participação nas relações in-ternacionais está prevista constitucionalmente nas hipóteses de pedidos de extradição e de execução de sentenças e de cartas rogatórias estrangeiras. As-sim, “Compete ao Supremo Tribunal Federal (...) processar e julgar, origina-riamente (...) a extradição solicitada por Estado estrangeiro” (CF, art. 102, I, g); “Compete ao Superior Tribunal de Justiça (...) processar e julgar origina-riamente (...) a homologação de sentenças estrangeiras e a concessão de exe-quatur às cartas rogatórias” (CF, art. 105, I, i); e “Aos Juízes federais compete processar e julgar (...) a execução de carta rogatória, após o exequatur, e de sentença estrangeira, após a homologação” (CF, art. 109, X).

O que interessa ao julgamento do caso concreto é justamente defi nir o conteúdo e os limites da competência do STJ inscrita na cláusula constitu-cional de “concessão de exequatur às cartas rogatórias”.

3. As relações entre Estados soberanos que têm por objeto a execução de sentenças e de cartas rogatórias representam uma classe muito peculiar de relações internacionais. Elas se estabelecem, em última análise, em razão da atividade dos órgãos judiciários de diferentes Estados soberanos e decorrem do princípio da territorialidade da jurisdição, inerente ao princípio da sobe-rania, segundo o qual a autoridade dos juízes (e, portanto, das suas decisões) não pode extrapolar os limites territoriais do seu próprio País. Assim, quando as sentenças e decisões devam ser cumpridas no território de outro Estado, a prestação jurisdicional dependerá, necessariamente, da cooperação estrangei-ra, o que explica o sistema de cooperação mútua que se estabelece no plano internacional. Em nosso sistema constitucional, conforme visto, os atos de órgãos judiciários estrangeiros, para serem aqui executados, dependem de um juízo de delibação do Superior Tribunal de Justiça, que tem competência para “homologação de sentenças” e para “concessão de exequatur” a cartas rogató-rias estrangeiras, cabendo, depois, aos Juízes Federais a correspondente “exe-cução”. Em qualquer caso, o juízo de delibação se dá mediante procedimento formado em contraditório, que, mesmo em se tratando de carta rogatória, supõe a participação dos interessados, a quem é assegurado direito de defesa,

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e do Ministério Público, com a faculdade de impugnar o pedido (Resolução STJ 9⁄2005, artigos 8º a 10).

O termo “exequatur” tem, nesse domínio jurídico, um signifi cado típico, historicamente bem sedimentado, assim enunciado por De Plácido e Silva: trata-se de “palavra latina, de exsequi, que se traduz execute-se, cumpra-se, empregada na terminologia forense para indicar autorização que é dada pelo Presidente do Supremo Tribunal Federal para que possam, validamente, ser executados, na jurisdição do juiz competente, as diligências ou atos proces-suais requisitados por autoridade jurídica estrangeira. O exequatur é dado na carta rogatória. E se distingue da homologação, que se apõe às sentenças estrangeiras, para que possam ser cumpridas no território nacional. Nesta circunstância, o exequatur se mostra um reconhecimento ou uma revalidação à carta rogatória para que possa ser atendida regularmente e devolvida ao juiz rogante, depois de devidamente cumprida” (SILVA, De Plácido e. Vocabu-lário Jurídico, 27ª ed., RJ: Forense, 2007, p. 580). Com a óbvia ressalva no que concerne à referência sobre competência (que hoje é do STJ e não mais do STF), esse sentido da palavra exequatur — designativo de cumpra-se dado pela autoridade de determinado país a uma decisão proferida por órgão ju-risdicional de outro país — é unívoco na linguagem jurídica, tanto no Brasil como em outros países. Confi rmam isso nossos dicionários e vocabulários especializados (veja-se, v.g., o verbete exequatur em: Dicionário Jurídico: Academia Brasileira de Letras Jurídicas, J.M. Othon Sidou, 9ª ed., RJ: Fo-rense Universitária, 2006, p.375; Dicionário Jurídico, vol. 2, Maria Helena Diniz, 2ª ed., SP: Saraira, 2005, p. 541; Novo Dicionário Jurídico Brasileiro, José Naufel, RJ: Forense, 2002, p. 479; Dicionário Jurídico Piragibe, Esther C. Piragibe Magalhães e Marcelo C. Piragibe Magalhães, RJ: Lumen Juris, 2007; Dicionário Básico de Direito Acquaviva, Marcus Cláudio Acquaviva, 5ª ed., SP: Ed. Jurídica Brasileira, 2004, p. 137; Vocabulário Enciclopédico de Tecnologia Jurídica e Brocardos Latinos, Iêdo Batista Neves, RJ: Forense, 1997, vol. I, p. 994; Dicionário de Tecnologia Jurídica, Pedro Nunes, 12ª ed., RJ: Freitas Bastos, 1990, p. 416; Latim no Direito, Ronaldo Caldeira Xavier, 5ª ed., RJ: Forense, 2002, p. 151). O mesmo sentido tem a palavra no direito estrangeiro, conforme se pode constatar, v.g., em: Nuovo Digesto Italiano, Mariano D’Amélio, Torino: Unione Tipografi co-Editrice Torinese, p. 739; Vocabulário Jurídico, Eduardo J. Couture, Buenos Aires: Depalma, 1991, p.273; Vocabulario Jurídico, Henri Capitant, tradução para o espanhol de Aquiles Horácio Guaglianone, Buenos Aires: Depalma, 1986, p.269). Ex-tremamente elucidativas, nesse aspecto, as anotações de José de Moura Rocha ao verbete exequatur, na Enciclopédia Saraiva do Direito, com uma resenha histórica do termo, a evidenciar que, desde o direito romano, ele está relacio-nado ao sistema de cumprimento, num determinado território, de decisões jurisdicionais emanadas de outro território (ROCHA, José de Moura. En-

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ciclopédia Saraiva do Direito, coordenação de Rubens Limongi França, SP: Saraiva, 1977, p.157-163). A rigor, o que denominamos de homologação de sentença estrangeira não deixa de signifi car um exequatur, em sentido amplo.

Também carta rogatória (ou carta rogatória internacional ou, simples-mente, rogatória) é expressão com sentido inconfundível: designa o “instru-mento itinerante com o qual, em obediência a convenção internacional ou com o concurso diplomático, a autoridade judiciária de um país solicita à de outro o cumprimento de determinadas providências processuais que estão fora de sua jurisdição. Diz-se ativa, quando a carta rogatória é encaminhada para cumprimento; e passiva, quando recebida para cumprimento” (Dicio-nário Jurídico: Academia Brasileira de Letras Jurídicas, J.M. Othon Sidou, cit., p. 89). É esse o signifi cado, de instrumento pelo qual o juiz de um país requisita, em outro país, o cumprimento de suas decisões, tanto nos textos normativos infraconstitucionais (v.g.: art. 201 do CPC, art. 783 do CPP, art. 225 do Regimento Interno do STF), quanto na doutrina nacional: Novo Dicionário Jurídico Brasileiro, José Naufel, cit., p. 201; Dicionário Jurídico, vol. 2, Maria Helena Diniz, cit., p. 611; Dicionário Jurídico Referenciado, Ivan Horcaio, SP: Primeira Impressão, 2006, verbete rogatória; Dicionário de Tecnologia Jurídica, Pedro Nunes, cit., p. 158). Signifi cado idêntico tem também no direito estrangeiro: Enciclopedia del Diritto, Giuff rè Editore, 1989, Vol. XLI, p. 97 e 113; Novissimo Digesto Italiano, Antonio Azara e Ernesto Eula, Torino: Unione Tipografi co-Editrice Torinese, vol. XVI, p. 252, verbete rogatorie; Vocabulário Jurídico, Eduardo J. Couture, cit., p. 136).

Não há dúvida, portanto, que, ao atribuir ao STJ a competência para a “concessão de exequatur às cartas rogatórias” (art. 105, I, i), a Constituição está se referindo, especifi camente, ao juízo de delibação consistente em apro-var ou não o pedido feito por autoridade judiciária estrangeira (“Juízos ou Tribunais estrangeiros”, segundo o art. 225 do Regimento Interno do STF) para cumprimento, em nosso país, de diligência processual requisitada por decisão do juiz rogante. É com esse sentido e nesse limite, portanto, que deve ser compreendida a referida competência constitucional.

4. Ocorre que o sistema de cooperação entre Estados soberanos vai muito além das relações decorrentes do cumprimento de atos de natureza juris-dicional, ou seja, de sentenças ou de decisões proferidas por seus juízes em processos judiciais. Mesmo no âmbito do que se costuma denominar, na linguagem do direito público internacional, de “cooperação jurídica interna-cional”, há uma gama enorme de medidas solicitadas por um a outro Estado soberano que não são, nem teria sentido algum que o fossem, oriundas ou intermediadas pelos órgãos ou autoridades do respectivo Poder Judiciário e que, portanto, não são, nem teria sentido algum que o fossem, submetidas ao procedimento da carta rogatória, com as formalidades próprias desse ins-

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trumento processual (DIPP, Gilson Langaro. Carta rogatória e cooperação internacional, Revista CEJ — Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal, n. 38, jul⁄set 2007, p. 40).

Embora não exclusivamente, é sobretudo na área da prevenção e da in-vestigação penal que medidas efi cazes e ágeis de cooperação entre as Nações se mostram indispensáveis. Ninguém desconhece que o moderno fenômeno da globalização e da cada vez mais estreita aproximação entre os povos e as Nações, na área econômica e em outras áreas, tornou propício e foi acompa-nhado também pelo fenômeno da criminalidade transnacional. Atualmente, é realidade corriqueira a ocorrência de delitos com características internacio-nais, seja em seus atos preparatórios, seja em sua execução, seja em sua consu-mação ou nas suas conseqüências. O crime e o produto do crime transitam, hoje, com singular agilidade — e facilidade — entre as fronteiras físicas e as barreiras jurídicas de controle e fi scalização. Proclama-se, por isso mesmo, no meio jurídico, a necessidade urgente de atualização, inclusive no plano normativo, dos métodos tradicionais, a fi m de propiciar aos Estados meios adequados e idôneos de enfrentamento dessa nova realidade (FRANCO, Al-berto Silva, e STOCO, Rui. Código de Processo Penal e sua interpretação jurisprudencial, vol. 5, 2ª ed., SP: Editora Revista dos Tribunais, p. 923-5; PEREIRA NETO, Pedro Barbosa. Cooperação penal internacional nos deli-tos econômicos, Revista Brasileira de Ciências Criminais, n. 54, maio-junho de 2005, p. 154; BRAGA, Rômulo Rhemo Palito. Aspectos político-crimi-nais sobre branqueio de capital, Revista de Informação Legislativa, n. 165, janeiro⁄março de 2005, p. 99.)

Justamente por isso, tornou-se preocupação geral das Nações e dos Orga-nismos Internacionais a adoção de medidas de cooperação mútua para a pre-venção, a investigação e a punição efetiva de delitos dessa espécie, o que tem como pressuposto essencial e básico um sistema efi ciente de comunicação, de troca de informações, de compartilhamento de provas e, mesmo, de tomada de decisões e de execução de medidas preventivas, investigatórias, instrutórias ou acautelatórias, de natureza extrajudicial. O sistema da cooperação jurídica internacional não exclui, evidentemente, as medidas de cooperação entre os órgãos judiciários, pelo regime das cartas precatórias, no âmbito de processos já submetidos à esfera jurisdicional. Mas, além delas, conforme já enfatizado, a cooperação mútua engloba outras muitas providências que até podem, se for o caso, dar ensejo a futuras ações penais, mas enquanto circunscritas ao âmbito da prevenção e da investigação, não exigem prévia aprovação ou a intermediação judicial para serem executadas. Exigência dessa natureza não existe no plano do direito interno, nem há razão para existir no plano do direito internacional.

Realmente, no direito brasileiro, como na maioria dos países, a atividade de prevenção e investigação de delitos, que não têm natureza jurisdicional,

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não está afeta ao Poder Judiciário, mas sim às autoridades policiais ou do Ministério Público, vinculadas ao Poder Executivo. Aliás, a natureza da ati-vidade jurisdicional — submetida, como regra, a procedimentos formais, públicos e em regime de contraditório —, não é adequada e nem compatível com atividades tipicamente policiais, como essas a que nos referimos ago-ra, de prevenção e investigação criminal. Em nosso sistema, apenas algumas medidas dessa natureza dependem de prévia aprovação judicial, como é o caso das que demandam ingresso em domicílio individual, ou quebra de si-gilo das comunicações telefônicas, telegráfi cas ou de dados (CF, art. 5º, XI e XII). Excetuadas hipóteses dessa natureza, não há razão alguma, mesmo em se tratando de investigações ou de medidas de prevenção levadas a efeito em regime de cooperação internacional, “jurisdicionalizar” tais atividades, submetendo-as à intermediação ou à prévia delibação dos órgãos do respec-tivo Poder Judiciário.

Por levar em conta tais circunstâncias, o sistema de cooperação jurídica internacional de que o Brasil faz parte retrata e respeita o sistema de compe-tências e de atribuições adotados no plano do direito interno, preservando estrita e integralmente as competências constitucionais do Poder Judiciário, inclusive no que se refere ao controle jurisdicional da legitimidade dos atos praticados pelos órgãos e autoridades envolvidos.

5. Com efeito, as relações internacionais, no âmbito do que se denomina, genericamente, de cooperação jurídica, estão previstas, fundamentalmente, em normas de direito público internacional, estabelecidas em acordos bila-terais, regionais e multilaterais, que têm proliferado fecundamente em todo o mundo nas últimas décadas. No âmbito bilateral, o Brasil mantém, apenas para citar os mais recentes, acordos de cooperação jurídica em matéria pe-nal com a Itália (Decreto 862, de 09.07.93), com a França (Decreto 3324, de 09.07.93), com Portugal (Decreto 1.320, de 30.11.94), com o Paraguai (Decreto 139, de 29.11.95), com os Estados Unidos da América (Decreto 3.810, de 02.05.2001), com a Colômbia (Decreto 3.895, de 23.08.2001), com o Peru (Decreto 3.988, de 29.10.81), com a República Popular da Chi-na (Decreto 6.282, de 03.12.07), com Cuba (Decreto 6.462, de 21.08.08), entre outros. No âmbito multilateral, além dos diversos acordos em maté-ria de cooperação civil, pode-se mencionar como relevantes: no âmbito do Mercosul, o “Protocolo de Assistência Jurídica Mútua em Assuntos Penais”, promulgado no Brasil pelo Decreto 3.468, de 17.05.2000; no âmbito da Organização dos Estados Americanos (OEA), a “Convenção Iteramericana contra a Corrupção” (Decreto 4.410, de 07.10.02), a “Convenção Interame-ricana contra o Terrorismo” (Decreto 5.639, de 07.10.02) e especialmente a “Convenção Interamericana sobre Assistência Mútua em Matéria Penal”, re-centemente promulgada (Decreto 6.340, 03.01.08); e, no âmbito das Nações Unidas, além da já referida “Convenção das Nações Unidas contra a Cor-

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rupção” (Convenção de Mérida), de 31.10.03, promulgada no Brasil pelo Decreto 5.687, de 31.01.06, merece destaque também a “Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional” (Convenção de Palermo), promulgada entre nós pelo Decreto 5.015, de 12.03.04. Particular realce merecem esses dois últimos documentos multilaterais, porque neles — mais especifi camente, no artigo 46 e seus trinta incisos da Convenção de Mé-rida e no art. 18 e seus trinta incisos da Convenção de Palermo — está disci-plinado detalhadamente um sistema de cooperação jurídica aplicável entre os Estados Partes sempre que não exista (ou se opte por não aplicar) um sistema específi co previsto em outro tratado (art. 46.7 e art. 18.7, respectivamente).

O conjunto dessas normas internacionais sobre cooperação jurídica evi-dencia claramente a preocupação das Nações e dos Organismos Internacio-nais em estabelecer novos paradigmas de assistência mútua nessa área, a fi m de enfrentar, com agilidade e efi ciência, os graves problemas de aplicação das leis, especialmente das leis penais, numa realidade mundial globalizada. Ilustram essa preocupação os considerandos estampados no preâmbulo da Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção, de 31.10.03, já referida, recentemente promulgada no Brasil (Decreto 5.687, de 31.01.06), que aler-tam: “(...) a corrupção deixou de ser um problema local para converter-se em um fenômeno transnacional que afeta todas as sociedades e economias”, fazendo “necessária a cooperação internacional para preveni-la e lutar contra ela”, o que “requer um enfoque amplo e multidisciplinar para prevenir e combater efi cazmente” a sua propagação, bem como para “prevenir, detec-tar e dissuadir com maior efi cácia as transferências internacionais de ativos adquiridos ilicitamente e a fortalecer a cooperação internacional para a re-cuperação destes ativos”. Consideram, também, que “a prevenção e a erra-dicação da corrupção são responsabilidades de todos os Estados e que estes devem cooperar entre si, com o apoio e a participação de pessoas e grupos que não pertencem ao setor público, como a sociedade civil, as organizações não-governamentais e as organizações de base comunitárias, para que seus esforços neste âmbito sejam efi cazes”. Daí o solene compromisso, estabele-cido no art. 46:

“1. Os Estados Partes prestar-se-ão a mais ampla assistência judicial recí-proca relativa a investigações, processos e ações judiciais relacionados com os delitos compreendidos na presente Convenção. 2. Prestar-se-ão assistência judicial recíproca no maior grau possível, conforme as leis, tratados acordos e declarações pertinentes do Estado Parte requerido com relação a investiga-ções, processos e ações judiciais relacionados com os delitos dos quais uma pessoa jurídica pode ser considerada responsável em conformidade com o artigo 26 da presente Convenção no Estado Parte requerente”.

Compromisso semelhante foi assumido pelos Estados Partes da Conven-ção de Palermo (art. 18.1 e 2).

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6. A cooperação jurídica internacional estabelecida no conjunto de acor-dos regionais e multilaterais de que o Brasil é parte, adota, em linhas gerais, um modelo padronizado em nível internacional, que tem como caracte-rística importante a indicação, em cada Estado-Parte, de uma “autoridade central”, responsável pelo trâmite burocrático dos pedidos de assistência em face de outro Estado-Parte, tanto no que diz respeito à cooperação passiva (recebimento de pedidos), quanto à cooperação ativa (formulação de pe-didos). É o que consta, v.g., do art. 46.13 da Convenção de Mérida, do art. 18.13 da Convenção de Palermo e, no âmbito regional, do art. 3º do “Protocolo de Assistência Jurídica Mútua em Assuntos Penais — Mercosul”, (Decreto 3.468, de 17.05.2000). A indicação de “autoridade central” é téc-nica adotada há mais tempo no plano internacional, como se pode consta-tar, v.g., na Convenção de Haia (art. 6º), sobre “Aspectos civis do seqüestro internacional de crianças”, de 1980, promulgada no Brasil pelo Decreto 3.087, de 21.06.99 (que indicou como sua autoridade central, nessa área, a Secretaria Especial de Direitos Humanos — SEDH da Presidência da Re-pública). No que se refere aos acordos bilaterais de cooperação jurídica, o Brasil indicou o Ministério da Justiça como a sua “autoridade central” (v.g.: art. 2º do Tratado fi rmado com a República Popular da China — Decreto 6.282⁄2007; art. III do Tratado fi rmado com a República da Colômbia — Decreto 3.895⁄2001; art. II do Tratado fi rmado com os Estados Unidos da América — Decreto 3.810⁄2001). Para o desempenho dessa função, o Mi-nistério da Justiça dispõe, em sua estrutura administrativa, do Departamen-to de Recuperação de Ativos e Cooperação Jurídica Internacional — DRCI, vinculado à Secretaria Nacional de Justiça (Decreto 6.061, de 15.03.07). Cumpre a essa autoridade central, entre outras atividades, o gerenciamen-to dos pedidos de cooperação jurídica internacional, inclusive no que diz respeito à sua adequada instrução, segundo as exigências estabelecidas nos acordos internacionais, e a coordenação da sua execução pelas autoridades nacionais ou estrangeiras competentes.

Outra característica importante desse sistema padronizado de cooperação jurídica é o do estrito respeito às normas de direito interno de cada Estado-Parte, o que inclui cláusula de recusa à assistência quando o pedido for in-compatível com essas normas. É o que decorre claramente dos vários incisos dos já referidos art. 46 da Convenção de Mérida (“Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção”) e art. 18 da Convenção de Palermo (“Con-venção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional”. No mesmo sentido é o artigo 7 do “Protocolo de Assistência Jurídica Mútua em Assuntos Penais — Mercosul”:

“1. O processamento das solicitações será regido pela lei do Estado reque-rido e de acordo com as disposições do presente Protocolo. 2. A pedido do Estado requerente, o Estado requerido cumprirá a assistência de acordo com

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as formas e procedimentos especiais indicados na solicitação, a menos que esses sejam incompatíveis com sua lei interna”.

Portanto, as providências de cooperação solicitadas por autoridades es-trangeiras serão atendidas pelas autoridades nacionais com observância dos mesmos padrões, inclusive dos de natureza processual, que devem ser obser-vados para as providências semelhantes no âmbito interno, tudo sujeito a controle pelo Poder Judiciário, por provocação de qualquer interessado, que poderá utilizar, para isso, os instrumentos processuais, inclusive os recursais, previstos no ordenamento comum.

As diligências passíveis de solicitação mútua entre os Estados Partes, em re-gime de cooperação internacional (indicadas, v.g, no art. 18.3 da Convenção de Palermo, no art. 46.3 da Convenção de Mérida e no art. 2 do “Protocolo de Assistência Jurídica Mútua em Assuntos Penais — Mercosul”), consistem, em grande número, de providências que, no âmbito do direito interno, não têm natureza necessariamente jurisdicional, ou seja, podem ser produzidas sem prévia autorização do Poder Judiciário. Todavia, nos casos em que o direito interno exige tal autorização, o Estado Parte requerido fi ca compro-metido e autorizado a requerer essa medida junto aos órgãos jurisdicionais nacionais, atuação que representa uma importante modalidade de coopera-ção jurídica. Pode-se dizer que, nessas circunstâncias, o Estado requerido atua em regime semelhante ao da substituição processual: requer em nome pró-prio para atender solicitação de outro Estado. Nesse sentido, tem signifi cativa importância, no âmbito do direito brasileiro, o papel do Ministério Público Federal e da Advocacia Geral da União, órgãos com capacidade postulatória para requerer, em nome do Estado brasileiro, perante o Judiciário, as medidas de cooperação internacional que, no âmbito interno, estão sujeitas a controle judicial (v.g.: quebra de sigilo). Foi justamente para disciplinar sua atuação que esses órgãos, juntamente com o Ministério da Justiça, editaram a Porta-ria Conjunta nº 1, de 27.10.2005 (“Dispõe sobre a tramitação de pedidos de cooperação jurídica internacional em matéria penal entre o Ministério da Justiça, o Ministério Público Federal e a Advocacia Geral da União”).

Bem se percebe, pois, que as relações internacionais de cooperação e assis-tência mútua na área jurídica, vão muito além das estabelecidas entre os órgãos jurisdicionais dos Estados, sujeitas a regime de exequatur e, portanto, à inter-mediação do Superior Tribunal de Justiça. Segundo decorre do sistema previsto nos diversos acordos internacionais fi rmados pelo Brasil, as relações de coope-ração e assistência são estabelecidas também entre autoridades não judiciais, integrantes do Poder Executivo, competentes para atuar nas áreas de prevenção e de investigação de ilícitos civis e penais de caráter transnacional, como é o caso das autoridades de fi scalização, das polícias e do Ministério Público.

7. Em nosso direito interno, são escassas as disposições legislativas especí-fi cas sobre as relações internacionais em matéria judiciária. As que existem,

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dizem respeito exclusivamente a homologação de sentenças estrangeiras ou a cumprimento de cartas rogatórias expedidas por órgãos do Judiciário. Ou seja, regulam relações estabelecidas no âmbito de processos de natureza ju-risdicional já em curso. É o caso, no processo penal, dos artigos 780 a 790 do CPP, e, no processo civil, dos artigos 201, 202, 210 a 212 e 483 e 484 do CPC. Todavia, no que se refere às relações internacionais de cooperação e assistência jurídica em atividades que não dependem da participação do Ju-diciário ou que ainda não estão sujeitas à sua intervenção (v.g., a prevenção e a investigação de ilícitos), o legislador nacional nada dispôs a respeito. O que se tem, nessa área, é, portanto, a regulação prevista em normas oriundas dos tratados e convenções, já referidas.

Essa circunstância, embora tenha o inconveniente próprio de não esta-belecer uma sistematização clara e uniforme da matéria (o que poderia ser superado pela intervenção do legislador nacional), não retira do sistema de cooperação jurídica a sua força normativa, nem autoriza que se lhe negue a devida observância. Conforme reiterada jurisprudência do STF (v.g.: RE 80.004, Min. Cunha Peixoto, RTJ 83⁄809-848; PPex 194, Min. Sepúlveda Pertence, DJ de 04.04.97, RTJ 177⁄43; Ext 795, Min. Sepúlveda Pertence, DJ de 06.04.01), os tratados e convenções internacionais de caráter norma-tivo, “(...) uma vez regularmente incorporados ao direito interno, situam-se, no sistema jurídico brasileiro, nos mesmos planos de validade, de efi cácia e de autoridade em que se posicionam as leis ordinárias”, inclusive para efeito de controle difuso ou concentrado de constitucionalidade (STF, ADI-MC 1480-3, Min. Celso de Mello, DJ de 18.05.2001), com efi cácia revogató-ria de normas anteriores de mesma hierarquia com eles incompatíveis (lex posterior derrogat priori). Aliás, após a Emenda Constitucional 45⁄2004, es-sas fontes normativas internacionais alçam-se até à estatura constitucional, quando dispõem sobre direitos humanos e são aprovadas em dois turnos, por três quintos dos votos dos membros das Casas do Congresso Nacional (art. 5º, § 3º da Constituição). Isso signifi ca dizer que, salvo se declarados incons-titucionais, os tratados e convenções aprovados e promulgados pelo Brasil (como é o caso desses todos os acima referidos), devem ser fi elmente cum-pridos por seus destinatários. No que diz respeito especifi camente aos órgãos jurisdicionais, não se admite, porque então sim haverá ofensa à Constituição, seja negada aplicação, pura a simplesmente, a preceito normativo, sem antes declarar formalmente a sua inconstitucionalidade. Conforme prevê a súmula vinculante 10⁄STF, “viola a cláusula de reserva de plenário (CF, artigo 97) a decisão de órgão fracionário de Tribunal que, embora não declare expressa-mente a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do Poder Público, afasta a sua incidência, no todo ou em parte”.

No que concerne ao sistema de cooperação jurídica internacional, é im-portante que se tenha consciência da necessidade de uma posição clara a

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respeito: ou se adota o sistema estabelecido nos compromissos internacionais, ou, se inconstitucional, não se adota, caso em que será indispensável, além da sua formal declaração interna de inconstitucionalidade, também denunciar, no foro internacional próprio, os tratados e convenções assinados e promul-gados. O não cumprimento desses compromissos, é fácil perceber, acaba afe-tando o funcionamento do sistema como um todo, tanto no que diz respeito aos deveres de cooperação passiva que tem o Brasil em relação à comunidade das Nações, quanto no que diz com o atendimento dos interesses nacionais, nos pedidos de cooperação ativa formulado por autoridades brasileiras. Sob esse aspecto, é preocupante a constatação de que são muitas as solicitações de assistência jurídica, via rogatória, encaminhadas pelo Brasil, que acabam não recebendo acolhida pelos Estados requeridos porque formuladas sem ob-servância do sistema estabelecido pelos acordos internacionais (CABRAL, Maria Cláudia Canto. Anais do Seminário sobre Cooperação Judiciária e Combate à Lavagem de Dinheiro, publicação da Associação dos Juízes Fede-rais — AJUFE, p. 101⁄2;SILVA, Ricardo Perlingeiro Mendes da. Anotações sobre o Anteprojeto de Lei sobre Cooperação Jurídica Internacional, Revista de Processo, n. 129, novembro de 2005, p. 135).

8.Pois bem, não se argüiu aqui a inconstitucionalidade de qualquer dos tratados e convenções internacionais sobre a cooperação jurídica, nem das suas cláusulas que estabelecem formas de cooperação entre autoridades encar-regadas da prevenção ou da investigação penal, no exercício das suas funções típicas, sem expedição de carta rogatória ou da participação ou intermediação de órgãos do poder judiciário. Nem há razão para declarar a inconstitucio-nalidade, v.g., do art. 46 da Convenção de Mérida (“Convenção das Na-ções Unidas contra a Corrupção”) ou do art. 18 da Convenção de Palermo (“Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacio-nal”. Certamente não se pode afi rmar que o sistema de cooperação jurídica neles estabelecido seja incompatível com a norma constitucional do art. 105, I, i, que fi xa a competência do STJ para conceder exequatur a cartas rogató-rias. Esse dispositivo da Constituição, conforme já enfatizado, simplesmente fi xa a competência do STJ para intervir numa forma peculiar de cooperação internacional, estabelecida entre órgãos jurisdicionais e com objeto específi co de viabilizar a execução de ato jurisdicional estrangeiro. Como toda norma sobre competência de tribunal superior, essa também deve ser interpretada restritivamente (SILVA, Ricardo Perlingeiro Mendes da. Cooperação jurídica internacional e auxílio direito, Revista CEJ — Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal, n. 32, março de 2006, p. 77). Não se pode ver nesse dispositivo a instituição de um monopólio universal do STJ na área de cooperação jurídica, razão pela qual a competência nele estabelecida não impede nem é incompatível com outras formas de cooperação jurídica inter-

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nacional, que prescindem da intermediação ou da participação do Superior Tribunal de Justiça.

9. No caso concreto, conforme exposto no relatório, o que se tem é pedido de cooperação jurídica consistente em compartilhamento de prova, formula-do por autoridade estrangeira no exercício de atividade investigatória, dirigi-do à congênere autoridade brasileira, que obteve a referida prova também no exercício de atividade investigatória extrajudicial. O compartilhamento de prova é uma das mais características medidas de cooperação jurídica interna-cional, iterativamente prevista nos acordos bilaterais e multilaterais que dis-ciplinam a matéria (v.g.: Convenção de Mérida, art. 46.3; Convenção de Pa-lermo, art. 18, 3). A Procuradoria Geral da República da Federação da Rússia está conduzindo, naquele país, investigações sobre possíveis ilícitos penais lá praticados pelo ora reclamante, o cidadão russo Bóris Berezovsky. Como pro-vidência investigatória, dirigiu à Procuradoria Geral da República do Brasil pedido de fornecimento de cópia hard disk do computador apreendido em poder do investigado em diligências promovida pela autoridade requerida, que também investiga a participação do mesmo cidadão em ilícitos pratica-dos no Brasil. O pedido foi submetido à consideração do Juízo Federal ora reclamado, quando do oferecimento de denúncia para instauração de ação penal, por parte do Ministério Público Federal. Invocando os compromissos de cooperação jurídica decorrentes da “Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional” (Convenção de Palermo) e da “Conven-ção das Nações Unidas contra a Corrupção” (Convenção de Mérida), de que a Federação da Rússia também é signatária, o juiz deferiu o pedido.

Consideradas essas circunstâncias, bem como o conteúdo e os limites pró-prios da competência prevista no art. 105, I, i da Constituição, antes deli-neados, o que se tem presente é hipótese de cooperação jurídica não sujeita a carta rogatória ou a exequatur, nem de outra forma de intermediação do Superior Tribunal de Justiça, cuja competência, portanto, não foi usurpada. Conseqüentemente, a legitimidade do ato impugnado não está sujeita a con-trole por via de reclamação, mas sim pelos meios recursais comuns, dos quais deverá o interessado socorrer-se, caso assim o desejar.

10. Ante o exposto, julgo improcedente a reclamação, revogando a limi-nar. É o voto.

RECLAMAÇÃO Nº 2.645 — SP (2007⁄0254916-5)RELATOR: MINISTRO TEORI ALBINO ZAVASCKIRECLAMANTE: BÓRIS ABRAMOVICH BEREZOVSKYADVOGADO: ALBERTO ZACHARIAS TORON E OUTRO(S)RECLAMADO: JUIZ FEDERAL DA 6A VARA CRIMINAL DA SE-

ÇÃO JUDICIÁRIA DO ESTADO DE SÃO PAULOINTERES.: MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL

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VOTOEXMO. SR. MINISTRO CASTRO MEIRA: Sr. Presidente, recebi do

eminente Ministro Relator o texto integral do voto. Como bem ressaltou, o que está em causa é verifi car se houve, nesse ato praticado pelo MM. Juiz da 6ª Vara Criminal do Estado de São Paulo, ofensa à competência privativa do Superior Tribunal de Justiça, no que diz respeito à concessão de exequatur.

Nesse ponto, comungo com o eminente Ministro Relator de que essa con-cessão pedida, sempre em cartas rogatórias, não constitui a única forma de cooperação internacional; ao contrário, o Brasil é signatário de diversos atos internacionais, destacando-se a Convenção das Nações Unidas contra o Cri-me Organizado Transnacional e a Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção.

No caso, o que se verifi cou, na verdade, foi um mero ato de cooperação no sentido de fornecimento de cópia de prova existente em autos à disposição de S. Exa., de tal modo que não houve, no meu entender, qualquer ofensa à competência deste Tribunal, no que diz respeito à concessão de exequatur.

Ante o exposto, julgo improcedente a reclamação, acompanhando o voto Ministro Relator.

É como voto.RECLAMAÇÃO Nº 2.645 — SP (2007⁄0254916-5)

VOTOEXMO. SR. MINISTRO MASSAMI UYEDA:Sr. Presidente, acompanho o voto do Sr. Ministro Relator que, com per-

cuciência, analisou a questão. Não se circunscreve nenhuma hipótese de afe-rimento ou arranhamento à competência do Superior Tribunal de Justiça.

Julgo improcedente a reclamação.

Ministro MASSAMI UYEDA

VOTO-VISTA

MINISTRA MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA:

Na sessão do dia 17 de setembro, pedi vista dos autos para melhor análise do tema tratado.

Peço vênia, nesta oportunidade, para reproduzir a exposição realizada pelo Ilustre relator, verbis:

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“Trata-se de reclamação apresentada por Boris Abramovich Berezovsky, ao fundamento de que o Juiz da 6ª Vara Federal Criminal da Subsecção Judici-ária de São Paulo, SP, nos autos do Processo 2006.61.81.008647-8, usurpou a competência do Superior Tribunal de Justiça, defi nida no art. 105, I, i, da CF⁄88, para a concessão de exequatur a cartas rogatórias. A usurpação consis-tiu na decisão de autorizar, a pedido do Ministério Público Federal, a remessa de cópia do ‘hard disk do computador apreendido em poder de Boris Berezo-vsky’ para a Procuradoria Geral da Federação Russa” (fl . 08), em atendimento a ofício encaminhado pelo Vice-Procurador Geral daquele país.

Sustenta o reclamante, em síntese, que (a) o exercício da cooperação jurídi-ca internacional não prescinde do controle da legalidade e admissibilidade do ato no território nacional, o que se dá por via de carta rogatória sujeita a exe-quatur pelo STJ; (b) ainda que o parágrafo único do art. 7º da Resolução⁄STJ nº 9, de 05⁄05⁄2005, preveja o “cumprimento por auxílio direto” nos casos de “pedidos de cooperação jurídica internacional que tiverem por objeto atos que não ensejem juízo de delibação”, está assentado na jurisprudência do STF (Rcl 1819) a indispensável observância das formalidades relativas a carta rogatória e seu endosso; (c) no caso dos autos, além de não haver tratado de cooperação internacional entre o Brasil e a Federação Russa, o pedido foi encaminhado por ofício subscrito pelo Vice-Procurador Geral daquele País (e não por autoridade judiciária) diretamente ao Ministério Público Fede-ral brasileiro, não havendo prova de autenticidade dos documentos (eis que não tramitaram pela via diplomática e nem foram objeto de chancela con-sular), inexistindo, sequer, tradução para o vernáculo (foram “apresentados em idioma russo e inglês” — fl . 04). Alegando, assim, o desatendimento “de todas as regras que regulam os atos de cooperação judicial com autoridade estrangeira em matéria penal” (fl . 14), especialmente o disposto no art. 105, I, i, da Constituição e nos artigos 780 e seguintes do CPP, postula (a) diante da iminência de dano irreparável, “seja determinada a imediata suspensão da execução da decisão proferida pela autoridade ora reclamada que deferiu o envio ao Ministério Público russo das cópias dos hards disks dos compu-tadores apreendidos em posse de Boris Abramovich Berezovsky, nos autos n. 2006.61.81.00511-8⁄ Apenso VII (doc. 3), ofi ciando-se especialmente a embaixada da Federação Russa para que se abstenha de remeter tal material à Federação Russa ou, tendo-os remetido, que providencie de imediato a sua devolução até a decisão fi nal desta Reclamação” (fl . 15); (b) a procedência da presente reclamação com a cassação defi nitiva da decisão impugnada.

Por decisão de fl s. 652-653 (v. 3), a liminar foi deferida para suspender o cumprimento do ato atacado até o julgamento da presente reclamação.

Prestando as informações (fl s. 663⁄676), noticia a autoridade reclamada que tramita no juízo reclamado ação penal contra o reclamante e outros acu-sados, com denúncia recebida em 11⁄07⁄2007, pela prática do crime descrito

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no “art. 288 do Código Penal, bem como da ocultação da origem e da pro-priedade de valores oriundos da prática de crimes contra a Administração Pública e praticados por organização criminosa” (fl . 664), e acrescenta:

“O Ministério Público Federal ao oferecer a denúncia postulou a formação de Apenso com os documentos (em russo e em inglês) encaminhados ao Pro-curador Geral da República pela Procuradoria Geral da República da Fede-ração da Rússia, bem como das respectivas traduções públicas (fl s. 163⁄165).

Na cota introdutória ao despacho de recebimento daquela peça (fl s. 167⁄168), este Juízo determinou a formação de Apensos com os aludidos documentos, que receberam a seguinte denominação: ‘Apensos XII e XIII’. Restou deferido no item ‘c’ da decisão exarada às fl s. 169⁄214 o pedido tam-bém formulado pelo Parquet Federal para encaminhamento de cópia dos hard disks à Procuradoria Geral da Federação da Rússia, nos termos em que requerido por aquela Autoridade.

Referidos aparelhos estavam na Diretoria de Inteligência da Polícia Fe-deral em Brasília para realização de perícia e foram apreendidos em maio de 2006, em poder de Boris Abramovich Berezovisk, por força de decisão que determinou a realização de Busca e Apreensão, bem como a expedição de Mandado de Condução Coercitiva do então investigado até a sede da Pro-curadoria da República, nesta capital, para que prestasse depoimento sobre os fatos em apuração no Brasil relacionados, em tese, ao crime de quadrilha (art. 288, C.P.), dada a suposta associação do investigado e de outras pes-soas, com o propósito estável e permanente de cometer crime de ‘lavagem’ de valores, valendo-se da parceria celebrada entre a MSI e o Sport Club Corinthians Paulista.

Por ocasião da apreensão, considerou-se, também, o fato de ter o investi-gado ingressado no Brasil utilizando-se do nome Platon Ilyich Yelenin, bem ainda por estar incluído na ‘Difusão Vermelha’ expedida pela Interpol para localização e Prisão Preventiva com fi ns Extradicionais, não obstante até aquele momento o referido Mandado não tivesse trâmite no Brasil com vis-tas à sua homologação pelo Colendo Supremo Tribunal Federal (fl s. 932⁄934, 1052, 1057⁄1060, 1061, 1063⁄1064, 1065⁄1072, 1082⁄1084, 1092, 1094 e 1098 dos autos n.º 2006.61.81.005118-0⁄Apenso VII, distribuídos por de-pendência à Ação Penal).

Por meio do ofi cio n.º 1040⁄2007-rba, datado de 28.09.2007, foram as aludidas cópias encaminhadas ao Excelentíssimo Senhor Embaixador da Rússia no Brasil, Sua Exa. Wladimir Turdenev, a fi m de serem remetidos à Procuradoria Geral da Rússia (cf. fl . 75 do Apenso formado nos termos da Portaria n.º 18⁄2005 deste Juízo).

A Federação Russa, assim como o Brasil, é signatária da Convenção ONU contra a Corrupção, conhecida como Convenção de Mérida, cidade mexica-na onde ocorreu sua assinatura, tendo sido fi rmada, por 150 países, dos quais

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95 já a internacionalizaram, destacando-se ainda dentre eles, Argentina, Aus-trália, Espanha, Estados Unidos da América, China, França e Reino Unido.

O procedimento adotado por este Juízo ao atender ao pleito formulado pelo órgão ministerial observou o rito estabelecido pela aludida Convenção, notadamente no capítulo relativo à Cooperação Internacional, em seus arti-gos 43, 46, dentre outros, bem como pela Convenção ONU de Palermo, de 2000, quanto ao Crime Organizado Transnacional, em especial, nos artigos 18, 27 e 28. E assim o fez, sem desatender o ordenamento jurídico interno, porquanto se atentou também para a forma preconizada pelo parágrafo único do art. 7° da Resolução n.º 09, de 04.05.2005, da Presidência dessa Colenda Corte, a saber:

‘Art. 7° As cartas rogatórias podem ter por objeto atos decisórios ou não decisórios.

Parágrafo único. Os pedidos de cooperação jurídica internacional que tiverem por objeto atos que não ensejem juízo de delibação pelo Superior Tribunal de Justiça, ainda que denominados como carta rogatória, serão en-caminhados ou devolvidos ao Ministério da Justiça para as providências ne-cessárias ao cumprimento por auxilio direto’ (grifos nossos).

A assistência direta, s.m.j., decorre tanto da aplicação do rito das Con-venções de Mérida e Palermo quanto da natureza da medida pleiteada pelo Ministério Público Federal, sem contar o preceito da reciprocidade do qual se baseiam, na ausência de normativo, as relações internacionais. Por isso não se aventou ser o caso de concessão de exequatur na forma estabelecida no artigo 105, inciso I, alínea ‘i’, da C.F.

Aliás, a Convenção de Palermo preceitua o dever de assistência judiciária recíproca entre as Partes quando o Estado Requerente tiver motivos razoáveis para suspeitar que a infração tenha caráter transnacional, com previsão do dever de ser prestada toda cooperação jurídica (artigo 18, itens 1 e 2), bem ainda a recomendação de se utilizar técnicas especiais de investigação, como a vigilância eletrônica (artigo 20, item 1). Prevê, ainda, o intercâmbio de infor-mações visando fornecer aos Estados Partes o conhecimento das tendências da criminalidade organizada no seu território, as circunstâncias em que opera e os grupos profi ssionais e tecnologias envolvidos, podendo, para tanto, haver compartilhamento entre si (artigo 28, itens 1 e 2), bem ainda, e em especial, o concurso para a detecção e vigilância das movimentações do produto do crime, de métodos de transferência, dissimulação ou disfarce destes produtos e de ‘luta contra a lavagem de dinheiro e outras infrações fi nanceiras’ (artigo 29, item 1, ‘d’).

O referido diploma internacional, já devidamente integrado como norma juridicamente efi caz no país, lastreia a investigação, e mais do que isso, con-cita os Estados Partes a reprimir de forma contundente organizações crimi-nosas transnacionais.

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As Convenções ONU contra o Crime Organizado Transnacional e contra a Corrupção, pode-se mesmo dizer, afi guram-se tentativa de todos os Estados soberanos de aniquilar grupos que deitam raízes em uma certa modalida-de delitiva que sistematicamente lança mão da obstrução à Justiça, além da prática de delitos que atentam à Administração Pública, havendo freqüente poder de intimidação. Trata-se, pois, de marcos jurídicos globais.

Não se tem notícia de realização de perícia nos hard disks, mas é impor-tante realçar que a prova documental em exame já constava dos autos que tramitam perante este Juízo, pois foi produzida em razão de diligência de Busca e Apreensão determinada pela Justiça Federal brasileira em maio de 2006 nos autos sob n.º 2006.61.81.005118-0⁄Apenso VII, como salientado anteriormente, e NÃO DECORREU de pedido formulado por autorida-de estrangeira, não sendo hipótese de juízo de delibação. Trata-se apenas de compartilhamento de prova legítima aqui produzida.

Na Reclamação apresentada perante essa Colenda Corte, o Reclamante sustenta também que os documentos estrangeiros ofi ciais ressentiriam-se de tradução para o vernáculo e de encaminhamento pela via diplomática ou autenticação consular para que produzissem efeitos no país em qualquer ins-tância, juízo ou tribunal, bem ainda postula a aplicação dos artigos 780 e ss. do C.P.P., e assim o fez também por ocasião da impetração do Habeas Corpus n.º 2007.03.00.091069-0.

Tal argumentação não caberia, s.m.j., no bojo da Reclamação que versaria apenas sobre competência usurpada. De qualquer forma no writ acima cita-do, que tem seu trâmite perante a Segunda Turma do Eg. T.R.F. da 3a Região, foi indeferida a liminar pela Eminente Relatora do Habeas Corpus, Sua Exa. a Des. Fed. Cecília Mello.

A documentação excogitada, em língua estrangeira, está acompanhada de tradução juramentada, dando pleno atendimento ao artigo 236 do C.P.P. Assim, nada de irregular pode ser atribuído à juntada de tais documentos ou afronta à disposição legal, já que se cuida de cópia fi el devidamente encami-nhada por órgão do Estado Russo.

Entende este Juízo não terem também aplicação as disposições cons-tantes dos artigos 780 e ss. do C.P.P., como aduz o Reclamante, por não se tratar in casu, de instrução de cartas rogatórias. Nada pode desmerecer as razões produzidas nos documentos que integram os autos, já que foi dado pleno atendimento às disposições do Código de Processo Penal, disposi-ções que regem a matéria. É importante aqui realçar que o Reclamante nas razões de sua impetração no referido writ reconheceu que o ‘... Código de Processo Penal não tenha disposição especifi ca a respeito das condições de admissibilidade de documentos estrangeiros destinados a fazer prova no processo penal...’ somente o exigindo expressamente em cartas rogatórias (fl s. 952⁄953).

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A admissibilidade dos documentos estrangeiros é regular, mormente con-siderando ter sido obtida de autoridade estrangeira a quem não se pode im-putar prática de ato ilegal ante a ausência de qualquer substrato mínimo que apontasse nesse sentido. Certo é que as recomendações internacionais hoje buscam a simplifi cação dos procedimentos e a cooperação internacional, desde que não exista, como é o caso, qualquer elemento para duvidar-se da autenticidade, e desde que não haja infringência ao ordenamento jurídico interno.

Não fosse por tudo isso, poder-se-ia ainda argumentar que o Reclamante é cidadão russo e vive no Reino Unido há longa data, circunstância que au-toriza concluir que tanto ele, quanto sua defesa constituída, detêm aptidão para o conhecimento do material probatório. Aliás, o citado artigo 236 da legislação processual nem mesmo obriga a tradução quando ela se apresentar desnecessária.

Embora não tenha este Juízo vislumbrado qualquer irregularidade em do-cumentação encaminhada pela Autoridade Russa, anotou-se em ocasião an-terior que se desejasse a Defesa poderia providenciar nova tradução dos docu-mentos a fi m de dirimir suas dúvidas. E assim o fez, já que solicitou a versão para o português dos documentos encartados às fl s. 08, 11 e 12 do Apenso n.º 12, tendo o pedido sido atendido pelo despacho exarado em 14.11.2007 (fl s. 1392 e 1400⁄1414).” (fl s. 665⁄669).

O Ministério Público Federal, em parecer de fl s. 797⁄802, opina pela im-procedência da Reclamação.

Em petição de fl s. 810⁄815 o reclamante reitera os fundamentos da inicial, salientando que o pedido, na reclamação, é restrito à suspensão do envio do material probatório do Brasil para a Federação Russa sem o devido exequatur desta Corte a carta rogatória.”

Acrescento à minuciosa exposição, o fato de que o feito, na origem, corre em segredo de justiça e a decisão do Ilustre Juiz do caso, quando da apreciação do pedido ministerial, encontra-se delineada no contexto do recebimento da denúncia oferecida contra o Reclamante. Veja-se o teor da decisão (fl . 617):

“c) Sejam confeccionadas cópias dos hard disks apreendidos nos autos n.º 2006.61.81.005118-0⁄Apenso VII, na forma do item 02 da cota ministerial. Ofi cie-se à Delegacia de Inteligência da DPF em Brasília solicitando o seu envio a este juízo para as providências.”

Feita a recondução do tema tratado, é momento de averiguar os parâme-tros do voto do Ilustre Relator, que entendeu por não conhecer da Recla-mação, haja vista não estar compreendida na competência deste Superior Tribunal de Justiça. Segundo Sua Excelência, no que foi acompanhado pelos Eminentes Ministros Castro Meira, Denise Arruda, Arnaldo Esteves Lima e Massami Uyeda, o caso não atrairia a hipótese de homologação de sentença estrangeira ou de exequatur em procedimento de carta rogatória.

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Destaque-se, como forma de reavivar a discussão, do posicionamento do eminente Relator alguns tópicos:

“A regra geral, portanto, é a de que as relações do Brasil com outros países são mantidas pelo Poder Executivo da União, que “é exercido pelo Presidente da República, auxiliado pelos Ministros de Estado” (CF, art. 76). Na área es-pecífi ca, o Presidente da República é auxiliado principalmente pelo Ministro de Estado das Relações Exteriores.

Há certas relações internacionais, todavia, para as quais a Constituição exige o concurso ou a aprovação dos outros Poderes. Assim, embora seja de competência privativa do Presidente da República “celebrar tratados, con-venções e atos internacionais” (CF, art. 84, VIII), cabe ao Congresso Nacio-nal “resolver defi nitivamente sobre tratados, acordos ou atos internacionais que acarretem encargos ou compromissos gravosos ao patrimônio nacional” (CF, art. 49, I). Da mesma forma, a competência privativa do Presidente da República de “declarar guerra”, “celebrar a paz” e “permitir (...) que forças estrangeiras transitem pelo território nacional ou nele permaneçam tempo-rariamente” (CF, art. 84, XIX, XX e XXII), está subordinada à aprovação do Congresso Nacional (art. 49, II).

No que se refere ao Poder Judiciário, a sua participação nas relações in-ternacionais está prevista constitucionalmente nas hipóteses de pedidos de extradição e de execução de sentenças e de cartas rogatórias estrangeiras. As-sim, “Compete ao Supremo Tribunal Federal (...) processar e julgar, origina-riamente (...) a extradição solicitada por Estado estrangeiro” (CF, art. 102, I, g); “Compete ao Superior Tribunal de Justiça (...) processar e julgar origina-riamente (...) a homologação de sentenças estrangeiras e a concessão de exe-quatur às cartas rogatórias” (CF, art. 105, I, i); e “Aos Juízes federais compete processar e julgar (...) a execução de carta rogatória, após o exequatur, e de sentença estrangeira, após a homologação” (CF, art. 109, X).

O que interessa ao julgamento do caso concreto é justamente defi nir o conteúdo e os limites da competência do STJ inscrita na cláusula constitu-cional de “concessão de exequatur às cartas rogatórias”. (...)

Não há dúvida, portanto, que, ao atribuir ao STJ a competência para a “concessão de exequatur às cartas rogatórias” (art. 105, I, i), a Constituição está se referindo, especifi camente, ao juízo de delibação consistente em apro-var ou não o pedido feito por autoridade judiciária estrangeira (“Juízos ou Tribunais estrangeiros”, segundo o art. 225 do Regimento Interno do STF) para cumprimento, em nosso país, de diligência processual requisitada por decisão do juiz rogante. É com esse sentido e nesse limite, portanto, que deve ser compreendida a referida competência constitucional.

4. Ocorre que o sistema de cooperação entre Estados soberanos vai muito além das relações decorrentes do cumprimento de atos de natureza juris-dicional, ou seja, de sentenças ou de decisões proferidas por seus juízes em

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processos judiciais. Mesmo no âmbito do que se costuma denominar, na linguagem do direito público internacional, de “cooperação jurídica interna-cional”, há uma gama enorme de medidas solicitadas por um a outro Estado soberano que não são, nem teria sentido algum que o fossem, oriundas ou intermediadas pelos órgãos ou autoridades do respectivo Poder Judiciário e que, portanto, não são, nem teria sentido algum que o fossem, submetidas ao procedimento da carta rogatória, com as formalidades próprias desse ins-trumento processual (DIPP, Gilson Langaro. Carta rogatória e cooperação internacional, Revista CEJ — Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal, n. 38, jul⁄set 2007, p. 40).

Embora não exclusivamente, é sobretudo na área da prevenção e da in-vestigação penal que medidas efi cazes e ágeis de cooperação entre as Nações se mostram indispensáveis. Ninguém desconhece que o moderno fenômeno da globalização e da cada vez mais estreita aproximação entre os povos e as Nações, na área econômica e em outras áreas, tornou propício e foi acompa-nhado também pelo fenômeno da criminalidade transnacional. Atualmente, é realidade corriqueira a ocorrência de delitos com características internacio-nais, seja em seus atos preparatórios, seja em sua execução, seja em sua consu-mação ou nas suas conseqüências. O crime e o produto do crime transitam, hoje, com singular agilidade — e facilidade — entre as fronteiras físicas e as barreiras jurídicas de controle e fi scalização. Proclama-se, por isso mesmo, no meio jurídico, a necessidade urgente de atualização, inclusive no plano normativo, dos métodos tradicionais, a fi m de propiciar aos Estados meios adequados e idôneos de enfrentamento dessa nova realidade (FRANCO, Al-berto Silva, e STOCO, Rui. Código de Processo Penal e sua interpretação jurisprudencial, vol. 5, 2ª ed., SP: Editora Revista dos Tribunais, p. 923-5; PEREIRA NETO, Pedro Barbosa. Cooperação penal internacional nos deli-tos econômicos, Revista Brasileira de Ciências Criminais, n. 54, maio-junho de 2005, p. 154; BRAGA, Rômulo Rhemo Palito. Aspectos político-crimi-nais sobre branqueio de capital, Revista de Informação Legislativa, n. 165, janeiro⁄março de 2005, p. 99.) (...)

Realmente, no direito brasileiro, como na maioria dos países, a atividade de prevenção e investigação de delitos, que não têm natureza jurisdicional, não está afeta ao Poder Judiciário, mas sim às autoridades policiais ou do Ministério Público, vinculadas ao Poder Executivo. Aliás, a natureza da ati-vidade jurisdicional — submetida, como regra, a procedimentos formais, públicos e em regime de contraditório —, não é adequada e nem compatível com atividades tipicamente policiais, como essas a que nos referimos ago-ra, de prevenção e investigação criminal. Em nosso sistema, apenas algumas medidas dessa natureza dependem de prévia aprovação judicial, como é o caso das que demandam ingresso em domicílio individual, ou quebra de si-gilo das comunicações telefônicas, telegráfi cas ou de dados (CF, art. 5º, XI

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e XII). Excetuadas hipóteses dessa natureza, não há razão alguma, mesmo em se tratando de investigações ou de medidas de prevenção levadas a efeito em regime de cooperação internacional, “jurisdicionalizar” tais atividades, submetendo-as à intermediação ou à prévia delibação dos órgãos do respec-tivo Poder Judiciário.

Por levar em conta tais circunstâncias, o sistema de cooperação jurídica internacional de que o Brasil faz parte retrata e respeita o sistema de compe-tências e de atribuições adotados no plano do direito interno, preservando estrita e integralmente as competências constitucionais do Poder Judiciário, inclusive no que se refere ao controle jurisdicional da legitimidade dos atos praticados pelos órgãos e autoridades envolvidos. (...)

6. A COOPERAÇÃO JURÍDICA INTERNACIONAL ESTABELECIDA NO CON-JUNTO DE ACORDOS REGIONAIS E MULTILATERAIS DE QUE O BRASIL É PARTE, ADOTA, EM LINHAS GERAIS, UM MODELO PADRONIZADO EM NÍVEL INTERNACIONAL, QUE TEM COMO CARACTERÍSTICA IMPORTAN-TE A INDICAÇÃO, EM CADA ESTADO-PARTE, DE UMA “AUTORIDADE CENTRAL”, RESPONSÁVEL PELO TRÂMITE BUROCRÁTICO DOS PEDIDOS DE ASSISTÊNCIA EM FACE DE OUTRO ESTADO-PARTE, TANTO NO QUE DIZ RESPEITO À COOPERAÇÃO PASSIVA (RECEBIMENTO DE PEDIDOS), QUANTO À COOPERAÇÃO ATIVA (FORMULAÇÃO DE PEDIDOS). É O QUE CONSTA, V.G., DO ART. 46.13 DA CONVENÇÃO DE MÉRIDA, DO ART. 18.13 DA CONVENÇÃO DE PALERMO E, NO ÂMBITO REGIONAL, DO ART. 3º DO “PROTOCOLO DE ASSISTÊNCIA JURÍDICA MÚTUA EM ASSUNTOS PENAIS — MERCOSUL”, (DECRETO 3.468, DE 17.05.2000). A INDICAÇÃO DE “AUTORIDADE CENTRAL” É TÉCNICA ADOTADA HÁ MAIS TEMPO NO PLANO INTERNACIONAL, COMO SE PODE CONSTATAR, V.G., NA CON-VENÇÃO DE HAIA (ART. 6º), SOBRE “ASPECTOS CIVIS DO SEQÜESTRO IN-TERNACIONAL DE CRIANÇAS”, DE 1980, PROMULGADA NO BRASIL PELO DECRETO 3.087, DE 21.06.99 (QUE INDICOU COMO SUA AUTORIDADE CENTRAL, NESSA ÁREA, A SECRETARIA ESPECIAL DE DIREITOS HUMA-NOS — SEDH DA PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA). NO QUE SE REFERE AOS ACORDOS BILATERAIS DE COOPERAÇÃO JURÍDICA, O BRASIL INDICOU O MINISTÉRIO DA JUSTIÇA COMO A SUA “AUTORIDADE CENTRAL” (V.G.: ART. 2º DO TRATADO FIRMADO COM A REPÚBLICA POPULAR DA CHINA — DECRETO 6.282⁄2007; ART. III DO TRATADO FIRMADO COM A REPÚBLICA DA COLÔMBIA — DECRETO 3.895⁄2001; ART. II DO TRA-TADO FIRMADO COM OS ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA — DECRETO 3.810⁄2001). PARA O DESEMPENHO DESSA FUNÇÃO, O MINISTÉRIO DA JUSTIÇA DISPÕE, EM SUA ESTRUTURA ADMINISTRATIVA, DO DEPARTA-MENTO DE RECUPERAÇÃO DE ATIVOS E COOPERAÇÃO JURÍDICA INTER-

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NACIONAL — DRCI, VINCULADO À SECRETARIA NACIONAL DE JUSTIÇA (DECRETO 6.061, DE 15.03.07). CUMPRE A ESSA AUTORIDADE CENTRAL, ENTRE OUTRAS ATIVIDADES, O GERENCIAMENTO DOS PEDIDOS DE COOPERAÇÃO JURÍDICA INTERNACIONAL, INCLUSIVE NO QUE DIZ RESPEITO À SUA ADEQUADA INSTRUÇÃO, SEGUNDO AS EXIGÊNCIAS ES-TABELECIDAS NOS ACORDOS INTERNACIONAIS, E A COORDENAÇÃO DA SUA EXECUÇÃO PELAS AUTORIDADES NACIONAIS OU ESTRANGEIRAS COMPETENTES.

Outra característica importante desse sistema padronizado de cooperação jurídica é o do estrito respeito às normas de direito interno de cada Estado-Parte, o que inclui cláusula de recusa à assistência quando o pedido for in-compatível com essas normas. É o que decorre claramente dos vários incisos dos já referidos art. 46 da Convenção de Mérida (“Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção”) e art. 18 da Convenção de Palermo (“Con-venção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional”. No mesmo sentido é o artigo 7 do “Protocolo de Assistência Jurídica Mútua em Assuntos Penais — Mercosul”:

“1. O processamento das solicitações será regido pela lei do Estado reque-rido e de acordo com as disposições do presente Protocolo. 2. A pedido do Estado requerente, o Estado requerido cumprirá a assistência de acordo com as formas e procedimentos especiais indicados na solicitação, a menos que esses sejam incompatíveis com sua lei interna”.

Portanto, as providências de cooperação solicitadas por autoridades es-trangeiras serão atendidas pelas autoridades nacionais com observância dos mesmos padrões, inclusive dos de natureza processual, que devem ser obser-vados para as providências semelhantes no âmbito interno, tudo sujeito a controle pelo Poder Judiciário, por provocação de qualquer interessado, que poderá utilizar, para isso, os instrumentos processuais, inclusive os recursais, previstos no ordenamento comum.

As diligências passíveis de solicitação mútua entre os Estados Partes, em re-gime de cooperação internacional (indicadas, v.g, no art. 18.3 da Convenção de Palermo, no art. 46.3 da Convenção de Mérida e no art. 2 do “Protocolo de Assistência Jurídica Mútua em Assuntos Penais — Mercosul”), consistem, em grande número, de providências que, no âmbito do direito interno, não têm natureza necessariamente jurisdicional, ou seja, podem ser produzidas sem prévia autorização do Poder Judiciário. Todavia, nos casos em que o direito interno exige tal autorização, o Estado Parte requerido fi ca compro-metido e autorizado a requerer essa medida junto aos órgãos jurisdicionais nacionais, atuação que representa uma importante modalidade de coopera-ção jurídica. Pode-se dizer que, nessas circunstâncias, o Estado requerido atua em regime semelhante ao da substituição processual: requer em nome pró-

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prio para atender solicitação de outro Estado. Nesse sentido, tem signifi cativa importância, no âmbito do direito brasileiro, o papel do Ministério Público Federal e da Advocacia Geral da União, órgãos com capacidade postulatória para requerer, em nome do Estado brasileiro, perante o Judiciário, as medidas de cooperação internacional que, no âmbito interno, estão sujeitas a controle judicial (v.g.: quebra de sigilo). Foi justamente para disciplinar sua atuação que esses órgãos, juntamente com o Ministério da Justiça, editaram a Porta-ria Conjunta nº 1, de 27.10.2005 (“Dispõe sobre a tramitação de pedidos de cooperação jurídica internacional em matéria penal entre o Ministério da Justiça, o Ministério Público Federal e a Advocacia Geral da União”).

Bem se percebe, pois, que as relações internacionais de cooperação e as-sistência mútua na área jurídica, vão muito além das estabelecidas entre os órgãos jurisdicionais dos Estados, sujeitas a regime de exequatur e, portanto, à intermediação do Superior Tribunal de Justiça. Segundo decorre do sistema previsto nos diversos acordos internacionais fi rmados pelo Brasil, as relações de cooperação e assistência são estabelecidas também entre autoridades não judiciais, integrantes do Poder Executivo, competentes para atuar nas áreas de prevenção e de investigação de ilícitos civis e penais de caráter transnacio-nal, como é o caso das autoridades de fi scalização, das polícias e do Ministé-rio Público.

7. Em nosso direito interno, são escassas as disposições legislativas especí-fi cas sobre as relações internacionais em matéria judiciária. As que existem, dizem respeito exclusivamente a homologação de sentenças estrangeiras ou a cumprimento de cartas rogatórias expedidas por órgãos do Judiciário. Ou seja, regulam relações estabelecidas no âmbito de processos de natureza ju-risdicional já em curso. É o caso, no processo penal, dos artigos 780 a 790 do CPP, e, no processo civil, dos artigos 201, 202, 210 a 212 e 483 e 484 do CPC. Todavia, no que se refere às relações internacionais de cooperação e assistência jurídica em atividades que não dependem da participação do Ju-diciário ou que ainda não estão sujeitas à sua intervenção (v.g., a prevenção e a investigação de ilícitos), o legislador nacional nada dispôs a respeito. O que se tem, nessa área, é, portanto, a regulação prevista em normas oriundas dos tratados e convenções, já referidas.

Essa circunstância, embora tenha o inconveniente próprio de não esta-belecer uma sistematização clara e uniforme da matéria (o que poderia ser superado pela intervenção do legislador nacional), não retira do sistema de cooperação jurídica a sua força normativa, nem autoriza que se lhe negue a devida observância. Conforme reiterada jurisprudência do STF (v.g.: RE 80.004, Min. Cunha Peixoto, RTJ 83⁄809-848; PPex 194, Min. Sepúlveda Pertence, DJ de 04.04.97, RTJ 177⁄43; Ext 795, Min. Sepúlveda Pertence, DJ de 06.04.01), os tratados e convenções internacionais de caráter norma-tivo, “(...) uma vez regularmente incorporados ao direito interno, situam-se,

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no sistema jurídico brasileiro, nos mesmos planos de validade, de efi cácia e de autoridade em que se posicionam as leis ordinárias”, inclusive para efeito de controle difuso ou concentrado de constitucionalidade (STF, ADI-MC 1480-3, Min. Celso de Mello, DJ de 18.05.2001), com efi cácia revogató-ria de normas anteriores de mesma hierarquia com eles incompatíveis (lex posterior derrogat priori). Aliás, após a Emenda Constitucional 45⁄2004, es-sas fontes normativas internacionais alçam-se até à estatura constitucional, quando dispõem sobre direitos humanos e são aprovadas em dois turnos, por três quintos dos votos dos membros das Casas do Congresso Nacional (art. 5º, § 3º da Constituição). Isso signifi ca dizer que, salvo se declarados incons-titucionais, os tratados e convenções aprovados e promulgados pelo Brasil (como é o caso desses todos os acima referidos), devem ser fi elmente cum-pridos por seus destinatários. No que diz respeito especifi camente aos órgãos jurisdicionais, não se admite, porque então sim haverá ofensa à Constituição, seja negada aplicação, pura a simplesmente, a preceito normativo, sem antes declarar formalmente a sua inconstitucionalidade. Conforme prevê a súmula vinculante 10⁄STF, “viola a cláusula de reserva de plenário (CF, artigo 97) a decisão de órgão fracionário de Tribunal que, embora não declare expressa-mente a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do Poder Público, afasta a sua incidência, no todo ou em parte”.

No que concerne ao sistema de cooperação jurídica internacional, é im-portante que se tenha consciência da necessidade de uma posição clara a respeito: ou se adota o sistema estabelecido nos compromissos internacionais, ou, se inconstitucional, não se adota, caso em que será indispensável, além da sua formal declaração interna de inconstitucionalidade, também denunciar, no foro internacional próprio, os tratados e convenções assinados e promul-gados. O não cumprimento desses compromissos, é fácil perceber, acaba afe-tando o funcionamento do sistema como um todo, tanto no que diz respeito aos deveres de cooperação passiva que tem o Brasil em relação à comunidade das Nações, quanto no que diz com o atendimento dos interesses nacionais, nos pedidos de cooperação ativa formulado por autoridades brasileiras. Sob esse aspecto, é preocupante a constatação de que são muitas as solicitações de assistência jurídica, via rogatória, encaminhadas pelo Brasil, que acabam não recebendo acolhida pelos Estados requeridos porque formuladas sem ob-servância do sistema estabelecido pelos acordos internacionais (CABRAL, Maria Cláudia Canto. Anais do Seminário sobre Cooperação Judiciária e Combate à Lavagem de Dinheiro, publicação da Associação dos Juízes Fede-rais — AJUFE, p. 101⁄2;SILVA, Ricardo Perlingeiro Mendes da. Anotações sobre o Anteprojeto de Lei sobre Cooperação Jurídica Internacional, Revista de Processo, n. 129, novembro de 2005, p. 135).

8.Pois bem, não se argüiu aqui a inconstitucionalidade de qualquer dos tratados e convenções internacionais sobre a cooperação jurídica, nem das

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suas cláusulas que estabelecem formas de cooperação entre autoridades encar-regadas da prevenção ou da investigação penal, no exercício das suas funções típicas, sem expedição de carta rogatória ou da participação ou intermediação de órgãos do poder judiciário. Nem há razão para declarar a inconstitucio-nalidade, v.g., do art. 46 da Convenção de Mérida (“Convenção das Na-ções Unidas contra a Corrupção”) ou do art. 18 da Convenção de Palermo (“Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacio-nal”. Certamente não se pode afi rmar que o sistema de cooperação jurídica neles estabelecido seja incompatível com a norma constitucional do art. 105, I, i, que fi xa a competência do STJ para conceder exequatur a cartas rogató-rias. Esse dispositivo da Constituição, conforme já enfatizado, simplesmente fi xa a competência do STJ para intervir numa forma peculiar de cooperação internacional, estabelecida entre órgãos jurisdicionais e com objeto específi co de viabilizar a execução de ato jurisdicional estrangeiro. Como toda norma sobre competência de tribunal superior, essa também deve ser interpretada restritivamente (SILVA, Ricardo Perlingeiro Mendes da. Cooperação jurídica internacional e auxílio direito, Revista CEJ — Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal, n. 32, março de 2006, p. 77). Não se pode ver nesse dispositivo a instituição de um monopólio universal do STJ na área de cooperação jurídica, razão pela qual a competência nele estabelecida não impede nem é incompatível com outras formas de cooperação jurídica inter-nacional, que prescindem da intermediação ou da participação do Superior Tribunal de Justiça.

