DISCERNIMENTO NO CHAMADO À SANTIDADE

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JOO CARLOS ANDRADE DA SILVEIRA

DISCERNIMENTO NO CHAMADO SANTIDADE E TEOLOGIA DA VOCAO NA CONSTITUIO DOGMTICA LUMEN GENTIUM: ANLISE E PROPOSTAS FORMAO PRESBITERAL

Dissertao apresentada Faculdade de Teologia, da Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul, como requisito parcial para obteno do grau de Mestre em Teologia, rea de concentrao em Teologia Sistemtica. Orientador: Prof. Dr. Pedro Alberto Kunrath

Porto Alegre 2005

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AGRADECIMENTOS

A Deus Uno e Trino, pela graa do Batismo e pela confiana ao me chamar como pastor de Seu povo. A meus pais, que me ensinaram a amar a Igreja. Ao orientador, Pe. Pedro Alberto Kunrath, pelo apoio, acompanhamento e pacincia. A Dom Dadeus Grings, por me proporcionar a oportunidade do mestrado. Aos meus irmos formadores do Seminrio So Jos de Gravata, pelo estmulo e compreenso no tempo empregado nestas pesquisas. Irm Joclia Scherer, pela reviso textual e correes gramaticais. Aos jovens seminaristas, com quem, nestes anos de ministrio mistaggico, tive a oportunidade de conviver e facilitar o discernimento vocacional.

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Este trabalho acadmico dedicado aos formadores e formadoras, empenhados em plasmar pastores para o povo de Deus.

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SUMRIO

RESUMO .......................................................................................................................... 06

Abstract .............................................................................................................................. 07

SIGLAS E ABREVIATURA ........................................................................................... 08

INTRODUO ............................................................................................................... 09

1 ANTROPOLOGIA TEOLGICA VOCACIONAL: DIMENSES FUNDAMENTAIS .............................................................................. 12 1.1 CONCEPO DE VOCAO A PARTIR DAS CATEGORIAS DE CHAMADO E ACOLHIDA ............................................................................12 1.1.1 Conceituao etimolgico-teolgica ...................................................................13 1.1.2 Acolhida ao chamado no Antigo Testamento .................................................... 15 1.1.3 Acolhida ao chamado no Novo Testamento ...................................................... 17 1.2 A PESSOA HUMANA: PROTAGONISTA NA ACOLHIDA VOCACIONAL ... 19 1.2.1 Antropologia do Antigo Testamento .................................................................. 19 1.2 2 Antropologia do Novo Testamento .................................................................... 25 1.2.3 Antropologia patrstica ....................................................................................... 27 1.3 A SANTSSIMA TRINDADE: ORIGEM DO CHAMADO .................................. 30 1.3.1 A Trindade e o Antigo Testamento .................................................................... 30 1.3.2 A teologia trinitria no Novo Testamento .......................................................... 31 1.3.3 Contributo patrstico formulao da teologia trinitria ....................................34

5 2 SANTIDADE: CHAMADO HISTRICO-ECLESIAL ............................................ 39 2.1 CONTEMPORANEIDADE E ECLESIALIDADE ................................................. 39 2.1.1 Controvrsia: Ps-modernidade ou moderno reajustado .................................... 40 2.1.2 Tempos novos, respostas novas .......................................................................... 43 2.2 O CONCLIO ECUMNICO VATICANO II ........................................................ 44 2.2.1 Caminho eclesial pr-Vaticano II ...................................................................... 44 2.2.2 O evento conciliar .............................................................................................. 46 2.2.3 Antropologia conciliar ....................................................................................... 52 2.3 VOCAO UNIVERSAL SANTIDADE .......................................................... 54 2.3.1 A criao como lugar da misso ........................................................................ 54 2.3.2 A Igreja como lugar de chamado e acolhida ..................................................... 58 2.3.3 A Constituio Dogmtica Lumen Gentium e o chamado santidade ............. 60 2.4 VOCAO BATISMAL: DIGNIDADE E IGUALDADE ................................... 67 2.4.1 Batismo: filiao e misso ................................................................................. 67 2.4.2 Discernimento e vocaes especficas: graa e liberdade ................................. 72

3 DISCERNIMENTO NO CHAMADO SANTIDADE E FORMAO PRESBITERAL .................................................................................... 83 3.1 O FORMADOR: PEDAGOGO E ACOMPANHANTE ........................................... 84 3.2 A CASA DE FORMAO: COMUNIDADE PEDAGGICA ............................... 93 3.3 ACOLHIDA PESSOAL AO CHAMADO .............................................................. 101

CONCLUSO ................................................................................................................ 109

BIBLIOGRAFIA CITADA ........................................................................................... 111

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RESUMO

O presente trabalho acadmico aborda a problemtica do discernimento vocacional na formao presbiteral. Utilizando o mtodo ver, julgar e agir e, a partir de ampla pesquisa bibliogrfica, chega raiz da Teologia da Vocao. Percorrendo as fontes bblica e patrstica, encontra, na origem, a Trindade e, na acolhida, o ser humano, criado sua imagem e semelhana. A santidade apresentada como chamado histrico-eclesial. Por isso, analisa a sociedade contempornea e descreve o desempenho da Igreja com o Conclio Ecumnico Vaticano II que, atravs da Constituio Dogmtica Lumen Gentium, chama a todos santidade e confere, pelo Batismo, dignidade e igualdade a todo o povo de Deus. O formando acolhe de maneira pessoal o chamado ao presbiterado. Todavia, a qualidade da relao mantida na casa de formao e com os formadores produzem a clareza no discernimento, alcanada na sintonia com a Trindade. Palavras-chave: Discernimento. Formao presbiteral. Teologia da Vocao. Santidade. Lumen Gentium. Batismo.

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Abstract

The present academic work focuses the vocational discernment in the presbyteral formation. Using the method see, judge, act and employing a large bibliographic research we can get the root of the Theology of the Vocation. Investigating the biblical and patristic sources we discover, at the origin, the Trinity and we can receive the human being created according His image and resemblance. Sanctity is presented as a historic-ecclesial call. For that reason analyses the contemporary society and describes the conduct of the Church in harmony with the Ecumenical Council Vatican II, in the document Dogmatic Constitution Lumen Gentium, calling everybody to sanctity and leveling the People of God by the Baptism, having the same dignity and equality. The candidate receives in a personal way the call to the priesthood. Nevertheless the quality of the relation maintained in the house of formation, also with the educators, produces clarity in the discernment in the tunning with the Trinity. Key words: Discernment. Presbyteral formation. Theology of the Vocation. Sanctity. Lumen Gentium. Baptism.

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SIGLAS E ABREVIATURAS

Abreviaturas bblicas de acordo com a BBLIA DE JERUSALM. CaIC: CATECISMO DA IGREJA CATLICA. CELAM: CONFERNCIA GERAL DO EPISCOPADO LATINO-AMERICANO. Cf.: Confira. CIC: CDIGO DE DIREITO CANNICO. Promulgado por Joo Paulo II, Papa. CNBB: CONFERNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL. et alii: e outros. GS: CONCLIO ECUMNICO VATICANO II. Constituio pastoral Gaudium et Spes: sobre a Igreja no mundo de hoje. idem: o mesmo, igual ao anterior. ibid.: na mesma obra, no mesmo lugar. LG: CONCLIO ECUMNICO VATICANO II. Constituio dogmtica Lumen Gentium: sobre a Igreja. op.cit.: obra citada. PDV: JOO PAULO II. Exortao apostlica ps-sinodal Pastores dabo vobis: sobre a formao dos sacerdotes. VC: JOO PAULO II. Exortao apostlica ps-sinodal Vita Consecrata: sobre a vida consagrada e a sua misso na Igreja e no mundo.

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INTRODUO

O discernimento um desafio presente desde o momento em que a pessoa humana pode escolher entre o bem e o mal. Esse embate cresce quando a opo exige comprometimento integral e fidelidade por toda vida no sacerdcio ministerial. Partimos desse questionamento: Como aumentar o nvel de clareza e diminuir a probabilidade de erro, a fim de que, ulterior a opo feita e assumida na ordenao, aps anos de caminhada formativa, no se conclua em equvoco? Nosso objetivo , a partir de ampla pesquisa bibliogrfica e da experincia no ministrio formativo, aprofundar o saber teolgico da vocao, alicerados na Constituio Dogmtica Lumen Gentium, desenvolvendo aspectos tericos e prticos, basilares numa opo madura. Discernimento no chamado santidade e Teologia da Vocao na Constituio Dogmtica Lumen Gentium: anlise e propostas formao presbiteral, so o tema da dissertao. O presente empreendimento acadmico, embora investigando temas bblicos, patrsticos, eclesiolgicos e trinitrios, se desenvolve no mbito da Antropologia Teolgica, precisamente, pertence esfera da Teologia da Vocao. Tem a pretenso de extrapolar a atmosfera terica do assunto e lanar sugestes prticas e viveis ao imprescindvel ministrio eclesial da formao.

10 So consenso as influncias psicolgicas e sociolgicas da atmosfera ps-moderna em que vivemos, de modo particular, incutidas na dificuldade em se fazer uma opo imutvel na vida celibatria pelo Reino de Deus, como o caso da ordenao presbiteral. Todavia, no abordaremos a discusso sobre a obrigatoriedade ou validade do celibato, pois no o objetivo deste intento. Partiremos do pressuposto que um carisma, concedido a alguns pelo autor do chamado, junto com a graa necessria para viv-lo. A quem ele chama, revela-o nitidamente, bastando criar abertura interior e ambiente exterior. O mtodo na edificao do trabalho ser: ver, julgar e agir, alicerado no esprito de volta s fontes do Conclio Vaticano II. Para tanto, inicialmente, antes de realizarmos a apreciao sobre discernimento, mister que vejamos a Teologia da Vocao no seu contexto geral. Por isso, percorrendo ambientes bblico e patrsticos, abordaremos as dimenses fundamentais da Antropologia Teolgica vocacional: a Santssima Trindade e a pessoa humana, criada imagem e semelhana trinitria, mas danificada pelo pecado original. O Batismo apaga-o, mas permanece a dificuldade de comunicao. No segundo captulo, apresentaremos a santidade como chamado histrico-eclesial. Para tanto, deslocar-nos-emos do ambiente bblico e patrsrico ao momento atual, analisando a sociedade hodierna e seus desafios. A resposta da Igreja atravs do maior evento eclesial do sculo XX, o Conclio Ecumnico Vaticano II, mais precisamente, a Constituio Dogmtica Lumen Gentium, convocadora santidade, alicerada no Batismo, que concede dignidade e igualdade a todo povo de Deus. Esse o critrio mximo de julgamento ao se optar por uma vocao especfica: a santidade de vida.

11 O trabalho completado pelo terceiro captulo, atravs de sugestes prticas e viveis, a partir do trip: formador, casa de formao e formando, no que diz respeito ao discernimento no chamado santidade. o momento do agir, por isso, as propostas vm de renomados formadores, com atuao direta no ministrio formativo, e dos estudos e documentos da CNBB, do CELAM e da Igreja Universal no que tange formao presbiteral. A acolhida do chamado pessoal, mas o discernimento , decididamente, bem realizado se o formador for acompanhante e pedagogo e se o formando residir numa comunidade pedaggica que o auxilie. O Conclio Ecumnico Vaticano II est comemorando quarenta anos, numeral de forte conotao bblica. Percebemos que pouco o exploramos ou o colocamos em prtica. Este empreendimento acadmico, em sua pequenez e despretenso, sem abordar seus vrios documentos, mas, apenas, quase que exclusivamente, a Lumen Gentium, quer contribuir para reverter essa situao. E assim, como o povo de Deus, aps quarenta anos no deserto, encontrou a terra prometida, sonhamos com sua concretizao no tempo presente da Igreja e da sociedade.

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ANTROPOLOGIA TEOLGICA VOCACIONAL DIMENSES FUNDAMENTAIS

A construo duma Teologia da Vocao nos leva, inevitavelmente, a contemplarmos o autor do chamado, a Santssima Trindade, e quem o acolhe, a pessoa humana, criada imagem e semelhana trinitria. o momento do ver: olhar a antropologia e a teologia.

