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Denise de Paula Resende
Novembro
2007
- 1 -
Discurso, Cognição e Cultura: uma proposta de compreensão da linguagem
Denise de Paula Resende
Dissertação apresentada ao Programa de Mestrado em Letras da Universidade Federal de São João del-Rei, como requisito final para obtenção do título de Mestre em Letras.
Área de Concentração: Teoria Literária e Crítica da Cultura Linha de Pesquisa: Discurso e Representação Social Orientador: Prof. Dr. Antônio Luiz Assunção
São João del-Rei Novembro - 2007
- 2 -
DISSERTAÇÃO DE MESTRADO Universidade Federal de São João del-Rei
Programa de Mestrado em Letras Área de Concentração
Teoria Literária e Crítica da Cultura Linha de Pesquisa
Discurso e Representação Social
Título da Dissertação Discurso, Cognição e Cultura:
uma proposta de compreensão da linguagem
Professor Orientador Prof. Dr. Antônio Luiz Assunção
Banca Examinadora Prof. Dr. Antônio Luiz Assunção (UFSJ)
Prof. Dr. Milton do Nascimento (PUC – MG) Prof. Dr. Cláudio Márcio do Carmo (UFSJ)
Prof. Dr. Guilherme Jorge de Rezende (UFSJ / suplente)
Coordenadora do Programa de Mestrado em Letras Profa. Dra. Magda Velloso Fernandes de Tolentino
São João del-Rei 2007
- 3 -
Denise de Paula Resende
Discurso, Cognição e Cultura: uma proposta de compreensão da linguagem
BANCA EXAMINADORA
_________________________________________________ Prof. Dr. Antônio Luiz Assunção - UFSJ
Orientador
__________________________________________________ Prof. Dr. Milton do Nascimento - PUC / MG
__________________________________________________ Prof. Dr. Cláudio Márcio do Carmo – UFSJ
_________________________________________________ Profa. Dra. Magda Velloso Fernandes de Tolentino
Coordenadora do Programa de Mestrado em Letras Universidade Federal de São João del-Rei
Novembro 2007
- 4 -
Dedico, na força de todo o carinho,
ao Márcio, à minha família,
ao Davi e à Maria Eduarda.
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AGRADECIMENTOS
Lembro pessoas. Todas trazem alguma presença para reconhecer. Chamo nomes para dar nome ao afeto e à gratidão. Agradeço... À família que acompanha e encaminha: Lucas, Bruno, Maria do Carmo e Ari. Aos meus avós, de quem carrego traços: Terezinha(s) e Geraldo(s). Aos tios de todos os nomes e à madrinha de nome Maria Helena. Ao namorado-amigo-companheiro: Márcio de nome composto! Ao orientador, Prof. Dr. Antônio Luiz Assunção. Ao professor e amigo, Toninho: nome de uma extensa trajetória de participações. Aos professores: figuras pelas quais guardo extrema admiração. Levo com orgulho pessoas de nome Suely, Guilherme, Dylia, Magda ... Aos colegas (do Programa de Mestrado em Letras) com os quais compartilhei momentos e momentos. E à Carla: pela amizade de sempre. À Filó: o nome da amabilidade, da presteza e do zelo. Aos Professores Milton do Nascimento e Cláudio Márcio do Carmo, pelas distintas e importantes contribuições. À Universidade Federal de São João del-Rei: nome marcado em minha formação. À CAPES: agradeço pelo financiamento com que me beneficiei durante dois anos. Enfim: agradeço aos nomes todos de pessoas que ficam ao redor. Pessoas de nome que registram lembranças e abandonam rastros em meu nome.
- 6 -
RESUMO
O objetivo principal dessa pesquisa foi desenvolver uma discussão teórica
acerca das relações basilares entre os conceitos de discurso, de cognição e de
cultura. Em face disso, com a finalidade de delimitar esses conceitos como
inteiramente relacionados à linguagem e como intimamente conectados, lançamo-
nos a uma hipótese de aproximação entre os fundamentos da Análise Crítica do
Discurso (Fairclough, 2001, 2003; Van Dijk, 1995, 1997, 1999; Wodak, 1999;
Chilton, 2005) e os da Teoria das Mesclagens Conceituais (Fauconnier, 1994,
1997; Fauconnier & Turner, 2002). Em virtude da idéia de que é possível
considerar conjuntamente os pressupostos das duas teorias, formulamos uma
metodologia de análise que contemplou, na compreensão da linguagem em uso,
a tríade discurso, cognição e cultura.
A Análise Crítica do Discurso propõe como metodologia a análise de
textos, localizando o uso da análise lingüística como importante recurso para
descrever e interpretar as relações sociais. Através dos referenciais
fundamentados nessa abordagem, buscamos encontrar meios de descrever como
os valores sociais estão intrincados no modo de dizer. Já com os pressupostos da
Teoria das Mesclagens Conceituais, podemos ter acesso ao funcionamento
integrador da cognição e, por conseqüência, ao uso da linguagem em suas
variadas dimensões. Vale dizer que os textos, para essa teoria, são formas
concretas da cognição social e contêm pistas lingüísticas dos processamentos
cognitivos. Na articulação entre essas duas teorias, tínhamos como finalidade
observar os aspectos convergidos na tríade discurso, cognição e cultura,
avaliando a maneira pela qual a compreensão de representações mentais pode
se conciliar ao entendimento de práticas sociais e discursivas de representação.
Para refletir sobre essa condição teórica do trabalho, lançamos mão de um
corpus específico, a partir do qual desenvolvemos uma prática de análise. Esse
- 7 -
corpus foi organizado tendo em vista os processos de identificação social do
Presidente Luiz Inácio Lula da Silva presentes em quatro reportagens publicadas
em duas revistas da mídia impressa nacional (a Veja e a IstoÉ), em 2003 e 2005,
em face de suas participações, nesses anos, em dois eventos rivais
correspondentes ao Fórum Econômico Mundial e ao Fórum Social Mundial.
Tomando-se como base os textos das reportagens, para descrevê-los e
interpretá-los, conduzimos análises lingüísticas, discursivas, cognitivas e culturais
motivadas na metodologia proposta diante da juntura das duas teorias escolhidas
para o encaminhamento da pesquisa.