9. No caso concreto, conforme exposto no relatório, o que se tem é pedido de cooperação jurídica consistente em compartilhamento de prova, formula-do por autoridade estrangeira no exercício de atividade investigatória, dirigi-do à congênere autoridade brasileira, que obteve a referida prova também no exercício de atividade investigatória extrajudicial. O compartilhamento de prova é uma das mais características medidas de cooperação jurídica interna-cional, iterativamente prevista nos acordos bilaterais e multilaterais que dis-ciplinam a matéria (v.g.: Convenção de Mérida, art. 46.3; Convenção de Pa-lermo, art. 18, 3). A Procuradoria Geral da República da Federação da Rússia está conduzindo, naquele país, investigações sobre possíveis ilícitos penais lá praticados pelo ora reclamante, o cidadão russo Bóris Berezovsky. Como pro-vidência investigatória, dirigiu à Procuradoria Geral da República do Brasil pedido de fornecimento de cópia hard disk do computador apreendido em poder do investigado em diligências promovidas pela autoridade requerida, que também investiga a participação do mesmo cidadão em ilícitos pratica-dos no Brasil. O pedido foi submetido à consideração do Juízo Federal ora reclamado, quando do oferecimento de denúncia para instauração de ação penal, por parte do Ministério Público Federal. Invocando os compromissos de cooperação jurídica decorrentes da “Convenção das Nações Unidas contra

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o Crime Organizado Transnacional” (Convenção de Palermo) e da “Conven-ção das Nações Unidas contra a Corrupção” (Convenção de Mérida), de que a Federação da Rússia também é signatária, o juiz deferiu o pedido.

Consideradas essas circunstâncias, bem como o conteúdo e os limites pró-prios da competência prevista no art. 105, I, i da Constituição, antes deli-neados, o que se tem presente é hipótese de cooperação jurídica não sujeita a carta rogatória ou a exequatur, nem de outra forma de intermediação do Superior Tribuna de Justiça, cuja competência, portanto, não foi usurpada. Conseqüentemente, a legitimidade do ato impugnado não está sujeita a con-trole por via de reclamação, mas sim pelos meios recursais comuns, dos quais deverá o interessado socorrer-se, caso assim o desejar.”

Estes são, em suma, os fundamentos do voto do Ilustre Relator.Antes de adentrar no âmbito específi co do transcrito entendimento, que,

desde logo, com a devida vênia, ouso divergir, tenho que em matéria penal são três as hipóteses possíveis de cooperação internacional:

I. cooperação para a fase investigatória e para desenvolvimento da ins-trução penal, alcançando aí as medidas preparatórias para a opinião ministe-rial e para a busca da verdade real;

II. cooperação para a extradição de acusado ou de réu defi nitivamente condenado; e

III. cooperação para a extensão de efeitos de decisão penal condenatória proferida por outro país, dentro do procedimento denominado de homolo-gação de sentença estrangeira.

Como visto do notável pronunciamento do Ilustre Ministro Teori Albino Zavascki, a Constituição Federal disciplina as duas últimas hipóteses de co-operação jurídica internacional e delimita a competência para apreciação do procedimento, respectivamente, ao Supremo Tribunal Federal e ao Superior Tribunal de Justiça.

No que toca às medidas de cooperação de atividade investigatória própria, segundo o Ilustre relator, de natureza extrajudicial, o sistema constitucional não teria sujeitado a condução e intermediação pelo Poder Judiciário, por-quanto as medidas tendentes à prevenção e investigação dos delitos compor-tariam uma cooperação direta pelos órgãos envolvidos, sem que houvesse necessidade de autorização judicial.

Tenho que a questão dos autos, partindo do pressuposto do voto, de que a matéria diz respeito a atos de investigação, não resulta clara no caso concreto.

De fato, diga-se em primeiro lugar que a solicitação de cópia dos arquivos constantes da memória rígida dos computadores do Reclamante foi suscitada em meio ao oferecimento da denúncia, sendo deferida após o seu recebimen-to. Portanto, a apreensão do equipamento e o posterior conhecimento do seu

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conteúdo se postam à margem da investigação propriamente dita e tampouco servirá de alicerce da opinião sobre o delito, que já foi externada.

Ao contrário, o procedimento pleiteado de reprodução dos arquivos de computador servirá, certamente, aos propósitos de desenvolvimento da ins-trução criminal como forma de busca da verdade real, situação, sem dúvida, vinculada ao controle da atividade jurisdicional.

Embora discordante da conclusão do entendimento preconizado pelo ilustre Relator, reconheço que Sua Excelência tocou no ponto candente da discussão, quando deixou entender que atos de investigação poderiam fo-mentar a cooperação jurídica internacional direta, evitando-se o labirinto da burocracia estatal. Essa questão me parece de estrema delicadeza, pois con-tenta o esforço atual da comunidade internacional, através da edição de várias convenções e tratados, objetivando criar mecanismos efi cientes de investiga-ção das organizações criminosas transnacionais.

No entanto, é imprescindível divisar o que efetivamente pode ser compre-endido como ato de investigação e o que se intromete como ato de prova, típica de processo.

Para tal tarefa, colho o magistério da doutrina, verbis:

“Os atos de comprovação e averiguação do fato e da autoria, considerados genericamente como atos de investigação ou de instrução preliminar, podem ser valorados de distintas formas pelo sistema jurídico. O critério para a clas-sifi cação tem por base a sentença, ou seja, se esses atos podem ser valorados e servir de base para a sentença ou não.

No primeiro caso, os atos praticados na investigação preliminar têm plena efi cácia probatória na fase processual, podendo servir de fundamento para a sentença. No segundo, os atos praticados na instrução preliminar esgotam sua efi cácia probatória com a admissão da acusação, isto é, servem para justifi car medids cautelares e outras restrições adotadas no curso da fase pré-processual e para justifi car o processo ou o não-processo. Não podem ser valorados na sentença. Como se vê, a efi cácia probatória mantém uma íntima relação com o objeto e o nível de cognição, de modo que, na instrução plenária, a senten-ça toma por base os elementos obtidos na fase pré-processual (pois a fase pro-cessual é um mero controle formal). Por outro lado, na instrução preliminar sumária, a valoração esgota-se com a admissão da acusação.

Como explica Ortels Ramos, uma mesma fonte e meio pode gerar atos com naturezas jurídicas distintas e, no que se refere à valoração jurídica, po-dem ser divididos em dois grupos: atos de prova e atos de investigação (ou instrução preliminar).

Sobre os atos de prova, podemos afi rmar que:a) estão dirigidos a convencer o juiz da verdade de uma afi rmação;

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b) estão a serviço do processo e integram o processo penal;c) dirigem-se a formar um juízo de certeza — tutela de segurança;d) servem à sentença;e) exigem estrita observância da publicidade, contradição e imediação;f ) são praticados ante o juiz que julgará o processo;

Substancialmente distintos, os atos de investigação (instrução preliminar):a) não se referem a uma afi rmação, mas a uma hipótese;b) estão a serviço da instrução preliminar, isto é, da fase pré-processual e

para o cumprimento de seus objetivos;c) servem para formar um juízo de probabilidade, e não de certeza;d) não exigem estrita observância da publicidade, contradição e imedia-

ção, pois podem ser restringidas;e) servem para a formação da opinio delicti do acusador;f ) não estão destinados à sentença, mas a demonstrar a probabilidade do

fumus commissi delicti para justifi car o processo (recebimento da ação penal) ou o não-processo (arquivamento);

g) também servem de fundamento para decisões interlocutórias de impu-tação (indiciamento) e adoção de medidas cautelares pessoais, reais ou outras restrições de caráter provisional;

h) podem ser praticados pelo Ministério Público ou pela Polícia Judiciária.

Por meio dessa distinção é possível fundamentar o porquê do limitado valor probatório dos atos praticados na instrução preliminar, fi cando clara a inadmissibilidade de que a atividade realizada na investigação preliminar possa substituir a instrução defi nitiva (processual). A única verdade admis-sível é a processual, produzida no âmago da estrutura dialética do processo penal e com plena observância das garantias de contradição e defesa. Em ou-tras palavras, os elementos recolhidos na fase pré-processual são considerados como meros atos de investigação e, como tal, destinados a ter uma efi cácia restrita às decisões interlocutórias que se produzem no curso da instrução preliminar e na fase intermediária.” (Aury Lopes Jr. Sistemas de Investigação Preliminar no Processo Penal. 2ª Edição. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, págs. 130⁄131).

Trazendo os ensinamentos doutrinários para o caso dos autos, afi rme-se, de pronto, que se a apreensão dos hards disks, decorrente de autorização judicial, excedeu os limites da atividade meramente investigatória, é natural entender que a sua permuta com terceiro estranho à lide, sobretudo quando ainda sujeita à devida perícia, é ato que não encontra respaldo na ordem constitucional, conquanto se possa aventar como de cooperação autorizado pelos tratados ou convenções internacionais.

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De regra, o imediato acolhimento da medida agride a intimidade do acu-sado e, por conseguinte, quebra os pressupostos de garantia do processo pe-nal brasileiro, ainda mais porque, visto o hard disk como a “memória perma-nente” do computador, que armazena todos os arquivos do usuário, é fácil perceber que a sua constatação física não traz nada de novo para o mundo do processo, senão quando desvendado o interior das informações nele gravadas, o que se dará, na espécie, com o exame pericial, cujo transcurso obedecerá aos ditames do contraditório, ao término do qual o juiz fará a valoração do caso concreto.

A propósito, demarcando a importância do exame pericial como matéria de prova e não como de mera investigação, Adalberto José Q. T. de Camargo Aranha, in Da Prova no Processo Penal. 5ª Edição. São Paulo: Saraiva, 1999, pág. 170, assevera que “A perícia é a lanterna que ilumina o caminho do juiz que, por não a ter quanto a um determinado fato, está na escuridão. A lente que corrige a visão que está defi ciente pela falta de um conhecimento especial.”

Nessa senda, não é demais lembrar que o processo penal, no estado demo-crático de direito, é ao mesmo tempo proteção e garantia do acusado contra a investida do poder-dever do estado, denominado jus puniendi, daí por que a relação processual penal é exigência imprescindível para a aplicação da pena.

E se assim o é, todo ato tendente à confi rmação da pretensão de punir o acusado deve derivar da atuação do Estado-Juiz como único ente capaz de valorar a materialidade, a autoria e a existência mesma da infração penal.

Então, sobre a situação posta cabe antever a hipótese de o material a ser periciado não servir ao propósito do processo e, por via imprópria, antes de devolvido ao patrimônio do seu titular, ser entregue a terceiros e servir a ou-tros intuitos que não os inicialmente anotados.

Nesse ponto, cumpre insistir que a descoberta dos equipamentos decor-reu de medida assecuratória, portanto, judicial, sujeita aos parâmetros de exigência de fundamentação do art. 93, IX, da Constituição Federal, sendo certo concluir que a sua importância para o processo, desde o início, não está na sua confi guração física como ato de investigação, que nada prova, mas se encontra diretamente ligada ao que se pode dele extrair enquanto depósito de informações imprescindíveis ao juízo de convencimento penal futuro, ou seja, como resultado da cognição em torno do fato que se afi rma penalmente relevante.

Por essa razão, penso que o voto do eminente relator, conquanto tenha partido de premissa bastante sedutora, segunda a qual atos de investigação poderiam e podem ser objeto da cooperação internacional direta, uma vez autorizada em tratados e convenções, chegou a uma conclusão, com a de-vida vênia, não condizente com o estado do processo, na medida em que considerou como peça de mera investigação procedimento que, ao contrário,

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encontra-se domiciliado no seio da instrução criminal, adstrito, por essa ra-zão, ao contraditório e aos valores consagrados do processo penal brasileiro.

Essa seria, portanto, a primeira ordem de divergência do voto do eminente Relator.

Resta-me tratar das ponderações seguintes acerca da possível competência desta Corte.

Consoante também consagrou o eminente relator, a competência do Su-perior Tribunal de Justiça estaria abrangida, no art. 105, I, i, da CR, apenas para conceder exequatur a cartas rogatórias, competência esta a que deve emprestar cunho restritivo.

Rendendo novamente vênia ao Ilustre Relator, penso que a competência jurisdicional penal, quando destinada a um único ente da estrutura do Poder Judiciário, no caso o Superior Tribunal de Justiça, abriga o procedimento a ele endereçado em toda a extensão, de modo a se poder investigar os casos que podem e que não podem, de modo algum, se adaptar ao único caminho procedimental previsto em lei.

Abra-se um parêntese para esclarecer, com o magistério de Antonio Sca-rance Fernandes, a importância do respeito ao procedimento penal, consoan-te a seguinte passagem de obra consagrada:

“O procedimento, além de ser revitalizado como instituto de fundamental importância no direito processual, foi considerado importante elemento de legitimação do poder decisório do Estado, em quaisquer planos de sua atua-ção: legislativo, administrativo e judiciário. Mais que isso. Entendeu-se que há um direito ao procedimento, alçado a direito fundamental. Enunciados objetivamente os princípios e as regras constitucionais que, em seu conjunto, formam o arcabouço das normas dos direitos fundamentais constitucionais, deles derivam direitos subjetivos individuais passíveis de serem reunidos em três posições jurídicas fundamentais em relação ao Estado: o direito a ações negativas ou positivas do Estado; o direito a que o exercício das liberdades seja permitido ou que as liberdades sejam protegidas pelo Estado; o direito a que o Estado fi xe os poderes ou competências do cidadão. É na subespécie dos direitos a ações positivas do Estado que se insere o direito ao procedi-mento. (...)

Na atualidade, segundo Alexy, nehuma idéia despertou tanto interesse como a que estabelece uma conexão entre direitos fundamentais, organização e procedimento, e, para o que interessa ao estudo, a idéia de que a organi-zação e o procedimento são meios essenciais para se obter, no ordenamento, resultados efi cazes das normas de direito fundamental.

Em síntese, extrai-se do conjunto de normas constitucionais um direito ao procedimento como direito à ação positiva do Estado para tornar efetivos os direitos fundamentais. Nesse sentido amplo, o procedimento é posto como

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um “sistema de regras e ou princípios para obtenção de um resultado”, e, assim, o direito ao procedimento constitui um direito a esse sistema de regras e⁄ou princípios.” (Teoria Geral do Procedimento e O Procedimento no Pro-cesso Penal — São Paulo: RT, págs. 37⁄39).

Melhor explicitando o que se quer dizer, tenho que a competência do Su-perior Tribunal Justiça não está delineada somente quando identifi ca o pro-cedimento de exequatur de carta rogatória, senão também quando impede a realização de ato ofensivo à ordem legal por outro meio que não o estatuído no direito interno.

Tomando por norte essa assertiva, digo, inicialmente, que o sistema cons-titucional pátrio traça, em matéria de direito penal, caminhos para a coope-ração internacional nos três campos acima citados, quais sejam, cooperação para a fase investigatória e para o desenvolvimento da instrução penal, alcan-çando aí as medidas preparatórias para a opinião ministerial e para a busca da verdade real; cooperação para a extradição de acusado ou de réu defi niti-vamente condenado; e cooperação para a extensão de efeitos de decisão penal condenatória proferida por outro país, dentro do procedimento denominado de homologação de sentença estrangeira.

Quanto ao primeiro caminho, diga-se que existe enorme discussão acerca de sua efetiva possibilidade ante a inexistência de lei delimitando o real al-cance da cooperação jurídica e os limites de sua incrementação, mesmo que evidenciada a assinatura de convenções e tratados internacionais.

Sobre a questão, é do conhecimento da comunidade jurídica a existência de Anteprojeto de Lei de Cooperação Internacional elaborado por Comissão instituída pelo Ministério da Justiça, da qual fazem parte o Ilustre Ministro Gilson Dipp e o também Ministro desta Corte, já aposentado, Athos Gus-mão Carneiro.

Pelo teor dos vários artigos escritos sobre a sistemática inaugurada pela Comissão elaboradora, o que se nota é uma recomendação unânime de que o anteprojeto vem regular e defi nir os vários campos possíveis de cooperação jurídica entre o Brasil e os outros países da comunidade internacional, ca-bendo destacar que logo no artigo primeiro o texto evoca a especialidade da jurisdição penal, estatuindo nos seus incisos os vários procedimentos proces-suais reservados à recepção de atos estrangeiros, que são eles: carta rogatória, ação de homologação de decisão estrangeira, auxílio direto; transferência de processos penais, extradição e transferência de pessoas apenadas.

Advertem que, no presente momento, ante a inexistência de normas espe-cífi cas, os procedimento tratados no anteprojeto são objeto de reiterada miti-gação por parte da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, que entende não ser possível a prática de medidas executórias, em prol de país estrangeiro, sem o trânsito em julgado de sentença judicial, porque isso fere a soberania e a ordem pública brasileira.

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A esse contexto, afi ra-se que a discussão sobre o campo de abordagem, positivo ou negativo, da homologação da sentença estrangeira bem se intro-mete no campo da exigência da coisa julgada, conforme reiterou a Suprema Corte, porquanto a nossa tradição constitucional reservou o reconhecimen-to dos atos jurisdicionais estrangeiros, isto é, dos atos que evocam natureza processual decisória, a três procedimentos: carta rogatória; homologação de sentença estrangeira; e extradição; fora isso, tais atos não podem ser recep-cionados no direito interno sem que haja a participação do órgão do Poder Judiciário incumbido da competência de julgar os feitos que invocam tais procedimentos.

É aí onde a questão, ao meu entender, encampa a competência desta Cor-te, porquanto é ao Superior Tribunal de Justiça que compete assegurar a or-dem pública e a soberania do Brasil quando há pedido de autoridade estran-geira, mesmo que não judicial, que importe no reconhecimento da natureza judicial do ato que pretende seja autorizado no território nacional.

É fato que o eminente Relator, no caso em exame, entendeu que, se o pedido veio do Ministério Público da Rússia, não sendo, portanto, de autori-dade judiciária, o caso não mereceria a pertinência do procedimento de carta rogatória.

Acontece que o procedimento existe não só como possibilidade do reco-nhecimento do ato estrangeiro, mas, repita-se, serve como salvaguarda de que os sistema de cooperação jurídica penal instituído pela Carta Magna seja obedecido, sob pena de quebra dos pressupostos fundamentais.

É a isso que se prestaria a competência no caso vertente, senão vejamos.O evento concreto, é do conhecimento público, envolve agremiação es-

portiva de grande popularidade e rendeu vasta veiculação na imprensa brasi-leira e internacional, tendo como principal envolvido o cidadão russo Boris Abramovich Berezovsky.

Veja-se como o acusado veio retratado na denúncia (fl s. 679⁄681):Quando interrogado em maio de 2006 (fl s. 143⁄149 do apenso VII aos

autos principais), Boris Berezovsky declarou ter sido professor de matemática da Academia de Ciências da União Soviética ate 1989, quando tinha 43 anos de idade, recebendo, até então, o equivalente a trezentos dólares mensais. Três anos antes, em 1986, por ocasião da abertura econômica e política da União Soviética, teria aplicado o correspondente a cinco mil dólares numa joint venture entre o Instituto de Ciências e Controle da Academia de Ciências, a Autovaz, empresa fabricante de automóveis, e a empresa italiana Logosys-tems. Outros quatro sócios teriam aplicado valores semelhantes. Cinco anos depois, em 1991, o patrimônio desses cinco afortunados investidores teria atingido a espantosa cifra de 20 milhões de dólares. Ou seja, um rendimento de 80.000 % (oitenta mil por cento) em cinco anos. Sem dúvida uma cifra espantosa e insuperável mesmo para países de tradição capitalista.

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Entre 1992 e 1999, Berezovsky viu ampliar seu poder econômico e ga-nhou ascendente infl uência política durante os dois mandatos sucessivos de Boris Yeltsin. Participou ativamente na candidatura de Vladimir Putin, su-cessor de Yeltsin, eleito em 2000. Na mesma campanha, já um milionário infl uente, também Berezovsky foi eleito representante no Duma, casa legisla-tiva da Federação da Rússia.

Ainda em 2000, com a prisão de seu associado empresarial Nikolai Glu-chkov, e temendo o mesmo destino, fugiu da Rússia, tendo passado pela França e posteriormente obtido asilo político na Inglaterra.

Assim, em um período de apenas dez anos, coincidente com a privatiza-ção de ativos da extinta União Soviética, Berezovsky tornou-se de obscuro e mal remunerado professor de matemática em político infl uente e poderoso multimilionário.

De acordo com documentos recebidos da Procuradoria Geral da Fede-ração da Rússia, devidamente traduzidos por tradutores públicos, por fatos ocorridos no mesmo período, Berezovski responde, naquele país, a três inves-tigações policiais:

a) Em abril de 1993, o governo da Federação Russa criou a Aerofl ot — Li-nhas Aéreas Internacionais Russas, com 51 % (cinqüenta e um por cento) das ações pertencentes ao Estado. Menos de um ano depois, Boris Berezovsky e Nikolai Gluchkov constituíram, na Confederação Suíça, a empresa Andava. A Andava, por seu turno, criou a Corporação Financeira Unida FOK, tendo sido designado Cheinin como seu diretor geral. Utilizando-se de sua infl ue-mcia, Berezovsky conseguiu que Gluchkov e Krasnenker fossem designados, respectivamente, como vice-diretor geral e vice-diretor geral para comércio e propaganda da Aerofl ot. Berezovsky, Gluchkov e Krasnenker, em comum acordo com Kryzhevskaya, contadora-chefe da Aerofl ot, e sob o pretexto de manutenção de recursos no Exterior, desviaram para a conta corrente corren-te n.º 423237, mantida pela Andava junto ao UBS, em Lausane, na Con-federação Suíça, recursos da Aerofl ot correspondentes a cerca de duzentos e cinqüenta e dois milhões de dólares. Da conta corrente da Andava, tais recursos foram transferidos para contas pessoais de Gluchkov, Krasnenker, Kryzhevskaya e Cheinin e para a conta corrente n.º 90-254.646.1 no UBS, de titularidade da empresa Ruko Trading, cujo proprietario é Boris Berezovsky. Para garantir que os recursos não pudessem ser reclamados pela Aerofl ot, os nominados forjaram contratos e títulos com a Corporação FOK, associando, de maneira dissimulada, ao capital desviado, juros e multas contratuais.

Conforme tradução pública da sentença juntada aos autos, Gluchkov, Kryzhevskaya e Cheinin responderam a processo criminal e foram condena-dos como incursos no artigo 159, parte 3 (b) do Código Penal da Federação Russa. A conduta praticada amolda-se ao peculato, conforme previsto no art. 312 do Código Penal Brasileiro. Também por esses fatos, Boris está sendo

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investigado pelo delito estampado no art. 174 parte 3 do Código Penal da Federação Russa, correspondente, em nossa legislação penal, a lavagem de capitais praticada por organização criminosa. Boris Berezovsky fugiu antes do inicio do processo e, pelas leis processuais vigentes à época, não poderia ser processado à revelia.”

Não há dúvida, pela descrição da denúncia, de que o Reclamante, Boris Abramovich Berezovsky, na Federação Russa, responde a processo criminal que só não foi avante pelo fato de lá existir regra, segundo declarado no úl-timo tópico transcrito, equivalente ao nosso art. 366 do CPP, com redação da Lei 9.271, de 17.04.1996, pelo qual não se permite a continuidade do processo penal sem a presença do acusado, o que não ocorreu, por exemplo, com os demais envolvidos, os quais já foram sentenciados, conforme decisão traduzida às fl s. 429⁄538.

Ademais, pode-se constatar, pelos documentos acostados no volume 1 desta Reclamação, que o Reclamante é tido mesmo como acusado, estando o feito na alçada de Juízo de Instrução que, na Rússia, embora esteja ligado à procuradoria, exerce a função de Conselheiro Auxiliar da Justiça.

Fazendo o cotejo do substrato da acusação originária ofertada perante o Distrito de Moscou com a imputação existente no Brasil, tudo leva a crer que o pedido formulado pela Federação Russa é, na essência, de natureza judicial, estando, portanto, atingido pelo rito da carta rogatória, de competência desta Corte.

Destarte, o fato de o pedido ter vindo diretamente via procuradoria russa não retira a competência do Superior Tribunal de Justiça que, como dito, detém também a jurisdição para dizer se o procedimento encontra respaldo no único caminho da ordem jurídica constitucional.

Ademais, pelo sistema pátrio, à Justiça Federal incumbe somente a exe-cução das ordens emanadas do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tri-bunal de Justiça, não lhe competindo a análise e o julgamento do pedido de cooperação jurídica internacional, não podendo, assim, o Juiz Federal apre-ciar e investigar as razões do pedido do Ministério Público Federal frente às convenções e tratados internacionais.

Por essas razões, voto no sentido de receber a Reclamação e, no mérito, dar-lhe procedência para anular o ato do Juiz de primeiro grau.

RECLAMAÇÃO Nº 2.645 — SP (2007⁄0254916-5)

VOTO

O EXMO. SR. MINISTRO NILSON NAVES: Qual a Ministra Maria Th ereza, também entendo ser do Superior Tribunal a competência, a despeito

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da sedutora premissa do ilustre Relator. São, em essência, dois poderosos vo-tos, mas estou pedindo licença ao Ministro Teori, porque, como já se disse, e bem, o rito a ser seguido é o da carta rogatória, e a rogatória é da competência do Superior. Também eu voto pela procedência da reclamação.

VOTO-VISTA

EXMO. SR. MINISTRO ARI PARGENDLER:

I — Os autos dão conta de que, estando em Moscou em viagem de ser-viço, o Procurador da República Sílvio Luiz Martins de Oliveira retornou ao nosso País, trazendo ofícios do Vice-Procurador-Geral da Federação da Rússia, dirigidos ao Procurador-Geral da República.

“O primeiro ofício” — lê-se no parecer da Comissão de Cooperação Ju-rídica Internacional do Ministério Público Federal — “(ref. 35⁄1-51c-03) encaminha cópia do pedido de extradição de B.A. Berezovsky e outros do-cumentos relacionados aos crimes que ele teria cometido em território russo.

O outro ofício (ref. 35⁄2-1505-02) pede que sejam remetidos à Procura-doria Geral da Federação Russa documentos referentes ao “caso Berezovsky” e que estariam sob a guarda do Dr. Sílvio Luiz Martins de Oliveira” (fl . 31, 1º vol.).

Simultaneamente à denúncia que ofereceu contra Boris Abravomich Bere-zovsky e outros (fl . 548⁄567, 3º vol.), o Procurador da República Sílvio Luís Martins de Oliveira requereu a formação de apenso para instruir “o pedido de cópia do hard disk do computador apreendido em poder de Boris Berezo-vsky encaminhado pela Procuradoria Geral da Federação da Rússia, opinan-do pelo deferimento, uma vez que os dados ali armazenados podem ser úteis às investigações conduzidas naquele país” (fl . 568, 3º vol.).

O MM. Juiz Federal Fausto Martin de Sanctis deferiu a formação do apenso (fl . 572⁄573, 3º vol.), e também a confecção das cópias do hard disk (letra “c”, fl . 617, 3º vol.), com o respectivo encaminhamento à Procurado-ria-Geral da Rússia, “através de sua embaixada em Brasília” (fl . 621, 3º vol.).

Contra essa decisão, Boris Abramovich Berezovsky articulou Reclamação forte em que só o Superior Tribunal de Justiça tem competência para decidir a respeito (fl . 02⁄15).

O relator Min. Teori Zavascki fez por julgá-la improcedente, tendo sido acompanhado pelos Ministros Castro Meira, Denise Arruda, Arnaldo Este-ves Lima e Massami Uyeda. Deles divergiram a Ministra Maria Th ereza de Assis Moura, em voto-vista, e os Ministro Nilson Naves.

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II — O voto do Ministro Teori Zavascki está sumariado na respectiva ementa, de que os seguintes trechos dão, quanto ao essencial, uma idéia pre-cisa:

“1. Em nosso regime constitucional, a competência da União ‘para manter relações com estados estrangeiros’ (art. 21, I), é, em regra, exercida pelo Pre-sidente da República (CF, art. 84, VII), ‘auxiliado pelos Ministros de Estado’ (CF, art. 76). A intervenção dos outros Poderes só é exigida em situações especiais e restritas. No que se refere ao Poder Judiciário, sua participação está prevista em pedidos de extradição e de execução de sentenças e de cartas rogatórias estrangeiras. (...)

2. As relações entre Estados soberanos que têm por objeto a execução de sentenças e de cartas rogatórias representam, portanto, uma classe peculiar de relações internacionais, que se estabelecem em razão da atividade dos res-pectivos órgãos judiciários e decorrem do princípio da territorialidade da jurisdição, inerente ao princípio da soberania, segundo o qual a autoridade dos juízes (e, portanto, das suas decisões) não pode extrapolar os limites ter-ritoriais do seu próprio País. Ao atribuir ao STJ a competência para a “con-cessão de exequatur às cartas rogatórias’ (art. 105, I, i), a Constituição está se referindo, especifi camente, ao juízo de delibação consistente em aprovar ou não o pedido feito por autoridade judiciária estrangeira para cumprimento, em nosso país, de diligência processual requisitada por decisão do juiz rogan-te. É com esse sentido e nesse limite, portanto, que deve ser compreendida a referida competência constitucional”. (...)

No caso concreto, o que se tem é pedido de cooperação jurídica consis-tente em compartilhamento de prova, formulado por autoridade estrangeira (Procuradoria Geral da Federação Russa) no exercício de atividade investi-gatória, dirigido à congênere brasileira (Procuradoria Geral da República), que obteve a referida prova também no exercício de atividade investigatória extrajudicial. O compartilhamento de prova é uma das características me-didas de cooperação jurídica internacional, prevista nos acordos bilaterais e multilaterais que disciplinam a matéria, inclusive na ‘Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional’ (Convenção de Palermo), promulgada no Brasil pelo Decreto 5.015, de 12.03.04, e na ‘Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção’ (Convenção de Mérida), de 31.10.03, promulgada pelo Decreto 5.687, de 31.01.06, de que a Federação também é signatária. Consideradas essas circunstâncias, bem como o conteúdo e os limites próprios da competência prevista no art. 105, I, i, da Constituição, a cooperação jurídica requerida não dependia de expedição de carta rogatória por autoridade judiciária da Federação da Rússia e, portanto, nem de exequa-tur ou de outra forma de intermediação do Superior Tribunal de Justiça, cuja competência, conseqüentemente, não foi usurpada”.

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III — O voto da Ministra Maria Th ereza de Assis Moura partiu do pres-suposto do voto do Ministro Teori Zavascki, in verbis:

“Tenho que a questão dos autos, partindo do pressuposto do voto, de que a matéria diz respeito a atos de investigação, não resulta clara no caso concre-to” (em negrito no texto original). (...)

“... penso que o voto do eminente relator, conquanto tenha partido de premissa bastante sedutora, segundo a qual atos de investigação poderiam e podem ser objeto de cooperação internacional direta, uma vez autorizada em tratados e convenções, chegou a uma conclusão, com a devida vênia, não condizente com o estado do processo na medida em que considerou como peça de mera investigação procedimento que, ao contrário, encontra-se do-miciliado no seio da instrução criminal, adstrito, por essa razão, ao contradi-tório e aos valores consagrados do processo penal brasileiro”.

Sua Excelência divergiu do brilhante voto do Ministro Teori Zavascki, pri-meiro, porque não identifi ca na solicitação feita pelo Vice-Procurador-Geral da Federação da Rússia um ato de investigação, e, segundo, porque o pedido tem natureza judicial, visto que Boris Abramovich Berezovsky responde a processo penal naquele país, não tendo o Vice-Procurador-Geral da Federa-ção da Rússia autoridade para substituir-se ao juiz da causa.

Os atos de investigação, para Sua Excelência, se dão no âmbito pré-pro-cessual, e servem para a formação da opinio delicti do acusador. Já os atos de prova integram o processo penal, são praticados perante o juiz que julgará a ação, e se destinam a formar um juízo de certeza, por isso concluindo que, in verbis:

“... a solicitação de cópia dos arquivos constantes da memória rígida dos computadores do Reclamante foi suscitada em meio ao oferecimento da de-núncia, sendo deferida após o seu recebimento. Portanto, a apreensão do equipamento e o posterior conhecimento do seu conteúdo se postam à mar-gem da investigação propriamente dita e tampouco servirá de alicerce da opinião sobre o delito, que já foi externada.

Ao contrário, o procedimento pleiteado de reprodução dos arquivos de computador servirá, certamente, aos propósitos de desenvolvimento da ins-trução criminal como forma de busca da verdade real, situação, sem dúvida, vinculada ao controle da atividade jurisdicional”. (...)

“... se a apreensão do hard disk, decorrente de autorização judicial, exce-deu os limites da atividade meramente investigatória, é natural entender que a sua permuta com terceiro estranho à lide, sobretudo quando ainda sujeita à devida perícia, é ato que não encontra respaldo na ordem constitucional, conquanto se possa aventar como de cooperação autorizado pelos tratados ou convenções internacionais.

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De regra, o imediato acolhimento da medida agride a intimidade do acu-sado e, por conseguinte, quebra os pressupostos de garantia do processo pe-nal brasileiro, ainda mais porque, visto o hard disk como a ‘memória perma-nente’ do computador, que armazena todos os arquivos do usuário, é fácil perceber que a sua constatação física não traz nada de novo para o mundo do processo, senão quando desvendado o interior das informações nele gravadas, o que se dará, na espécie, com o exame pericial, cujo transcurso obedecerá aos ditames do contraditório, ao término do qual o juiz fará a valoração do caso concreto. (...)

Nessa senda, não é demais lembrar que o processo penal, no estado demo-crático de direito, é ao mesmo tempo proteção e garantia do acusado contra a investida do poder-dever do estado, denominado jus puniendi, daí por que a relação processual penal é exigência imprescindível para a aplicação da pena.

E se assim o é, todo ato tendente à confi rmação da pretensão de punir o acusado deve derivar da atuação do Estado-Juiz como único ente capaz de valorar a materialidade, a autoria e a existência mesma da infração penal.

Então, sobre a situação posta cabe antever a hipótese de o material a ser periciado não servir ao propósito do processo e, por via imprópria, antes de devolvido ao patrimônio do seu titular, ser entregue a terceiros e servir a ou-tros intuitos que não os inicialmente anotados.

Nesse ponto, cumpre insistir que a descoberta dos equipamentos decor-reu de medida assecuratória, portanto, judicial, sujeita aos parâmetros de exigência de fundamentação do art. 93, IX, da Constituição Federal, sendo certo concluir que a sua importância para o processo, desde o início, não está na sua confi guração física como ato de investigação, que nada prova, mas se encontra diretamente ligada ao que se pode dele extrair enquanto depósito de informações imprescindíveis ao juízo de convencimento penal futuro, ou seja, como resultado da cognição em torno do fato que se afi rma penalmente relevante”.

E a respeito do segundo ponto, o da natureza judicial da solicitação, a Ministra Maria Th ereza de Assis Moura sustenta que

“Não há dúvida, pela descrição da denúncia, de que o Reclamante, Boris Abramovich Berezovsky, na Federação Russa, responde a processo criminal que só não foi avante pelo fato de lá existir regra... equivalente ao nosso art. 366 do CPP, com redação da Lei 9.271, de 17.04.1996, pelo qual não se permite a continuidade do processo penal sem a presença do acusado, o que não ocorreu, por exemplo, com os demais envolvidos, os quais já foram sen-tenciados, conforme decisão traduzida às fl s. 429⁄538.

Ademais, pode-se constatar, pelos documentos acostados no volume 1 desta Reclamação, que o Reclamante é tido mesmo como acusado, estando

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o feito na alçada de Juízo de Instrução que, na Rússia, embora esteja ligado à procuradoria, exerce a função de Conselheiro Auxiliar de Justiça.

Fazendo o cotejo do substrato da acusação originária ofertada perante o Distrito de Moscou com a imputação existente no Brasil, tudo leva a crer que o pedido formulado pela Federação Russa é, na essência, de natureza judicial, estando, portanto, atingido pelo rito da carta rogatória, de competência desta Corte.

Destarte, o fato de o pedido ter vindo diretamente via procuradoria russa não retira a competência do Superior Tribunal de Justiça que, como dito, detém também a jurisdição para dizer se o procedimento encontra respaldo no único caminho da ordem jurídica constitucional”.

IV — Como se vê, a divergência radica na valorização dos fatos, que por isso convêm relembrar:

* a apreensão do hard disk resultou de mandado judicial, cujo conteúdo ainda não foi desvelado pela perícia ordenada pelo MM. Juiz Federal da 6ª Vara Criminal de São Paulo;

* a solicitação da respectiva cópia foi feita pelo Vice-Procurador-Geral da Federação da Rússia, para fazer prova em processo penal lá instaurado, alheia ao procedimento previsto para a cooperação internacional, porque não trami-tou perante a autoridade central responsável pelo processamento do pedido;

* o deferimento desse pedido ocorreu após o recebimento da denúncia pelo MM. Juiz Federal da 6ª Vara Criminal de São Paulo.

Salvo melhor juízo, havendo processo penal lá e cá, já não se está diante de uma mera investigação policial, de sorte que a cooperação jurídica interna-cional no combate ao crime deve se subordinar ao crivo do Superior Tribunal de Justiça.

Se a proteção à ordem pública nacional e o respeito aos princípios consti-tucionais que asseguram o respeito ao acusado estivessem sob a guarda do juiz de primeiro grau, a conseqüência poderia ser a que se tem nestes autos: o de que a Federação da Rússia teria acesso ao conteúdo de prova que o juiz brasi-leiro desconhece. Evidentemente, concluída a perícia no hard disk, e seguido o trâmite da carta rogatória, o Superior Tribunal de Justiça poderá, se for o caso, fornecer a cópia pretendida, recomendando-se, todavia, que a iniciativa seja tomada pelo Juiz de Instrução, porque se trata de prova a ser valorizada no processo penal, e não ato de simples investigação.

Voto, por isso, no sentido de julgar procedente a Reclamação, na linha do voto da Ministra Maria Th ereza de Assis Moura.

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RECLAMAÇÃO Nº 2.645 — SP (2007⁄0254916-5)RELATOR: MINISTRO TEORI ALBINO ZAVASCKIRECLAMANTE: BÓRIS ABRAMOVICH BEREZOVSKYADVOGADO: ALBERTO ZACHARIAS TORON E OUTRO(S)RECLAMADO: JUIZ FEDERAL DA 6A VARA CRIMINAL DA SE-

ÇÃO JUDICIÁRIA DO ESTADO DE SÃO PAULOINTERES.: MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL

VOTOO SR. MINISTRO GILSON DIPP:Sr. Presidente, o tema para mim é muito caro, até porque o Superior Tri-

bunal de Justiça mudou toda a confi guração do sistema processual de coope-ração internacional no Brasil ao trazer para cá as cartas rogatórias e a edição da Resolução nº 9.

Não obstante os brilhantes votos divergentes, quero confessar que nunca vi um trabalho mais completo sobre cooperação internacional do que o voto relatado pelo Ministro Teori Albino Zavascki. É um trabalho de pesquisa ex-cepcional, de garimpagem de tratados internacionais, de decretos legislativos que internalizaram esses tratados no Brasil e de decretos presidenciais que o fi zeram da mesma forma.

A carta rogatória, evidentemente, todos sabem, não é o único meio de cooperação internacional entre judiciários. O auxílio direto que repousa na confi ança entre os órgãos que compõem o Judiciário como um todo, num sentido mais amplo, é essencial para a investigação de todo e qualquer crime transnacional.

Não estou falando em crime organizado, porque direcionaria, talvez, as minhas palavras para um setor mais específi co. Vemos aqui um comparti-lhamento de informações na fase instrutória que é previsto na convenção da ONU contra o crime organizado — Convenção de Palermo, na convenção da ONU contra a corrupção, e outros tratados internacionais. Esses tratados internacionais tiveram os seus mecanismos de internacionalização no nosso sistema perfeitos e acabados, foram aprovados pelo Congresso e ratifi cados pelo Senhor Presidente da República por decreto presidencial.

A Resolução nº 9 do STJ, que nunca atacamos nem dissemos ser ilegal ou inconstitucional, prevê que, quando houver uma carta rogatória que, apesar de rotulada como tal, trouxer um pedido de auxílio direto, o Tribunal pode e deve devolver à autoridade central do Ministério da Justiça para que a receba como auxílio direto e encaminhe ao juiz competente.

O voto do Sr. Ministro Teori Albino Zavascki traz as inovações já aqui realizadas e que vieram na esteira da última jurisprudência para que se vi-nha encaminhando o próprio Supremo Tribunal Federal. E, dentro dessas

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FGV DIREITO RIO 317

circunstâncias, parece-me de todo inatacável sua decisão; portanto, a recla-mação é impertinente, porque o pedido contido não trata, evidentemente, de carta rogatória que atraia necessariamente a competência para o Superior Tribunal de Justiça.

Acompanho o voto do Sr. Ministro Relator.Julgo improcedente a reclamação.

Brasília (DF), 08 de maio de 2009.MINISTRO GILSON DIPPMinistro

RECLAMAÇÃO Nº 2.645 — SP (2007⁄0254916-5)

ESCLARECIMENTOO EXMO. SR. MINISTRO TEORI ALBINO ZAVASCKI: Senhor Pre-

sidente, a propósito do voto proferido pelo Ministro Ari Pargendler, insisto na importância de delimitar exatamente o objeto da controvérsia que estamos decidindo. Ao iniciar meu voto como relator, enfatizei que estamos julgando uma reclamação, ou seja, estamos decidindo se houve ou não usurpação de competência do STJ prevista art. 105, I, f da Constituição. Salientei no pri-meiro tópico do voto:

“No caso concreto, observados esses limites, o que se tem como objeto específi co da controvérsia é a alegada confi guração, nos episódios descritos no relatório, de ato de usurpação da competência constitucional do STJ de conceder exequatur a cartas rogatórias (CF, art. 105, I, i). O que se deve deci-dir, portanto, é se o pedido formulado pela Procuradoria Geral da Federação Russa à Procuradoria Geral da República do nosso País — de envio de cópia do material probatório constantes de autos de ação penal em curso no Brasil (hards disks de computadores) —, estava ou não sujeito ao regime de carta rogatória e de exequatur pelo Superior Tribunal de Justiça”.

Quero enfatizar, portanto, que não estamos julgando o mérito da decisão do juiz de primeiro grau, nem o acerto ou não da decisão por ele tomada. O que estamos decidindo é apenas se a referida decisão deveria (ou não) ser tomada pelo STJ, por ser matéria de sua competência originária (via carta rogatória).

Por outro lado, em momento algum do meu voto afi rmei que o pedido de cooperação jurídica internacional está fora do controle jurisdicional. Pelo contrário, em várias passagens do voto foi afi rmado exatamente o contrário. Por exemplo, no item 6 do voto afi rmei textualmente:

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“Portanto, as providências de cooperação solicitadas por autoridades es-trangeiras serão atendidas pelas autoridades nacionais com observância dos mesmos padrões, inclusive dos de natureza processual, que devem ser obser-vados para as providências semelhantes no âmbito interno, tudo sujeito a controle pelo Poder Judiciário, por provocação de qualquer interessado, que poderá utilizar, para isso, os instrumentos processuais, inclusive os recursais, previstos no ordenamento comum”.

O que afi rmei no voto foi que o STJ não tinha o monopólio originário desse controle.

E, ao concluir o voto, disse o seguinte:

“Consideradas essas circunstâncias, bem como o conteúdo e os limites próprios da competência prevista no art. 105, I, i da Constituição, antes de-lineados, o que se tem presente é hipótese de cooperação jurídica não sujeita a carta rogatória ou a exequatur, nem de outra forma de intermediação do Superior Tribuna de Justiça, cuja competência, portanto, não foi usurpada. Conseqüentemente, a legitimidade do ato impugnado não está sujeita a con-trole por via de reclamação, mas sim pelos meios recursais comuns, dos quais deverá o interessado socorrer-se, caso assim o desejar”.

Esses os esclarecimentos que considerei importante prestar, dada a rele-vância da matéria que estamos decidindo.

RECLAMAÇÃO Nº 2.645 — SP (2007⁄0254916-5)

RELATOR: MINISTRO TEORI ALBINO ZAVASCKIRECLAMANTE: BÓRIS ABRAMOVICH BEREZOVSKYADVOGADO: ALBERTO ZACHARIAS TORON E OUTRO(S)RECLAMADO: JUIZ FEDERAL DA 6A VARA CRIMINAL DA SE-

ÇÃO JUDICIÁRIA DO ESTADO DE SÃO PAULOINTERES.: MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL

VOTO-VISTAO EXMO. SR. MINISTRO JOÃO OTÁVIO DE NORONHA:Na presente reclamação, Boris Abranmovich Berezovsky pretende ver res-

taurada a competência deste Tribunal para execução de cartas rogatórias.Indica o reclamante que o Procurador da República Sílvio Luiz Martins de

Oliveira, em viagem a trabalho que realizou na cidade de Moscou, trouxe em mãos ofícios do Vice-Procurador-Geral da Federação da Rússia dirigidos ao Procurador-Geral da República do Brasil, nos quais foi requerida sua extradi-ção e a remessa à Procuradoria-Geral da Federação da Rússia de documentos

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FGV DIREITO RIO 319

referentes ao “caso Berezovsky” (cópias do hard disk do computador apreen-dido em seu poder).

Como há denúncia oferecida contra o reclamante e recebida pelo Juízo da 6ª Vara Federal Criminal Especializada em Crimes Contra o Sistema Finan-ceiro Nacional da Justiça Federal Federal no Estado de São Paulo, foi deferido (fl . 617) o encaminhamento dos mencionados documentos à Procuradoria da Rússia.

Daí a presente reclamação, na qual, entre várias alegações, sustenta-se que a remessa dos documentos deveria ter sido requerida via carta rogatória, pas-sando pelo crivo do Superior Tribunal de Justiça; afi rma-se que não há tratado de cooperação internacional entre Brasil e Rússia e que não há comprovação de autenticidade dos documentos porque não tramitaram na via diplomática regular, desatendendo o disposto no art. 105, I, i, da Constituição Federal e os artigos 780 e seguintes do Código de Processo Penal.

O Ministro Relator julgou improcedente a reclamação, no que foi acom-panhado pela maioria dos Ministros da Corte em voto que pode ser sinteti-zado pela seguinte ementa:

“CONSTITUCIONAL. COMPETÊNCIA DO STJ. EXEQUATUR. CARTA ROGATÓRIA. CONCEITO E LIMITES. COOPERAÇÃO JURÍDICA INTERNACIONAL. TRATADOS E CONVENÇÕES IN-TERNACIONAIS, APROVADOS E PROMULGADOS PELO BRASIL. CONSTITUCIONALIDADE. HIERARQUIA, EFICÁCIA E AUTORI-DADE DE LEI ORDINÁRIA.

1. Em nosso regime constitucional, a competência da União para ‘manter relações com estados estrangeiros’ (art. 21, I), é, em regra, exercida pelo Pre-sidente da República (CF, art. 84, VII), ‘auxiliado pelos Ministros de Estado’ (CF, art. 76). A intervenção dos outros Poderes só é exigida em situações especiais e restritas. No que se refere ao Poder Judiciário, sua participação está prevista em pedidos de extradição e de execução de sentenças e de cartas rogatórias estrangeiras: ‘Compete ao Supremo Tribunal Federal (...) processar e julgar, originariamente (...) a extradição solicitada por Estado estrangeiro’ (CF, art. 102, I, g); ‘Compete ao Superior Tribunal de Justiça (...) proces-sar e julgar originariamente (...) a homologação de sentença estrangeiras e a concessão de exequatur às cartas rogatórias’ (CF, art. 105, I, i); e ‘aos Juízes federais compete processar e julgar (...) a execução de carta rogatória, após o exequatur, e de sentença estrangeira, após a homologação’ (CF, art. 109, X).

2. As relações entre Estados soberanos que têm por objeto e execução de sentenças e de cargas rogatórias representam, portanto, uma classe peculiar de relações internacionais, que se estabelecem em razão da atividade dos res-pectivos órgãos judiciários e decorrem do princípio da territorialidade da jurisdição dos juízes (e, portanto, das suas decisões) não pode extrapolar os limites territoriais do seu próprio País. Ao atribuir ao STJ a competência

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para a ‘concessão de exequatur às cartas rogatórias’ (art. 105, I,i), a Consti-tuição está se referindo, especifi camente, ao juízo de deliberação consistente em aprovar ou não o pedido feito por autoridade judiciária estrangeira para cumprimento, em nosso país, de diligência processual requisitada por deci-são do juiz rogante. É com esse sentido e nesse limite, portanto, que deve ser compreendida a referida competência constitucional.

3. Preocupados com o fenômeno da criminalidade organizada e transna-cional, a comunidade das Nações e os Organismos Internacionais aprovaram e estão executando, nos últimos anos, medidas de cooperação mútua para a prevenção, a investigação e a punição efetiva de delitos dessa espécie, o que tem como pressuposto essencial e básico em sistema efi ciente de comunica-ção, de troca de informações, de compartilhamento de provas e de tomadas de decisões e de execução de medidas preventivas, investigatórias, instrutórias ou acautelatórias, de natureza extrajudicial. O sistema de cooperação, esta-belecido em acordos internacionais bilaterais e plurilaterais, não exclui, evi-dentemente, as relações que se estabelecem entre os órgãos judiciários, pelo regime das cartas precatórias, em processos já submetidos à esfera jurisdicio-nal. Mas, além delas, engloba outras muitas providências, afetas, no âmbito interno de cada Estado, não ao Poder Judiciário, mas a autoridades policiais ou do Ministério Público, vinculadas ao Poder Executivo.

4. As providências de cooperação dessa natureza, dirigidas à autoridade central do Estado requerido (que, no Brasil, é o Ministério da Justiça), serão atendidas pelas autoridades nacionais com observância dos mesmos padrões, inclusive dos de natureza processual, que devem ser observados para as provi-dências semelhantes no âmbito interno (e, portanto, sujeitas a controle pelo Poder Judiciário, por provocação de qualquer interessado). Caso a medida solicitada dependa, segundo o direito interno, de prévia autorização judicial, cabe aos agentes competentes do Estado requerido atuar judicialmente visan-do a obtê-la. Para esse efeito, tem signifi cativa importância, no Brasil, o papel do Ministério Público Federal e da Advocacia Geral da União, órgãos com capacidade postulatória para requerer, perante o Judiciário, essas especiais medidas de cooperação jurídica.

5. Conforme reiterada jurisprudência do STF, os tratados e convenções internacionais de caráter normativo, ‘(...) uma vez regularmente incorpora-dos ao direito interno, situam-se, no sistema jurídico brasileiro, nos mesmos planos de validade, de efi cácia e de autoridade em que se posicionam as leis ordinárias’ (STF, ADI-MC 1480-3, Min. Celso de Mello, DJ de 18.05.2001), fi cando sujeitos a controle de constitucionalidade e produzindo, se for o caso, efi cácia revogatória de normas anteriores de mesma hierarquia com eles in-compatíveis (lex posterior derrogat prior). Portanto, relativamente aos tra-tados e convenções sobre cooperação jurídica internacional, ou se adota o sistema neles estabelecidos, ou, se inconstitucionais, não se adota, caso em

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que será indispensável também denunciá-los no foro próprio. O que não se admite, porque então sim haverá ofensa à Constituição, é que os órgãos do Poder Judiciário pura e simplesmente neguem aplicação aos referidos precei-tos normativos, sem antes declarar formalmente a sua inconstitucionalidade (Súmula vinculante 10⁄STF).

6. Não são inconstitucionais as cláusulas dos tratados e convenções sobre cooperação jurídica internacional (v.g., art. 46 da Convenção de Mérita — ‘Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção’ e art. 18 da Convenção de Palermo — ‘Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional’) que estabelecem formas de cooperação entre autoridades vin-culadas ao Poder Executivo, encarregadas da prevenção ou da investigação penal, no exercício das suas funções típicas. A norma constitucional do art. 105, I, i, não instituiu monopólio universal do STJ de intermediar essas re-lações. A competência ali estabelecida — de conceder exequatur a cartas ro-gatórias —, diz respeito, exclusivamente, a relações entre os órgãos do Poder Judiciário, não impedindo nem sendo incompatível com as outras formas de cooperação jurídica prevista nas referidas fontes normativas internacionais.

7. No caso concreto, o que tem é pedido de cooperação jurídica consis-tente em compartilhamento de prova, formulado por autoridade estrangeira (Procuradoria Geral da Federação da Rússia) no exercício de atividade inves-tigatória, dirigido à congênere autoridade brasileira (Procuradoria Geral da República), que obteve a referida prova também no exercício de atividade in-vestigatória extrajudicial. O compartilhamento de prova é uma das mais carac-terísticas medidas de cooperação jurídica internacional, previstas nos acordos bilaterais e multilateriais que disciplinam a matéria, inclusive na ‘Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizados Transnacional’ (Convenção de Palermo), promulgada no Brasil pelo Decreto 5.015, de 12.03.04, e na ‘Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção’ (Convenção de Mérita), de 31.10.03, promulgada pelo Decreto 5.687, de 31.01.06, de que a Fede-ração da Rússia também é signatária. Consideradas essas circunstâncias, bem como o conteúdo e os limites próprios da competência prevista no art. 105, I, i da Constituição, a cooperação jurídica requerida não dependia de expe-dição de carta rogatória por autoridade judiciária da Federação da Rússia e, portanto, nem de exequatur ou de outra forma de intermediação do Superior Tribunal de Justiça, cuja competência, conseqüentemente, não foi usurpada.

8. Reclamação improcedente.”A Ministra Maria Th ereza de Assis Moura, acompanhada pelo Ministro

Ari Pargendler e mais três Ministros desta Egrégia Corte, entendeu de forma contrária.

Em seu percuciente voto, a Ministra Maria Th ereza traçou as diferenças entre atos de investigação, que estariam sujeitos à cooperação internacional, empreendidos por tratados internacionais de combate à corrupção dos quais

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o Brasil é signatário, e atos de prova, típico de processos judiciais. Trazendo a lição de Aury Lopes Jr., elucidou:

“Sobre os atos de prova, podemos afi rmar que:a) estão dirigidos a convencer o juiz da verdade de uma afi rmação;b) estão a serviço do processo e integram o processo penal;c) dirigem-se a formar um juízo de certeza — tutela de segurança;d) servem à sentença;e) exigem estrita observância da publicidade, contradição e imediação;f ) são praticados ante o juiz que julgar;Substancialmente distintos, os atos de investigação (instrução preliminar):* não se referem a uma afi rmação, mas a uma hipótese;* estão a serviço da instrução preliminar, isto é, da fase pré-processual e

para o cumprimento de seus objetivos;* servem para formar um juízo de probabilidade, e não de certeza;* não exigem estrita observância da publicidade, contradição e imediação,

pois podem ser restringidas;* servem para a formação da opinio delicti do acusador;* não estão destinados à sentença, mas a demonstrar a probabilidade do

fumus commissi delicti para justifi car o processo (recebimento da ação penal ou não-processo (arquivamento);

* também servem de fundamento para decisões interlocutórias de impu-tação (indiciamento) e adoção de medidas cautelares pessoais, reais ou outras restrições de caráter provisional;

* podem ser praticadas pelo Ministério Público ou pela Polícia Judiciária.”Concluindo que a apreensão do hard disk excedeu os limites da ativida-

de meramente investigatória, porquanto decorrente de medida assecuratória, entendeu que sua permuta com terceiro estranho à lide agride a intimidade do acusado (no caso, o reclamante), bem como fere os pressupostos de garan-tia do processo penal brasileiro.

Por fi m, assentou: “Fazendo o cotejo do substrato da acusação originária ofertada perante o Distrito de Moscou com a imputação existente no Brasil, tudo leva a crer que o pedido formulado pela Federação Russa é, na essência, de natureza judicial, estando, portanto, atingido pelo rito da carta rogatória, de competência desta Corte”.

Já o Ministro Ari Pargendler, corroborando o entendimento da Ministra Maria Th ereza, afi rmou: “Salvo melhor juízo, havendo processo penal lá e cá, já não se está diante de uma mera investigação policial, de sorte que a coope-ração jurídica internacional no combate ao crime deve se subordinar ao crivo do Superior Tribunal de Justiça”.

Inclinei-me inicialmente a acompanhar a divergência, pois, nos termos do voto do i. Ministro Ari Pargendler, tratando-se de prova a ser valorada no processo penal, pressupõe-se que a questão fuja da simples investigação.

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Todavia, melhor refl etindo sobre os debates que se travaram, vou somar meu voto ao da maioria para julgar a reclamação improcedente.

Cartas rogatórias, que são oriundas de países estrangeiros, denominadas por alguns autores de passivas, nada mais são que solicitações do Tribunal alienígena na busca de cooperação da Justiça Nacional para realização de determinados atos que interessem ao processo lá em trâmite. Diria mesmo que se trata de uma comunicação ofi cial entre os Poderes Judiciários de países distintos, buscando a cooperação para realização de atos diversos.

Normalmente, objetivam diligências, tais como citações, notifi cações, oitivas de testemunhas etc., sem efi cácia executória. Tanto que o Supremo Tribunal Federal entende que as cartas rogatórias devem ser cumpridas desde que não ofendam a ordem pública ou a soberania nacional ou não possuam caráter executório.

Portanto, indiscutivelmente, a carta rogatória passiva é expedida pela au-toridade judicial do país estrangeiro, o que pressupõe a existência de processo naquele local.

Penso, contudo, que o só fato de existir processo penal em trâmite na República Russa em desfavor do ora reclamante não autoriza a conclusão de que o interesse da Procuradoria-Geral da Federação Russa seja única e exclu-sivamente afeto ao mencionado processo. Penso que o foco de análise não deve estar voltado para o processo existente naquele país, até porque compete ao Juiz estrangeiro valorar as provas que forem juntadas e desconsiderá-las se as vias de sua obtenção não forem as adequadas conforme as leis lá vigentes.

Portanto, o foco de atenção deve estar voltado ao fato de que há um ofício por meio do qual são solicitados documentos investigatórios de Procuradoria para Procuradoria, entre a República da Rússia e a República Federativa do Brasil, ou seja, se inexiste uma carta rogatória requisitando hard disk, então é de se presumir que o interesse da procuradoria daquele país ultrapasse a mera realização de provas nos autos do processo penal lá existente.

Daí entendo que tem razão o Ministro Relator ao tratar a questão sob o enfoque da cooperação entre nações para o combate à criminalidade transna-cional. Essas cooperações se dão mediante acordos internacionais em que os países signatários propõem-se a colaborar uns com os outros no fornecimen-to de informações, usualmente documentais.

Veja-se, a título de exemplo, a Convenção das Nações Unidas Contra a Corrupção, Decreto n. 5.687, de 31 de janeiro de 2006, que o Ministro Relator mencionou com sendo a “Convenção de Mérida), cujo preâmbulo versa sobre a gravidade dos problemas que transcendem o âmbito nacional causados pela corrupção:

PreâmbuloOs Estados Partes da presente convenção,

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Preocupados com a gravidade dos problemas e com as ameaças decorren-tes da corrupção, para a estabilidade e a segurança das sociedades, ao enfra-quecer as instituições e os valores da democracia, da ética e da justiça e ao comprometer o desenvolvimento sustentável e o Estado de Direito;

Preocupados, também, pelos vínculos entre a corrupção e outras formas de delinqüência, em particular o crime organizado e a corrupção econômica, incluindo a lavagem de dinheiro;

Preocupados, ainda, pelos casos de corrupção que penetram diversos seto-res da sociedade, os quais podem comprometer uma proporção importante dos recursos dos Estados e que ameaçam a estabilidade política e o desenvol-vimento sustentável dos mesmos;

Convencidos de que a corrupção deixou de ser um problema local para converter-se em um fenômeno transnacional que afeta todas as sociedades e economias, faz-se necessária a cooperação internacional para preveni-la e lutar contra ela;

Convencidos, também, de que se requer um enfoque amplo e multidisci-plinar para prevenir e combater efi cazmente a corrupção;

Convencidos, ainda, de que a disponibilidade de assistência técnica pode desempenhar um papel importante para que os Estados estejam em melhores condições de poder prevenir e combater efi cazmente a corrupção, entre ou-tras coisas, fortalecendo suas capacidades e criando instituições;

Convencidos de que o enriquecimento pessoal ilícito pode ser particular-mente nocivo para as instituições democráticas, as economias nacionais e o Estado de Direito;

Decididos a prevenir, detectar e dissuadir com maior efi cácia as transfe-rências internacionais de ativos adquiridos ilicitamente e a fortalecer a coo-peração internacional para a recuperação destes ativos;

Reconhecendo os princípios fundamentais do devido processo nos pro-cessos penais e nos procedimentos civis ou administrativos sobre direitos de propriedade;

Tendo presente que a prevenção e a erradicação da corrupção são respon-sabilidades de todos os Estados e que estes devem cooperar entre si, com o apoio e a participação de pessoas e grupos que não pertencem ao setor públi-co, como a sociedade civil, as organizações não-governamentais e as organiza-ções de base comunitárias, para que seus esforços neste âmbito sejam efi cazes;

Tendo presentes também os princípios de devida gestão dos assuntos e dos bens públicos, eqüidade, responsabilidade e igualdade perante a lei, assim como a necessidade de salvaguardar a integridade e fomentar uma cultura de rechaço à corrupção;

Elogiando o trabalho da Comissão de Prevenção de Delitos e Justiça Penal e o Escritório das Nações Unidas contra as Drogas e o Delito na prevenção e na luta contra a corrupção;

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Recordando o trabalho realizado por outras organizações internacionais e regionais nesta esfera, incluídas as atividades do Conselho de Coopera-ção Aduaneira (também denominado Organização Mundial de Aduanas), o Conselho Europeu, a Liga dos Estados Árabes, a Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômicos, a Organização dos Estados Americanos, a União Africana e a União Européia;

Tomando nota com reconhecimento dos instrumentos multilaterais en-caminhados para prevenir e combater a corrupção, incluídos, entre outros, a Convenção Interamericana contra a Corrupção, aprovada pela Organização dos Estados Americanos em 29 de março de 1996, o Convênio relativo à luta contra os atos de corrupção no qual estão envolvidos funcionários das Comunidades Européias e dos Estados Partes da União Européia, aprovado pelo Conselho da União Européia em 26 de maio de 1997, o Convênio sobre a luta contra o suborno dos funcionários públicos estrangeiros nas transações comerciais internacionais, aprovado pelo Comitê de Ministros do Conse-lho Europeu em 27 de janeiro de 1999, o Convênio de direito civil sobre a corrupção, aprovado pelo Comitê de Ministros do Conselho Europeu em 4 de novembro de 1999 e a Convenção da União Africana para prevenir e combater a corrupção, aprovada pelos Chefes de Estado e Governo da União Africana em 12 de julho de 2003;

Acolhendo com satisfação a entrada em vigor, em 29 de setembro de 2003, da Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Internacional;

Chegaram em acordo ao seguinte:”

Concluo, portanto, citando parte do voto do i. Relator::

“Bem se percebe, pois, que as relações internacionais de cooperação e assistência mútua na área jurídica, vão muito além das estabelecidas entre os órgãos jurisdi-cionais dos Estados, sujeitas a regime de exequatur e, portanto, à intermediação do Superior Tribunal de Justiça. Segundo decorrer do sistema previsto nos diversos acordos internacionais fi rmados pelo Brasil, as relações de cooperação e assistência são estabelecidas também entre autoridades não judiciais, integrantes do Poder Executivo, competentes para atuar nas áreas de prevenção e de investigação de ilícitos civis e penais de caráter transnacional, como é o caso das autoridades de fi scalização, das polícias e do Ministério Público.”

Ante o exposto, somando meu voto ao do i. Relator, julgo improcedente a presente reclamação.

É como voto.

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CERTIDÃO DE JULGAMENTO

CORTE ESPECIALNúmero Registro: 2007⁄0254916-5 Rcl 2645 ⁄ SPMATÉRIA CRIMINAL

Números Origem: 200661810051180 200661810086478

PAUTA: 21⁄10⁄2009 JULGADO: 18⁄11⁄2009

RELATORExmo. Sr. Ministro TEORI ALBINO ZAVASCKI

PRESIDENTE DA SESSÃOExmo. Sr. Ministro CESAR ASFOR ROCHA

SUBPROCURADOR-GERAL DA REPÚBLICAExmo. Sr. Dr. EDINALDO DE HOLANDA BORGES

SECRETÁRIABela. VANIA MARIA SOARES ROCHA

RECLAMANTE: BÓRIS ABRAMOVICH BEREZOVSKYADVOGADO: ALBERTO ZACHARIAS TORON E OUTRO(S)ADVOGADA: HELOÍSA ESTELLITA E OUTRO(S)RECLAMADO: JUIZ FEDERAL DA 6A VARA CRIMINAL DA SE-

ÇÃO JUDICIÁRIA DO ESTADO DE SÃO PAULOINTERES.: MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL

ASSUNTO: DIREITO PENAL — CRIMES PREVISTOS NA LEGIS-LAÇÃO EXTRAVAGANTE — CRIMES DE LAVAGEM OU OCULTA-ÇÃO DE BENS, DIREITOS OU VALORES

CERTIDÃO

Certifi co que a egrégia CORTE ESPECIAL, ao apreciar o processo em epígrafe na sessão realizada nesta data, proferiu a seguinte decisão:

Prosseguindo no julgamento, após o voto-vista do Sr. Ministro João Otá-vio de Noronha acompanhando o voto do Sr. Ministro Relator, a Corte Es-

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pecial, por maioria, julgou improcedente a reclamação, nos termos do voto do Sr. Ministro Relator. Vencidos os Srs. Ministros Nilson Naves, Ari Par-gendler, Fernando Gonçalves, Aldir Passarinho Junior, Hamilton Carvalhido e Maria Th ereza de Assis Moura.

Os Srs. Ministros Castro Meira, Denise Arruda, Arnaldo Esteves Lima, Massami Uyeda, Sidnei Beneti, Felix Fischer, Gilson Dipp, Eliana Calmon, Paulo Gallotti, Francisco Falcão, Nancy Andrighi, Laurita Vaz, Luiz Fux e João Otávio de Noronha votaram com o Sr. Ministro Relator.

Ausentes, justifi cadamente, o Sr. Ministro Francisco Falcão e, ocasional-mente, o Sr. Ministro Gilson Dipp.

Brasília, 18 de novembro de 2009

VANIA MARIA SOARES ROCHASecretária

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BIBLIOGRAFIA

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ANEXO I

Case Miliken v. Pratt

Seth M. Milliken & others vs. Sarah A. Pratt.

[NO NUMBER IN ORIGINAL]

SUPREME COURT OF MASSACHUSETTS

125 Mass. 374; 1878 Mass. LEXIS 80

October 4, 1877, Argued September 12, 1878, Decided

PRIOR HISTORY:  [**1] Worcester. Contract to recover $ 500 and in-terest from January 6, 1872. Writ dated June 30, 1875. Th e case was submit-ted to the Superior Court on agreed facts, in substance as follows:

Th e plaintiff s are partners doing business in Portland, Maine, under the fi rm name of Deering, Milliken & Co. Th e defendant is and has been since 1850, the wife of Daniel Pratt, and both have always resided in Massachuset-ts. In 1870, Daniel, who was then doing business in Massachusetts, applied to the plaintiff s at Portland for credit, and they required of him, as a condi-tion of granting the same, a guaranty from the defendant to the amount of fi ve hundred dollars, and accordingly he procured from his wife the follo-wing instrument:

“Portland, January 29, 1870. In consideration of one dollar paid by Dee-ring, Milliken & Co., receipt of which is hereby acknowledged, I guarantee the payment to them by Daniel Pratt of the sum of fi ve hundred dollars, from time to time as he may want—this to be a continuing guaranty. Sarah A. Pratt.”

Th is instrument was executed by the defendant two or three days after its date, at her home in Massachusetts, and there delivered by her to her husband, who sent [**2] it by mail from Massachusetts to the plaintiff s in Portland; and the plaintiff s received it from the post offi ce in Portland early in February, 1870.