1.1 CONCEPO DE VOCAO A PARTIR DAS CATEGORIAS DE CHAMADO E ACOLHIDA

Vocao, que chamado, exige no apenas respond-la, mas acolh-la. Hoje, encontramos numerosas pseudo-definies sobre esse dilogo entre Deus, o autor do chamado, e a pessoa humana, destinatria. A semntica nos auxilia e na Sagrada Escritura, encontramos clareza.

13 1.1.1 Conceituao etimolgico-teolgica

O fazer teolgico ou a construo de uma compreenso profunda sobre o acontecer vocacional tarefa rdua. Dificilmente se encontrar, hoje, um estudo teolgico completo sobre vocao1. Tambm no Brasil, percebe-se essa carncia2. Entre as hipteses provveis, temos a omisso e a falta de apreo por parte daqueles que se dedicam teologia sistemtica3. Nesse sentido, a semntica uma cincia que nos auxilia consideravelmente a evitarmos equvocos teolgicos e ajuda-nos na limpidez conceitual4. Na pesquisa etimolgica, encontramos que o vocbulo vocao tem sua origem no verbo latino vocare5 e na palavra latina vocatione, significando: Ato de chamar, escolha, chamamento6. No mbito da f no diferente. Todavia, o chamado divino7. Deus quem convoca, prescreve o percurso, anima e capacita o vocacionado8.1

GONZALES-QUEVEDO, Luis. Teologia da vocao. In: APARCIO RODRIGUES, Angel; CANALS CASA, Joan (Orgs.). Dicionrio teolgico da vida consagrada. So Paulo: Paulus, 1994, p.1158. verdade que avanamos na produo de subsdios de Pastoral Vocacional (PV), mas faltam textos de teologia vocacional que possam nos ajudar no aprofundamento desta temtica (OLIVEIRA, Jos Lisboa Moreira de. Teologia e Eclesiologia da Vocao . Disponvel em: < http:// www. presbiteros.com.br/ dogma/teologia.htm>. Acesso em: 16 de set. de 2004). Os telogos sistemticos, parecem deixar o tema para os autores espirituais, os pastoralistas ou os psiclogos ( OLIVEIRA, Jos Lisboa Moreira de. Teologia da Vocao: temas fundamentais. So Paulo: Loyola, 1999, p.19). [...]o significado etimolgico muito importante. Ele nos ajuda a corrigir certa distoro implantada aos poucos no sentido da palavra vocao (ibid.). KOEHLER, Henrique. Dicionrio escolar latino-portugus. 5 ed. Porto Alegre: Globo, 1940, p.476. FERREIRA, Aurlio Buarque de Holanda. Novo Aurlio sculo XXI: o dicionrio da lngua portuguesa. 3 ed. Ver. E ampl. Rio de Jeneiro: Nova Fronteira, 1999, p.1786.

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Para o cristo claro que quem chama Deus. Somente Deus pode entrar na vida do homem com voz imperiosa; s Ele pode arrogar-se o direito de propor ao homem um destino que toca a sua vida. Para o cristo, Deus Pai do homem, com paternidade muito prxima do filho, mas tambm muito distante ao mesmo tempo: imanente e transcendente ao mesmo tempo. E por isso o chamado se faz necessrio porque a distncia sempre longa. Voz e vocao tm a mesma raiz e ambas as palavras se unem em Deus que chama ( GONZALES-QUEVEDO, Luis. op .cit., p.1188-1189). 8 A etimologia do termo vocao evidencia a presena de algum que chama; vocao a iniciativa de outro que comunica um projeto (CANDIDO, Luigi de. Vida Consagrada. In: FIORES, Stefano de; GOFFI, Tullo (Orgs.). Dicionrio de espiritualidade. Lisboa (POR): Paulistas; So Paulo: Paulinas, 1989, p.1170). O chamado assinala ou indica um caminho, desperta ou convida a caminhar, fortalece a fragilidade humana congnita (CORDOBS,Manuel. Vocao. In: FIORES, Stefano de; GOFFI, Tullo (Orgs.). op. cit., p.1190).

14 encontro amoroso, livre e dialgico: Deus convida e a pessoa humana acolhe9. No um simples responder ao chamado, mas acolh-lo. Acolher receber so verbos ativos. E no s no plano gramatical10. A resposta pode ser passiva, indiferente, imparcial, no-envolvente, no-comprometida, alheia, exterior11. A parbola dos dois filhos frente ordem do pai (cf. Mt 21,28-32) modelar: um respondeu sim, mas no foi, o outro respondeu no e foi. A vocao do apstolo Mateus paradigmtica: Jesus o convoca. Este, levantando-se, o seguiu (Mt 9,9b). No mero pedido, mas solicitao, seduo: Tu me seduziste, Iahweh, e eu me deixei seduzir (Jr 20,7a). Acolher ser solcito, aberto, comprometido, receptivo, deixar-se envolver e atrair pela fora que o chama e o lana. Sugere empatia, adeso, envolvimento, cumplicidade, seguimento. A partir da compreenso de vocao como chamado/acolhida, alguns equvocos costumeiros podem e devem ser evitados: a) identificar vocao com capacidade, habilidade, disposio, pendor12; b) definir vocao apenas no mbito antropolgico, como busca simplesmente humana13; c) dizer que na acolhida no h liberdade de quem convocado; d) igualar vocao com vocaes especficas, de modo particular com o

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Mesmo tomando a iniciativa de chamar, Deus no dispensa a participao da pessoa humana. Ele quer que o ser humano responda a seu chamado. Por isso mesmo a vocao s se completa quando a pessoa d sua resposta, aceitando a proposta de Deus e abraando livremente um servio em favor da comunidade. [...]Ele entra em dilogo com a pessoa humana, convidando-a ao servio, doao, entrega (OLIVEIRA, Jos Lisboa Moreira de. Teologia das vocaes: temas fundamentais. 1999, p.22). MAGRASSI, Mariano. Acolhimento. In: BORRIELLO, Luigi et alii (Orgs.) Dicionrio de mstica. So Paulo: Loyola; Paulus, 2003, p. 08. A palavra acolhida supera a palavra resposta. palavra mais moderna e com ntido sentido evanglico. [...]Acolhida consiste em abrir a porta para esta invaso de fora, a fim de que a pessoa se disponha e se sinta impelida para onde tal fora a impele (CORDOBS, Manuel. op. cit., p.1190). De fato, numa viso corriqueira, existe uma forte tendncia que leva muito facilmente as pessoas a identificar a vocao como pura e simplesmente uma inclinao ou aptido. [...] no conceito de vocao, o que aparece em primeiro lugar o ato de chamar, o chamado. A aptido, a inclinao so secundrias, vm como resposta proposta recebida (OLIVEIRA, Jos Lisboa Moreira de. op. cit., p. 19 - 20). [...] s possvel entender perfeitamente numa dimenso de vida alimentada pela f. Melhor dizendo: a vocao s pode ser entendida teologicamente, uma realidade teolgica. [...] terminaria at mesmo por trair o projeto de Deus (OLIVEIRA, Jos Lisboa Moreira de. Teologia da vocao: temas fundamentais. 1999, p. 20 - 23).

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15 sacerdcio ou a vida religiosa14; e) pressupor que a vocao deva ser assumida em vista de benefcios prprios, regalias adquiridas ou poder indevido15; f) generalizar e uniformizar os chamados16. A teologia da vocao tem de buscar, necessariamente, na fonte bblica alicerce, a fim de se evitar enganos ou superficialidade conceitual.

1.1.2 Acolhida ao chamado no Antigo Testamento

O tema vocacional um dado exclusivamente bblico: somente o Deus da Bblia dirige explicitamente ao homem uma mensagem que tambm uma vocao. Mesmo expressa em linguagem profana como convocar ou nomear, sempre que Deus o sujeito, toma significao radicalmente nova. No h registros de chamados nesse sentido na filosofia pag contempornea hagiografia bblica. Entretanto, o vocbulo vocao no encontrado no hebraico e chamar utilizado ocasionalmente17. Na raiz, est o dilogo:

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No interveno determinista e eterna. Deus age na condio real e concreta da histria, da cultura, da geografia e da psicologia. [...] comumente a vocao determina o chamado ao sacerdcio ministerial e vida consagrada. No entanto, trata-se de reduo arbitrria de sua amplitude (CANDIDO, Luigi de. Vida consagrada. In: FIORES, Stefano de; GOFFI, Tullo (Orgs.). Dicionrio de espiritualidade. 1989, p. 1170). [...] levam em conta somente e muito particularmente a chamada vocao sagrada, encarnada na consagrao religiosa e no, ministrio hierrquico (CORDOBS, Manuel J. In: FIORES, Stefano de; GOFFI, Tullo (Orgs.). op. cit., p. 1187). [...] a vocao deve ser vista na perspectiva do servio. Ela requer doao, disponibilidade, entrega (OLIVEIRA, Jos Lisboa Moreira de. Teologia da vocao: temas fundamentais. 1999, p. 23). A vocao um fato muito pessoal. [...] parte integrante dessa identidade da pessoa e, por isso, difcil de analisar e de estudar. [...] cada uma um caso, uma histria, um evento. Quando se quer fazer um sistema, uma teoria desses eventos, arrisca-se a generalizar experincias personalssimas e singularssimas (MARTINI, Carlo Maria; VANHOYE, Albert. Bblia e Vocao. So Paulo: Loyola, 1987 (Col. F e vocao), p. 11-12). O termo vocao no existe em hebraico. Para falar da vocao com que um ser humano agraciado, ou de como Deus o toma em seu servio para o resto da vida, so usados principalmente os verbos enviare ir (Ez 6,14; Is 6,8 etc.). Nas narrativas de vocao, o verbo chamar aparece raramente, e apenas referindo-se ao primeiro contato (Ex 3,4). No Dutero-Isaas, porm, o chamar freqente, bem como escolher: Is 42,6[...]. Geralmente as vocaes so narradas no incio de uma atividade ou de um livro (FISCHER, Georg. Vocao (AT). In: BAUER, Johannes B. (Org.). Dicionrio bblico-teolgico. 2 ed. So Paulo: Loyola, 2000, p.448).

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16 Deus fala, a pessoa escuta. Deus expe o programa a ser realizado e a pessoa acolhe. Nos escritos do Antigo Testamento, a descrio do chamado, comumente, vem na gnese do escrito, com o propsito de conferir autoridade e legitimar a misso18. Na literatura vtero-testamentria, a palavra profecia, oriunda da raiz acdica no sentido de chamado (por Deus, para falar por ele)19, torna o profeta paradigmtico quando se trata de vocao. Porm, a acolhida do chamado divino no deve ser igualada no gnero nem na atitude. Existem vrios tipos de postura frente convocao de Deus: a) ouvem, e logo obedecem20; b) obedecem, com objees21; c) so voluntrios frente vontade divina (cf. 1 Rs 22,19-22; Is 6); d) h um descobrimento gradual, uma acolhida por etapas sem haver um conhecimento da importncia do chamado, a clareza vem pela meditao e reflexo (cf. 1Sm 3). Na hagiografia bblica, geralmente, na histria que se compreende o chamado22, porm, a iniciativa sempre divina23. Embora poucas narrativas vocacionais foram registradas24, percebe-se que a acolhida exercida, na maioria das vezes, por pessoas frgeis, cuja aparncia no idnea: no reconhecem a Deus (cf. 1 Sm 3 ); procuram escapulir convocao (cf. Jr 1); no tm eloqncia (cf. Ex 4,10; Jr 1,6); vivem

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Cf. Gn 3, 1-6; Is 6, 1-4; Ez 1 McKENZIE, John. Dicionrio bblico. 8. ed. So Paulo: Paulus. 2003, p. 742. Cf. Gn 12, 1-4; 1Rs 19,15-19; Am 7,15; Os 1,2-3 Cf. Ex 3, 4-12; Jz 6, 11-24; Jr 1, 4-10; Ez 2, 1-3,11 O caminho mais fcil para uma aproximao do evento vocacional o caminho histrico (MARTINI, Carlo Maria; VANHOYE, Albert. Bblia e Vocao. 1987, p. 24). Antropologicamente, a vocao uma resposta do homem, a partir de seu dilogo com Deus, o qual o chama, levando-o, assim, a uma opo fundamental (SILVEIRA, Joo Carlos Andrade da. Adolescncia e opo vocacional: anlise psicopedaggica. Monografia (Especializao em Psicopedagia) - Curso de Ps-Graduao em Educao, Faculdade de Filosofia Nossa Senhora da Imaculada Conceio, Viamo, 1994, p. 22. [...] o misterioso provoca no humano nsia irrefrevel de saber. Na Bblia porm, a iniciativa da profecia no est no humano e sim em Deus (MAYORAL LPES, Juan Antonio. Profetas. In: PEDROSA ARS, Vicente Maria et alii (Orgs.). Dicionrio de catequtica. So Paulo: Paulus, 2004, p. 914).