Frente à trajetória de discussões e à prática de análise desenvolvida,
tornou-se possível visualizar como o processo de integração conceitual, no
discurso, funciona na construção de identidades sociais, que, por sua vez, se
articulam a partir de determinadas crenças e conhecimentos de mundo
partilhados, presentes na cultura. Os espaços mentais integrados (os espaços
mesclas) são organizados no processo de produção de sentido, de forma a
conduzir uma leitura acionada por e em determinados valores sociais. Sob essa
perspectiva, notamos também o modo como se re-estabelecem e se re-articulam
domínios cognitivos para a compreensão de objetos ideologicamente
representados, dando ênfase tanto à constituição social da dimensão cognitiva na
organização do discurso quanto às relações sociais e culturais envolvidas nas
práticas discursivas.
- 8 -
ABSTRACT
This main objective of this research is developing a theoric discussion about
the based relations between concepts of discourse, cognition and culture. Facing
it, with the objective of delimit it in this conceptions as entirely related to the
language and absolutely connected, we launch a hypothesis related to the
approach between the bases of the Critical Discourse Analysis (Fairclough, 2001,
2003; van Dijk, 1995, 1997, 1999; Wodak, 1999; Chilton, 2005) and of the
Blendings Theory (Fauconnier, 1994, 1997; Fauconnier & Turner, 2002). Because
of this idea in which is possible to consider the two theories together, we propose
to make a formulation of a method of analysis that gives an special attention, in
the use of the language, to these three concepts - discourse, cognition and
culture.
The Critical Discourse Analysis makes a proposal as an analysis of texts,
placing the use of the linguistic analysis as an important recourse to describe and
comprehend the intricate social relations. Through the references used in the
approach, we look for ways to describe as the social ideals are connected to the
way of speaking. Using the Blendings Theory, we can access the some of the
mental organizing mechanisms and the integration cognitive working. As we
articulate these two theories, we see as a objective to observe the aspects
converged of the triple discourse, cognition and culture involved in the way that
mental representation can be connected to comprehension of social practice e
discursive representations.
To reflect about this theoric condition of the work, were delimited specific
corpus, about we were conduced a analysis practical. These corpus corresponds
to the identification social process of the President Luiz Inácio Lula da Silva,
presented in four articles published in two magazines of national press media
(Veja and IstoÉ) in 2003 and 2005, due his participations in these years, in two
- 9 -
rival meetings correspondent to the World Economic Forum and to the World
Social Forum. Becoming the basis of the articles, to describe and comprehend
them, we propose linguistic, discourse, cognitive and cultural analysis, in the
proposed methodology face the two chosen theories of this research together.
On application of the trajectory of the discussions and the developed
analysis practical, it is possible to evaluate as a process of conceptual integration,
in discourse, working in the social identity construction, and can be articulated
from determinate beliefs and world knowledge, we can see in the culture.
Blendings are organized in the process of productions of meanings, leading and
guiding a lecture heading by social ideas. Under this aspect, we can note the way
the mental dominions and comprehension of ideologically represented are
established, emphasizing the social constitution of the cognitive dimension in the
discourse organization and in the social and cultural relations involved in the
discourse practical.
- 10 -
SUMÁRIO
Resumo ............................................................................................................... 6
Abstract ............................................................................................................... 8
INTRODUÇÃO ................................................................................................... 12
CAPÍTULO I ........................................................................................................ 16
Análise Crítica do Discurso e Teoria das Mesclagens Conceituais: fundamentos e pressupostos
1. Considerações iniciais ................................................................................... 17
2. Análise Crítica do Discurso ............................................................................ 19
2.1. A Análise Crítica do Discurso como uma postura de pesquisa .......... 21
2.2. Discurso, representação social e ideologia ........................................ 22
2.3. Identidades sociais e discurso ............................................................ 24
2.4. A análise lingüística e o texto ............................................................. 26
2.5. Cognição e discurso ............................................................................ 28
2.6. Cultura e discurso ............................................................................... 29
3. Teoria das Mesclagens Conceituais ............................................................... 31
3.1. Teoria dos Espaços Mentais .............................................................. 34
3.2. Construtores de espaços mentais (space buliders) ............................ 37
3.3. Mesclagens e Integração Conceitual................................................... 39
3.4. O lingüístico e o texto na Teoria das Mesclagens Conceituais ........... 41
3.5. Cognição e social ................................................................................ 42
3.6. Cognição e cultura .............................................................................. 43
3.7. Cognição e discurso ............................................................................ 44
4. Considerações finais ...................................................................................... 46
CAPÍTULO II ....................................................................................................... 47
Discurso, Cognição e Cultura: uma proposta de aproximação teórica
1. Considerações iniciais ................................................................................... 48
2. Linguagem: discurso, cognição e cultura ...................................................... 49
- 11 -
3. O discurso para a Análise Crítica Discurso ................................................. 53
4. Lingüística Cognitiva: linguagem, cognição e cultura .................................. 56
5. A proposta de aproximação teórica ............................................................. 60
6. Metodologia ................................................................................................. 62
6.1. A metodologia na Análise Crítica do Discurso ................................. 63
6.2. A metodologia na Teoria das Mesclagens Conceituais ................... 66
6.3. A construção de uma metodologia .................................................. 72
7. Considerações finais ................................................................................... 77
CAPÍTULO III ................................................................................................... 78
O Presidente Lula e o embate ‘Fórum Econômico Mundial x Fórum Social Mundial’:
uma análise a partir das relações entre discurso, cognição e cultura 1. Considerações iniciais ................................................................................ 79
2. Fórum Econômico Mundial e Fórum Social Mundial .................................. 81
3. Luiz Inácio Lula da Silva: um cristão novo .................................................. 84
4. A mídia e o potencial cultural de produção de textos ................................. 85
5. O trabalho da Geopolítica da Cultura e/ou da Geopolítica da Mídia .......... 88
6. Revistas semanais de circulação nacional: Veja e IstoÉ ............................ 90
7. Análise do corpus ....................................................................................... 94
7.1. Revista Veja ................................................................................ 95
7.1.1. Reportagem O elo entre dois mundos ................................... 95
7.1.2. Reportagem Elo entre dois mundos ...................................... 105
7.2. Revista IstoÉ ............................................................................... 108
7.2.1. Reportagem Lula lá e cá ........................................................ 108
7.2.2. Reportagem Vitrine Brasil ...................................................... 112
8. Considerações finais ................................................................................... 116
CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................. 120
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................ 123
ANEXOS ........................................................................................................... 127
- 12 -
INTRODUÇÃO
Pensar a linguagem é refletir sobre a própria natureza das relações
humanas, o que faz com que as fronteiras de um conceito como o de linguagem
se estendam sobre redes de compreensão tão variadas quanto são as
possibilidades de sua manifestação – um desígnio a que faz jus não somente a
Lingüística. Em virtude da condição de um objeto abrangente em suas dimensões
e também abrangido por uma série de outros objetos, qualquer trabalho que se
propõe pensar a linguagem deve considerá-la, antes de tudo, como heterogênea
em sua constituição e como dinâmica em sua natureza.