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Th e plaintiff s subsequently sold and delivered goods to Daniel from time to time until October 7, 1871, and charged the same to him, and, if compe-tent, it may be taken to be true, that in so doing they relied upon the guaran-ty. Between February, 1870, and September 1, 1871, they sold and delivered goods to him on credit to an amount largely exceeding $ 500, which were fully settled and paid for by him. Th is action is brought for goods sold from September 1, 1871, to October 7, 1871, inclusive, amounting to $ 860.12, upon which he paid $ 300, leaving a balance due of $ 560.12. Th e one dollar mentioned in the guaranty was not paid, and the only consideration moving to the defendant therefor was the giving of credit by the plaintiff s to her hus-band. Some of the goods were selected personally by Daniel at the plaintiff s’ store in Portland, others were ordered by letters mailed by Daniel from Mas-sachusetts to the plaintiff s at Portland, and all were sent by the plaintiff s by express from Portland to Daniel in Massachusetts, who paid all [**3] express charges. Th e parties were cognizant of the facts.

By a statute of Maine, duly enacted and approved in 1866, it is enacted that “the contracts of any married woman, made for any lawful purpose, shall be valid and binding, and may be enforced in the same manner as if she were sole.” Th e statutes and the decisions of the court of Maine may be referred to.

Payment was duly demanded of the defendant before the date of the writ, and was refused by her. Th e Superior Court ordered judgment for the defen-dant; and the plaintiff s appealed to this court.

DISPOSITION: Judgment for the plaintiff s.

HEADNOTES: Th e validity of a contract, even as regards the capacity of the parties, is generally to be determined by the law of the state in which it is made.

If an inhabitant of this Commonwealth buys goods personally in another state, or orders them by letter mailed here, and they are delivered to a carrier for him there, the contract is made in that state.

A contract of guaranty, signed in this Commonwealth and sent by mail to another state, and assented to and acted on there, for the price of goods sold there, is made in that state.

A contract, made in another state by a married woman domiciled here, which a married woman was not at the time capable of making under the

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law of this Commonwealth, but was then allowed by the law of that state to make, and which she could now lawfully make in this Commonwealth, will sustain an action against her in our courts, although the contract was made by letter sent from her here to the other party there.

COUNSEL: W. W. Rice, for the plaintiff s.

W. S. Stearns & J. H. Butler, for the defendant.

JUDGES: Gray, C. J. Endicott & Lord, JJ., absent.

OPINIONBY: Gray

OPINION: [*375] Gray, C. J. Th e general rule is that the validity of a contract is to be determined by the law of the state in which it is made; if it is valid there, it is deemed valid everywhere, and will sustain an action in the courts of a state whose laws do not permit such a contract. Scudder v. Union National Bank, 91 U.S. 406. Even a contract expressly prohibited by the statutes of the state in which the suit is brought, if not in [**4] itself immoral, is not necessarily nor usually deemed so invalid that the comity of the state, as administered by its courts, will refuse to entertain an action on such a contract made by one of its own [*376] citizens abroad in a state the laws of which permit it. Greenwood v. Curtis, 6 Mass. 358. M’Intyre v. Parks, 3 Met. 207.

If the contract is completed in another state, it makes no diff erence in principle whether the citizen of this state goes in person, or sends an agent, or writes a letter, across the boundary line between the two states. As was said by Lord Lyndhurst, “If I, residing in England, send down my agent to Scotland, and he makes contracts for me there, it is the same as if I myself went there and made them.” Pattison v. Mills, 1 Dow & Cl. 342, 363. So if a person re-siding in this state signs and transmits, either by a messenger or through the post-offi ce, to a person in another state, a written contract, which requires no special forms or solemnities in its execution, and no signature of the person to whom it is addressed, and is assented to and acted on by him there, the contract is made there, just as if the writer personally took [**5] the executed contract into the other state, or wrote and signed it there; and it is no ob-jection to the maintenance of an action thereon here, that such a contract is prohibited by the law of this Commonwealth. M’Intyre v. Parks, above cited.

Th e guaranty, bearing date of Portland, in the State of Maine, was exe-cuted by the defendant, a married woman, having her home in this Com-monwealth, as collateral security for the liability of her husband for goods

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sold by the plaintiff s to him, and was sent by her through him by mail to the plaintiff s at Portland. Th e sales of the goods ordered by him from the plaintiff s at Portland, and there delivered by them to him in person, or to a carrier for him, were made in the State of Maine. Orcutt v. Nelson, 1 Gray 536. Kline v. Baker, 99 Mass. 253. Th e contract between the defendant and the plaintiff s was complete when the guaranty had been received and acted on by them at Portland, and not before. Jordan v. Dobbins, 122 Mass. 168. It must therefore be treated as made and to be performed in the State of Maine.

Th e law of Maine authorized a married woman to bind herself by any contract as if she were unmarried. St. [**6] of Maine of 1866, c. 52. Mayo v. Hutchinson, 57 Me. 546. Th e law of Massachusetts, as then existing, did not allow her to enter into a contract as surety or for the accommodation of her husband or of [*377] any third person. Gen. Sts. c. 108, ¤ 3. Nourse v. Henshaw, 123 Mass. 96. Since the making of the contract sued on, and before the bringing of this action, the law of this Commonwealth has been changed, so as to enable married women to make such contracts. St. 1874, c. 184. Major v. Holmes, 124 Mass. 108. Kenworthy v. Sawyer, ante, 28.

Th e question therefore is, whether a contract made in another state by a married woman domiciled here, which a married woman was not at the time capable of making under the law of this Commonwealth, but was then allowed by the law of that state to make, and which she could now lawfully make in this Commonwealth, will sustain an action against her in our courts.

It has been often stated by commentators that the law of the domicil, regulating the capacity of a person, accompanies and governs the person everywhere. But this statement, in modern times at least, is subject to many qualifi cations; and [**7] the opinions of foreign jurists upon the subject, the principal of which are collected in the treatises of Mr. Justice Story and of Dr. Francis Wharton on the Confl ict of Laws, are too varying and contradictory to control the general current of the English and American authorities in fa-vor of holding that a contract, which by the law of the place is recognized as lawfully made by a capable person, is valid everywhere, although the person would not, under the law of his domicil, be deemed capable of making it.

Two cases in the time of Lord Hardwicke have been sometimes supposed to sustain the opposite view. Th e fi rst is Ex parte Lewis, 1 Ves. Sen. 298, de-cided in the Court of Chancery in 1749, in which a petition, under the St. of 4 Geo. II. c. 10, that a lunatic heir of a mortgagee might be directed to convey to the mortgagor, was granted by Lord Hardwicke, on the ground of “there having been a proceeding before a proper jurisdiction, the Senate of

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Hamburgh, where he resided, upon which he was found non compos, and a curator or guardian appointed for him and his aff airs, which proceeding the court was obliged to take notice of.” But the foreign adjudication was thus taken [**8] notice of as competent evidence of the lunacy only; and that the authority of the foreign guardian was not recognized as extending to England is evident from the fact that the conveyance prayed for and ordered was from the lunatic himself. Th e other is [*378] Morrison’s case, in the House of Lords in 1750, for a long time principally known in England and America by the imperfect and confl icting statements of counsel arguendo in Sill v. Worswick, 1 H. Bl. 677, 682; but in which, as the Scotch books of reports show, the decision really was that a committee, appointed in England, of a lunatic re-siding there, could not sue in Scotland upon a debt due him, but that, upon obtaining a power of attorney from the lunatic, they might maintain a suit in Scotland in his name; and Lord Hardwicke said that the law would be the same in England — evidently meaning, as appears by his own statement afterwards, that the same rule would prevail in England in the case of a fo-reigner who had been declared a lunatic, and as such put under guardianship in the country of his domicil. Morison’s Dict. Dec. 4595. 1 Cr. & Stew. 454, 459. Th orne v. Watkins, 2 Ves. Sen. 35, 37. Both [**9] those cases, therefore, rightly understood, are in exact accordance with the later decisions, by which it is now settled in Great Britain and in the United States, that the appoint-ment of a guardian of an infant or lunatic in one state or country gives him no authority and has no eff ect in another, except so far as it may infl uence the discretion of the courts of the latter, in the exercise of their own independent jurisdiction, to appoint the same person guardian, or to decree the custody of the ward to him. Ex parte Watkins, 2 Ves. Sen. 470. In re Houstoun, 1 Russ. 312. Johnstone v. Beattie, 10 Cl. & Fin. 42. Stuart v. Bute, 9 H. L. Cas. 440; S. C. 4 Macq. 1. Nugent v. Vetzera, L. R. 2 Eq. 704. Woodworth v. Spring, 4 Allen 321. Story Confl . ¤ 499.

Lord Eldon, when Chief Justice of the Common Pleas, and Chief Justice Kent and his associates in the Supreme Court of New York, held that the question whether an infant was liable to an action in the courts of his domi-cil, upon a contract made by him in a foreign country, depended upon the question whether by the law of that country such a contract bound an infant. Male v. Roberts, 3 [**10] Esp. 163. Th ompson v. Ketcham, 8 Johns. 189.

Mr. Westlake, who wrote in 1858, after citing the decision of Lord Eldon, well observed, “Th at there is not more authority on the subject may be refer-red to its not having been questioned;” and summed up the law of England thus: “While the English law remains as it is, it must, on principle, be taken as excluding, [*379] in the case of transactions having their seat here, not

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only a foreign age of majority, but also all foreign determination of status or capacity, whether made by law or by judicial act, since no diff erence can be established between the cases, nor does any exist on the continent.” “Th e validity of a contract made out of England, with regard to the personal capa-city of the contractor, will be referred in our courts to the lex loci contractus; that is, not to its particular provisions on the capacity of its domiciled sub-jects, but in this sense, that, if good where made, the contract will be held good here, and conversely.” Westlake’s Private International Law, §§ 401, 402, 404.

In a recent case, Lord Romilly, M. R., held that a legacy bequeathed by one domiciled in England to a boy domiciled with his father [**11] in Ham-burgh, by the law of which boys do not become of age until twenty-two and the father is entitled as guardian to receive a legacy bequeathed to an infant, might be paid to the boy at his coming of age by the law of England, althou-gh still a minor by the law of his domicil, and in the meanwhile must be dealt with as an infant’s legacy. In re Hellmann’s Will, L. R. 2 Eq. 363.

Th e Supreme Court of Louisiana, in two cases which have long been con-sidered leading authorities, strongly asserted the doctrine that a person was bound by a contract which he was capable by the law of the place, though not by the law of his own domicil, of making; as, for instance, in the case of a contract made by a person over twenty-one and under twenty-fi ve years of age, in a state whose laws authorized contracts to be made at twenty-one, whereas by the laws of his domicil he was incapable of contracting under twenty-fi ve. Baldwin v. Gray 16 Martin 192, 193. Saul v. His Creditors, 17 Martin 569, 597. Th e same doctrine was recognized as well settled in An-drews v. His Creditors, 11 La. 464, 476.

In other cases of less note in that state, the question of personal capacity was indeed [**12] spoken of as governed by the law of the domicil. Le Breton v. Nouchet, 3 Martin 60, 70. Barrera v. Alpuente, 18 Martin 69, 70. Garnier v. Poydras, 13 La. 177, 182. But in none of them was the statement necessary to the decision. In Le Breton v. Nouchet, the point adjudged was, that where a man and woman domiciled in Louisiana [*380] (by the law of which the wife retains her separate property) were married, with the intention of returning to Louisiana, in the Mississippi Territory, (where the rule of the common law prevailed, by which the wife’s personal property became her husband’s,) the law of Louisiana, in which the parties intended to continue to reside, gover-ned their rights in the wife’s property; and the further expression of an opi-nion that the rule would be the same if the parties intended to remain in the Mississippi Territory was purely obiter dictum, and can hardly be reconciled

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with later decisions of the same court. Gale v. Davis, 4 Martin 645. Saul v. His Creditors, 17 Martin 569. See also Read v. Earle, 12 Gray 423. In Barrera v. Alpuente, the case was discussed in the opinion upon the hypothesis [**13] that the capacity to receive a legacy was governed by the law of the domicil; but the same result would have followed from holding that it was governed by the law of the place where the right accrued and was sought to be enfor-ced. In Garnier v. Poydras, the decision turned on the validity of a power of attorney executed and a judicial authorization given in France, where the husband and wife had always resided.

In Greenwood v. Curtis, Chief Justice Parsons said, “By the common law, upon principles of national comity, a contract made in a foreign place, and to be there executed, if valid by the laws of that place, may be a legitimate ground of action in the courts of this state; although such contract may not be valid by our laws, or even may be prohibited to our citizens;” and that the Chief Justice considered this rule as extending to questions of capacity is evi-dent from his subsequent illustration of a marriage contracted abroad betwe-en persons prohibited to intermarry by the law of their domicil. 6 Mass. 358. Th e validity of such marriages (except in case of polygamy, or of marriages incestuous according to the general opinion of Christendom) has been repea-tedly [**14] affi rmed in this Commonwealth. Medway v. Needham, 16 Mass. 157. Sutton v. Warren, 10 Met. 451. Commonwealth v. Lane, 113 Mass. 458.

Th e recent decision in Sottomayor v. De Barros, 3 P. D. 1, by which Lords Justices James, Baggallay and Cotton, without referring to any of the cases that we have cited, and reversing the judgment of Sir Robert Phillimore in 2 P. D. 81, held that a [*381] marriage in England between fi rst cousins, Portuguese subjects, resident in England, who by the law of Portugal were incapable of intermarrying except by a Papal dispensation, was therefore null and void in England, is utterly opposed to our law; and consequently the dictum of Lord Justice Cotton, “It is a well-recognized principle of law that the question of personal capacity to enter into any contract is to be decided by the law of domicil,” is entitled to little weight here.

It is true that there are reasons of public policy for upholding the validity of marriages, that are not applicable to ordinary contracts; but a greater dis-regard of the lex domicilii can hardly be suggested, than in the recognition of the validity of a marriage contracted in another [**15] state, which is not authorized by the law of the domicil, and which permanently aff ects the re-lations and the rights of two citizens and of others to be born.

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Mr. Justice Story, in his Commentaries on the Confl ict of Laws, after elaborate consideration of the authorities, arrives at the conclusion that “in regard to questions of minority or majority, competency or incompetency to marry, incapacities incident to coverture, guardianship, emancipation, and other personal qualities and disabilities, the law of the domicil of birth, or the law of any other acquired and fi xed domicil, is not generally to govern, but the lex loci contractus aut actus, the law of the place where the contract is made, or the act done;” or as he elsewhere sums it up, “although foreign jurists generally hold that the law of the domicil ought to govern in regard to the capacity of persons to contract; yet the common law holds a diff erent doctrine, namely, that the lex loci contractus is to govern.” Story Confl . §§ 103, 241. So Chancellor Kent, although in some passages of the text of his Commentaries he seems to incline to the doctrine of the civilians, yet in the notes after wards added unequivocally [**16] concurs in the conclusion of Mr. Justice Story. 2 Kent Com. 233 note, 458, 459 & note.

In Pearl v. Hansborough, 9 Humph. 426, the rule was carried so far as to hold that where a married woman domiciled with her husband in the Sta-te of Mississippi, by the law of which a purchase by a married woman was valid and the property purchased went to her separate use, bought personal property in Tennessee, by the law of which married women were incapable of contracting, [*382] the contract of purchase was void and could not be enforced in Tennessee. Some authorities, on the other hand, would uphold a contract made by a party capable by the law of his domicil, though incapa-ble by the law of the place of the contract. In re Hellmann’s Will, and Saul v. His Creditors, above cited. But that alternative is not here presented. In Hill v. Pine River Bank, 45 N.H. 300, the contract was made in the state of the woman’s domicil, so that the question before us did not arise and was not considered.

Th e principal reasons on which continental jurists have maintained that personal laws of the domicil, aff ecting the status and capacity of all inhabi-tants of a particular class, [**17] bind them wherever they may go, appear to have been that each state has the rightful power of regulating the status and condition of its subjects, and, being best acquainted with the circumstances of climate, race, character, manners and customs, can best judge at what age young persons may begin to act for themselves, and whether and how far married women may act independently of their husbands; that laws limiting the capacity of infants or of married women are intended for their protec-tion, and cannot therefore be dispensed with by their agreement; that all civilized states recognize the incapacity of infants and married women; and that a person, dealing with either, ordinarily has notice, by the apparent age

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or sex, that the person is likely to be of a class whom the laws protect, and is thus put upon inquiry how far, by the law of the domicil of the person, the protection extends.

On the other hand, it is only by the comity of other states that laws can operate beyond the limit of the state that makes them. In the great majority of cases, especially in this country, where it is so common to travel, or to transact business through agents, or to correspond by letter, from one state [**18] to another, it is more just, as well as more convenient, to have regard to the law of the place of the contract, as a uniform rule operating on all con-tracts of the same kind, and which the contracting parties may be presumed to have in contemplation when making their contracts, than to require them at their peril to know the domicil of those with whom they deal, and to as-certain the law of that domicil, however remote, which in many cases could not be done [*383] without such delay as would greatly cripple the power of contracting abroad at all.

As the law of another state can neither operate nor be executed in this state by its own force, but only by the comity of this state, its operation and enforcement here may be restricted by positive prohibition of statute. A state may always by express enactment protect itself from being obliged to enforce in its courts contracts made abroad by its citizens, which are not authorized by its own laws. Under the French code, for instance, which enacts that the laws regulating the status and capacity of persons shall bind French subjects, even when living in a foreign country, a French court cannot enforce a con-tract made by a Frenchman [**19] abroad, which he is incapable of making by the law of France. See Westlake, §§ 399, 400.

It is possible also that in a state where the common law prevailed in full force, by which a married woman was deemed incapable of binding herself by any contract whatever, it might be inferred that such an utter incapacity, lasting throughout the joint lives of husband and wife, must be considered as so fi xed by the settled policy of the state, for the protection of its own ci-tizens, that it could not be held by the courts of that state to yield to the law of another state in which she might undertake to contract.

But it is not true at the present day that all civilized states recognize the absolute incapacity of married women to make contracts. Th e tendency of modern legislation is to enlarge their capacity in this respect, and in many states they have nearly or quite the same powers as if unmarried. In Mas-sachusetts, even at the time of the making of the contract in question, a married woman was vested by statute with a very extensive power to carry

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on business by herself, and to bind herself by contracts with regard to her own property, business and earnings, and, before the bringing of the [**20] present action, the power had been extended so as to include the making of all kinds of contracts, with any person but her husband, as if she were un-married. Th ere is therefore no reason of public policy which should prevent the maintenance of this action.

Judgment for the plaintiff s.

DISPONÍVEL EM: http://www.uniset.ca/other/pubpol/125Mass374.html

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ANEXO II

Caso Janko Rottman v. Freistaat Bayern

Processo C-135/08Janko Rottman

contra

Freistaat Bayern

(pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Bundesverwaltungsgericht)

«Cidadania da União — Artigo 17.° CE − Nacionalidade de um Es-tado-Membro adquirida pelo nascimento — Nacionalidade de outro

Estado-Membro adquirida por naturalização — Perda da nacionalidade de origem por causa dessa naturalização — Perda, com efeitos retroactivos, da nacionalidade adquirida por naturalização, em razão de actos fraudulentos cometidos no momento da sua aquisição — Apatridia que implica a perda

do estatuto de cidadão da União»

Sumário do acórdão

1. Cidadania da União Europeia — Disposições do Tratado — Âmbito de aplicação pessoal

(Artigo 17.° CE)

2. Cidadania da União Europeia — Disposições do Tratado — Nacio-nalidade de um Estado-Membro

(Artigo 17.° CE)

1. A situação de um cidadão da União Europeia confrontado com uma decisão de revogação da naturalização adoptada pelas autoridades de um Estado-Membro que o coloca, após ter perdido a nacionalidade originária de outro Estado-Membro, numa situação susceptível de implicar a perda do estatuto conferido pelo artigo 17.° CE e dos direitos correspondentes, é abrangida, pela sua própria natureza e pelas suas consequências, pelo direito da União.

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(cf. n.° 42)

2. O direito da União, nomeadamente o artigo 17.° CE, não se opõe a que um Estado-Membro revogue a nacionalidade desse Estado-Membro que concedera, por naturalização, a um cidadão da União Europeia, quando esta tenha sido obtida de modo fraudulento, desde que a decisão de revogação respeite o princípio da proporcionalidade.

Com efeito, uma decisão de revogação da naturalização em virtude de actos fraudulentos corresponde a um motivo de interesse geral. A este propó-sito, é legítimo que um Estado-Membro queira proteger a particular relação de solidariedade e de lealdade entre ele próprio e os seus nacionais e a recipro-cidade dos direitos e deveres, que são o fundamento da relação de nacionali-dade. Esta consideração sobre a legitimidade, em princípio, duma decisão de revogação da naturalização em virtude de actos fraudulentos continua válida, em princípio, quando essa revogação tem por consequência que a pessoa perca, para além da nacionalidade do Estado-Membro de naturalização, a cidadania da União.

Todavia, compete ao órgão jurisdicional nacional averiguar se a decisão de revogação respeita o princípio da proporcionalidade, no que respeita às consequências que implica para a situação da pessoa interessada à luz do direito da União, para além de, se necessário, examinar a proporcionalidade dessa decisão à luz do direito nacional. Por conseguinte, dada a importância que o direito primário atribui ao estatuto de cidadão da União, há que ter em conta, no exame duma decisão de revogação da naturalização, as eventuais consequências que essa decisão implica para o interessado e, eventualmente, para os membros da sua família, no que respeita à perda dos direitos de que goza qualquer cidadão da União e verifi car, nomeadamente, se essa perda se justifi ca em relação à gravidade da infracção cometida por este, ao tempo decorrido entre a decisão de naturalização e a decisão de revogação e à possi-bilidade de o interessado readquirir a sua nacionalidade originária.

(cf. n.os 51, 54-56, disp.)

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DIREITO GLOBAL II

FGV DIREITO RIO 342

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Grande Secção)

2 de Março de 2010 (*)

«Cidadania da União — Artigo 17.° CE − Nacionalidade de um Es-tado-Membro adquirida pelo nascimento — Nacionalidade de outro

Estado-Membro adquirida por naturalização — Perda da nacionalidade de origem por causa dessa naturalização — Perda, com efeitos retroactivos, da nacionalidade adquirida por naturalização, em razão de actos fraudulentos cometidos no momento da sua aquisição — Apatridia que implica a perda

do estatuto de cidadão da União»

No processo C-135/08,

que tem por objecto um pedido de decisão prejudicial nos termos do ar-tigo 234.° CE, apresentado pelo Bundesverwaltungsgericht (Alemanha), por decisão de 18 de Fevereiro de 2008, entrado no Tribunal de Justiça em 3 de Abril de 2008, no processo

Janko Rottmann contra Freistaat Bayern,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Grande Secção),

composto por: V. Skouris, presidente, K. Lenaerts, J.-C. Bonichot, E. Le-vits e P. Lindh, presidentes de secção, C. W. A. Timmermans, A. Rosas, E. Juhász, G. Arestis, A. Borg Barthet, M. Ilešič, A. Ó Caoimh (relator) e L. Bay Larsen, juízes,

advogado-geral: M. Poiares Maduro,

secretário: B. Fülöp, administrador,

vistos os autos e após a audiência de 21 de Abril de 2009,

vistas as observações apresentadas:

— em representação de J. Rottmann, por W. Meng, professeur, e H. Heinhold, Rechtsanwalt,

— em representação do Freistaat Bayern, por J. Mehler e M. Niese, Oberlandesanwälte,

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DIREITO GLOBAL II

FGV DIREITO RIO 343

— em representação do Governo alemão, por M. Lumma, N. Graf Vit-zthum e B. Klein, na qualidade de agentes,

— em representação do Governo belga, por L. Van den Broeck, na qua-lidade de agente,

— em representação do Governo checo, por M. Smolek, na qualidade de agente,

— em representação do Governo estónio, por L. Uibo, na qualidade de agente,

— em representação do Governo helénico, por K. Georgiadis, S. Ale-xandridou e G. Papagianni, na qualidade de agentes,

— em representação do Governo letão, por E. Eihmane, U. Dreimanis e K. Drēviņa, na qualidade de agentes,

— em representação do Governo austríaco, por E. Riedl e T. Fülöp, na qualidade de agentes, assistidos por H. Eberwein, expert,

— em representação do Governo polaco, por M. Dowgielewicz, na qualidade de agente,

— em representação da Comissão das Comunidades Europeias, por S. Grünheid e D. Maidani, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões do advogado-geral na audiência de 30 de Setembro de 2009, profere o presente Acórdão:

1 O pedido de decisão prejudicial tem por objecto a interpretação das disposições do Tratado CE relativas à cidadania da União Europeia.

2 Este pedido foi apresentado no contexto de um litígio que opõe J. Rottmann ao Freistaat Bayern, por este ter revogado a naturalização do re-corrente no processo principal.

Quadro jurídico

Direito da União

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DIREITO GLOBAL II

FGV DIREITO RIO 344

3 A Declaração n.° 2, relativa à nacionalidade de um Estado-Membro, anexada pelos Estados-Membros à Acta Final do Tratado da União europeia (JO 1992, C 191, p. 98), tem a seguinte redacção:

«A Conferência declara que, sempre que no Tratado que institui a Co-munidade Europeia é feita referência aos nacionais dos Estados-Membros, a questão de saber se uma pessoa tem a nacionalidade de determinado Estado-Membro é exclusivamente regida pelo direito nacional desse Esta-do-Membro. […]»

4 Nos termos da secção A da Decisão dos Chefes de Estado e de Gover-no reunidos no Conselho Europeu de Edimburgo de 11 e 12 de Dezembro de 1992, relativa a determinados problemas levantados pela Dinamarca a respeito do Tratado da União Europeia (JO 1992, C 348, p. 1):

«As disposições da parte II do Tratado que institui a Comunidade Europeia relativas à cidadania da união conferem aos nacionais dos Estados-Membros direitos e protecção suplementares especifi cados nessa parte. Não substituem de modo algum a cidadania nacional. A questão de saber se determinado indivíduo tem a nacionalidade de um Estado-Membro será resolvida exclusi-vamente por referência à lei nacional do Estado-Membro em causa.»

Legislações nacionais

Legislação alemã

5 O artigo 16.°, n.° 1, da Lei Fundamental da Alemanha (Grundgesetz) prevê:

«A nacionalidade alemã não pode ser revogada. A perda da nacionalidade só pode ocorrer por força de lei e, quando ocorre contra a vontade do interes-sado, apenas se este não se tornar apátrida por esse facto.»

6 O § 8 da Lei relativa à nacionalidade (Reichs- und Staatsangehöri-gkeitsgesetz), na versão que foi aplicável até 31 de Dezembro de 1999, dis-punha:

«Um estrangeiro que tenha fi xado residência no território alemão pode, a seu pedido, ser naturalizado pelo Land em cujo território reside, desde que

1. […]

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DIREITO GLOBAL II

FGV DIREITO RIO 345

2. Não preencha as condições de expulsão previstas nos §§ 46, n.os 1 a 4, e 47, n.os 1 e 2, da Lei relativa aos estrangeiros [(Ausländergesetz)],

3. Tenha encontrado, no lugar onde fi xou residência, uma habitação independente ou um emprego.

[…]»

7 Segundo as disposições do direito alemão relativas à nacionalidade, aplicáveis no contexto do processo principal, a naturalização de um estran-geiro dependia, em princípio, da renúncia ou da perda da nacionalidade que tinha até então.

8 O § 48, n.os 1 e 2, do Código de Procedimento Administrativo do Freistaat Bayern (Bayerisches Verwaltungsverfahrensgesetz) tem a seguinte redacção:

«(1) Um acto administrativo ilegal pode ser total ou parcialmente re-vogado, para o futuro ou retroactivamente, mesmo que se tenha tornado defi nitivo […]

(2) Um acto administrativo ilegal que conceda uma prestação pecuniária única ou regular ou uma prestação em espécie divisível, ou que constitua a condição dessas concessões, não pode ser revogado enquanto o benefi ciário confi ar na existência do referido acto administrativo e a sua confi ança for jul-gada digna de tutela após ponderação do interesse público da revogação […] O benefi ciário não pode invocar a legítima expectativa […]

1. se tiver obtido o acto administrativo por defraudação, ameaças ou corrupção,

2. se tiver obtido o acto administrativo, fornecendo informações essen-cialmente falsas ou incompletas,

3. se tinha conhecimento da ilegalidade do acto administrativo ou se a ignorava em virtude de negligência grave.

N[estes] casos […], o acto administrativo é revogado, em princípio, com efeitos retroactivos.»

Legislação austríaca

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DIREITO GLOBAL II

FGV DIREITO RIO 346

9 Nos termos do § 27, n.° 1, da Lei relativa à nacionalidade (Staatsbür-gerschaftsgesetz, BGBl. 311/1985, a seguir «StbG»):

«Quem adquira uma nacionalidade estrangeira a seu pedido, mediante declaração ou o seu consentimento expresso, perde a nacionalidade austríaca, se não lhe tiver sido expressamente concedido o direito de [a] conservar.»

10 A autorização para conservar a nacionalidade austríaca pressupõe, nos termos do § 28, n.° 1, primeiro parágrafo, da StbG, que a conservação da mesma seja no interesse da República da Áustria, em atenção a serviços que a pessoa em questão já tenha prestado ou que este Estado-Membro possa es-perar dela, ou em virtude de circunstâncias especiais que devam ser tomadas em conta.

11 Resulta das observações do Governo austríaco que, à luz do direito austríaco, a perda da nacionalidade estrangeira adquirida por naturalização, quer ocorra com efeitos ex nunc ou ex tunc na ordem jurídica do Estado de naturalização, não tem automaticamente como consequência que o interes-sado que tenha perdido a nacionalidade austríaca em virtude da aquisição dessa nacionalidade estrangeira recupere a nacionalidade austríaca com efei-tos retroactivos.

12 Segundo este mesmo governo, nesse caso, a nacionalidade austríaca só pode ser readquirida através de decisão administrativa e na medida em que estejam reunidas as condições previstas para o efeito nos §§ 10 e seguintes da StbG.

13 O § 10 da StbG, na redacção que entrou em vigor em 23 de Março de 2006, dispõe:

«(1) Salvo disposição em sentido contrário na presente lei federal, a cida-dania só pode ser concedida a um estrangeiro

1. se tiver permanecido legalmente e sem interrupção no território fede-ral, pelo menos, desde há dez anos, e se aí tiver estabelecido domicílio pelo menos há cinco anos;

2. se não tiver sofrido nenhuma condenação transitada em julgado a pena de prisão aplicada por um órgão jurisdicional nacional ou estrangeiro, por um ou vários crimes dolosos, […]

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FGV DIREITO RIO 347

3. se não tiver sofrido nenhuma condenação transitada em julgado a pena de prisão aplicada por um órgão jurisdicional, por delito fi nanceiro;

4. se não estiver em curso contra ele procedimento penal num órgão jurisdicional nacional, por crime doloso ou por delito fi nanceiro passível de pena de prisão;

[…]

(2) A cidadania não pode ser concedida a um estrangeiro

[…]

2. se tiver sofrido mais de uma condenação transitada em julgado, por infracção administrativa grave com um grau de gravidade especial, […]

[…]

(4) A condição referida no n.° 1, primeiro parágrafo, bem como o im-pedimento à concessão referido no n.° 2, segundo parágrafo, […] não [são] aplicáveis

1. a um estrangeiro que resida no território federal, que tenha tido a cidadania durante um período mínimo de dez anos ininterruptos e a tenha perdido por razão diferente da revogação […];

[…]»

Direito Internacional

A Declaração Universal dos Direitos do Homem

14 O artigo 15.° da Declaração Universal dos Direitos do Homem, apro-vada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 10 de Dezembro de 1948, dispõe que:

«1. Todo o indivíduo tem direito a ter uma nacionalidade.

2. Ninguém pode ser arbitrariamente privado da sua nacionalidade nem do direito de mudar de nacionalidade.»

Convenção para a Redução dos Casos de Apatridia

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DIREITO GLOBAL II

FGV DIREITO RIO 348

15 O artigo 7.° da Convenção para a Redução dos Casos de Apatridia, aprovada em Nova Iorque, em 30 de Agosto de 1961, que entrou em vigor em 13 de Dezembro de 1975, tem a seguinte redacção:

«1. a) Se a legislação de um Estado contratante previr o repúdio, este só implica a perda da nacionalidade se o indivíduo repudiado possuir ou adquirir outra;

[…]

2. Um indivíduo que tenha a nacionalidade de um Estado contratante e que peça a naturalização num país estrangeiro só perde a sua nacionalidade se adquirir ou tiver recebido a garantia de adquirir a nacionalidade deste país.

3. Sem prejuízo do disposto nos n.os 4 e 5 do presente artigo, ninguém pode perder a sua nacionalidade por deixar o país cuja nacionalidade possui, por residir no estrangeiro, por não se registar ou por qualquer outra razão semelhante, se, por esse facto, se tornar apátrida.

4. A perda da nacionalidade que afecte um indivíduo naturalizado pode ser motivada pela residência no estrangeiro durante um período cuja duração, fi xada pelo Estado contratante, não pode ser inferior a sete anos consecuti-vos, se o interessado não declarar às autoridades competentes a sua intenção de conservar a sua nacionalidade.

[…]

6. Fora dos casos previstos neste artigo, um indivíduo não pode perder a nacionalidade de um Estado contratante se, por esse facto, se tornar apátrida, mesmo que essa perda não esteja expressamente excluída por qualquer outra disposição da presente Convenção.»

16 O artigo 8.° da mesma Convenção dispõe:

«1. Os Estados contratantes não privam nenhum indivíduo da sua nacio-nalidade, se esta privação o tornar apátrida.

2. Não obstante o que dispõe o n.° 1 do presente artigo, um indivíduo pode ser privado da nacionalidade de um Estado contratante:

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DIREITO GLOBAL II

FGV DIREITO RIO 349

a) Nos casos em que, por força dos n.os 4 e 5 do artigo 7.°, é permitido impor a perda da nacionalidade;

b) Se tiver obtido essa nacionalidade através de falsas declarações ou de qualquer outro acto fraudulento.

[…]

4. Um Estado contratante só pode fazer uso da faculdade de privar um indivíduo da sua nacionalidade nas condições defi nidas nos n.os 2 e 3 do presente artigo, em conformidade com a lei, devendo esta garantir ao inte-ressado a possibilidade de exercer todos os seus direitos de defesa num órgão jurisdicional ou noutro organismo independente.»

17 O artigo 9.° da mesma Convenção dispõe que os Estados contratantes não podem privar da sua nacionalidade nenhum indivíduo ou grupo de indi-víduos, por razões de ordem racial, étnica, religiosa ou política.

Convenção Europeia sobre a Nacionalidade

18 A Convenção Europeia sobre a Nacionalidade, de 6 de Novembro de 1997, foi aprovada no quadro do Conselho da Europa e entrou em vigor em 1 de Março de 2000. É aplicável, desde essa data, na Áustria, e foi ratifi cada pela República Federal da Alemanha, em 11 de Maio de 2005. Nos termos do artigo 3.° desta Convenção:

«1. Cada Estado determinará quem são os seus nacionais nos termos do seu direito interno.

2. Tal direito será aceite por outros Estados na medida em que seja con-sistente com as convenções internacionais aplicáveis, com o direito interna-cional consuetudinário e com os princípios legais geralmente reconhecidos no tocante à nacionalidade.»

19 O artigo 4.° da referida Convenção prevê:

«As normas de cada Estado sobre a nacionalidade basear-se-ão nos seguin-tes princípios:

a) Todos os indivíduos têm direito a uma nacionalidade;

b) A apatridia deverá ser evitada;

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c) Nenhum indivíduo será arbitrariamente privado da sua nacionalidade;

[…]»

20 O artigo 7.° da mesma Convenção tem o teor seguinte:

«1. Um Estado Parte não poderá prever, no seu direito interno, a perda da sua nacionalidade ex lege ou por sua iniciativa, excepto nos seguintes casos:

a) Aquisição voluntária de outra nacionalidade;

b) Aquisição da nacionalidade do Estado Parte mediante conduta frau-dulenta, informações falsas ou encobrimento de quaisquer factos relevantes atribuíveis ao requerente;

[…]

3. O direito interno de um Estado Parte não deverá prever a perda da sua nacionalidade nos termos dos n.os 1 e 2 do presente artigo se o indivíduo em causa se tornar, consequentemente, um apátrida, com excepção dos casos previstos no n.° 1, alínea b), do presente artigo.»

21 O artigo 9.° da Convenção Europeia sobre a Nacionalidade prevê que cada Estado Parte facilitará, nos casos e condições previstos no seu direito interno, a recuperação da sua nacionalidade por anteriores nacionais que re-sidam legal e habitualmente no seu território.

Litígio no processo principal e questões prejudiciais

22 O recorrente no processo principal nasceu em Graz (Áustria) e era, inicialmente, cidadão da República da Áustria pelo nascimento.

23 Em 1995, transferiu a sua residência para Munique (Alemanha), depois de ter sido ouvido pelo Landesgericht für Strafsachen Graz (Tribunal Penal de Graz) num inquérito que lhe dizia respeito, instaurado por suspeita de actividades fraudulentas graves — que ele refuta — no exercício da sua profi ssão.

24 Em Fevereiro de 1997, o Landesgericht für Strafsachen Graz emitiu um mandado de captura nacional contra o recorrente no processo principal.

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25 Este pediu a nacionalidade alemã em Fevereiro de 1998. No processo de naturalização, não declarou que corria contra ele um procedimento penal na Áustria. O documento de naturalização, datado de 25 de Janeiro de 1999, foi-lhe entregue em 5 de Fevereiro de 1999.

26 A naturalização do recorrente no processo principal, na Alemanha, teve como consequência, nos termos do direito austríaco, a perda da sua na-cionalidade austríaca.

27 Em Agosto de 1999, o município de Munique foi informado pelas autoridades municipais de Graz de que o recorrente no processo principal era alvo de um mandado de captura emitido nesta cidade. Além disso, em Setembro de 1999, o Ministério Público austríaco informou o município de Munique de que, designadamente, o recorrente no processo principal já ti-nha sido alvo de procedimento penal, em Julho de 1995, pelo Landesgericht für Strafsachen Graz.

28 Atentas estas circunstâncias, o Freistaat Bayern, após ter ouvido o recorrente no processo principal, decidiu revogar retroactivamente a natura-lização, por decisão de 4 de Julho de 2000, com o fundamento de que este dissimulara o facto de que era alvo de procedimento penal na Áustria e que, por conseguinte, tinha obtido a nacionalidade alemã fraudulentamente. A revogação da naturalização obtida na Alemanha ainda não é defi nitiva, em virtude do recurso de anulação interposto dessa decisão pelo recorrente no processo principal.

29 Decidindo sobre o recurso em segunda instância, o Bayerischer Verwaltungsgerichtshof (Tribunal Administrativo do Land da Baviera) de-cidiu, por acórdão de 25 de Outubro de 2005, que a revogação da naturali-zação do recorrente no processo principal, baseada no § 48, n.° 1, primeiro parágrafo, do Código de Procedimento Administrativo do Land da Baviera, é compatível com o direito alemão, mesmo que essa revogação viesse a ter como consequência, quando se tornasse defi nitiva, a apatridia do interessado.

30 Desse acórdão de 25 de Outubro de 2005, o recorrente no processo principal interpôs recurso de «Revision», actualmente pendente no Bundes-verwaltungsgericht (Tribunal Federal Administrativo Supremo).

31 O órgão jurisdicional de reenvio observa que a naturalização obtida de modo fraudulento pelo recorrente no processo principal era ilegal desde o início e, por consequência, podia ser revogada pelas autoridades alemãs, no exercício do seu poder de apreciação. O mesmo tribunal precisa que, nos

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termos das disposições pertinentes do direito austríaco, a saber, a StbG, o recorrente no processo principal não preenche actualmente as condições para ser imediatamente reintegrado na nacionalidade austríaca.

32 No seu acórdão, o Bayerischer Verwaltungsgerichtshof tinha observa-do que, no caso de, em virtude da revogação duma naturalização obtida frau-dulentamente, uma pessoa se tornar apátrida, com a consequência de perder a cidadania da União, basta, para respeitar a reserva formulada pelo Tribunal de Justiça no acórdão de 7 de Julho de 1992, Micheletti e o. (C-369/90, Co-lect., p. I-4239) — nos termos da qual os Estados-Membros devem exercer a sua competência em matéria de nacionalidade no respeito do direito da União —, que a importância dos direitos conferidos por força dessa cidada-nia da União seja tida em conta pela autoridade competente da Alemanha, no exercício do seu poder de apreciação. Segundo o referido órgão jurisdi-cional, pressupor que, no direito da União, há a obrigação de não proceder à revogação duma naturalização obtida de modo fraudulento teria por conse-quência afectar, na sua essência, o poder soberano dos Estados-Membros, re-conhecido pelo artigo 17.°, n.° 1, CE, de defi nirem as condições de aplicação do seu direito da nacionalidade.

33 Pelo contrário, o órgão jurisdicional de reenvio considera que a im-portância e o alcance da reserva formulada no acórdão Micheletti e o., já refe-rido, ainda não foram clarifi cados pela jurisprudência do Tribunal de Justiça. Segundo esse órgão jurisdicional, o Tribunal de Justiça ter-se-á limitado a deduzir dessa reserva o princípio de que um Estado-Membro não pode res-tringir os efeitos da atribuição da nacionalidade por outro Estado-Membro, impondo uma condição adicional para o reconhecimento dessa nacionali-dade tendo em vista o exercício de uma liberdade fundamental prevista pelo Tratado CE. Não é sufi cientemente claro se o estatuto de apatridia e a perda da cidadania da União anteriormente adquirida de modo regular, em virtude da revogação da naturalização, é compatível com o direito da União, em par-ticular com o artigo 17.°, n.° 1, CE.

34 O órgão jurisdicional de reenvio considera que é pelo menos possível que a República da Áustria, como Estado-Membro da nacionalidade originá-ria do recorrente no processo principal, seja obrigada, por força do princípio da lealdade da União e tomando em consideração os valores inscritos na Convenção para a Redução dos Casos de Apatridia e no artigo 7.°, n.° 1, alí-nea b), da Convenção Europeia sobre a Nacionalidade, a interpretar e aplicar o seu direito nacional ou a adaptá-lo de modo a evitar que a pessoa em causa se torne apátrida, quando, como no processo principal, essa pessoa não tiver

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sido autorizada a conservar a sua nacionalidade de origem, na sequência da aquisição duma nacionalidade estrangeira.

35 Nestas condições, o Bundesverwaltungsgericht decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1) O direito comunitário opõe-se à consequência jurídica da perda da cidadania da União (e dos correspondentes direitos e liberdades fundamen-tais), pelo facto de a revogação de uma naturalização obtida dolosa, astuciosa e fraudulentamente na federação de um Estado-Membro (Alemanha), em si mesma válida face ao direito nacional (alemão), conjugada com o direito da nacionalidade de outro Estado-Membro (Áustria), gerar uma situação de apatridia, em razão da não renovação da nacionalidade austríaca de origem, como acontece com o recorrente?

2) Em caso de resposta afi rmativa à primeira questão:

O Estado-Membro […] que naturalizou o cidadão da União e que pre-tende revogar a naturalização fraudulenta deve, à luz do direito comunitário, abster-se defi nitiva ou temporariamente da revogação da naturalização, en-quanto ou na medida em que a mesma tiver a consequência jurídica de perda da cidadania da União (e dos correspondentes direitos e liberdades funda-mentais), descrita na primeira questão, ou o outro Estado-Membro (Áustria), o anterior Estado da nacionalidade, é obrigado pelo direito comunitário a interpretar, aplicar ou mesmo adaptar o seu direito nacional de modo a que essa consequência jurídica não se concretize?»

Quanto às questões prejudiciais

Quanto à primeira questão e à primeira parte da segunda

36 Com a primeira questão e a primeira parte da segunda, que se devem apreciar em conjunto, o órgão jurisdicional de reenvio pretende saber, em substância, se o direito da União, designadamente o artigo 17.° CE, se opõe a que um Estado-Membro revogue a nacionalidade desse Estado-Membro que concedera, por naturalização, a um cidadão da União, que a adquirira de modo fraudulento, na medida em que essa revogação priva o interessado do seu estatuto de cidadão da União e do benefício dos direitos correspon-dentes, tornando-o apátrida, uma vez que a aquisição da nacionalidade desse Estado-Membro, por naturalização, implicara a perda por esse cidadão da nacionalidade do seu Estado-Membro de origem.

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37 Todos os governos que apresentaram observações ao Tribunal de Justi-ça, o Freistaat Bayern e a Comissão das Comunidades Europeias alegam que as regras relativas à aquisição e à perda da nacionalidade são da competência dos Estados-Membros. Alguns deles deduzem daí que uma decisão de revo-gação da naturalização como a que está em causa no processo principal não pode estar abrangida pelo direito da União. Remetem, a este respeito, para a Declaração n.° 2, relativa à nacionalidade de um Estado-Membro, anexada pelos Estados-Membros à Acta Final do Tratado UE.

38 Os Governos alemão e austríaco também alegam que, no momento da decisão de revogação da naturalização do recorrente no processo principal, este era cidadão alemão, residente na Alemanha, ao qual era dirigido um acto administrativo emanado duma autoridade alemã. Segundo estes governos, apoiados pela Comissão, trata-se de uma situação puramente interna, que não tem conexão alguma com o direito da União, não devendo este aplicar-se pelo simples facto de um Estado-Membro adoptar uma medida relativamen-te a um dos seus cidadãos. O facto de, numa situação como a do processo principal, o interessado ter exercido o seu direito de livre circulação antes da sua naturalização não pode constituir, por si só, um elemento transfronteiri-ço susceptível de infl uenciar a revogação da referida naturalização.

39 Deve observar-se a este respeito que, segundo jurisprudência assente, a defi nição das condições de aquisição e de perda de nacionalidade é, nos termos do direito internacional, da competência de cada Estado-Membro (acórdão Micheletti e o., já referido, n.° 10; e acórdãos de 11 de Novembro de 1999, Mesbah, C-179/98, Colect., p. I-7955, n.° 29, e de 19 de Outubro de 2004, Zhu e Chen, C-200/02, Colect., p. I-9925, n.° 37).

40 É certo que a Declaração n.° 2, relativa à nacionalidade de um Esta-do-Membro, anexada pelos Estados-Membros à Acta Final do Tratado UE, bem como a decisão dos Chefes de Estado e de Governo reunidos no Con-selho Europeu de Edimburgo de 11 e 12 de Dezembro de 1992, relativa a determinados problemas levantados pela Dinamarca a respeito do Tratado UE, que se destinavam a clarifi car uma questão particularmente importante para os Estados-Membros, a saber, a delimitação do âmbito de aplicação ra-tione personae das disposições da União que fazem referência ao conceito de cidadão, devem ser tomadas em consideração como instrumentos de inter-pretação do Tratado CE, especialmente para determinar o respectivo âmbito de aplicação ratione personae.

41 Todavia, o facto de uma matéria ser da competência dos Estados-Mem-bros não impede que, em situações abrangidas pelo direito da União, as nor-

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mas nacionais em causa devam respeitar este direito [v., neste sentido, acór-dãos de 24 de Novembro de 1998, Bickel e Franz, C-274/96, Colect., p. I-7637, n.° 17 (respeitante a uma legislação nacional em matéria penal e de processo penal); de 2 de Outubro de 2003, Garcia Avello, C-148/02, Colect., p. I-11613, n.° 25 (respeitante a normas nacionais que regem o nome das pessoas); de 12 de Julho de 2005, Schempp, C-403/03, Colect., p. I-6421, n.° 19 (respeitante a normas nacionais relativas à fi scalidade directa); e de 12 de Setembro de 2006, Espanha/Reino Unido, C-145/04, Colect., p. I-7917, n.° 78 (respeitante a normas nacionais que determinam os titulares do direito de voto e de elegibilidade nas eleições para o Parlamento Europeu)].

42 É evidente que a situação de um cidadão da União, como a do re-corrente no processo principal, confrontado com uma decisão de revogação da naturalização adoptada pelas autoridades de um Estado-Membro, que o coloca, após ter perdido a nacionalidade originária de outro Estado-Membro, numa situação susceptível de implicar a perda do estatuto conferido pelo artigo 17.° CE e dos direitos correspondentes, é abrangida, pela sua própria natureza e pelas suas consequências, pelo direito da União.

43 Como o Tribunal de Justiça já declarou várias vezes, o estatuto de cidadão da União tende a ser o estatuto fundamental dos nacionais dos Esta-dos-Membros (v., nomeadamente, acórdãos de 20 de Setembro de 2001, Gr-zelczyk, C-184/99, Colect., p. I-6193, n.° 31 e de 17 de Setembro de 2002, Baumbast e R, C-413/99, Colect., p. I-7091, n.° 82).

44 O artigo 17.°, n.° 2, CE liga ao referido estatuto os direitos e os de-veres previstos no Tratado CE, nomeadamente o de invocar o artigo 12.° CE em todas as situações abrangidas pela aplicação ratione materiae do direito da União (v., nomeadamente, acórdão de 12 de Maio de 1998, Martínez Sala, C-85/96, Colect., p. I-2691, n.° 62, e acórdão Schempp, já referido, n.° 17).

45 Por isso, os Estados-Membros devem respeitar o direito da União no exercício da sua competência em matéria de nacionalidade (acórdãos Miche-letti e o., já referido, n.° 10; Mesbah, já referido, n.° 29; de 20 de Fevereiro de 2001, Kaur, C-192/99, Colect., p. I-1237, n.° 19; e Zhu e Chen, já referido, n.° 37).

46 Nestas condições, compete ao Tribunal de Justiça pronunciar-se sobre as questões prejudiciais submetidas pelo órgão jurisdicional de reenvio, que respeitam às condições em que um cidadão da União, pelo facto de perder a sua nacionalidade, pode perder essa qualidade de cidadão da União e, como consequência, ser privado dos direitos correspondentes.

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47 A este propósito, o órgão jurisdicional de reenvio questiona-se essen-cialmente sobre a reserva formulada pela jurisprudência do Tribunal de Justi-ça, referida no n.° 45 do presente acórdão, segundo a qual os Estados-Mem-bros devem exercer a sua competência em matéria de nacionalidade, no respeito do direito da União, e sobre as consequências dessa reserva numa situação como a do processo principal.

48 A reserva segundo a qual se deve respeitar o direito da União não ofende o princípio de direito internacional já reconhecido pelo Tribunal de Justiça, recordado no n.° 39 do presente acórdão, de que os Estados-Mem-bros são competentes para defi nir as condições de aquisição e de perda da nacionalidade, mas consagra o princípio de que, quando se trate de cidadãos da União, o exercício dessa competência, na medida em que afecte os direitos conferidos e protegidos pela ordem jurídica da União, como é designada-mente o caso de uma decisão de revogação da naturalização como a que está em causa no processo principal, é susceptível de fi scalização jurisdicional à luz do direito da União.

49 Contrariamente à recorrente no litígio que deu origem ao acórdão Kaur, já referido, que, por não se integrar no conceito de nacional do Rei-no Unido da Grã-Bretanha e da Irlanda do Norte, não podia ser privada dos direitos que decorrem do estatuto de cidadão da União, o recorrente no processo principal teve incontestavelmente as nacionalidades austríaca e, posteriormente, alemã e, por conseguinte, gozou do referido estatuto e dos direitos correspondentes.

50 Todavia, como alegaram diversos governos que apresentaram obser-vações ao Tribunal de Justiça, quando uma decisão de revogação da natu-ralização, como a que está em causa no processo principal, é motivada pela fraude cometida pelo interessado no contexto da aquisição da nacionalidade em causa, essa decisão pode ser compatível com o direito da União.

51 Com efeito, uma decisão de revogação da naturalização em virtude de actos fraudulentos corresponde a um motivo de interesse geral. A este propósito, é legítimo que um Estado-Membro queira proteger a particular relação de solidariedade e de lealdade entre ele próprio e os seus nacionais e a reciprocidade dos direitos e deveres, que são o fundamento da relação de nacionalidade.

52 Esta conclusão quanto à legitimidade, em princípio, duma decisão de revogação da naturalização tomada em circunstâncias como as do processo

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principal é corroborada pelas disposições pertinentes da Convenção para a Redução dos Casos de Apatridia. Com efeito, o seu artigo 8.°, n.° 2, dispõe que um indivíduo pode ser privado da nacionalidade de um Estado con-tratante, se a tiver obtido através de falsas declarações ou de qualquer outro acto fraudulento. Do mesmo modo, o artigo 7.°, n.os 1 e 3, da Convenção Europeia sobre a Nacionalidade não proíbe um Estado parte de privar um indivíduo da sua nacionalidade, mesmo que este se torne desse modo apá-trida, quando essa nacionalidade tenha sido adquirida na sequência de actos fraudulentos, através de informações falsas ou encobrimento de quaisquer factos relevantes atribuíveis ao requerente.

53 A referida conclusão é, além disso, compatível com o princípio de direito internacional geral, segundo o qual ninguém pode ser privado arbi-trariamente da sua nacionalidade, e este princípio é reproduzido no artigo 15.°, n.° 2, da Declaração Universal dos Direitos do Homem e no artigo 4.°, alínea c), da Convenção Europeia sobre a Nacionalidade. Com efeito, quando um Estado priva uma pessoa da sua nacionalidade, em virtude do seu comportamento fraudulento, legalmente provado, essa privação não pode ser considerada um acto arbitrário.

54 Estas considerações sobre a legitimidade, em princípio, duma decisão de revogação da naturalização em virtude de actos fraudulentos continuam válidas, em princípio, quando essa revogação tem por consequência que a pessoa perca, para além da nacionalidade do Estado-Membro de naturaliza-ção, a cidadania da União.

55 Todavia, nesse caso, compete ao órgão jurisdicional de reenvio ave-riguar se a decisão de revogação em causa no processo principal respeita o princípio da proporcionalidade, no que respeita às consequências que impli-ca para a situação da pessoa interessada, à luz do direito da União, para além de, se necessário, examinar a proporcionalidade dessa decisão à luz do direito nacional.

56 Por conseguinte, dada a importância que o direito primário atribui ao estatuto de cidadão da União, há que ter em conta, no exame duma decisão de revogação da naturalização, as eventuais consequências que essa decisão implica para o interessado e, eventualmente, para os membros da sua família, no que respeita à perda dos direitos de que goza qualquer cidadão da União. A este propósito, importa essencialmente verifi car, nomeadamente, se essa perda se justifi ca em relação à gravidade da infracção cometida por este, ao tempo decorrido entre a decisão de naturalização e a decisão de revogação e à possibilidade de o interessado readquirir a sua nacionalidade originária.

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57 No que se refere, em especial, a este último aspecto, não se pode con-siderar que um Estado-Membro cuja nacionalidade tenha sido adquirida de modo fraudulento está obrigado, nos termos do artigo 17.° CE, a abster-se da revogação da naturalização, pela simples razão de que o interessado não readquiriu a nacionalidade do seu Estado de origem.

58 No entanto, incumbe ao órgão jurisdicional nacional apreciar se, atentas todas as circunstâncias pertinentes, o respeito do princípio da propor-cionalidade exige que, antes que essa decisão de revogação da naturalização produza efeitos, seja concedido ao interessado um prazo razoável para que possa tentar readquirir a nacionalidade do seu Estado-Membro de origem.

59 À luz do que fi ca exposto, deve responder-se à primeira questão e à primeira parte da segunda que o direito da União, nomeadamente o artigo 17.° CE, não se opõe a que um Estado-Membro revogue a nacionalidade desse Estado-Membro, que concedera, por naturalização, a um cidadão da União, quando esta tenha sido obtida de modo fraudulento, desde que a decisão de revogação respeite o princípio da proporcionalidade.

Quanto à segunda parte da segunda questão prejudicial

60 Na segunda parte da segunda questão, o órgão jurisdicional de reen-vio pergunta, em substância, se, quando um cidadão da União, que se encon-tre numa situação como a do recorrente no processo principal, é confrontado com uma decisão de revogação da naturalização susceptível de implicar a per-da do seu estatuto de cidadão da União, o direito da União, nomeadamente o artigo 17.° CE, deve ser interpretado no sentido de que o Estado-Membro cuja nacionalidade possuía originariamente tem a obrigação de interpretar a sua legislação nacional de modo a evitar essa perda, permitindo-lhe readqui-rir essa nacionalidade.

61 No caso vertente, há que observar que a revogação da naturalização adquirida na Alemanha pelo recorrente no processo principal não se tornou defi nitiva e que não foi tomada nenhuma decisão relativamente ao seu estatu-to pelo Estado-Membro cuja nacionalidade possuía originariamente, a saber, a República da Áustria.

62 No quadro do presente reenvio prejudicial, há que lembrar que os princípios que decorrem do presente acórdão no que respeita à competência dos Estados-Membros em matéria de nacionalidade e a obrigação destes de exercerem essa competência no respeito do direito da União se aplicam tanto

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ao Estado-Membro de naturalização como ao Estado-Membro da nacionali-dade de origem.

63 Todavia, o Tribunal de Justiça não se pode pronunciar sobre a ques-tão de saber se o direito da União se opõe a uma decisão que ainda não foi adoptada. Como alegou o Governo austríaco na audiência, incumbirá even-tualmente às autoridades austríacas adoptar uma decisão quanto à questão de saber se o recorrente no processo principal readquire a sua nacionalida-de de origem e, se necessário, aos órgãos jurisdicionais austríacos apreciar a respectiva regularidade, quando vier a ser tomada, à luz dos princípios que decorrem do presente acórdão.

64 Dadas as considerações precedentes, não há que proferir decisão, no quadro deste reenvio prejudicial, sobre a segunda parte da segunda questão.

Quanto às despesas

65 Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efectuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembol-sáveis.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Grande Secção) de-clara:

O direito da União, nomeadamente o artigo 17.° CE, não se opõe a que um Estado-Membro revogue a nacionalidade desse Estado-Membro, que concedera, por naturalização, a um cidadão da União Europeia, quando esta tenha sido obtida de modo fraudulento, desde que a decisão de revogação respeite o princípio da proporcionalidade.

Assinaturas

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* Língua do processo: alemão.

DISPONÍVEL EM: http://eur-lex.europa.eu/LexUriServ/LexUriServ.do?uri=CELEX:62008CJ0135:PT:HTML

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ANEXO III

REGULAMENTO (CE) N.o 593/2008 DO PARLAMENTO EUROPEU

E DO CONSELHO

de 17 de Junho de 2008sobre a lei aplicável às obrigações contratuais (Roma I)

O PARLAMENTO EUROPEU E O CONSELHO DA UNIÃO EU-ROPEIA,

Tendo em conta o Tratado que institui a Comunidade Europeia, nomea-damente a alínea c) do artigo 61.o e o segundo travessão do n.o 5 do artigo 67.o,

Tendo em conta a proposta da Comissão,

Tendo em conta o parecer do Comité Económico e SocialEuropeu (1),

Deliberando nos termos do artigo 251.o do Tratado (2),

Considerando o seguinte:

(1) A Comunidade fi xou o objectivo de manter e desenvolver um espaço de liberdade, de segurança e de justiça. A fi m de estabelecer gradualmente esse espaço, a Comunidade deverá aprovar medidas no domínio da coopera-ção judiciária em matéria civil com incidência transfronteiriça, na medida do necessário ao bom funcionamento do mercado interno.

(2) Nos termos da alínea b) do artigo 65.o do Tratado, essas medidas deve-rão incluir medidas que promovam a compatibilidade das normas aplicáveis nos Estados-Membros em matéria de confl itos de leis e de jurisdição.

(3) Na sua reunião em Tampere, de 15 e 16 de Outubro de 1999, o Con-selho Europeu subscreveu o princípio do reconhecimento mútuo das senten-ças e outras decisões das autoridades judiciais como pedra angular da coope-ração judiciária em matéria civil e solicitou ao Conselho e à Comissão que adoptassem um programa legislativo para dar execução àquele princípio.

(4) Em 30 de Novembro de 2000, o Conselho aprovou um programa conjunto da Comissão e do Conselho de medidas destinadas a aplicar o prin-

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cípio do reconhecimento mútuo das decisões em matéria civil e comercial (3). Esse programa aponta as medidas de harmonização das normas de con-fl itos de leis como medidas que contribuem para facilitar o reconhecimento mútuo das decisões judiciais.

(5) O Programa da Haia (4), aprovado pelo Conselho Europeu em 5 de Novembro de 2004, apela à prossecução activa dos trabalhos sobre normas de confl itos de leis no que respeita às obrigações contratuais («Roma I»).

(6) O bom funcionamento do mercado interno exige que, para favorecer a previsibilidade do resultado dos litígios, a certeza quanto à lei aplicável e a livre circulação das decisões judiciais, as normas de confl itos de leis em vigor nos Estados-Membros designem a mesma lei nacional, independentemente do país em que se situe o tribunal no qual é proposta a acção.

(7) O âmbito de aplicação material e as disposições do presente regu-lamento deverão ser coerentes com o Regulamento (CE) n.o 44/2001 do Conselho, de 22 de Dezembro de 2000, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial (Bru-xelas I) (5) e com o Regulamento (CE) n.o 864/2007 do Parlamento Euro-peu e do Conselho, de 11 de Julho de 2007, sobre a lei aplicável às obrigações extracontratuais («Roma II») (6).

(8) As relações de família deverão incluir a fi liação, o casamento, a afi nida-de e o parentesco em linha colateral. A referência feita no n.o 2 do artigo 1.o às relações com efeitos equiparados ao casamento e outras relações de família deverá ser interpretada de acordo com a lei do Estado-Membro do tribunal em que a acção é proposta.

(9) As obrigações decorrentes de letras, cheques e livranças, bem como de outros títulos negociáveis, deverão também cobrir os conhecimentos de carga, na medida em que as obrigações deles decorrentes resultem do seu carácter negociável.

(10) As obrigações decorrentes de negociações realizadas antes da celebra-ção do contrato são abrangidas pelo artigo 12.o do Regulamento (CE) n.o 864/2007. Por conseguinte, estas obrigações deverão ser excluídas do âmbito de aplicação do presente regulamento.

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(11) A liberdade das partes de escolherem o direito aplicável deverá cons-tituir uma das pedras angulares do sistema de normas de confl itos de leis em matéria de obrigações contratuais.

(12) O facto de as partes terem convencionado que um ou vários órgãos jurisdicionais de um Estado-Membro têm competência exclusiva para deci-dir de quaisquer litígios decorrentes do contrato deverá ser um dos factores a ter em conta para determinar se a escolha da lei resulta de forma clara.

(13) O presente regulamento não impede as partes de incluírem, por re-ferência, no seu contrato um corpo legislativo não estatal ou uma convenção internacional.

(14) Caso a Comunidade venha a aprovar num instrumento jurídico ade-quado regras de direito material dos contratos, incluindo termos e condições normalizados, esse instrumento poderá prever a possibilidade de as partes optarem por aplicar essas regras.

(15) Caso seja escolhida uma lei e todos os outros elementos relevantes da situação se situem num país que não seja o país da lei escolhida, a escolha da lei não prejudica a aplicação das disposições da lei desse país não derrogáveis por acordo. Esta regra será de aplicação independentemente de a escolha da lei aplicável ser ou não acompanhada da escolha de um tribunal ou de outro órgão jurisdicional. Considerando que não se pretende alterar substancial-mente o n.o 3 do artigo 3.o da Convenção de 1980 sobre a lei aplicável às obrigações contratuais (1) («Convenção de Roma»), a redacção do presente regulamento deverá ser harmonizada tanto quanto possível com o artigo 14.o do Regulamento (CE) n.o 864/2007.

(16) A fi m de contribuir para o objectivo geral do presente regulamento que consiste em garantir a segurança jurídica no espaço de justiça europeu, as normas de confl itos de leis deverão apresentar um elevado grau de pre-visibilidade. Os tribunais deverão, porém, gozar de uma certa margem de apreciação a fi m de determinar a lei que apresenta a conexão mais estreita com a situação.

(17) No que respeita à lei aplicável na falta de escolha, o conceito de «prestação de serviços» e de «venda de bens» deverá ser interpretado tal como quando se aplica o artigo 5.o do Regulamento (CE) n.o 44/2001, na medi-da em que a venda de bens e a prestação de serviços sejam abrangidas pelo âmbito de aplicação desse regulamento. Embora o contrato de franquia e o

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contrato de distribuição sejam contratos de serviços, são objecto de regras específi cas.

(18) No que diz respeito à lei aplicável na falta de escolha, os sistemas mul-tilaterais deverão ser aqueles onde tem lugar a negociação, como mercados regulamentados e sistemas de negociação multilateral defi nidos no artigo 4.o da Directiva 004/39/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 21 de Abril de 2004, relativa aos mercados de instrumentos fi nanceiros (2), inde-pendentemente de dependerem ou não de uma contraparte central.

(19) Na falta de escolha da lei aplicável, esta deverá ser determinada de acordo com a regra especifi cada para o tipo específi co de contrato. Se não puderem ser classifi cados num dos tipos especifi cados ou se as suas partes estiverem abrangidas por vários tipos especifi cados, os contratos deverão ser regulados pela lei do país em que o contraente que deverá efectuar a prestação característica do contrato tem a sua residência habitual. Caso os contratos consistam num conjunto de direitos e obrigações susceptíveis de serem classi-fi cados em vários tipos especifi cados de contratos, a prestação característica do contrato deverá ser determinada tendo em conta o seu centro de gravidade.

(20) Se o contrato apresenta uma conexão manifestamente mais estreita com um país diferente do indicado nos n.os 1 ou 2 do artigo 4.o, uma cláu-sula de salvaguarda deverá estabelecer que é aplicável a lei desse outro país. Para determinar qual é esse país, deverá ser tido em conta, nomeadamente, se o contrato em questão está estreitamente ligado a outro contrato ou a uma série de contratos.

(21) Na falta de escolha, se a lei aplicável não puder ser determinada com base no facto de o contrato poder ser classifi cado num dos tipos especifi cados ou como sendo a lei do país de residência habitual do contraente que deverá efectuar a prestação característica do contrato, o contrato deverá ser regulado pela lei do país com o qual apresenta a conexão mais estreita. Para determinar qual é esse país, deverá ter-se em conta, nomeadamente, se o contrato em questão está estreitamente ligado a outro contrato ou a uma série de contratos.

(22) No que diz respeito à interpretação de contratos de transporte de mercadorias, não se pretende fazer qualquer alteração substancial em relação à terceira frase do n.o 4 do artigo 4.o da Convenção de Roma. Consequen-temente, os contratos de fretamento para uma só viagem e outros contratos que têm como objecto principal o transporte de mercadorias deverão ser tra-tados como contratos de transporte de mercadorias. Para efeitos do presente regulamento, o termo «expedidor» deverá referir-se a qualquer pessoa que

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celebre um contrato de transporte com o transportador e o termo «transpor-tador» deverá referir-se à parte no contrato, que se obriga a transportar as mercadorias, independentemente de esta efectuar ela própria o transporte.

(23) No caso dos contratos celebrados com partes consideradas vulnerá-veis, é oportuno protegê-las através de normas de confl itos de leis que sejam mais favoráveis aos seus interesses do que as normas gerais.

(24) Mais concretamente, no caso dos contratos celebrados por consu-midores, a norma de confl itos de leis deverá permitir reduzir as despesas inerentes à resolução dos litígios, que são frequentemente de reduzido valor, e ter em conta a evolução das técnicas de venda à distância. A coerência com o Regulamento (CE) n.o 44/2001 exige, por um lado, que se faça referência à noção de «actividade dirigida» como condição para a aplicação da regra de protecção do consumidor e, por outro lado, que esta noção seja objec-to de uma interpretação harmonizada no Regulamento (CE) n.o 44/2001 e no presente regulamento, tendo presente que uma Declaração Conjunta do Conselho e da Comissão sobre o artigo 15.o do Regulamento (CE) n.o 44/2001 afi rma que, para que a alínea c) do n.o 1 do artigo 15.o seja aplicável, «não basta que uma empresa dirija as suas actividades para o Estado-Membro onde o consumidor está domiciliado, ou para vários Estados incluindo esse Estado— Membro. É preciso também que tenha sido celebrado um contrato no âmbito dessas actividades». A referida declaração indica igualmente que «o simples facto de um sítio da internet ser acessível não basta para tornar aplicável o artigo 15.o, é preciso também que esse sítio internet convide à celebração de contratos à distância e que tenha efectivamente sido celebrado um contrato à distância por qualquer meio. A este respeito, a língua ou a moeda utilizadas por um sítio internet não constituem elementos relevantes».