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17 no desnimo (cf. Is 40, 6b-7 a ); no possuem pureza (cf. Is 6,5); s vezes, geram desprezo divino (cf. Jz 6,15; 1 Sm 9,21). Mesmo havendo menosprezo e temor por parte de quem convocado, Deus sempre procura o dilogo e capacita tarefa exigida. A eleio permanece um mistrio25. No depende das qualidades humanas. Destinase, no ao engrandecimento de quem chamado, mas sempre misso.

1.1.3 Acolhida ao chamado no Novo Testamento

As narrativas neo-testamentrias de acolhida ao chamado26 foram escritas na experincia do Cristo ressuscitado, ou seja, sob a tica ps-pascal27. Na Nova Aliana, permanece a estrutura dialgica da vocao, claramente percebida na narrativa do acolhimento de Maria ao seu chamado (cf. Lc 1,26-38)28. A nova criao origina-se do dilogo entre Deus e uma mulher. E, com sua acolhida, [...] inaugura-se a nova famlia de Deus em Jesus29. Ele continua sendo o autor do chamado e quem toma a iniciativa.

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Toda a histria bblica mostra que a iniciativa do encontro com Deus parte sempre dele (MAGRASSI, Mariano. Acolhimento. In: BORRIELLO, Luigi et alii (Orgs.). Dicionrio de mstica. 2003, p.8). Sendo que a sociedade gr. [grega] nada sabia do conceito bblico de chamada, no compartilhava de nosso conceito de vocao. A atividade do indivduo na sociedade que trabalhava era chamada ergon (trabalho), ponos (fardo) [...]. Embora se procurasse um termo geral para o trabalho manual, a conscincia da vocao permanecia restrita a sacerdotes, e at certo ponto, queles que se dedicavam a tarefas intelectuais e administrativas (COENEN, Lothar. Chamar: a. In: COENEN, Lothar; BROWN, Colin (Orgs). Dicionrio internacional de teologia do Novo Testamento. 2. ed. So Paulo: Vida Nova, 2000. 1 v, p. 350). Depois da morte de Jesus, os discpulos compreenderam, luz do maravilhoso evento da Pscoa, o significado mais profundo da f em Deus, em Jav. Esta fora o solo cultural-religioso em que o povo de Israel se formara, vivera ao longo dos sculos, num movimento de infidelidade e converso (LIBANIO, Joo Batista. Deus e os homens: os seus caminhos. 3. ed. Petrpolis: Vozes, 1996, p.184). Maria pode dialogar, expressar sua lucidez ao solicitar dados e aceitar, voluntria e livremente, o plano proposto por Deus mediante o seu mensageiro (NAVARRO PUERTO, Mercedes. Maria. In: PEDROSA ARS, Vicente Maria et alii (Orgs.). Dicionrio de catequtica. 2004, p. 716). Ibid.

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18 Nos evangelhos, Jesus chama ao reino do Pai no qual, ocultamente, o rei30 e convoca misso31. Percebemos isso no chamado a seus discpulos (Mt 4,21; Jo 1,35-48; Lc 10,1), quando Ele convoca todas as pessoas (Mc 10,17-22), em especial, os pecadores (Mt 9,13; Lc 19,7)32. Chama a serem discpulos, no alunos, pois esses, um dia, podem ocupar a ctedra do professor. E o discpulo, embora se assemelhe ao Mestre, jamais tomar Seu lugar no seguimento.Ele provoca no discpulo o xodo completo de si mesmo e de tudo a que est ligado, e o conduz atrs de si adeso plena pessoa, mensagem e ao destino dele. As exigncias radicais do seguimento de Jesus (Cf. Lc 9,57-62) indicam que nele irrompe o Reino de Deus. Os que o seguem so expropriados de seu mundo e feitos herdeiros de um mundo novo, definido pela prpria pessoa de Jesus. Cristo gera a comunho de vida que se traduz na relao estvel, permanente, exclusiva com ele, at a participao em seu destino de morte e ressurreio: se algum quer vir aps mim, negue-se a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me (Mt 16,24)33.

O apstolo Paulo, vocacionalmente, paradigmtico. Tem conscincia de ter sido chamado por Deus a fim de converter os no-crentes (Gl 1,15). Ele considera todos os cristos chamados por Cristo (Rm 1,6), como prova de seu amor (1 Cor 1,2-9). A vocao neo-testamentria um chamado glria (2 Tes 2,14), ao Reino (1 Tes 2,12), santidade (1 Tes 4,7), liberdade (Gl 5,13), vida eterna (1Tm 6,12). Acolher significa identificar-se com Cristo e deix-lo viver em ns (cf. Gl 2,20).

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O contedo exato do chamamento de Jesus depende em cada Evangelho das conseqncias que o evangelista atribui ao ser discpulo (NTZEL, Johannes M. Vocao (NT). In: BAUER, Johannes B. (Org.). Dicionrio bblico-teolgico. 2000, p. 449). Na Bblia, o tema da vocao est em relao estreita com os de eleio e misso (GONZLESQUEVEDO, Luis. Teologia da vocao. In: APARCIO RODRIGUES, Angel; CANALS CASAS, Joan (Orgs). Dicionrio teolgico da vida consagrada. 1994, p. 1154). [...] as narrativas de vocaes no NT querem realar a autoridade e a fascinante fora do chamamento de Jesus [...]. A imediata obedincia dos chamados transforma-os em exemplos (NTZEL, Johannes M. Vocao (NT). op. cit., p. 449). CIARDI, Fabio. Seguimento. In: BORRIELLO, Luigi et alii (Orgs.). Dicionrio de mstica. 2003, p. 952953.

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19 1.2 A PESSOA HUMANA: PROTAGONISTA NA ACOLHIDA VOCACIONAL

A pessoa humana quem acolhe o chamado. a destinatria. A antropologia crist nos oferece uma concepo de ser humano, mistrio por essncia, solidamente fundamentada na Sagrada Escritura e nos Santos Padres.

1.2.1 Antropologia do Antigo Testamento

Ao iniciarmos a pesquisa antropolgica nas Sagradas Escrituras, conveniente destacar a sua estreita relao com a teologia j no incio das narrativas bblicas34. Entretanto, o hagigrafo vtero-testamentrio jamais expe a pessoa humana como objeto de reflexo35. Considera-a numa totalidade integradora: carne, corao, vida. A pessoa sempre concebida na sua relao viva com Deus, tanto masculino como feminino36. O ser humano considerado, em sua estrutura pessoal, com profunda seriedade, evitando-se qualquer tipo de abstraes que o transformariam, e tambm a Deus, em mero objeto de

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Teologia e antropologia j se encontram em relao ntima desde a primeira pgina da Bblia (LADARIA, Luis F. Introduo Antropologia Teolgica. So Paulo: Loyola, 1998 (Col. Introduo s Disciplinas Teolgicas), p. 48). O AT ignora qualquer definio filosfica da essncia humana e de seus componentes. Dicotomia ou tricotomia seria inadequado (DEISSLER, Alfons. Ser Humano/Homem (AT). In: BAUER, Johannes B. (Org.). Dicionrio bblico-teolgico. 2000, p.402). A complementaridade entre masculino e feminino segundo o texto bblico exatamente a valorizao da relacionalidade humana nas suas diferenas e complementaridade especfica, que atestam as possibilidades vrias de ser imagem de Deus: das quais uma das fundamentais s-lo enquanto mulher e enquanto homem (RIBEIRO, Hlcion. Ensaio de Antropologia Crist: da imagem semelhana com Deus. Petrpolis: Vozes, 1995, p.156). A mentalidade patriarcal, ento dominante, considerava o homem superior, por natureza, mulher[...]. Isto no obstante, a humanidade formava um todo unitrio (WARNACH, V. Homem. In: FRIES, Heinrich (Org.). Dicionrio de teologia: conceitos fundamentais da teologia atual. 2. ed. So Paulo: Loyola, 1983. 2 v, p.330).

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20 anlise37. Mesmo quando descreve o homem, apresenta-o no como pessoa autnoma em si, mas integrado na realidade csmico-poltica, em dilogo religioso com Deus, orientado para conviver com seu Criador38. Os escritos do Antigo Testamento se distinguem por suas inmeras e precisas afirmaes sobre o mundo e sobre o lugar do homem no mundo, olhando a ambos na relao com o Criador39. Mas, os limites entre Deus, a pessoa humana e o mundo so solidamente mantidos: Ele escapa s categorias do pensamento humano (cf. Ex 15,11; Is 55,8) e no tem atitudes humanas (cf. Os 11,9). Entretanto, jamais as diferenas so to acentuadas que destruam a relao vital entre eles, constituindo-se numa justaposio de elementos isolados na sociedade.

a) Criatura de Deus No contexto hebreu, o homem e o mundo tm importncia enquanto foram criados por Deus40. Pois, segundo o Antigo Testamento, Deus o criador da primeira pessoa

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Na antropologia do Antigo Testamento, so trs os planos que formam a realidade do homem. No so partes do homem, mas nveis ou dimenses totais. Cada uma dessas dimenses representa a totalidade do homem numa perspectiva particular. O primeiro nvel, o mais externo, o corpo, ou a carne (basar): a manifestao exterior e sensvel de todo o ser humano e espiritual. O segundo nvel, mais interior, pertence alma, vida (nefesh): esse alento de vida e de conscincia que permite ao homem ser ele mesmo. Por ltimo, o nvel do esprito (ruah): a dimenso sobrenatural, prpria da revelao bblica, esse lao imaterial que permite ao homem relacionar-se com o Esprito de Deus. Nenhum de nossos termos traduz exatamente o conceito e a experincia original. Do-nos pelo menos uma aproximao (RUIZ SALVADOR, Federico. Compndio de teologia espiritual. So Paulo: Loyola, 1996, p. 171-172). GOFFI, Tullo. Homem Espiritual. In: FIORES, Stefano de; GOFFI, Tullo (Orgs.). Dicionrio de espiritualidade. 1989, p. 511-512. O Antigo Testamento formula essa aproximao de Deus pela criao sob a forma do domnio absoluto de Deus sobre todo o criado. Se de um lado, Israel comparte com os pases vizinhos a f de que o mundo foi criado por Deus, avana, de outro, porm, a reflexo em duas direes. Primeiramente espiritualiza ao mximo esse ato criador de Deus, ao eliminar intencionalmente os elementos mticos de uma luta criadora do demiurgo contra certa personificao do caos. Esta ao criadora de Deus efetua-se pela palavra. Afasta-se, assim, qualquer idia de emanao ou de uso de elementos primordiais. Com isso, afirma-se a universalidade e exclusividade da ao divina na criao do mundo (LIBNIO, Joo Batista. Deus e os Homens: os seus caminhos. 1996, p. 110). Antes de tudo, impe-se claramente o fato da criaturalidade de todos os seres (exceto Deus), inclusive o homem; tal fato determina a doutrina bblica em toda a sua extenso (WARNACH, V. Homem. In: FRIES, Heinrich (Org.) Dicionrio de teologia: conceitos fundamentais de teologia atual. 1983, p. 325).

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21 humana e, tambm, de cada indivduo, de cada representante da espcie41. O nome prprio do primeiro humano: Ado42 coletivo, engloba toda a humanidade43. A formao de cada feto no ventre materno considera-se obra divina44. A ao do criador comparada com o oleiro que molda o homem da terra45. Outras vezes como o tecelo que borda e tece no seio da me46. A genitora dos Macabeus exemplo tpico dessa convico quando reconhece no ser ela a formadora em seu corpo dos filhos (cf. 2 Mc 7,22s). A pessoa humana assim formada tem vida, porque Deus soprou o alimento vital, manifestado na respirao47. Concebe-se o homem vivo, em sua totalidade, na existncia como um todo e intimamente ligado ao criador48. A tradio filosfica greco-romana parte duma problemtica ausente no contexto hebreu: a dicotomia entre princpio vital e corpo. O pensamento bblico vai noutra direo: a pessoa criatura, barro, argila e sobrevive graas ao hlito de Deus (cf. Gn 2,7).