Nessa dissertação, mesmo diante da necessidade de recortes, de escolhas
e de delimitações, temos o objetivo primeiro de defender justamente uma
concepção de linguagem que seja integrada e integradora e que conserve certa
variedade de perspectivas em sua conceitualização. Para atender a esse fim,
propomos uma trajetória de discussões calcada na hipótese de que é possível
fazer convergir, na apreensão da linguagem, suas dimensões lingüísticas,
cognitivas, sociais e culturais. Como essa é uma postura de integração,
acreditamos que a interface entre teorias seja uma maneira de desempenhar essa
postura e dar algumas respostas sobre suas conseqüências.
Para organizar esse objetivo, conduziremos uma reflexão acerca de três
conceitos a partir dos quais formulamos a hipótese de que se estabelecem, entre
eles, relações que atravessam e conceituam a linguagem – trata-se dos conceitos
- 13 -
de discurso, cognição e cultura. À medida que adotamos essa diretriz, surge a
necessidade de estabelecer escolhas teóricas que organizem uma discussão e
orientem seus fundamentos. Essa dissertação, portanto, corresponde apenas a
uma possibilidade de conduzir tais reflexões e a um recorte dentro da amplitude
de propostas dessa natureza.
Sendo assim, por motivos que serão explicitados oportunamente,
sugerimos, para pormenorizar as relações entre os conceitos de discurso,
cognição e cultura, a aproximação entre algumas diretrizes do projeto da Análise
Crítica do Discurso (Fairclough, 2001, 2003; van Dijk, 1995, 1997, 1999; Wodak,
1999; Chilton, 2005) e certos pressupostos da Teoria das Mesclagens Conceituais
(Fauconnier, 1994, 1997; Fauconnier & Turner, 2002) 1. A partir da hipótese de
que seja possível considerar concomitantemente os fundamentos de uma e de
outra teoria, a procura de um terceiro lugar teórico integrado resultante de uma
aproximação, objetivamos também, com a junção de instrumentos metodológicos,
formular uma metodologia de análise que operacionalize o diálogo proposto.
No primeiro capítulo, desde já sustentado no propósito de fazer trabalhar
conjuntamente os conceitos de discurso, cognição e cultura, organizaremos uma
breve abordagem sobre os fundamentos e os pressupostos dos dois construtos
teóricos utilizados, diante dos quais recolheremos instrumentos tanto para pensar
a linguagem sob uma perspectiva integrada quanto para pôr em funcionamento a
hipótese de aproximá-los na construção de uma metodologia. Desse modo,
descreveremos as principais perspectivas compreendidas na Análise Crítica do
Discurso e a relação que estabelecem com os conceitos de discurso, de cognição
e de cultura; e, da mesma maneira, apresentaremos a Teoria das Mesclagens
Conceituais, ponderando igualmente o modo como ela se posiciona frente a
esses conceitos.
Dando continuidade à nossa proposta, o segundo capítulo, ao aproximar as
duas teorias apresentadas no capítulo anterior, irá convocar pressupostos de uma
análise do discurso crítica para funcionar de forma conjunta com as implicações
1 Para chegar à Teoria das Mesclagens Conceituais, exploraremos os pressupostos da Teoria dos
Espaços Mentais, avaliando o que nessa teoria foi deixado à parte na Teoria das Mesclagens Conceituais e o que ainda é importante não desconsiderar. Por esse motivo, é que acrescentamos, no referencial bibliográfico, as obras iniciais de Gilles Fauconnier.
- 14 -
desenvolvidas por uma teoria lingüístico-cognitiva e vive-versa. Como desfecho
desse capítulo e como etapa fundamental da pesquisa, as hipóteses teóricas
sustentadas até então devem conduzir, como já dissemos, à proposição de uma
metodologia que possa viabilizar a aplicação do diálogo proposto, criando
métodos para potencializar análises que se queiram discursivas, cognitivas e
culturais.
O encaminhamento metodológico irá buscar, portanto, instrumentos para
visualizar a maneira como processos de integração conceitual funcionam na/para
a compreensão de objetos ideologicamente representados, dando ênfase tanto à
constituição social da dimensão cognitiva na organização do discurso quanto às
relações sociais envolvidas e negociadas nas e pelas práticas discursivas,
culturalmente localizadas. A metodologia proposta será contemplada, já em última
etapa, no levantamento e na descrição de um corpus específico, sobre o qual
recairão as análises.
Quanto a esse objeto, ele corresponde aos processos discursivos de
identificação de Luiz Inácio Lula da Silva em algumas reportagens da mídia
brasileira que fizeram referência à sua participação simultânea em dois eventos
rivais - o Fórum Econômico Mundial e o Fórum Social Mundial. Foram
delimitadas, para esse trabalho, na mídia impressa, duas revistas semanais de
grande circulação nacional: Veja e IstoÉ. O corpus é composto de quatro
reportagens, publicadas nessas revistas e veiculadas nos anos de 2003 e 2005,
que tematizaram o embate entre os fóruns mundiais e que, na representação
desse embate, articularam um processo de construção da identidade social do
Presidente.
Na convergência de conceitos altamente definidores da cultura - como
globalização, relações geopolíticas, mídia -, será conduzido, para a análise desse
objeto, em sua dimensão de prática social e discursiva, um mapeamento cognitivo
a respeito de como o Presidente é representado nas suas relações com o mundo.