(25) Os consumidores deverão estar protegidos pelas disposições do seu país de residência habitual que não são derrogáveis por acordo, na condição de o contrato de consumo ter sido celebrado no quadro das actividades co-merciais ou profi ssionais exercidas pelo profi ssional no país em questão. A mesma protecção deverá ser garantida no caso de o profi ssional não exercer as suas actividades comerciais ou profi ssionais no país em que o consumidor tem a sua residência habitual mas dirigir as suas actividades, por qualquer meio, para esse país ou vários países, incluindo o do consumidor, e o contrato seja celebrado no quadro de tais actividades.

(26) Para efeitos do presente regulamento, os serviços fi nanceiros, como os serviços e actividades de investimento e os serviços auxiliares prestados por um profi ssional a um consumidor, referidos nas secções A e B do anexo

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I da Directiva 2004/39/CE e os contratos relativos à compra e venda de partes de organismos de investimento colectivo, independentemente de es-tarem ou não cobertos pela Directiva 85/611/CEE do Conselho, de 20 de Dezembro de 1985, que coordena as disposições legislativas, regulamentares e administrativas respeitantes a alguns organismos de investimento colectivo em valores mobiliários (OICVM) (1), deverão estar subordinados ao artigo 6.o do presente regulamento. Por conseguinte, as referências aos termos e condições que regulam a emissão ou oferta ao público de valores mobiliários ou à subscrição e ao resgate de partes de organismos de investimento colec-tivo deverão incluir todos os aspectos que obrigam o emitente ou oferente perante o consumidor mas não os aspectos que envolvem a prestação de serviços fi nanceiros.

(27) Deverão ser abertas várias excepções à norma geral de confl itos de leis para os contratos celebrados por consumidores. Ao abrigo de uma dessas excepções, a regra geral não deverá ser aplicável aos contratos que têm por objecto um direito real sobre um bem imóvel ou o arrendamento de tais bens, salvo se o contrato tem por objecto um direito de utilização de bens imóveis a tempo parcial, na acepção da Directiva 94/47/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de Outubro de 1994, relativa à protecção dos adquirentes quanto a certos aspectos dos contratos de aquisição de um direito de utilização a tempo parcial de bens imóveis (2).

(28) Importa assegurar que os direitos e as obrigações que constituem um instrumento fi nanceiro não sejam abrangidos pela regra geral aplicável aos contratos celebrados por consumidores, visto tal poder conduzir à aplicabili-dade de leis diferentes a cada um dos instrumentos emitidos, o que alteraria a sua natureza e impediria as suas negociação e oferta como bens fungíveis. Do mesmo modo, sempre que esses instrumentos são emitidos ou oferecidos, a relação contratual estabelecida entre o emitente ou oferente e o consumidor não deverá necessariamente estar sujeita à aplicação obrigatória da lei do país da residência habitual do consumidor, porquanto é necessário garantir a uni-formidade dos termos e condições de uma emissão ou oferta. A mesma lógica deverá aplicar-se no que respeita aos sistemas multilaterais abrangidos pela alínea h) do n.o 1 do artigo 4.o, relativamente aos quais cumpre assegurar que a lei do país da residência habitual do consumidor não interferirá com as regras aplicáveis aos contratos celebrados no âmbito desses sistemas ou com o operador desses sistemas.

(29) Para efeitos do presente regulamento, as referências aos direitos e às obrigações que constituem os termos e as condições que regulam a emissão, a oferta ao público ou a oferta pública de aquisição de valores mobiliários e as

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referências à subscrição e ao resgate de partes de organismos de investimento colectivo deverão incluir os termos que regulam, nomeadamente, a atribui-ção de valores mobiliários ou de partes, os direitos em caso de subscrição excedentária, o direito de revogação da aceitação e outras questões similares no contexto da oferta, bem como as questões a que se referem os artigos 10.o, 11.o, 12.o e 13.o, garantindo-se desta forma que todos os aspectos contratu-ais relevantes de uma oferta, que obrigam o emitente ou o oferente perante o consumidor, sejam regulados por uma só lei.

(30) Para efeitos do presente regulamento, entende-se por instrumentos fi nanceiros e valores mobiliários os instrumentos referidos no artigo 4.o da Directiva 2004//39/CE.

(31) O presente regulamento em nada deverá prejudicar o funcionamento de um acordo formal designado como um sistema ao abrigo da alínea a) do artigo 2.o da Directiva 98/ /26/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 19 de Maio 1998, relativa ao carácter defi nitivo da liquidação nos sistemas de pagamentos e de liquidação de valores mobiliários (3).

(32) Devido à natureza específi ca dos contratos de transporte e de seguro, disposições específi cas deverão assegurar um nível adequado de protecção de passageiros e tomadores de seguro. Assim sendo, o artigo 6.o não deverá aplicar-se no contexto destes contratos específi cos.

(33) Quando um contrato de seguro que não cubra um grande risco co-brir mais do que um risco dos quais pelo menos um se situe num Estado-Membro e pelo menos um num país terceiro, as disposições especiais do presente regulamento relativas aos contratos de seguros apenas se deverão aplicar ao risco ou aos riscos situados no Estado-Membro ou nos Estados-Membros relevantes.

(34) A regra relativa aos contratos individuais de trabalho não deverá afec-tar a aplicação das normas de aplicação imediata do país de destacamento, prevista pela Directiva 96/71/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de Dezembro de 1996, relativa ao destacamento de trabalhadores no âmbito de uma prestação de serviços (4).

(35) Os trabalhadores não deverão ser privados da protecção que lhes é conferida pelas disposições que não podem ser derrogadas por acordo ou que só podem sê-lo a seu favor.

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(36) No que diz respeito aos contratos individuais de trabalho, a prestação de trabalho noutro país deverá ser considerada temporária caso se pressu-ponha que o trabalhador retomará o seu trabalho no país de origem, após o cumprimento das suas tarefas no estrangeiro. A celebração de um novo contrato de trabalho com o empregador originário ou com um empregador pertencente ao mesmo grupo de empresas que o empregador originário não deverá impedir que se considere que o trabalhador presta temporariamente o seu trabalho noutro país.

(37) Considerações de interesse público justifi cam que, em circunstâncias excepcionais, os tribunais dos Estados— —Membros possam aplicar excep-ções, por motivos de ordem pública e com base em normas de aplicação ime-diata. O conceito de «normas de aplicação imediata» deverá ser distinguido da expressão «disposições não derrogáveis por acordo» e deverá ser interpre-tado de forma mais restritiva.

(38) No contexto da cessão de créditos, o termo «relações» deverá tornar claro que o n.o 1 do artigo 14.o também se aplica aos aspectos reais de uma cessão, entre o cedente e o cessionário, nos ordenamentos jurídicos em que a lei aplicável às obrigações contratuais não abrange esses aspectos. Todavia, o termo «relações» não deverá ser interpretado como referindo-se a qualquer eventual relação entre o cedente e o cessionário. Em particular, este termo não deverá abranger as questões preliminares relativas a uma cessão de crédi-tos ou a uma sub-rogação contratual. Deverá limitar-se estritamente aos as-pectos que dizem directamente respeito à cessão de créditos ou à sub-rogação contratual em causa.

(39) A segurança jurídica impõe que se estabeleça uma defi nição clara de residência habitual, em especial para as sociedades e outras entidades dotadas ou não de personalidade jurídica. Contrariamente ao n.o 1 do artigo 60.o do Regulamento (CE) n.o 44/2001, que propõe três critérios, a norma de confl itos de leis deverá limitar-se a um único critério; caso contrário, as partes fi cariam impossibilitadas de prever a lei aplicável à sua situação.

(40) Deverá ser evitada a dispersão por vários instrumentos das normas de confl itos de leis e as divergências entre essas regras. Porém, o presente regula-mento não deverá excluir a possibilidade de, em matérias específi cas, se inclu-írem normas de confl itos de leis relativas a obrigações contratuais em dispo-sições de direito comunitário. O presente regulamento não deverá prejudicar a aplicação de outros instrumentos que contenham disposições destinadas a contribuir para o bom funcionamento do mercado interno, na medida em que estas não possam ser aplicadas em conjugação com a lei designada pelas

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regras do presente regulamento. A aplicação das disposições da lei aplicável designada pelas regras do presente regulamento não deverá restringir a livre circulação de bens e serviços regulada por instrumentos comunitários como a Directiva 2000/31/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 8 de Junho de 2000, relativa a certos aspectos legais dos serviços da sociedade de informação, em especial do comércio electrónico, no mercado interno («Di-rectiva sobre o comércio electrónico») (1).

(41) O respeito pelos compromissos internacionais assumidos pelos Esta-dos-Membros signifi ca que o presente regulamento não deverá afectar as con-venções internacionais nas quais sejam partes um ou mais Estados-Membros, na data da aprovação do presente regulamento. Para facilitar o acesso às regras em vigor, a Comissão deverá publicar, no Jornal Ofi cial da União Europeia, a lista das convenções em causa, com base em informações transmitidas pelos Estados-Membros.

(42) A Comissão apresentará ao Parlamento Europeu e ao Conselho uma proposta relativa aos procedimentos e às condições em que os Estados-Mem-bros terão o direito de negociar e celebrar, em nome próprio, acordos com países terceiros, em casos individuais e excepcionais, respeitantes a matérias sectoriais, que contenham disposições sobre a lei aplicável às obrigações con-tratuais.

(43) Atendendo a que o objectivo do presente regulamento não pode ser sufi cientemente realizado pelos Estados-Membros e pode, pois, devido à sua dimensão e seus efeitos, ser mais bem alcançado a nível comunitário, a Co-munidade pode tomar medidas em conformidade com o princípio da sub-sidiariedade consagrado no artigo 5.o do Tratado. Em conformidade com o princípio da proporcionalidade consagrado no mesmo artigo, o presente regulamento não excede o necessário para atingir aquele objectivo.

(44) Nos termos do artigo 3.o do Protocolo relativo à posição do Reino Unido e da Irlanda, anexo ao Tratado da União Europeia e ao Tratado que institui a Comunidade Europeia, a Irlanda notifi cou por escrito a sua inten-ção de participar na aprovação e na aplicação do presente regulamento.

(45) Nos termos dos artigos 1.o e 2.o do Protocolo relativo à posição do Reino Unido e da Irlanda, anexo ao Tratado da União Europeia e ao Tratado que institui a Comunidade Europeia, e sem prejuízo do artigo 4.o do Proto-colo acima referido, o Reino Unido não participa na aprovação do presente regulamento e não fi ca a ele vinculado nem sujeito à sua aplicação.

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(46) Nos termos dos artigos 1.o e 2.o do Protocolo relativo à posição da Dinamarca, anexo ao Tratado da União Europeia e ao Tratado que institui a Comunidade Europeia, a Dinamarca não participa na aprovação do presente regulamento e não fi ca a ele vinculada nem sujeita à sua aplicação,

APROVARAM O PRESENTE REGULAMENTO:

CAPÍTULO IÂMBITO DE APLICAÇÃO

Artigo 1.oÂmbito de aplicação material1. O presente regulamento é aplicável às obrigações contratuais em ma-

téria civil e comercial que impliquem um confl ito de leis. Não se aplica, em especial, às matérias fi scais, aduaneiras e administrativas.

2. São excluídos do âmbito de aplicação do presente regulamento:a) O estado e a capacidade das pessoas singulares, semprejuízo do artigo 13.o;b) As obrigações que decorrem de relações de família ou de relações que a

lei que lhes é aplicável considera produzirem efeitos equiparados, incluindo as obrigações de alimentos;

c) As obrigações que decorrem de regimes de bens no casamento, de re-gimes de bens no âmbito de relações que a lei que lhes é aplicável considera produzirem efeitos equiparados ao casamento, e as sucessões;

d) As obrigações que decorrem de letras, cheques e livranças, bem como de outros títulos negociáveis, na medida em que as obrigações decorrentes desses outros títulos resultem do seu carácter negociável;

e) As convenções de arbitragem e de eleição do foro;f ) As questões reguladas pelo direito das sociedades e pelo direito aplicá-

vel a outras entidades dotadas ou não de personalidade jurídica, tais como a constituição, através de registo ou por outro meio, a capacidade jurídica, o funcionamento interno e a dissolução de sociedades e de outras entidades do-tadas ou não de personalidade jurídica, bem como a responsabilidade pessoal dos sócios e dos titulares dos órgãos que agem nessa qualidade relativamente às obrigações da sociedade ou entidade;

g) A questão de saber se um agente pode vincular, em relação a terceiros, a pessoa por conta da qual pretende agir ou se um órgão de uma sociedade ou de outra entidade dotada ou não de personalidade jurídica pode vincular essa sociedade ou entidade perante terceiros;

h) A constituição de trusts e as relações que criam entre os constituintes, os trustees e os benefi ciários;

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i) As obrigações decorrentes de negociações realizadas antes da celebração do contrato;

j) Os contratos de seguro decorrentes de actividades levadas a efeito por organismos que não as empresas referidas no artigo 2.o da Directiva 2002/83/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 5 de Novembro de 2002, re-lativa aos seguros de vida (1) cujo objectivo consista em fornecer prestações a assalariados ou a trabalhadores não assalariados que façam parte de uma empresa ou grupo de empresas, a um ramo comercial ou grupo comercial, em caso de morte ou sobrevivência, de cessação ou redução de actividades, em caso de doença profi ssional ou de acidente de trabalho.

3. Sem prejuízo do artigo 18.o, o presente regulamento não se aplica à prova e ao processo.

4. Para efeitos do presente regulamento, entende-se por «Estado-Mem-bro» todos os Estados-Membros aos quais se aplica o presente regulamento. No entanto, no n.o 4 do artigo 3.o e no artigo 7.o este termo refere-se a todos os Estados-Membros.

Artigo 2.oAplicação universalA lei designada pelo presente regulamento é aplicável mesmo que não seja

a lei de um Estado-Membro.

CAPÍTULO IIREGRAS UNIFORMES

Artigo 3.oLiberdade de escolha1. O contrato rege-se pela lei escolhida pelas partes. A escolha deve ser

expressa ou resultar de forma clara das disposições do contrato, ou das cir-cunstâncias do caso. Mediante a sua escolha, as partes podem designar a lei aplicável à totalidade ou apenas a parte do contrato.

2. Em qualquer momento, as partes podem acordar em subordinar o con-trato a uma lei diferente da que precedentemente o regulava, quer por força de uma escolha anterior nos termos do presente artigo, quer por força de outras disposições do presente regulamento. Qualquer modifi cação quanto à determinação da lei aplicável, ocorrida posteriormente à celebração do con-trato, não afecta a validade formal do contrato, nos termos do artigo 11.o, nem prejudica os direitos de terceiros.

3. Caso todos os outros elementos relevantes da situação se situem, no momento da escolha, num país que não seja o país da lei escolhida, a escolha das partes não prejudica a aplicação das disposições da lei desse outro país não derrogáveis por acordo.

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4. Caso todos os outros elementos relevantes da situação se situem, no momento da escolha, num ou em vários Estados-Membros, a escolha pelas partes de uma lei aplicável que não seja a de um Estado-Membro não preju-dica a aplicação, se for caso disso, das disposições de direito comunitário não derrogáveis por acordo, tal como aplicadas pelo Estado-Membro do foro.

5. A existência e a validade do consentimento das partes quanto à escolha da lei aplicável são determinadas nos termos dos artigos 10.o, 11.o e 13.o.

Artigo 4.oLei aplicável na falta de escolha1. Na falta de escolha nos termos do artigo 3.o e sem prejuízo dos artigos

5.o a 8.o, a lei aplicável aos contratos é determinada do seguinte modo:a) O contrato de compra e venda de mercadorias é regulado pela lei do

país em que o vendedor tem a sua residência habitual;b) O contrato de prestação de serviços é regulado pela lei do país em que

o prestador de serviços tem a sua residência habitual;c) O contrato que tem por objecto um direito real sobre um bem imóvel

ou o arrendamento de um bem imóvel é regulado pela lei do país onde o imóvel se situa;

d) Sem prejuízo da alínea c), o arrendamento de um bem imóvel cele-brado para uso pessoal temporário por um período máximo de seis meses consecutivos é regulado pela lei do país em que o proprietário tem a sua resi-dência habitual, desde que o locatário seja uma pessoa singular e tenha a sua residência habitual nesse mesmo país;

e) O contrato de franquia é regulado pela lei do país em que o franqueado tem a sua residência habitual;

f ) O contrato de distribuição é regulado pela lei do país em que o distri-buidor tem a sua residência habitual;

g) O contrato de compra e venda de mercadorias em hasta pública é re-gulado pela lei do país em que se realiza a compra e venda em hasta pública, caso seja possível determinar essa localização;

h) Um contrato celebrado no âmbito de um sistema multilateral que per-mita ou facilite o encontro de múltiplos interesses de terceiros, na compra ou venda de instrumentos fi nanceiros, na acepção do ponto 17) do n.o 1 do ar-tigo 4.o da Directiva 2004/39/CE, de acordo com regras não discricionárias e regulado por uma única lei, é regulado por essa lei.

2. Caso os contratos não sejam abrangidos pelo n.o 1, ou se partes dos contratos forem abrangidas por mais do que uma das alíneas a) a h) do n.o 1, esses contratos são regulados pela lei do país em que o contraente que deve efectuar a prestação característica do contrato tem a sua residência habitual.

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3. Caso resulte claramente do conjunto das circunstâncias do caso que o contrato apresenta uma conexão manifestamente mais estreita com um país diferente do indicado nos n.os 1 ou 2, é aplicável a lei desse outro país.

4. Caso a lei aplicável não possa ser determinada nem em aplicação do n.o 1 nem do n.o 2, o contrato é regulado pela lei do país com o qual apresenta uma conexão mais estreita.

Artigo 5.oContratos de transporte1. Se a lei aplicável a um contrato de transporte de mercadorias não ti-

ver sido escolhida nos termos do artigo 3.o, aplica-se a lei do país em que o transportador tem a sua residência habitual, desde que o local da recepção ou da entrega ou a residência habitual do expedidor se situem igualmente nesse país. Caso esses requisitos não estejam cumpridos, é aplicável a lei do país em que se situa o local da entrega tal como acordado pelas partes.

2. Se a lei aplicável a um contrato de transporte de passageiros não tiver sido escolhida pelas partes nos termos do segundo parágrafo, a lei aplicável a estes contratos é a lei do país em que o passageiro tem a sua residência habi-tual, desde que o local de partida ou de destino se situe nesse país. Caso estes requisitos não estejam cumpridos, é aplicável a lei do país em que o trans-portador tem a sua residência habitual. As partes podem escolher como lei aplicável ao contrato de transporte de passageiros, nos termos do artigo 3.o, exclusivamente a lei do país em que:

a) O passageiro tem a sua residência habitual; oub) O transportador tem a sua residência habitual; ouc) O transportador tem a sua administração central; oud) Se situa o local de partida; oue) Se situa o local de destino.3. Se resultar claramente do conjunto das circunstâncias do caso que, na

falta de escolha, o contrato apresenta uma conexão manifestamente mais es-treita com um país diferente do indicado nos n.os 1 ou 2, é aplicável a lei desse outro país.

Artigo 6.oContratos celebrados por consumidores1. Sem prejuízo do disposto nos artigos 5.o e 7.o, os contratos celebrados

por uma pessoa singular, para uma fi nalidade que possa considerar-se estra-nha à sua actividade comercial ou profi ssional («o consumidor»), com outra pessoa que aja no quadro das suas actividades comerciais ou profi ssionais («o profi ssional»), são regulados pela lei do país em que o consumidor tem a sua residência habitual desde que o profi ssional:

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a) Exerça as suas actividades comerciais ou profi ssionais no país em que o consumidor tem a sua residência habitual, ou

b) Por qualquer meio, dirija essas actividades para este ou vários países, incluindo aquele país, e o contrato seja abrangido pelo âmbito dessas activi-dades.

2. Sem prejuízo do n.o 1, as partes podem escolher a lei aplicável a um contrato que observe os requisitos do n.o 1, nos termos do artigo 3.o. Esta escolha não pode, porém, ter como consequência privar o consumidor da protecção que lhe proporcionam as disposições não derrogáveis por acordo da lei que, na falta de escolha, seria aplicável com base no n.o 1.

3. Caso não sejam cumpridos os requisitos estabelecidos nas alíneas a) ou b) do n.o 1, a lei aplicável ao contrato celebrado entre um consumidor e um profi ssional é determinada de acordo com os artigos 3.o e 4.o.

4. Os n.os 1 e 2 não são aplicáveis aos contratos seguintes:a) Contratos de prestação de serviços quando os serviços devam ser pres-

tados ao consumidor exclusivamente numpaís diferente daquele em que este tem a sua residência habitual;b) Contratos de transporte diferentes dos contratos relativos a uma via-

gem organizada na acepção da Directiva 90/314/CEE do Conselho, de 13 de Junho de 1990, relativa às viagens organizadas, férias organizadas e circuitos organizados (1);

c) Contratos que tenham por objecto um direito real sobre um bem imó-vel ou o arrendamento de um bem imóvel, diferentes dos contratos que têm por objecto um direito deutilização de bens imóveis a tempo parcial, na acep-ção da Directiva 94/47/CE;

d) Direitos e obrigações que constituam um instrumento fi nanceiro e di-reitos e obrigações que constituam os termos e as condições que regulam a emissão ou a oferta ao público e as ofertas públicas de aquisição de valores mobiliários, e a subscrição e o resgate de partes de organismos de investimen-to colectivo na medida em que estas actividades não constituam a prestação de um serviço fi nanceiro;

e) Contratos celebrados no âmbito do tipo de sistema abrangido pela alí-nea h) do n.o 1 do artigo 4.o.

Artigo 7.oContratos de seguro1. O presente artigo aplica-se aos contratos a que se refere o n.o 2, inde-

pendentemente de o risco coberto se situar num Estado-Membro, e a todos os outros contratos de seguro que cubram riscos situados no território dos Estados-Membros. Não se aplica a contratos de resseguro.

2. Um contrato de seguro que cubra um grande risco, tal como defi nido na alínea d) do artigo 5.o da Primeira Directiva 73/239//CEE, do Conselho,

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de 24 de Julho de 1973, relativa à coordenação das disposições legislativas, regulamentares e administrativas respeitantes ao acesso à actividade de segu-ro directo não vida e ao seu exercício (2), é regulado pela lei escolhida pelas partes nos termos do artigo 3.o do presente regulamento.

Se a lei aplicável não tiver sido escolhida pelas partes, o contrato de seguro é regulado pela lei do país em que o segurador tem a sua residência habitual. Se resultar claramente do conjunto das circunstâncias do caso que o contrato apresenta uma conexão manifestamente mais estreita com um país diferente, é aplicável a lei desse outro país.,

3. No caso de um contrato de seguro diferente de um contrato abrangido pelo n.o 2, as partes só podem escolher, nos termos do artigo 3.o:

a) A lei de qualquer dos Estados-Membros em que se situa o risco no mo-mento da celebração do contrato;

b) A lei do país em que o tomador do seguro tiver a sua residência habi-tual;

c) No caso do seguro de vida, a lei do Estado-Membro da nacionalidade do tomador de seguro;

d) No caso de contratos que cubram riscos limitados a eventos que ocor-ram num Estado-Membro diferente daquele em que o risco se situa, a lei desse Estado-Membro;

e) Nos casos em que o tomador de seguro de um contrato abrangido pelo presente número exerça uma actividade comercial, industrial ou uma profi s-são liberal e o contrato cubra dois ou mais riscos relativos a essas actividades e profi ssão e situados em diversos Estados-Membros, a lei de qualquer dos Estados-Membros em causa ou a lei do país em que o tomador do seguro tiver a sua residência habitual Se, nos casos enunciados nas alíneas a), b) ou e), os Estados— —Membros a que se referem estas alíneas concederem uma maior liberdade de escolha da lei aplicável ao contrato de seguro, as partes podem invocar essa liberdade. Se a lei aplicável não tiver sido escolhida pelas partes, nos termos do presente número, a lei aplicável a tais contratos é a lei do Estado-Membro em que o risco se situe no momento da celebração do contrato.

4. As seguintes regras adicionais aplicam-se a contratos de seguro que cubram riscos relativamente aos quais um Estado-Membro imponha a obri-gação de seguro:

a) O contrato de seguro não dá cumprimento à obrigação de subscrever um seguro, a menos que respeite as disposições específi cas relativas a esse se-guro que tenham sido estabelecidas pelo Estado-Membro que impõe a obri-gação. Caso haja uma contradição entre a lei do Estado-Membro onde o risco se situa e a do Estado-Membro que impõe a obrigação de subscrever um seguro, prevalece esta última;

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b) Em derrogação dos n.os 2 e 3, um Estado-Membro pode estabelecer que o contrato de seguro é regulado pela lei do Estado-Membro que impõe a obrigação de subscrever um seguro.

5. Para efeitos do terceiro parágrafo do n.o 3 e do n.o 4, se ocontrato de seguro cobrir riscos que se situam em mais do que um Estado-

Membro, o contrato é considerado como constituindo vários contratos rela-tivos, cada um deles, a um só Estado-Membro.

6. Para efeitos do presente artigo, o país no qual o risco se situa é deter-minado nos termos da alínea d) do artigo 2.o da Segunda Directiva 88/357/CEE, do Conselho, de 22 de Junho de 1988, relativa à coordenação das dis-posições legislativas, regulamentares e administrativas respeitantes ao seguro directo não vida, que fi xa disposições destinadas a facilitar o exercício da livre prestação de serviços (1) e, no caso do seguro de vida, o país no qual o risco se situa é o país do compromisso na acepção da alínea g) do n.o 1 do artigo 1.o da Directiva 2002/83/CE.

Artigo 8.oContratos individuais de trabalho1. O contrato individual de trabalho é regulado pela lei escolhida pelas

partes nos termos do artigo 3.o. Esta escolha da lei não pode, porém, ter como consequência privar o trabalhador da protecção que lhe proporcionam as disposições não derrogáveis por acordo, ao abrigo da lei que, na falta de escolha, seria aplicável nos termos dos n.os 2, 3 e 4 do presente artigo.

2. Se a lei aplicável ao contrato individual de trabalho não tiver sido esco-lhida pelas partes, o contrato é regulado pela lei do país em que o trabalhador presta habitualmente o seu trabalho em execução do contrato ou, na sua falta, a partir do qual o trabalhador presta habitualmente o seu trabalho em execução do contrato. Não se considera que o país onde o trabalhador presta habitualmente o seu trabalho mude quando o trabalhador estiver tempora-riamente empregado noutro país.

3. Se não for possível determinar a lei aplicável nos termos do n.o 2, o contrato é regulado pela lei do país onde se situa o estabelecimento que con-tratou o trabalhador.

4. Se resultar do conjunto das circunstâncias que o contrato apresenta uma conexão mais estreita com um país diferente do indicado nos n.os 2 ou 3, é aplicável a lei desse outro país.

Artigo 9.oNormas de aplicação imediata1. As normas de aplicação imediata são disposições cujo respeito é con-

siderado fundamental por um país para a salvaguarda do interesse público, designadamente a sua organização política, social ou económica, ao ponto

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de exigir a sua aplicação em qualquer situação abrangida pelo seu âmbito de aplicação, independentemente da lei que de outro modo seria aplicável ao contrato, por força do presente regulamento.

2. As disposições do presente regulamento não podem limitar a aplicação das normas de aplicação imediata do país do foro.

3. Pode ser dada prevalência às normas de aplicação imediata da lei do país em que as obrigações decorrentes do contrato devam ser ou tenham sido executadas, na medida em que, segundo essas normas de aplicação imediata, a execução do contrato seja ilegal. Para decidir se deve ser dada prevalência a essas normas, devem ser tidos em conta a sua natureza e o seu objecto, bem como as consequências da sua aplicação ou não aplicação.

Artigo 10.oAceitação e validade substancial1. A existência e a validade substancial do contrato ou dealguma das suas disposições são reguladas pela lei que seriaaplicável, por força do presente regulamento, se o contrato ou a disposição

fossem válidos.2. Todavia, um contraente, para demonstrar que não deu o seu acordo,

pode invocar a lei do país em que tenha a sua residência habitual, se resultar das circunstâncias que não seria razoável determinar os efeitos do seu com-portamento nos termos da lei designada no n.o 1.

Artigo 11.oValidade formal1. Um contrato celebrado por pessoas ou pelos seus representantes que

se encontrem no mesmo país aquando da sua celebração é válido quanto à forma, se preencher os requisitos de forma prescritos pela lei reguladora da substância, determinada nos termos do presente regulamento, ou pela lei do país em que é celebrado.

2. Um contrato celebrado por pessoas ou pelos seus representantes que se encontrem em países diferentes aquando da sua celebração é válido quanto à forma, se preencher os requisitos de forma prescritos pela lei reguladora da substância, determinada nos termos do presente regulamento, ou pela lei do país em que se encontre qualquer das partes ou os seus representantes aquan-do da sua celebração, ou pela lei do país em que qualquer das partes tenha a sua residência habitual nessa data.

3. Um acto jurídico unilateral relativo a um contrato celebrado ou a cele-brar é formalmente válido, se preencher os requisitos de forma prescritos pela lei reguladora da substância do contrato, determinada nos termos do presente regulamento, ou pela lei do país em que esse acto é praticado ou pela lei do país em que a pessoa que o praticou tenha a sua residência habitual nessa data.

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4. O disposto nos n.os 1, 2 e 3 do presente artigo não é aplicável aos con-tratos abrangidos pelo artigo 6.o. A forma desses contratos é regulada pela lei do país em que o consumidor tem a sua residência habitual.

5. Sem prejuízo dos n.os 1 a 4, o contrato que tenha por objecto um di-reito real sobre um bem imóvel ou o arrendamento de um bem imóvel está sujeito aos requisitos de forma da lei do país em que o bem imóvel está situ-ado, desde que, nos termos desta lei:

a) Esses requisitos sejam impostos, independentemente do país em que o contrato seja celebrado e da lei que o regular,

eb) Esses requisitos não sejam derrogáveis por acordo.

Artigo 12.oÂmbito da lei aplicável1. A lei aplicável ao contrato por força do presenteregulamento regula nomeadamente:a) A interpretação;b) O cumprimento das obrigações dele decorrentes;c) Nos limites dos poderes atribuídos ao tribunal pela respectiva lei de pro-

cesso, as consequências do incumprimento total ou parcial dessas obrigações, incluindo a avaliação do dano, na medida em que esta avaliação seja regulada pela lei;

d) As diversas causas de extinção das obrigações, bem como a prescrição e a caducidade;

e) As consequências da invalidade do contrato.2. Quanto aos modos de cumprimento e às medidas que o credor deve

tomar no caso de cumprimento defeituoso, deve atender-se à lei do país onde é cumprida a obrigação.

Artigo 13.oIncapacidadeNum contrato celebrado entre pessoas que se encontram no mesmo país,

uma pessoa singular considerada capaz segundo a lei desse país só pode in-vocar a sua incapacidade que resulte da lei de outro país se, no momento da celebração do contrato, o outro contraente tinha conhecimento dessa inca-pacidade ou a desconhecia por negligência.

Artigo 14.oCessão de créditos e sub-rogação contratual1. As relações entre o cedente e o cessionário no âmbito de uma cessão de

créditos ou de uma sub-rogação contratual de um crédito contra terceiro («o

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devedor») são reguladas pela lei que, por força do presente regulamento, for aplicável ao contrato que os liga.

2. A lei que regula o crédito cedido ou sub-rogado determina a natureza cedível deste, as relações entre o cessionário ou o sub-rogado e o devedor, as condições de oponibilidade da cessão ou sub-rogação ao devedor e a natureza liberatória da prestação feita pelo devedor.

3. A noção de cessão de créditos na acepção do presente artigo inclui as transferências plenas de créditos, as transferências de créditos como garantia, bem como os penhores ou outros direitos de garantia sobre os créditos.

Artigo 15.oSub-rogação legalSempre que, por força de um contrato, uma pessoa («o credor») tenha

direitos relativamente a outra pessoa («o devedor»), e um terceiro tenha a obrigação de satisfazer o direito do credor ou tenha efectivamente satisfeito esse direito em cumprimento dessa obrigação, a lei aplicável à obrigação do terceiro determina se e em que medida este pode exercer os direitos do credor contra o devedor, de acordo com a lei que regula as suas relações.

Artigo 16.oPluralidade de devedoresSe o credor tiver um direito contra vários devedores, responsáveis pelo

mesmo direito, e se um deles já tiver satisfeito total ou parcialmente o direito, a lei que regula a obrigação do devedor para com o credor é igualmente apli-cável ao direito de regresso do devedor contra os outros devedores. Os outros devedores podem invocar os meios de defesa que possam opor ao credor, na medida do permitido pela lei aplicável às suas obrigações para com o credor.

Artigo 17.oCompensaçãoCaso as partes não acordem no direito a compensação, a lei que regula a

compensação é a lei aplicável ao crédito contra o qual se invoca a compensação.

Artigo 18.oÓnus da prova1. A lei que regula a obrigação contratual, por força do presente regulamen-

to, aplica-se na medida em que, em matéria,de obrigações contratuais, con-tenha regras que estabeleçam presunções legais ou repartam o ónus da prova.

2. Os contratos e outros actos jurídicos podem ser provados por qualquer meio de prova admitido, quer pela lei do foro, quer por uma das leis a que se refere o artigo 11.o, ao abrigo da qual o acto seja formalmente válido, desde que esse meio de prova possa ser produzido no tribunal do foro.

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CAPÍTULO IIIOUTRAS DISPOSIÇÕES

Artigo 19.oResidência habitual1. Para efeitos do presente regulamento, a residência habitual de socie-

dades e outras entidades dotadas ou não de personalidade jurídica é o local onde se situa a sua administração central. A residência habitual de uma pes-soa singular, no exercício da sua actividade profi ssional, é o local onde se situa o seu estabelecimento principal.

2. Caso o contrato seja celebrado no âmbito da exploração de uma sucursal, agência ou qualquer outro estabelecimento, ou se, nos termos do contrato, o cumprimento das obrigações dele decorrentes é da responsabilidade de tal sucursal, agência ou estabelecimento, considera-se que a residência habitual corresponde ao local onde se situa a sucursal, agência ou outro estabelecimento.

3. Para determinar a residência habitual, o momento relevante é a data da celebração do contrato.

Artigo 20.oExclusão do reenvioEntende-se por aplicação da lei de um país designada pelo presente regula-

mento a aplicação das normas jurídicas em vigor nesse país, com exclusão das suas normas de direito internacional privado, salvo disposição em contrário no presente regulamento.

Artigo 21.oOrdem pública do foroA aplicação de uma disposição da lei de um país designada pelo presente

regulamento só pode ser afastada se essa aplicação for manifestamente in-compatível com a ordem pública do foro.

Artigo 22.oOrdenamentos jurídicos plurilegislativos1. Sempre que um Estado englobe várias unidades territoriais, tendo cada

uma normas próprias em matéria de obrigações contratuais, cada unidade territorial é considerada como um país para fi ns de determinação da lei apli-cável por força do presente regulamento.

2. Um Estado-Membro em que diferentes unidades territoriais tenham normas próprias em matéria de obrigações contratuais não é obrigado a apli-car o presente regulamento aos confl itos de leis que respeitem exclusivamente a essas unidades territoriais.

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Artigo 23.oRelação com outras disposições do direito comunitárioÀ excepção do artigo 7.o, o presente regulamento não prejudica a apli-

cação das disposições do direito comunitário que, em matérias específi cas, regulem os confl itos de leis em matéria de obrigações contratuais.

Artigo 24.oRelação com a Convenção de Roma1. O presente regulamento substitui, entre os Estados-Membros, a Con-

venção de Roma, com excepção dos territórios dos Estados-Membros que são abrangidos pelo âmbito de aplicação territorial da Convenção e que fi cam excluídos do presente regulamento por força do artigo 299.o do Tratado.

2. Na medida em que o presente regulamento substitui as disposições da Convenção de Roma, as referências feitas à referida Convenção entendem-se como sendo feitas ao presente regulamento.

Artigo 25.oRelações com convenções internacionais existentes1. O presente regulamento não prejudica a aplicação das convenções in-

ternacionais de que um ou mais Estados-Membros sejam parte na data de aprovação do presente regulamento e que estabeleçam normas de confl itos de leis referentes a obrigações contratuais.

2. Todavia, entre Estados-Membros, o presente regulamento prevalece sobre as convenções celebradas exclusivamente entre dois ou vários Estados-Membros, na medida em que estas incidam sobre matérias regidas pelo pre-sente regulamento.

Artigo 26.oLista das convenções1. Até 17 de Junho de 2009, os Estados-Membros comunicam à Comissão

as convenções referidas no n.o 1 do artigo 25.o. Após essa data, os Estados-Membros comunicam à Comissão a denúncia dessas convenções.

2. No prazo de seis meses a contar da recepção das notifi cações a que se refere o n.o 1, a Comissão publica no

Jornal Ofi cial da União Europeia:a) Uma lista das convenções a que se refere o n.o 1;b) As denúncias a que se refere o n.o 1.

Artigo 27.oCláusula de revisão1. Até 17 de Junho de 2013, a Comissão apresenta ao Parlamento Euro-

peu, ao Conselho e ao Comité Económico e Social Europeu um relatório

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relativo à aplicação do presente regulamento. Este relatório deve ser acompa-nhado, se necessário, de propostas de alteração ao presente regulamento. O relatório deve incluir:

a) Um estudo sobre a legislação aplicável aos contratos de seguro e uma avaliação do impacto das disposições a introduzir, se for caso disso; e

b) Uma avaliação da aplicação do artigo 6.o, em particular no que se refere à coerência da legislação comunitária no domínio da protecção do consumidor.

2. Até 17 de Junho de 2010, a Comissão apresenta ao Parlamento Euro-peu, ao Conselho e ao Comité Económico e Social Europeu um relatório sobre a questão da efi cácia da cessão ou sub-rogação de um crédito perante terceiros e a prioridade do crédito cedido ou sub-rogado sobre um direito de outra pessoa. Este relatório deve ser acompanhado, se necessário, de uma proposta de alteração do presente regulamento e de uma avaliação do impac-to das disposições a introduzir.

Artigo 28.oAplicação no tempoO presente regulamento é aplicável aos contratos celebrados após 17 de

Dezembro de 2009.

CAPÍTULO IVDISPOSIÇÕES FINAIS

Artigo 29.oEntrada em vigor e aplicaçãoO presente regulamento entra em vigor vinte dias após a sua publicação no

Jornal Ofi cial da União Europeia. É aplicável a partir de 17 de Dezembro de 2009, excepto o seu artigo 26.o que é aplicável a partir de 17 de Junho de 2009.

O presente regulamento é obrigatório em todos os seus elementos e direc-tamente aplicável nos Estados-Membros, nos termos do Tratado que institui a Comunidade Europeia.

Feito em Estrasburgo, em 17 de Junho de 2008.Pelo Parlamento EuropeuO PresidenteH.-G. PÖTTERINGPelo ConselhoO PresidenteJ. LENARČIČDISPONÍVEL EM: http://eur-lex.europa.eu/LexUriServ/LexUriServ.do?

uri=OJ:L:2008:177:0006:0016:PT:PDF

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ANEXO IV

DIRECTIVA 2008/115/CE DO PARLAMENTO EUROPEU

E DO CONSELHO

de 16 de Dezembro de 2008relativa a normas e procedimentos comuns nos Estados-Membros para o

regresso de nacionais depaíses terceiros em situação irregular

O PARLAMENTO EUROPEU E O CONSELHO DA UNIÃO EU-ROPEIA,

Tendo em conta o Tratado que institui a Comunidade Europeia, nomea-damente a alínea b) do ponto 3 do artigo 63.o,

Tendo em conta a proposta da Comissão,

Deliberando nos termos do artigo 251.o do Tratado (1),

Considerando o seguinte:

(1) O Conselho Europeu de Tampere, de 15 e 16 de Outubrode 1999, estabeleceu uma abordagem coerente no âmbito da imigração

e do asilo, que tem por objecto, ao mesmo tempo, a criação de um sistema comum de asilo, a política de imigração legal e a luta contra a imigração clandestina.

(2) O Conselho Europeu de Bruxelas, de 4 e 5 de Novembrode 2004, apelou à defi nição de uma política efi caz de afastamento e re-

patriamento, baseada em normas comuns, para proceder aos repatriamentos em condições humanamente dignas e com pleno respeito pelos direitos fun-damentais e a dignidade das pessoas.

(3) Em 4 de Maio de 2005, o Comité de Ministros do Conselho da Euro-pa aprovou as «Vinte orientações sobre o regresso forçado».

(4) Importa estabelecer normas claras, transparentes e justas para uma política de regresso efi caz, enquanto elemento necessário de uma política de migração bem gerida.

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(5) A presente directiva deverá estabelecer um conjunto de normas hori-zontais aplicáveis a todos os nacionais de países terceiros que não preencham ou tenham deixado de preencher as condições de entrada, permanência ou residência num Estado-Membro.

(6) Os Estados-Membros deverão assegurar a cessação das situações ir-regulares de nacionais de países terceiros através de um procedimento justo e transparente. De acordo com os princípios gerais do direito comunitário, as decisões ao abrigo da presente directiva deverão ser tomadas caso a caso e ter em conta critérios objectivos, sendo que a análise não se deverá limitar ao mero facto da permanência irregular. Ao utilizar os formulários para as decisões relacionadas com o regresso, nomeadamente decisões de regresso e, se tiverem sido emitidas, decisões de proibição de entrada e decisões de afas-tamento, os Estados-Membros deverão respeitar aquele princípio e cumprir integralmente todas as disposições aplicáveis da presente directiva.

(7) É de salientar que são necessários acordos de readmissão comunitários e bilaterais com os países terceiros para facilitar o procedimento de regresso. A cooperação internacional com os países de origem em todas as etapas do procedimento de regresso constitui um requisito prévio para a sustentabili-dade do regresso.

(8) Reconhece-se que é legítimo que os Estados-Membros imponham o regresso dos nacionais de países terceiros em situação irregular, desde que existam sistemas de asilo justos e efi cientes, que respeitem plenamente o prin-cípio da não-repulsão.

(9) Nos termos da Directiva 2005/85/CE do Conselho, de 1 de Dezembro de 2005, relativa a normas mínimas aplicáveis ao procedimento de concessão e retirada do estatuto de refugiado nos Estados-Membros (2), um nacional de país terceiro que tenha requerido asilo num Estado-Membro não deverá con-siderar-se em situação irregular no território desse Estado-Membro enquanto não entrar em vigor a decisão de indeferimento do pedido ou a decisão que ponha termo ao seu direito de permanência enquanto requerente de asilo.

(10) Sempre que não haja razões para considerar que tal pode prejudicar o objectivo de um procedimento de regresso, deverá preferir-se o regresso vo-luntário em relação ao regresso forçado e deverá ser concedido um prazo para

o regresso voluntário. Deverá conceder-se a prorrogação do prazo de re-gresso voluntário sempre que tal seja considerado necessário à luz das cir-cunstâncias do caso concreto. A fi m de promover o regresso voluntário, os Estados— Membros deverão reforçar a assistência e o aconselhamento em

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matéria de regresso e utilizar da melhor forma as possibilidades de fi nancia-mento oferecidas pelo Fundo Europeu de Regresso.

(11) Deverá estabelecer-se um conjunto mínimo comum de garantias em matéria de decisões relacionadas com o regresso, por forma a assegurar a protecção efectiva dos interesses das pessoas em causa. Deverá ser disponi-bilizada a necessária assistência jurídica a todos aqueles que não disponham de recursos sufi cientes. Os Estados— —Membros deverão defi nir na sua le-gislação nacional os casos em que a assistência jurídica deve ser considerada necessária.

(12) Deverá ser resolvida a situação dos nacionais de países terceiros que se encontram em situação irregular, mas que ainda não podem ser repatriados. As condições básicas de subsistência dessas pessoas deverão ser defi nidas de acordo com a lei nacional. Para poderem provar a sua situação específi ca em caso de inspecções ou controlos administrativos, essas pessoas deverão obter confi rmação escrita da situação em que se encontram. Os Estados--Membros deverão gozar de amplo poder discricionário em relação à forma e ao formato da confi rmação escrita, podendo também inclui-la nas decisões relacionadas com o regresso tomadas ao abrigo da presente directiva.

(13) O recurso a medidas coercivas deverá estar expressamente sujeito aos princípios da proporcionalidade e da efi cácia no que respeita aos meios utilizados e aos objectivos perseguidos. Deverão ser estabelecidas garantias mínimas para a execução de regressos forçados, tendo em conta a Decisão 2004/573/CE do Conselho, de 29 de Abril de 2004, relativa à organização de voos comuns para o afastamento do território de dois ou mais Estados-Membros de nacionais de países terceiros que estejam sujeitos a decisões in-dividuais de afastamento (1). Os Estados— Membros deverão poder recorrer a várias possibilidades de fi scalização de regressos forçados.

(14) Importa conferir uma dimensão europeia aos efeitos das medidas na-cionais de regresso, mediante a previsão de uma proibição de entrada que im-peça a entrada e a permanência no território de todos os Estados-Membros. A duração da proibição de entrada deverá ser determinada tendo na devida consideração todas as circunstâncias relevantes do caso concreto e não deverá, em princípio, ser superior a cinco anos. Neste contexto, deverá ter-se espe-cialmente em conta o facto de o nacional de um país terceiro em causa já ter sido sujeito a mais do que uma decisão de regresso ou ordem de afastamento ou já ter entrado no território de um Estado-Membro durante a proibição de entrada.

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(15) Deverão ser os Estados-Membros a decidir se, na reapreciação de decisões relacionadas com o regresso, a autoridade ou o órgão de recurso tem competência para substituir a decisão anterior pela sua decisão.

(16) O recurso à detenção para efeitos de afastamento deverá ser limitado e sujeito ao princípio da proporcionalidade no que respeita aos meios utili-zados e aos objectivos perseguidos. A detenção só se justifi ca para preparar o regresso ou para o processo de afastamento e se não for sufi ciente a aplicação de medidas coercivas menos severas.

(17) Os nacionais de países terceiros detidos deverão ser tratados de forma humana e digna, no respeito pelos seus direitos fundamentais e nos termos do direito internacional e do direito nacional. Sem prejuízo da detenção ini-cial pelas entidades competentes para a aplicação da lei, que se rege pelo direito nacional, a detenção deverá, por norma, ser executada em centros de detenção especializados.

(18) Os Estados-Membros deverão ter acesso rápido às informações sobre as proibições de entrada emitidas por outros

Estados-Membros. Esta partilha de informações deverá cumprir o dis-posto no Regulamento (CE) n.o 1987/2006 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de Dezembro de 2006, relativo ao estabelecimento, ao fun-cionamento e à utilização do Sistema de Informação de Schengen de segunda geração (SIS II) (2).

(19) A aplicação da presente directiva deverá ser acompanhada da coope-ração entre as instituições implicadas em todas as etapas do procedimento de regresso e do intercâmbio e promoção das melhores práticas, as quais deverão constituir uma mais-valia europeia.

(20) Atendendo a que o objectivo da presente directiva, a saber, estabele-cer normas comuns em matéria de regresso, afastamento, recurso a medidas coercivas, detenção e proibições de entrada, não pode ser sufi cientemente realizado pelos Estados-Membros, e pode, pois, devido à sua dimensão e efei-tos, ser melhor alcançado a nível comunitário, a Comunidade pode tomar medidas em conformidade com o princípio da subsidiariedade consagrado no artigo 5.o do Tratado. Em conformidade com o princípio da propor-cionalidade consagrado no mesmo artigo, a presente directiva não excede o necessário para atingir aquele objectivo.

(21) Os Estados-Membros deverão aplicar a presente directiva sem qual-quer discriminação em razão do sexo, raça, cor, etnia ou origem social, ca-

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racterísticas genéticas, língua, religião ou crença, opiniões políticas ou outras, pertença a uma minoria nacional, riqueza, nascimento, defi ciência, idade ou orientação sexual.

(22) Em consonância com a Convenção das Nações Unidas sobre os Di-reitos da Criança, de 1989, o «interesse superior da criança» deverá constituir uma consideração primordial dos Estados-Membros na aplicação da presente directiva. Em consonância com a Convenção Europeia para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, o respeito pela vida familiar deverá ser também uma das considerações primordiais dos Estados- -Membros na aplicação da presente directiva.

(23) A presente directiva é aplicável sem prejuízo das obrigações decor-rentes da Convenção de Genebra relativa ao Estatuto dos Refugiados, de 28 de Julho de 1951, com a redacção que lhe foi dada pelo Protocolo de Nova Iorque, de 31 de Janeiro de 1967.

(24) A presente directiva respeita os direitos fundamentais e os princípios consagrados, em especial, na Carta dos Direitos Fundamentais da União Eu-ropeia.

(25) Nos termos dos artigos 1.o e 2.o do Protocolo relativo à posição da Dinamarca, anexo ao Tratado da União Europeia e ao Tratado que institui a Comunidade Europeia, a Dinamarca não participa na aprovação da presente directiva e não fi ca a ela vinculada nem sujeita à sua aplicação. Uma vez que a presente directiva constitui — na medida em que se aplica a nacionais de países terceiros que não preencham ou tenham deixado de preencher as con-dições de entrada ao abrigo do Código das Fronteiras Schengen (1) — um desenvolvimento do acervo de Schengen em aplicação do disposto no Título IV da Parte III do Tratado que institui a Comunidade Europeia, a Dinamarca deve decidir, nos termos do artigo 5.o do referido Protocolo e no prazo de seis meses a contar da data de aprovação da presente directiva, se procede à sua transposição para o seu direito interno.

(26) Na medida em que se aplica aos nacionais de países terceiros que não preenchem ou deixaram de preencher as condições de entrada ao abrigo do Código das Fronteiras Schengen, a presente directiva constitui um esenvol-vimento das disposições do acervo de Schengen de que o Reino Unido não faz parte, nos termos da Decisão 2000/365/CE do Conselho, de 29 de Maio de 2000, sobre o pedido do Reino Unido da Grã-Bretanha e da Irlanda do Norte para participar em algumas das disposições do acervo de Schengen (2). Para além disso, nos termos dos artigos 1.o e 2.o do Protocolo relativo à

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posição do Reino Unido e da Irlanda, anexo ao Tratado da União Europeia e ao Tratado que institui a Comunidade Europeia, e sem prejuízo do artigo 4.o do referido Protocolo, o Reino Unido não participa na aprovação da presente directiva e não fi ca a ela vinculado nem sujeito à sua aplicação.

(27) Na medida em que se aplica aos nacionais de países terceiros que não preencham ou tenham deixado de preencher as condições de entrada ao abrigo do Código das Fronteiras Schengen, a presente directiva constitui um desenvolvimento das disposições do acervo de Schengen de que a Irlanda não faz parte, nos termos da Decisão 2002/192/CE do Conselho, de 28 de Fevereiro de 2002, sobre o pedido da Irlanda para participar em algumas das disposições do acervo de Schengen (3). Para além disso, nos termos dos ar-tigos 1.o e 2.o do Protocolo relativo à posição do Reino Unido e da Irlanda, anexo ao Tratado da União Europeia e ao Tratado que institui a Comunidade Europeia, e sem prejuízo do artigo 4.o do referido Protocolo, a Irlanda não participa na aprovação da presente directiva e não fi ca a ela vinculada nem sujeita à sua aplicação.

(28) Em relação à Islândia e à Noruega, a presente directiva constitui — na medida em que se aplica a nacionais de países terceiros que não preen-cham ou tenham deixado de preencher as condições de entrada ao abrigo do Código das Fronteiras Schengen — um desenvolvimento das disposições do acervo de Schengen, na acepção do Acordo celebrado pelo Conselho da União Europeia e a República da Islândia e o Reino da Noruega relativo à as-sociação destes dois Estados à execução, à aplicação e ao desenvolvimento do acervo de Schengen, que se inserem no domínio a que se refere o ponto C do artigo 1.o da Decisão 1999/437/CE do Conselho (4), relativa a determinadas regras de aplicação do referido acordo.

(29) Em relação à Suíça, a presente directiva constitui — na medida em que se aplica aos nacionais de países terceiros que não preencham ou tenham deixado de preencher as condições de entrada ao abrigo do Código das Fron-teiras Schengen — um desenvolvimento das disposições do acervo de Schen-gen, na acepção do Acordo entre a União Europeia, a Comunidade Europeia e a Confederação Suíça relativo à associação da Confederação Suíça à execu-ção, à aplicação e ao desenvolvimento do acervo de Schengen, que se inserem no domínio a que se refere o ponto C do artigo 1.o da Decisão 1999/437/CE do Conselho, conjugado com o artigo 3.o da Decisão 2008/146/CE do Conselho (5), respeitante à celebração, em nome da Comunidade Europeia, do referido acordo.

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(30) Em relação ao Liechtenstein, a presente directiva constitui — na me-dida em que se aplica a nacionais de países terceiros que não preencham ou tenham deixado de preencher as condições de entrada ao abrigo do Código das Fronteiras Schengen — um desenvolvimento das disposições do acervo de Schengen, na acepção do Protocolo assinado entre a União Europeia, a Comunidade Europeia, a Confederação Suíça e o Principado do Liechtens-tein relativo à adesão do Principado do Liechtenstein ao Acordo entre a União Europeia, a Comunidade Europeia e a Confederação Suíça relativo à associação da Confederação Suíça à execução, à aplicação e ao desenvolvi-mento do acervo de Schengen, que se inserem no domínio a que se refere o ponto C do artigo 1.o da Decisão 1999/437/CE do Conselho, em conjuga-ção com o artigo 3.o da Decisão 2008/261/CE do Conselho (6), respeitante à assinatura, em nome da Comunidade Europeia, e à aplicação provisória de certas disposições do referido protocolo,

APROVARAM A PRESENTE DIRECTIVA:

CAPÍTULO IDISPOSIÇÕES GERAIS

Artigo 1.oObjectoA presente directiva estabelece normas e procedimentos comuns a aplicar

nos Estados-Membros para o regresso de nacionais de países terceiros em situação irregular, no respeito dos direitos fundamentais enquanto princípios gerais do direito comunitário e do direito internacional, nomeadamente os deveres em matéria de protecção dos refugiados e de direitos do Homem.

L 348/100 PT Jornal Ofi cial da União Europeia 24.12.2008(1) Regulamento (CE) n.o 562/2006 do Parlamento Europeu e do Con-

selho, de 15 de Março de 2006, que estabelece o código comunitário relati-vo ao regime de passagem de pessoas nas fronteiras (Código das Fronteiras Schengen)

Artigo 2.oÂmbito de aplicação1. A presente directiva é aplicável aos nacionais de países terceiros em si-

tuação irregular no território de um Estado-Membro.2. Os Estados-Membros podem decidir não aplicar a presente directiva

aos nacionais de países terceiros que: a) Sejam objecto de recusa de entrada nos termos do artigo 13.o do Código das Fronteiras Schengen ou sejam de-tidos ou interceptados pelas autoridades competentes quando da passagem ilícita das fronteiras externas terrestres, marítimas ou aéreas de um Estado-

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Membro e não tenham posteriormente obtido autorização ou o direito de permanência nesse Estado-Membro; b) Estejam obrigados a regressar por força de condenação penal ou em consequência desta, nos termos do direito interno, ou sejam objecto de processo de extradição.

3. A presente directiva não é aplicável aos titulares do direito comunitário à livre circulação a que se refere o n.o 5 do artigo 2.o do Código das Frontei-ras Schengen.

Artigo 3.oDefi niçõesPara efeitos da presente directiva, entende-se por:1. «Nacional de país terceiro», uma pessoa que não seja cidadão da União,

na acepção do n.o 1 do artigo 17.o do Tratado, e que não benefi cie do direito comunitário à livre circulação nos termos do n.o 5 do artigo 2.o do Código das Fronteiras Schengen;

2. «Situação irregular», a presença, no território de um Estado--Membro, de um nacional de país terceiro que não preencha ou tenha deixado de preen-cher as condições de entrada previstas no artigo 5.o do Código das Fronteiras Schengen ou outras condições aplicáveis à entrada, permanência ou residên-cia nesse Estado-Membro;

3. «Regresso», o processo de retorno de nacionais de países terceiros, a tí-tulo de cumprimento voluntário de um dever de regresso ou a título coercivo:

— ao país de origem, ou— a um país de trânsito, ao abrigo de acordos de readmissão comunitários

ou bilaterais ou de outras convenções, ou— a outro país terceiro, para o qual a pessoa em causa decida regressar

voluntariamente e no qual seja aceite;4. «Decisão de regresso», uma decisão ou acto administrativo ou judicial

que estabeleça ou declare a situação irregular de um nacional de país terceiro e imponha ou declare o dever de regresso;

5. «Afastamento», a execução do dever de regresso, ou seja, o transporte físico para fora do Estado-Membro;

6. «Proibição de entrada», uma decisão ou acto administrativo ou judicial que proíbe a entrada e a permanência no território dos Estados-Membros durante um período determinado e que acompanha uma decisão de regresso;

7. «Risco de fuga», a existência num caso concreto de razões, baseadas em critérios objectivos defi nidos por lei, para crer que o nacional de país terceiro objecto de um procedimento de regresso pode fugir;

8. «Partida voluntária», cumprimento do dever de regressar no prazo fi xa-do na decisão de regresso;

9. «Pessoas vulneráveis», menores, menores não acompanhados, pessoas com defi ciência, idosos, grávidas, famílias monoparentais com fi lhos meno-

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res e pessoas que tenham sido vítimas de tortura, violação ou outras formas graves de violência psicológica, física ou sexual.

Artigo 4.oDisposições mais favoráveis1. A presente directiva não prejudica a aplicação de disposições mais fa-

voráveis constantes de: a) Acordos bilaterais ou multilaterais entre a Comu-nidade ou a Comunidade e os seus Estados-Membros e um ou mais países terceiros; b) Acordos bilaterais ou multilaterais entre um ou mais Estados-Membros e um ou mais países terceiros.

2. A presente directiva não prejudica a aplicação de quaisquer disposições mais favoráveis aplicáveis a nacionais de países terceiros, previstas no acervo comunitário em matéria de imigração e asilo.

3. A presente directiva não prejudica o direito dos Estados-Membros de aprovarem ou manterem disposições mais favoráveis relativamente às pessoas abrangidas pelo seu âmbito de aplicação, desde que essas disposições sejam compatíveis com o disposto na presente directiva.

4. No que diz respeito aos nacionais de países terceiros excluídos do âmbi-to de aplicação da presente directiva por força da alínea a) do n.o 2 do artigo 2.o, os Estados-Membros devem: a) Assegurar que o seu tratamento e nível de protecção não sejam menos favoráveis do que os previstos nos n.os 4 e 5 do artigo 8.o (restrições à utilização de medidas coercivas), na alínea a) do n.o 2 do artigo 9.o (adiamento do afastamento), nas alíneas b) e d) do n.o 1 do artigo 14.o (cuidados de saúde urgentes e tomada em consideração das necessidades das pessoas vulneráveis) e nos artigos 16.o e 17.o (condições de detenção); e b) Respeitar o princípio da não-repulsão.

Artigo 5.oNão-repulsão, interesse superior da criança, vida familiar e estado de

saúdeNa aplicação da presente directiva, os Estados-Membros devem ter em

devida conta o seguinte: a) O interesse superior da criança; b) A vida fami-liar; c) O estado de saúde do nacional de país terceiro em causa; e respeitar o princípio da não-repulsão.

CAPÍTULO IITERMO DA SITUAÇÃO IRREGULAR

Artigo 6.oDecisão de regresso

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1. Sem prejuízo das excepções previstas nos n.os 2 a 5, os Estados-Mem-bros devem emitir uma decisão de regresso relativamente a qualquer nacional de país terceiro que se encontre em situação irregular no seu território.

2. Os nacionais de países terceiros em situação irregular no território de um Estado-Membro, que sejam detentores de um título de residência válido ou de outro título, emitido por outro Estado-Membro e que lhes confi ra direito de permanência estão obrigados a dirigir-se imediatamente para esse Estado-Membro. Em caso de incumprimento desta exigência pelo nacional de país terceiro em causa ou se for necessária a partida imediata deste por razões de ordem pública ou de segurança nacional, aplica-se o n.o 1.

3. Os Estados-Membros podem abster-se de emitir a decisão de regresso em relação a nacionais de países terceiros que se encontrem em situação irre-gular no seu território e sejam aceites por outros Estados-Membros ao abrigo de acordos ou convenções bilaterais existentes à data da entrada em vigor da presente directiva. Nesse caso, os Estados-Membros que aceitarem os nacio-nais de países terceiros em causa devem aplicar o n.o 1.

4. Os Estados-Membros podem, a qualquer momento, conceder autoriza-ções de residência autónomas ou de outro tipo que, por razões compassivas, humanitárias ou outras, confi ram o direito de permanência a nacionais de pa-íses terceiros em situação irregular no seu território. Neste caso, não pode ser emitida qualquer decisão de regresso. Nos casos em que já tiver sido emitida decisão de regresso, esta deve ser revogada ou suspensa pelo prazo de vigência da autorização de residência ou outra que confi ra direito de permanência.

5. Sempre que estiver em curso o processo de renovação do título de re-sidência ou de outra autorização que confi ra um direito de permanência a favor de nacionais de países terceiros em situação irregular no território de um Estado-Membro, este deve ponderar a hipótese de não emitir decisões de regresso até à conclusão do referido processo, sem prejuízo do disposto no n.o 6.

6. A presente directiva não obsta a que os Estados-Membros tomem deci-sões de cessação da permanência regular a par de decisões de regresso, ordens de afastamento, e/ou proibições de entrada, por decisão ou acto administrati-vo ou judicial previsto no respectivo direito interno, sem prejuízo das garan-tias processuais disponíveis ao abrigo do Capítulo III e de outras disposições aplicáveis do direito comunitário e do direito nacional.

Artigo 7.oPartida voluntária1. A decisão de regresso deve prever um prazo adequado para a partida vo-

luntária, entre sete e trinta dias, sem prejuízo das excepções previstas nos n.os 2 e 4. Os Estados-Membros podem determinar no respectivo direito interno que esse prazo só é concedido a pedido do nacional do país terceiro em causa.

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Nesse caso, os Estados-Membros informam os nacionais de países terceiros em causa sobre a possibilidade de apresentar tal pedido.

O prazo previsto no primeiro parágrafo não exclui a possibilidade de os nacionais de países terceiros em causa partirem antes do seu termo.

2. Sempre que necessário, os Estados-Membros estendem o prazo pre-visto para a partida voluntária por um período adequado, tendo em conta as especifi cidades do caso concreto, tais como a duração da permanência, a existência de fi lhos que frequentem a escola e a existência de outros membros da família e de laços sociais.

3. Podem ser impostas determinadas obrigações para evitar o risco de fuga, designadamente a apresentação periódica às autoridades, o depósito de uma caução adequada, a apresentação de documentos ou a obrigação de permane-cer em determinado local durante o prazo de partida voluntária.

4. Se houver risco de fuga ou se tiver sido indeferido um pedido de perma-nência regular por ser manifestamente infundado ou fraudulento, ou se a pes-soa em causa constituir um risco para a ordem ou segurança pública ou para a segurança nacional, os Estados-Membros podem não conceder um prazo para a partida voluntária ou podem conceder um prazo inferior a sete dias.

Artigo 8.oAfastamento1. Os Estados-Membros tomam todas as medidas necessárias para execu-

tar a decisão de regresso se não tiver sido concedido qualquer prazo para a partida voluntária, nos termos do n.o 4 do artigo 7.o, ou se a obrigação de regresso não tiver sido cumprida dentro do prazo para a partida voluntária concedido nos termos do artigo 7.o.

2. Se o Estado-Membro tiver concedido um prazo para a partida voluntá-ria nos termos do artigo 7.o, a decisão de regresso só pode ser executada após o termo desse prazo, salvo se no decurso do prazo surgir um risco na acepção do n.o 4 do mesmo artigo.

3. Os Estados-Membros podem emitir uma ordem de afastamento por decisão ou acto administrativo ou judicial autónomo.

4. Se os Estados-Membros utilizarem — como último recurso — medidas coercivas para impor o afastamento de um nacional de país terceiro que resis-ta a este, tais medidas devem ser proporcionadas e não devem exceder o uso razoável da força. Essas medidas devem ser executadas em conformidade com a legislação nacional, de acordo com os direitos fundamentais e no devido respeito pela dignidade e integridade física dos nacionais de países terceiros em causa.

5. Nas operações de afastamento por via aérea, os Estados-Membros de-vem ter em conta as Orientações comuns em matériade disposições de segu-

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rança nas operações conjuntas de afastamento por via aérea, anexas à Decisão 004/573/CE.

6. Os Estados-Membros devem prever um sistema efi caz de controlo dos regressos forçados.

Artigo 9.oAdiamento do afastamento1. Os Estados-Membros adiam o afastamento nos seguintes casos: a) O

afastamento representa uma violação do princípio da não-repulsão; ou b) Durante a suspensão concedida nos termos do n.o 2 do artigo 13.o.

2. Os Estados-Membros podem adiar o afastamento por um prazo consi-derado adequado, tendo em conta as circunstâncias específi cas do caso con-creto. Os Estados-Membros devem, em particular, ter em conta: a) O estado físico ou a capacidade mental do nacional de país terceiro; b) Razões técnicas, nomeadamente a falta de capacidade de transporte ou o afastamento falhado devido à ausência de identifi cação.

3. Caso o afastamento seja adiado nos termos dos n.os 1 e 2, podem ser impostas aos nacionais de países terceiros em causa as obrigações previstas no n.o 3 do artigo 7.o.

Artigo 10.oRegresso e afastamento de menores não acompanhados1. Antes de uma decisão de regresso aplicável a um menor não acompa-

nhado, é concedida assistência pelos organismos adequados para além das autoridades que executam o regresso, tendo na devida conta o interesse su-perior da criança.

2. Antes de afastar um menor não acompanhado para fora do seu territó-rio, as autoridades do Estado-Membro garantem que o menor é entregue no Estado de regresso a um membro da sua família, a um tutor designado ou a uma estrutura de acolhimento adequada.

Artigo 11.oProibição de entrada1. As decisões de regresso são acompanhadas de proibições de entrada

sempre que: a) Não tenha sido concedido qualquer prazo para a partida vo-luntária; ou b) A obrigação de regresso não tenha sido cumprida. Nos outros casos, as decisões de regresso podem ser acompanhadas da proibição de en-trada.

2. A duração da proibição de entrada é determinada tendo em devida con-sideração todas as circunstâncias relevantes do caso concreto, não devendo em princípio exceder cinco anos. Essa duração pode, contudo, ser superior a

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cinco anos se o nacional de país terceiro constituir uma ameaça grave para a ordem pública, a segurança pública ou a segurança nacional.

3. Os Estados-Membros devem ponderar a revogação ou a suspensão da proibição de entrada, se o nacional de país terceiro que seja objecto de proi-bição de entrada emitida nos termos do segundo parágrafo do n.o 1 provar que deixou o território de um Estado-Membro em plena conformidade com uma decisão de regresso.

24.12.2008 PT Jornal Ofi cial da União Europeia L 348/103As vítimas do tráfi co de seres humanos a quem tenha sido concedido tí-

tulo de residência, nos termos da Directiva 2004/81/CE do Conselho, de 29 de Abril de 2004, relativa ao título de residência concedido aos nacionais de países terceiros que sejam vítimas do tráfi co de seres humanos ou objecto de uma acção de auxílio à imigração ilegal, e que cooperem com as autoridades competentes (1), não podem ser objecto de proibição de entrada, sem preju-ízo da alínea b) do primeiro parágrafo do n.o 1 e desde que não constituam uma ameaça para a ordem pública, a segurança pública ou a segurança nacio-nal. Os Estados-Membros podem abster-se de emitir, revogar ou suspender proibições de entrada em determinados casos concretos por razões huma-nitárias. Os Estados-Membros podem revogar ou suspender proibições de entrada em determinados casos concretos ou em determinadas categorias de casos por outras razões.

4. Ao ponderarem a emissão de uma autorização de residência ou de outro título que confi ra direito de permanência a um nacional de país terceiro ob-jecto de proibição de entrada emitida por outro Estado-Membro, os Estados-Membros consultam previamente o Estado-Membro que emitiu a proibição de entrada e têm em conta os seus interesses, em conformidade com o artigo 25.o da Convenção de Aplicação do Acordo de Schengen (2).