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O cap. 2 do Gnesis no diz respeito s a histria de um homem, mas humanidade inteira [...] segundo a mentalidade semtica, o ancestral duma raa traz em si a coletividade sada de seus rins; nele se exprimem, realmente, todos os descendentes: estes lhe esto incorporados [...] (LON-DUFOUR, Xavier. Homem. In: LON-DUFOUR, Xavier et alii (Orgs.). Vocabulrio de teologia bblica. 4. ed. Petrpolis: Vozes, 1987, p. 405). dm tambm usado para se referir ao homem genrico como imagem de Deus e coroa da criao, sendo tambm um nome pessoal. Por isso esta a palavra usada quase sempre em Gnesis 1-3. [...] A Bblia estabelece um forte relacionamento entre o homem (dm) e a terra (dm) (COPPES, Leonard J. dm: homem, espcie humana, humano, algum, Ado (o primeiro homem). In: HARRIS, R. Laird (Org.). Dicionrio internacional de teologia do Antigo Testamento. So Paulo: Vida Nova, 2001, p. 13-14). Geralmente adam um conceito coletivo, mas em Gn 3 torna-se ao mesmo tempo o nome do ancestral da humanidade (DEISSLER, Alfons. In: BAUER, Johannes B. (Org.). Dicionrio bblico-teolgico. 2000, p. 402). Cf. Jr 1,5; Sl 139,13; J 10,8-12.18 Cf. Gn 2,7; Is 29,16;45,9;64,7; Jr 18,6 Cf. Sl 139,13-16; J 10,11 Cf. Gn 2,7; Sl 104,29s; J 10,12;33,4;34,14s; Ecl 3,21;12,7 Na interpretao do texto bblico, os exegetas tm estabelecido muitas indicaes por vezes at contraditrias. Assim, h uma posio clssica a das fontes do Pentateuco que identificam em Gn 1-3, dois relatos distintos da criao. O mais antigo escrito pelo sculo X a C, atribudo tradio javista (J) e o mais recente, redigido pelos sacerdotes (S) durante o exlio da Babilnia, entre 578 e 538 a C.[...] As duas narrativas da criao e definio das atribuies do ser humano so extremamente sintticas e sbrias ao contrrio dos mitos circundantes; mas os textos tm caractersticas diversas (RIBEIRO, Hlcion. Ensaio de antropologia crist: da imagem semelhana com Deus. 1995, p. 49-50).

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22 b) Imagem de Deus A concepo antropomrfica49 de Deus nasce da f bblica na criao humana imagem do criador (Gn 1,27)50. Tudo parece existir ao seu servio e deleite (cf. Gn 1, 2830; 2,16-20a)51. Situa-se como soberano da obra criacional, onde acredita ser o centro do mundo criado para ele e subordinado ao seu fim (cf. Ecl 17,2-4; Sb 9, 2s; 10,2). Facilmente inebriado por tamanho poder, [...] pouco menos que um deus (Sl 8,6); algumas vezes pensava ter chegado a ser como Deus: designar o bem e o mal (cf. Gn 3,22); possuindo saber universal (cf. Gn 2, 19s; 1 Rs 5, 9-14) . Os hagigrafos do Antigo Testamento entendem essa imagem e semelhana como inerente a toda humanidade, no exclusivamente ao povo hebreu52. A limitao desse privilgio aos judeus, encontra-se somente em fontes extrabblicas do judasmo tardio, e esta concepo no , de modo algum, privativa da Bblia53, toda pessoa humana

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Modo de falar de Deus atribuindo-lhe maneiras de ser ou qualidades prprias do homem. Assim, so atribudos a Deus memria, ira, arrependimento, rosto, mos etc. freqente no Antigo Testamento, embora em no poucas passagens se diga que Deus no como o homem. Acontece que o homem tem grande dificuldade de expressar o que prprio de Deus sem recorrer ao uso de imagens da prpria experincia (PEDRO, Aquilino de. Dicionrio de termos religiosos e afins. Aparecida: Santurio. 1993, p. 22). Nestes antropomorfismos necessrio ver mais uma expresso do mundo dos smbolos, de que a Bblia faz uso to abundante, que, dentro deste contexto, recebe especial significado teolgico. Trata-se de expressar a proximidade do homem com relao ao Deus transcendente que, se por um lado se acha incomparavelmente acima de nosso mundo, de outro, intervm tambm ativamente na histria; sua presena constitui a salvao do homem (LADARIA, Luis F. Introduo Antropologia Teolgica. 1998, p. 47). O homem imagem de Deus e recebe dele uma misso extraordinria e, assim, a mais alta dignidade e superioridade sobre o mundo e as coisas, as plantas e os animais (WARNACH, V. Homem. In: FRIES, Heinrich (Org.). Dicionrio de teologia: conceitos fundamentais da teologia atual. 1983, p. 325). Segundo Gn 9,6 a semelhana com Deus recebida no momento da criao, constitui a dignidade do homem; graas a ela o homem o senhor da criao (Gn 1,28). [...] Concedida a todas as raas, a imagem se nos apresenta ordenada aliana de Deus com os homens, a qual faz parte da histria do gnero humano (OTTO, S. Imagem. In: idem, p. 407). Se o mundo grego, preocupado com o cosmos e a natureza, no chegou a suspeitar totalmente do valor de cada pessoa singular, nem chegou a reconhecer uma singularidade ontolgica irredutvel ou, o que equivalente, o valor absoluto de cada ser humano e sua dignidade incomparvel, o certo que contribui de forma decisiva viso do ser humano como imagem de Deus que deriva dos textos bblicos (ELIZONDO ARAGN, Felisa. Dignidade da Pessoa Humana. In: PESROSA ARS, Vicente Maria et alii (Org.). Dicionrio de catequtica. 2004, p.341).

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23 parecida com Deus, traz sua estampa, sua aparncia54: relacional, comunitria, em convivncia55. Mesmo com as diferenas hierrquicas e de sexo, a existncia em sociedade lhe vital56.

c) Ser escatolgico Essa criatura privilegiada, forjada imagem do criador supremo, encontra-se, aps breve existncia, diante da morte57. O homem mortal e tambm pecador. No AT, essas duas limitaes andam juntas (Gn 3). isso que o distingue mais do que qualquer coisa do criador58. Tal fim atribudo ira divina (cf. Sl 90,6; Jo 14,1-17); ao pecado que contamina a pessoa humana desde sua concepo (cf. Sl 51,7); culpa herdada do primeiro homem (cf. Gn 3,19)59. No Antigo Testamento, no epistemolgico60 o problema relacional entre a pessoa54

O homem, visto assim, surgiu, como tudo o mais, por um ato criador de Deus, mas ele criatura de Deus de uma maneira que o distingue do resto. A mais antiga narrativa da criao j diz isso (Gn 2,7 [J] (DEISSLER, Alfons. Ser humano/homem (NT). In: BAUER, Johannes B. (Org.). Dicionrio bblicoteolgico. 2000, p. 403). O homem bblico do Antigo Testamento um homem de relacionamentos. Ele se relaciona com sua mulher e seus filhos. V-se em muitas pginas o realce que se d fora desse vnculo. (RUIZ SALVADOR, Federico. Compndio de teologia espiritual. 1996, p. 172). O homem um ser social: sem a segurana da famlia, da tribo ou da sociedade poltica, ele no pode nem mesmo sobreviver, quanto mais atingir o grau de felicidade e plenitude que seria de esperar. No AT, as relaes entre indivduo e sociedade so diferentes da concepo que temos hoje, no sendo estabelecidas simples e facilmente. O indivduo um agente responsvel na sociedade, dela recebendo bens individuais, mas na sociedade do AT, o indivduo no pode alcanar aquela forma de independncia e afirmao que tem constitudo h tanto tempo o ideal da sociedade moderna (Mc KENZIE, John L. Dicionrio bblico. 2003, p. 426). Cf. Gn 6,3; Sl 90,3.9s; 104,29; Jo 34,14s; Ecl 12,7; 18,9 McKENZIE. John. Dicionrio bblico. 2003, p. 426. Em vez de receber como um dom a vida divina, Ado quis dispor de sua vida e, comendo do fruto da rvore, tornar-se deus. Com essa desobedincia o homem rompeu com a fonte da vida (LONDUFOUR, Xavier. In: LON-DUFOUR, Xavier et alii (Orgs). Vocabulrio de teologia bblica. 1987, p. 409). Deus sempre escapa a todas as categorias e pensamentos humanos (cf. Ex 15,11; Is 55,8s), no se comporta como os homens (cf. Os 11,9). Apesar de atriburem a Deus diversas partes ou rgos do corpo humano, nunca se faz uma descrio completa de Deus como um homem, porm, antes, usam-se termos e expresses pretensamente vagos e ambguos (cf. Ez 2,26; Dn 7,9) (LADARIA, Luis F. Antropologia. In: XABIER PIKAZA, O. de M.; SILANES, Nereu (Orgs.). Dicionrio teolgico: o Deus cristo. So Paulo: Paulus, 1998, p. 47).

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24 humana e Deus, mas religioso. A norma e a medida do homem a lei de Deus. Ela decide se ele, como imagem do criador, permanece aos seus cuidados, ou, no rompimento com a lei, atirado sua prpria sorte ao morrer61. Quando se fez evidente que havia justos afligidos por sua fidelidade lei, enquanto que outros, mpios, gozavam de grande felicidade, surgiu, aos poucos, na conscincia religiosa judaica, a questo da vida aps a morte. As eminentes virtudes dos mrtires e soldados da revoluo dos Macabeus exigiam uma justia pstuma que reparasse sua morte e permitisse a seres excepcionais e a todos os justos escapar regra comum e participar na eternidade com Deus (cf. Sb 3,1-9; 5,15), de quem o homem a imagem62. Tal crena, unida crescente esperana na sobrevivncia beatfica dos justos, que repararia as iniqidades dessa vida, conduziu, paulatinamente, f na ressurreio dos mortos63, na antropologia semita que no dualiza, na pessoa humana, alma imortal e corpo mortal64. A resposta definitiva sobre a viso bblica de pessoa humana dada por Jesus Cristo, a perfeio da lei. Nele, a pessoa humana alcana a ressurreio, realizando plenamente sua imagem e semelhana divina65.

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A ausncia da ressurreio na maior parte do AT um dos silncios do AT sobre a vida no alm sob qualquer forma. [...] Dn 12,2 apresenta uma ressurreio para a vida eterna, o que demonstra uma crena j firmada (McKENZIE, John. Dicionrio bblico. 2003, p. 791). 2 Mc conhece a idia da ressurreio (somente) dos justos, ou dos mrtires, para a felicidade (7,9-11.22s; 14,46), mas igualmente a do castigo dos pecadores aps a morte (6,26; 12,43-45) e mesmo a da vida eterna logo depois da morte (2 Mc 7,36). [...] Da mesma maneira como vacilam as idias sobre a ressurreio, vacilam tambm as sobre o estado depois da ressurreio. [...] Textos de Flvio Josefo mostram que ressurreio do corpo e imortalidade da alma no so entendidas como contraditrias (BROER, Ingo. Ressurreio. In: BAUER, Johannes B. (Org.). Dicionrio bblico-teolgico. 2000, p. 373). Cf. Dn 12,2s; 2 Mc 7,3-36; 12,43-45 A concepo hebraica do homem torna impossvel qualquer idia da vida no alm que no seja uma restituio da vida do corpo (McKENZIE, John. op. cit., p. 791). [] atravs da imagem desfigurada do velho homem se manifesta sempre melhor a imagem gloriosa do homem novo, Jesus Cristo Nosso Senhor; e com isso o homem se renova imagem do seu Criador (Cl 3,10). LON-DUFOUR, Xavier. Homem. In: LON-DUFOUR, Xavier et alii (Orgs). Vocabulrio de teologia bblica. 1987, p. 12).