Ressalta-se, nesse sentido, o papel determinante da mídia, como instituição de
poder, em seu potencial organizador das representações e crenças, ao
apresentar roteiros para a nossa compreensão de mundo.
- 15 -
O uso da linguagem relacionado à construção de conhecimento sobre
processos, identidades e objetos sociais, negociados culturalmente, só pode ser
considerado porque ele acontece na mente dos indivíduos em interação. É devido
a essa condição da própria linguagem que a inserção de uma teoria lingüístico-
cognitiva em uma análise do discurso (assim como de uma análise do discurso
em uma teoria lingüístico-cognitiva) – como nos proporemos nessa dissertação -
pode ser enriquecedora, ao permitir explorar novos caminhos para a
compreensão de manifestações da cultura e de suas práticas discursivas de
representação.
- 16 -
CAPÍTULO I
Análise Crítica do Discurso e Teoria das Mesclagens Conceituais: fundamentos e pressupostos
- 17 -
1. Considerações iniciais
O uso da linguagem é, primordialmente, uma atividade conjunta e
integrada, em que se relacionam aspectos sócio-históricos, culturais e cognitivos.
Trata-se de uma postura não só de compreensão da linguagem como também de
percepção da nossa própria relação com o mundo mediada pela linguagem – isto
é, de uma postura que também está sujeita a diferentes formas de
direcionamento, frente à quantidade e à diversidade de discursos que podem,
oportunamente, tomá-la como diretriz. Discursos da própria Lingüística, na sua
variedade de perspectivas, e também discursos de outras disciplinas que, mesmo
não determinando a linguagem como seu objeto de estudo, se preocupam com as
relações essenciais que ela estabelece com seus objetos específicos, como a
história, a cultura, a comunicação, a mídia, por exemplo.
O eixo central dessa dissertação corresponde, como já dissemos, a um
projeto de aproximação entre os conceitos de discurso, cognição e cultura. No
entanto, definitivamente, não temos o objetivo de assumi-lo no seu todo,
considerada a sua complexidade e a sua abrangência. Aproximar esses conceitos
é uma proposta extensa e de amplas conseqüências. O quanto mais discursos –
das lingüísticas, dos estudos de discurso, dos estudos da cultura, dos estudos da
cognição, da filosofia, dos estudos da comunicação, entre outros - fossem
recolhidos e catalisados para sustentar essa aproximação, de maior peso seriam
as implicações desse processo para a compreensão da linguagem e para a
revisão na agenda de muitos estudos que definem a linguagem como seu objeto.
Ao levantarmos uma proposta de estudo que, considerando a linguagem
por uma perspectiva integrada, experimentasse essa aproximação fundamental
entre discurso, cognição e cultura, sabíamos que, antes de tudo, tratava-se de
uma aproximação entre conceitos. E, como é característico de todo conceito, a
acepção de cada um está atrelada ao lugar (teórico) que o formula. É nesse
sentido que uma discussão que aproxima conceitos estará também diretamente
relacionada aos nichos escolhidos para movimentá-la, ou seja, aos discursos
legitimados para conduzir essa aproximação.
- 18 -
As áreas teóricas nas quais buscaremos sustentação, dentro dos estudos
da linguagem, e pelas quais legitimaremos a discussão a que nos propomos, são,
como já explicitado, a Análise Crítica do Discurso e a Teoria das Mesclagens
Conceituais. A primeira área se define como uma análise do discurso que leva em
consideração os traços sócio-culturais e ideológicos das manifestações
discursivas. A segunda se apresenta como uma teoria da Lingüística Cognitiva
que descreve o funcionamento integrador da cognição, em que a linguagem lhe é
parte constituinte - resultante desse funcionamento, há processos de integração e
mesclagens conceituais definidores das próprias atividades de produção de
sentidos.
Partimos da idéia de que princípios dessas duas teorias possam se
complementar em prol de uma compreensão conjunta e integrada do uso da
linguagem, potencializando conceitos e práticas de análise. Nesse capítulo,
portanto, a partir das diretrizes gerais a que nos submetemos e para começar o
caminho de discussão previsto, encaminharemos uma breve exposição dessas
teorias, descrevendo seus pressupostos mais importantes e ponderando seus
posicionamentos no que se refere aos conceitos de discurso, cognição e cultura.
Nesse momento inicial, não serão abertas explicitamente as possibilidades de
aproximação entre as duas teorias, mas a própria forma de descrevê-las já será
conduzida de modo a organizar uma posterior discussão que as aproxime.
- 19 -
2. Análise Crítica do Discurso
A Análise Crítica do Discurso (ACD) considera a linguagem em sua
dimensão discursiva, não apenas ao posicioná-la como prática social (ou como
parte de práticas sociais), mas principalmente ao propô-la como instituída em
relação dialética com outros elementos da sociedade. Em outros termos, a
linguagem é parte constituinte e constitutiva da vida social, sendo tanto
determinada socialmente quanto determinante da compreensão e da constituição
das estruturas sociais. O escopo dessa análise do discurso é justamente buscar
compreender a linguagem diante de seus aspectos históricos e culturais,
enfatizando o seu posicionamento como prática social de representação e de
significação, em que estão envolvidas identidades e relações sociais e sistemas
de conhecimentos e crenças.
O termo discurso, que visa justamente a marcar essa determinação social
da linguagem, está fundado em contato direto com as relações de poder, no
sentido de Foucault (1998). A linguagem assume, portanto, um papel essencial
para a produção, manutenção e promoção de mudanças nas relações sociais de
poder, sendo-lhes constitutiva (cf. FAIRCLOUGH, 2001). Sob esses
pressupostos, a ACD vem fundamentar justamente pesquisas sobre mudança
social, discurso e poder, considerando as relações entre linguagem e ideologia.
Fairclough (2001), dentro da ACD, propõe um quadro analítico para a
análise dos eventos discursivos, elaborando uma teoria social do discurso. Para
ele, qualquer evento discursivo é considerado como simultaneamente um texto,
um exemplo de prática discursiva e um exemplo de prática social (FAIRCLOUGH,
2001, p.22). Nesse sentido, a análise das propriedades textuais deve estar
integrada tanto à análise das relações sociais e das relações opacas de poder
quanto à idéia de que as práticas discursivas são reguladoras de identidades
sociais e são espaços emergentes de valores, ideologias e crenças. Este seria um
dos princípios nos quais estão fundamentados os modelos de análise sugeridos
por esse teórico, que propõe justamente uma teoria do discurso adequada para
dar conta da linguagem enquanto prática social e enquanto prática discursiva
ideologicamente marcada.