5. O disposto nos n.os 1 a 4 é aplicável sem prejuízo do direito a protecção internacional nos Estados-Membros, na acepção da alínea a) do artigo 2.o da Directiva 2004/83/CE do Conselho, de 29 de Abril de 2004, que estabelece normas mínimas relativas às condições a preencher por nacionais de países terceiros ou apátridas para poderem benefi ciar do estatuto de refugiado ou de pessoa que, por outros motivos, necessite de protecção internacional, bem como relativas ao respectivo estatuto, e relativas ao conteúdo da protecção concedida (3).

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DIREITO GLOBAL II

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CAPÍTULO IIIGARANTIAS PROCESSUAIS

Artigo 12.oForma1. As decisões de regresso e, se tiverem sido emitidas, as decisões de proibi-

ção de entrada e as decisões de afastamento são emitidas por escrito e contêm as razões de facto e de direito que as fundamentam, bem como informações acerca das vias jurídicas de recurso disponíveis.

As informações sobre as razões de facto podem ser limitadas caso o direito interno permita uma restrição ao direito de informação, nomeadamente para salvaguardar a segurança nacional, a defesa, a segurança pública e a preven-ção, investigação, detecção e repressão de infracções penais.

2. A pedido, os Estados-Membros fornecem uma tradução escrita ou oral dos principais elementos das decisões relacionadas com o regresso, a que se refere o n.o 1, nomeadamente informações sobre as vias jurídicas de recurso disponíveis, numa língua que o nacional de país terceiro compreenda ou possa razoavelmente presumir-se que compreende.

3. Os Estados-Membros podem decidir não aplicar o disposto no n.o 2 aos nacionais de países terceiros que tenham entrado ilegalmente no terri-tório de um Estado-Membro e que não tenham obtido, subsequentemente, uma autorização ou o direito de permanência nesse Estado-Membro. Nesse caso, as decisões relacionadas com o regresso, a que se refere o n.o 1, são no-tifi cadas através do formulário normalizado previsto na legislação nacional.

Os Estados-Membros facultam folhetos informativos gerais que expli-quem os principais elementos do formulário normalizado em pelo menos cinco das línguas mais frequentemente utilizadas ou compreendidas pelos migrantes em situação irregular que entram nesse Estado-Membro.

Artigo 13.oVias de recurso1. O nacional de país terceiro em causa deve dispor de vias de recurso efec-

tivo contra as decisões relacionadas com o regresso a que se refere o n.o 1 do artigo 12.o, ou da possibilidade de requerer a sua reapreciação, perante uma autoridade judicial ou administrativa competente ou um órgão competente composto por membros imparciais que ofereçam garantias de independência.

2. A autoridade ou o órgão acima mencionados são competentes para reapreciar as decisões relacionadas com o regresso a que se refere o n.o 1 do artigo 12.o, incluindo a possibilidade de suspender temporariamente a sua execução, a menos que a suspensão temporária já seja aplicável ao abrigo da legislação nacional.

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3. O nacional de país terceiro em causa pode obter assistência e represen-tação jurídicas e, se necessário, serviços linguísticos.

4. Os Estados-Membros asseguram a concessão de assistência e/ou repre-sentação jurídica gratuita, a pedido, nos termos da legislação nacional apli-cável ou da regulamentação relativa à assistência jurídica, e podem prever que a concessão dessa assistência e/ou representação gratuitas esteja sujeita às condições previstas nos n.os 3 a 6 do artigo 15.o da Directiva 2005/85/CE.

Artigo 14.oGarantias enquanto se aguarda o regresso1. À excepção da situação prevista nos artigos 16.o e 17.o, os Estados-

Membros asseguram que sejam tidos em conta, tanto quanto possível, os seguintes princípios em relação aos nacionais de países terceiros durante o prazo para a partida voluntária concedido nos termos do artigo 7.o e durante os períodos de adiamento do afastamento previstos no artigo 9.o: a) A manu-tenção da unidade familiar com os membros da família presentes no seu terri-tório; b) A prestação de cuidados de saúde urgentes e o tratamento básico de doenças; c) A concessão de acesso ao sistema de ensino básico aos menores, consoante a duração da sua permanência; d) A consideração das necessidades específi cas das pessoas vulneráveis.

2. Os Estados-Membros confi rmam por escrito às pessoas referidas no n.o 1, em conformidade com a legislação nacional, que o prazo concedido para a partida voluntária foi prorrogado nos termos do n.o 2 do artigo 7.o ou que a decisão de regresso não será temporariamente executada.

CAPÍTULO IVDETENÇÃO PARA EFEITOS DE AFASTAMENTO

Artigo 15.oDetenção1. A menos que no caso concreto possam ser aplicadas com efi cácia outras

medidas sufi cientes mas menos coercivas, osEstados-Membros só podem manter detidos nacionais de países terceiros

objecto de procedimento de regresso, a fi m de preparar o regresso e/ou efec-tuar o processo de afastamento, nomeadamente quando: a) Houver risco de fuga; ou b) O nacional de país terceiro em causa evitar ou entravar a prepa-ração do regresso ou o procedimento de afastamento.

A detenção tem a menor duração que for possível, sendo apenas mantida enquanto o procedimento de afastamento estiver pendente e for executado com a devida diligência.

2. A detenção é ordenada por autoridades administrativas ou judiciais. A detenção é ordenada por escrito com menção das razões de facto e de direito.

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Quando a detenção tiver sido ordenada por autoridades administrativas, os Estados-Membros: a) Prevêem o controlo jurisdicional célere da legalidade da detenção, a decidir o mais rapidamente possível a contar do início da detenção; ou b) Concedem ao nacional de país terceiro em causa o direito de intentar uma acção através da qual a legalidade da sua detenção seja ob-jecto de controlo jurisdicional célere, a decidir o mais rapidamente possível a contar da instauração da acção em causa. Neste caso, os Estados-Membros informam imediatamente o nacional de país terceiro em causa sobre a possi-bilidade de intentar tal acção.

O nacional de país terceiro em causa é libertado imediatamente se a de-tenção for ilegal.

3. Em todo o caso, a detenção é objecto de reapreciação a intervalos razoá-veis, quer a pedido do nacional de país terceiro em causa, quer ofi ciosamente. No caso de períodos de detenção prolongados, as reapreciações são objecto de fi scalização pelas autoridades judiciais.

4. Quando, por razões de natureza jurídica ou outra ou por terem deixado de se verifi car as condições enunciadas no n.o 1, se afi gure já não existir uma perspectiva razoável de afastamento, a detenção deixa de se justifi car e a pes-soa em causa é libertada imediatamente.

5. A detenção mantém-se enquanto se verifi carem as condições enuncia-das no n.o 1 e na medida do necessário para garantir a execução da operação de afastamento. Cada Estado— Membro fi xa um prazo limitado de deten-ção, que não pode exceder os seis meses.

6. Os Estados-Membros não podem prorrogar o prazo a que se refere o n.o 5, excepto por um prazo limitado que não exceda os doze meses seguin-tes, de acordo com a lei nacional, nos casos em que, independentemente de todos os esforços razoáveis que tenham envidado, se preveja que a operação de afastamento dure mais tempo, por força de: a) Falta de cooperação do na-cional de país terceiro em causa; ou b) Atrasos na obtenção da documentação necessária junto de países terceiros.

Artigo 16.oCondições de detenção1. Regra geral, a detenção tem lugar em centros de detenção especializa-

dos. Se um Estado-Membro não tiver condições para assegurar aos nacionais de países terceiros a sua detenção num centro especializado e tiver de recorrer a um estabelecimento prisional, os nacionais de países terceiros colocados em detenção fi cam separados dos presos comuns.

2. Os nacionais de países terceiros detidos são autorizados, a pedido, a contactar oportunamente os seus representantes legais, os seus familiares e as autoridades consulares competentes.

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3. Deve atribuir-se especial atenção à situação das pessoas vulneráveis e ser prestados cuidados de saúde urgentes e o tratamento básico de doenças.

4. As organizações, os órgãos nacionais e internacionais e as organizações e os órgãos não governamentais relevantes e competentes têm a possibilidade de visitar os centros de detenção a que se refere o n.o 1, na medida em que estes estejam a ser utilizados para a detenção de nacionais de países terceiros de acordo com o presente capítulo. Essas visitas podem ser sujeitas a autorização.

5. Aos nacionais de países terceiros detidos são sistematicamente forneci-das informações que expliquem as regras aplicadas no centro de detenção e indiquem os seus direitos e deveres. Essas informações incluem, nomeada-mente o direito de, nos termos do direito nacional, contactarem as organiza-ções e órgãos referidos no n.o 4.

Artigo 17.oDetenção de menores e famílias1. Os menores não acompanhados e as famílias com menores só podem

ser detidos em último recurso e por um prazo adequado que deve ser o mais curto possível.

2. As famílias detidas enquanto se aguarda o afastamento fi cam alojadas em locais separados que garantam a devida privacidade.

3. Os menores detidos devem ter a possibilidade de participar em activida-des de lazer, nomeadamente em jogos e actividades recreativas próprias da sua idade, e, em função da duração da permanência, devem ter acesso ao ensino.

4. Os menores não acompanhados benefi ciam, tanto quanto possível, de alojamento em instituições dotadas de pessoal e instalações que tenham em conta as necessidades de pessoas da sua idade.

5. No contexto da detenção de menores enquanto se aguarda o afastamen-to, o interesse superior da criança constitui uma consideração primordial.

Artigo 18.oSituações de emergência1. Caso um número excepcionalmente elevado de nacionais de países ter-

ceiros que devam ser objecto de uma operação de regresso sobrecarregue de forma imprevista a capacidade dos centros de detenção de um Estado-Membro ou o seu pessoal administrativo ou judicial, o Estado-Membro em causa, pode, enquanto persistir a situação excepcional, autorizar prazos de controlo jurisdi-cional superiores aos estabelecidos ao abrigo do terceiro parágrafo do n.o 2 do artigo 15.o e tomar medidas urgentes em relação às condições de detenção, em derrogação das previstas no n.o 1 do artigo 16.o e no n.o 2 do artigo 17.o.

2. O Estado-Membro em causa informa a Comissão sempre que recorra a medidas excepcionais deste tipo. Deve igualmente informar a Comissão logo que os motivos que conduziram à aplicação dessas medidas deixem de existir.

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3. O presente artigo em nada prejudica o dever geral dosEstados-Membros de tomarem todas as medidas adequadas, de carácter

geral ou específi co, para assegurarem o cumprimento das obrigações decor-rentes da presente directiva.

CAPÍTULO VDISPOSIÇÕES FINAIS

Artigo 19.oRelatóriosA Comissão apresenta ao Parlamento Europeu e ao Conselho, de três em

três anos, um relatório sobre a aplicação da presente directiva nos Estados-Membros, propondo, se for caso disso, as alterações necessárias.

A Comissão apresenta o seu primeiro relatório até 24 de Dezembro de 2013 e, nessa ocasião, deve centrar-se especialmente na aplicação dada nos Estados-Membros ao artigo 11.o, ao n.o 4 do artigo 13.o e ao artigo 15.o. Relativamente ao n.o 4 do artigo 13.o, a Comissão avalia, em particular, o impacto fi nanceiro e administrativo suplementar nos Estados-Membros.

Artigo 20.oTransposição1. Os Estados-Membros devem pôr em vigor as disposições legislativas,

regulamentares e administrativas necessárias para dar cumprimento à presen-te directiva, até 24 de Dezembro de 2010. No que diz respeito ao n.o 4 do artigo 13.o, os Estados-Membros devem pôr em vigor as disposições legis-lativas, regulamentares e administrativas necessárias para dar cumprimento à presente directiva, até 24 de Dezembro de 2011. Os Estados-Membros devem comunicar imediatamente à Comissão o texto dessas disposições.

Quando os Estados-Membros aprovarem essas disposições, elas devem incluir uma referência à presente directiva ou ser acompanhadas dessa refe-rência aquando da sua publicação ofi cial. As modalidades dessa referência são aprovadas pelos Estados-Membros.

2. Os Estados-Membros devem comunicar à Comissão o texto das princi-pais disposições de direito interno que aprovarem nas matérias reguladas pela presente directiva.

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Artigo 21.oArticulação com a Convenção de SchengenA presente directiva substitui o disposto nos artigos 23.o e 24.o da Con-

venção de Aplicação do Acordo de Schengen.

Artigo 22.oEntrada em vigorA presente directiva entra em vigor no vigésimo dia seguinte ao da sua

publicação no Jornal Ofi cial da União Europeia.

Artigo 23.oDestinatáriosOs Estados-Membros são os destinatários da presente directiva em confor-

midade com o Tratado que institui a Comunidade Europeia.Feito no Estrasburgo, em 16 de Dezembro de 2008.

Pelo Parlamento EuropeuO PresidenteH.-G. PÖTTERINGPelo ConselhoO PresidenteB. LE MAIRE24.12.2008 PT Jornal Ofi cial da União Europeia L 348/107

DISPONÍVEL EM: http://eur-lex.europa.eu/LexUriServ/LexUriServ.do?uri=OJ:L:2008:348:0098:0107:PT:PDF

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ANEXO V

Case Babcock v. Jackson

Georgia W. Babcock, Appellant, vMabel B. Jackson, as Executrix of William H. Jackson, Deceased, Respon-

dent.

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COURT OF APPEALS OF NEW YORKArgued January 23, 1963

Decided May 9, 1963

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12 NY2d 473CITE TITLE AS: Babcock v Jackson

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OPINION OF THE COURT

FULD, J.On Friday, September 16, 1960, Miss Georgia Babcock and her friends,

Mr. and Mrs. William Jackson, all residents of Rochester, left that city in Mr. Jackson’s automobile, Miss Babcock as guest, for a week-end trip to Canada. Some hours later, as Mr. Jackson was driving in the Province of Ontario, he apparently lost control of the car; it went off the highway into an adjacent stone wall, and Miss Babcock was seriously injured. Upon her return to this State, she brought the present action against William Jackson, alleging negli-gence on his part in operating his automobile. [1]

At the time of the accident, there was in force in Ontario a statute provi-ding that “the owner or driver of a motor vehicle, other than a vehicle opera-ted in the business of carrying passengers for compensation, is not liable for any loss or damage resulting from bodily injury to, or the death of any person being carried in * * * the motor vehicle” (Highway Traffi c Act of Province of Ontario [Ontario Rev. Stat. (1960), ch. 172], §105, subd. [2]). Even though no such bar is recognized under this State’s substantive law of torts (see, e.g., Higgins v. Mason, 255 N. Y. 104, 108; Nelson v. Nygren, 259 N. Y. 71), the

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defendant moved to dismiss the complaint on the ground that the law of the place where the accident occurred governs and that Ontario’s guest statute bars recovery. Th e court at Special Term, agreeing with the defendant, gran-ted the motion and the Appellate Division, over a strong dissent by Justice Halpern, affi rmed the judgment of dismissal without opinion.

Th e question presented is simply drawn. Shall the law of the place of the tort [2] invariably govern the availability of relief for the tort or shall the applicable choice of law rule also refl ect a consideration of other factors which are relevant to the purposes served by the enforcement or denial of the remedy?

Th e traditional choice of law rule, embodied in the original Restatement of Confl ict of Laws (§ 384), and until recently unquestioningly followed in this court (see, e.g., Poplar v. Bourjois, Inc., 298 N. Y. 62, 66; Kaufman v. American Youth Hostels, 5 N Y 2d 1016,modfg. 6 A D 2d 223), has been that the substantive rights and liabilities arising out of a tortious occurrence are determinable by the law of the place of the tort. (See Goodrich, Confl ict of Laws [3d ed., 1949], p. 260; Lefl ar, Th e Law of Confl ict of Laws [1959], p. 207; Stumberg, Principles of Confl ict of Laws [2d ed., 1951], p. 182.) It had its conceptual foundation in the vested rights doctrine, namely, that a right to recover for a foreign tort owes its creation to the law of the [*478] ju-risdiction where the injury occurred and depends for its existence and extent solely on such law. (See Hancock, Torts in the Confl ict of Laws [1942], pp. 30-36; Reese, Th e Ever Changing Rules of Choice of Law, Nederlands Tijds-chrift Voor Internationaal Recht [1962], 389.) Although espoused by such great fi gures as Justice Holmes (see Slater v. Mexican Nat. R. R. Co., 194 U. S. 120) and Professor Beale (2 Confl ict of Laws [1935], pp. 1286-1292), the vested rights doctrine has long since been discredited because it fails to take account of underlying policy considerations in evaluating the signifi cance to be ascribed to the circumstance that an act had a foreign situs in determining the rights and liabilities which arise out of that act. [3]”Th e vice of the vested rights theory”, it has been aptly stated, “is that it aff ects to decide concrete cases upon generalities which do not state the practical considerations invol-ved”. (Yntema, Th e Hornbook Method and the Confl ict of Laws, 37 Yale L. J. 468, 482-483.) More particularly, as applied to torts, the theory ignores the interest which jurisdictions other than that where the tort occurred may have in the resolution of particular issues. It is for this very reason that, des-pite the advantages of certainty, ease of application and predictability which it aff ords (see Cheatham and Reese, Choice of the Applicable Law, 52 Col. L. Rev. 959, 976), there has in recent years been increasing criticism of the

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traditional rule by commentators [4]and a judicial trend towards its aban-donment or modifi cation. [5]

Signifi cantly, it was dissatisfaction with “the mechanical formulae of the confl icts of law” (Vanston Committee v. Green, 329 U. S. 156, 162) which led to judicial departure from similarly infl exible choice of law rules in the fi eld of contracts, grounded, like the torts rule, on the vested rights doctrine. According to those traditional rules, matters bearing upon the execution, interpretation and validity of a contract were determinable by the internal law of the place where the contract was made, while matters connected with their performance were regulated by the internal law of the place where the contract was to be performed. (See Swift & Co. v. Bankers Trust Co., 280 N. Y. 135, 141; see, also, Restatement, Confl ict of Laws, §§ 332, 358; Goodri-ch, Confl ict of Laws [3d ed., 1949], pp. 342-343.)

In Auten v. Auten (308 N. Y. 155), however, this court abandoned such rules and applied what has been termed the “center of gravity” or “grouping of contacts” theory of the confl ict of laws. “Under this theory,” we declared in the Auten case, “the courts, instead of regarding as conclusive the parties’ intention or the place of making or performance, lay emphasis rather upon the law of the place ‘which has the most signifi cant contacts with the matter in dispute’ “ (308 N. Y., at p. 160). Th e “center of gravity” rule of Auten has not only been applied in other cases in this State, [6]as well as in other juris-dictions, [7]but has supplanted the prior rigid and set contract rules in the most current draft of the Restatement of Confl ict of Laws. (See Restatement, Second, Confl ict of Laws, § 332b [Tentative Draft No. 6, 1960].)

Realization of the unjust and anomalous results which may ensue from application of the traditional rule in tort cases has also prompted judicial search for a more satisfactory alternative in that area. In the much discussed case of Kilberg v. Northeast Airlines (9 N Y 2d 34), this court declined to apply the law of the place of the tort as respects the issue of the quantum of the recovery in a death action arising out of an airplane crash, [*480] where the decedent had been a New York resident and his relationship with the defendant airline had originated in this State. In his opinion for the court, Chief Judge Desmond described, with force and logic, the shortcomings of the traditional rule (9 N Y 2d, at p. 39):

“Modern conditions make it unjust and anomalous to subject the trave-ling citizen of this State to the varying laws of other States through and over which they move. * * * An air traveler from New York may in a fl ight of a few

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hours’ duration pass through * * * commonwealths [limiting death damage awards]. His plane may meet with disaster in a State he never intended to cross but into which the plane has fl own because of bad weather or other unexpected developments, or an airplane’s catastrophic descent may begin in one State and end in another. Th e place of injury becomes entirely fortui-tous. Our courts should if possible provide protection for our own State’s pe-ople against unfair and anachronistic treatment of the lawsuits which result from these disasters.”

Th e emphasis in Kilberg was plainly that the merely fortuitous circums-tance that the wrong and injury occurred in Massachusetts did not give that State a controlling concern or interest in the amount of the tort recovery as against the competing interest of New York in providing its residents or users of transportation facilities there originating with full compensation for wrongful death. Although the Kilberg case did not expressly adopt the “cen-ter of gravity” theory, its weighing of the contacts or interests of the respec-tive jurisdictions to determine their bearing on the issue of the extent of the recovery is consistent with that approach. (See Lefl ar, Confl ict of Laws, 1961 Ann. Sur. Amer. Law, 29, 45.)

Th e same judicial disposition is also refl ected in a variety of other deci-sions, some of recent date, others of earlier origin, relating to workmen’s compensation, [8]tortious occurrences aristing [*481] out of a contract, [9]issues aff ecting the survival of a tort right of action [10]and intrafamilial im-munity from tort [11]and situations involving a form of statutory liability. [12]Th ese numerous cases diff er in many ways but they are all similar in two important respects. First, by one rationale or another, they rejected the ine-xorable application of the law of the place of the tort where that place has no reasonable or relevant interest in the particular issue involved. And, second, in each of these cases the courts, after examining the particular circumstances presented, applied the law of some jurisdiction other than the place of the tort because it had a more compelling interest in the application of its law to the legal issue involved.

Th e “center of gravity” or “grouping of contacts” doctrine adopted by this court in confl icts cases involving contracts impresses us as likewise aff ording the appropriate approach for accommodating the competing interests in tort cases with multi-State contacts. Justice, fairness and “the best practical result” (Swift & Co. v. Bankers Trust Co., 280 N. Y. 135, 141, supra) may best be achieved by giving controlling eff ect to the law of the jurisdiction which, because of its relationship or contact with the occurrence or the parties, has the greatest concern with the specifi c issue raised in the litigation. Th e merit of such a rule is that “it gives to the place ‘having the most interest in the

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problem’ paramount control over the legal issues arising out of a particular factual context” and thereby allows the forum to apply “the policy of the jurisdiction ‘most [*482] intimately concerned with the outcome of [the] particular litigation.’ “ (Auten v. Auten, 308 N. Y. 155, 161, supra.)

Such, indeed, is the approach adopted in the most recent revision of the Confl ict of Laws Restatement in the fi eld of torts. According to the princi-ples there set out, “Th e local law of the state which has the most signifi cant relationship with the occurrence and with the parties determines their rights and liabilities in tort” (Restatement, Second, Confl ict of Laws, § 379[1]; also Introductory Note to Topic 1 of Chapter 9, p. 3 [Tentative Draft No. 8, 1963]), and the relative importance of the relationships or contacts of the respective jurisdictions is to be evaluated in the light of “the issues, the character of the tort and the relevant purposes of the tort rules involved” (§ 379[2], [3]).

Comparison of the relative “contacts” and “interests” of New York and Ontario in this litigation, vis-a-vis the issue here presented, makes it clear that the concern of New York is unquestionably the greater and more direct and that the interest of Ontario is at best minimal. Th e present action invol-ves injuries sustained by a New York guest as the result of the negligence of a New York host in the operation of an automobile, garaged, licensed and undoubtedly insured in New York, in the course of a week-end journey whi-ch began and was to end there. In sharp contrast, Ontario’s sole relationship with the occurrence is the purely adventitious circumstance that the accident occurred there.

New York’s policy of requiring a tort-feasor to compensate his guest for injuries caused by his negligence cannot be doubted — as attested by the fact that the Legislature of this State has repeatedly refused to enact a statute denying or limiting recovery in such cases (see, e.g., 1930 Sen. Int. No. 339, Pr. No. 349; 1935 Sen. Int. No. 168, Pr. No. 170; 1960 Sen. Int. No. 3662, Pr. No. 3967) — and our courts have neither reason nor warrant for depar-ting from that policy simply because the accident, solely aff ecting New York residents and arising out of the operation of a New York based automobile, happened beyond its borders. Per contra, Ontario has no conceivable interest in denying a remedy to a New York guest against his New York host for inju-ries suff ered in Ontario by reason of conduct which was tortious under On-tario law. Th e object of Ontario’s guest statute, it has been said, is “to prevent the fraudulent assertion [*483] of claims by passengers, in collusion with the drivers, against insurance companies” (Survey of Canadian Legislation, 1 U. Toronto L. J. 358, 366) and, quite obviously, the fraudulent claims intended

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to be prevented by the statute are those asserted against Ontario defendants and their insurance carriers, not New York defendants and their insurance carriers. Whether New York defendants are imposed upon or their insurers defrauded by a New York plaintiff is scarcely a valid legislative concern of Ontario simply because the accident occurred there, any more so than if the accident had happened in some other jurisdiction.

It is hardly necessary to say that Ontario’s interest is quite diff erent from what it would have been had the issue related to the manner in which the defendant had been driving his car at the time of the accident. Where the defendant’s exercise of due care in the operation of his automobile is in is-sue, the jurisdiction in which the allegedly wrongful conduct occurred will usually have a predominant, if not exclusive, concern. In such a case, it is appropriate to look to the law of the place of the tort so as to give eff ect to that jurisdiction’s interest in regulating conduct within its borders, and it would be almost unthinkable to seek the applicable rule in the law of some other place.

Th e issue here, however, is not whether the defendant off ended against a rule of the road prescribed by Ontario for motorists generally or whether he violated some standard of conduct imposed by that jurisdiction, but rather whether the plaintiff , because she was a guest in the defendant’s automobile, is barred from recovering damages for a wrong concededly committed. As to that issue, it is New York, the place where the parties resided, where their guest— host relationship arose and where the trip began and was to end, rather than Ontario, the place of the fortuitous occurrence of the accident, which has the dominant contacts and the superior claim for application of its law. Although the rightness or wrongness of defendant’s conduct may depend upon the law of the particular jurisdiction through which the auto-mobile passes, the rights and liabilities of the parties which stem from their guest-host relationship should remain constant and not vary and shift as the automobile proceeds from place to place. Indeed, such a result, we note, [*484] accords with “the interests of the host in procuring liability insurance adequate under the applicable law, and the interests of his insurer in rea-sonable calculability of the premium.” (Ehrenzweig, Guest Statutes in the Confl ict of Laws, 69 Yale L. J. 595, 603.)

Although the traditional rule has in the past been applied by this court in giving controlling eff ect to the guest statute of the foreign jurisdiction in which the accident occurred (see, e.g., Smith v. Clute, 277 N. Y. 407; Ker-foot v. Kelley, 294 N. Y. 288; Naphtali v. Lafazan, 8 N Y 2d 1097, aff g. 8 A D 2d 22), it is not amiss to point out that the question here posed was neither

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raised nor considered in those cases and that the question has never been pre-sented in so stark a manner as in the case before us with a statute so unique as Ontario’s. [13]Be that as it may, however, reconsideration of the infl exible traditional rule persuades us, as already indicated, that, in failing to take into account essential policy considerations and objectives, its application may lead to unjust and anomalous results. Th is being so, the rule, formulated as it was by the courts, should be discarded. (Cf. Bing v. Th unig, 2 N Y 2d 656, 667; Woods v. Lancet, 303 N. Y. 349, 355.) [14]

In conclusion, then, there is no reason why all issues arising out of a tort claim must be resolved by reference to the law of the same jurisdiction. Whe-re the issue involves standards of conduct, it is more than likely that it is the law of the place of the tort which will be controlling but the disposition of other issues must turn, as does the issue of the standard of conduct itself, on the law of the jurisdiction which has the strongest interest in the resolution of the particular issue presented. [*485]

Th e judgment appealed from should be reversed, with costs, and the mo-tion to dismiss the complaint denied.

--------------------------------------------------------------------------------

VAN VOORHIS, J. (Dissenting).

Th e decision about to be made of this appeal changes the established law of this State, one of the most recent decisions the other way being Kaufman v. American Youth Hostels (5 N Y 2d 1016), where all of the “signifi cant contacts” were with New York State except the mountain which plaintiff ’s intestate was climbing when she met her death. Th e defense of immunity of a charitable corporation under the Oregon law, where the accident oc-curred, was inapplicable under the law of New York where the defendant corporation was organized and staff ed, and plaintiff and his intestate resided. Nevertheless the court declined to strike that defense from the answer, based upon Oregon law. Concerning, as it did, solely the status of the defendant corporation, Kaufman v. American Youth Hostels presented a stronger case for the application of New York law than does the present. Th e case of Auten v. Auten (308 N. Y. 155), involving a separation agreement between English people and providing for the support of a wife and children to continue to live in England, accomplished no such revolution in the law as the present appeal. Auten v. Auten dealt with contracts, the agreement was held to be

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governed by the law of the country where it was mainly to be performed, which had previously been the law, and the salient expressions “center of gravity”, “grouping of contacts”, and similar catchwords were employed as a shorthand reference to the reconciliation of such rigid concepts in the con-fl ict of laws as the formulae making applicable the place where the contract was signed or where it was to be performed — rules which themselves were occasionally in confl ict with one another. In the course of the opinion it was stated that “even if we were not to place our emphasis on the law of the place with the most signifi cant contacts, but were instead simply to apply the rule that matters of performance and breach are governed by the law of the place of performance, the same result would follow” (308 N. Y., p. 163). Th e decision in Auten v. Auten rationalized and rendered more workable the existing law of contracts. Th e name “grouping of contacts” was simply a label to identify the rationalization of existing decisions on the confl ict of laws in [*486] contract cases which were technically inconsistent, in some instances. Th e diff erence between the present case and Auten v. Auten is that Auten did not materially change the law, but sought to formulate what had previously been decided. Th e present case makes substantial changes in the law of torts. Th e expressions “center of gravity”, “grouping of contacts,” and “signifi cant contacts” are catchwords which were not employed to defi ne and are inade-quate to defi ne a principle of law, and were neither applied to nor are they applicable in the realm of torts.

Any idea is without foundation that cases such as the present render more uniform the laws of torts in the several States of the United States. Attempts to make the law or public policy of New York State prevail over the laws and policies of other States where citizens of New York State are concerned are simply a form of extraterritoriality which can be turned against us wherever actions are brought in the courts of New York which involve citizens of other States. Th is is no substitute for uniform State laws or for obtaining unifor-mity by covering the subject by Federal law. Undoubtedly ease of travel and communication, and the increase in interstate business have rendered more awkward discrepancies between the laws of the States in many respects. But this is not a condition to be cured by introducing or extending principles of extraterritoriality, as though we were living in the days of the Roman or British Empire, when the concepts were formed that the rights of a Roman or an Englishman were so signifi cant that they must be enforced throughout the world even where they were otherwise unlikely to be honored by “lesser breeds without the law.” Importing the principles of extraterritoriality into the confl icts of laws between the States of the United States can only make confusion worse confounded. If extraterritoriality is to be the criterion, what would happen, for example, in case of an automobile accident where some

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of the passengers came from or were picked up in States or countries where causes of action against the driver were prohibited, others where gross ne-gligence needed to be shown, some, perhaps, from States where contribu-tory negligence and others where comparative negligence prevailed? In the majority opinion it is said that “Where the defendant’s exercise of due care in the operation of his automobile is in issue, the jurisdiction in which the allegedly wrongful conduct occurred [*487] will usually have a predominant, if not exclusive, concern.” Th is is hardly consistent with the statement in the footnote that gross negligence would not need to be established in an action by a passenger if the accident occurred in a State whose statute so required. If the status of the passenger as a New Yorker would prevent the operation of a statute in a sister State or neighboring country which granted immunity to the driver in suits by passengers, it is said that it would also prevent the operation of a statute which instead of granting immunity permits recovery only in case of gross negligence. Th ere are passenger statutes or common-law decisions requiring gross negligence or its substantial equivalent to be shown in 29 States. One wonders what would happen if contributory negligence were eliminated as a defense by statute in another jurisdiction? Or if compa-rative negligence were established as the rule in the other State?

In my view there is no overriding consideration of public policy which justifi es or directs this change in the established rule or renders necessary or advisable the confusion which such a change will introduce.

Th e judgment dismissing the complaint should be affi rmed.

Chief Judge Desmond and Judges Dye, Burke and Foster concur with Judge Fuld; Judge Van Voorhis dissents in an opinion in which Judge Scile-ppi concurs.

Judgment reversed, with costs in all courts, and matter remitted to Special Term for further proceedings in accordance with the opinion herein.

Footnotes

Footnote 1: Jackson having died after the commencement of the suit, his executrix was substituted in his place as defendant.

Footnote 2: In this case, as in nearly all such cases, the conduct causing in-jury and the injury itself occurred in the same jurisdiction. Th e phrase “place of the tort,” as distinguished from “place of wrong” and “place of injury,” is

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used herein to designate the place where both the wrong and the injury took place.

Footnote 3: See Cavers, A Critique of the Choice-of-Law Problem, 47 Harv. L. Rev. 173, 178; Cheatham, American Th eories of Confl ict of Laws: Th eir Role and Utility, 58 Harv. L. Rev. 361, 379-385; Cook, Th e Logical and Legal Bases of the Confl ict of Laws, 33 Yale L. J. 457, 479 et seq.; Hill, Governmental Interest and the Confl ict of Laws, 27 U. Chi. L. Rev. 463; Lorenzen, Territoriality, Public Policy and the Confl ict of Laws, 33 Yale L. J. 736, 746-749; Yntema, Th e Hornbook Method and the Confl ict of Laws, 37 Yale L. J. 468, 474 et seq.

Footnote 4: See Dicey, Confl ict of Laws (7th ed., 1958), p. 937 et seq.; Lefl ar, Th e Law of Confl ict of Laws (1959), p. 217 et seq.; Stumberg, Prin-ciples of Confl ict of Laws (2d ed., 1951), p. 201 et seq.; Morris, Th e Pro-per Law of a Tort, 64 Harv. L. Rev. 881; Ehrenzweig, Guest Statutes in the Confl ict of Laws, 69 Yale L. J. 595; Currie, Survival of Actions: Adjudication versus Automation in the Confl ict of Laws, 10 Stan. L. Rev. 205.

Footnote 5: See, e.g., Richards v. United States, 369 U. S. 1, 12-13; Grant v. McAuliff e, 41 Cal. 2d 859; Schmidt v. Driscoll Hotel, 249 Minn. 376; Haumschild v. Continental Cas. Co., 7 Wis. 2d 130.

Footnote 6: See, e.g., Haag v. Barnes, 9 N Y 2d 554; Zogg v. Penn Mut. Life Ins. Co., 276 F. 2d 861 (2d Cir.).

Footnote 7: See, e.g., Jansson v. Swedish Amer. Line, 185 F. 2d 212, 218-219; Barber Co. v. Hughes, 223 Ind. 570, 586; Kievit v. Loyal Protective Life Ins. Co., 34 N. J. 475, 491-493; Estate of Knippel, 7 Wis. 2d 335, 343-345.

Footnote 8: See, e.g., Alaska Packers Assn. v. Industrial Acc. Comm., 294 U. S. 532; Matter of Nashko v. Standard Water Proofi ng Co., 4 N Y 2d 199; Kennerson v. Th ames Towboat Co., 89 Conn. 367; Pierce v. Bekins Van & Stor. Co., 185 Ia. 1346; Aleckson v. Kennedy Motor Sales Co., 238 Minn. 110; see, also, 2 Larson, Workmen’s Compensation Law, § 84.

Footnote 9: See Dyke v. Erie Ry. Co., 45 N. Y. 113; see, also, Bowles v. Zimmer Mfg. Co., 277 F. 2d 868 (breach of warranty).

Footnote 10: See Grant v. McAuliff e, 41 Cal. 2d 859, supra; Herzog v. Stern, 264 N. Y. 379; see, also, Currie, Survival of Actions: Adjudication versus Automation in the Confl ict of Laws, 10 Stan. L. Rev. 205.

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Footnote 11: See Emery v. Emery, 45 Cal. 2d 421; Koplik v. C. P. Trucking Corp., 27 N. J. 1; Mertz v. Mertz, 271 N. Y. 466; Haumschild v. Continental Cas. Co., 7 Wis. 2d 130, supra; see, also, Ehrenzweig, Parental Immunity in the Confl ict of Laws, 23 U. Chi. L. Rev. 474; Ford, Interspousal Liability for Automobile Accidents in the Confl ict of Laws, 15 U. Pitt. L. Rev. 397. But cf. Coster v. Coster, 289 N. Y. 438.

Footnote 12: See Schmidt v. Driscoll Hotel, 249 Minn. 376, supra; Os-born v. Borchetta, 20 Conn. S. 163; Levy v. Daniels’ U-Drive Auto Renting Co., 108 Conn. 333. See, also, Daily v. Somberg, 28 N. J. 372 (eff ect of release to one of several parties jointly liable for plaintiff ’s injury).

Footnote 13: We note that the Supreme Court of Canada has upheld the refusal of the Quebec courts to apply the Ontario guest statute to an accident aff ecting Quebec residents which occurred in Ontario. (See McLean v. Petti-grew, [1945] 2 D. L. R. 65.) Th is decision was dictated by the court’s resort to the English choice of law rule, whereby the foreign tort is deemed actio-nable if actionable by the law of the forum and not justifi able by the law of the place of the tort. (See Phillips v. Eyre, [1870] L. R. 6 Q. B. 1, 28-29; see, also, Dicey, Confl ict of Laws [7th ed., 1958], p. 940.) However that may be, it would seem incongruous for this court to apply Ontario’s unique statute in circumstances under which its own sister Provinces would not.

Footnote 14: It of course follows from our decision herein that, given the facts of the present case, the result would be the same and the law of New York applied where the foreign guest statute requires a showing of gross ne-gligence.

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ANEXO VI

RECURSO ESPECIAL Nº 512.401 — SP

RECURSO ESPECIAL Nº 512.401 — SP (2003/0027639-5)RELATOR: MINISTRO CESAR ASFOR ROCHARECORRENTE: JÚLIO SIMÕESADVOGADO: RENAN LOTUFO E OUTROSRECORRIDO: MARIA CESALTINA CONCEIÇÃO DUARTEADVOGADO: CARLOS ALBERTO LABORDA BARÃO E OUTRO

EMENTADIREITO INTERNACIONAL PRIVADO E CIVIL. INVESTIGAÇÃO

DE PATERNIDADE DE ESTRANGEIRO. REGISTRO EM SUA PÁTRIA DE ORIGEM. APLICAÇÃO DA LEGISLAÇÃO BRASILEIRA.

O elemento de conexão, no confl ito de leis no espaço, estipulado no or-denamento pátrio, é o domicílio da pessoa. Ainda que a concepção, o nasci-mento e o registro da investigante tenham ocorrido no exterior, estando ela domiciliada no Brasil, deve ser aplicado o ordenamento nacional.

A demanda pela paternidade real, fundada na falsidade de registro, não tem prazo decadencial, mesmo antes da promulgação da Carta Magna. Pre-cedente da Segunda Seção.

A ação de investigação de paternidade não depende da prévia propositura da ação anulatória do assento de nascimento do investigante, tendo o fi lho interesse de buscar a paternidade real, a despeito de reconhecido como legíti-mo por terceiro com falsidade ideológica.

Recurso não conhecido.

ACÓRDÃOVistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Srs. Ministros daQuarta Turma do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos vo-

tos e das notas taquigráfi cas a seguir, por unanimidade, não conhecer do recurso especial, com revogação de liminar concedida na Medida Cautelar n. 5.832-SP, julgada prejudicada.

Votaram com o Relator os Srs. Ministros Fernando Gonçalves e Barros Monteiro.

Ausente, ocasionalmente, o Sr. Ministro Aldir Passarinho Junior. Ausente, justifi cadamente, o Sr. Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira.

Brasília, 14 de outubro de 2003 (data do julgamento).

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RECURSO ESPECIAL Nº 512.401 — SP (2003⁄0027639-5)RELATOR: MINISTRO CESAR ASFOR ROCHARECORRENTE: JÚLIO SIMÕESADVOGADO: RENAN LOTUFO E OUTROSRECORRIDO: MARIA CESALTINA CONCEIÇÃO DUARTEADVOGADO: CARLOS ALBERTO LABORDA BARÃO E OUTRO

EMENTADIREITO INTERNACIONAL PRIVADO E CIVIL. INVESTIGA-

ÇÃO DE PATERNIDADE DE ESTRANGEIRO. REGISTRO EM SUA PÁTRIA DE ORIGEM. APLICAÇÃO DA LEGISLAÇÃO BRASILEIRA.

O elemento de conexão, no confl ito de leis no espaço, estipulado no or-denamento pátrio, é o domicílio da pessoa. Ainda que a concepção, o nasci-mento e o registro da investigante tenham ocorrido no exterior, estando ela domiciliada no Brasil, deve ser aplicado o ordenamento nacional.

A demanda pela paternidade real, fundada na falsidade de registro, não tem prazo decadencial, mesmo antes da promulgação da Carta Magna. Pre-cedente da Segunda Seção.

A ação de investigação de paternidade não depende da prévia propositura da ação anulatória do assento de nascimento do investigante, tendo o fi lho interesse de buscar a paternidade real, a despeito de reconhecido como legíti-mo por terceiro com falsidade ideológica.

Recurso não conhecido.ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Srs. Ministros da Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos votos e das notas taquigráfi cas a seguir, por unanimidade, não conhecer do recurso especial, com revogação de liminar concedida na Medida Cautelar n. 5.832-SP, julgada prejudicada. Votaram com o Relator os Srs. Ministros Fernando Gonçalves e Barros Monteiro. Ausente, ocasionalmente, o Sr. Ministro Aldir Passarinho Junior. Ausente, justifi cadamente, o Sr. Ministro Sálvio de Figuei-redo Teixeira.

Brasília, 14 de outubro de 2003 (data do julgamento).

MINISTRO CESAR ASFOR ROCHA, Relator

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RECURSO ESPECIAL Nº 512.401 — SP (2003⁄0027639-5)

VOTO

O SR. MINISTRO BARROS MONTEIRO: Sr. Presidente, entendo aplicável a lei brasileira nos termos do art. 7º da Lei de Introdução, uma vez que, como esclareceu o Sr. Ministro Relator, a autora é domiciliada em São Paulo. No mais, S. Exa. alinhou a jurisprudência dominante em todos os itens de seu voto. Daí por que, em suma, o estou acompanhando.

Não conheço do recurso especial e revogo a liminar concedida na Medida Cautelar nº 5.832⁄SP, a qual julgo prejudicada pela perda de seu objeto.

RECURSO ESPECIAL Nº 512.401 — SP (2003⁄0027639-5)RELATÓRIO

EXMO. SR. MINISTRO CESAR ASFOR ROCHA:Maria Cesaltina Conceição Duarte, cidadã portuguesa e ora recorrida, ajui-

zou ação de investigação de paternidade cumulada com anulação de regis-tro de nascimento contra Júlio Simões, cidadão português e ora recorrente, e também contra Maria Manuela Conceição Fernandes e Maria Celeste Costa, igualmente cidadãs portuguesas e herdeiras do declarado pai Antônio Joaquim Cristóvão, marido da mãe da autora.

Alega a autora que seu registro de nascimento, ocorrido na República de Portugal por meio de declaração paterna, é falso ideologicamente, sendo o primeiro réu seu verdadeiro genitor.

O MM. Juízo de primeiro grau, proferindo despacho saneador, rejeitou as preliminares levantadas pelo réu Júlio Simões de impossibilidade jurídica do pedido, decadência, prescrição, ilegitimidade ativa, litisconsórcio passivo, falta de interesse de agir e inaplicabilidade da Legislação Brasileira.

O réu⁄recorrente, então, interpôs agravo de instrumento para o eg. Tri-bunal de Justiça do Estado de São Paulo, que manteve, por maioria, a deci-são monocrática. Opostos embargos de declaração, o eg. Tribunal de origem rejeitou-os em v. acórdão assim ementado:

“Investigação de Paternidade. Cumulação com anulação de registro. Pedidos possíveis. CPC, 292. Código Civil, art. 348. Situações de fato que justifi cam a cumulação das ações. Registro feito no estrangeiro. Aplicação da lei brasileira a quem reside no país. Alegada afronta aos arts. 7° e 13 da Lei de Introdução e 178, §9°, VI, 340, 344 e 362 do Código Civil e 27 da Lei n. 8.069⁄90. Prescri-ção e decadência afastadas. Agravo improvido. Embargos de Declaração. Alegada existência de omissões quanto à afi rmação de decadência e posse de estado de fi lho

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e de litisconsórcio passivo e de submissão a exame hematológico só após anulação do registro. Alegação de contradição em relação ao prévio cancelamento do regis-tro. Embargos rejeitados.” (fl . 187).

Irresignado, o réu Júlio Simões interpôs recurso especial com fundamento nas alíneas “a” e “c”, por alegada afronta aos arts. 7° da Lei de Introdução ao Código Civil; 178, §9°, VI, 340, 344 e 362 do Código Civil; 27 do Estatuto da Criança e do Adolescente, e 3° do Código de Processo Civil, bem como dissídio pretoriano, sustentando aplicação do direito luso, decadência e falta de interesse de agir da recorrida.

Respondido, o recurso foi admitido na origem, ascendendo os autos a esta Corte.

O recorrente ajuizou, ainda, medida cautelar com pedido de liminar (MC 5.832⁄SP) a fi m de ser atribuído efeito suspensivo ao mencionado recurso especial, tendo sido deferida em parte por decisão da lavra do eminente Mi-nistro Ruy Rosado de Aguiar (fl . 347), de modo a suspender apenas o exame de DNA.

O douto Ministério Público Federal ofereceu parecer pelo não conheci-mento do recurso.

É o relatório.RECURSO ESPECIAL Nº 512.401 — SP (2003⁄0027639-5)

EMENTADIREITO INTERNACIONAL PRIVADO E CIVIL. INVESTIGA-

ÇÃO DE PATERNIDADE DE ESTRANGEIRO. REGISTRO EM SUA PÁTRIA DE ORIGEM. APLICAÇÃO DA LEGISLAÇÃO BRASILEIRA.

O elemento de conexão, no confl ito de leis no espaço, estipulado no or-denamento pátrio, é o domicílio da pessoa. Ainda que a concepção, o nasci-mento e o registro da investigante tenham ocorrido no exterior, estando ela domiciliada no Brasil, deve ser aplicado o ordenamento nacional.

A demanda pela paternidade real, fundada na falsidade de registro, não tem prazo decadencial, mesmo antes da promulgação da Carta Magna. Pre-cedente da Segunda Seção.

A ação de investigação de paternidade não depende da prévia propositura da ação anulatória do assento de nascimento do investigante, tendo o fi lho interesse de buscar a paternidade real, a despeito de reconhecido como legíti-mo por terceiro com falsidade ideológica.

Recurso não conhecido.VOTOEXMO. SR. MINISTRO CESAR ASFOR ROCHA (Relator):Não merece prosperar o inconformismo.1. Quanto à suposta ofensa ao art. 7° da Lei de Introdução ao Código

Civil, sustenta o recorrente a subsunção do ordenamento português, “pois

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todas as situações que envolvem o caso se deram em Portugal e todas as pessoas envolvidas são portuguesas.” (fl . 225).

Na espécie, a autora foi registrada na República de Portugal, pelo marido de sua mãe, que, após seu nascimento, emigrou para o Brasil, onde são hoje domiciliados tanto a recorrida como o recorrente.

A competência da jurisdição brasileira para conhecer do feito é determi-nada pelo art. 88, I, do Código de Processo Civil, tendo em vista o local de domicílio do réu.

Assentada a competência internacional, resta questão distinta relativa ao ordenamento normativo aplicável à hipótese, se luso ou brasileiro, existindo confl ito de leis no espaço. Nesse caso, é o elemento de conexão estabelecido pelo Estado competente que indicará a legislação substancial incidente, res-tando desimportante aquele indicado pela legislação lusa.

O ordenamento pátrio, seguindo o entendimento de Teixeira de Freitas e de Savigny, acolheu o domicílio como elemento de conexão principal. Isto é, nos confl itos entre o Direito nacional e o estrangeiro, prevalecerá a lei de domicílio da pessoa, a teor do art. 7° da Lei de Introdução ao Código Civil, in verbis:

“Art. 7°. A lei do país em que for domiciliada a pessoa determina as regras sobre o começo e o fi m da personalidade, o nome, a capacidade e os direitos de família.”

Com efeito, ainda que a lide seja entre estrangeiros ou que a concepção, o nascimento e o registro tenham ocorrido alhures, tratando-se de direito de família e estando a autora domiciliada no Brasil, é o ordenamento nacional que deve ser considerado na solução da lide, haja vista a lex fori sobre confl ito de leis no espaço.

Na realidade, o domicílio foi estabelecido como referência para o Direito incidente, sobretudo tendo em vista a grande imigração ocorrida no País, ge-rando confl itos entre pessoas das mais diversas nacionalidades, nada obstante o animus de fi xação defi nitiva em solo pátrio.

Assim, a fi m de evitar a aplicação freqüente de leis alienígenas, entre elas, as de potências inimigas durante a Segunda Guerra Mundial, estabeleceu-se o domicílio da pessoa quando da propositura da demanda como referencial na Lei de Introdução ao Código Civil. Ou seja, o ordenamento incidente in-depende da nacionalidade ou mesmo do domicílio considerado à época dos fatos, ao contrário do argumentado pelo recorrente.

In casu, o elemento de conexão que atrai a incidência das normas brasi-leiras resta confi gurado: a autora tem domicílio em São Paulo-SP, devendo a controvérsia ser sanada à luz do Direito material brasileiro.

Dessa forma, correto o acórdão recorrido, que entendeu incidente o orde-namento brasileiro na espécie.

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2. No que tange à alegada violação dos arts. 178, § 9°, VI, e 362 do Códi-go Civil de 1916 e 27 do Estatuto da Criança e do Adolescente e ao dissídio pretoriano, o recorrente afi rma a decadência do direito da recorrida, tendo em vista o decurso do prazo para impugnar o reconhecimento da paternidade antes da vigência da Constituição de 1988.

Todavia, a col. Segunda Seção desta Corte pacifi cou recentemente en-tendimento no sentido de que a aplicação dos arts. 178, § 9°, VI, e 362, CC⁄1916, refere-se apenas à hipótese de reconhecimento de fi lho natural — isto é, a ação que impugna, sem necessário fundamento de falsidade, o reco-nhecimento de prole nascida fora do casamento —, e não às demandas que pretendem comprovar a falsidade ideológica de registro, seja de fi lhos legiti-mados, seja dos legítimos (EREsp 237.553⁄RO, relator para acórdão Minis-tro Ari Pargendler, julgado em 12.02.2003).

Dessarte, a ação de investigação de paternidade que pretende provar a falsidade ideológica de registro não tem prazo decadencial, ainda antes da vigência da atual Carta Magna, tendo em vista inaplicabilidade dos aludidos dispositivos da Lei Civil ao caso em comento. A propósito, confi -ram-se os seguintes precedentes já seguindo a orientação fi rmada pela col. Segunda Seção:

“CIVIL E PROCESSO CIVIL. AÇÃO ANULATÓRIA DE REGISTRO. PATERNIDADE. FALSIDADE. LEGITIMIDADE. DECADÊNCIA. ART. 178, § 6º, XII, CÓDIGO CIVIL DE 1.916. INAPLICABILIDADE. IM-PRESCRITIBILIDADE. ORIENTAÇÃO DA SEGUNDA SEÇÃO. INTER-PRETAÇÃO RESTRITIVA AOS PRAZOS PRESCRICIONAIS. BUSCA DA VERDADE REAL. RECURSO PROVIDO. DECADÊNCIA AFASTADA.

(...)II — O art. 178, § 6º, XII do Código Civil de 1.916 tratava da ação dos

herdeiros de fi lho falecido que viessem a postular a declaração judicial da fi lia-ção desse ‘fi lho’. No caso, diferentemente, trata-se de ação de irmão contra irmã, fundada no art. 348 do mesmo diploma legal, requerendo a nulidade do registro dessa última.

III — Nesse caso, é de aplicar-se a orientação de ser ‘imprescritível o direito ao reconhecimento do estado fi lial, interposto com fundamento na falsidade do registro’.

IV — A orientação da Segunda Seção deste Tribunal, relativamente aos pra-zos prescricionais nas ações de paternidade, tem sido pela interpretação restritiva. A preocupação com a insegurança para as relações de parentesco deve ceder diante do ‘dano que decorre da permanência de registro meramente formal, atestando uma verdade que sabidamente não corresponde ao mundo dos fatos’.” (REsp 139.118⁄PB, relatado pelo eminente Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira, DJ 25.08.2003).

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“Civil. Investigação de paternidade. Registro civil. Anulação. Prescrição.I. — O direito do fi lho de buscar a paternidade real, com pedido de anulação

retifi cação de registro de nascimento em caso de falsidade praticada pela mãe é imprescritível, não se aplicando o disposto no art. 178, § 9º, VI, do Código Civil. Precedentes.

II. — Decisão mantida, porque em sintonia com a jurisprudência mais mo-derna e majoritária desta Corte.

III. — Agravo regimental desprovido.” (AGREsp 440.472⁄RS, relatado pelo eminente Ministro Pádua Ribeiro, DJ 19.05.2003).

“INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE. Decadência.Não se extingue o direito de o fi lho investigar a paternidade e pleitear a alte-

ração do registro, mesmo quando vencido integralmente, depois da maioridade, o prazo de quatro anos.

Precedentes da Segunda Seção.Recurso não conhecido.” (REsp 208.788⁄SP, relatado pelo eminente Minis-

tro Ruy Rosado de Aguiar, DJ 22.04.2003).

Portanto, incidente o verbete n. 83 da Súmula desta Corte.3. Relativamente à alegada ofensa ao art. 3° do Código de Processo Civil,

tampouco assiste razão ao recorrente.De fato, a jurisprudência deste Tribunal fi rmou-se no sentido de que a

ação de investigação de paternidade não depende da prévia propositura da ação anulatória do assento de nascimento do investigante, mas o fi lho com registro completo tem interesse de buscar a paternidade real, a despeito de re-conhecido como legítimo por terceiro com falsidade ideológica. A propósito, confi ram-se os seguintes precedentes:

“AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE PROPOSTA POR QUEM TEM EM SEU REGISTRO CIVIL DE NASCIMENTO A DECLA-RAÇÃO DE SER FILHO LEGÍTIMO, NÃO HAVENDO CONSTESTA-ÇÃO DO PAI REGISTRAL. POSSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO, INDEPENDENTEMENTE DE PRÉVIA ANULAÇÃO DO REGISTRO.

A falsidade do registro de nascimento pode ser demonstrada no âmbito da ação investigatória de paternidade. A procedência do pedido conduz ao cancelamento do registro, não se exigindo pedido expresso nem muito menos ação própria.

Inaplicabilidade dos artigos 178, §9º, VI e 362 do Código Civil, pois impres-critível o direito do fi lho de buscar a paternidade real.

Precedentes.Recurso especial conhecido e provido.” (REsp 162.028⁄MG, por mim relata-

do, DJ 18.03.2002).

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“Ação de investigação de paternidade. Anulação de registro. Decadência. Pre-cedentes.

1. É imprescritível o direito do fi lho a buscar a paternidade real. Se há a prova da falsidade do registro, e se provada fi ca a paternidade reclamada, não é possível impor prazo para a anulação do registro, confi rmada a falsidade.

2. Como bem anotado no precedente da Corte, o cancelamento do registro será sempre uma simples conseqüência do resultado da ação de investigação de paternidade.

3. Recurso especial conhecido e improvido.” (REsp 158.086⁄MS, relatado pelo eminente Ministro Carlos Alberto Menezes Direito, DJ 28.08.2000).

“INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE. CANCELAMENTO DE RE-GISTRO. EFEITO DA SENTENÇA DE PROCEDÊNCIA. O FATO DE O INVESTIGANTE ESTAR REGISTRADO COMO FILHO DE OUTREM NÃO IMPEDE A PROPOSITURA DA AÇÃO, SENDO DESNECESSÁRIO CUMULAR O PEDIDO COM DE CANCELAMENTO DO REGISTRO PORQUE ESSE SERA O EFEITO DA SENTENÇA QUE DER PELA PRO-CEDÊNCIA DO PEDIDO.

PRECEDENTE.RECURSO CONHECIDO E PROVIDO.” (REsp 114.589⁄MG, relatado

pelo eminente Ministro Ruy Rosado de Aguiar, DJ 19.12.1997).

“INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE. ALEGAÇÃO DE FALSIDA-DE DO REGISTRO DE NASCIMENTO. NADA OBSTA QUE SE PROVE A FALSIDADE DO REGISTRO NO ÂMBITO DA AÇÃO INVESTIGA-TÓRIA DE PATERNIDADE, A TEOR DA PARTE FINAL DO ART. 348 DO CÓDIGO CIVIL. O CANCELAMENTO DO REGISTRO, EM TAIS CIRCUNSTANCIAS, SERA CONSECTÁRIO LOGICO E JURÍDICO DA EVENTUAL PROCEDÊNCIA DO PEDIDO DE INVESTIGAÇÃO, NÃO SE FAZENDO MISTER, POIS, CUMULAÇÃO EXPRESSA.

RECURSO ESPECIAL NÃO CONHECIDO.” (REsp 40.690⁄SP, relatado pelo eminente Ministro Costa Leite, DJ 04.09.1995).

4. Além disso, as alegações de integração da genitora da recorrida no pólo passivo da demanda e da impossibilidade de o recorrente sujeitar-se à perícia antes de comprovado que o marido da mãe da autora não é seu pai biológico estão defi cientemente fundamentadas, ante a ausência de indicação de norma federal violada ou de divergência jurisprudencial, incidindo o verbete n. 284 da Súmula do Pretório Excelso, no ponto.

5. Diante desses pressupostos, não conheço do recurso especial e revogo a limi-nar concedida na MC 5832⁄SP, a qual julgo prejudicada pela perda de seu objeto.

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CERTIDÃO DE JULGAMENTO

QUARTA TURMANúmero Registro: 2003⁄0027639-5 RESP 512401 ⁄ SP

Números Origem: 129399 20495141

PAUTA: 14⁄10⁄2003 JULGADO: 14⁄10⁄2003

RelatorExmo. Sr. Ministro CESAR ASFOR ROCHA

Presidente da SessãoExmo. Sr. Ministro FERNANDO GONÇALVES

Subprocurador-Geral da RepúblicaExmo. Sr. Dr. WASHINGTON BOLÍVAR DE BRITTO JÚNIOR

SecretáriaBela. CLAUDIA AUSTREGÉSILO DE ATHAYDE BECK

AUTUAÇÃO

RECORRENTE: JÚLIO SIMÕESADVOGADO: RENAN LOTUFO E OUTROSRECORRIDO: MARIA CESALTINA CONCEIÇÃO DUARTEADVOGADO: CARLOS ALBERTO LABORDA BARÃO E OUTRO

ASSUNTO: Civil — Família — Investigação de Paternidade

SUSTENTAÇÃO ORAL

Sustentou, oralmente, o Dr. LUIZ EDUARDO DE SÁ RORIZ, pelo Recorrente.

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CERTIDÃO

Certifi co que a egrégia QUARTA TURMA, ao apreciar o processo em epígrafe na sessão realizada nesta data, proferiu a seguinte decisão:

A Turma, por unanimidade, não conheceu do recurso especial, com revo-gação de liminar concedida na Medida Cautelar nº 5832⁄SP, julgada preju-dicada.

Os Srs. Ministros Fernando Gonçalves e Barros Monteiro votaram com o Sr. Ministro Relator.

Ausente, ocasionalmente, o Sr. Ministro Aldir Passarinho Junior.Ausente, justifi cadamente, o Sr. Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira.Presidiu o julgamento o Sr. Ministro Fernando Gonçalves.

O referido é verdade. Dou fé.

Brasília, 14 de outubro de 2003

CLAUDIA AUSTREGÉSILO DE ATHAYDE BECKSecretária

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ANEXO VII

RECURSO ESPECIAL Nº 134.246 — SP

RECURSO ESPECIAL Nº 134.246 — SP (1997⁄0037812-8) RELATOR: MINISTRO ARI PARGENDLERREL. P⁄ ACÓRDÃO: MINISTRO CARLOS ALBERTO MENEZES

DIREITORECORRENTE: WALDEMAR HADDADADVOGADOS: DÉCIO JOSÉ PEDRO CINELLI PAULO SÉRGIO S FRANQUEIRA MARCELO DUARTE DA SILVA MICAEL HEBER MATEUSRECORRIDO: LEO JAMES RUSSEL E OUTROSADVOGADO: JOÃO BAPTISTA VENDRAMINI FLEURYINTERES.: LEUZA BERNARDES — ESPÓLIOREPR.POR: DÉBORA CRISTINA HADDAD — INVENTARIANTEADVOGADO: RHEA SÍLVIA SIMARDI TOSCANO E OUTROS

EMENTA

Ação declaratória. Casamento no exterior. Ausência de pacto antenupcial. Re-gime de bens. Primeiro domicílio no Brasil.

1. Apesar do casamento ter sido realizado no exterior, no caso concreto, o primeiro domicílio do casal foi estabelecido no Brasil, devendo aplicar-se a legislação brasileira quanto ao regime legal de bens, nos termos do art. 7º, § 4º, da Lei de Introdução ao Código Civil, já que os cônjuges, antes do matri-mônio, tinham domicílios diversos.

2. Recurso especial conhecido e provido, por maioria.

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indica-das, acordam os Ministros da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, após o voto-vista do Sr. Ministro Castro Filho, por maioria, conhecer do re-curso especial e dar-lhe provimento. Lavrará o acórdão o Sr. Ministro Carlos Alberto Menezes Direito.Votaram vencidos os Srs. Ministros Ari Pargendler e Antônio de Pádua Ribeiro. Votaram com o Sr. Ministro Carlos Alberto Menezes Direito os Srs. Ministros Nancy Andrighi e Castro Filho.

Brasília (DF), 20 de abril de 2004 (data do julgamento).

MINISTRO CARLOS ALBERTO MENEZES DIREITORelator

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RECURSO ESPECIAL Nº 134.246 — SP (1997⁄0037812-8)

RELATÓRIO

EXMO. SR. MINISTRO ARI PARGENDLER(Relator):

Leuza Bernardes propôs ação declaratória contra Waldemar Haddad (fl . 02⁄20).

A MM. Juíza de Direito Drª Maria de Lourdes Rachid Vaz de Almeida julgou a ação improcedente, à base dos seguintes fundamentos:

“É fato incontroverso nos autos que o primeiro domicílio conjugal foi estabele-cido no Brasil, apesar de o casamento ter sido realizado nos Estados Unidos. Essa circunstância, tendo em vista que os cônjuges tinham anteriormente domicílios diversos, defi ne o regime de bens, conforme o disposto no art. 7º, parágrafo 4º da Lei de Introdução ao Código Civil.

(...)Ora, na época, o regime legal de bens no Brasil, primeiro domicílio conju-

gal, já que não foi celebrado pacto antenupcial, era o da comunhão universal, não procedendo, portanto, o pedido de reconhecimento de regime diferente” (fl . 107⁄108).

A Egrégia Terceira Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, Relator o eminente Desembargador Ênio Zuliani, re-formou a sentença, nos termos do acórdão assim ementado:

“Casamento realizado no estrangeiro, por brasileiros, sem pacto pré-nupcial — Análise do que vem a ser domicílio conjugal e primeiro domicílio para efeito de estabelecer a incidência das normas internacionais em confl ito — Prevalência do regime de bens do domicílio do casamento, sem prejuízo da mudança poste-rior — Interpretação do § 4º do art. 7º da LICC — Recurso provido para julgar parcialmente procedente a ação declaratória” (fl . 202).

Foram opostos embargos de declaração (fl . 211⁄216), rejeitados (fl . 220⁄223).

Daí o presente recurso especial, interposto por Waldemar Haddad, com fundamento no artigo 105, inciso III, letra “a”, da Constituição Federal, por violação aos artigos 128 e 334, incisos II e III, do Código de Processo Civil e ao artigo 7º, § 4º, da Lei de Introdução ao Código Civil (fl . 227⁄238).

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VOTO

EXMO. SR. MINISTRO ARI PARGENDLER(Relator):

Os autos dão conta de que Leuza Bernardes, domiciliada na cidade de Fort Lauderdale, Flórida, Estados Unidos, contraiu matrimônio em 31 de julho de 1975 no Condado de Clark, Nevada, Estados Unidos, com Walde-mar Haddad, que tinha domicílio em São Paulo, Brasil, vindo os cônjuges a morar neste país “logo após as núpcias, em agosto de 1975” (fl . 09).

Em virtude da separação judicial do casal no ano de 1990, deu-se início à partilha dos bens, na qual Waldemar Haddad alegou que, não tendo havido pacto antenupcial, deveria ser adotado o regime legal vigente no Brasil à épo-ca do casamento, qual seja, o da comunhão universal de bens, e não o vigente nos Estados Unidos, de comunhão parcial.

Leuza Bernardes propôs, então, ação contra seu ex-cônjuge a fi m de obter “a declaração de que o regime de bens a orientar a partilha dos bens de suplicante e suplicado é o da comunhão parcial” (fl . 11).

O MM. Juiz de Direito julgou a ação improcedente, à base dos seguintes fundamentos, in verbis:

“É fato incontroverso nos autos que o primeiro domicílio conjugal foi estabele-cido no Brasil, apesar de o casamento ter sido realizado nos Estados Unidos. Essa circunstância, tendo em vista que os cônjuges tinham anteriormente domicílios diversos, defi ne o regime de bens, conforme o disposto no art. 7º, parágrafo 4º da Lei de Introdução ao Código Civil.

(...)Ora, na época, o regime legal de bens no Brasil, primeiro domicílio conjugal,

já que não foi celebrado pacto antenupcial, era o da comunhão universal, não procedendo, portanto, o pedido de reconhecimento de regime diferente” (fl . 158).

Já o Tribunal a quo, adotando entendimento diverso, reformou a sentença.

Lê-se no julgado:

“Para bem resolver o impasse entre os antigos cônjuges, é preciso examinar o sentido do § 4º do art. 7º do Decreto-lei 4657⁄42, o que se obtém com a concei-tuação de domicílio conjugal dos nubentes.

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O domicílio dos nubentes, segundo Oscar Tenório (‘Lei de Introdução ao Có-digo Civil’, ed. Borsoi, 1955, pág. 279), ‘é aquele do momento da celebração, não produzindo efeitos, em relação ao regime matrimonial de bens, domicílio anterior nem domicílio posterior’.

(...)A autora era radicada na Flórida-USA, onde mantinha domicílio. O réu ao

aceitar a celebração do matrimônio naquele País, embora em Estado diferente, recebeu como seu o domicílio da mulher, tornando-o comum, o que atrai a in-cidência do regime legal que vigorava e vigora, que é o de comunhão parcial, ou seja, com respeito da propriedade separada dos bens dos nubentes, para regular a formação do patrimônio.

(...)O segundo domicílio é que foi aqui estabelecido, situação que descarta a inci-

dência do regime de comunhão universal, então vigente à época da celebração no Brasil, para disciplinar os aspectos patrimoniais da união conjugal. Cabe, agora, a doutrina dos ESPÍNOLA sobre a regra da imutabilidade consagrada no dispo-sitivo analisado (‘A Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro Comentada’, ed. Freitas Bastos, 1944, pág. 389):

‘Pouco importa seja transferido, para algum outro país, o domicílio, que foi levado em consideração para, no momento do casamento, ser fi xado, em forma legal, o regime matrimonial de bens, na falta de convenção; prevalece, sempre o regime legal daquele domicílio, sem infl uência alguma da ou das mudanças pos-teriores de domicílio; o próprio estabelecimento, em Estado diferente, do primeiro domicílio conjugal é inoperante, quando se determinou o regime pela lei do do-micílio comum que era o dos nubentes, ao tempo do matrimônio’“ (fl . 205⁄207).

A teor das razões do recurso especial o acórdão recorrido violou lei federal porque deixou de observar que, na ausência de pacto antenupcial, o regime de bens deve obedecer à disciplina vigente no primeiro domicílio do casal, no caso, o Brasil.

Com razão, em tese.

O § 4º do artigo 7º da Lei de Introdução ao Código Civil tem a seguinte redação:

“O regime de bens, legal ou convencional, obedece à lei do país em que tiveram os nubentes domicílio, e, se este for diverso, à do primeiro domicílio conjugal”.

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Ou seja, a norma prevê duas situações distintas para a adoção do regime de bens: a primeira, no caso de os nubentes terem o mesmo domicílio; a segunda, no caso de terem domicílios diversos.

A hipótese dos autos se enquadra na segunda situação, tendo em vista que um dos nubentes tinha domicílio nos Estados Unidos e o outro no Brasil.

Se a controvérsia pudesse ser resolvida nesses termos exclusivamente teóricos, bastaria a identifi cação de qual foi o ‘primeiro domicílio conjugal’.

Reza o artigo 31 do Código Civil:

“O domicílio civil da pessoa natural é o lugar onde ela estabelece a sua resi-dência com ânimo defi nitivo”.