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25 1.2.2 Antropologia do Novo Testamento

Os sinticos e os escritos no-paulinos, geralmente, mantm o pensamento antropolgico vtero-testamentrio, com forte influncia grega, j existente na hagiografia do judasmo helnico66. O Novo Testamento, em sua maior parte, no desenvolveu um corpo paralelo literatura sapiencial, jurdica e histrica do Antigo Testamento. Os evangelistas estavam to absorvidos pela surpreendente pessoa de Jesus e por sua obra salvfica que quase no falaram do homem e, quando tal acontece, o fazem s indiretamente67. Entretanto, na poca de Jesus, os fariseus e essnios achavam-se empenhados na tarefa do cumprimento literal da lei, a fim de acelerar a vinda do Reino de Deus68. A pessoa humana sacrificada lei. Jesus pe o homem acima da lei (cf. Mc 2,17), e proclamou que a participao na vida divina, Reino de Deus, foi inaugurada na humanidade com sua vinda terra (cf. Mt 5,3s; Mc 1,15). Os escritos joaninos apresentam dois princpios antropolgicos opostos: luz e trevas69. E, nos numerosos enunciados sobre o mundo, insistem nos acontecimentos que se situam em cima ou em baixo, no cu ou na terra, na luz ou na escurido, na vida ou na morte. Descreve o homem a partir da carne ou do esprito, colocando-o como centro e meta da histria e da criao (cf. Jo 1,1-18).

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Cf. Sb 2,21-3,8; 4,1.7; 5,15s; 8,20; 2 Mc13,15; 15,2s; 17,12-18; 18,23 WARNACH, V. Homem. In: FRIES, Heinrich (Org.). Dicionrio de teologia: conceitos fundamentais de teologia atual. 1983, p. 332. A idia helenstica da realeza divina, que teve sua origem com Alexandre Magno, voltou a ser vivificada no culto ao imperador romano. [...] O efeito da confisso rios sous, que os cristos empregavam para proclamar Jesus como Senhor, haveria de destruir esta ideologia vital do imprio romano, e a reao que obteve foi a perseguio dos cristos durante os trs primeiros sculos (KLAPPERT, Bertold. Rei, reino: aa. In: COENEM, Lothar; BROWN, Colin (Orgs.). Dicionrio internacional de teologia do Novo Testamento. 2. ed. So Paulo: Vida Nova. 2000. 2 v, p. 2025). Trevas so a incapacidade de viver, ou querer viver por si mesmo, recusando a luz do revelador que deseja dar brilho aos homens (Jo 1,5). Esses homens transformam-se em trevas porque fecham luz, que torna possvel a existncia ser luminosa [...] (WOSCHITZ, Karl M. Ser Humano/Homem. In: FRIES, Heinrich. op. cit., p. 409).

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26 Paulo, fariseu de formao, fortemente influenciado pela cultura grega, na qual vivia, marcadamente platnico, sem aniquilar as concepes antropolgicas vterotestamentrias, as amplia radicalmente. As cartas paulinas so textos de uma teologia aplicada, que tematicamente ou no, fala do homem, do que ele veio a ser pela revelao de Deus em Cristo e do que ele, em comparao, deve ter sido antes e fora de Cristo70. Para ele, uma vez acolhida a mensagem do Evangelho, torna-se homem novo, imagem de Cristo, novo Ado (cf. 1 Cor 15,45-49)71. pessoa nova, que vive, certamente, nesse mundo, porm o transcende. Essa transformao no se deve prtica da lei mosaica ou os frutos de pretensos mritos prprios, mas na f em Jesus Cristo (cf. 2 Cor 5,17), dom da graa de Deus (cf. Rm 3,21s). Pelo Batismo, morre o velho homem72 e fica livre do pecado a fim de viver o seguimento de Cristo (cf. Rm 6,6; 7,6). A partir dele, todos so dotados da graa divina73. A literatura neotestamentria mais explcita do que o Antigo Testamento, sobre a existncia do pecado, e a morte dele decorrente, graas, em grande parte, aos escritos paulinos. Neles, o homem renovado criatura nova, inserido no mistrio pascal de Cristo

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Idem, p. 406. O tema do novo Ado reassume a teologia da imagem do pecado, da forma de redeno por humildade e obedincia (RUIZ SALVADOR, Federico. Compndio de teologia espiritual. 1996, p. 174). O homem velho escravo do pecado (Rm 6,6); devemos nos despojar desse velho homem (Ef 4,22; Cl 3,9) para assumir o homem novo. O homem novo criado mediante a morte de Cristo (Ef 2,15) e, como homem novo, criado imagem e semelhana de Deus como o homem foi criado originalmente (Gn 1,26s; Ef 4,24; Cl 3,10). O homem novo, que vive a vida nova, o homem interior, ao passo que o homem exterior a totalidade psicofisiolgica que est sujeita morte (2 Cor 4,16). [...] Por si mesmo, o homem incapaz de pensar ou realizar qualquer coisa que Deus tenha cumprido em Cristo. Ele permanece homem e, portanto irremediavelmente pecador e mortal (McKENZIE. Dicionrio bblico. 2003, p. 427). H um aspecto do homem bblico que nos mostra talvez como nenhum outro a sensao de sua grandeza divina. Trata-se de sentimento do pecado e do perdo. Nessas atitudes emerge a realidade de sua origem divina, de sua vocao divina, e enfatiza-se o amor e o apreo com que Deus cuida dele por meio de dons, exigncias, do perdo incondicional. O pecado mostra com destaque em sua escurido a fora maior do amor. No Novo Testamento, conservam-se e potencializam-se essas linhas. A noo de Imago Dei, inserida no conjunto da teologia neotestamentria, recebe contedo novo e muito denso no plano moral e soteriolgico, cristolgico e escatolgico. So Paulo quem mais desenvolve essas idias (RUIZ SALVADOR, Federico. Compndio de teologia espiritual. 1996, p. 173).

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27 (cf. Rm 6,3; Cl 2, 12-13)74, para que sua vida seja cada vez mais profunda no Esprito (cf. 1 Cor 15, 44b-49; 1 Ts 5,23). espiritual e interior (cf. 1 Cor 3,1-3); vive em liberdade, de acordo com a vontade de Deus (cf. Gl 5,13); entra na intimidade divina, da qual a imagem (cf. Cl 1,15-20); tem os mesmos sentimentos de Jesus Cristo (cf. Fl 2,5); coloca-se a servio dos irmos (cf. Cl 3,14) e sua vida crist construda na f, na esperana e no amor (cf. 1 Cor 13,13), por onde deve avanar e progredir.

1.2.3 Antropologia patrstica

Em geral, os Santos Padres desenvolvem a reflexo sobre a pessoa humana percorrendo a via vtero-testamentria e So Paulo75. A Imago Dei o fundamento antropolgico mais comum na teologia patrstica. Todavia, mesmo entre os Santos Padres h diversidade de consideraes sobre a diferena entre imagem e semelhana76. A esse propsito Ireneu induziu em Gn 1,26 uma distino que no originria do texto bblico, entendendo a palavra imagem como referida ao constitutivo natural do homem; e semelhana vida no Esprito77. Sectarismo tpico de influncia platnica, mas os Pais

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Paulo v o homem sempre luz de sua origem e de seu destino, em sua relao existencial de criatura para com o Criador e a criao. Diante do homem est, como nica possibilidade vital, uma meta irredutvel: o prprio Deus, como a salvao de toda a salvao. Predestinou-nos, ao amor, a ser filhos para ele, por Jesus Cristo (Ef 1,5; cf. Rm 8,29). Isso define o ser homem como possibilidade de ser cristo, o que o maior milagre de Deus (WOSCHITZ, Karl M. Ser humano/homem. In: BAUER, Johannes B. (Org.). Dicionrio bblico-teolgico. 2000, p. 408). O desenvolvimento da antropologia bblica, na antiguidade, foram basicamente dois: um na linha de Gn 1, 26 e o outro na linha paulina de uma antropologia fundamentada na cristologia (GROSSI, Vittorino. Antropologia. In: BERNARDINO, ngelo di (Org.). Dicionrio patrstico e de antiguidades crists. Petrpolis: Vozes; So Paulo: Paulus, 2002, p. 121). Na patrstica, esta distino praticamente unnime, apesar de nem sempre ser uniforme. Mas mesmo quando no h clara distino, supem-se uma tenso entre os termos (RIBEIRO, Hlcion. Ensaio de antropologia crist: da imagem semelhana com Deus. 1995. p. 105). GROSSI, Vittorino. op. cit., p.122.

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28 da Igreja inspiram-se, fundamentalmente, nos textos bblicos78. Os Santos Padres no afirmam simplesmente que o ser humano Imago Dei, mas segundo a imagem, pois o verdadeiro cone do Pai o Verbo79. medida que os debates cristolgicos avanam, se inclinam a afirmar que o homem a imagem do Verboencarnado80, o arqutipo na qual o ser humano foi moldado81. A imagem a totalidade do ser humano. Mesmo havendo desacordos, alexandrinos e antioquenos, latinos e orientais, criao ou Batismo82, prevalece essa convergncia: a imagem de Deus inerente natureza humana, maculada pelo pecado e que deve ser recuperada pelo Batismo. Ela confere uma participao ontolgica divina e faz com que o ser humano seja capaz de conhecer a Deus; deseje a beleza e aspire naturalmente o

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em torno desses temas que se desenvolver a recuperao de Plato, pelo cristianismo em geral e da patrstica em especial (Miano, Francesco. Plato. In: BORRIELLO, Luigi et alii. Dicionrio de mstica. 2003, p. 879). Embora tenha sido aceito, em geral, o esquema dicotmico grego do homem corpo-alma, todavia este no veio a configurar-se numa ntida separao dualista, e isso em virtude da f comum na ressurreio dos corpos e na encarnao do Verbo. GROSSI, Vittorino. Antropologia. In: BERNARDINO, ngelo di (Org.). Dicionrio patrstico e de antguidades crists. 2002, p. 121). Este conceito est relacionado com a teologia da revelao: Jesus enquanto imagem do Pai, o revela. A idia do homem, que no Antigo Testamento aparece como central, agora reinterpretada da maneira cristolgica (LADARIA, Luis F. Introduo antropologia teolgica. 1998, p.52). Sabemos que o Verbo assumiu um corpo no seio da Virgem e transformou o homem velho em uma nova criatura. Sabemos que ele homem da nossa mesma substncia. [...] Quando contemplares Deus tal qual , ters um corpo imortal e incorruptvel, como a alma, e possuirs o reino dos cus, tu que, peregrinando na terra, conhecestes o Rei celeste; vivers ento na intimidade de Deus e sers herdeiro com Cristo (HIPLITO DE ROMA, Presbtero. Refutao de todas as Heresias: cap. 10, 33-34 PG 16, 3452-3453. In: LITURGIA das Horas. 1995, 1 v, p. 412). Os Padres e escritores eclesisticos dos primeiros sculos leram Gn 1,26s luz do NT, de Paulo em particular, e combinaram assim, a protologia com a escatologia. Ressaltaram o modo como, sendo somente o Filho a imagem de Deus, ns, homens, fomos criados segundo a imagem, ou seja, imagem da imagem, o Filho. [...] intil dizer que considerar Jesus o modelo cuja imagem o homem foi criado, de maneira alguma, significa questionar sua divindade nem sua consubstancialidade (LADARIA, Luis F. Antropologia. 1998, p. 51). A Escola Alexandrina se desenvolveu e predominou na cultura ocidental crist. Houve nela uma nfase sempre mais profunda na dimenso ontolgica. Entre seus expoentes esto Sto. Agostinho, S. Toms de Aquino e os tomismos decorrentes. A Escola Antioquena no teve um desenvolvimento constante mas vai estar coligada com uma tradio que passa pela Escola Franciscana, com Duns Scotus, S. Boaventura, e de certa forma com as teologias contextuais de hoje. Privilegia a histria da salvao. E quase de modo simplista poder-se-ia afirmar que as duas grandes Escolas mantm a positiva tenso dialtica de toda a teologia, desde os primeiros grandes Conclios (Nicia, Calcednia, Constantinopla) at as correntes contemporneas que enfatizam o dogma sobre a histria ou a histria sobre o dogma (RIBEIRO Hlcion. Ensaio de Antropologia crist: da imagem semelhana com Deus. 1995, p. 106-107).