- 20 -
Primeiramente, Fairclough elabora um quadro teórico que propõe um
modelo tridimensional de análise (2001)2. Mais tarde, ele reelabora esse modelo
(juntamente com Chouliaraki), denominando-o de enquadre (1999) e, ainda, em
uma obra posterior, ele reaplica esse enquadre em uma proposta de análise
textual para pesquisas sociais (2003). Na concepção tridimensional do discurso,
Fairclough propõe que uma análise do discurso passe por três dimensões
constitutivas: a prática social, a prática discursiva e o texto. Essas três dimensões
não estão em um mesmo nível, mas se compreendem, como ilustra o quadro
abaixo:
Modelo tridimensional de análise (FAIRCLOUGH, 2001, p.101)
O evento discursivo abrange desde a dimensão da prática social ao texto.
Já a prática discursiva corresponde justamente a processos de produção, de
consumo e de distribuição de textos, a que estão relacionadas questões
institucionais, culturais, econômicas e políticas nas quais o discurso se funda.
Nessa relação, a prática discursiva manifesta-se em formas lingüísticas, na forma
dos textos e a prática social (política, ideológica, etc.) é uma dimensão do evento
discursivo, da mesma forma que o texto (FAIRCLOUGH, 2001, p.99).
Por ser um espaço mediador entre o texto e a prática social, a prática
discursiva assume, no modelo tridimensional de análise, função estratégica e
central nas análises. Uma análise discursiva, no entanto, deve dar peso eqüitativo
às três dimensões, já que todas elas são constitutivas do discurso. Essa
interdependência faz com que o uso desse modelo para análise exija que o
2 A obra originalmente foi publicada em 1992 e denomina-se Discourse and Social Change. 2001
corresponde ao ano de sua tradução para o português.
texto
prática discursiva
prática social
- 21 -
discurso seja apreendido como um todo e que todas as três dimensões sejam
contempladas nas análises.
2.1. A Análise Crítica do Discurso como uma postura de pesquisa
A ACD não é exatamente uma disciplina, mas uma postura de análise
fundamentada em um projeto transdisciplinar em que convergem diferentes
abordagens, com atitudes metodológicas e teóricas diversificadas (cf. DIJK,
1999). A ACD é, portanto, uma designação geral de um construto teórico que
inclui investigações diferentes, com preocupações variadas e localizadas em
disciplinas distintas. Diante disso, a ACD assume uma postura produtiva no que
diz respeito a diálogos teóricos, já que não somente aplica outras teorias como
também, por meio de rompimento de fronteiras epistemológicas, operacionaliza e
transforma tais teorias em favor da abordagem sócio-discursiva (RESENDE &
RAMALHO, 2006, p.14).
No entanto, há, entre as diferentes abordagens da ACD, um propósito
comum que as faz pertencer a um mesmo projeto. Os princípios gerais da ACD
correspondem, dentre outros, aos seguintes pressupostos: a consideração da
linguagem como prática social e como meio em que o poder se realiza; o
entendimento de textos como produtos culturais e sociais; a consideração dos
sentidos como acionados em e por relações sócio-políticas; o engajamento e o
potencial político das análises. No interior desses princípios, a ACD assume como
tarefa teórica
a construção de um aparelho teórico integrado, a partir do qual seja possível desenvolver uma descrição, explicação e interpretação dos modos como os discursos dominantes influenciam, indirectamente, o conhecimento, os saberes, as atitudes, as ideologias, socialmente partilhadas. (...) E, ao mesmo tempo, assegurar que a análise das estruturas discursivas e sociais seja integrada numa teoria social, política ou cultural mais abrangente, das situações, contextos, instituições, grupos e relações de poder. (PEDRO, 1997, p.30).
Essa tarefa de construir um aparato teórico que fundamente análises
pressupõe que, na ACD, não haja um quadro teórico único e que, sendo assim,
nesse grande projeto, haja uma abertura para o uso de teorias diversas –
- 22 -
conforme dissemos no início dessa seção. No entanto, é preciso ressaltar que
essa abertura se legitima desde que, através da teoria adotada, seja possível
esclarecer o modo como determinadas estruturas de discurso viabilizam e
determinam processos de formação de representações sociais. Em outros termos,
a abertura para uso de outras teorias só se legitima se se obedecer a uma lógica
de pertencimento à tarefa teórica assumida pela Análise Crítica do Discurso,
como uma condição mesma para considerar uma análise como filiada a essa
tarefa.
2.2. Discurso, representação social e ideologia
Para a Análise Crítica do Discurso, a prática discursiva é também uma
prática ideológica, justamente porque constitui, naturaliza, mantém e transforma
os significados do mundo de posições diversas nas relações de poder
(FAIRCLOUGH, 2001, p.94). Discurso, ideologia e poder são temas transversais
nessa análise do discurso, já que, mesmo que em perspectivas diferentes, todos
os teóricos que se apresentam como engajados ao projeto da ACD organizam
esses temas nas teorias que descrevem e nas práticas de análises que
desenvolvem.
As ideologias, nas práticas institucionais, correspondem a processo de
reprodução e manutenção de ações, significações e organizações sociais que
constituem as práticas discursivas e são por elas constituídas. Além disso, a
ideologia produz efeitos de interpelação, no jogo do poder, posicionando sujeitos
no e pelo discurso. As ideologias são ainda compreendidas como edificação de
práticas, ações habituadas da sociedade e das instituições sociais, em que
convergem perspectivas particulares que suprimem até antagonismos em prol de
interesses e projetos de dominação (cf. CHOULIARAKI & FAIRCLOUGH, 1999,
p.26).