“Dois elementos são”, — diz Washington de Barros Monteiro — “pois, neces-sários para que se caracterize o domicílio civil, um dos principais atributos da pessoa natural: um, objetivo, material, a radicação do indivíduo em determinado lugar; outro, subjetivo, psicológico, a intenção de aí fi xar-se com ânimo defi ni-tivo, de modo estável e permanente” (Curso de Direito Civil, 1º Volume, Parte Geral, Editora Saraiva, pág. 127).

Ou seja, ao contrário do entendimento adotado pelo Tribunal a quo, ‘o pri-meiro domicílio conjugal’ não foi o do lugar onde celebrado o casamento, porque nele os cônjuges não estabeleceram a sua ‘residência com ânimo defi nitivo’.

Nesse sentido a lição de Maria Helena Diniz, manifestando-se a propósito do § 4º, do artigo 7º, da Lei de Introdução ao Código Civil, in verbis:

“Os arts. 7º, § 4º, da Lei de Introdução e 187 do Código de Bustamante con-têm preceito unitário para o regime matrimonial de bens, legal ou convencional, impondo como elemento de conexão a lex domicilli dos nubentes à época do ato nupcial, ou a do primeiro domicílio conjugal, que decorre do casamento, cuja fi -xação dependerá do marido, se os noivos não tiverem, por ocasião do matrimônio, o mesmo domicílio internacional. Se os cônjuges com domicílios diversos se estabe-lecerem logo após as núpcias em um país, estão revelando intenção de submeter o regime matrimonial de bens à lei do lugar que escolheram para domicílio conju-gal. Lógico será que o direito vigente do local onde fi xaram morada e constituíram família venha a reger suas relações econômicas. Se os nubentes tinham o mesmo domicílio, a lex domicilli disciplinará o regime matrimonial de bens, na falta de pacto antenupcial. Com isso procuram aqueles artigos estabelecer os limites da

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aplicação do direito alienígena” (Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro Interpretada, Editora Saraiva, pág. 231⁄232).

Quando o acórdão recorrido se refere ao Brasil como segundo domicílio (fl . 206), não está fazendo uma afi rmação de fato, e, sim, uma interpretação — diga-se, equivocada — da lei, a saber:

“A autora era radicada na Florida, USA, onde mantinha domicílio. O réu ao aceitar a celebração do matrimônio naquele País, embora em Estado diferente, recebeu como seu o domicílio da mulher, tornando-o comum, o que atrai a in-cidência do regime legal que vigorava e vigora, que é o de comunhão parcial, ou seja, com respeito da propriedade separada dos bens dos nubentes, para regular a formação do patrimônio” (fl . 205⁄206).

Mas o Tribunal a quo reconheceu um fato que, salvo melhor juízo, não pode ser ignorado sem ofensa ao princípio da boa-fé, in verbis:

“... inaceitável impor de forma compulsória o regime de comunhão universal, nunca querido e desejado e que, arcaico já ao tempo do casamento das partes, foi revogado dois anos depois (Lei 6.515⁄77)” — fl . 207.

Quer dizer, aceitou a versão da petição inicial de que o varão “viveu todo o período conjugal agindo, de fato e de direito, perante todos com quem contratasse e, principalmente, perante a própria suplicante, como se casado em regime de separação total de bens” (fl . 06).

A propósito, vide a escritura pública de compromisso de compra e venda de fl . 49, as escrituras de divisão de fl s. 53 e 63 e a escritura de doação de fl . 59, as procurações de fl . 28⁄34, e, principalmente, o contrato “pós-nupcial” de fl s. 76⁄77.

Essas circunstâncias induzem a mesma conclusão adotada pelo Supremo Tri-bunal Federal, no RE nº 86.787, RS, Relator o eminente Ministro Leitão de Abreu, tal qual se lê no respectivo voto condutor:

“Com perfeita boa-fé agiu o recorrente no estabelecimento do regime de bens no casamento. Tanto quis, com lealdade, esse regime, que, realizado o matri-mônio, além de outros atos, que traduzem manifestação inequívoca de que se considerava casado sob o regime de separação de bens, chegou mesmo a declarar-se assim casado em escritura pública de aquisição de bens (fl s. 660). Se isso é certo, não pode, agora, passados anos, cerca de um qüinqüênio, ser ouvido quando vem sustentar que o regime de bens, em vez de ser o da separação, ao qual consciente-mente se submeteu e sob o qual, de fato, passou a viver, é o regime de comunhão. Tendo criado, com a recorrida, uma situação que ambos acreditaram regular e

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juridicamente constituída, situação que foi condição do casamento, não pode vir agora, em quebra da boa fé, renegar o regime a que ambos, no casamento, quiseram submeter-se. Instituindo uma situação em que a outra parte confi ou, a alegação, que agora relevante, de que o regime de bens é o da comunhão de bens, importa em quebra do princípio geral de direito, segundo o qual não pode a parte venire contra factum proprium” (RTJ, Vol. 903, p. 994).

Ante o exposto, voto no sentido de não conhecer do recurso especial.

RECURSO ESPECIAL Nº 134.246 — SP (1997⁄0037812-8)

EMENTA

Ação declaratória. Casamento no exterior. Ausência de pacto antenup-cial. Regime de bens. Primeiro domicílio no Brasil.

1. Apesar do casamento ter sido realizado no exterior, no caso concreto, o primeiro domicílio do casal foi estabelecido no Brasil, devendo aplicar-se a legislação brasileira quanto ao regime legal de bens, nos termos do art. 7º, § 4º, da Lei de Introdução ao Código Civil, já que os cônjuges, antes do matri-mônio, tinham domicílios diversos.

2. Recurso especial conhecido e provido, por maioria.

VOTO VENCEDOR

O EXMO. SR. MINISTRO CARLOS ALBERTO MENEZES DIREITO:A recorrida ajuizou ação declaratória alegando que foi casada com o réu de

31⁄7⁄75 a 09⁄11⁄90, nascendo da união uma fi lha, que na ocasião do ajuizamento contava com 17 anos; que foi apresentada ao ex-marido em São José do Rio Preto, nos idos de 1957, vindo a reencontrá-lo, na cidade de Fort Lauderdale, Flórida, Estados Unidos, em abril de 1975; que lá residia a autora desde o seu primeiro matrimônio, no estado civil de viúva desde 1968, nascendo dessa primeira união três fi lhos, maiores de idade; que ao reencontrar o réu estava a autora já perfeita-mente instalada naquele país, com emprego estável e preparando-se para comprar o imóvel no qual residia com seus fi lhos; que o casamento com o réu realizou-se em 31⁄7⁄75, no Condado de Clark, Nevada, Estados Unidos, não havendo pacto antenupcial; todavia, verbalmente, o réu prometeu, quando o casal chegasse ao Brasil para fi xar domicílio, doar para a autora dois apartamentos com o mesmo padrão residencial desfrutado em sua residência de Fort Lauderdale, já que o regime de bens de seu novo casamento, pela lei vigente no estado de Nevada, a exemplo da maioria dos demais estados, é o da comunhão parcial; como pro-gramado, vieram para o Brasil, fi xando residência na cidade de São Paulo e na

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cidade de São José do Rio Preto, em apartamento de cobertura na Rua Peixoto Gomide e em outro na Rua Penita, respectivamente; que logo no início da vida comum, o réu envolveu-se em diversifi cados negócios imobi1iários, so1icitando à autora uma procuração para administrar seus bens, que alegava pertencer-lhe com exclusividade, diante do regime de bens adotado; a autora outorgou ao réu diversas procurações, todas com amplos poderes, para que o réu pudesse dispor dos bens como entendesse melhor; com isso o patrimônio foi praticamente dilapidado, alterando a condição existente no momento do casamento, em que o réu gozava de situação fi nanceira privilegiada, herdeiro de um dos maiores pioneiros da re-gião, que montou um verdadeiro império de imóveis e serviços; por outro lado, o autor procurava passar a idéia de que estava casado sob o regime da separação de bens, até mesmo apresentando um denominado “pacto pós-nupcial”; que o comportamento do réu fi cou ainda mais patente, diante do cenário anteriormente descrito, quando veio a Juízo declarar-se sob o regime da comunhão universal de bens, tentando exigir da autora que apresente os bens pessoais, adquiridos antes do casamento, ou mesmo após, por doação ou herança, para partilha, bens que não se comunicam quer no regime da separação total quer no da comunhão parcial; que não tendo sido possível a partilha, concomitantemente à separação consensual homologada por sentença, desencadeou-se verdadeira batalha judicial. Diante de tais fatos, a autora pede que seja declarado que o regime do casamento “a orientar a partilha dos bens” (fl . 11) seja o da comunhão parcial, presente a disciplina legal do estado de Nevada, e que, “ainda que invocado o disposto no parágrafo 4° do art. 7° da Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro, o regime de comunhão universal, vigente no Brasil, ao tempo em que Suplicante e suplica-do constituíram domicílio nesta Capital e em São José do Rio Preto, ou seja, em 1975, anteriormente, portanto, à Lei n. 6.515, de 26 de dezembro de 1977, só poderia incidir com relação a possíveis aqüestos” (fl . 11).

A sentença considerou que o regime de bens é único e imutável, sendo juridi-camente impossível o pedido constante da inicial no sentido de que o regime da comunhão venha a incidir com relação aos possíveis aqüestos. Reputou, ainda, ser incontroverso nos autos “que o primeiro domicílio conjugal foi estabelecido no Brasil, apesar de o casamento ter sido realizado nos Estados Unidos. Essa circunstância, tendo em vista que os cônjuges tinham anteriormente domicílios diversos, defi ne o regime de bens, conforme o disposto no art. 7º, parágrafo 4º da Lei de Introdução ao Código Civil” (fl . 158). Com tais razões, julgou o pedido improcedente. O Tribunal de Justiça de São Paulo proveu a apelação, em parte, para julgar parcialmente procedente o pedido, declarando “que o regime de bens do casamento que as partes celebraram no Condado de Clark, em Nevada-USA, é o da comunhão parcial, consoante as leis daquele País (§ 4º do art. 7º, da LICC), prejudicado o segundo pedido formulado” (fl . 208). Para o acórdão recorrido, o “segundo domicílio é que foi aqui estabelecido, situação que descarta a incidência do regime de comunhão universal, então vigente à época da celebração no Brasil,

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para disciplinar os aspectos patrimoniais da união conjugal” (fl . 206). Os embar-gos de declaração foram rejeitados.

O voto do Senhor Ministro Ari Pargendler é pelo não-conhecimento do espe-cial, desenvolvendo as razões que se seguem:

“A teor das razões do recurso especial, o acórdão recorrido violou lei federal porque deixou de observar que, na ausência de pacto antenupcial, o regime de bens deve obedecer à disciplina vigente no primeiro domicílio do casal, no caso, o Brasil.

Com razão, em tese.O § 4º do artigo 7º da Lei de Introdução ao Código Civil tem a seguinte

redação:‘O regime de bens, legal ou convencional, obedece à lei do país em que tiveram

os nubentes domicílio, e, se este for diverso, à do primeiro domicílio conjugal’.Ou seja, a norma prevê duas situações distintas para a adoção do regime de

bens: a primeira, no caso de os nubentes terem o mesmo domicílio; a segunda, no caso de terem domicílios diversos.

A hipótese dos autos se enquadra na segunda situação, tendo em vista que um dos nubentes tinha domicílio nos Estados Unidos e o outro no Brasil.

Se a controvérsia pudesse ser resolvida nesses termos exclusivamente teóricos, bastaria a identifi cação de qual foi o ‘primeiro domicílio conjugal’.

Reza o artigo 31 do Código Civil:‘O domicílio civil da pessoa natural é o lugar onde ela estabelece a sua residên-

cia com ânimo defi nitivo’.‘Dois elementos são’, — diz Washington de Barros Monteiro — ‘pois, neces-

sários para que se caracterize o domicílio civil, um dos principais atributos da pessoa natural: um, objetivo, material, a radicação do indivíduo em determinado lugar; outro, subjetivo, psicológico, a intenção de aí fi xar-se com ânimo defi ni-tivo, de modo estável e permanente’ (Curso de Direito Civil, 1º Volume, Parte Geral, Editora Saraiva, pág. 127).

Ou seja, ao contrário do entendimento adotado pelo Tribunal a quo, ‘o pri-meiro domicílio conjugal’ não foi o do lugar onde celebrado o casamento, porque nele os cônjuges não estabeleceram a sua ‘residência com ânimo defi nitivo’.

Nesse sentido a lição de Maria Helena Diniz, manifestando-se a propósito do § 4°, do artigo 7º, da Lei de Introdução ao Código Civil, in verbis:

‘0s arts. 7º, § 4º, da Lei de Introdução e 187 do Código de Bustamante con-têm preceito unitário para o regime matrimonial de bens, legal ou convencional, impondo como elemento de conexão a lex domicilli dos nubentes à época do ato nupcial, ou a do primeiro domicílio conjugal, que decorre do casamento, cuja fi -xação dependerá do marido, se os noivos não tiverem, por ocasião do matrimônio, o mesmo domicílio internacional. Se os cônjuges com domicílios diversos se estabe-lecerem logo após as núpcias em um país, estão revelando intenção de submeter o

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regime matrimonial de bens à lei do lugar que escolheram para domicílio conju-gal. Lógico será que o direito vigente do local onde fi xaram morada e constituíram família venha a reger suas relações econômicas. Se os nubentes tinham o mesmo domicílio, a lex domicilli dispensará o regime matrimonial de bens, na falta de pacto antenupcial. Com isso procuram aqueles artigos estabelecer os limites da aplicação do direito alienígena’ (Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro Interpretada, Editora Saraiva, pág. 231⁄232).

Quando o acórdão recorrido se refere ao Brasil como segundo domicílio (fl . 206), não está fazendo uma afi rmação de fato, e, sim, uma interpretação — diga-se, equivocada — da lei, a saber:

‘A autora era radicada na Florida, USA, onde mantinha domicílio. O réu ao aceitar a celebração do matrimônio naquele país, embora em Estado diferente, recebeu como seu o domicílio da mulher, tornando-o comum, o que atrai a inci-dência do regime legal que vigorava e vigora, que é o da comunhão parcial, ou seja, com respeito da propriedade separada dos bens dos nubentes, para regular a formação do patrimônio’ (fIs. 205⁄206).

Mas o Tribunal a quo reconheceu um fato que, salvo melhor juízo, não pode ser ignorado sem ofensa ao princípio da boa-fé, in verbis:

‘... inaceitável impor de forma compulsória o regime de comunhão universal, nunca querido e desejado e que, arcaico já ao tempo do casamento das partes, foi revogado dois anos depois (Lei 6.515⁄77)’ — fl . 207.

Quer dizer, aceitou a versão da petição inicial de que o varão ‘viveu todo o período conjugal agindo, de fato e de direito, perante todos com quem contratasse e, principalmente, perante a própria suplicante, como se casado em regime de separação total de bens’ (fl . 06).

A propósito, vide a escritura pública de compromisso de compra e venda de fl . 49, as escrituras de divisão de fl s. 53 e 63 e a escritura de doação de fl . 59, as procurações de fl . 28⁄34, e, principalmente, o contrato ‘pós nupcial’ de fl s. 76⁄77.

Essas circunstâncias induzem a mesma conclusão adotada pelo Supremo Tri-bunal Federal, no RE n° 86.787, RS, Relator o eminente Ministro Leitão de Abreu, tal qual se lê no respectivo voto condutor:

‘Com perfeita boa-fé agiu o recorrente no estabelecimento do regime de bens no casamento. Tanto quis, com lealdade, esse regime, que, realizado o matrimônio, além de outros atos, que traduzem manifestação inequívoca de que se considerava casado sob o regime de separação de bens, chegou mesmo a declarar-se assim casa-do em escritura pública de aquisição de bens (fl s. 660). Se isso é certo, não pode, agora, passados anos, cerca de um qüinqüênio, ser ouvido quando vem sustentar que o regime de bens, em vez de ser o da separação, ao qual conscientemente se submeteu e sob o qual, de fato, passou a viver, é o regime de comunhão. Tendo criado, com a recorrida, uma situação que ambos acreditaram regular e juridica-mente constituída, situação que foi condição do casamento, não pode vir agora, em quebra de boa-fé, renegar o regime a que ambos, no casamento, quiseram

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submeter-se. Instituindo uma situação em que a outra parte confi ou, a alegação, que agora relevante, de que o regime de bens é o da comunhão de bens, importa em quebra do princípio geral de direito, segundo o qual não pode a parte venire

contra factum proprium’ (RTJ, Vol. 903, p. 994).”

Como sabido, a redação original do § 4º do art. 7º da Lei de Introdução ao Código Civil não agasalhava a parte fi nal, limitando-se a estabelecer que o regime “obedece à lei do país em que tiverem os nubentes domicílio conjugal”. Posteriormente, no Diário Ofi cial de 17⁄6⁄43, veio a retifi cação, passando então a vigorar o texto: “obedece à lei do país em que tiverem os nubentes domicílio, e, se este for diverso, à do primeiro domicílio conjugal”. Seguiu a lei brasileira o sistema do Código de Bustamante que estipulava, no art. 187, que os “contratos matrimoniais regem-se pela lei pessoal comum aos contratantes e, na sua falta, pela do primeiro domicílio matrimonial. Essas mesmas leis determinam, nessa ordem, o regime legal supletivo, na falta de estipulação.”

No clássico estudo sobre a Lei de Introdução, Eduardo Espinola e Eduardo Espinola Filho assinalam que duas são as situações possíveis, assim aquelas em que o contrato estipula o regime de bens e aquelas em que não há estipulação contratual. Nestas, doutrinam:

“No caso de não haver contrato matrimonial dos bens, os sistemas legislativos, que adotam o princípio da autonomia da vontade, quanto à escolha do regime, procuram interpretar a vontade presumida dos nubentes; não estão, porém, de acor-do os autores, nos diversos países, relativamente à presunções que devam prevalecer.

De modo geral, procuram todos eles interpretar a vontade presumida das partes.Alguns acreditam que os cônjuges tiveram o pensamento de submeter os bens

ao regime legal do lugar da celebração; outros preferem o regime do domicílio conjugal; terceiros pronunciam-se pela lei nacional dos cônjuges.

A Introdução do Código Civil seguia esta última orientação.A nova Lei de introdução declarou, no seu primitivo artigo 7º, § 4º, que o

regime legal dos bens obedece à lei do país, em que os nubentes tiverem o domi-

cílio conjugal.Mas, a alteração feita na publicação de 17 de junho de 1943, perfi lhando a

orientação do Código de Bustamante, distinguiu: se, na ocasião do casamento, os nubentes tinham o mesmo domicílio, é a lei deste domicílio que se chamará para disciplinar o regime matrimonial de bens, na falta de contrato; só no caso de di-versidade de tal domicílio, regulará a hipótese a lei do primeiro domicílio conjugal.

A regra da imutabilidade é consagrada pelo nosso direito, positivo, e, segun-do o princípio expresso do Código de Bustamante, pelo Brasil aprovado — é de ordem pública internacional o preceito que veda celebrar ou modifi car contratos nupciais na constância do matrimônio, ou que se altere o regime de bens por mudanças de nacionalidade ou de domicílio posteriores ao mesmo — (art. 188).

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Pouco importa seja transferido, para algum outro país, o domicílio, que foi levado em consideração para, no momento do casamento, ser fi xado, em forma legal, o regime matrimonial de bens, na falta de convenção; prevalece, sempre o regime legal daquele domicílio, sem infl uência alguma da ou das mudanças pos-teriores de domicílio; o próprio estabelecimento, em Estado diferente, do primeiro domicílio conjugal é inoperante, quando se determinou o regime pela lei do do-micílio comum, que era o dos nubentes, ao tempo do matrimônio.

.......................................................................................................No que tange ao regime de bens no casamento, é ele imutável, e, não só no caso

de ter sido estipulado em pacto antenupcial, mas ainda quando se tenha deter-minado pelo anterior estatuto pessoal, ou pela lei do primeiro domicílio conjugal, ou pela lei lex rei sitae, conforme o princípio de direito internacional privado chamado para disciplina da espécie, a mudança posterior de domicílio é inope-rante para substituição ou alteração do mesmo. Verdade é que, entre nós, esse princípio sofre uma brecha na sua pureza, pois, se a aquisição do novo domicílio nenhuma infl uência produz, sendo ela acompanhada da obtenção da nacionali-dade brasileira, pela naturalização do estrangeiro, pode dar o resultado de, com a aquiescência do outro cônjuge, ser, por contrato, adotado o regime da comunhão de bens, em vez do que, até então, regulava as relações patrimoniais entre os espo-sos” (A lei de introdução ao Código Civil brasileiro, RENOVAR. Vol. 2º, 1995, págs. 283 a 286).

Jacob Dolinger, comentando a regra jurídica em questão, anota:

“A nova redação do dispositivo é perfeitamente clara: aplica-se ao regime de bens a lei do país em que os cônjuges eram domiciliados à época do casamento e, caso te-nham tido domicílios diversos, aplica-se a lei do país do primeiro domicílio conjugal.

Resulta deste dispositivo que: 1. cônjuges que tinham o mesmo domicílio à épo-ca do casamento serão regidos pela lei deste domicílio, irrelevante o estabelecimento do primeiro domicílio conjugal em outro país; 2. cônjuges que à época do casa-mento tinham domicílios diferentes serão regidos pela lei do país onde fi xarem o seu primeiro domicílio, sem relevância a mudança posterior de domicílio conjugal.

A imutabilidade da lei aplicável ao regime de bens está bem estabelecida na doutrina brasileira.”

Após destacar “a teoria savigniana da imutabilidade do regime de bens do Di-reito Internacional Privado”, Jacob Dolinger enfrenta a questão da qualifi cação domiciliar, ou seja, qual a lei qualifi cadora do domicílio, diante da ausência de previsão legal, lacuna censurada por Oscar Tenório, nos termos que se seguem:

“Nossa opinião é de que a lacuna não representa qualquer problema, pois a re-gra geral do Direito Internacional Privado brasileiro é a qualifi cação pela lex fori.

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Sobre a noção do que seja primeiro domicílio conjugal, interessa consultar o direito britânico, que dedica muita atenção ao estudo de todas as facetas do domicílio, porque seu Direito Internacional Privado sempre se fundou na re-gra domiciliar, e os ingleses, mesmo quando distantes de sua terra natal, sempre encontraram uma fórmula hábil para se considerarem ligados aos ‘domicílio de origem’ na Inglaterra.

Não estando os nubentes domiciliados no mesmo país, o domicílio conjugal para os ingleses corresponde ao local onde os cônjuges planejaram viver após o casamento e lá efetivamente passaram a viver, regra esta aplicada como uma jurisdição juris tantum de que os cônjuges escolheram para reger seus bens a lei vigente no local escolhido para seu domicílio. Se, contudo, manifestarem uma opção expressa por outra lei para reger seus bens, esta será a aplicável. Como se pode ver, a infl uência de Dumoulin quanto à autonomia do casal para escolher a lei aplicável a seu patrimônio e a presunção legal quando esta escolha não se manifesta expressamente alcança igualmente o sistema da common law.

No Brasil, o primeiro domicílio conjugal não representa necessariamente a presumida escolha dos cônjuges, uma vez que só se aplica na hipótese de terem os nubentes domicílios diversos, enquanto que se o domicílio deles antes do casamen-to for o mesmo, aplicar-se-á a lei deste domicílio. Fosse a regra baseada em presun-ção, deveria ela aplicar-se igualmente aos cônjuges com domicílio idêntico antes do casamento, que estabelecessem seu primeiro domicílio conjugal em outro local.

.......................................................................................................A caracterização do primeiro domicílio conjugal exigirá, às vezes, cuidadosa

aferição, principalmente nas hipóteses de casais que não estabelecem um lar em caráter defi nitivo após o matrimônio, muito comum entre os jovens que casam e se dirigem para outros países a fi m de prosseguir em seus estudos universitários e se demoram anos em situação não defi nitiva antes de estabelecer residência com ânimo de permanência.

.......................................................................................................A submissão do regime de bens à lei do primeiro domicílio matrimonial, origi-

nária da doutrina de Dumoulin, visa justamente respeitar a vontade, ainda que implícita dos nubentes” (Direito Civil internacional, RENOVAR, T. 1º, 1997, págs. 176 a 182).

De fato, a difi culdade da aplicação do dispositivo está, exatamente, naqueles casos em que não se pode indicar precisamente o primeiro domicílio conjugal. Lembra Jacob Dolinger precedente do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro tra-tando do casamento de um cidadão português domiciliado no Brasil que se casou com senhora portuguesa, em Portugal, mediante procuração, vindo o varão a falecer em seguida, sem a convivência com a esposa. Teve o Tribunal necessidade de construir solução para o caso concreto porque ausente o primeiro domicílio, decidindo o Tribunal pela localização do domicílio de direito, assim o do marido,

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por aplicação dos artigos 7º, § 7º, da Lei de Introdução; 233, III, do Código Civil e 49 do antigo e 86 do novo Código Civil português. Aplicou, então, a lição de Serpa Lopes no sentido de que “um critério aceitável será o de presumir a conservação do domicílio que o marido tinha ao tempo do casamento, na falta de qualquer elemento indicativo da intenção de mudança” (op. cit. pág. 195).

No presente caso, como já visto, o casamento foi celebrado no dia 31 de julho de 1975, no Condado de C1ark, Nevada, Estados Unidos, sem que tenha sido feito pacto antenupcial. Mas a própria inicial indica que os cônjuges manifestaram a vontade de fi xar residência e domicílio no Brasil, o que efetivamente aconteceu, havendo a promessa de doação de bens imóveis para garantir a situação da mulher, sendo o regime de bens vigente no Estado de Nevada, o da comunhão parcial.

No caso dos autos, é incontroverso que o primeiro domicílio conjugal foi o Bra-sil, tal e qual consta da sentença. Como assinalou o eminente Ministro Relator, a solução apresentada pelo acórdão recorrido, de que o segundo domicílio foi o Bra-sil porque o “réu ao aceitar a celebração do matrimônio naquele País, embora em Estado diferente, recebeu como seu o domicílio da mulher, tornando-o comum, o que atrai a incidência do regime legal que vigorava e vigora, que é o de comunhão parcial, ou seja, com respeito da propriedade separada dos bens dos nubentes, para regular a formação do patrimônio” (fl s. 205⁄206), não está amparada na lei de incidência. Não há nos autos nenhuma indicação de que tenham as partes fi xado após o casamento domicílio em outro lugar que não o Brasil, sendo certo que a circunstância de ter sido o casamento celebrado em estado diferente daquele do domicílio da mulher não acarreta a caracterização do domicílio desta como sendo o primeiro domicílio conjugal. Domiciliada na Flórida era a mulher, autora, não o casal, que ali não se estabeleceu. E assim é porque a própria inicial confi rma que o casamento foi celebrado com a intenção de ser fi xado o domicílio no Brasil, o que é reforçado pelas garantias imobiliárias já mencionadas.

O art. 31 do Código Civil de 1916 é muito claro ao estabelecer que o domi-cílio da pessoa natural “é o lugar onde ela estabelece a sua residência com ânimo defi nitivo”. Mereceu de Serpa Lopes o comentário sobre a distinção existente na regra entre o “quid iuris” e o “quid facti”, assim, ao “elemento residência, ele-mento de fato, exige o Código o ânimo defi nitivo, elemento subjetivo, intencio-nal” (Curso de Direito Civil, Freitas Bastos, Vol. I, 7ª ed., revista e atualizada por José Serpa Santa Maria, 1989, pág. 262); e de Clovis Bevilaqua a crítica de se ter desviado “da noção comum, que nos transmitiu o direito romano, segundo o qual, ao elemento residência permanente se devia associar o centro das relações civis ou da atividade da pessoa” (Código Civil comentado, Francisco Alves, 12ª ed., atualizada por Achilles Bevilaqua e Isaias Bevilaqua, Vol. I, 1959, pág. 199). E, no caso, não há dúvida alguma de que os cônjuges optaram por fi xar o primeiro domicílio conjugal no Brasil, como já ressaltado.

Não há, portanto, difi culdade alguma para identifi car o primeiro domicílio conjugal. Se não há qualquer outra interpretação, está presente a violação do art.

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7º, § 4º, da Lei de Introdução ao Código Civil. E não só viola tal dispositivo como, igualmente, malfere a regra da imutabilidade do regime de bens.

Mas vejamos a questão da boa-fé. São conhecidas as controvérsias sobre a am-bivalência da boa-fé, ou seja, no sentido subjetivo e no sentido objetivo, que vem sendo acolhida por alguns autores no direito brasileiro. No primeiro caso signifi -cando a idéia de crença equivocada, e no segundo um dever de conduta contratual. Como ensina Teresa Negreiros, no nosso direito não há um preceito genérico no âmbito do Código Civil de 1916 que preveja expressamente o princípio da boa-fé objetiva, sendo que o Código Civil em suas pontuais remissões ao instituto, na sua esmagadora maioria, trata da chamada boa-fé subjetiva, “que não implica a confi guração de uma regra de conduta, mas apenas de um estado psicológico (daí o subjetivismo) do agente. Nestes casos, subjetivamente considerada, a boa-fé pode ser caracterizada como crença errônea; credulidade daquele que desconhece as reais circunstâncias do ato praticado” (Fundamentos para uma interpretação constitu-cional do princípio da boa-fé, RENOVAR, 1998, pág. 4). Como prefere Maria Cristina Cereser Pezzella, a “boa-fé subjetiva é a consciência ou a convicção de se ter um comportamento conforme ao direito ou conforme à ignorância do sujeito acerca da existência do direito do outro. Já a boa-fé objetiva permite a concreção de normas impondo que os sujeitos se conduzam de forma honesta, leal e correta” (A boa-fé no Direito, síntese trabalhista, n° 103, janeiro de 1998, págs. 131⁄132).

Na minha compreensão e com todo o respeito aos que entendem em sentido contrário, considerando o cenário dos autos no que se refere à ré, adulta, inde-pendente, capaz de compreender, exatamente, o alcance dos atos que praticou, não me parece aplicável o princípio da boa-fé para descaracterizar o regime de bens. Não existe base fática para afi rmar que foi ela iludida como faz crer ou que desconhecia as reais circunstâncias dos atos que praticou. Por outro lado, não seria difícil construir um cenário para justifi car a não-incidência da regra jurí-dica própria e, em conseqüência, alterar o regime de bens. Afastar a incidência da lei que determina, claramente, o regime de bens pelo primeiro domicílio, ao argumento de que tal não foi o regime querido ou desejado pelos cônjuges, ou ao argumento de que um dos cônjuges teria vivido socialmente como se outro fosse o regime de bens, seria criar uma situação de incerteza jurídica, permitindo, sem amparo legal, malferir tanto a regra jurídica que estabelece o regime de bens que deve viger como a que impede a modifi cação do regime de bens.

Por fi m, não bastassem as razões antes deduzidas, e pedindo vênia ao eminente Relator, não creio que tenha o acórdão recorrido cuidado de enfrentar a questão da boa-fé. O que o acórdão recorrido decidiu foi alterar o regime de bens pelo compor-tamento das partes, o que, na minha avaliação, não tem a proteção da lei brasileira.

Com tais razões, prestando minhas homenagens ao sempre cuidadoso e bem elaborado voto do eminente Ministro Ari Pargendler, eu conheço do especial e lhe dou provimento para restabelecer a sentença.

MINISTRA NANCY ANDRIGHI

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VOTO VISTA

Versam os autos a respeito de ação de conhecimento ajuizada por LEUZA BERNARDES, objetivando tutela jurisdicional declaratória que confi ra certeza quanto ao regime matrimonial de bens que estabeleceu com Waldemar Haddad em 31 julho de 1975.

A causa de pedir que motivou a autora cingiu-se a dúvida que os atos de má-fé do ex-marido provocaram à situação jurídica matrimonial do casal, pois, tendo os nubentes casados em Nevada — EUA, rege-lhes o regime de bens a lei daquele país, que estipula regime de bens assemelhado ao da comunhão parcial brasileiro. No Brasil, entretanto, durante todo o tempo em que estiveram os cônjuges casados, foi manifesto o regime de separação de bens em contrato pós-nupcial e nos negócios jurídicos pontifi cados por seu ex-esposo, junto a terceiros. Todavia, por ocasião da separação judicial do casal e da necessidade de partilhar os respectivos bens, vem réu dizendo-se casado pelo regime universal de bens, com o fi to de alcançar os bens pertencentes à autora, anteriores à realização do casamento, já que esteve envolto negócios que praticamente dilapidaram o enorme patrimônio que possuía.

O pedido foi julgado improcedente em primeiro grau de jurisdição.Em juízo substitutivo proferido em recurso de apelação decidiu o Tribunal a

quo que:“A autora era radicada na Flórida — USA, onde mantinha domicílio. O réu

ao aceitar a celebração do matrimônio naquele País, embora em Estado diferente, recebeu como seu o domicílio da mulher, tornando-o comum, o que atrai a in-cidência do regime legal que vigorara e vigora, que é o de comunhão parcial, ou seja, com respeito da propriedade separada dos bens dos nubente, para regular a formação do patrimônio.

As partes não celebraram o matrimônio para legalizar ou para cumprir a promessa de trazer a namorada para o Brasil, como ocorria no início do sécu-lo; também não se submeteram ao império das leis de Nevada para escapar de alguma proibição do sistema nacional. Assumiram conscientes o regramento do local, certamente depois de profunda refl exão. Se estabeleceram, sponte própria, o domicílio comum no estrangeiro para concretizar o casamento, aceitaram as dis-posições de ordem pública que regulamentavam os casamentos, base da sociedade em qualquer território.

Qualquer disposição posterior caracteriza atentado ao poder soberano da au-tonomia de vontade, que, justo pelo sentido de ordenamento social, não autoriza modifi cações unilaterais, como aquele proposta pelo documento particular encar-tado nos autos e que veiculava um pacto pós nupcial.

O segundo domicílio é que foi aqui estabelecido, situação que descarta a inci-dência do regime de comunhão universal, então vigente à época da celebração no Brasil, para disciplinar os aspectos patrimoniais da união conjugal. Cabe, agora, a doutrina dos ESPÍNOLA sobre a regra da imutabilidade consagrada no dis-

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positivo analisado (“A Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro Comentada” ed. Freitas Bastos, 1944, pág.: 389):

“Pouco importa seja transferido, para algum outro país, o domicílio, que foi levado em consideração para, no momento do casamento, ser fi xado, em forma legal, o regime matrimonial de bens, na falta de convenção. Prevalece, sempre o regime legal daquele domicílio; o próprio estabelecimento, em Estado diferente, do primeiro domicílio conjugal é inoperante, quando se determinou o regime pela lei do domicílio comum, que era o dos nubentes, ao tempo do matrimônio”.

Não é possível perpetuar a dúvida e a incerteza, altamente nocivas aos desíg-nios dos ex-cônjuges em encerrar as conseqüências do desenlace; inaceitável impor de forma compulsória o regime de comunhão universal, nunca querido e desejado e que, arcaico já ao tempo do casamento das parte, foi revogado dois anos depois (Lei 6515⁄77)

O regime de bens do casamento da autora e do réu é o da comunhão parcial (§ 4º do art. 7º da LICC), resultado que é declarado não só para adequar o elemento volitivo que preponderou na formação do ato jurídico, como para fazer respeitar o princípio da imutabilidade, indispensável como fator de segurança das relações dos cônjuges e de terceiros.”

O acórdão encontra-se assim ementado:“Casamento realizado no estrangeiro, por brasileiros, sem pacto pré-nupcial

— Análise do que vem a ser domicílio conjugal e primeiro domicílio para efeito de estabelecer a incidência das normas internacionais em confl ito — Prevalência do regime de bens do domicílio do casamento, sem prejuízo da mudança poste-rior — Interpretação do § 4º do art. 7º da LICC — Recurso provido para julgar parcialmente procedente a ação declaratória.”

Opostos Embargos Declaratórios foram estes rejeitados.Interpôs, então, o recorrente Recurso Especial, em cujas razões aduz, com fulcro

no art. 105, III, alínea “a”, da CF, que o órgão julgador ao reputar que o primei-ro domicílio dos litigantes foi nos Estados Unidos da América (EUA) — e, aí, no Estado Federado de Nevada —, o acórdão recorrido violou os seguintes artigos: a) 334, II e III do CPC (“Não dependem de prova os fatos: admitidos, no processo como incontroversos e os em cujo favor milita presunção legal de existência ou de veracidade”) — porque os fatos confessados, assim como os incontroversos estão fora do objeto da prova e, portanto, devem ser aceitos como premissa certa no silogismo a ser construído quando da controvérsia; b) 128 do CPC — segundo o qual incumbe ao juiz julgar a lide “nos limites em que foi proposta, sendo-lhe de-feso conhecer de questões, não suscitadas, a cujo respeito a lei exige a iniciativa da parte — porque a pretensão da autora foi lançada com base em um suposto pacto “pós nupcial”, bem como na alegada aparência de um regime de separação total, que teria sido continuadamente propalado pelo varão, após o casamento, junto

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a terceiros. Portanto, afi rma o recorrente que a recorrida nunca fundou sua de-manda na alegação de que outro, que não o Brasil, teria sido o primeiro domicílio conjugal. Assevera, ainda que, “não se trata de mero ou indevido formalismo: a regra contida no art. 128, além de preservar a imparcialidade inicial do julgador e respeitar o objetivo do processo de eliminar — e não criar — litígios suscitados pelas partes, tem em mira o próprio contraditório pois, ao fundar sua decisão em fundamentos não argüido pela parte, o órgão julgador está literalmente surpreen-dendo a parte, subtraindo-lhe, pois, qualquer oportunidade de intervenção útil sobre a matéria”; c) 7º, § 4º da LICC (“O regime de bens, legal ou convencional, obedece à lei do país em que tiverem os nubentes domicílios, e, se este for diverso, à do primeiro domicílio conjugal”) — porque, uma vez aceita a premissa do pri-meiro domicílio no Brasil — e não nos Estados Unidos da América (Flórida? Ne-vada?) — a conclusão do aresto choca-se frontalmente com a regra segundo a qual o regime de bens obedece à disciplina vigorante no primeiro domicílio do casal.

Em julgamento decidiu o em Ari Pargendler, por não conhecer do Recurso Especial, à guisa dos seguintes fundamentos:

“Quando o acórdão recorrido se refere ao Brasil como segundo domicílio (fl . 206), não está fazendo uma afi rmação de fato, e, sim, uma interpretação — diga-se, equivocado — da lei, a saber:

“A autora era radicada na Florida, USA, onde mantinha domicílio. O réu ao aceitar a celebração do matrimônio naquele País, embora em Estado diferente, recebeu como seu o domicílio da mulher, tronando-o comum, o que atrai a in-cidência do regime legal que vigorava e vigora, que é o de comunhão parcial, ou seja, com respeito da propriedade separada dos bens dos nubentes, para regular a formação do patrimônio”.

Mas o Tribunal a quo reconheceu um fato que, salvo melhor juízo, não pode ser ignorado sem ofensa ao princípio da boa-fé, in verbis:

“... inaceitável impor de forma compulsória o regime de comunhão universal, nunca querido e desejado e que, arcaico já ao tempo do casamento das partes, foi revogado dois anos depois (Lei 6.515⁄77)” — fl . 207.

Quer dizer, aceitou a versão da petição inicial de que o varão “viveu todo o período conjugal agindo, de fato e de direito, perante todos com quem contratasse e, principalmente, perante a própria suplicante, como se casado em regime de separação total de bens”.

Essas circunstâncias induzem a mesma conclusão adotada pelo Supremo Tri-bunal Federal, no RE n.º 86.787, RS, Rel. Min. Leitão de Abreu:

“Com perfeita boa-fé agiu o recorrente no estabelecimento do regime de bens no casamento. Tanto quis, com lealdade, esse regime, que, realizado o matri-mônio, além de outros atos, que traduzem manifestação inequívoca de que se considerava casado sob o regime de separação de bens, chegou mesmo a declarar-se assim casado em escritura pública de aquisição de bens (fl s. 660). Se isso é certo,

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não pode, agora, passados anos, cerca de um qüinqüênio, ser ouvido quando vem sustentar que o regime de bens, em vez de se o da separação, ao qual consciente-mente se submeteu e sob o qual, de fato, passou a viver, é o regime de comunhão. Tendo criado, com a recorrida, uma situação que ambos acreditaram regular e juridicamente constituída, situação que foi condição do casamento, não pode vir agora, em quebra da boa fé, renegar o regime a que ambos, no casamento, quiseram submeter-se. Instituindo uma situação em que a outra parte confi ou, a alegação, que agora relevante, de que o regime de bens é o da comunhão de bens, importa em quebra do princípio geral de direito, segundo o qual não pode a parte venire contra factum proprium”.

Diversamente decidiu o em. Min. Carlos Alberto Menezes Direito, afi rmando que:

“Não há portanto, difi culdade alguma para a identifi cação do primeiro domi-cílio conjugal. Se não há, qualquer outra interpretação viola o art. 7º, § 4.º, da Lei de Introdução ao Código Civil. E não só viola, tal dispositivo, como, igual-mente, malfere a regra da imutabilidade do regime de bens.”

E no que diz respeito a boa-fé, enunciou que:“Na minha compreensão e com todo o respeito aos que entendem em sentido

contrário, considerando o cenário dos autos no que se refere à ré, adulta, indepen-dente, capaz de compreender, exatamente, o alcance dos atos que praticou, não me parece aplicável o princípio da boa-fé para descaracterizar o regime de bens. Não existe base fáctica para afi rmar que foi ela iludida com faz crer ou que des-conhecia as reais circunstâncias dos atos que praticou. Por outro lado, não seria difícil construir um cenário para justifi car a não incidência da regra jurídica pró-pria e, em conseqüência, alterar o regime de bens. Afastar a incidência da lei que determina, claramente, o regime de bens pelo primeiro domicílio, ao argumento de que tal não foi o regime querido ou desejado pelos cônjuges, ou ao argumento de que um dos cônjuges teria vivido socialmente como se outro fosse o regime de bens, seria criar uma situação de incerteza jurídica, permitindo, sem amparado legal, malferir tanto a regra jurídica que estabelece o regime de bens que deve viger como a que impede a modifi cação do regime de bens.

Por fi m, não bastassem as razões antes deduzidas, e pedido vênia ao eminente Relator, não creio que tenha o Acórdão recorrido cuidado de enfrentar a questão da boa-fé. O que o Acórdão recorrido decidiu foi alterar o regime de bens pelo comportamento das parte, o que, na minha avaliação, não tem a proteção da lei brasileira.”

Diante destas ponderações, pedi vista dos autos.É o relatório.Em exame detido dos autos, conclui que:

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O acórdão recorrido negou vigência ao art. 7º, § 4º da LICC, pois interpre-tou equivocadamente o que seja “primeiro domicílio” dos nubentes, estabelecendo para fi ns de regramento do regime de bens o local do momento da celebração, quando a Lei de Introdução ao Código Civil expressamente determina que, se os cônjuges não designarem a lei aplicável seu regime matrimonial de bens deverá ser regido pelo direito interno do Estado onde os cônjuges, que tenham domicílio diverso, fi xem a residência habitual do casal com ânimo defi nitivo, isto é, onde estabeleçam o primeiro domicílio do casal.

Em abalizado escólio da Doutora Nádia de Araújo e Mestre Daniela Trejos Vargas, tem-se que:

“A regra de DIPR sobre o regime de bens do casamento não é a mesma aplicá-vel à celebração do ato. Enquanto o ato segue a lex celebrationis, o regime de bens segue a lex domixilii. A difi culdade é estabelecer qual será esta lex domicilii tendo em vista que os nubentes podem ter domicílio diverso antes do casamento, e ainda estabelecer novo domicílio após o casamento.

A separação das leis de regência do casamento e do regime de bens é uma inovação da LICC, pois a introdução de 1917 estabelecia apenas a aplicação da lei nacional da pessoa ao regime dos bens no casamento, o que gerava inúmeros confl itos, quando os cônjuges tenham nacionalidade diversa.

Assim, justifi ca-se a preocupação do disposto no artigo 7º parágrafo 4º da Lei de Introdução do Código Civil, na redação de 1943, que acrescentou a menção ao primeiro domicílio conjugal, que dispõe:

“o regime de bens, legal ou convencional, obedece à lei do país em que tiverem os nubentes domicílio, e, se este for diverso, à do primeiro domicílio conjugal.”

Desta forma, por força da regra de conexão acima, poderemos ter a aplicação da lei estrangeira quando houver um pacto ante-nupcial realizado no exterior ou por ser o domicílio ou do primeiro domicílio conjugal situado no exterior, e ain-da temos que cogitar dos eventuais efeitos sobre o regime de bens já determinado conforme lei do estrangeiro, quando houver uma fi xação posterior de domicílio no Brasil.

A característica do sistema brasileiro é a imutabilidade do regime de bens a partir da celebração. Além disso, o sistema é também unitário, pelo que apenas uma lei regerá o regime de bens. A única exceção ao princípio da imutabilidade é contemplada no parágrafo 5º da Lei de Introdução, que permite ao estrangeiro, no momento de sua naturalização e com expressa anuência de seu cônjuge proce-der à mudança do regime, para o regime legal brasileiro (de comunhão parcial). De notar que este dispositivo fazia mais sentido na época da anterior introdução ao Código Civil, quando o estatuto pessoal era regido pela lei da nacionalidade.Nádia de Araújo e Daniela Trejos Vargas, in Questões relativas ao casamento no Direito Internacional Privado Legislação vigente e jurisprudência recente—

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Por sua vez, ensina Amílcar de CastrDireito Internacional Privado, 4ª Edi-ção, Forense, pág.: 379/380 que:

“Pela antiga Introdução do Código Civil, sendo o casamento realizado no Brasil, o ius patriae do cônjuge varão determinava o regime de bens, conquan-to por manifestação expressa pudessem os cônjuges optar pelo direito brasileiro. Atualmente, sendo o regime convencionado no Brasil, ou sendo o casamento aqui realizado, sem convenção antenupcial, se for o primeiro domicílio conjugal aqui fi xado, pelo direito brasileiro deverá ser o regime apreciado; e se pretenderem os cônjuges fi xar o primeiro domicílio conjugal fora do Brasil, não poderá a ju-risdição brasileira ditar direito por que se deva apreciar o regime na jurisdição estrangeira.

O art. 7º, § 4º, da Lei de Introdução evidentemente refere-se a casamento realizado no estrangeiro, sendo o primeiro domicílio conjugal fi xado no Brasil. Dispõe que o regime de bens, legal ou convencional, obedece à lei do país onde estiverem os nubentes domiciliados, e se forem em países diversos, à do primeiro domicílio conjugal. É a reprodução do art. 187 do Código de Bustamante, que diz: “Os contatos matrimoniais regem-se pela lei pessoal comum aos contratantes e, na sua falta, pela do primeiro domicílio conjugal. e estas mesmas leis determi-nam, nessa mesma ordem, o regime legal supletivo, na falta de estipulação.”

Como regra de atribuição de efeitos a fatos estrangeiros, a disposição do art. 7º, § 4º, é excelente, não só quanto `a unidade que estabelece, como porque foi magistralmente demonstrado por Bateman, professor da Universidade de Paris, que a idéia dominante do assunto é a “da importância da adaptação do casal ao meio jurídico e econômico em que tem de viver”; e no interesse do casal e de terceiros convém que o regime legal, em falta de contrato escrito, seja o desse meio. (omissis).

Em suma: o art. 7º, ª 4º, da Lei de Introdução ao Código Civil contém nor-ma referente à atribuição de efeitos a contratos realizados no estrangeiro, fora do Brasil. caso em que, fi xado aqui o primeiro domicílio conjugal, será observado o direito brasileiro, se os desposados tiverem domicílios internacionais diversos, ou o direito estrangeiro, se tiverem domicílio comum fora do Brasil.”

Em contrapartida, estabeleceu o acórdão recorrido que:“Não é possível perpetuar a dúvida e a incerteza, altamente nocivas aos de-

sígnios dos ex-cônjuges em encerrar as conseqüências do desenlace; inaceitável impor de forma compulsória o regime de comunhão universal, nunca querido

e desejado e que, arcaico já ao tempo do casamento das parte, foi revogado dois anos depois (Lei 6515⁄77)

O regime de bens do casamento da autora e do réu é o da comunhão parcial (§ 4º do art. 7º da LICC), resultado que é declarado não só para adequar o elemento volitivo que preponderou na formação do ato jurídico, como para fazer respeitar

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o princípio da imutabilidade, indispensável como fator de segurança das relações dos cônjuges e de terceiros.”

Ocorre que, ao órgão julgador não é dado presumir a vontade das partes quando há critério objetivo estatuído em norma cogente para dirimir a dúvida concernente a respeito de qual lei deve ser chamada para disciplinar o regime matrimonial de bens, quando, na falta pacto ante-nupcial, tiverem os nubentes diversidade de domicílio.

Isto porque, segundo magistralmente foi demonstrado por Bateman, professor da Universidade de Paris, citado por Amílcar de Castro, o sistema escolhido pelo nosso ordenamento jurídico, traduz a idéia dominante “da importância da adap-tação do casal ao meio jurídico e econômico em que tem de viver; e no interesse do casal e de terceiros convém que o regime legal, em falta de contrato escrito, seja o desse meio.”

Ademais, ensina Serpa LopeLei de Introdução ao Código Civil, Serpa Lopes, Vol. II, pág.: 234 que:

“Parece-nos que não é dado aos nubentes estabelecerem a subordinação do seu regime de bens no casamento à uma lei diversa da resultante da sua lei pessoal. A um cidadão domiciliado em nosso país, a despeito de poder pactuar o regime de bens que lhe convier, não é facultado, contudo, estabelecer, contratualmente a subordinação do regime de bens a qualquer outra lei, que não a do seu domicílio.

Assim, pela mesma razão, não há que perquirir uma vontade tácita

na escolha de uma determinada lei. É necessário que se não confunda a

liberdade de convenção com a liberdade de admitir a preponderância de

outra lei que não a lei pessoal.”

In casu, o primeiro domicílio do casal fi xou-se no Brasil e quanto a isso as partes não divergem. Cuida-se, ao contrário, de fato incontroverso, a que faz remissão a autora na própria petição inicial, dizendo, às fl . 9:

“ao adotarem — Suplicante e Suplicado — o Brasil, como primeiro domicílio, logo após as núpcias, em agosto de 1975 — época em que a lei brasileira estabe-lecia o regime de comunhão universal para o casamentos sem pacto antenupcial — a comunhão universal só poderia ter incidido sobre os aqüestos, consoante remansosa jurisprudência do E. Supremo Tribunal Federal.”

O fato de ter sido o casamento celebrado em Nevada — estado diferente do domicílio da esposa — Flórida — não torna este o primeiro domicílio conjugal, pois, não foi neste estado, nem nos EUA, que o casal escolheu estabelecer sua resi-dência com ânimo defi nitivo.

Por outro lado, a pretensão da autora foi lançada com base em um suposto pacto “pós nupcial”, bem como, na alegada aparência de um regime de separação total, que teria sido continuadamente propalado pelo varão, após o casamento,

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e nas diversas atitudes contraditórias do marido que, ao sabor de seus interesses, passou a apresentar, junto a terceiros, o regime de bens que bem lhe conviesse, inclusive, agora, que vem ruindo seu patrimônio e o casal se separa, declarando que o regime que os rege seria o universal de bens.

Lamentavelmente, as atitudes do réu, apresentando-se em determinados atos da vida civil, por equívoco ou qualquer outra causa, como casado sob o regime de separação de bens ou estabelecendo contrato “pós-nupcial”, totalmente inefi caz perante a lei brasileira, com referência a este regime, são dados que não tem o condão de alterar o regime de bens, estabelecido por preceito legal cogente como o é a do regramento do regime de bens.

Ademais, como bem acentuou o em. Min. Carlos Alberto Menezes Direito creio que o acórdão recorrido não examinou tais dados sob o enfoque da má-fé do recorrente.

E, mesmo que assim se entendesse, pedimos a mais respeitosa vênia para esta-tuir que, o paradigma invocado pelo em. relator para a solução da controvérsia, parece-me, não ter real identidade com o caso dos autos, visto que, os atos que tra-duziriam manifestação de que o ex-cônjuge se considerava casado sob o regime de separação de bens não gerou um situação que ambos os cônjuges criam regular e juridicamente constituída, tanto assim que o pedido da autora não se circunscreve ao reconhecimento judicial do regime sob o qual viviam aparentemente, mas de outro regime — o de comunhão parcial — que sustenta ter sido o verdadeiramen-te querido e desejado pelos cônjuges.

Assim, no meu entender, o princípio da boa-fé não protege a recorrida, nem pode ser invocado para afastar a incidência peremptória da lei que, à época do casamento das partes, determinava ser o regime legal o universal de bens.

Aceitar que o comportamento ou a vontade ulterior dos cônjuges pudesse de-terminar o regime de bens, implicaria negar aplicação à lei de caráter cogente e transgredir frontalmente a regra que determina a imutabilidade do regime.

Forte nestas razões, rogando vênia ao relator, DOU PROVIMENTO ao re-curso, para restabelecer a sentença monocrática.

É como voto.

VOTO-VISTA

O EXMO. SR. MINISTRO ANTÔNIO DE PÁDUA RIBEIRO: Discute-se, nestes autos, em ação declaratória movida por LEUZA BERNARDES contra WAL-DEMAR HADDAD, qual o regime legal de bens que deve prevalecer entre os cônjuges: o da comunhão universal, vigente no Brasil à época do casamento, ou o da comunhão parcial, em vigor nos Estados Unidos. Isso porque a autora, domiciliada na cidade de Fort Lauderdale, Flórida — EUA, contraiu matrimônio em 31⁄7⁄1975 no Condado de Clark, Nevada, com Waldemar Haddad, que tinha domicílio em São Paulo, neste País, onde os cônjuges vieram a morar logo após as núpcias, em agosto de 1975.

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Dissentem, até o momento, os brilhantes votos proferidos pelo Ministro Carlos Alberto Menezes Direito, este com o apoio da Ministra Nancy Andrighi: o pri-meiro entende que, na interpretação do § 4º do art. 7º da Lei de Introdução ao Código Civil, há de ter-se em conta o princípio da boa-fé, o que foi afastado pelos votos dissidentes.

Eis o que, a propósito, argumentou o Relator:

“Mas o Tribunal a quo reconheceu um fato que, salvo melhor juízo, não pode ser ignorado sem ofensa ao princípio da boa-fé, in verbis:

‘... inaceitável impor de forma compulsória o regime de comunhão universal, nunca querido e desejado e que, arcaico já ao tempo do casamento das partes, foi revogado dois anos depois (Lei 6.515⁄77)’ — fl . 207.

Quer dizer, aceitou a versão da petição inicial de que o varão ‘viveu todo o período conjugal agindo, de fato e de direito, perante todos com quem contratasse e, principalmente, perante a própria suplicante, como se casado em regime de separação total de bens’ (fl . 06).

A propósito, vide a escritura pública de compromisso de compra e venda de fl . 49, as escrituras de divisão de fl s. 53 e 63 e a escritura de doação de fl . 59, as procurações de fl . 28⁄34, e, principalmente, o contrato ‘pós-nupcial’ de fl s. 76⁄77.

Essas circunstâncias induzem a mesma conclusão adotada pelo Supremo Tri-bunal Federal, no RE nº 86.787, RS, Relator o eminente Ministro Leitão de Abreu, tal qual se lê no respectivo voto condutor:

‘Com perfeita boa-fé agiu o recorrente no estabelecimento do regime de bens no casamento. Tanto quis, com lealdade, esse regime, que, realizado o matrimônio, além de outros atos, que traduzem manifestação inequívoca de que se considerava casado sob o regime de separação de bens, chegou mesmo a declarar-se assim casa-do em escritura pública de aquisição de bens (fl s. 660). Se isso é certo, não pode, agora, passados anos, cerca de um qüinqüênio, ser ouvido quando vem sustentar que o regime de comunhão. Tendo criado, com a recorrida, uma situação que ambos acreditaram regular e juridicamente constituída, situação que foi condição do casamento, não pode vir agora, em quebra da boa-fé, renegar o regime a que ambos, no casamento, quiseram submeter-se. Instituindo uma relevante, de que o regime de bens é o da comunhão de bens, importa em quebra do princípio geral de direito, segundo o qual não pode a parte venire contra factum proprium’ (RTJ, vol. 903, p. 994).

Ante o exposto, voto no sentido de não conhecer do recurso especial.”

Discordando, aduziu o Ministro Carlos Alberto Menezes Direito:

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“Mas, vejamos a questão da boa-fé. São conhecidas as controvérsias sobre am-bivalência da boa-fé, ou seja, a boa-fé no sentido subjetivo e a boa-fé no sentido objetivo, que vem sendo acolhida por alguns autores no direito brasileiro. No primeiro caso, signifi cando a idéia de crença equivocada e no segundo um dever de conduta contratual. Como ensina Teresa Negreiros, no nosso direito não há um preceito genérico no âmbito do Código Civil que preveja expressamente o princí-pio da boa-fé objetiva, sendo que o Código Civil em suas pontuais remissões ao instituto, na sua maioria esmagadora, trata da chamada boa-fé subjetiva, ‘que não implica a confi guração de uma regra de conduta, mas apenas de um estado psicológico (daí o subjetivismo) do agente., nestes casos, subjetivamente conside-rada, a boa-fé pode ser caracterizada como crença errônea; credulidade daquele que desconhece as reais circunstâncias do ato praticado’ (Fundamentos para um Interpretação Constitucional do Princípio da Boa-Fé’, RENOVAR, 1998, págs. 15 e 71). Como prefere Maria Cristina Cereser Pezzella, a ‘boa-fé subjetiva é a consciência ou a convicção de se ter um comportamento conforme ao direito ou conforme à ignorância do sujeito acerca da existência do direito do outro. Já a boa-fé objetiva permite a concreção de normas impondo que os sujeitos se condu-zam de forma honesta, leal e correta’ (A Boa-Fé no Direito, Síntese Trabalhista, nº 103, janeiro de 1998, págs. 131⁄132).

Na minha compreensão e com todo o respeito aos que entendem em sentido contrário, considerando o cenário dos autos no que se refere à ré, adulta, inde-pendente, capaz de compreender, exatamente, o alcance dos atos que praticou, não me parece aplicável o princípio da boa-fé para descaracterizar o regime de bens. Não existe base fáctica para afi rmar que foi ela iludida como faz crer ou que desconhecia as reais circunstâncias dos atos que praticou. Por outro lado, não seria difícil construir um cenário para justifi car a não incidência da regra jurí-dica própria e, em conseqüencia, alterar o regime de bens. Afastar a incidência da lei que determina, claramente, o regime de bens pelo primeiro domicílio, ao argumento de que um dos cônjuges teria vivido socialmente como se outro fosse o regime de bens, seria criar uma situação de incerteza jurídica, permitindo, sem amparo legal, malferir tanto a regra jurídica que estabelece o regime de bens que deve viger como a que impede a modifi cação do regime de bens.

Por fi m, não bastassem as razões antes deduzidas, e pedindo vênia ao emi-nente Relator, não creio que tenha o Acórdão recorrido cuidado de enfrentar a questão da boa-fé. O que o Acórdão recorrido decidiu foi alterar o regime de bens pelo comportamento das partes, o que, na minha avaliação, não tem a proteção da lei brasileira.”

Consoante se verifi ca, ambas as posições estão bem defendidas. Por isso pedi vista dos autos e, após meditar, sobre a controvérsia, chequei à conclusão de que, no caso concreto, a melhor solução é a preconizada pelo ilustre Relator, que tem

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a respaldá-la antigo precedente do Supremo Tribunal Federal, de data anterior à criação desta Corte, quando, então, exercia, também, a função de Pretório máxi-mo em matéria infraconstitucional.

A essa conclusão cheguei porque o recorrente está a sustentar regime matrimo-nial diverso daquele que sempre entendeu vigorar enquanto perdurou a convi-vência do casal, quando doou, livre e espontaneamente, alguns bens de raiz à sua mulher, a recorrida.

Esvaziado com o correr do tempo o seu patrimônio, quase completamente, vem agora, após o divórcio, defender o regime de comunhão universal, com o claro propósito de recuperar a metade do patrimônio que livremente doou à recorrida.

Se, como salientou o voto do Relator, com apoio na prova dos autos, o recorren-te “viveu todo o período conjugal agindo, de fato e de direito, perante todos com quem contratasse e, principalmente, perante a própria suplicante, como se casado em regime de separação total de bens”, não faz sentido, diante de circunstâncias supervenientes, venha a sustentar outro regime de bens com o manifesto propósito de recuperar parte do patrimônio doado. Tal proceder, à vista das circunstâncias constantes dos autos, implica, a meu ver, violação do princípio da boa-fé que, no caso, deve ser aplicado na solução do litígio com preponderância sobre o princípio da imutabilidade do regime de bens entre os cônjuges (LICCiv, art. 7º, § 4º). Ao assim decidir, não estou a negar vigência à regra legal, mas, apenas, afastando, no caso específi co, a sua aplicação, para não chegar a solução injurídica da con-trovérsia, ou seja, violar a velha regra romana, segundo a qual jurídico é viver honestamente, dar a cada um o que é seu e não lesar a outrem.

Em conclusão, pois, acompanho o Relator: não conheço do recurso.

VOTO-VISTA

O EXMO. SR. MINISTRO CASTRO FILHO: LEUZA BERNARDES propôs ação em relação a WALDEMAR HADADD objetivando a declaração de que o regime de bens a orientar a partilha do patrimônio do casal, separado desde 1990, é o da comunhão parcial. Asseverou a autora, na inicial, que se casou com o réu em 31 de julho de 1975, no Condado de Clark, Nevada, Estados Unidos, inexistindo pacto antenupcial. Waldemar Hadadd tinha domicílio em São Paulo, Brasil, e a autora em Fort Lauderdale, Flórida, mas, logo depois do matrimônio, fi xaram residência no Brasil, nas cidades de São Paulo e São José do Rio Preto. Se-gundo afi rmação da exordial, o réu portava-se como se o regime de bens fosse o da separação total, tanto que solicitou à autora diversas procurações para administrar seus bens, sustentando que estes lhe pertenciam com exclusividade, apresentando, inclusive, um denominado pacto pós-nupcial, que ratifi cava o referido regime.

Após a separação, todavia, buscou a prevalência do regime de comunhão uni-versal de bens, exigindo que a autora apresentasse os bens pessoais adquiridos an-

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tes do casamento ou depois, por doação ou herança, para partilha, o que ensejou a propositura desta ação declaratória.

O pedido foi julgado improcedente pela juíza de primeiro grau, Drª Maria de Lourdes Rachid Vaz de Almeida, que salientou a imutabilidade do regime de bens, e acrescentou, verbis:

“ É fato incontroverso nos autos que o primeiro domicílio conjugal foi estabele-cido no Brasil, apesar de o casamento ter sido realizado nos Estados Unidos. Essa circunstância, tendo em vista que os cônjuges tinham anteriormente domicílios diversos, defi ne o regime de bens, conforme o disposto no art. 7º, parágrafo 4º, da Lei de Introdução ao Código Civil.

(...)Ora, na época, o regime legal de bens no Brasil, primeiro domicílio conju-

gal, já que não foi celebrado pacto antenupcial, era o da comunhão universal, não procedendo, portanto, o pedido de reconhecimento de regime diferente.” (fl s. 107⁄108).”

Apreciando o recurso de apelação da vencida, a Terceira Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, relator Desembargador Ênio Zuliani, por unanimidade, deu-lhe parcial provimento, sob os seguintes fundamentos:

“Para bem resolver o impasse entre os antigos cônjuges, é preciso examinar o sentido do § 4º do art. 7º do Decreto-lei 4657⁄42, o que se obtém com a concei-tuação de domicílio conjugal dos nubentes.

O domicílio dos nubentes, segundo OSCAR TENÓRIO (‘Lei de Introdução ao Código Civil’, ed. Brosoi, 1955, pág. 279), ‘é aquele do momento da celebra-ção, não produzindo efeitos, em relação ao regime matrimonial de bens, domicí-lio anterior nem domicílio posterior’.

Importante regra para época de imigração em massa, quando era corriqueiro a celebração de enlaces com noivos que, separados por continentes, casavam repre-sentados por procuradores, dúvidas surgiam com a exata qualifi cação do primeiro domicílio conjugal; seria aplicável a lei do País do casamento ou do local em que o casal fi ncaria as suas raízes.

Hoje a norma está em desuso. A facilidade de locomoção impede casamentos à distância. A evolução social, baseada na aproximação dos seres como sustentáculo da convivência mútua, desautoriza também este tipo de agenciamento. Quem casa no estrangeiro, adota, para respeitá-la, a lei do lugar e do momento.

A autora era radicada na Florida — USA, onde mantinha domicílio. O réu ao aceitar a celebração do matrimônio naquele País, embora em Estado diferente, recebeu como seu o domicílio da mulher, tornando-o comum, o que atrai a in-

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cidência do regime legal que vigorava e vigora, que é o de comunhão parcial, ou seja, com respeito da propriedade separada dos bens dos nubentes, para regular a formação do patrimônio.

As partes não celebraram o matrimônio para legalizar imigração ou para cumprir a promessa de trazer a namorada para o Brasil, como ocorria no início do século; também não se submeteram ao império das leis de Nevada para escapar de alguma proibição do sistema nacional. Assumiram conscientes o regramento do local, certamente depois de profunda refl exão. Se estabeleceram, sponte própria, o domicílio comum no estrangeiro para concretizar o casamento, aceitaram as dis-posições de ordem pública que regulamentavam os casamentos, base da sociedade em qualquer território.

Qualquer disposição posterior caracteriza atentado ao poder soberano da au-tonomia de vontade, que, justo pelo sentido de ordenamento social, não autoriza modifi cações unilaterais, como aquele proposta pelo documento particular encar-tado nos autos e que veiculava um pacto pós nupcial.

O segundo domicílio é que foi aqui estabelecido, situação que descarta a inci-dência do regime de comunhão universal, então vigente à época da celebração no Brasil, para disciplinar os aspectos patrimoniais da união conjugal. Cabe, agora, a doutrina dos ESPÍNOLA sobre a regra da imutabilidade consagrada no dispo-sitivo analisado (‘A Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro Comentada’, ed. Freitas Bastos, 1944, pág. 389):

‘Pouco importa seja transferido, para algum outro país, o domicílio, que foi levado em consideração para, no momento do casamento, ser fi xado, em forma legal, o regime matrimonial de bens, na falta de convenção; prevalece, sempre o regime legal daquele domicílio, sem infl uência alguma da ou das mudanças pos-teriores de domicílio; o próprio estabelecimento, em Estado diferente, do primeiro domicílio conjugal é inoperante, quando se determinou o regime pela lei do do-micílio comum, que era o dos nubentes, ao tempo do matrimônio’.

Não é possível perpetuar a dúvida e a incerteza, altamente nocivas aos desíg-nios dos ex-cônjuges em encerrar as conseqüências do desenlace; inaceitável impor de forma compulsória o regime de comunhão universal, nunca querido e desejado e que, arcaíco já ao tempo do casamento das partes, foi revogado dois anos depois (Lei 6515⁄77).

O regime de bens do casamento da autora e do réu é o da comunhão parcial (§ 4º do art. 7º da LICC), resultado que é declarado não só para adequar o elemento volitivo que preponderou na formação do ato jurídico, como para fazer respeitar o princípio da imutabilidade, indispensável como fator de segurança das relações dos cônjuges e de terceiros.

Não cabe qualquer consideração sobre aqüestos. Primeiro porque o enunciado supra publicado prejudica o pedido alternativo e, depois, em razão de que qual-quer deliberação sobre comunicabilidade de bens dependeria de provas da origem da aquisição e do esforço dos ex-cônjuges, coisa que o instrumental não permite

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por faltar individualização patrimonial e pela completa e franca omissão do con-texto probante.

Por todo o exposto, dá-se parcial provimento ao recurso da autora, para julgar parcialmente procedente a ação e declarar que o regime de bens do casamento que as partes celebraram no Condado de Clark, em Nevada — USA, é o da comunhão parcial, consoante as leis daquele País (§ 4º do art. 7º, da LICC), pre-judicado o segundo pedido formulado. Justo pela sucumbência parcial, arbitra-se a verba honorária em 13% do valor da causa, com atualização a partir do ajui-zamento.” (fl s. 205⁄208).