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29 Criador, esteja na presena permanente da graa que no s o impele a ser como Deus, mas o torna de sua estirpe, elevando-o e fazendo-o, semelhante a Ele, um mistrio83. So possveis dois caminhos: o agostiniano, onde se quer chegar a Deus partindo de sua imagem humana, uma via ascendente84, e o dos padres orientais, onde se procede inversamente, ou seja, se a pessoa humana imagem divina, deve-se partir de Deus para conhecer o ser humano, uma antropologia do trmino, descendente. habitual na Patrstica Latina a polarizao natureza-graa, natural-sobrenatural. Contudo, a natureza humana no pura, pois imagem divina e de algum modo toma parte ontologicamente nessa divindade. essencialmente boa, participa de Deus e possui as primcias do Reino. Nem o pecado aniquila essa imagem. Os orientais no possuem o pessimismo de alguns latinos. Para eles o pecado ser sempre estranho natureza humana e, por isso, a noo de encarnao no constitui para Deus um ir ao estrangeiro: o Verbo se encarna em seu cone vivente, em sua imagem viva que o ser humano. O homem o rosto humano de Deus, cone divino. A est o fundamento ltimo de sua dignidade. A encarnao no determinada pela culpa, mas pela divinizao humana. Os orientais no tm a felix culpa agostiniana, exaltada na Viglia Pascal85 pelos latinos. Entretanto, para ambos, a autntica grandeza da pessoa humana est em ser imagem de Deus.

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O novo nascimento o momento mais freqentemente salientado pelos Padres (BETZ, J. Batismo. In: FRIES, Heinrich (Org.). Dicionrio de teologia: conceitos fundamentais da teologia atual. 1983, p. 189). [...] Agostinho, ainda se aprofunda na descoberta da imagem de Deus na alma: a notcia, o verbo da mente, igual a prpria mente, dela gerada; o amor, embora no se possa dizer que seja gerado, tampouco, menor do que a mente, porque tambm esta ama o que conhece e o que (cf. IX, 12,18) (LADARIA, Luis F. Antropologia. 1998, p. 49). Bendita a culpa que nos vale um semelhante Redentor! (MISSAL Romano. 1992, p. 275).

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30 1.3 A SANTSSIMA TRINDADE: ORIGEM DO CHAMADO86

Deus o autor do chamado, Deus Uno e Trino. O retorno s fontes, bblicopatrsticas, nos permite aproximar da teologia trinitria, a fim de conhec-la melhor.

1.3.1 A Trindade e o Antigo Testamento

O termo Trindade no aparece nas Sagradas Escrituras87. Mesmo assim, constatase, no Antigo Testamento uma pedagogia quanto revelao da identidade divina88, plenificada com o evento Cristo89. Nos escritos do Antigo Testamento, especialmente atravs de manifestaes como Anjo de Iahweh, Esprito de Deus e Sabedoria, v-se uma certa pluralidade divina. "Os fiis do A.T. podiam compreender estas expresses somente pela ao histrica de Deus.

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Lembrando que ainda sofremos por falta de uma teologia mais sistemtica sobre as vocaes, precisamos considerar melhor este aspecto, destacando sobretudo a dimenso trinitria do chamado divino. Deus a fonte da vocao: o Pai chama para a misso; o Filho, servidor do Pai, exprime esse chamado, nos envia; o Esprito Santo faz ecoar a palavra em vista do bem de todos (CNBB. Setor Vocaes e Ministrios. Batismo: fonte de todas as vocaes: texto base do ano vocacional 2003. 2002, n. 116). Buscaremos consideraes, no conceituaes sobre a Trindade, [...] mistrio central da f e da vida crist [...] a fonte de todos os outros mistrios, a luz que nos ilumina (CaIC 234). Toda anlise deve partir de que a Trindade constitui um mistrio impenetrvel (SCHMAUS, Michael. Trindade. In: FRIES, Heinrich (Org.). Dicionrio de teologia: conceitos fundamentais da teologia atual. 1987, p. 364. 5 v.). Agir como o Profeta diante de Deus: Imediatamente Moiss caiu de joelhos por terra e adorou (Ex 34,8). Todavia, declarar [...] que Deus mistrio no quer dizer que seja impossvel conhec-lo. Significa que tal conhecimento nunca ser esgotado (CASTRO, Valdir Jos de. Mstica da realizao humana: espiritualidade crist. 2. ed. So Paulo: Paulus, 1998, p. 20). Acerca de consideraes sobre o mistrio da Santssima Trindade, cf. RAHNER, Karl. Mtodo e estrutura do De Deo Trino. In: Mysterium Salutis: compndio de dogmtica histrico-salvfica II/1. Petrpolis: Vozes. 1972, p. 283). A crena nesses termos foi definida somente no sc. IV e V d.C. (McKENZIE, John. Dicionrio bblico. 2003, p. 947). [...] no h apenas uma teologia sobre Deus, mas muitas. [...] uma pedagogia progressiva que faz o povo perceber cada vez mais elementos da identidade de seu Deus e preparar-se para receber sua revelao definitiva (BINGEMER, Maria Clara L.; FELLER, Vitor Galdino. Deus Trindade: a vida no corao do mundo. Valncia (ESP): Siquem: So Paulo: Paulinas, 2003, p. 62). Cf. 1 Cor 10,11; Gl 3,24; Hb 10,1

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31 Mas olhando do N.T. para o A.T., nas imagens deste se podem ver acenos tripersonalidade e incios da manifestao de Deus em trs pessoas90. Mesmo que o ensino trinitrio no esteja explicitamente contido no Antigo Testamento, percebe-se a ocorrncia de episdios sugestivos quanto existncia de mais pessoas, isso j na prpria narrativa da criao91. Pois, os exegetas, em geral92, dizem que o Antigo Testamento a preparao imediata da revelao divina na Trindade atravs da plenitude salvfica de Cristo, transmitida no Novo Testamento. Deus, pois, inspirador e autor dos livros de ambos os Testamentos, de tal modo disps sabiamente, que o Novo estivesse latente no Antigo e o Antigo se tornasse claro no Novo93.

1.3.2 A teologia trinitria no Novo Testamento

Os hagigrafos da Boa-Nova afirmam unanimente, desde o incio da pregao, que Jesus de Nazar o prprio Deus revelado: uma das pessoas da Trindade. No apenas algum que revela Deus. E isso passou prpria prtica batismal.

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SCHMAUS, Michael. Trindade. In: FRIES, Heinrich (Org.). Dicionrio de teologia: conceitos fundamentais da teologia atual. 1987, p. 366. Por exemplo, segundo Gnesis 1,26, Deus disse: Faamos o homem nossa imagem, conforme a nossa semelhana[...] A melhor explicao, e a nica sustentada quase unanimamente pelos pais da Igreja e telogos mais antigos, a de que j no primeiro captulo de Gnesis existe a indicao da pluralidade de pessoas no prprio Deus. No que haja uma referncia a quantas pessoas, e no temos nada nesse texto que aborde uma completa doutrina da Trindade, mas fica implcito que mais de uma pessoa est envolvida nesse texto. O mesmo pode ser dito de Gnesis 3,22 (Agora o homem se tornou como um de ns, conhecendo o bem e o mal), Gnesis 11,7 (Venham, desamos e confundamos a lngua que falam) e Isaas 6,8 (Quem enviarei? Quem ir por ns?). (Note a combinao de singular e plural na mesma frase no ltimo texto (Idem, p.109-110). H controvrsias, pois o Antigo Testamento no conteria ensino alusivo ou prefigurativo Trindade: O que h so termos que o NT usa para exprimir a Trindade das pessoas: Pai, Filho, Verbo, Esprito, e outros. O estudo desses termos demonstra que a revelao no NT avana alm da revelao de Deus no AT. (DB, p. 948). Chega-se a julgar tal atitude como: Piedosa interpretao de muitas geraes crists que se considera hoje verdadeira violncia ao texto (CATO, Francisco. A Trindade: uma aventura teolgica. So Paulo: Paulinas, 2000, p. 15). AGOSTINHO DE HIPONA. Quaest. In Hept. 2,73: PL 34, 623. In: COMPNDIO DO VATICANO II. Constituies, decretos, declaraes. 18. ed. Petrpolis: Vozes, 1986, p. 133.

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32No h dvida alguma de que os cristos se distinguiram, desde o incio, dos outros crentes, judeus ou no judeus, por admitirem os convertidos na comunidade de Jesus Cristo, batizando-os em nome do Pai, do Filho e do Esprito Santo (Mt 28,19; Didaqu 7) [...] Esta f batismal, baseada sobre a experincia da presena espiritual de Jesus de Nazar, confirmado por Deus na ressurreio como Cristo e Senhor, representou uma influncia decisiva em toda a evoluo do dogma e da teologia trinitria94.

Entretanto, os Evangelhos e outros livros do Novo Testamento do testemunhos diversos entre si sobre a Trindade. Os escritos teolgicos dos Sinticos so distintos dos joaninos95. Em Atos, encontramos outros objetivos trinitrios. No basta apenas olhar a Jesus de Nazar ou transcrever algumas palavras e situaes evanglicas [...] com aparente contedo trinitrio e interpret-las a partir do dogma posterior96. necessrio levar em conta que so escritos ps-pascais e avanar teologicamente no todo da revelao. Ao observarmos os Sinticos, destacamos, inicialmente, os evangelhos da infncia97. Merece especial ateno o Batismo do Senhor98, [...] Jesus aparece como Ungido escatolgico, amado do Pai, sobre quem desce o Esprito Santo99. E o mandato missionrio (cf. Mt 28,19). Destacam-se, tambm, inmeros textos onde aparece a relao do Messias com o Pai e Esprito Santo100. Joo desenvolve a teologia do Logos.

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STUDER, Baslio. Trindade. In: BERNARDINO, ngelo di (Org.) Dicionrio patrstico e de antiguidades crists. 2002, p. 1386). Nos primeiros, temos [...] somente um testemunho interpretativo, isto , teolgico, daquilo que viram em Cristo e dele ouviram (SCHMAUS, Michael. Trindade. In: FRIES, Heinrich (Org.). Dicionrio de teologia: conceitos fundamentais da teologia atual. 1983, p. 367). J no quarto Evangelho e escritos joaninos: Tal carter de interpretao ainda mais pronunciado. [...] Sob este aspecto, Paulo est entre os sinticos e Joo (idem, p. 367). SCHIERSE, Franz Josef. Revelao Trinitria Neotestamentria. In: Mysterium Salutis: compndio de dogmtica histrico-salvfica II/1, 1972, p. 77. Cf. Mt 1,16.18.23; Lc 1,32-35; 2,25-26 Cf. Mt 3,13-17; Mc 1,2-11; Lc 3,2-13 ROVIRA BELLOSO, Josep M. Trindade: Pai, Filho e Esprito Santo. In: XABIER PIKAZA, O. de M.; SILANES, Nereu (Orgs.). Dicionrio teolgico: o Deus cristo, 1998, p.878. Cf. Mt 11,25;12,28; Lc 4,18; 11,20; 24,49; Mc 13,9-13

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33Diferentemente dos outros enunciados naquela poca, o logos de Joo tem como caracterstica principal a historicidade (Jo 1,14; cfr. especialmente 1Jo 1,1-3). O logos preexistia a todos os tempos; vivia junto de Deus, era Deus e fz-se carne no Tempo [...] Contudo a expresso logos est novamente na primeira carta de Joo e no Apocalipse [...] O que brevemente traado no prlogo, desenvolvido no Evangelho. Filho usado no lugar da expresso logos, faz aparecer em maneiras e imagens sempre novas tanto o eu pessoal do Senhor, como a sua natureza divina; tanto a sua distino do Pai, como a sua ligao com ele. O Filho mais antigo do que as estirpes mais antigas, antes de todo o mundo, pois existe antes de toda coisa (Jo 3,11-13; 3,46; 8,23.38; 17,5). Ele deve tudo ao Pai (Jo 5,36.23.27; 3,35;13,3;16,15). Ao mesmo tempo uma s coisa com o Pai no ser e no agir. O Pai est nele e ele est no Pai. Quem v o Filho v por isso mesmo tambm o Pai (Jo 14,10s, 20.7.9; 10,37; 17,21). Cristo Senhor e Deus (Jo 20,28). Esta a vida eterna: conhecer Deus e aquele que ele enviou, Jesus Cristo (Jo 17,3). A unidade de Pai e Filho princpio e modelo da unidade dos cristos entre si (Jo 14,20)101.