Para Fairclough (2001),
as ideologias são significações/construções da realidade (mundo físico, as relações sociais, as identidades sociais) que são construídas em várias dimensões das formas/sentidos das práticas discursivas e que contribuem para a produção, a reprodução ou a transformação das relações de dominação. (...). As ideologias embutidas nas práticas discursivas são muito eficazes quando se
- 23 -
tornam naturalizadas e atingem o status de ‘senso comum’ (FAIRCLOUGH, 2001, p.117)
De acordo com essa concepção, a ideologia está não só presente na linguagem,
mas principalmente se realiza através dela. É possível falar, portanto, em um
investimento ideológico na/da linguagem, em que o social se manifesta na
interpelação ideológica que exerce sobre sujeitos, ao posicioná-los e ao orientar o
modo de significar e construir a realidade.
Na convergência dos processos ideológicos do discurso, estão em jogo,
justamente, essas maneiras de atribuir sentido às coisas do mundo, significando-
as – em outros termos, estão em jogo as representações sociais, como as
diversas maneiras e perspectivas pelas quais se constituem o mundo de
referência e a sua legitimidade, assim como a de seus agentes. Para Fairclough
(2003), a representação é uma questão essencialmente discursiva, já que
podemos distinguir discursos diferentes para representar mesmos espaços do
mundo e mesmos agentes sociais de posições e de perspectivas diversificadas
(cf. FAIRCLOUGH, 2003, p.25).
A ACD entende representação social exatamente como versões da
realidade, sujeitas ao jogo de interesses e às estratégias dos grupos ideológicos
que enunciam essa realidade. As formas como os textos apresentam, dentre
outros aspectos, os eventos, as situações, as relações e as pessoas recaem
sobre práticas de representação, motivadas socialmente, marcadas
ideologicamente e projetadas dentro de relações de poder. O próprio
funcionamento da ideologia se dá na manutenção de representações sociais
acerca do mundo e de seus sujeitos e, da mesma forma, em uma compreensão
dialética, as representações sociais se dão pelo funcionamento ideológico do
discurso.
As questões associadas à ideologia e à representação social são tratadas
diferentemente por diversos autores na Análise Crítica do Discurso. Para van Dijk
(1997), por exemplo, diferentemente de Fairclough, as ideologias e
representações sociais não têm domínios apenas sociais (por serem partilhadas
por membros de grupos ou instituições e por estarem relacionadas aos interesses
econômicos e políticos desses grupos), mas também são cognitivas, já que
- 24 -
envolvem princípios básicos de conhecimento social, de apreciações, de
percepções e de compreensão do mundo e da realidade. A concepção de
ideologia defendida por van Dijk determina, portanto, que
As ideologias são modelos conceptuais básicos da cognição social, partilhados por membros de grupos sociais, constituídos por seleções relevantes de valores socioculturais e organizados segundo um esquema ideológico representativo da auto-definição de um grupo. Para além da função social que desempenham ao defender os interesses dos grupos, as ideologias têm a função cognitiva de organizar as representações sociais (atitudes, conhecimentos) do grupo, orientando, assim, indirectamente, as práticas sociais relativas ao grupo e, conseqüentemente, também as produções escritas de seus membros. (VAN DIJK, 1997, pp. 111 e 112).
A relação entre ideologia e as estruturas do discurso, para esse autor, se
explicita justamente na idéia de que as práticas discursivas são práticas sociais e
de que, como práticas sociais, são determinadas pelas ideologias e pelas
representações sociais desencadeadas por grupos ideológicos. Tal raciocínio
permite considerar tanto que as estruturas semânticas do discurso são orientadas
por ideologias subjacentes quanto que as ideologias se articulam no plano do
significado do discurso. Nessa relação entre discurso e ideologia, estão
envolvidos processos cognitivos, sociais e pessoais, relacionados a
conhecimentos, atitudes, modelos e sistemas de crenças.
A divergência entre os conceitos de ideologia dentro da própria ACD não
será tematizada nessa dissertação. No entanto, é preciso dizer, dados os
propósitos gerais desse trabalho, que nos interessa um conceito que leve em
consideração os domínios discursivos e cognitivos da ideologia. Para nós, van
Dijk (1997) é quem mais se aproxima desse propósito, ao considerar ideologia em
suas dimensões multidisciplinares, sócio-cognitivas e discursivas.
2.3. Identidades sociais e discurso
Todas as dimensões da estrutura social são constituídas discursivamente,
na medida em que o discurso é a forma pela qual significamos o social e pela qual
o social nos significa. O processo discursivo é, assim, constitutivo dos fatos do
mundo, das relações sociais, das instituições e das identidades, que não só lhe
- 25 -
são subjacentes como o integram. Para a Análise Crítica do Discurso, dessa
maneira, o discurso participa da construção de identidades sociais, da construção
das relações sociais entre as pessoas e da construção de sistemas de
conhecimento e crença:
O discurso contribui para constituição de todas as dimensões da estrutura social que, direta ou indiretamente, o moldam e o restringem: suas próprias normas e convenções, como também relações, identidades e instituições que lhe são subjacentes (FAIRCLOUGH, 2001, p.91).
Fairclough (2001), ao considerar especificamente a função identitária da
linguagem, demarca que os processos de identificação social são entendidos
junto ao próprio uso da linguagem. Além disso, a ACD defende que a
categorização e a constituição das identidades se relacionam com o
funcionamento das próprias relações estabelecidas nas práticas sociais. Desse
modo, é possível reafirmar não só que o discurso constitui identidades, mas que
ele reelabora incessantemente processos de identificação, em que indivíduos são
interpelados como sujeitos e chamados a responder pela posição que são
levados a ocupar naquele sistema de crenças estabelecido para representá-lo.
Se a construção de identidades acontece discursivamente, ela está sujeita
às regras formais pelas quais a linguagem significa e à interdependência
constitutiva entre o lingüístico e o social. Identidades são construídas, justamente,
por meio de categorizações mantidas no discurso e textualmente marcadas.
Nesse sentido, determinadas estratégias lingüísticas e textuais podem ser
empregadas para agir no processo de construção de identidades ou, em outros
termos, nos processos de identificação de sujeitos e de atores sociais.