Opostos embargos declaratórios pelo réu, foram rejeitados, acrescentan-do-se:

“Consta do segundo parágrafo da inicial (fl s. 3), que a autora da ação decla-ratória residia em Fort Lauderdale, Flórida, dois meses antes do casamento. Daí a afi rmativa de que a nubente era radicada na Flórida, o que — até por faltar impugnação do réu sobre esta particularidade do libelo —, não se atina para a surpresa informada nos embargos.

Depois foi dito na inicial — igualmente sem objeção do embargante —: ‘ Quando a suplicante conheceu o suplicado, estava perfeitamente instalada na-quele País, tinha emprego estável e se preparava para adquirir, por compra, o imóvel onde residia com seus fi lhos’ (fl s. 3).

Como o casamento foi celebrado cerca de dois meses depois da fase de conheci-mento dos nubentes, em outro Estado, a conclusão lógica e perfeitamente susten-tável pelos acontecimentos pré-nupciais, é a de que o domicílio do casal era o de Nevada, porque lá contraíram matrimônio. Se existiu outro, aqui ou acolá, não foi defi nido pela prova e não se contrapõe a esta verdade que resulta da natureza do ato fi rmado.

Afi rmou-se que a solução judicial afronta a regra escolhida pelos cônjuges, de que o primeiro domicílio do casal foi o Brasil (fl s. 215), o que absolutamente não condiz com a interpretação da Turma Julgadora, que sabe muito que existe diferença conceitual entre residência e domicílio. O domicílio dos nubentes, como doutrinou OSCAR TENÓRIO, ‘é aquele do momento da celebração’ (fl s. 205); a futura residência não modifi ca o quadro jurídico, arrematou o Acórdão, contra-pondo residência do casal e domicílio conjugal.

(...)Na verdade, quando a autora provocou a jurisdição porque pretendeu elimi-

nar dúvida sobre o regime do casamento que celebrou com o réu, autorizou uma interpretação abrangente sobre os fatos que marcam o bem de vida indefi nido. O réu que se opõe ao regime de separação e quer o de comunhão, igualmente adotou postura que contribuiu para a licitude de uma ampla incursão sobre o

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que se entende como domicílio conjugal, para fi ns do art. 7º, § 4º, do Decreto-lei 4.657⁄42.

Rejeitam-se, pois, os embargos.” (fl s. 221⁄222).

Daí o recurso especial interposto por WALDEMAR HADADD, com fulcro no artigo 105, inciso III, alínea a, do permissivo constitucional. Sustenta ter havi-do violação aos artigos 128 e 334, incisos II e III, do Código de Processo Civil, pois o acórdão recorrido, ao afi rmar que o primeiro domicílio dos litigantes foi em Nevada, Estados Unidos, negou fato incontroverso nos autos, qual seja, de que o casal estabeleceu domicílio no Brasil logo após o matrimônio. Ademais, a pretensão da recorrida foi embasada no suposto pacto “pós-nupcial” e na alegada aparência de um regime de separação total, que teria sido propalado pelo recor-rente durante o tempo de vida em comum. O pedido não foi fundamentado na alegação de que outro seria o domicílio conjugal do casal que não o Brasil, tese defendida pelo acórdão impugnado, em fl agrante ofensa à norma do artigo 128 do código instrumental.

Concluiu o recorrente que, ao desconsiderar fato incontroverso, bem como jul-gar a controvérsia fora dos limites em que proposta, o tribunal a quo negou vi-gência ao artigo 7º, § 4º, da Lei de Introdução ao Código Civil, segundo o qual o regime de bens obedece à disciplina vigente no lugar em que o casal constitui o seu primeiro domicílio.

O eminente relator, Ministro Ari Pargendler, não conheceu do recurso especial. Sua Excelência ponderou:

“A teor das razões do recurso especial, o acórdão recorrido violou lei federal porque deixou de observar que, na ausência de pacto antenupcial, o regime de bens deve obedecer à disciplina vigente no primeiro domicílio do casal, no caso, o Brasil.

Com razão, em tese.O § 4º do artigo 7º da Lei de Introdução ao Código Civil tem a seguinte redação:‘ O regime de bens, legal ou convencional, obedece à lei do país em que tiveram

os nubentes domicílio, e, se este for diverso, à do primeiro domicílio conjugal’.Ou seja, a norma prevê duas situações distintas para a adoção do regime de

bens: a primeira, no caso de os nubentes terem o mesmo domicílio; a segunda, no caso de terem domicílios diversos.

A hipótese dos autos se enquadra na segunda situação, tendo em vista que um dos nubentes tinha domicílio nos Estados Unidos e o outro no Brasil.

Se a controvérsia pudesse ser resolvida nesses termos exclusivamente teóricos, bastaria a identifi cação de qual foi o ‘primeiro domicílio conjugal’.

Reza o artigo 31 do Código Civil:

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‘ O domicílio civil da pessoa natural é o lugar onde ela estabelece a sua resi-dência com ânimo defi nitivo’.

‘ Dois elementos são’, — diz Washington de Barros Monteiro — ‘pois, neces-sários para que se caracterize o domicílio civil, um dos principais atributos da pessoa natural: um, objetivo, material, a radicação do indivíduo em determinado lugar; outro, subjetivo, psicológico, a intenção de aí fi xar-se com ânimo defi ni-tivo, de modo estável e permanente’ (Curso de Direito Civil, 1º Volume, Parte Geral, Editora Saraiva, pág. 127).

Ou seja, ao contrário do entendimento adotado pelo Tribunal a quo, ‘o pri-meiro domicílio conjugal’ não foi o do lugar onde celebrado o casamento, porque nele os cônjuges não estabeleceram a sua ‘residência com ânimo defi nitivo’.

Nesse sentido a lição de Maria Helena Diniz, manifestando-se a propósito do § 4º, do artigo 7º, da Lei de Introdução ao Código Civil, in verbis:

‘ Os arts. 7º, § 4º, da Lei de Introdução e 187 do Código de Bustamante con-têm preceito unitário para o regime matrimonial de bens, legal ou convencional, impondo como elemento de conexão a lex domicilli dos nubentes à época do ato nupcial, ou a do primeiro domicílio conjugal, que decorre do casamento, cuja fi -xação dependerá do marido, se os noivos não tiverem, por ocasião do matrimônio, o mesmo domicílio internacional. Se os cônjuges com domicílios diversos se estabe-lecerem logo após as núpcias em um país, estão revelando intenção de submeter o regime matrimonial de bens à lei do lugar que escolheram para domicílio conju-gal. Lógico será que o direito vigente do local onde fi xaram morada e constituíram família venha a reger suas relações econômicas. Se os nubentes tinham o mesmo domicílio, a lex domicilli dispensará o regime matrimonial de bens, na falta de pacto antenupcial. Com isso procuram aqueles artigos estabelecer os limites da aplicação do direito alienígena’ (Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro Interpretada, Editora Saraiva, pág. 231⁄232).

Quando o acórdão recorrido se refere ao Brasil como segundo domicílio (fl . 206), não está fazendo uma afi rmação de fato, e, sim, uma interpretação — diga-se, equivocada — da lei, a saber:

‘ A autora era radicada na Florida, USA, onde mantinha domicílio. O réu ao aceitar a celebração do matrimônio naquele país, embora em Estado diferente, recebeu como seu o domicílio da mulher, tornando-o comum, o que atrai a inci-dência do regime legal que vigorava e vigora, que é o da comunhão parcial, ou seja, com respeito da propriedade separada dos bens dos nubentes, para regular a formação do patrimônio’ (fl s. 205⁄206.

Mas o Tribunal a quo reconheceu um fato que, salvo melhor juízo, não pode ser ignorado sem ofensa ao princípio da boa-fé, in verbis:

‘... inaceitável impor de forma compulsória o regime de comunhão universal, nunca querido e desejado e que, arcaico já ao tempo do casamento das partes, foi revogado dois anos depois (Lei 6.515⁄77)’ — fl . 207.

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FGV DIREITO RIO 453

Quer dizer, aceitou a versão da petição inicial de que o varão ‘viveu todo o período conjugal agindo, de fato e de direito, perante todos com quem contratasse e, principalmente, perante a própria suplicante, como se casado em regime de separação total de bens’ (fl . 06).

A propósito, vide a escritura pública de compromisso de compra e venda de fl . 49, as escrituras de divisão de fl s. 53 e 63 e a escritura de doação de fl . 59, as procurações de fl . 28⁄34, e, principalmente, o contrato ‘pós-nupcial’ de fl s. 76⁄77.

Essas circunstâncias induzem a mesma conclusão adotada pelo Supremo Tri-bunal Federal, no RE nº 86.787, RS, Relator o eminente Ministro Leitão de Abreu, tal qual se lê no respectivo voto condutor:

‘ Com perfeita boa-fé agiu o recorrente no estabelecimento do regime de bens no casamento. Tanto quis, com lealdade, esse regime, que, realizado o matri-mônio, além de outros atos, que traduzem manifestação inequívoca de que se considerava casado sob o regime de separação de bens, chegou mesmo a declarar-s assim casado em escritura pública de aquisição de bens (fl s. 660). Se isso é certo, não pode, agora, passados anos, cerca de um qüinqüênio, ser ouvido quando vem sustentar que o regime de bens, em vez de ser o da separação, ao qual consciente-mente se submeteu e sob o qual, de fato, passou a viver, é o regime de comunhão. Tendo criado, com a recorrida, uma situação que ambos acreditaram regular e juridicamente constituída, situação que foi condição do casamento, não pode vir agora, em quebra de boa fé, renegar o regime a que ambos, no casamento, quiseram submeter-se. Instituindo uma situação em que a outra parte confi ou, a alegação, que agora relevante, de que o regime de bens é o da comunhão de bens, importa em quebra do princípio geral de direito, segundo o qual não pode a parte venire contra factum proprium’ (RTJ, Vol. 903, p. 994).

Ante o exposto, voto no sentido de não conhecer do recurso especial.”

O digno Ministro Carlos Alberto Menezes Direito, em seu erudito voto, diver-giu do relator. Frisou que a difi culdade de aplicação do citado artigo da Lei de Introdução ao Código Civil surge quando não se pode precisar qual o primeiro domicílio conjugal, acentuando que, no caso concreto, isso não ocorre, haja vista que a inicial “indica que os cônjuges manifestaram a vontade fi xar residência e domicílio no Brasil, o que efetivamente aconteceu, havendo a promessa de doação de bens imóveis para garantir a situação da mulher, sendo o regime de bens vi-gente no Estado de Nevada, o da comunhão parcial”.

E, continua, verbis:

“Não há, portanto, difi culdade alguma para a identifi cação do primeiro do-micílio conjugal. Se não há, qualquer outra interpretação viola o art. 7, § 4º, da Lei de Introdução ao Código Civil. E não só viola tal dispositivo, como, igual-mente, malfere a regra da imutabilidade do regime de bens.

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FGV DIREITO RIO 454

Mas, vejamos a questão da boa-fé. São conhecidas as controvérsias sobre a ambivalência da boa-fé, ou seja, a boa-fé no sentido subjetivo e a boa-fé no sen-tido objetivo, que vem sendo acolhida por alguns autores no direito brasileiro. No primeiro caso, signifi cando a idéia de crença equivocada, e no segundo um dever de conduta contratual. Como ensina Teresa Negreiros, no nosso direito não há um preceito genérico no âmbito do Código Civil que preveja expressamente o princípio da boa-fé objetiva, sendo que o Código Civil em suas pontuais remissões ao instituto, na sua esmagadora maioria, trata da chamada boa-fé subjetiva, ‘que não implica a confi guração de uma regra de conduta, mas apenas de um estado psicológico (daí o subjetivismo) do agente. Nestes casos, subjetivamente conside-rada, a boa-fé pode ser caracterizada como crença errônea; credulidade daquele que desconhece as reais circunstâncias do ato praticado’ (Fundamentos para uma Interpretação Constitucional do Princípio da Boa-fé, RENOVAR, 1998, págs. 15 e 71). Como prefere Maria Cristina Cereser Pezzela, a ‘boa-fé subjetiva é a consciência ou a convicção de se ter um comportamento conforme ao direito ou conforme à ignorância do sujeito acerca da existência do direito do outro. Já a boa-fé objetiva permite a concreção de normas impondo que os sujeitos se condu-zam de forma honesta, leal e correta’ (A Boa-Fé no Direito, Síntese Trabalhista, n.º 103, janeiro de 1998, págs. 131⁄132).

Na minha compreensão e com todo o respeito aos que entendem em sentido contrário, considerando o cenário dos autos que, no que se refere à ré, adulta, in-dependente, capaz de compreender, exatamente, o alcance dos atos que praticou, não me parece aplicável o princípio da boa-fé para descaracterizar o regime de bens. Não existe base fática para afi rmar que foi ela iludida como faz crer ou que desconhecia as reais circunstâncias dos atos que praticou. Por outro lado, não seria difícil construir um cenário para justifi car a não incidência da regra jurí-dica própria e, em conseqüência, alterar o regime de bens. Afastar a incidência da lei que determina, claramente, o regime de bens pelo primeiro domicílio, ao argumento de que um dos cônjuges teria vivido socialmente como se outro fosse o regime de bens, seria criar uma situação de incerteza jurídica, permitindo, sem amparo legal, malferir tanto a regra jurídica que estabelece o regime de bens que deve viger como a que impede a modifi cação do regime de bens.

Por fi m, não bastassem as razões antes deduzidas, e pedindo vênia ao eminente Relator, não creio que tenha o acórdão recorrido cuidado de enfrentar a questão da boa-fé. O que o acórdão recorrido decidiu foi alterar o regime de bens pelo comportamento das parte, o que, na minha avaliação, não tem proteção na lei brasileira.

Com tais razões, prestando minhas homenagens ao sempre cuidadoso e bem elaborado voto do eminente Ministro Ari Pargendler, eu conheço do especial e lhe dou provimento para restabelecer a sentença.”

A ilustre Ministra Nancy Andrighi acompanhou esse entendimento, acrescentando:

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“O acórdão recorrido negou vigência ao art. 7º, § 4º, da LICC, pois interpre-tou equivocadamente o que seja ‘primeiro domicílio’ dos nubentes, estabelecendo para fi ns de regramento do regime de bens o local do momento da celebração, quando a Lei de Introdução ao Código Civil expressamente determina que, se os cônjuges não designarem a lei aplicável, seu regime matrimonial de bens deverá ser regido pelo direito interno do Estado onde os cônjuges, que tenham domicílio diverso, fi xem a residência habitual do casal com ânimo defi nitivo, isto é, onde estabeleçam o primeiro domicílio do casal.

(...)Ocorre que, ao órgão julgador não é dado presumir a vontade das partes

quando há critério objetivo estatuído em norma cogente para dirimir a dúvida concernente a respeito de qual lei deve ser chamada para disciplinar o regime ma-trimonial de bens, quando, na falta de pacto ante-nupcial, tiverem os nubentes diversidade de domicílio.

(...)In casu, o primeiro domicílio do casal fi xou-se no Brasil e quanto a isso as

partes não divergem. Cuida-se, ao contrário, de fato incontroverso, a que faz remissão a autora na própria petição inicial, dizendo, à fl . 9:

‘ao adotarem — Suplicante e Suplicado — o Brasil, como primeiro domicílio, logo após as núpcias, em agosto de 1975 — época em que a lei brasileira estabe-lecia o regime de comunhão universal para os casamentos sem pacto antenupcial — a comunhão universal só poderia ter incidido sobre os aqüestos, consoante remansosa jurisprudência do E. Supremo Tribunal Federal.’

O fato de ter sido o casamento celebrado em Nevada — estado diferente do domicílio da esposa — Flórida — não torna este o primeiro domicílio conjugal, pois não foi neste estado, nem nos EUA, que o casal escolheu estabelecer sua resi-dência com ânimo defi nitivo.”

O digno Ministro Antônio de Pádua Ribeiro também solicitou vista dos autos, mas votou acompanhando o ministro relator, “porque o recorrente está a sustentar regime matrimonial diverso daquele que sempre entendeu vigorar enquanto per-durou a convivência do casal, quando doou, livre e espontaneamente, alguns bens de raiz à sua mulher, a recorrida”. E acrescentou:

“ Esvaziado com o correr do tempo o seu patrimônio, quase completamente, vem agora, após o divórcio, a defender o regime de comunhão universal, com o claro propósito de recuperar a metade do patrimônio que livremente doou à recorrida.

Se, como salientou o voto do Relator, com apoio na prova dos autos, o recorren-te ‘viveu todo o período conjugal agindo, de fato e de direito, perante todos com

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FGV DIREITO RIO 456

quem contasse e, principalmente, perante a própria suplicante, como se casado em regime de separação total de bens’, não faz sentido, diante de circunstâncias supervenientes, venha a sustentar outro regime de bens com o manifesto propósito de recuperar parte do patrimônio doado. Tal proceder, à vista das circunstâncias constantes dos autos, implica, ___, violação do princípio da boa-fé que, no caso, deve ser aplicado na solução do litígio com preponderância sobre o princípio da imutabilidade do regime de bens entre os cônjuges (LICCiv, art. 7º, § 4º). Ao assim decidir, não estou a negar vigência à regra legal, mas, apenas, afastando, no caso específi co, a sua aplicação, para não chegar a solução injurídica da con-trovérsia, ou seja, violar a velha regra romana, segundo a qual jurídico é viver honestamente, dar a cada um o que é seu e não lesar a outrem.

Em conclusão, pois, acompanho o Relator: não conheço do recurso.”

Tendo em vista os relevantes fundamentos dos votos que me precederam, solici-tei vista para o estudo da controvérsia.

Após refl etir sobre o caso, data venia, não encontro outra solução senão aquela pre-conizada pelos ilustres ministros Carlos Alberto Menezes Direito e Nancy Andrighi.

Uma vez celebrado o casamento de pessoas com domicílios diferentes, a lei fez presumir, como vontade das partes, que regularia o regime de bens do casal o Es-tado no qual viessem a estabelecer o primeiro domicílio conjugal (artigo 7º, § 4º, da LICC). Em vista disso, não se pode falar que a vontade do casal sempre foi a de regular a vida patrimonial por meio do regime de comunhão parcial de bens vigente no lugar do casamento.

No passado, o legislador optou pelo regime da comunhão universal de bens, por razões que não cabem aqui enfocar, para todos os que não manifestassem intenção diferente. Assim, pode-se dizer que aquele substituiu a vontade das partes, para evitar situações de incerteza e de vazio, diante de eventual omissão do casal. Por outro lado, a imutabilidade do regime de bens era a regra, como frisou o Ministro Carlos Alberto Menezes Direito, ao citar a abalizada doutrina de Eduardo Espí-nola e Eduardo Espínola Filho e Jacob Dolinger.

Conquanto criticável tal posição quando comparada ao panorama contempo-râneo das relações familiares — tanto assim que o novel Código Civil alterou tal critério para permitir posteriores alterações no regime patrimonial de bens —, na hipótese em exame, não há como escapar do comando legal que vigorava à época dos fatos, ainda que com base na “aparência” de que um regime diferente regulava a relação do casal ou no princípio da boa-fé. Tal princípio, consoante assinalado pelos votos divergentes que me precederam, sequer foi enfocado pelo acórdão recor-rido, que não examinou a tese sob a perspectiva da boa ou má-fé do réu.

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Os motivos que impeliram o recorrente a apresentar-se em alguns atos da vida civil como casado sob o regime de separação de bens são desinfl uentes, porquanto a certeza jurídica criada pela opção legislativa da época era o bem maior que se buscou preservar.

Por isso, corretamente concluiu seu voto a eminente Ministra Nancy Andrighi, verbis:

“Assim, no meu entender, o princípio da boa-fé não protege a recorrida, nem pode ser invocado para afastar a incidência peremptória da lei que, à época do casamento das partes, determinava ser o regime legal o universal de bens.

Aceitar que o comportamento ou a vontade ulterior dos cônjuges pudesse de-terminar o regime de bens, implicaria negar aplicação à lei de caráter cogente e transgredir frontalmente a regra que determina a imutabilidade do regime.”

Ante o exposto, pedindo respeitosa vênia aos eminentes ministros que votaram em sentido contrário, dou provimento ao recurso para restabelecer a sentença.

É como voto.

Ministro CASTRO FILHO

CERTIDÃO DE JULGAMENTO

TERCEIRA TURMA

Certifi co que a egrégia TERCEIRA TURMA, ao apreciar o processo em epígrafe na sessão realizada nesta data, proferiu a seguinte decisão:

“Prosseguindo o julgamento, após o voto-vista do Sr. Ministro Castro Fi-lho, a Turma, por maioria, vencidos os Srs. Ministros Relator e Antônio de Pádua Ribeiro, conheceu do recurso especial e deu-lhe provimento.”

Lavrará o acórdão o Sr. Ministro Carlos Alberto Menezes Direito.Votaram vencidos os Srs. Ministros Ari Pargendler e Antônio de Pádua

Ribeiro.Votaram com o Sr. Ministro Carlos Alberto Menezes Direito os Srs. Mi-

nistros Nancy Andrighi e Castro Filho.

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ANEXO VIII

RECURSO ESPECIAL Nº 275.985 — SP

RECURSO ESPECIAL Nº 275.985 — SP (2000⁄0089891-0)RELATOR: MINISTRO SÁLVIO DE FIGUEIREDO TEIXEIRARECORRENTE: CECÍLIA ATTA KASSOUFADVOGADO: MÁRIO DE SANTI NETORECORRIDO: GEORGES KASSOUFADVOGADO: LUCIANO JOSÉ LENZI

EMENTADIREITOS INTERNACIONAL PRIVADO E CIVIL. PARTILHA DE

BENS. SEPARAÇÃO DE CASAL DOMICILIADO NO BRASIL. REGIME DA COMUNHÃO UNIVERSAL DE BENS. APLICABILIDADE DO DI-REITO BRASILEIRO VIGENTE NA DATA DA CELEBRAÇÃO DO CA-SAMENTO. COMUNICABILIDADE DE TODOS OS BENS PERSENTES E FUTUROS COM EXCEÇÃO DOS GRAVADOS COM INCOMUNICA-BILIDADE. BENS LOCALIZADOS NO BRASIL E NO LIBANO. BENS NO ESTRANGEIRO HERDADOS PELA MULHER DE PESSOA DE NA-CIONALIDADE LIBANESA DOMICILIADA NO BRASIL. APLICABILI-DADE DO DIREITO BRASILEIRO DAS SUCESSÕES. INEXISTÊNCIA DE GRAVAME FORMAL INSTITUÍDO PELO DE CUJUS. DIREITO DO VARÃO À MEAÇÃO DOS BENS HERDADOS PELA ESPOSA NO LIBA-NO. RECURSO DESACOLHIDO.

I — Tratando-se de casal domiciliado no Brasil, há que aplicar-se o direito brasileiro vigente na data da celebração do casamento, 11.7.1970, quanto ao regime de bens, nos termos do art. 7º-§ 4º da Lei de Introdução.

II — O regime de bens do casamento em questão é o da comunhão uni-versal de bens, com os contornos dados à época pela legislação nacional apli-cável, segundo a qual, nos termos do art. 262 do Código Civil, importava “a comunicação de todos os bens presentes e futuros dos cônjuges e suas dívidas passivas”, excetuando-se dessa universalidade, segundo o art. 263-II e XI do mesmo Código “os bens doados ou legados com a cláusula de incomunicabi-lidade e os subrogados em seu lugar”, bem como “os bens da herança neces-sária, a que se impuser a cláusula de incomunicabilidade”.

III — Tratando-se da sucessão de pessoa de nacionalidade libanesa domi-ciliada no Brasil, aplica-se à espécie o art. 10, caput, da Lei de Introdução, segundo o qual “a sucessão por morte ou por ausência obedece à lei em que

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FGV DIREITO RIO 459

era domiciliado o defunto ou desaparecido, qualquer que seja a natureza e a situação dos bens”.

IV — Não há incomunicabilidade dos bens da herança em tela, sendo certo que no Brasil os bens da herança somente comportam incomunicabili-dade quando expressa e formalmente constituído esse gravame pelo de cujus, nos termos dos arts. 1.676, 1.677 e 1.723 do Código Civil, complementados por dispositivos constantes da Lei de Registros Públicos.

V — Não há como afastar o direito do recorrido à meação incidente sobre os bens herdados de sua mãe pela recorrente, na constância do casamento sob o regime da comunhão universal de bens, os que se encontram no Brasil e os localizados no Líbano, não ocorrendo a ofensa ao art. 263, do Código Civil, apontada pela recorrente, uma vez inexistente a incomunicabilidade dos bens herdados pela recorrente no Líbano.

VII — O art.89-II, CPC, contém disposição aplicável à competência para o processamento do inventário e partilha, quando existentes bens localizados no Brasil e no estrangeiro,não conduzindo, todavia, à supressão do direito material garantido ao cônjuge pelo regime de comunhão universal de bens do casamento, especialmente porque não atingido esse regime na espécie por qualquer obstáculo da legislação sucessória aplicável.

VIII — Impõe-se a conclusão de que a partilha seja realizada sobre os bens do casal existentes no Brasil, sem desprezar, no entanto, o valor dos bens loca-lizados no Líbano, de maneira a operar a equalização das cotas patrimoniais, em obediência à legislação que rege a espécie, que não exclui da comunhão os bens localizados no Líbano e herdados pela recorrente, segundo as regras brasileiras de sucessão hereditária.

ACÓRDÃOVistos, relatados e discutidos estes autos, prosseguindo no julgamento,

acordam os Ministros da Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos votos e das notas taquigráfi cas a seguir, por maioria, não conhecer do recurso.Votaram com o Relator os Ministros Ruy Rosado de Aguiar e Fernando Gonçalves, vencidos os Ministros Barros Monteiro e Aldir Passarinho Junior.

Brasília, 17 de junho de 2003(data do julgamento).

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RECURSO ESPECIAL Nº 275.985 — SP (2000⁄0089891-0)RECTE: CECÍLIA ATTA KASSOUFRECDO: GEOGES KASSOUF

EXPOSIÇÃO

O SR. MINISTRO SÁLVIO DE FIGUEIREDO TEIXEIRA (RELA-TOR):

Após o trânsito em julgado da sentença que decretou a separação judicial da recorrente e do recorrido, foi iniciada a partilha dos bens do casal. No curso desse feito requereu o varão que fossem nele colacionados os bens exis-tentes no Líbano. Apreciando esse pedido, houve por bem a Juíza decidir:

“Apesar de requerer que a partilha dos bens situados no Líbano seja feita no Brasil, o próprio parecer juntado pelo autor reconvindo reconhece que a competência para tal partilha é do foro da situação dos bens, nos termos do artigo 89 do Código de Processo Civil. E, de fato, a competência para proceder à partilha de tais bens é da Justiça Libanesa. Portanto, neste feito, somente haverá a partilha dos bens situados no Brasil, que já foram arrolados nas primeiras declarações.

2. Não é necessário descrever os bens existentes no Líbano. Ambas as par-tes reconhecem a existência de bens situados no Líbano, e também reconhe-cem que a partilha dos bens — tanto os situados no Brasil como os situados no Líbano — deverá ser feita observando-se o regime matrimonial dos côn-juges, qual seja, o de comunhão universal de bens.

3. Apesar de se saber que a competência para à partilha dos bens situados no Líbano é da Justiça Libanesa, a questão é delicada.

Remeter-se a partilha dos bens do casal situados no Líbano à Justiça Li-banesa, pura e simplesmente, pode criar situação injusta, porquanto não há garantia de que a Justiça Libanesa aplique ao caso o direito brasileiro, reco-nhecendo o direito de meação do autor-reconvindo com relação aos bens lá existentes.

Caso não haja a aplicação do direito brasileiro, o autor será, evidente-mente, prejudicado, porquanto os bens existentes no Brasil serão partilhados entre ambas as partes, o que pode não ocorrer, necessariamente, com os bens existentes no Líbano.

Também não resolveria a situação proceder à partilha de todos os bens aqui no Brasil, porquanto corre-se o risco de não se ver a decisão aqui profe-rida quanto aos bens situados no Líbano aceita pela Justiça Libanesa.

A solução mais adequada ao caso é a de se proceder à partilha dos bens existentes no Líbano junto a Justiça Libanesa, suspendendo-se o andamento deste feito até que tal ocorra.

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Após a decisão proferida pela Justiça Libanesa, proceder-se-á, então, a par-tilha dos bens situados no Brasil, partilha esta que ocorrerá nestes autos.

Tal solução afi gura-se mais adequada ao caso porque, se a Justiça Libanesa não reconhecer o direito de meação do autor quanto aos bens existentes no Líbano, será possível compensá-lo nestes autos, atribuindo-lhe bens situados no Brasil. Caso a Justiça Libanesa reconheça o direito de meação do autor quanto aos bens situados no Líbano, a partilha dos bens situados no Brasil será feita sem a necessidade de eventual compensação de valores ao autor.

Assim, por ora, determino a suspensão do feito com relação à partilha de bens — não se declarando a suspensão do feito simplesmente porque há a ne-cessidade de se apreciar o pedido de alvará formulado pelo autor-reconvindo e poderá haver a necessidade de se apreciar eventuais outras questões que podem ser suscitadas pelas partes — até que as partes procedam à partilha dos bens situados no Líbano junto à Justiça Libanesa. Feita tal partilha, as partes deverão juntar aos autos cópias da decisão lá proferida, ocasião em que se retomará o curso do processo, com a partilha dos bens situados no Brasil.

Observo, por fi m, que o presente feito poderá retomar seu curso com a efetivação da partilha antes da efetivação da partilha dos bens situados no Líbano desde que alguma das partes, nos termos do artigo 337 do Código de Processo Civil, prove o teor e a vigência da lei libanesa, demonstrando se lei a libanesa prevê a aplicação da lei libanesa quanto ao regime de bens, ou prevê a aplicação da lei brasileira quanto ao regime de bens”.

Contra essa decisão manifestou a ora recorrente agravo de instrumento, pleiteando “que o inventário judicial dos bens do casal separado prossiga de imediato, somente com os bens localizados no Brasil, sem que se leve àqueles autos quaisquer bens ou direitos do exterior ou mesmo legislação estrangeira, excluindo-se, também, a possibilidade da compensação determinada na r. decisão agravada”.

O Tribunal de Justiça de São Paulo negou provimento ao recurso, lançan-do acórdão assim ementado:

“Separação judicial — Partilha de bens — Localização deles no País e no Líbano — Pretensão da mulher de que sejam feitas duas partilhas — Inad-missibilidade — Regime de bens que se submete à lei nacional brasileira — Necessidade de serem os bens recebidos no Líbano trazidos à partilha no Brasil — Suspensão do processo ordenada para que previamente sejam divididos os bens do Líbano — Ordem adequada em face da situação no momento — Agravo não provido”.

Do voto condutor desse julgado, destaco:“O art. 263 do Código Civil estabelece as exceções para inclusão de bens

na comunhão formada em casamento realizado no regime supra indicado.

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Entre elas não está a hipótese de bem recebido por herança em país que não admite a comunhão e não é razoável aplicação analógica do disposto nos in-cisos II e XI, porque não há semelhança entre a herança no estrangeiro e bens aos quais, por alguma razão, o doador ou autor da herança impôs restrição.

Os bens herdados no Líbano, portanto, integram a comunhão perante a lei brasileira e devem ser trazidos à partilha pelo cônjuge que os receber. Contudo, a agravante exibe comportamento esquivo, pretendendo efetuar partilha dos bens situados no Brasil e não esclarecendo como procederá em relação aos outros. Ela argumenta com a impossibilidade de realizar aqui in-ventário de bens situados no Líbano e não demonstra a menor intenção de, depois de receber os bens naquele País, trazê-los para divisão. Sendo assim, o procedimento da digna magistrada, ao determinar a suspensão do processo até que haja a atribuição de bens no Líbano, se revela adequado para o fi m de fazer prevalecer a efi cácia da lei brasileira. Se fi nda a partilha de bens brasilei-ros com entrega da metade deles a cada um dos interessados, não haverá mais como o juiz nacional fazer ser cumprida a regra de que o domicílio do casal é que determina o regime de bens; o juiz, no limite de suas atribuições, deve zelar pelo cumprimento de nossas leis.

É claro que a partilha dos bens aqui situados poderia ser completada com a entrega dos quinhões às partes, desde que fosse exigida da agravante garan-tia adequada de trazer futuramente para sobrepartilha os bens situados no Líbano. Todavia, esse procedimento depende de consentimento de ambas as partes ou de determinação judicial resultante de requerimento de uma delas. De ofício, a digna magistrada não poderia fazer essa determinação. Assim, a ordem para suspensão do processo se revelou a mais conveniente no momen-to, porque, ainda que ela prolongue outras disputas entre os interessados, é o único meio efi ciente agora de fazer prevalecer o comando da lei nacional.

Não se alegue que a nobre magistrada ordenou a suspensão até que sejam prestados esclarecimentos ou seja feita a partilha no Líbano, quando esta de-cisão preconiza que a agravante traga à partilha os bens que receber naquele País, porque o resultado útil dessas providências é o mesmo. Se a partilha no Líbano fosse possível com aceitação pela lei daquele País da comunhão de bens aqui estabelecida, a paralisação discutida seria desnecessária.

Se a agravante terá de trazer os bens do Líbano para a partilha, não se pode afi rmar que a Justiça brasileira está a proferir decisão no vácuo como se fez às fl s. 95”.

Os embargos declaratórios apresentados pela então agravante restaram parcialmente acolhidos “para o fi m de declarar a não incidência no caso das regras previstas pelo art. 265 mencionado”.

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Adveio o recurso especial interposto pela mulher, fundamentado em vio-lação dos arts. 89-II e 265, CPC e 263, II e IX, do Código Civil, bem como em alegação de dissídio jurisprudencial.

A cautelar ajuizada pela recorrente (MC 2.826-SP), com o fi m de empres-tar a esse recurso efeito suspensivo, teve seu processamento por mim indefe-rido, em decisão monocrática (DJ 23.6.2000).

Ao contra-arrazoar, enfatizou o recorrido:

“Assim, em levando às últimas conseqüências a singela e infundada ma-nifestação externada pela recorrente — alijada do arcabouço legislativo per-tinente, como demonstrado — ter-se-ia de admitir a absurda hipótese de suprimir-se do recorrido o seu direito de meação, subjugando-a às diretrizes preconizadas pela legislação libanesa, que não contempla o instituto da co-munhão universal de bens. Como corolário, resta óbvio que eventual decisão prolatada nos termos da irresignação recursal, será o mesmo que proclamar a inefi cácia do regime de comunhão universal, subtraindo do recorrido, por conseguinte, a obtenção plena de um direito subjetivo material, expressa-mente resguardado pelo ordenamento jurídico pátrio”.

Admitido o recurso na origem, o parecer da Subprocuradoria Geral da República é pelo seu conhecimento e provimento.

É o relatório.

RECURSO ESPECIAL Nº 275.985 — SP (2000⁄0089891-0)

VOTO

O SR. MINISTRO SÁLVIO DE FIGUEIREDO TEIXEIRA (RELA-TOR):

1. Trouxe o recorrido à consideração da Turma parecer cujas conclusões, além de renovadas em sustentação oral, foram sumariadas nas contra-razões, nestes termos:

“Agindo assim, corretamente dar-se-á conta o investigador de que os bens que estão no exterior (qualifi cados e regulados pela lei da situação — lex rei sitae) ainda que relacionados no patrimônio do casal, em ação que tramita no Brasil, somente poderão ser objeto de partilha no foro da respectiva situação, por força do art. 89 do CPC.

Entretanto, não se pode confundir a competência processual do juiz do local da situação do bem imóvel somente para processar a partilha, com a competência do juiz brasileiro de (1) conhecer da ação de separação judicial e decidir acerca do regime de bens do casal, o que deve ser feito à luz da lei do domicílio — neste caso é a do próprio juiz do foro (direito brasileiro); (2) (re)

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conhecer, de acordo com os princípios da unidade e imutabilidade do regime de bens, a existência, no patrimônio comum do casal, de bens situados no Brasil e no Líbano; (3) mandar relacionar esses bens, independentemente do lugar em que estejam; (4) partilhar o patrimônio comum do casal, tendo pre-sente que, da universalidade dos bens, aqui devem ser partilhados os imóveis situados no Brasil, pois aqueles situados no Líbano devem ser submetidos ao juiz daquele país.

Se isso não for feito, uma das partes verá solapado o seu dir eito, qual seja, de ter corretamente arrolado o patrimônio comum do casal.

Outro aspecto que se sobressai de forma preocupante é o fato de que não se conhecendo no processo os imóveis que existem no Líbano, a cônjuge Ce-cília terá vantagem na partilha, na medida em que receberá a metade do que está no Brasil e a totalidade do que está no exterior. Isso porque, como já se disse, no Líbano o regime de bens é sempre o da separação total”.

Assim colocada a questão, tem-se que o caso em exame expõe a necessida-de de vários níveis de refl exão, notadamente no âmbito do Direito Interna-cional Privado, demandando cuidadoso estudo.

Haroldo Valladdão, em “Direito Internacional Privado Brasileiro e Regi-me de Bens do Casamento”, São Paulo, 1958, pág. 32, ao analisar em parecer a viabilidade do recurso extraordinário interposto em ação de petição de he-rança ajuizada pelos irmãos do falecido contra a sua viúva, na qual contesta-vam o direito desta à meação e invocavam o direito do País dos esposos, Itá-lia, no concernente ao regime de bens do casamento do “de cujus” com a ré, realizado no Brasil, ao confrontar as normas de Direito Internacional Privado brasileiro, relativas ao regime de bens do casamento e à sucessão hereditária, questões que também se apresentam no caso ora em debate, assinalou:

“A clássica disciplina do Confl ito de Leis é — e assim todos os ramos do direito — uma ciência de distinções e subdistinções, em que os princípios, as regras, as exceções dependem da análise penetrante, de um exame, acurado, de cada relação jurídica, de sua natureza e espécie.

Certo, esse caráter de objetividade do Direito Internacional Privado torna, às vezes, árdua a solução dos seus problemas, a ponto de um ou outro jurista fi car apenas em generalidades e repetir, sem qualquer análise, frases feitas, com critérios vagos e universais, mas que analisadas, com rigor científi co, são completamente ôcas.

Neste sentido já escrevemos: ‘Doutra parte o direito internacional privado engloba um conjunto vasto e complexo de relações jurídicas, muito mais amplo do que o próprio direito civil. Não pode subordiná-las todas a dois ou três princípios fundamentais e intransponíveis. Chegaria com extremo rigor lógico a conseqüências intoleráveis. Tem de discipliná-las na maneira tradicional da ciência jurídica, através de numerosos conceitos, regras, exce-

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ções, sempre inspirados nos mais puros ideais de justiça e de eqüidade para o indivíduo e para os povos. Conseqüentemente e na verdadeira tradição jurídica de Savigny, desenvolvida e aperfeiçoada por Teixeira de Freitas, não nos parece ser possível adotar uma concepção unitária e genérica de ‘estatuto pessoal’ ou ‘lei pessoal’, abrangendo todo o amplíssimo campo das relações jurídicas referentes ao estado, capacidade, família e sucessão, que compreen-dem, nos Códigos, perto de mil artigos; e muito menos, discipliná-lo por um só e rígido critério, o da lei nacional ou o da lei do domicílio’ (Lei Reguladora do Estatuto Pessoal, 1953, Revista Jurídica (Fac. de Direito), vol. 11⁄251, Revista Forense, volume CLIII, 1934,pág. 513)”.

E, mais adiante, adentrando os temas específi cos do parecer em questão, aduziu o saudoso internacionalista:

“Impõe-se, assim, desde logo, delimitar as questões de Direito Internacio-nal Privado em discussão, e, a seguir, dar-lhes a dimensão espacial e temporal.

Há duas questões em causa nestes autos.A primeira, de Direito Internacional Privado de regime de bens do ca-

samento, diz respeito à lei reguladora do regime de bens do casamento de D.A.P.A. e de S.A.

A segunda, de Direito Internacional Privado da sucessão, concerne à lei reguladora da sucessão legítima e testamentária de S.A.

Eis as duas questões a serem resolvidas pelo Egrégio Tribunal.Não tem, absolutamente, o Tribunal, de decidir outros problemas: qual a

lei reguladora do estado, nem qual a lei reguladora da capacidade em geral ou em especial, ou muito menos qual a lei reguladora do estatuto pessoal ‘in genere’, etc..., etc...

A primeira, a questão da lei reguladora do regime de bens do casamento, refere-se a um casamento realizado, no Brasil, em 1906, por italianos domi-ciliados no Brasil.

Há de ser, pois, regida pelo Direito Internacional Privado Brasileiro, em vigor em 1906, sobre regime de bens do casamento.

É uma questão do direito positivo brasileiro vigorante em 1906.E não pelo Direito Internacional Privado doutros países ou pela opinião

ou pela doutrina de autores estrangeiros por mais ilustres e respeitáveis que sejam seus autores.

E não pelo Direito Internacional Privado brasileiro posterior a 1906, pelo Código de 1917, ou pelos princípios ou pelas teorias que autores brasileiros, por mais eminentes que fossem, preferissem seguir na matéria.

A segunda, questão da lei reguladora da sucessão legítima ou testamentária, versa sobre sucessão de italiano aberta no Brasil, em 8 de dezembro de 1938.

Há, pois, de ser decidida pelo Direito Internacional Privado brasileiro, em vigor a 8 de dezembro de 1938, sobre sucessões”.

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2. No caso em exame as questões relevantes concernem aos mesmos te-mas, a saber: a defi nição do regime de bens e as regras aplicáveis à sucessão da mãe da recorrente.

Destarte, na linha exposta no parecer de Haroldo Valladão, quanto ao regime de bens, nos termos do art. 7º-§ 4º da Lei de Introdução, tratando-se de casal domiciliado no Brasil, há que aplicar-se o direito brasileiro vigente na data da celebração do casamento, 11.7.1970.

Com efeito, dispõe a referida norma:

“§ 4º — O regime de bens legal, ou convencional, obedece à lei do país em que tiverem os nubentes domicílio, e, se este for diverso, à do primeiro domicílio conjugal”.

Esse ponto não apresenta maiores desafi os, estando de acordo as partes em que o regime do seu casamento é o da comunhão universal de bens, com os contornos dados à época pela legislação nacional aplicável, segundo a qual, nos termos do art. 262 do Código Civil, “importa a comunicação de todos os bens presentes e futuros dos cônjuges e suas dívidas passivas”, excetuando-se dessa universalidade, segundo o art. 263-II e XI do mesmo Código “os bens doados ou legados com a cláusula de incomunicabilidade e os subrogados em seu lugar”, bem como “os bens da herança necessária, a que se impuser a cláusula de incomunicabilidade”.

3. Pelo mesmo raciocínio, a sucessão da mãe da recorrente estará regida pelas regras do Direito Internacional Privado brasileiro da sucessão vigentes à data da abertura da sucessão, 12.6.1993.

Tratando-se da sucessão de pessoa de nacionalidade libanesa domiciliada no Brasil, aplica-se à espécie, portanto, o art. 10, caput, da Lei de Introdu-ção, segundo o qual

“a sucessão por morte ou por ausência obedece à lei em que era domiciliado o defunto ou desaparecido, qualquer que seja a natureza e a situação dos bens”.

A propósito, colhe-se do magistério do saudoso e admirável Amílcar de Castro (“Direito Internacional Privado”, 3ª edição, Forense, 1977, nº 234, pág. 432):

“Pelas regras do nosso atual sistema de Direito Internacional Privado, o direito em vigor no último domicílio do morto, por ocasião do falecimento, deve ser contemplado para apreciar: a determinação das pessoas sucessíveis e a ordem de vocação hereditária; a quota dos herdeiros necessários; as restri-ções e cláusulas das legítimas; as causas de deserdação, e as colações”.

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Na mesma direção, Osíris Rocha (“Curso de Direito Internacional Priva-do”, 4ª edição, Forense, 1986, nº 132, pág. 145):

“A Lei de Introdução ao nosso Código Civil estabelece, em seu art. 10, que ‘a sucessão por morte ou por ausência obedece a lei do país em que era domiciliado o defunto ou o desaparecido, qualquer que seja a natureza e a situação dos bens’. O texto revela, claramente, que o legislador brasileiro de 1942 se fi liou à corrente italiana, que pretende, conforme se viu, estabelecer estatuto único”.

A incomunicabilidade dos bens da herança em tela, portanto, há que ser apurada em consonância com o direito brasileiro das sucessões, sendo certo que no Brasil os bens da herança somente comportam incomunicabilidade quando expressa e formalmente constituído esse gravame pelo de cujus, nos termos dos arts. 1.676, 1.677 e 1.723 do Código Civil, complementados por dispositivos constantes da Lei de Registros Públicos.

Assim, não há como afastar o direito do recorrido à meação incidente so-bre os bens herdados de sua mãe pela recorrente, na constância do casamento sob o regime da comunhão universal de bens, os que se encontram no Brasil e os localizados no Líbano.

Em conseqüência, não ocorre a indigitada ofensa ao art. 263, do Código Civil, uma vez que não existe a incomunicabilidade dos bens herdados pela recorrente no Líbano.

Em conclusão, quer sob o prisma do Direito Internacional Privado, quer sob o ângulo do nosso direito material, o acórdão paulista, no ponto, se ajus-ta ao nosso sistema jurídico.

4. No que diz respeito as normas processuais, em primeiro lugar a alegada violação do art. 265, CPC, não propicia o conhecimento do apelo.

O Colegiado de segundo grau afi rmou que a suspensão do processo não foi alicerçada nesse dispositivo, o qual, como visto, foi tido na decisão dos embargos de declaração por inaplicável à espécie. A argumentação expendida pela recorrente, de igual forma, assenta-se sobre a inaplicabilidade dessa nor-ma ao caso em exame, de sorte que o fundamento do acórdão para deferir a suspensão não resta abalado por essa alegação.

5. No que concerne ao art. 89-II do Código de Processo Civil, colhe-se de sua redação:

“Art. 89. Compete à autoridade judiciária brasileira, com exclusão de qualquer outra:

...................................................................................II — proceder a inventário e partilha de bens, situados no Brasil, ainda

que o autor da herança seja estrangeiro e tenha residido fora do território nacional”.

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A interpretação dessa norma foi objeto de exame por esta Quarta Turma no julgamento do Resp 37.356-5⁄SP (DJ 10.11.97), sob a relatoria do Minis-tro Barros Monteiro, cujo acórdão recebeu esta ementa:

“Inventário. Sobrepartilha. Imóvel sito no exterior que escapa à jurisdição brasileira.

O Juízo do inventário e partilha não deve, no Brasil, cogitar de imóveis sitos no estrangeiro. Aplicação do art. 89, inc. II, do CPC.

Recurso especial não conhecido”.

Naquele caso, foi indeferido pelo Juízo o pedido do inventariante de so-brepartilha de imóvel situado na Argentina, motivando a interposição de agravo, ao qual o Tribunal de Justiça de São Paulo negou provimento. Esta Quarta Turma, invocando o preceito do art. 89-II, CPC, afastou a pretensão recursal, que apontava a violação dos arts. 1.779, CC e 1.040 e 1.041, CPC.

Neste sentido já se havia manifestado também o Supremo Tribunal Fede-ral ao julgar, na vigência do anterior regime constitucional, o RE 99.230-RS (DJ 29.6.84), de que foi relator o Ministro Rafael Mayer, assim ementado:

“Partilha de bens. Bens situados no estrangeiro. Pluralidade dos juízos sucessórios. Art. 89-II do CPC.

Partilhados os bens deixados em herança no estrangeiro, segundo a lei sucessória da situação, descabe à Justiça brasileira computá-lo na quota here-ditária a ser partilhada, no país, em detrimento do princípio da pluralidade dos juízos sucessórios, consagrada pelo art. 89-II do CPC.

Recurso extraordinário conhecido e provido em parte”.

Essa orientação é também consignada em sede doutrinária por Celso Agrícola Barbi (“Comentários ao Código de Processo Civil”, vol. I, Forense, nº 494, pág. 400), nestes termos:

“O interesse do legislador se limita aos bens aqui situados, de modo que se houver outros, situados fora do país, o inventário relativo a esses, escapa à jurisdição brasileira. E, naturalmente, serão inventariados e partilhados em separado, em outro país”.

Em idêntico sentido, Edson Prata, de saudosa memória, ao comentar a norma (“Comentários ao Código de Processo Civil”, vol. II, Forense, nº 21, pág. 316):

“Os bens inventariáveis e partilháveis obrigatoriamente no Brasil, como frisamos, são todos aqueles que aqui estiverem: móveis, imóveis, semoventes. Não aqueles localizados no exterior, objeto de inventário no respectivo país”.

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Entretanto, é bem de ver-se que essa norma, inserida no estatuto pro-cessual, contém disposição aplicável à competência para o processamento do inventário e partilha, quando existentes bens localizados no Brasil e no estrangeiro.

A interpretação da norma em questão, de índole processual, não pode, todavia, conduzir à supressão do direito material garantido ao cônjuge pelo regime de comunhão universal de bens do casamento, especialmente porque não atingido esse regime na espécie por qualquer obstáculo da legislação su-cessória aplicável.

Não fosse assim, verbi gratia, um casal de brasileiros aqui domiciliados e casados sob o regime da comunhão de bens, poderia não sujeitar-se a esse regime em relação a bens porventura adquiridos por um dos cônjuges em outro (s) País (es) em que adotado, p. ex., o regime da separação.

Destarte, a interpretação teleológica do dispositivo legal em apreço impõe a conclusão de que a partilha seja realizada sobre os bens do casal existentes no Brasil, sem desprezar, no entanto, o valor dos bens localizados no Líbano, de maneira a operar a equalização d as cotas patrimoniais, em obediência à legislação que rege a espécie, que não exclui da comunhão os bens localizados no Líbano e herdados pela recorrente, segundo as regras brasileiras de suces-são hereditária.

Daí a lição de Pontes de Miranda:

“Se há bens situados no Brasil e bens situados no estrangeiro onde a lei estrangeira tem de ser atendida, só os bens situados no Brasil é que são objeto do inventário e partilha no juízo brasileiro.(...) O juízo de inventário e parti-lha não deve, no Brasil, cogitar de imóveis sitos no estrangeiro, mas se lhe é apresentada partilha feita no estrangeiro, sem inclusão de bens sitos no Brasil, pode ele examinar o que, no Brasil, melhor pode fazer para se respeitar a he-rança necessária ou apenas legítima e a sucessão testamentária”(“Comentários ao CPC, vol. II, Com. ao art. 89-II).

No caso concreto, essa foi a solução adotada pelo acórdão recorrido, que, ao invés de pretender partilhar no Brasil os bens localizados no Líbano, en-tendeu por bem suspender o processo de partilha para aguardar a solução do inventário naquele País, a fi m de compensar, no momento da divisão dos bens localizados no território nacional, a parcela relativa à meação do recor-rido nos bens lá existentes.

Assim, não se pode dizer, em conclusão, que o julgado tenha violado o art. 89-II, CPC, uma vez que não dispôs sobre a partilha dos bens localizados noutro País.

6. Da mesma forma não se confi gura a divergência jurisprudencial apon-tada, com o Resp 37.356-SP, bem como com o RE 99.230-RS.

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7. A compensação a que se refere o julgado, de outra parte, sem tocar nos bens localizados no estrangeiro, a par de não violar a regra processual já mencionada, encontra respaldo na legislação nacional que rege o regime da comunhão universal de bens e a sucessão hereditária, aplicáveis ao caso con-creto por força do que estabelece a Lei de Introdução ao Código Civil. Essa solução atende, ademais, ao comando do art. 75 do Código Civil, segundo o qual “a todo o direito corresponde uma ação que o assegura”, na medida em que contempla o direito assegurado pela legislação civil ao cônjuge, no pro-cesso destinado à fi xação dos limites desse direito, como é o caso da partilha em relação ao patrimônio do casal que se separa, sem dispor sobre os bens localizados fora do território nacional, mas levando em conta a sua existência.

Essa orientação, aliás, harmoniza-se com a natureza peculiar do Direito Internacional Privado, descrita por Clóvis Bevilácqua (“Direito Internacio-nal Privado”, 3ª edição, Rio de Janeiro, Freitas Bastos, 1938, cap. III, § 11, 7º, pág. 82),com estas palavras:

“Esta concepção conforma-se com a fórmula proposta por Pillet, e que ele julga mais expressiva da comunhão de direito de Savigny: ‘o direito inter-nacional tem por fi m tornar a aplicação do direito tão independente quanto possível da diferença dos sistemas jurídicos das nações’.

Como a sociedade internacional não tem leis nem tribunais seus, as leis que nos Estados se prepararem visando interesses internacionais de ordem privada, devem inspirar-se nos princípios superiores de direito, como toda lei, e nos interesses gerais da humanidade, porque no direito internacional privado os interesses, que estão em causa, são os dos indivíduos e não os dos Estados, e o ponto de vista desse direito deve ser individual, humano, univer-sal, e não o da utilidade local ou nacional”.

8. Pelo exposto, não conheço do recurso.

RECURSO ESPECIAL Nº 275.985 — SP (2000⁄0089891-0)

VOTO-VISTA (VENCIDO)

O SR. MINISTRO BARROS MONTEIRO:1 — Transitada em julgado a decisão que decretara a separação judicial,

a ré⁄reconvinte, Cecília Atta Kassouf, requereu o inventário e a partilha dos bens da dissolvida sociedade conjugal. Apresentadas as primeiras declarações, o autor⁄reconvindo, Georges Kassouf, insurgiu-se contra o não-arrolamento dos bens localizados no Líbano, requerendo, por isso, a retifi cação das pri-meiras declarações. Apreciando o pedido, a Mma. Juíza de Direito decidiu nestes termos:

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“1. Apesar de requerer a partilha dos bens situados no Líbano seja feita no Brasil, o próprio parecer juntado pelo autor⁄reconvindo reconhece que a compe-tência para tal partilha é do foro da situação dos bens, nos termos do artigo 89 do Código de Processo Civil. E, de fato, a competência para proceder a partilha de tais bens é da Justiça Libanesa. Portanto, neste feito, somente haverá a partilha dos bens situados no Brasil, que já foram arrolados nas primeiras declarações.

2. Não é necessário descrever os bens existentes no Líbano. Ambas as partes reconhecem a existência de bens situados no Líbano, e também reconhecem que a partilha dos bens — tanto os situados no Brasil como os situados no Líbano — deverá ser feita observando-se o regime matrimonial dos cônjuges, qual seja, o de comunhão universal de bens.

3. Apesar de se saber que a competência para a partilha dos bens situados no Líbano é da Justiça Libanesa, a questão é delicada.

Remeter-se a partilha dos bens do casal situados no Líbano à Justiça Libanesa, pura e simplesmente, pode criar situação injusta, porquanto não há garantia de que a Justiça Libanesa aplique ao caso o direito brasileiro, reconhecendo o direito de meação do autor-reconvindo com relação aos bens lá existentes.

Caso não haja a aplicação do direito brasileiro, o autor será, evidentemente, prejudicado, porquanto os bens existentes no Brasil serão partilhados entre am-bas as partes, o que pode não ocorrer, necessariamente, com os bens existentes no Líbano.

Também não resolveria a situação proceder a partilha de todos os bens aqui no Brasil, porquanto corre-se o risco de não se ver a decisão aqui proferida quanto aos bens situados no Líbano aceita pela Justiça Libanesa.

A solução mais adequada ao caso é a de se proceder a partilha dos bens existen-tes no Líbano junto a Justiça Libanesa, suspendendo-se o andamento deste feito até que tal ocorra.

Após a decisão proferida pela Justiça Libanesa, proceder-se-á, então, a partilha dos bens situados no Brasil, partilha esta que ocorrerá nestes autos.

Tal solução afi gura-se mais adequada ao caso porque, se a Justiça Libanesa não reconhecer o direito de meação do autor quanto aos bens existentes no Líbano, será possível compensá-lo nestes autos, atribuindo-lhe bens situados no Brasil. Caso a Justiça Libanesa reconheça o direito de meação do autor quanto aos bens situados no Líbano, a partilha dos bens situados no Brasil será feita sem a neces-sidade de eventual compensação de valores ao autor.

Assim, por ora, determino a suspensão do feito com relação à partilha de bens — não se declarando a suspensão do feito simplesmente porque há a necessidade de se apreciar o pedido de alvará formulado pelo autor-reconvindo e poderá haver a necessidade de se apreciar eventuais outras questões que podem ser suscitadas pelas partes — até que as partes procedam à partilha dos bens situados no Líbano junto à Justiça Libanesa. Feita tal partilha, as partes deverão juntar aos autos

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cópias da decisão lá proferida, ocasião em que se retomará o curso do processo, com a partilha dos bens situados no Brasil.

Observo, por fi m, que o presente feito poderá retomar seu curso com a efeti-vação da partilha antes da efetivação da partilha dos bens situados no Líbano desde que alguma das partes, nos termos do artigo 337 do Código de Processo Civil, prove o teor e a vigência da lei libanesa, demonstrando se lei libanesa prevê a aplicação da lei libanesa quanto ao regime de bens, ou prevê a aplicação da lei brasileira ao regime de bens.” (Fls. 100⁄102).

O Tribunal de Justiça negou provimento ao agravo interposto contra o referido decisório, em v. Acórdão que registra a seguinte ementa:

“Separação judicial — Partilha de bens — Localização deles no país e no Lí-bano — Pretensão da mulher de que sejam feitas duas partilhas — Inadmissibi-lidade — Regime de bens que se submete à lei nacional brasileira — Necessidade de serem os bens recebidos no Líbano trazidos à partilha no Brasil — Suspensão do processo ordenada para que previamente sejam divididos os bens do Líbano — Ordem adequada em face da situação no momento — Agravo não provido.” (Fl. 153).

Colhe-se do voto condutor do julgado:“Os interessados foram casados pelo regime de comunhão universal de bens.

Iniciada a partilha em separação judicial, verifi cou-se existirem bens situados no Brasil e direitos da mulher à herança de sua mãe, relativos a bens situados no Líbano. Como não houve esclarecimento sobre as disposições da lei libanesa a respeito do regime de bens, a nobre magistrada suspendeu o processo até que eles sejam prestados ou haja informação sobre a atribuição dos bens no inventário da mãe da mulher, para que haja eventual compensação na partilha a ser completa-da no Brasil. A mulher deseja o prosseguimento do processo, argumentando que a Justiça brasileira não pode dispor sobre os bens situados no Líbano. O varão, por sua vez, afi rma que a lei libanesa somente admite o regime de completa separação de bens e que a herança recebida pela mulher naquele país deve ser trazida a inventário no Brasil.

São respeitáveis os precedentes do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça referidos pela agravante, bem como a decisão proferida pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro no inventário da mãe dela. Sucede que em todas essas decisões não se tratou de aplicação do disposto no § 4º, do art. 6º da Lei de Introdução ao Código Civil, segundo o qual o regime de bens, legal ou convencional, obedece à lei do país em que tiverem os nubentes domicílios, e, se este for diverso, à do primeiro domicílio conjugal. Os precedentes referidos trataram apenas de heranças e inventários e não se está pretendendo substituir o juiz libanês na atribuição de bens a ser feita em inventário que necessariamente lá será realizado. Neste caso, cuida-se apenas de partilha de bens que se realiza

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em processo de separação judicial de casal que se uniu pelo regime de comunhão universal de bens.

O art. 263 do Código Civil estabelece as exceções para inclusão de bens na comunhão formada em casamento realizado no regime supra indicado. Entre elas não está a hipótese de bem recebido por herança em país que não admite a comu-nhão e não é razoável aplicação analógica do disposto nos incisos II e XI, porque não há semelhança entre a herança no estrangeiro e bens aos quais, por alguma razão, o doador ou autor da herança impôs restrição.

Os bens herdados no Líbano, porquanto, integram a comunhão perante a lei brasileira e devem ser trazidos à partilha pelo cônjuge que os receber. Contudo, a agravante exibe comportamento esquivo, pretendendo efetuar partilha dos bens situados no Brasil e não esclarecendo como procederá em relação aos outros. Ela argumenta com a impossibilidade de realizar aqui inventário de bens situados no Líbano e não demonstra a menor intenção de, depois de receber os bens naquele país, trazê-los para divisão. Sendo assim, o procedimento da digna magistrada, ao determinar a suspensão do processo até que haja a atribuição de bens no Líbano, se revela adequado para o fi m de fazer prevalecer a efi cácia da lei brasileira. Se fi nda a partilha de bens brasileiros com entrega da metade deles a cada um dos interessados, não haverá mais como o juiz nacional fazer ser cumprida a regra de que o domicílio do casal é que determina o regime de bens; o juiz, no limite de suas atribuições, deve zelar pelo cumprimento de nossas leis.

É claro que a partilha dos bens aqui situados poderia ser completada com a entrega dos quinhões às partes, desde que fosse exigida da agravante garantia adequada de trazer futuramente para sobrepartilha os bens situados no Líbano. Todavia, esse procedimento depende de consentimento de ambas as partes ou de determinação judicial resultante de requerimento de uma delas. De ofício, a dig-na magistrada não poderia fazer essa determinação. Assim, a ordem para suspen-são do processo se revelou a mais conveniente no momento, porque, ainda que ela prolongue outras disputas entre os interessados, é o único meio efi ciente agora de fazer prevalecer o comando da lei nacional.

Não se alegue que a nobre magistrada ordenou a suspensão até que sejam prestados esclarecimentos ou seja feita a partilha no Líbano, quando esta decisão preconiza que a agravante traga à partilha os bens que receber naquele país, por-que o resultado útil dessas providências é o mesmo. Se a partilha no Líbano fosse possível com aceitação pela lei daquele país da comunhão de bens aqui estabeleci-da, a paralisação discutida seria desnecessária.

Se a agravante terá de trazer os bens do Líbano para a partilha, não se pode afi rma que a Justiça brasileira está a proferir decisão no vácuo como se fez às fl s. 95. A propósito do cumprimento dessa obrigação, podem ser aplicadas por analo-gia as regras do Código de Processo Civil sobre colações em inventários (1.014 a 1.016)” (fl s. 154⁄156).

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Acolhidos, em parte, os aclaratórios para o fi m de declarar a não-inci-dência das regras previstas no art. 265 da lei processual civil, a ré⁄reconvinte manifestou recurso especial com espeque nas alíneas “a” e “c” do admissor constitucional, apontando contrariedade aos arts. 89, II, e 265 do CPC; 263, II e IX, do Código Civil, além de dissidência interpretativa. Pleiteou que se cesse a suspensão da partilha, determinando-se que os bens situados no exte-rior não sejam objeto de compensação ou de partilha.

Oferecidas as contra-razões, o apelo extremo foi admitido na origem. Pro-nunciou-se o Ministério Público Federal pelo conhecimento e provimento. Ao fi nal, juntaram-se os documentos de fl s. 257⁄262.

Na assentada anterior, o Sr. Ministro Relator não conheceu do REsp.2. A Corte Estadual manteve a decisão proferida pela Mma. Juíza de Di-

reito que ordenou a suspensão da partilha até que se ultime o partilhamento dos bens situados no Líbano, de tal modo que, se porventura a Justiça libane-sa não reconhecer o direito à meação do autor⁄reconvindo tocante aos bens lá existentes, possível será proceder-se aqui oportunamente à devida compensa-ção para o fi m de igualar-se os quinhões. Enfatizando o disposto no art. 7º, parágrafo 4º, da LICC, o julgado recorrido considerou que “os bens herdados no Líbano, portanto, integram a comunhão perante a lei brasileira e devem ser trazidos à partilha pelo cônjuge que o receber” (fl . 155).

Penso, entretanto, que, ao assim proclamar, o decisum ora combatido não somente malferiu a regra do art. 89, II, c.c. o art. 1.121, parágrafo único, do Código de Processo Civil, como ainda dissentiu da jurisprudência emanada do Sumo Pretório e deste Superior Tribunal de Justiça.

Destaque-se desde logo que os arts. 88⁄90 do CPC, no dizer do Prof. J. I. Botelho de Mesquita, reproduzindo o pensamento de Liebman, não tratam propriamente de competência internacional e sim de limites da jurisdição brasileira perante a de outros Estados soberanos (in “Comentários ao Código de Processo Civil”, Ovídio A. Baptista da Silva, vol. 1, págs. 407⁄408). Para o Prof. Botelho de Mesquita, invocado na mesma obra citada, “sobre as causas não incluídas na chamada competência internacional do Brasil, o que faltará a seus magistrados não será competência e sim jurisdição” (pág. 408).

Nesses termos, existindo patrimônio imobiliário no Líbano, não tem ju-risdição o Juiz brasileiro para proceder ao inventário e partilha relativos a tais bens, a contrario sensu do que reza o indigitado art. 89, II, do CPC, in verbis:

“Compete à autoridade brasileira, com exclusão de qualquer outra:II — proceder a inventário e partilha de bens, situados no Brasil, ainda que

o autor da herança seja estrangeiro e tenha residido fora do território nacional”.

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Em face do estatuído na referida norma, havendo bens do casal localizados no Brasil, de um lado, e no Líbano, de outro, tem-se no caso o que a Suprema Corte denominou a pluralidade de juízos sucessórios:

“Partilha de bens. Bens situados no estrangeiro. Pluralidade dos juízos suces-sórios. Art. 89, II do CPC.

Partilhados os bens deixados em herança no estrangeiro, segundo a lei suces-sória da situação, descabe à Justiça Brasileira computá-los na quota hereditária a ser partilhada, no País, em detrimento do princípio da pluralidade dos juízos sucessórios, consagrada pelo art. 89, II do CPC” (RE n.º 99.230-RS, Relator Ministro Rafael Mayer, in RTJ vol. 110, pág. 750).

Essa orientação restou perfi lhada em Acórdão oriundo desta Turma, de que fui Relator. Refi ro-me ao Resp n.º 37.356-SP, cuja ementa assinala:

“INVENTÁRIO. SOBREPARTILHA. IMÓVEL SITO NO EXTERIOR QUE ESCAPA À JURISDIÇÃO BRASILEIRA.

O juízo do inventário e partilha não deve, no Brasil, cogitar de imóveis sitos no estrangeiro. Aplicação do art. 89, inc. II, do CPC”.

As considerações por mim expendidas no mencionado precedente encon-tram pertinência na espécie ora em exame, in verbis:

“Há que se atender no caso ao princípio da pluralidade dos juízos sucessórios, consagrado no referido art. 89, inc. II, do CPC, em consonância, aliás, com o que já teve oportunidade de decidir a Suprema Corte (cfr. RTJ, vol. 110, págs. 750-762, relator Ministro Rafael Mayer).

Segundo magistério do insigne Pontes de Miranda, ‘se há bens situados no Brasil e bens situados no estrangeiro onde a lei estrangeira tem de ser atendida, só os bens situados no Brasil é que são objeto do inventário e partilha no juízo brasileiro’ (Comentários ao Código de Processo Civil, tomo II, 3ª ed., atualização legislativa do Prof. Sérgio Bermudes, pág. 226). Conclui o mestre citado que o juízo de inventário e partilha não deve, no Brasil, cogitar de imóveis sitos no estrangeiro (ob. mencionada, pág. 227).

E isso porque, como observado por Haroldo Valadão em escólio referido no aresto inserto na Rev. dos Tribs. 521, págs. 119⁄120, ‘resolver o juiz brasileiro aplicar as disposições pátrias a bens de herança, sitos fora do Brasil é, evidente-mente, proferir uma decisão no vácuo, que não seria respeitada nem cumprida no lugar da situação dos mesmos bens’ (pág. 120). Nesse sentido alinha-se, por sinal, a anotação de Hélio Tornaghi, para quem ‘a adoção do forum rei sitae decorre de razão de ordem prática, a da quase inutilidade do processo movido fora do país em que o imóvel esteja situado, pois a execução da sentença teria sempre de operar-se nele, após a necessária homologação’ (Comentários ao Código de Proces-so Civil, vol. I, pág. 308, ed. 1974).

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Prevalece, pois, na espécie, a doutrina exposta pelo Prof. Celso Agrícola Bar-bi, várias vezes lembrada, no sentido de que ‘o interesse do legislador se limita aos bens aqui situados, de modo que se houver outros, situados fora do país, o inventário relativo a esses escapa à jurisdição brasileira. E, naturalmente, serão inventariados e partilhados em separado, em outro país’ (Comentários ao Código de Processo Civil, vol. I, pág. 400, 4ª ed., revista e aumentada).”

Ao estabelecer a Mma. Juíza de Direito a possibilidade de compensação em favor do ora recorrido, caso a Justiça libanesa não venha lá a reconhecer-lhe o direito à meação e, ainda, ao dispor o Tribunal a quo que “os bens herda-dos no Líbano integram a comunhão e devem ser trazidos à partilha pelo cônjuge que os receber”, culminaram ambos por afastar o princípio acima aludido da “dualidade dos juízos sucessórios”.