Nos escritos paulinos est subjacente uma vasta teologia trinitria e soteriolgica. Muitas de suas cartas contm saudaes que, mesmo no citando explicitamente a Trindade, fazem meno a Jesus como Filho, e a Deus como Pai.Segundo o testemunho de Paulo, Cristo envia queles que crem nele o Esprito de Deus. No cristo ele o princpio de uma vida nova, verdadeiramente divina porque Cristo o primognito entre muitos irmos, que possui o esprito sem medida; comunica os dons do Esprito Santo, que possui em plenitude, a todos aqueles que esto unidos nele pelo batismo102.

A Igreja nascente pneumtica. Ela age pela santificao do Esprito, segundo a prescincia de Deus Pai, para obedecer a Jesus Cristo (cf. 1 Pd 1,2a). A f trinitria aparece nitidamente na ao da terceira Pessoa, pois o Esprito Santo enviado no Pentecostes (cf. At 2,1-5). Daquela ocasio em diante Ele guia e comanda a Igreja, sendo o agente principal em todos os acontecimentos (cf. At 5,3.9.32; 15,28). As primeiras comunidades crists foram percebendo que: A histria trinitria de Deus revelada na Pscoa a histria de salvao, histria nossa103.

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SCHMAUS, Michael. Trindade. In: FRIES, Heinrich (Org.). Dicionrio de teologia: conceitos fundamentais da teologia atual. 1987, p. 367. idem, p.371. BINGEMER, Maria Clara L.; FELLER, Vitor Galdino. Deus Trindade: a vida no corao do mundo. 2003, p. 92.

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34 1.3.3 Contributo Patrstico Formulao da Teologia Trinitria

No cnon das Sagradas Escrituras no encontramos uma doutrina explcita, clara e segura da Santssima Trindade e nem havia preocupao com relao a isso104. Entretanto, j nos primrdios do Cristianismo, surgem as dvidas, as pseudo-interpretaes e o nascimento das primeiras heresias. Foi em defesa da ortodoxia e da unidade que a Igreja reunida em Conclios, pastores e telogos foram explicitando a doutrina trinitria que, embora elaborada nas origens crists, vlida e atual.

a) Heresias trinitrias Hoje, vive-se uma certa tranqilidade entre os cristos com relao ao dogma da Santssima Trindade. Encontramos consenso harmonioso. Mas no foi sempre assim105. Desde os tempos apostlicos, busca-se a ortodoxia e a purificao da f, gerando muitas vezes cises no Corpo de Cristo. Destacamos: Modalismo106; Arianismo107; Tritesmo108;

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A evoluo da doutrina, durante os primeiros trs sculos caracterizou-se sobretudo pela transio por que passou a f batismal, indo do ambiente apocalptico para o helenstico (STUDER, Baslio. Trindade. In: BERNARDINO, ngelo di (Org.). Dicionrio patrstico e de antiguidades crists. 2002, p. 1386). As definies trinitrias surgiram como resultado de longas controvrsias, nas quais esses termos e outros como essncia e substncia, foram erroneamente aplicados a Deus por alguns telogos. (McKENZIE, John. Dicionrio bblico. 2003, p.947). Na terminologia moderna se usa preferencialmente o vocbulo modalismo para designar a doutrina trinitria que no reconhece a consistncia pessoal distintiva do Pai, no Filho e no Esprito Santo, reduzindo sua realidade a simples modos ou momentos manifestativos do Deus nico. Na histria da teologia esta doutrina tem recebido diversas designaes: monarquianismo [...]; patripassianismo [...]; sabelianismo [...] (GUERRA, Santiago. Modalismo. In: XABIER PIKAZA, O. de M.; SILANES, Nereu (Orgs.). Dicionrio teolgico: o Deus cristo. 1998, p.586). Doutrina hertica sustentada por rio (+336), presbtero de Alexandria, segundo a qual a Segunda Pessoa da Santssima Trindade no Deus por essncia, mas uma criatura, a primeira, to intimamente relacionada com Deus, que o Pai a adota como Filho (PEDRO, Aquilino de. Dicionrio de termos religiosos e afins. 1993, p. 24). Portanto, h trs deuses. [...] Poucas pessoas defenderam esse pensamento na histria da igreja, que apresenta semelhanas com muitas religies pags antigas que sustentavam a multiplicidade de deuses. GRUDEM, Wayne A. Manual de teologia sistemtica: uma introduo aos princpios da f crist. So Paulo: Vida. 2001, p. 120).

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35 Subordinacionismo109; Filioque110.

b) Credo Niceno-Constantinopolitano O grande evento eclesial a normatizar a teologia trinitria foi o primeiro Conclio ecumnico de Nicia (325 d.C.), convocado pelo imperador Constantino, com seus 318 Padres, juntamente com o primeiro Conclio ecumnico de Constantinopla (381 d.C.), onde participaram 150 Padres111. Deles nasceu o que chamamos de Credo NicenoConstantinopolitano112. Pouco depois, esse smbolo se inseriu liturgia e determinou a f trinitria da Igreja.

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Com o termo subordinacionismo designa-se uma posio cristolgico-trinitria que tende a fazer de Cristo realidade inferior e subordinada a Deus Pai (e do Esprito Santo realidade subordinada tambm a Cristo); [...] pode-se enquadrar o chamado adocianismo, que faz de Cristo mero homem adotado por Deus como seu filho por causa de seu comportamento; a forma moderna de designar a tendncia doutrinal que os outros autores preferem qualificar de monarquianismo dinmico (CURA ELENA, Santiago Del. Subordinacionismo. In: XABIER PIKAZA, O. de M.; SILANES, Nereu (Orgs.). Dicionrio teolgico: o Deus cristo. 1998, p. 839). A clusula do Filioque introduzida no Ocidente no smbolo da f, tem sido ao longo da histria problema central, que questionou radicalmente as relaes entre as Igrejas do Oriente e do Ocidente (GARIJO GUEMBE, Miguel. Filioque. 1998, p. 357). Os latinos professam, [...] o Pai e o Filho como nico princpio do Esprito Santo (STUDE, Baslio. Trindade. In: BERNARDINO, ngelo di (Org.). Dicionrio patrstico e de antiguidades crists. 2002, p. 1388). Os orientais discordam veementemente, [...] porque querem evitar o perigo de que o Esprito fosse uma criatura, no proveniente da mesma hipstase do Pai, mas feita por meio do Filho, como as outras criaturas (idem, p. 1388). Formulou-se uma profisso conciliatria: A frmula foi aceita, mas a diviso entre as Igrejas continuou (BINGEMER, Maria Clara L.; FELLER, Vitor Galdino. Deus Trindade: a vida no corao do mundo. 2003, p.158). Esses conclios foram fundamentais para a evoluo da f trinitria. Lanaram as bases slidas para o que seria a f da Igreja nestes 2000 anos (idem, p. 155). Cremos em um s Deus Pai todo-poderoso, Criador do cu e da terra, de todas as coisas visveis e invisveis; e em s Senhor Jesus Cristo, Unignito de Deus, nascido do Pai antes de todos os sculos; Deus de Deus, Luz de Luz, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro; gerado, no criado, consubstancial com o Pai, por quem foram feitas todas as coisas; que por ns homens e por nossa salvao desceu do cu e Se encarnou, por obra do Esprito Santo, no seio da Virgem Maria e Se fez homem; por ns foi crucificado, sob Pncio Pilatos, padeceu e foi sepultado e ressuscitou ao terceiro dia, segundo as escrituras, e subiu ao cu; e est sentado direita do Pai; e de novo vir, com glria, para julgar os vivos e os mortos; e Seu Reino no ter fim. Cremos no Esprito Santo, Senhor e doador da vida, que procede do Pai; que com o Pai e o Filho recebe a mesma adorao e glria, que falou pelos profetas. Cremos na Igreja, una, santa, catlica e apostlica. Confessamos um s Batismo para a remisso dos pecados. Esperamos a ressurreio dos mortos e a vida do mundo que h de vir. Amm (CREDO NICENOCONSTANTINOPOLITANO. Msi 6, 957; ACO II, 1/2, 80. In: COLLANTES, Justo . A F Catlica: Documentos do Magistrio da Igreja: das origens aos nossos dias. Rio de Janeiro: Lumen Christi; Anpolis: Diocese de Anpolis. 2003, p.1224).

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36 c) Contributo dos Santos Padres A f explicitada nesses Conclios nasceu, fundamentalmente, de grandes telogos da chamada idade de ouro da patrstica113. Citamos alguns114: Incio de Antioquia (+ 110 d.C.), primeira contribuio significativa, sem preocupao com defesa e argumentao racional; Atengoras (sc. II d.C.), acredita-se que gerou a primeira abordagem racional da Trindade, antecipando-se a Ireneu de Lio e Hilrio de Poitiers; Ireneu de Lio (+202 d.C.), o mais importante entre os telogos do sculo II, discpulo de Policarpo chamado o Pai da dogmtica catlica; Tertuliano (+ depois de 220 d.C.), antes de Agostinho um dos mais originais escritores eclesisticos, desenvolve uma teologia que se firmar mais tarde no Ocidente; Novaciano (assume cargo importante em 250 d.C.), no possui a genialidade de Tertuliano, polmico e cismtico, contudo, sua teologia trinitria ortodoxa, escreve De Trinitate; Orgenes (+253/254 d.C.), grande telogo especulativo, criador do primeiro tratado coerente de teologia sistemtica com a obra Tratados sobre os Princpios; Atansio de Alexandria (+373 d.C.), defensor no Oriente das resolues de Nicia, no qual teve participao fundamental115; os Capadcios: Gregrio de Nazianzo (+390 d.C.), Baslio de Cesaria (+379 d.C.) e Gregrio de Nissa (+394 d.C.), procuraram responder teologicamente ao modo de distino entre as Pessoas

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DROBNER, Hubertus R. Manual de Patrologia. Petrpolis: Vozes, 2003, p. 195. As reflexes a seguir, sobre o contributo dos Santos Padres, fundamentar-se-o em: ROVIRA BELLOSO, Josep, M. Trindade: Pai, Filho e Esprito Santo. In: XABIER PIKAZA, O. de M.; SILANES, Nereu (Orgs.) Dicionrio teolgico: o Deus cristo. 1998, p. 882-888. Ora, a nossa f esta: cremos na Trindade santa e perfeita, que o Pai, o Filho e o Esprito Santo; nela no h mistura alguma de elemento estranho; no se compe de Criador e criatura; mas toda ela potncia e fora operativa; uma s a sua natureza, uma s a sua eficincia e ao. O Pai cria todas as coisas por meio do Verbo, no Esprito Santo; e deste modo, se afirma a unidade da Santssima Trindade (ATANSIO DE ALEXANDRIA. Ep. 1 ad Serapionem, 28-30: PG 26,594-595.599. In. LITURGIA das Horas. 1995, III v, p. 530).

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37 na unidade de substncia116

; Hilrio de Poitiers (+367 d.C.), clebre a sua obra em 12

livros, De Trinitate, onde desvela, particularmente, as relaes mtuas entre o Pai e o Filho, sem descuidar-se do papel santificador do Esprito.

d) Agostinho de Hipona (354-430 d.C.) Proeminente mistagogo da idade de ouro da patrstica: bispo, telogo, filsofo, escritor, pastor, orador e mstico. Seus escritos, muitos deles famosos por suas investidas contra os arianos e pelagianos, determinaram, posteriormente, toda a teologia latina, tambm sobre a Trindade. Na terminologia esclarecer divergncias; na teologia trinitria, o grande contributo veio, especialmente, atravs da sua obra De Trinitate: quinze livros gerados durante longo tempo (399 a 420 d.C.)117, escrita aps os Conclios ecumnicos de Nicia e Constantinopla118.[...] esta obra, a mais teolgica de Agostinho, no apenas reformulou de modo feliz o dogma trinitrio herdado dos Padres, mas com sua doutrina sobre o homo interior imago Trinitatis, aprofundou tambm de maneira toda pessoal a teologia trinitria anterior. Partindo do nico Deus, Agostinho a procura circunscrever e explicar a Aequalitas Personarum [...] de fato, Agostinho a demonstra, com uma clareza nunca alcanada antes dele, a correspondncia entre a Teologia econmica e a Teologia imanente119.