Wodak (1999), ao investigar como as identidades nacionais são
construídas no discurso, descreve e demonstra determinadas estratégias
discursivas e lingüísticas empregadas para erigir uma idéia de nação baseada em
representações de singularidades e de semelhanças, por um lado, e de
diferenças, por outro lado, frente a outras nações e outros grupos. Ela trabalha
com um método de descrição e de análise dos processos de identificação do
nacional, destacando tanto a sua constituição discursiva quanto o acontecimento
lingüístico desse processo, já que ele pressupõe marcas textuais.
- 26 -
Além disso, as identidades sociais são transformadas e também
subvertidas através de práticas comunicativas que as constroem, expõem e
agenciam. Como os processos de identificação acontecem no e pelo discurso,
eles assumem a propriedade discursiva de ser, antes de tudo, um processo
dinâmico de produção de sentidos, em que se estabelecem negociações que
permitem referenciar o mundo, significando-o, e agir sobre esse mundo,
modificando-o.
É também preciso destacar, por fim, a demanda política atribuída à
identidade, como construída a partir do discurso do outro. As práticas identitárias
são ações peculiares de agentes sociais que se definem enquanto participantes
de um grupo determinado. Sob essa perspectiva, as identidades são
(re)instituídas de acordo com similaridades e diferenças frente a outros grupos
sociais, o que se dá através de um processo de identificação que demarca os
limites entre esses agrupamentos, criando condições de pertencimento.
Identidade é também um processo de localização de sujeitos, em que estão
envolvidas relações de poder – é o poder que localiza e posiciona o outro. Daí ser
a identidade social uma questão política, definida pela discursividade que a
constitui e pela alteridade que a orienta.
2.4. A análise lingüística e o texto
Na ACD, as análises devem ter um alcance que compreenda desde
contextos específicos e situacionais até contextos culturais e históricos. Para o
desenvolvimento dessas análises, a ACD apóia-se em rigorosos métodos e
descrições da materialidade lingüística. Considerando a dimensão das estruturas
lingüísticas nas práticas discursivas, os analistas críticos do discurso pretendem
mostrar o modo como as práticas lingüístico-discursivas estão imbricadas com as
estruturas sociopolíticas, mais abrangentes, de poder e dominação (KRESS apud
PEDRO, 1997, p.22).
A Análise Crítica do Discurso é, portanto, orientada tanto lingüística quanto
socialmente, já que trata de um modelo teórico e metodológico capaz de mapear
relações entre os recursos lingüísticos utilizados por atores sociais e grupos de
atores sociais e aspectos da rede de práticas em que a interação discursiva se
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insere (RESENDE & RAMALHO, 2006, pp. 11-12). Isso implica na idéia de que os
sistemas lingüísticos, a partir de uma perspectiva funcionalista de compreensão
da linguagem, fazem funcionar e estruturam as relações sociais e as
representações de eventos sociais. Ou seja, as estruturas lingüísticas são usadas
como modo de ação sobre o mundo e sobre as pessoas (RESENDE &
RAMALHO, 2006, p.18).
Além do pressuposto de uma análise do discurso orientada
lingüisticamente, a ACD estabelece um papel igualmente importante para o texto.
A ACD defende que as práticas discursivas manifestam-se através de textos e
são discursivas porque se constituem através da linguagem. Sob esse viés, de
um lado, tem-se o comprometimento social do acontecimento discursivo - ações
relacionadas ao lugar da ideologia, do político, do poder - e, de outro lado, tem-se
a dimensão do texto, como uso da linguagem.
Os textos, dado esse lugar que ocupam nas práticas discursivas, são
considerados, na ACD, como espaço em que as identidades e as relações sociais
são negociadas e estabelecidas e, por isso, como espaço em que se atualiza uma
ação social - já que eles atuam sobre a sociedade em que se inserem. Diante
dessa perspectiva, os textos são vistos como vestígios deixados pela prática
discursiva e como pistas imprescindíveis ao ato de leitura da natureza da prática
social e da sua relação com as estruturas sociais, sob as quais se produz o
discurso.
Todas as abordagens da ACD se interessam pelo texto como elemento
social e culturalmente situado. Uma de suas principais preocupações é dar conta
do texto em sua estrutura interna e em sua organização global, com dimensões
críticas de análise. Os analistas críticos do discurso têm o objetivo fundamental de
questionar as formas dos textos, os processos de produção desses textos e os
processos de leitura, juntamente com as estruturas de poder que deram azo a
esse texto (KRESS apud PEDRO, 1997, p.24).
A Análise Crítica do Discurso prevê, assim, como metodologia de trabalho,
a descrição e a interpretação dos textos, compreendendo-os como práticas
discursivas e, por conseguinte, como práticas sociais - o que deve explicitar o
caráter e o trabalho ideológico da linguagem e, conseqüentemente, o seu uso
- 28 -
político e social. A análise do discurso a que se propõe deve, portanto, evidenciar
a análise de textos como um método para estudar as questões e as mudanças
sociais.
Tal postura baseia-se na Lingüística Sistêmica Funcional, que busca
justamente sistematizar as relações da estrutura interna da linguagem no seu uso
de ação social e no seu contexto histórico, correlacionando as ocorrências
lingüísticas a uma prática discursiva e social. Para a ACD, que busca na
Lingüística Sistêmica as categorias para uma análise lingüístico-textual, os
processos lingüísticos resultam de posições sociais que incorporam crenças e
valores; e os eventos estruturados no texto se constituem e são constituídos por
fatores sociais, políticos, culturais e ideológicos de seus enunciadores (cf.
PEDRO, 1997). A ACD vê, então, a prática lingüística e o texto não como um
conjunto isolado de significados, mas como o principal meio de acordo com o qual
os processos sociais operam.
2.5. Cognição e discurso
Demarcamos, como um princípio fundamental para esse trabalho, que o
foco no social não exclui outros aspectos da linguagem, como os componentes
cognitivos, também articuladores do processamento discursivo. Para nós, o
elemento cognitivo é tão importante quanto é o elemento social em um conceito
de discurso. É preciso considerar que os membros de comunidades discursivas
têm acesso a certos recursos e conhecimentos que podem se internalizar e fazer
parte das estratégias prévias de interpretação de textos e de produção de
sentidos – estratégias cognitivas que se organizaram socialmente e que
correspondem, dentre outros, ao próprio saber lingüístico, às crenças, aos valores
e às representações de mundo.