Leiam-se, a propósito, os fundamentos constantes do voto condutor do v. Acórdão prolatado pelo Supremo Tribunal Federal, da lavra do Sr. Ministro Rafael Mayer:

“5. Entendeu, entretanto, o Acórdão, que a metade do quinhão hereditário a que tem direito a Autora, correspondente a 6,25% da herança de Luiz Alberto Serralta, tem de ser calculado também sobre os bens partilhados no Uruguai.

E assim entendeu porque, mesmo admitindo, em tese, a dualidade dos juízos sucessórios, em atenção mesmo ao disposto no art. 89, II, deve o juiz brasileiro resguardar o princípio fundamental da universalidade da herança e do regime matrimonial de comunhão de bens, imperantes na lei brasileira, quando, como no caso, o legislador estrangeiro, ou o juiz estrangeiro, ‘desconsiderando o regime estabelecido pela lei brasileira — e no Brasil mantinham domicílio os nubentes — resolve atribuir os bens situados no estrangeiro apenas a um dos cônjuges — no caso, o cônjuge varão — ou resolve, v.g., distribuir os bens com obediência a regras sucessórias outras que não as vigentes no Brasil’ (fl s. 1.110).

Esse tema do Acórdão recorrido é atacado pela argüição de negativa de vigên-cia do art. 89, II, do Código de Processo Civil, razão de deferimento do recur-so extraordinário, em douto despacho do ilustre Desembargador Paulo Boeckel Velloso.

Vale destacar o seguinte tópico do despacho, em que ressaltada a violação do preceito trazido a debate:

‘Esse ponto foi debatido na instrução do processo e no v. Acórdão, sendo, ade-mais, expressamente prequestionado, novamente, nos embargos declaratórios (cf. fl s. 1125, nº 6). Merece ser examinado, pois. Colhe-se na jurisprudência pátria que:’se pretendemos buscar, no Estatuto Processual em vigor, disposição que solu-cione o problema, poderemos encontrá-la no art. 89, II, tomado, contudo, a con-

trario sensu. Com efeito, se por força do que reza o texto, ‘compete à autoridade brasileira proceder a inventário e partilha dos bens situados no Brasil’ válido será induzir, por oposição, que ‘não compete à autoridade judiciária brasileira proce-

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FGV DIREITO RIO 477

der a inventário e partilha de bens não situados no Brasil’. Analisando o citado dispositivo, Celso Agrícola Barbi conclui: O interesse do legislador se limita aos bens aqui situados, de modo que se houver outros situados fora do País o inventá-rio relativo a esses escapa à jurisdição brasileira. E, naturalmente, serão inventa-riados e partilhados em separado, em outro país’ (cf. Comentários, ed. Forense, 1975, vol. I, tomo II⁄401, nº 494), in RT-521, ac. un. da 5ª Código Civil do TJSP, Rel.: Vieira de Moraes. Da mesma forma se manifesta Hélio Tornaghi, comentando esse dispositivo: ‘o foro da situação da coisa (forum rei sitae) pode considerar-se universalmente adotado. É norma consuetudinária, para o Direi-to Internacional Público e norma interna aceita nas legislações, para o Direito Internacional Privado. (...) A adoção do forum rei sitae decorre de razão de ordem prática, a da quase inutilidade do processo movido fora do país em que o imóvel esteja situado, pois a execução da sentença teria sempre de operar-se nele, após a necessária homologação. (...) Não seria possível a um Estado admitir a competência de outro para decidir das questões relativas a imóveis sem abrir mão da própria soberania. (...) o situs rei dentro do território nacional ou, melhor ainda, a circunstância de o imóvel ser território do Brasil leva à adoção da regra’. (Com. ao CPC., H. Tornaghi, vol. I, pág. 308, Com. ao art. 89 — ed. RT 74).

Por igual é Pontes de Miranda: ‘Se há bens situados no Brasil e bens situados no estrangeiro onde a lei estrangeira tem de se atendida, só os bens situados no Brasil é que são objeto do inventário e partilha no juízo brasileiro. (...) O juízo

de inventário e partilha não deve, no Brasil, cogitar de imóveis sitos no

estrangeiro, mas se lhe é apresentada partilha feita no estrangeiro, sem inclusão de bens sitos no Brasil, pode ele examinar o que, no Brasil, melhor pode fazer para se respeitar a herança necessária ou apenas legítima e a sucessão testamentária’. (in Comentários ao CPC, vol. II, Com. ao art. 89, II).

Parece-me que dúvida não pode restar de que o v. Acórdão não apenas ‘cogitou de bens imóveis sitos no estrangeiro’ como os levou em consideração efetiva, com clara incidência sobre a partilha. E, sem ainda se saber em que quantidade, — diz-se nos autos serem mais valiosos que os fi cados no Brasil —, dever-se-á, nos termos do decisum recorrido, efetuar-se uma compensação, em favor da meeira, que tomará integral meação nos bens aqui localizados. Isso equivale, torna-se a repisar, a verdadeiro inventário dos bens existentes no Uruguai, cogitando-se deles quanto a valores e distribuição.’

Cuido esteja aí bem demonstrada a negativa de vigência do art. 89, II do CPC, consagrador da pluralidade dos juízos sucessórios, prática corrente do direi-to internacional, pelo incontornável princípio da lei da situação da coisa protegi-do pela soberania, a privar de efetividade a decisão estrangeira que se reporte aos bens constantes de herança, ela mesma considerada imóvel (art. 44, III do CC).

Ora, a pluralidade dos juízos sucessórios infi rma o dogma da universalidade da herança em que o venerável Acórdão se embasa para integrar a herança pro-cessada no Uruguai à partilha que se deve proceder no Brasil.

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Ainda antes do advento do Código de Processo Civil vigente, e em comento à Lei de Introdução ao Código Civil, o ilustre Haroldo Valladão assegurava que esses preceitos ‘levaram, afi nal, à realização de inventário e partilha autônomos no Brasil, à pluralidade processual para acompanhar a pluralidade sucessória’ e desse modo, ‘o princípio de um critério único e universal para a sucessão, qualquer que seja a natureza e a situação dos bens, é faca que não corta, também no Brasil’ (DIP II⁄212).

Campos Batalha, transcrevendo trecho de Pontes de Miranda, segue igual con-ceituação:

‘Sempre que a lei da situação reputa a sucessão ligada aos situs e há bens em dois ou mais Estados, a herança tem de dividir-se em massas distintas conforme as diferentes situações dos bens’ (cf. também, Comentários à Constituição de

1946, 2ª ed., vol. V, pág. 140).Não paira dúvida, a nosso ver, que, constituindo as normas de Direito In-

ternacional privado, direito interno de cada país, vinculativas apenas para seus juízes e tribunais, qualquer pronunciamento que se refi ra a bens situados no estrangeiro (quer móveis, quer imóveis), dependerá, para sua efi cácia prática, da lei do situs. Se esta adota princípio diverso de Direito Internacional privado, pa-ralisará os efeitos de qualquer pronunciamento estrangeiro a propósito de sucessões relativas a bens situados em seu território. Destarte, o princípio da unidade da sucessão, ou de sua pluralidade, dependerá das leis dos países em que estiverem situados os bens.’

Por aí se vê desautorizada, data venia, a inclusão, pelo acórdão recorrido, no cômputo da quota hereditária a ser partilhada, no Brasil, a inclusão dos bens sitos no Uruguai, aí inventariados e partilhados segundo a lei desse país.

As normas do Direito Internacional privado brasileiras não adotam o instituto da retorsão ou represália, como o fazem outros ordenamentos jurídicos, nem pre-ceito algum autoriza, a igual de leis estrangeiras referidas no acórdão, que se dê compensação, na massa dos bens partilhados no foro, a parte que é atribuída por sua lei e que se viu frustrada pela lei da situação.

A realidade incontornável é que se estaria incorporando ao inventário pro-cedido no Brasil um valor econômico pertinente a um patrimônio separado, por efeito do princípio da lex rei sitae, sem que esse bem jurídico tenha existência no território nacional. Circunstâncias, aliás, que reclamariam uma pragmática difi cultosa, senão impossível face ao princípio da efetividade” (RTJ, vol. citado, págs. 759⁄761).

Aliás, de tal diretriz tinha e tem o ora recorrido pleno conhecimento em face das decisões reproduzidas a fl s. 105⁄116, tomadas nos autos de inventário dos bens deixados pela genitora da recorrente, Salma Moussalem Atta.

Não paira dúvida de que o regime do casamento, na hipótese em tela, é o da comunhão universal. A regra inserta no art. 7º, parágrafo 4º, da Lei de

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Introdução ao Código Civil, no entanto, somente é aplicável pelo Juiz brasi-leiro e nos limites do território nacional. Não há como impor-se a incidência de tal preceituação à Justiça estrangeira, que é o que, em última análise, está a determinar o julgado ora combatido. Em suma, ao reverso do que sustenta o ora recorrido, prevalece o cânone instituído pelo art. 89, II, do CPC, e não o do art. 7º, parágrafo 4º, da LICC, restrita a aplicação deste aos casos em que presente a jurisdição brasileira.

A meu sentir, pretende-se de maneira prematura garantir ao autor⁄reconvindo o direito à meação decorrente do regime da comunhão universal de bens, o que, todavia, não se compadece com os termos da nossa lei processual civil e com a jurisprudência emanada desta e da Corte Suprema. Descabida é, com efeito, a suspensão da partilha para aguardar-se o partilhamento dos bens si-tos no exterior. Muito menos admissível é a ordem para que a ex-mulher tra-ga, com fi ns de partilha, ao Brasil, o acervo patrimonial existente no Líbano.

3. Do quanto foi exposto, rogando vênia ao eminente Ministro Relator, conheço do recurso por ambas as alíneas do admissivo constitucional e dou-lhe provimento parcial para cancelar a ordem de suspensão da partilha, cujo processamento deverá prosseguir exclusivamente com os bens localizados no país.

É o meu voto.

VOTO-MÉRITO

O MINISTRO RUY ROSADO DE AGUIAR:Sr. Presidente, se a lei brasileira é a que se aplica para dispor sobre o regime

de bens do casamento; se o casamento realizou-se pelo regime da comunhão universal, segundo o qual todos os bens dos cônjuges integram a comunhão, penso que na partilha é indispensável levar em consideração os bens integran-tes dessa comunhão, ainda que localizados fora do Brasil, porque, se não for assim, estaremos desprezando a lei de direito material nacional aplicável ao caso, nos termos da regra de direito internacional.

As disposições dos arts. 89 e 90 do Código de Processo Civil regem apenas uma questão processual, não interferindo com a de direito material, que é a posta nos autos. Daí por que, desde o início, depois de ouvir a sustentação da Profª Maristela Basso, tinha-me orientado nesse sentido e estou, agora, acompanhando o eminente Ministro-Relator e V. Exa., data venia do emi-nente Ministro Barros Monteiro, não conhecendo do recurso.

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CERTIDÃO DE JULGAMENTOQUARTA TURMANúmero Registro: 2000⁄0089891-0 RESP 275985 ⁄ SPNúmeros Origem: 1345314 136595 65504PAUTA: 08⁄05⁄2001 JULGADO: 08⁄10⁄2002  RelatorExmo. Sr. Ministro SÁLVIO DE FIGUEIREDO TEIXEIRA

Presidente da SessãoExmo. Sr. Ministro CESAR ASFOR ROCHA

Subprocuradora-Geral da RepúblicaExma. Sra. Dra. CLÁUDIA SAMPAIO MARQUES

SecretáriaBela. CLAUDIA AUSTREGÉSILO DE ATHAYDE BECK

AUTUAÇÃO

RECORRENTE: CECÍLIA ATTA KASSOUFADVOGADO: MÁRIO DE SANTI NETORECORRIDO: GEORGES KASSOUFADVOGADO: LUCIANO JOSÉ LENZI

ASSUNTO: Civil — Família — Separação

CERTIDÃO

Certifi co que a egrégia QUARTA TURMA, ao apreciar o processo em epígrafe na sessão realizada nesta data, proferiu a seguinte decisão:

Prosseguindo no julgamento, após o voto-vista do Sr. Ministro Cesar Asfor Rocha, não conhecendo do recurso; e o voto do Sr. Ministro Ruy Rosado de Aguiar, no mesmo sentido, pediu VISTA o Sr. Ministro Aldir Passarinho Junior.

Proferiram voto anteriormente os Srs. Ministros Relator e Barros Monteiro.

O referido é verdade. Dou fé.

Brasília, 08 de outubro de 2002CLAUDIA AUSTREGÉSILO DE ATHAYDE BECK

Secretária

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FGV DIREITO RIO 481

RECURSO ESPECIAL Nº 275.985 — SP (2000⁄0089891-0)

VOTO-VISTA

EXMO. SR. MINISTRO ALDIR PASSARINHO JUNIOR: Trata-se de recurso especial interposto por Cecília Atta Kassouf, contra acórdão do Tri-bunal de Justiça do Estado de São Paulo, assim ementado (fl . 153):

“Separação judicial — Partilha de bens — Localização deles no país e no Lí-bano — Pretensão da mulher de que sejam feitas duas partilhas — Inadmissibi-lidade — Regime de bens que se submete à lei nacional brasileira — Necessidade de serem os bens recebidos no Líbano trazidos à partilha no Brasil — Suspensão do processo ordenada para que previamente sejam divididos os bens do Líbano — Ordem adequada em face da situação no momento — Agravo não provido.”

Em essência, busca a recorrente o processamento da partilha dos bens do casal existentes no Brasil, independentemente de se aguardar a partilha do patrimônio a ser realizada no Líbano, ou a sua compensação, acaso esta, em sendo empreendida, não observe os princípios da comunhão universal, regi-me sob o qual se casaram as partes, em face do disposto no art. 7º, parágrafo 4º, da LICC.

A disputa surge em torno dos bens deixados pela mãe de Cecília Atta Kassouf, situados no Líbano, os quais, por força do art. 10, caput, da mesma Lei de Introdução, obedecem à “lei em que era domiciliado o defunto...”; e, segundo sustenta o recorrido, naquele país, prevalece sempre o regime da se-paração total, de modo que a ex-esposa receberia a metade dos bens do casal no Brasil, enquanto fi caria com a totalidade daqueles situados no Líbano, que eram da sua mãe.

O eminente relator, Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, com a adesão dos

Exmos. Ministros Cesar Asfor Rocha e Ruy Rosado de Aguiar, não conhe-ceu do recurso, portanto confi rmando o aresto estadual, disso resultando, como se sabe, a paralisação da partilha no Brasil, até que fi nde o inventário no Líbano para, então, proceder-se à divisão, compensando-se, se for o caso, com os bens aqui existentes, aquilo que porventura for a maior recebido pela recorrente no país alienígena, do Espólio de sua genitora.

Contra essa solução insurgiu-se, em seu voto, o ilustre Ministro Barros Monteiro, fundamentado na regra do art. 89, inciso II, do CPC, que dispõe:

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“Art. 89. Compete à autoridade judiciária brasileira, com exclusão de qual-quer outra:

...............................................................................................................II — proceder a inventário e partilha de bens, situados no Brasil, ainda que

o autor da herança seja estrangeiro e tenha residido fora do território nacional.”

Todas as manifestações são ricas em passagens doutrinárias, defendendo um ou outro ponto de vista, de modo que me eximirei de repeti-las ou de se lhes adicionar mais algumas, maduro que já se encontra o debate, sendo eu o último a votar.

Tenho, contudo, que assiste razão à divergência, rogando vênias aos vo-tos discordantes, cuja qualidade e jurisdicidade de argumentação não deixo de reconhecer e louvar, bem assim ao excelente trabalho desenvolvido pelos doutos advogados das partes querelantes.

Recentemente, a Egrégia 3ª Turma, no REsp n. 397.769⁄SP, assim decidiu:

“Processual Civil. Inventário. Requerimento para expedição de carta rogatória com o objetivo de obter informações a respeito de eventuais depósitos bancários na Suíça. Inviabilidade.

— Adotado no ordenamento jurídico pátrio o princípio da pluralidade de juízos sucessórios, inviável se cuidar, em inventário aqui realizado, de eventuais depósitos bancários existentes no estrangeiro.”

Colho, do voto da Exma. relatora, Min. Nancy Andrighi, os seguintes excertos:

“Impõe-se relevar, no entanto, que se adotou, entre nós, o princípio de plura-lidade dos juízos sucessórios, conforme se depreende da leitura do art. 89, II, do CPC.

Se o ordenamento jurídico pátrio impede ao juízo sucessório estrangeiro de cui-dar de bens aqui situados, móveis ou imóveis, em sucessão mortis causa, em con-trário senso, em tal hipótese, o juízo sucessório brasileiro não pode cuidar de bens sitos no exterior, ainda que passível a decisão brasileira de plena efetividade lá.

Para Celso Agrícola Barbi, o ‘interesse do legislador se limita aos bens aqui si-tuados, de modo que se houver outros, situados fora do País, o inventário relativo a esses escapa à jurisdição brasileira. E, naturalmente, serão inventariados e par-tilhados em separado, em outro país’ (Comentários ao Código de Processo Civil, vol.I, arts. 1º a 153, Rio de Janeiro. Forense, 2002 — ed. revista e atualizada por Eliane Barbi Botelho, fl . 300).”

...............................................................................................................

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“Da interpretação em contrário senso do referido dispositivo legal, ainda que em situações diversas, registrem-se os seguintes julgados: no Supremo Tribunal Federal, o RE n. 99.230⁄RS, Rel. Min. Rafael Mayer, DJ: 29⁄06⁄84; no Superior Tribunal de Justiça, o REsp n. 2.170⁄SP, DJ: 07⁄08⁄90, no qual entendeu o Exmo Sr. Min. Relator Eduardo Ribeiro como ‘violados os artigos 88 e 89 do C.P.C ao dar-se pela competência da Justiça do Brasil para casos não contemplados naque-les dispositivos’, e o REsp n. 37.356⁄SP, Rel. Min. Barros Monteiro, DJ: 10⁄11⁄97.

Assim, irrepreensível o e. Tribunal de origem, que manteve a unidade e a co-erência do ordenamento jurídico pátrio ao interpretar corretamente o disposto no art. 89, II, do CPC.”

De efeito, não se cuida, meramente, de uma regra adjetiva, a disciplinar o processo civil do inventário e partilha, porém, mais do que isso, o reconheci-mento de que o juiz brasileiro não tem jurisdição extraterritorial. Há que se conformar com a partilha do patrimônio existente no Brasil, submetendo-se as partes à divisão dos bens procedida no Líbano, pelo Poder Judiciário de lá.

E, por isso, não vejo sentido algum em se paralisar o processo de partilha no Brasil, para aguardar uma eventual compensação, a fi m de fazer valer, em concreto, o regime matrimonial nacional da comunhão universal. Em pri-meiro, porque tudo, para começar, fi ca no plano da suposição, com base em uma interpretação à distância da legislação estrangeira, de que, no Líbano, a divisão não será respeitada. Em segundo, por não haver razão para se impedir o pleno exercício da jurisdição pelo Poder Judiciário do Brasil, o que se tra-duz, certamente, também pela pronta entrega da prestação jurisdicional, sem qualquer dependência do que e de quando o juiz estrangeiro irá decidir para, só ao depois, ser implementada a prestação a que todo cidadão ou cidadã tem direito, de imediato, e não sine die. Em terceiro, porquanto a tese seria casuística, visto que se somente houvessem bens no exterior, ou em parcela expressivamente maior, restaria inviável a pretendida compensação, isto é, é uma tese que não é aplicável a todos. Em quarto, porque não é nada prática, pois sabe-se lá por quanto tempo a partilha iria fi car paralisada, e se alguém vem a falecer, contrair novas núpcias, etc, pode-se imaginar, sem muita difi -culdade, a inviabilização do processo sucessório ou de novas partilhas, tudo a depender daquele processo em curso lá no Líbano, sobre o qual o juiz bra-sileiro não terá qualquer ingerência, apenas, pacientemente, esperando que termine para que o daqui, paralisado por ordem do Tribunal a quo, tenha seguimento.

Em seu voto, o Min. Barros Monteiro invoca precedente desta Turma, de sua relatoria — REsp n. 37.356⁄SP, DJU de 10.11.97, no sentido oposto ao da douta maioria até aqui formada, que recebeu esta ementa:

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FGV DIREITO RIO 484

“INVENTÁRIO. SOBREPARTILHA. IMÓVEL SITO NO EXTERIOR QUE ESCAPA A JURISDIÇÃO BRASILEIRA.

O juízo do inventário e partilha não deve, no Brasil, cogitar de imóveis sitos no estrangeiro. Aplicação do art. 89, inc. II, do CPC.

Recurso especial não conhecido.”

Ainda recorda, S. Exa, julgado do Egrégio Supremo Tribunal Federal no RE n. 99.230⁄RS, Rel. Min. Rafael Mayer, RTJ vol. 110⁄750, com o seguinte enunciado:

“Partilha de bens. Bens situados no estrangeiro. Pluralidade dos juízos suces-sórios. Art-89, II do CPC.

Partilhados os bens deixados em herança no estrangeiro, segundo a lei suces-sória da situação, descabe à Justiça Brasileira computá-los na quota hereditária a ser partilhada, no país, em detrimento do princípio da pluralidade dos juízos sucessórios, consagrada pelo art-89, II do CPC.

Recurso extraordinário conhecido e provido, em parte. “

Observo, por fi m, que se as pessoas optam contrair matrimônio com es-trangeiros, adquirir bens no exterior, ou passarem pela circunstância de se tornar herdeiros de outros que residem fora do Brasil, são situações que le-vam, realmente, a um quadro nem sempre favorável, mas nem por isso há que se postergar a prestação jurisdicional do Brasil para um futuro incerto, com a paralisação do processo de partilha de bens, condicionado, verdadei-ramente subordinado, ao que vier a acontecer em outro país, ou, tampouco, pretender estender as leis territoriais nossas além fronteiras.

Ante o exposto, em face da doutrina colacionada no Voto do Min. Barros Monteiro, forte em lições de Haroldo Valadão, Hélio Tornaghi e Agrícola Barbi, bem assim nos precedentes do Colendo Supremo Tribunal Federal, desta 4ª Turma, e em recentíssimo julgamento unânime da Egrégia 3ª Turma (REsp n. 397.769⁄SP, rel. Min. Nancy Andrighi, DJU de 19.12.2002), adiro à divergência, para, reconhecendo a contrariedade ao art. 89, II, do CPC e o dissenso pretoriano, conhecer em parte do recurso especial e dar-lhe provi-mento parcial, determinando tenha o processo de partilha dos bens situados no Brasil, apenas deles, prosseguimento.

É como voto.

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FGV DIREITO RIO 485

ANEXO IX

Case Zapata v. Bremen

407 U.S. 192 S.Ct. 1907

32 L.Ed.2d 513

M/S BREMEN and Unterweser Reederei, GmBH, Petitioners, v.ZAPATA OFF-SHORE COMPANY.

No. 71—322.Argued March 21, 1972.Decided June 12, 1972.

SyllabusPetitioner Unterweser made an agreement to tow respondent’s drilling rig

from Louisiana to Italy. Th e contract contained a forum-selection clause pro-viding for the litigation of any dispute in the High Court of Justice in Lon-don. When the rig under tow was damaged in a storm, respondent instructed Unterweser to tow the rig to Tampa, the nearest port of refuge. Th ere, res-pondent brought suit in admiralty against petitioners. Unterweser invoked the forum clause in moving for dismissal for want of jurisdiction and brou-ght suit in the English court, which ruled that it had jurisdiction under the contractual forum provision. Th e District Court, relying on Carbon Black Export, Inc. v. Th e Monrosa, 5 Cir., 254 F.2d 297, held the forum-selection clause unenforceable, and refused to decline jurisdiction on the basis of fo-rum non conveniens. Th e Court of Appeals affi rmed. Held: Th e forum-se-lection clause, which was a vital part of the towing contract, is binding on the parties unless respondent can meet the heavy burden of showing that its enforcement would be unreasonable, unfair, or unjust. Pp. 8—20.

428 F.2d 888 and 446 F.2d 907, vacated and remanded.David C. G. Kerr, Tampa, Fla., for petitioners.James K. Nance, Houston, Tex., for respondent.Mr. Chief Justice BURGER delivered the opinion of the Court.

1 We granted certiorari to review a judgment of the United States Court of Appeals for the Fifth Circuit declining to enforce a forum-selection clause governing disputes arising under an international towage contract between petitioners and respondent. Th e circuits have diff ered in their approach to such clauses.1 For the reasons stated hereafter, we vacate the judgment of the Court of Appeals.

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FGV DIREITO RIO 486

2 In November 1967, respondent Zapata, a Houston-based American corporation, contracted with petitioner Unterweser, a German corporation, to tow Zapata’s ocean-going, self-elevating drilling rig Chaparral from Lou-isiana to a point off Ravenna, Italy, in the Adriatic Sea, where Zapata had agreed to drill certain wells.

3 Zapata had solicited bids for the towage, and several companies inclu-ding Unterweser had responded. Unterweser was the low bidder and Zapata requested it to submit a contract, which it did. Th e contract submitted by Unterweser contained the following provision, which is at issue in this case:

4 ‘Any dispute arising must be treated before the London Court of Justi-ce.’ In addition the contract contained two clauses purporting to exculpate Unterweser from liability for damages to the towed barge.2

5 After reviewing the contract and making several changes, but without any alteration in the forum-selection or exculpatory clauses, a Zapata vice president executed the contract and forwarded it to Unterweser in Germany, where Unterweser accepted the changes, and the contract became eff ective.

6 On January 5, 1968, Unterweser’s deep sea tug Bremen departed Veni-ce, Louisiana, with the Chaparral in tow bound for Italy. On January 9, while the fl otilla was in international waters in the middle of the Gulf of Mexico, a severe storm arose. Th e sharp roll of the Chaparral in Gulf waters caused its elevator legs, which had been raised for the voyage, to break off and fall into the sea, seriously damaging the Chaparral. In this emergency situation Zapata instructed the Bramen to tow its damaged rig to Tampa, Florida, the nearest port of refuge.

7 On January 12, Zapata, ignoring its contract promise to litigate ‘any dispute arising’ in the English courts, commenced a suit in admiralty in the United States District Court at Tampa, seeking $3,500,000 damages against Unterweser in personam and the Bremen in rem, alleging negligent towage and breach of contract.3 Unterweser responded by invoking the forum clau-se of the towage contract, and moved to dismiss for lack of jurisdiction or on forum non conveniens grounds, or in the alternative to stay the action pending submission of the dispute to the ‘London Court of Justice’. Shortly thereafter, in February, before the District Court had ruled on its motion to stay or dismiss the United States action, Unterweser commenced an action against Zapata seeking damages for breach of the towage contract in the High Court of Justice in London, as the contract provided. Zapata appeared in

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that court to contest jurisdiction, but its challenge was rejected, the English courts holding that the contractual forum provision conferred juisdiction.4

8 In the meantime, Unterweser was faced with a dilemma in the pending action in the United States court at Tampa. Th e six-month period for fi ling action to limit its liability to Zapata and other potential claimants was about to expire,5 but the United States District Court in Tampa had not yet ruled on Unterweser’s motion to dismiss or stay Zapata’s action. On July 2, 1968, confronted with diffi cult alternatives, Unterweser fi led an action to limit its liability in the District Court in Tampa. Th at court entered the customary injunction against proceedings outside the limitation court, and Zapata refi -led its initial claim in the limitation action.6

9 It was only at this juncture, on July 29, after the six-month period for fi ling the limitation action had run, that the District Court denied Unterweser’s January motion to dismiss or stay Zapata’s initial action. In denying the motion, that court relied on the prior decision of the Court of Appeals in Carbon Black Export, Inc. v. Th e Monrosa, 254 F.2d 297 (CA5 1958), cert. dismissed, 359 U.S. 180, 79 S.Ct. 710, 3 L.Ed.2d 723 (1959). In that case the Court of Appeals had held a forum-selection clause unenfor-ceable, reiterating the traditional view of many American courts that ‘agre-ements in advance of controversy whose object is to oust the jurisdiction of the courts are contrary to public policy and will not be enforced.’ 254 F.2d, at 300—301.7 Apparently concluding that it was bound by the Car-bon Black case, the District Court gave the forum-selection clause little, if any, weight. Instead, the court treated the motion to dismiss under normal forum non conveniens doctrine applicable in the absence of such a clause, citing Gulf Oil Corp. v. Gilbert, 330 U.S. 501, 67 S.Ct. 839, 91 L.Ed. 1055 (1947). Under that doctrine ‘unless the balance is strongly in favor of the defendant, the plaintiff ’s choice of forum should rarely be disturbed.’ Id., at 508, 67 S.Ct., at 843. Th e District Court concluded: ‘the balance of conve-niences here is not strongly in favor of (Unterweser) and (Zapata’s) choice of forum should not be disturbed.’

10 Th ereafter, on January 21, 1969, the District Court denied another motion by Unterweser to stay the limitation action pending determina-tion of the controversy in the High Court of Justice in London and granted Zapata’s motion to restrain Unterweser from litigating further in the London court. Th e District Judge ruled that, having taken jurisdiction in the limita-tion proceeding, he had jurisdiction to determine all matters relating to the controversy. He ruled that Unterweser should be required to ‘do equity’ by refraining from also litigating the controversy in the London court, not only

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for the reasons he had previously stated for denying Unterweser’s fi rst motion to stay Zapata’s action, but also because Unterweser had invoked the United States court’s jurisdiction to obtain the benefi t of the Limitation Act.

11 On appeal, a divided panel of the Court of Appeals affi rmed, and on rehearing en banc the panel opinion was adopted, with six of the 4 en banc judges dissenting. As had the District Court, the majority rested on the Car-bon Black decision, concluding that “at the very least” that case stood for the proposition that a forum-selection clause “will not be enforced unless the selected state would provide a more convenient forum than the state in which suit is brought.” From that premise the Court of Appeals proceeded to conclude that, apart from the forum-selection clause, the District Court did not abuse its discretion in refusing to decline jurisdiction on the basis of forum non conveniens. It noted that (1) the fl otilla never ‘escaped the Fifth Circuit’s mare nostrum, and the casualty occurred in close proximity to the district court’; (2) a considerable number of potential witnesses, inclu-ding Zapata crewmen, resided in the Gulf Coast area; (3) preparation for the voyage and inspection and repair work had been performed in the Gulf area; (4) the testimony of the Bremen crew was available by way of deposition; (5) England had no interest in or contact with the controversy other than the forum-selection clause. Th e Court of Appeals majority further noted that Zapata was a United States citizen and ‘(t)he discretion of the district court to remand the case to a foreign forum was consequently limited’—especially since it appeared likely that the English courts would enforce the exculpatory clauses.8 In the Court of Appeals’ view, enforcement of such clauses would be contrary to public policy in American courts under Bisso v. Inland Wa-terways Corp., 349 U.S. 85, 75 S.Ct. 629, 99 L.Ed. 911 (1955), and Dixilyn Drilling Corp. v. Crescent Towing & Salvage Co., 372 U.S. 697, 83 S.Ct. 967, 10 L.Ed.2d 78 (1963). Th erefore, ‘(t)he district court was entitled to consider that remanding Zapata to a foreign forum, with no practical contact with the controversy, could raise a bar to recovery by a United States citizen which its own convenient courts would not countenance.’9

12 We hold, with the six dissenting members of the Court of Appeals, that far too little weight and eff ect were given to the forum clause in resolving this controversy. For at least two decades we have witnessed an expansion of overseas commercial activities by business enterprises based in the United States. Th e barrier of distance that once tended to confi ne a business concern to a modest territory no longer does so. Here we see an American company with special expertise contracting with a foreign company to tow a complex machine thousands of miles across seas and oceans. Th e expansion of Ame-rican business and industry will hardly be encouraged if, notwithstanding

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solemn contracts, we insist on a parochial concept that all disputes must be resolved under our laws and in our courts. Absent a contract forum, the considerations relied on by the Court of Appeals would be persuasive reasons for holding an American forum convenient in the traditional sense, but in an era of expanding world trade and commerce, the absolute aspects of the doctrine of the Carbon Black case have little place and would be a heavy hand indeed on the future development of international commercial dea-lings by Americans. We cannot have trade and commerce in world markets and international waters exclusively on our terms, governed by our laws, and resolved in our courts.

13 Forum-selection clauses have historically not been favored by Ame-rican courts. Many courts, federal and state, have declined to enforce such clauses on the ground that they were ‘contrary to public policy,’ or that their eff ect was to ‘oust the jurisdiction’ of the court.10 Although this view appa-rently still has considerable acceptance, other courts are tending to adopt a more hospitable attitude toward forum-selection clauses. Th is view, advan-ced in the well-reasoned dissenting opinion in the instant case, is that such clauses are prima facie valid and should be enforced unless enforcement is shown by the resisting party to be ‘unreasonable’ under the circumstances.11 We believe this is the correct doctrine to be followed by federal district courts sitting in admiralty. It is merely the other side of the proposition recognized by this Court in National Equipment Rental, Ltd. v. Szukhent, 375 U.S. 311, 84 S.Ct. 411, 11 L.Ed.2d 354 (1964), holding that in federal courts a party may validly consent to be sued in a jurisdiction where he cannot be found for service of process through contractual designation of an ‘agent’ for receipt of process in that jurisdiction. In so holding, the Court stated:

14 ‘(I)t is settled... that parties to a contract may agree in advance to submit to the jurisdiction of a given court to permit notice to be served by the opposing party, or even to waive notice altogether.’ Id., at 315—316, 84 S.Ct., at 414.

15 Th is approach is substantially that followed in other common-law countries including England.12 It is the view advanced by noted scholars and that adopted by the Restatement of the Confl ict of Laws.13 It accords with ancient concepts of freedom of contract and refl ects an appreciation of the expanding horizons of American contractors who seek business in all parts of the world. Not surprisingly, foreign businessmen prefer, as do we, to have disputes resolved in their own courts, but if that choice is not available, then in a neutral forum with expertise in the subject matter. Plainly, the courts of England meet the standards of neutrality and long experience in

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admiralty litigation. Th e choice of that forum was made in an arm’s-length negotiation by experienced and sophisticated businessmen, and absent some compelling and countervailing reason it should be honored by the parties and enforced by the courts.

16 Th e argument that such clauses are improper because they tend to ‘oust’ a court of jurisdiction is hardly more than a vestigial legal fi ction. It appears to rest at core on historical judicial resistance to any attempt to re-duce the power and business of a particular court and has little place in an era when all courts are overloaded and when businesses once essentially local now operate in world markets. It refl ects something of a provincial attitude regarding the fairness of other tribunals. No one seriously contends in this case that the forumselection clause ‘ousted’ the District Court of jurisdiction over Zapata’s action. Th e threshold question is whether that court should have exercised its jurisdiction to do more than give eff ect to the legitimate expectations of the parties, manifested in their freely negotiated agreement, by specifi cally enforcing the forum clause.

17 Th ere are compelling reasons why a freely negotiated private inter-national agreement, unaff ected by fraud, undue infl uence, or overweening bargaining power,14 such as that involved here, should be given full eff ect. In this case, for example, we are concerned with a far from routine transac-tion between companies of two diff erent nations contemplating the tow of a extremely costly piece of equipment from Louisiana across the Gulf of Mexico and the Atlantic Ocean, through the Mediterranean Sea to its fi nal destination in the Adriatic Sea. In the course of its voyage, it was to traverse the waters of many jurisdictions. Th e Chaparral could have been damaged at any point along the route, and there were countless possible ports of refuge. Th at the accident occurred in the Gulf of Mexico and the barge was towed to Tampa in an emergency were mere fortuities. It cannot be doubted for a moment that the parties sought to provide for a neutral forum for the reso-lution of any disputes arising during the tow. Manifestly much uncertainty and possibly great inconvenience to both parties could arise if a suit could be maintained in any jurisdiction in which an accident might occur or if jurisdiction were left to any place where the Bremen or Unterweser might happen to be found.15 Th e elimination of all such uncertainties by agreeing in advance on a forum acceptable to both parties is an indispensable element in international trade, commerce, and contracting. Th ere is strong eviden-ce that the forum clause was a vital part of the agreement,16 and it would be unrealistic to think that the parties did not conduct their negotiations, including fi xing the monetary terms, with the consequences of the forum clause fi guring prominently in their calculations. Under these circumstan-

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ces, as Justice Karminski reasoned in sustaining jurisdiction over Zapata in the High Court of Justice, ‘(t)he force of an agreement for litigation in this country, freely entered into between two competent parties, seems to me to be very powerful.’ Th us, in the light of present-day commercial realities and expanding international trade we conclude that the forum clause should control absent a strong showing that it should be set aside. Although their opinions are not altogether explicit, it seems reasonably clear that the District Court and the Court of Appeals placed the burden on Unterweser to show that London would be a more convenient forum than Tampa, although the contract expressly resolved that issue. Th e correct approach would have been to enforce the forum clause specifi cally unless Zapata could clearly show that enforcement would be unreasonable and unjust, or that the clause was inva-lid for such reasons as fraud or overreaching. Accordingly, the case must be remanded for reconsideration.

18 We note, however, that there is nothing in the record presently before us that would support a refusal to enforce the forum clause. Th e Court of Appeals suggested that enforcement would be contrary to the public po-licy of the forum under Bisso v. Inland Waterways Corp., 349 U.S. 85, 75 S.Ct. 629, 99 L.Ed. 911 (1955), because of the prospect that the English courts would enforce the clauses of the towage contract purporting to excul-pate Unterweser from liability for damages to the Chaparral. A contractual choice-of-forum clause should be held unenforceable if enforcement would contravene a strong public policy of the forum in which suit is brought, whether declared by statute or by judicial decision. See, e.g., Boyd v. Grand Trunk W.R. Co., 338 U.S. 263, 70 S.Ct. 26, 94 L.Ed. 55 (1949). It is clear, however, that whatever the proper scope of the policy expressed in Bisso,17 it does not reach this case. Bisso rasted on considerations with respect to the towage business strictly in American waters, and those considerations are not controlling in an international commercial agreement. Speaking for the dis-senting judges in the Court of Appeals, Judge Wisdom pointed out:

19 ‘(W)e should be careful not to overemphasize the strength of the (Bisso) policy.... (T)wo concerns underlie the rejection of exculpatory agreements: that they may be produced by overweening bargaining power; and that they do not suffi ciently discourage negligence.... Here the conduct in question is that of a foreign party occurring in international waters outside our juris-diction. Th e evidence disputes any notion of overreaching in the contrac-tual agreement. And for all we know, the uncertainties and dangers in the new fi eld of transoceanic towage of oil rigs were so great that the tower was unwilling to take fi nancial responsibility for the risks, and the parties thus allocated responsibility for the voyage to the tow. It is equally possible that

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the contract price took this factor into account. I conclude that we should not invalidate the forum selection clause here unless we are fi rmly convinced that we would thereby signifi cantly encourage negligent conduct within the boundaries of the United States.’ 428 F.2d, at 907 908. (Footnotes omitted.)

20 Courts have also suggested that a forum clause, even though it is fre-ely bargained for and contravenes no important public policy of the forum, may nevertheless be ‘unreasonable’ and unenforceable if the chosen forum is seriously inconvenient for the trial of the action. Of course, where it can be said with reasonable assurance that at the time they entered the contract, the parties to a freely negotiated private international commercial agreement contemplated the claimed inconvenience, it is diffi cult to see why any such claim of inconvenience should be heard to render the forum clause unenfor-ceable. We are not here dealing with an agreement between two Americans to resolve their essentially local disputes in a remote alien forum. In such a case, the serious inconvenience of the contractual forum to one or both of the parties might carry greater weight in determining the reasonableness of the forum clause. Th e remoteness of the forum might suggest that the agre-ement was an adhesive one, or that the parties did not have the particular controversy in mind when they made their agreement; yet even there the party claiming should bear a heavy burden of proof.18 Similarly, selection of a remote forum to apply diff ering foreign law to an essentially American controversy might contravene an important public policy of the forum. For example, so long as Bisso governs American courts with respect to the towage business in American waters, it would quite arguably be improper to permit an American tower to avoid that policy by providing a foreign forum for resolution of his disputes with an American towee.

21 Th is case, however, involves a freely negotiated international commer-cial transaction between a German and an American corporation for towage of a vessel from the Gulf of Mexico to the Adriatic Sea. As noted, selection of a London forum was clearly a reasonable eff ort to bring vital certainty to this international transaction and to provide a neutral forum experienced and capable in the resolution of admiralty litigation. Whatever ‘inconvenience’ Zapata would suff er by being forced to litigate in the contractual forum as it agreed to do was clearly foreseeable at the time of contracting. In such circu-mstances it should be incumbent on the party seeking to escape his contract to show that trial in the contractual forum will be so gravely diffi cult and inconvenient that he will for all practical purposes be deprived of his day in court. Absent that, there is no basis for concluding that it would be unfair, unjust, or unreasonable to hold that party to his bargain.

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22 In the course of its ruling on Unterweser’s second motion to stay the proceedings in Tampa, the District Court did make a conclusory fi nding that the balance of convenience was ‘strongly’ in favor of litigation in Tampa. However, as previously noted, in making that fi nding the court erroneously placed the burden of proof on Unterweser to show that the balance of con-venience was strongly in its favor.19 Moreover, the fi nding falls far short of a conclusion that Zapata would be eff ectively deprived of its day in court should it be forced to litigate in London. Indeed, it cannot even be assumed that it would be placed to the expense of transporting its witnesses to Lon-don. It is not unusual for important issues in international admiralty cases to be dealt with by deposition. Both the District Court and the Court of Appe-als majority appeared satisfi ed that Unterweser could receive a fair hearing in Tampa by using deposition testimony of its witnesses from distant places, and there is no reason to conclude that Zapata could not use deposition tes-timony to equal advantage if forced to litigate in London as it bound itself to do. Nevertheless, to allow Zapata opportunity to carry its heavy burden of showing not only that the balance of convenience is strongly in favor of trial in Tampa (that is, that it will be far more inconvenient for Zapata to litigate in London than it will be for Unterweser to litigate in Tampa), but also that a London trial will be so manifestly and gravely inconvenient to Zapata that it will be eff ectively deprived of a meaningful day in court, we remand for further proceedings.

23 Zapata’s remaining contentions do not require extended treatment. It is clear that Unterweser’s action in fi ling its limitation complaint in the Dis-trict Court in Tampa was, so far as Zapata was concerned, solely a defensive measure made necessary as a response to Zapata’s breach of the forum clause of the contract. When the six-month statutory period for fi ling an action to limit its liability had almost run without the District Court’s having ruled on Unterweser’s initial motion to dismiss or stay Zapata’s action pursuant to the forum clause, Unterweser had no other prudent alternative but to protect it-self by fi ling for limitation of its liability.20 Its action in so doing was a direct consequence of Zapata’s failure to abide by the forum clause of the towage contract. Th ere is no basis on which to conclude that this purely necessary defensive action by Unterweser should preclude it from relying on the forum clause it bargained for.

24 For the fi rst time in this litigation, Zapata has suggested to this Court that the forum clause should not be construed to provide for an exclusive forum or to include in rem actions. However, the language of the clause is clearly mandatory and all-encompassing; the language of the clause in the Carbon Black case was far diff erent.21

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25 Th e judgment of the Court of Appeals is vacated and the case is reman-ded for further proceedings consistent with this opinion.

26 Vacated and remanded.

27 Mr. Justice WHITE, concurring.

28 I concur in the opinion and judgment of the Court except insofar as the opinion comments on the issues which are remanded to the District Court. In my view these issues are best left for consideration by the District Court in the fi rst instance.

29 Mr. Justice DOUGLAS, dissenting.

30 Petitioner Unterweser contracted with respondent to tow respondent’s drilling barge from Louisiana to Italy. Th e towage contract contained a ‘forum selection clause’ providing that any dispute must be litigated before the High Court of Justice in London, England. While the barge was being towed in the Gulf of Mexico a casualty was suff ered. Th e tow made for Tampa Bay, the ne-arest port, where respondent brought suit for damages in the District Court.

31 Petitioners sued respondent in the High Court of Justice in London, which denied respondent’s motion to dismiss.

32 Petitioners, having previously moved the District Court to dismiss, fi led a complaint in that court seeking exoneration or limitation of liability as provided in 46 U.S.C. § 185. Respondent fi led its claim in the limita-tion proceedings, asserting the same cause of action as in its original action. Petitioners then fi led objections to respondent’s claim and counterclaimed against respondent, alleging the same claims embodied in its English action, plus an additional salvage claim.

33 Respondent moved for an injunction against petitioners’ litigating fur-ther in the English case and the District Court granted the injunction pen-ding determination of the limitation action. Petitioners moved to stay their own limitation proceeding pending a resolution of the suit in the English court. Th at motion was denied. 296 F.Supp. 733.

34 Th at was the posture of the case as it reached the Court of Appeals, pe-titioners appealing from the last two orders. Th e Court of Appeals affi rmed. 428 F.2d 888, 446 F.2d 907.

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35 Chief Justice Taft in Hartford Accident & Indemnity Co. of Hartford v. Southern Pacifi c, 273 U.S. 207, 214, 47 S.Ct. 357, 358, 71 L.Ed. 612 in discussing the Limitation of Liability Act said that ‘the great object of the sta-tute was to encourage shipbuilding and to induce the investment of money in this branch of industry by limiting the venture of those who build the ship to the loss of the ship itself or her freight then pending, in cases of damage or wrong happening, without the privity or knowledge of the ship owner, and by the fault or neglect of the master or other persons on board; that the origin of this proceeding for limitation of liability is to be found in the ge-neral maritime law diff ering from the English maritime law; and that such a proceeding is entirely within the constitutional grant of power to Congress to establish courts of admiralty and maritime jurisdiction.’

36 Chief Justice Taft went on to describe how the owner of a vessel who, in case the vessel is found at fault, may limit his liability to the value of the vessel and may bring all claimants ‘into concourse in the proceeding by mo-nition’ and they may be enjoined from suing the owner and the vessel on such claims in any other court. Id., at 215, 47 S.Ct., at 359.

37 Chief Justice Taft concluded: ‘(T)his Court has by its rules and deci-sions given the statute a very broad and equitable construction for the pur-pose of carrying out its purpose, and for facilitating a settlement of the whole controversy over such losses as are comprehended within it, and that all the ease with which rights can be adjusted in equity is intended to be given to the proceeding. It is the administration of equity in an admiralty court.... Th e proceeding partakes in a way of the features of a bill to enjoin a multiplicity of suits, a bill in the nature of an interpleader, and a creditor’s bill. It looks to a complete and just disposition of a many cornered controversy, and is applicable to proceedings in rem against the ship, as well as to proceedings in personam against the owner; the limitation extending to the owner’s proper-ty as well as to his person.’ Id., at 215—216, 47 S.Ct., at 359.

38 Th e Limitation Court is a court of equity and traditionally an equity court may enjoin litigation in another court where equitable considerations indicate that the other litigation might prejudice the proceedings in the Li-mitation Court. Petitioners’ petition for limitation subjects them to the full equitable powers of the Limitation Court.

39 Respondent is a citizen of this country. Moreover, if it were remitted to the English court, its substantive rights would be adversely aff ected. Exculpa-tory provisions in the towage control provide (1) that petitioners, the masters

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and the crews ‘are not responsible for defaults and/or errors in the navigation of the tow’ and (2) that ‘(d)amages suff ered by the towed object are in any case for account of its Owners.’

40 Under our decision in Dixilyn Drilling Corp. v. Crescent Towing & Salvage Co., 372 U.S. 697, 698, 83 S.Ct. 967, 968, 10 L.Ed.2d 78 ‘a con-tract which exempts the tower from liability for its own negligence’ is not en-forceable, though there is evidence in the present record that it is enforceable in England. Th at policy was fi rst announced in Bisso v. Inland Waterways Corp., 349 U.S. 85, 75 S.Ct. 629, 99 L.Ed. 911; and followed in Boston Metals Co. v. Th e Winding Gulf, 349 U.S. 122, 75 S.Ct. 649, 99 L.Ed. 933; Dixilyn, supra; Gray v. Johansson, 287 F.2d 852 (CA5); California Co. v. Jumonville, 327 F.2d 988 (CA5); American S.S. Co. v. Great Lakes Towing Co., 333 F.2d 426 (CA7); D. R. Kincaid, Ltd. v. Trans-Pacifi c Towing, Inc., 367 F.2d 857 (CA9); A. L. Mechling Barge Lines, Inc. v. Derby Co., 399 F.2d 304 (CA5). Cf. United States v. Seckinger, 397 U.S. 203, 90 S.Ct. 880, 25 L.Ed.2d 224. Although the casualty occurred on the high seas, the Bis-so doctrine is nonetheless applicable. Th e Scotland, 105 U.S. 24, 26 L.Ed. 1001; Th e Belgenland, 114 U.S. 355, 5 S.Ct. 860, 29 L.Ed. 152; Th e Gylfe v. Th e Trujillo, 209 F.2d 386 (CA2).

41 Moreover, the casualty occurred close to the District Court, a number of potential witnesses, including respondent’s crewmen, reside in that area, and the inspection and repair work were done there. Th e testimony of the tower’s crewmen, residing in Germany, is already available by way of deposi-tions taken in the proceedings.

42 All in all, the District Court judge exercised his discretion wisely in enjoining petitioners from pursuing the litigation in England.*

43 I would affi rm the judgment below.

1Compare, e.g., Central Contracting Co. v. Maryland Casualty Co., 367 F.2d 341 (CA3 1966), and Wm. H. Muller & Co. v. Swedish American Line Ltd., 224 F.2d 806 (CA2), cert. denied, 350 U.S. 903, 76 S.Ct. 182, 100 L.Ed. 793 (1955), with Carbon Black Export, Inc. v. Th e Monrosa, 254 F.2d 297 (CA5 1958), cert. dismissed, 359 U.S. 180, 79 S.Ct. 710, 3 L.Ed.2d 723 (1959).

2 Th e General Towage Conditions of the contract included the following:‘1.... (Unterweser and its) masters and crews are not responsible for de-

faults and/or errors in the navigation of the tow.

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‘2....‘b) Damages suff ered by the towed object are in any case for account of

its Owners.’In addition, the contract provided that any insurance of the Chaparral

was to be ‘for account of ’ Zapata. Unterweser’s initial telegraphic bid had also off ered to ‘arrange insurance covering towage risk for rig if desired.’ As Zapata had chosen to be self-insured on all its rigs, the loss in this case was not compensated by insurance.

3 Th e Bremen was arrested by a United States marshal acting pursuant to Zapata’s complaint immediately upon her arrival in Tampa. Th e tug was subsequently released when Unterweser furnished security in the amount of $3,500,000.

4 Zapata appeared specially and moved to set aside service of process out-side the country. Justice Karminski of the High Court of Justice denied the motion on the ground the contractual choice-of-forum provision conferred jurisdiction and would be enforced, absent a factual showing it would not be ‘fair and right’ to do so. He did not believe Zapata had made such a showing, and held that it should be required to ‘stick to (its) bargain.’ App. 206, 211, 213. Th e Court of Appeal dismissed an appeal on the ground that Justice Karminski had properly applied the English rule. Lord Justice Willmer stated that rule as follows:

‘Th e law on the subject, I think, is not open to doubt.... It is always open to parties to stipulate... that a particular Court shall have jurisdiction over any dispute arising out of their contract. Here, the parties chose to stipulate that disputes were to be referred to the ‘London Court,’ which I take as mea-ning the High Court in this country. Prima facie it is the policy of the Court to hold parties to the bargain into which they have entered.... But that is not an infl exible rule, as was shown, for instance, by the case of Th e Fehmarn, (1957) 1 Lloyd’s Rep. 511; (C.A.) (1957) 2 Lloyd’s Rep. 551....

‘I approach the matter, therefore, in this way, that the Court has a discre-tion, but it is a discretion which, in the ordinary way and in the absence of strong reason to the contrary, will be exercised in favour of holding parties to their bargain. Th e question is whether suffi cient circumstances have been shown to exist in this case to make it desirable, on the grounds of balance of convenience, that proceedings should not take place in this country....’ (1968) 2 Lloyd’s Rep. 158, 162—163.

5 46 U.S.C. §§ 183, 185. See generally G. Gilmore & C. Black, Admiral-ty § 10—15 (1957).

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6 In its limitation complaint, Unterweser stated it ‘reserve(d) all rights’ under its previous motion to dismiss or stay Zapata’s action, and reasserted that the High Court of Justice was the proper forum for determining the entire controversy, including its own right to limited liability, in accord with the contractual forum clause. Unterweser later counterclaimed, setting forth the same contractual cause of action as in its English action and a further cause of action for salvage arising out of the Bremen’s services following the casualty. In its counterclaim, Unterweser again asserted that the High Court of Justice in London was the proper forum for determining all aspects of the controversy, including its counterclaim.

7 Th e Carbon Black court went on to say that it was, in any event, unne-cessary for it to reject the more liberal position taken in Wm. H. Muller & Co. v. Swedish American Line Ltd., 224 F.2d 806 (CA2), cert. denied, 350 U.S. 903, 76 S.Ct. 182, 100 L.Ed. 793 (1955), because the case before it had a greater nexus with the United States than that in Muller.

8 Th e record contains an undisputed affi davit of a British solicitor stating an opinion that the exculpatory clauses of the contract would be held ‘pri-ma facie valid and enforceable’ against Zapata in any action maintained in England in which Zapata alleged that defaults or errors in Unterweser’s tow caused the casualty and damage to the Chaparral.

In addition, it is not disputed that while the limitation fund in the Dis-trict Court in Tampa amounts to $1,390,000, the limitation fund in En-gland would be only slightly in excess of $80,000 under English law.

9 Th e Court of Appeals also indicated in passing that even if it took the view that choice-of-forum clauses were enforceable unless ‘unreasonable’ it was ‘doubtful’ that enforcement would be proper here because the exculpa-tory clauses would deny Zapata relief to which it was ‘entitled’ and because England was ‘seriously inconvenient’ for trial of the action.

10 Many decisions refl ecting this view are collected in Annot., 56 A.L.R.2d 300, 306—320 (1957), and Later Case Service (1967).

For leading early cases, see, e.g., Nute v. Hamilton Mutual Ins. Co., 72 Mass. (6 Gray) 174 (1856); Nashua River Paper Co. v. Hammermill Paper Co., 223 Mass. 8, 111 N.E. 678 (1916); Benson v. Eastern Bldg. & Loan Assn., 174 N.Y. 83, 66 N.E. 627 (1903).

Th e early admiralty cases were in accord. See, e.g., Wood & Selick, Inc. v. Compagnie Generale Transatlantique, 43 F.2d 941 (CA2 1930); Th e Ciano, 58 F.Supp. 65 (E.D.Pa.1944); Kuhnhold v. Compagnie Generale Transatlan-

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tique, 251 F. 387 (S.D.N.Y.1918); Prince Steam-Shipping Co. v. Lehman, 39 F. 704 (S.D.N.Y.1889).

In Insurance Co. v. Morse, 20 Wall. 445, 22 L.Ed. 365 (1874), this Court broadly stated that ‘agreements in advance to oust the courts of the jurisdic-tion conferred by law are illegal and void.’ Id., at 451. But the holding of that case was only that the State of Wisconsin could not by statute force a foreign corporation to ‘agree’ to surrender its federal statutory right to remove a state court action to the federal courts as a condition of doing business in Wiscon-sin. Th us, the case is properly understood as one in which a state statutory requirement was viewed as imposing an unconstitutional condition on the exercise of the federal right of removal. See, e.g., Wisconsin v. Philadelphia & Reading Coal & Iron Co., 241 U.S. 329, 36 S.Ct. 563, 60 L.Ed. 1027 (1916).

As Judge Hand noted in Krenger v. Pennsylvania R. Co., 174 F.2d 556 (CA2 1949), even at that date there was in fact no ‘absolute taboo’ against such clauses. See, e.g., Mittenthal v. Mascagni, 183 Mass. 19, 66 N.E. 425 (1903); Daley v. People’s Bldg., Loan & Sav. Assn., 178 Mass. 13, 59 N.E. 452 (1901) (Holmes, J.). See also Cerro de Pasco Copper Corp. v. Knut Knutsen, O.A.S., 187 F.2d 990 (CA2 1951).

11 E.g., Central Contracting Co. v. Maryland Casualty Co., 367 F.2d 341 (CA3 1966); Anastasiadis v. S.S. Little John, 346 F.2d 281 (CA5 1965) (by implication); Wm. H. Muller & Co. v. Swedish American Line Ltd., 224 F.2d 806 (CA2), cert. denied, 350 U.S. 903, 76 S.Ct. 182, 100 L.Ed. 793 (1955); Cerro de Pasco Copper Corp. v. Knut Knutsen, O.A.S., 187 F.2d 990 (CA2 1951); Central Contracting Co. v. C. E. Youngdahl & Co., 418 Pa. 122, 209 A.2d 810 (1965).

Th e Muller case was overruled in Indussa Corp. v. S.S. Ranborg, 377 F.2d 200 (CA2 1967), insofar as it held that the forum clause was not inconsistent with the ‘lessening of liability’ provision of the Carriage of Goods by Sea Act, 46 U.S.C. § 1303(8), which was applicable to the transactions in Muller, Indussa, and Carbon Black. Th at Act is not applicable in this case.

12 In addition to the decision of the Court of Appeal in the instant case, Unterweser Reederei G.m.b.H. v. Zapata Off -Shore Co. (Th e Chaparral), (1968) 2 Lloyd’s Rep. 158 (CA), see, e.g., Mackender v. Feldia A.G., (1967) 2 Q.B. 590 (CA); Th e Fehmarn, (1958) 1 W.L.R. 159 (CA); Law v. Garrett, (1878) 8 Ch.D. 26 (CA); Th e Eleftheria, (1970) P. 94. As indicated by the clear statements in Th e Eleftheria and of Lord Justice Willmer in this case, supra, n. 4, the decision of the trial court calls for an exercise of discretion. See generally A. Dicey & J. Morris, Th e Confl ict of Laws 979—980, 1087—1088 (8th ed. 1967); Cowen & Mendes da Costa, Th e Contractual Forum:

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Situation in England and the British Commonwealth, 13 Am.J.Comp.Law 179 (1964); Reese, Th e Contractual Forum: Situation in the United States, id., at 187, 190 n. 13; Graupner, Contractual Stipulations Conferring Exclu-sive Jurisdiction Upon Foreign Courts in the Law of England and Scotland, 59 L.Q.Rev. 227 (1943).

13 Restatement (Second) of the Confl ict of Laws § 80 (1971); Reese, Th e Contractual Forum: Situation in the United States, 13 Am.J.Comp.Law 187 (1964); A. Ehrenzweig, Confl ict of Laws § 41 (1962). See also Model Choice of Forum Act (National Conference of Commissioners on Uniform State Laws 1968).

14Th e record here refutes any notion of overweening bargaining power. Judge Wisdom, dissenting, in the Court of Appeals noted:

‘Zapata has neither presented evidence of nor alleged fraud or undue bar-gaining power in the agreement. Unterweser was only one of several compa-nies bidding on the project. No evidence contradicts its Managing Director’s affi davit that it specifi ed English courts ‘in an eff ort to meet Zapata Off -Shore Company half way.’ Zapata’s Vice President has declared by affi davit that no specifi c negotiations concerning the forum clause took place. But this was not simply a form contract with boilerplate language that Zapata had no power to alter. Th e towing of an oil rig across the Atlantic was a new business. Zapata did make alterations to the contract submitted by Unterweser. Th e forum clause could hardly be ignored. It is the fi nal sentence of the agree-ment, immediately preceding the date and the parties’ signatures....’ 428 F.2d 888, 907.

15 At the very least, the clause was an eff ort to eliminate all uncertainty as to the nature, location, and outlook of the forum in which these companies of diff ering nationalities might fi nd themselves. Moreover, while the contract here did not specifi cally provide that the substantive law of England should be applied, it is the general rule in English courts that the parties are assumed, absent contrary indication, to have designated the forum with the view that it should apply its own law. See, e.g., Tzortzis v. Monark Line A/B, (1968) 1 W.L.R. 406 (CA); see generally 1 T. Carver, Carriage by Sea 496—497 (12th ed. 1971); G. Cheshire, Private International Law 193 (7th ed. 1965); A. Di-cey & J. Morris, Th e Confl ict of Laws 705, 1046 (8th ed. 1967); Collins, Ar-bitration Clauses and Forum Selecting Clauses in the Confl ict of Laws: Some Recent Developments in England, 2 J.Mar.L. & Comm. 363, 365—370 and n. 7 (1971). It is therefore reasonable to conclude that the forum clause was also an eff ort to obtain certainty as to the applicable substantive law.

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Th e record contains an affi davit of a Managing Director of Unterweser stating that Unterweser considered the choice-of-forum provision to be of ‘overriding importance’ to the transaction. He stated that Unterweser towage contracts ordinarily provide for exclusive German jurisdiction and applica-tion of German law, but that ‘(i)n this instance, in an eff ort to meet (Za-pata) half way, (Unterweser) proposed the London Court of Justice. Had this provision not been accepted by (Zapata), (Unterweser) would not have entered into the towage contract....’ He also stated that the parties intended, by designating the London forum, that English law would be applied. A res-ponsive affi davit by Hoyt Taylor, a vice president of Zapata, denied that there were any discussions between Zapata and Unterweser concerning the forum clause or the question of the applicable law.

16 See nn. 14—15, supra. Zapata has denied specifi cally discussing the forum clause with Unterweser, but, as Judge Wisdom pointed out, Zapata made unmerous changes in the contract without altering the forum clause, which could hardly have escaped its attention. Zapata is clearly not unso-phisticated in such matters. Th e contract of its wholly owned subsidiary with an Italian corporation covering the contemplated drilling operations in the Adriatic Sea provided that all disputes were to be settled by arbitration in London under English law, and contained broad exculpatory clauses. App. 306—311.

17 Dixilyn Drilling Corp. v. Crescent Towing & Salvage Co., 372 U.S. 697, 83 S.Ct. 967, 10 L.Ed.2d 78 (1963) (per curiam), merely followed Bis-so and declined to subject its rule governing towage contracts in American waters to ‘indeterminate exceptions’ based on delicate analysis of the facts of each case. See 372 U.S., at 698, 83 S.Ct., at 968 (Harlan, J., concurring).

18 See, e.g., Model Choice of Forum Act § 3(3), supra, n. 13, comment: ‘On rare occasions, the state of the forum may be a substantially more con-venient place for the trial of a particular controversy than the chosen state. If so, the present clause would permit the action to proceed. Th is result will presumably be in accord with the desires of the parties. It can be assumed that they did not have the particular controversy in mind when they made the choice-of-forum agreement since they would not consciously have agreed to have the action brought in an inconvenient place.’

19 Applying the proper burden of proof, Justice Karminski in the High Court of Justice at London made the following fi ndings, which appear to have substantial support in the record:

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‘(Zapata) pointed out that in this case the balance of convenience so far as witnesses were concerned pointed in the direction of having the case heard and tried in the United States District Court at Tampa in Florida because the probability is that most, but not necessarily all, of the witnesses will be American. Th e answer, as it seems to me, is that a substantial minority at least of witnesses are likely to be German. Th e tug was a German vessel and was, as far as I know, manned by a German crew... Where they all are mow or are likely to be when this matter is litigated I do not know, because the experien-ce of the Admiralty Court here strongly points out that maritime witnesses in the course of their duties move about freely. Th e homes of the German crew presumably are in Germany. Th ere is probably a balance of numbers in favour of the Americans, but not, as I am inclined to think, a very heavy balance.’ App. 212. It should also be noted that if the exculpatory clause is enforced in the English courts, many of Zapata’s witnesses on the questions of negligence and damage may be completely unnecessary.

20 Zapata has suggested that Unterweser was not in any way required to fi le its ‘affi rmative’ limitation complaint because it could just as easily have pleaded limitation of liability by way of defense in Zapata’s initial ac-tion, either before or after the six-month period. Th at course of action was not without risk, however, that Unterweser’s attempt to limit its liability by answer would be held invalid. See G. Gilmore & C. Black, Admiralty § 10—15 (1957). We do not believe this hazardous option in any way depri-ved Unterweser’s limitation complaint of its essentially defensive character so far as Zapata was concerned.

21 See 359 U.S., at 182, 79 S.Ct., at 712.

*It is said that because these parties specifi cally agreed to litigate their dis-

putes before the London Court of Justice, the District Court, absent ‘un-reasonable’ circumstances, should have honored that choice by declining to exercise its jurisdiction. Th e forum-selection clause, however, is part and parcel of the exculpatory provision in the towing agreement which, as men-tioned in the text, is not enforceable in American courts. For only by avoi-ding litigation in the United States could petitioners hope to evade the Bisso doctrine.

Judges in this country have traditionally been hostile to attempts to circu-mvent the public policy against exculpatory agreements. For example, clauses specifying that the law of a foreign place (which favors such releases) should control have regularly been ignored. Th us, in Th e Kensington, 183 U.S. 263,

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276, 22 S.Ct. 102, 107, 46 L.Ed. 190, the Court held void an exemption from liability despite the fact that the contract provided that it should be construed under Belgian law which was more tolerant. And see E. Gerli & Co. v. Cunard S.S. Co., 48 F.2d 115, 117 (CA2); Oceanic Steam Nav. Co. v. Corcoran, 9 F.2d 724, 731 (CA2); In re Lea Fabrics, Inc., 226 F.Supp. 232, 237 (D.C.N.J.); F. A Straus & Co. v. Canadian P.R. Co., 254 N.Y. 407, 173 N.E. 564; Siegelman v. Cunard White Star, 221 F.2d 189, 199 (CA2) (Frank, J., dissenting). 6A A. Corbin on Contracts § 1446 (1962).

Th e instant stratagem of specifying a foreign forum is essentially the same as invoking a foreign law of construction except that the present circumven-tion also requires the American party to travel across an ocean to seek relief. Unless we are prepared to overrule Bisso we should not countenance devices designed solely for the purpose of evading its prohibition.

It is argued, however, that one of the rationales of the Bisso doctrine, ‘to protect those in need of goods or services from being overreached by others who have power to drive hard bargains’ (349 U.S., at 91, 75 S.Ct., at 633), does not apply here because these parties may have been of equal bargaining stature. Yet we have often adopted prophylactic rules rather than attempt to sort the core cases from the marginal ones. In any event, the other objective of the Bisso doctrine, to ‘discourage negligence by making wrongdoers pay damages’ (Ibid., 75 S.Ct., at 632) applies here and in every case regardless of the relative bargaining strengths of the parties.

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PAULA ALMEIDAÉ Doutora em Direito Internacional e Europeu pela na Université Paris 1 (Panthéon-Sorbonne). Possui mestrado em Direito Publico Interna-cional e Europeu pela Universite de Paris XI (Paris-Sud) (2005), devida-mente revalidado no Brasil. É pesquisadora e professora da FGV Direito Rio, onde leciona a matéria Direito Global e as Alternativas Institucio-nais. É coordenadora do Módulo Europeu do Programa Jean Monnet da União Européia (Programa de Direito da União Européia FGV Direito Rio). Pesquisadora do Centro de Estudos e Pesquisas da Academia de Direito Internacional da Haia em 2010. Tem experiência na área de Di-reito Internacional e Europeu, atuando principalmente nas seguintes áreas: Direito Internacional Público, Direito da União Européia e Direito do Mercosul.

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FICHA TÉCNICA

Fundação Getulio Vargas

Carlos Ivan Simonsen LealPRESIDENTE

FGV DIREITO RIO

Joaquim FalcãoDIRETOR

Sérgio GuerraVICE-DIRETOR DE ENSINO, PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO

Rodrigo ViannaVICE-DIRETOR ADMINISTRATIVO

Thiago Bottino do AmaralCOORDENADOR DA GRADUAÇÃO

Rogério Barcelos AlvesCOORDENADOR DE METODOLOGIA E MATERIAL DIDÁTICO

Paula SpielerCOORDENADORA DE ATIVIDADES COMPLEMENTARES E DE RELAÇÕES INSTITUCIONAIS

Andre Pacheco MendesCOORDENADOR DO NÚCLEO DE PRÁTICA JURÍDICA

Thais Maria L. S. AzevedoCOORDENADORA DE TRABALHO DE CONCLUSÃO DE CURSO

Márcia BarrosoNÚCLEO DE PRÁTICA JURÍDICA – PLACEMENT

Diogo PinheiroCOORDENADOR DE FINANÇAS

Milena BrantCOORDENADORA DE MARKETING ESTRATÉGICO E PLANEJAMENTO