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Antes de todas as coisas, conservai-me este bom propsito, pelo qual vivo e combato, com o qual quero morrer, que me faz suportar todos os males e desprezar todos os prazeres: refiro-me profisso de f no Pai e no Filho e no Esprito Santo. Eu vo-la confio hoje, por ela que daqui a pouco vou mergulhar-vos na gua e vos tirar dela. Eu v-la dou como companheira e dona de toda a vossa vida. Dou-vos uma s Divindade e Poder que existe Una nos Trs, e que contem os Trs de uma maneira distinta. Divindade sem diferena de substncia ou de natureza, sem grau superior que eleve ou grau inferior que rebaixe...A infinita conaturalidade de trs infinitos. Cada um considerado em si mesmo Deus todo inteiro... Deus os Trs considerados juntos. Nem comecei a pensar na Unidade, e a Unidade me banha no seu esplendor. Nem comecei a pensar na Trindade, e a unidade toma conta de mim (GREGRIO NAZIANZENO. Or. 40,41: PG 36, 417. In: CATECISMO DA IGREJA CATLICA. 1993, n.256). Cf. DROBNER, Hubertus R. Manual de Patrologia. 2003, p. 427. Apenas no sculo V temos uma terminologia tcnica, que passou ao patrimnio da Igreja [...], no Conclio provincial de Toledo, no ano 400, no smbolo Quicumque, chamado comumente, smbolo Atanasiano. Este smbolo, ou profisso de f, sintetiza toda a verdade sobre a Santssima Trindade e a encarnao (GRINGS, Dadeus. Nosso Deus Pai, Filho e Esprito Santo. Porto Alegre: ITCR, 1974, p.128). STUDER, Baslio. Trindade. In: BERNARDINO, ngelo di (Org.). Dicionrio patrstico e de antiguidades crists. 2002, p. 1389.

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38 A diligncia em desvelar o mistrio da Santssima Trindade marcou sua poca, inclusive lendariamente120. A excelsa Trindade, porm, um tanto quanto os trs juntos; e dois so tantos quanto um. E so em si infinitos. Desse modo, cada uma das Pessoas divinas est em cada uma das outras, e todas so somente um. [...] Porque Deus uno, mas Trindade tambm121. E habita na pessoa humana, reflexo trinitrio: homo interior imago Trinitatis.

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Esta lenda narrada aqui segundo Petrus de Natalibus (1493), mas que se encontra j no sc. XIII em Cesrio de Heisterbch (+1240) e Toms de Cantimpr (1263) tambm ganhou muita popularidade nas apresentaes artsticas, por captar de uma forma muito acertada e tocante as dificuldades com que Agostinho teve que defrontar-se na composio da monumental obra De Trinitate, e que so por ele prprio descritas no prlogo da obra, a carta dedictria dirigida as bispo Aurlio de Cartago (epistula 174) (DROBNER, Hubertus R. Manual de patrologia. 2003, p. 426). AGOSTINHO DE HIPONA. A Trindade. VI, 10, 12. So Paulo: Paulus, 1995.

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SANTIDADE: CHAMADO HISTRICO-ECLESIAL

O que demonstra a vocao acertada no o grau de importncia a ela atribuda, pois no Batismo todas tm a mesma dignidade e igualdade, mas a coerncia na santidade a que todos so chamados, na Igreja e na sociedade. a partir disso que construiremos o julgar.

2.1 CONTEMPORANEIDADE E ECLESIALIDADE

A contemporaneidade uma caracterstica da acolhida do chamado, que se d no tempo e no espao. Tempos modernos ou ps-modernos, como defendem alguns pensadores, contudo, tempos novos. No faremos anlise intensa ou sntese, nem abordaremos, profundamente, suas caractersticas ou origem, mas a controvrsia sobre a existncia duma poca autenticamente nova.

40 2.1.1 Controvrsia: Ps-moderno ou Moderno Reajustado

a) Ps-modernidade A historicidade integrante ontolgico da pessoa humana122. Classicamente, tendo o nascimento de Jesus Cristo como referencial, as cincias sociais e histricas ocidentais nos ensinam a dividir o peregrinar humano no tempo a partir de eras ou pocas: Prhistria, Idade Antiga, Idade Mdia, Idade Moderna. Hoje, costuma-se dizer: Somos Psmodernos. A Ps-modernidade um fenmeno recente. Emergiu da insatisfao perante a Modernidade123. H divergncias quanto a sua gnese124 e anexos, subjacentes, aos acontecimentos, comumente, encontramos idias e paradigmas desenvolvidos por pensadores que se distanciam no tempo. Como Nietzsche, pregoando a supremacia de Zaratustra, profetizando a derrota de velhas verdades, mutaes de valores, decadncia dos dolos125, e pensadores, surgidos nas ltimas dcadas, que contriburam marcadamente no contexto atual, entre eles: Husserl, Kierkegaard, Jaspers, G. Marcel, Bloch, Horkheimer, Adorno, Habermas, Lyotard e Richard Rorty126. uma reao a tudo que aprisiona a122

[...] designa um certo aspecto (que engloba o mundo e o tempo) da constituio do ser humano (em sua unidade individual e social. Por ela o homem encontra-se situado (DARLAPP, A. Historicidade. In: FRIES, Heinrich (Org.). Dicionrio de teologia: conceitos fundamentais da teologia atual. 1983, p.302). ARDUINI, Juvenal. Antropologia: ousar para reinventar a humanidade. So Paulo: Paulus, 2002, p.13. Defende-se que: A crise de superacumulao iniciada no final dos anos 60, e que chegou ao auge em 1973, gerou exatamente esse resultado. HARVEY, David. Condio Ps-Moderna. 1992, p. 293. A crise dos anos 70 (choque do petrleo, regimes totalitrios no Ocidente, principalmente na Amrica Latina, guerra do Vietn, alargamento do fosso Norte-Sul...) coloca por fim em xeque de modo claro a idia de progresso e o valor universal da razo moderna. ANDRADE, Paulo Fernando Carneiro de. A condio ps-moderna como desafio pastoral popular. 1993, p. 100. A passagem da Modernidade para a Ps-modernidade colocada de forma muito simplista se afirmarmos que ela teve incio nas dcadas de 1970 e 1980. [...] A irrupo da Modernidade j est dada com o desmoronamento da sociedade burguesa e do mundo eurocentrista por ocasio da Primeira Guerra Mundial (KNG, Hans. Projeto de tica Mundial: uma moral ecumnica em vista da sobrevivncia humana. So Paulo: Paulinas, 2003, p. 18). Na sua filosofia, [...] encontra-se uma crtica aos valores apresentados como superiores, presentes na Modernidade, principalmente relacionados idia de progresso e ao conceito unitrio de histria (SCOPINHO, Svio Carlos Desan. Filosofia e Sociedade Ps-Moderna. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004, p. 23). Cf. ARDUINI, Juvenal. op. cit., p.13.

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41 pessoa humana127, que deve ser totalmente livre a fim de realizar seus desejos e vontades muitas vezes reprimidos por paradigmas sociais, ticos e religiosos. Na modernidade, O mundo perdeu suas caractersticas teocntricas para dar lugar a uma viso de carter antropocntrico128. A pessoa humana continua no centro da Ps-modernidade. Todavia, ao invs de valorizar-se o ns, as utopias, as ideologias, o conhecimento, o tico, a verdade, a lei, o sujeito, o cidado, o heri, a conscincia, cultiva-se o individualismo, a imagem, os modelos, a mdia, o esttico, a pluralidade, o relativo, a subjetividade, o consumidor, a star, o corpo129, ocasionando individualismo exagerado e subjetivismo moral. Mesmo assim, difcil caracteriz-la130. a runa dos fundamentos metafsicos, apoiados no conceito de razo absoluta131, ou seja, um conceito de ps-metafsica132 que, tambm, no unnime133.

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A experincia do tempo e do espao se transformou, a confiana na associao entre juzos cientficos e morais ruiu, a esttica triunfou sobre a tica como foco primeiro de preocupao intelectual e social, as imagens dominaram as narrativas, a efemeridade e a fragmentao assumiram precedncias sobre as verdades eternas e sobre a poltica unificada e as explicaes deixaram o mbito dos fundamentos materiais e polticos-econmicos e passaram para a considerao de prticas polticas e culturais autnomas (HARVEY, David. A condio ps-moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudana cultural. So Paulo: Loyola, 1992, p. 293). A ps-modernidade no s afirma que a socierdade aprisiona o homem, mas tambm que ele deve dar mais importncia sua sensibilidade do que sua inteligncia (VIOTTI, Frederico. A Ps-modernidade: conseqncia da revoluo gnstica e igualitria. Disponvel em: http://www.angelfire.com/id/ viotti/sumario.htm Acesso em: 13 de dez. de 2004). SCOPINHO, Svio Carlos Desan. Filosofia e sociedade ps-moderna. 2004, p. 62. Cf. DEBRAY, Regis. Quadro Sintico das trs idades da Midiasfera. Folha de So Paulo, 27 de abr. 1991. Talvez fosse mais preciso dizer que ela caracterizada precisamente por uma recusa das teorias globalizantes, prontas e definitivas sobre a sociedade (BENEDETTI, Luiz Roberto. Ps-modernidade: abordagem sociolgica. In: TRANSFERETTI, Jos; GONALVES, Paulo Srgio Lopes (Orgs.). Teologia na ps-modernidade: abordagens epistemolgicas, sistemtica e terico-prtica. So Paulo: Paulinas, 2003, p.54). [...] aquela confiana quase ilimitada na razo humana como construtora da segurana e do progresso do homem, comea a ruir, por isso no vale tanto o racional, mas o afetivo, no o que eu sei, mas o que eu sinto que interessa (SILVEIRA, Joo Carlos Andrade da. Adolescncia e opo vocacional: anlise psicopedaggica. 1994, p. 36). Cf. OLIVEIRA, Manfredo Arajo. Ps-modernidade: abordagem filosfica. In: idem, p. 48-49. Muitos filsofos estamos constantemente em discusso com filsofos afirmam cada vez mais o surgimento de uma poca ps-matafsica. Eles ensaiam um pensamento ps-metafsico (J. Habermas) para, a partir da, chegar novamente a uma tica racionalmente fundamentada (KNG, Hans. Projeto de tica mundial: uma moral ecumnica em vista da sobrevivncia humana. 2003, p. 82).

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42 b) Controvrsia A constatao de que vivemos em tempos ps-modernos no consenso entre antroplogos culturais e socilogos contemporneos. Existem divergncias134. Afluram mudanas profundas, mutaes culturais, avanos e ao mesmo tempo retorno a antigos paradigmas135, ou seja, no estaramos vivendo uma nova era. A Modernidade teria amadurecido, a partir de reflexes de pensadores e acontecimentos a nvel global: socialismo, guerras mundiais, globalizao e outros, e estaria efetuando uma auto-crtica136 e gestando uma sntese, ou seja, [...] recompondo as dramticas divises operadas por certa modernidade cujo desvio desembocou no tempo da ciso, quando o homem dramaticamente perdeu a unidade consigo mesmo, com a natureza, com os outros e com Deus137. Estaramos, apenas, vivendo uma etapa de hipermodernidade138. Em suma, encontramos defensores de ambos os lados, resultando em controvrsia139.

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A discusso sobre a existncia ou no de uma ps-modernidade como ruptura com a modernidade permanente. [...] O fenmeno existe. O que se discute o significado do Ps. uma poca com caractersticas especficas e peculiares, embora seja um desenvolvimento da prpria modernidade (BENEDETTI, Luiz Roberto. Ps-modernidade: abordagem sociolgica. In: TRANSFERETTI, Jos; GONALVES, Paulo Srgio Lopes (Orgs.). Teologia na ps-modernidade: abordagens epistemolgicas, sistemtica e terico-prtica. 2003, p. 61). [] no chegou a ser fundada conceitualmente, pois a idia que se havia chegado ao fim da modernidade era uma idia falsa (LIPOVESTSKY, Gilles. O Caos Organizador. IHU ON-LINE, 15 de mar. 2004, p. 33). [..] a chamada ps-modernidade, que estamos vivendo atualmente, um momento de crise, dentro de um processo englobante muito mais profundo, que a modernidade (TORRES QUEIRUGA, Andrs. Teologia e modernidade: a busca de novos paradigmas. Idem, p. 13). VANZAN, Piersandro. Ps-moderno/Ps-modernidade. In: BORRIELLO, Luigi et alii (Orgs.). Dicionrio de mstica. 2003, p.889-890. [...] os elementos constitutivos principais da modernidade, que so essencialmente trs: o primeiro o indivduo, isto , uma sociedade que reconhece os direitos do homem, com seu correlato, que a dem