Van Dijk (1997), por exemplo, é um dos teóricos da ACD que articula, em
sua teoria, a dimensão cognitiva do discurso. Para esse teórico, que defende uma
concepção computacional do processamento discursivo e cognitivo,
diferentemente de Fairclough, existem representações que organizam a mente
dos atores sociais. Van Dijk (1997) aponta para o papel que a cognição exerce no
controle e na reprodução de determinadas representações sociais acerca do
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mundo, sustentando estruturas de poder e de dominação. Ele entende que, ao se
controlar o modo de produção dessas representações, pode-se manipular o
acesso ao conhecimento e o processo de apreensão do mundo pelos grupos
sociais – o que atua na reprodução do controle social.
Chilton (2005) é outro teórico da ACD que avalia o lugar da cognição no
discurso. Para ele, o uso da linguagem relacionado à construção de
conhecimento sobre processos, identidades e objetos sociais só pode ser
considerado porque ele acontece também na mente dos indivíduos em interação.
É por essa condição da própria linguagem que a presença de uma teoria cognitiva
em uma análise do discurso pode ser enriquecedora, ao permitir explorar novos
caminhos para as questões de ação social e de construção social, com que
normalmente se preocupam as análises do discurso.
2.6. Cultura e discurso
A Análise Crítica do Discurso buscou, em seu projeto de fundação e em
momentos posteriores do desenvolvimento de suas pesquisas, sustentar-se,
dentre outros campos, na crítica social sobre o que se denomina modernidade
tardia (e/ou capitalismo tardio), fundamentando investigações sobre o discurso
nas práticas sociais dessa época. A ACD adota o pressuposto de que a
linguagem e a cultura tornam-se a própria lógica de funcionamento dessa fase de
desenvolvimento da modernidade3, argumentando que a economia baseada em
informação e conhecimento implica uma economia baseada no discurso: o
conhecimento é produzido, circula e é consumido em forma de discursos
(RESENDE & RAMALHO, 2006, p.24).
Para Chouliaraki & Fairclough (1999), a linguagem ocupa um lugar ainda
mais proeminente nessa ordem mundial do capitalismo multinacional. Esses
autores contextualizam a noção de discurso na idéia de modernidade tardia, em
que as implicações dos discursos nas mudanças sociais se promovem em
tendências à mercadologização e à tecnologização. Como base dos novos modos
de coordenação cultural, dessa cultura de mercantilização e de consumo, em que
a linguagem assume uma força basilar, a idéia de discurso é compreendida por 3 Como propôs Fredric Jameson em A lógica cultural do capitalismo tardio (1997).
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uma dimensão direcionada em função e pela função das próprias mudanças na
ordem do novo capitalismo global. Essas mudanças acontecem bem próximas à
linguagem e através dela.
Kress (1997) defende justamente que as mudanças sociais (e, logo,
culturais) provocam efeito na linguagem. Segundo ele, a indústria da mídia e da
publicidade são áreas florescentes da produção cultural, sendo-lhe a linguagem e
o discurso constitutivos. Nesse processo, o próprio funcionamento lingüístico
passa a atender e a articular essas mudanças culturais. O desenvolvimento e
aprimoramento das tecnologias, a condição de dominância cultural da sociedade
capitalista tardia e a posição central da mídia nessa condição da cultura
produzem efeitos no uso da linguagem, ao mesmo tempo em que funcionam
através de mudanças nesse uso:
A mudança nas economias ocidentais, com predominância para o setor terciário, teve um profundo efeito na linguagem. A linguagem tornou-se um recurso tecnológico importante, quer no controlo, quer na gestão, ou, ainda, nas áreas florescentes da produção cultural, tal como a superabundância da indústria dos media, da publicidade, das relações públicas, etc. (KRESS, 1997, p.49)
Uma outra questão é que a Análise Crítica do Discurso considera os textos
como objetos empíricos culturalmente situados, que são produzidos, distribuídos
e consumidos como mercadorias – obedecendo a lógica da Indústria Cultural.
Além disso, os textos são produtos e agentes de transformações culturais,
econômicas, tecnológicas, assumindo um importante papel na dinâmica do
sistema social.
Nos trabalhos da ACD, os termos informação, conhecimento e discurso
aparecem, muito freqüentemente, associados a um outro elemento de extrema
importância na constituição da modernidade: a Mídia. Como uma instância
produtora de textos, a Mídia exerce tanto o trabalho potencial da cultura quanto
um trabalho ideológico, ao propor categorias e conceitos para a realidade e ao
posicionar sujeitos sociais. Fairclough (2001) enfatiza que a Mídia tem um
importante papel no controle social ao considerar, por exemplo, que
os eventos dignos de se tornarem notícia se originam de limitado grupo de pessoas que têm acesso privilegiado à mídia, que são
- 31 -
tratadas pelos jornalistas como fontes confiáveis, e cujas vozes são aquelas que são mais largamente representas no discurso da mídia. (...) Pode-se considerar que a mídia de notícias efetiva o trabalho ideológico de transmitir as vozes do poder em uma forma disfarçada e oculta. (FAIRCLOUGH, 2001, p.144)
É importante dizer, por fim, que a Mídia e os textos produzidos por ela
correspondem a grande parte dos objetos priorizados nos estudos da Análise
Crítica do Discurso e, mais do que isso, fundamentaram a própria formação da
ACD, que procurou, dentre outros escopos, associar a linguagem a sua instância
e a sua condição cultural.
3. Teoria das Mesclagens Conceituais
No quadro teórico da Lingüística Cognitiva, elaborado entre as décadas de
setenta e oitenta, foram rediscutidas várias questões centrais que fundamentavam
os pressupostos de abordagens anteriores. Questionaram-se, por exemplo,
dentre outras posturas, a associação direta entre palavras e referentes e entre
mundo e palavra, as condições de verdade, as análises orientadas somente por
implicações sintáticas e/ou semânticas, o foco de observação apenas em
palavras ou em sentenças isoladas. Essas abordagens, tanto as que são
consideradas semânticas correspondentistas (externalistas) quanto as
denominadas internalistas, excluíam o sujeito, na sua atividade mental e
comunicativa.
A crítica a algumas correntes da Lingüística, o que fundamentou o
aparecimento de estudos e de teorias que consideram o sujeito e localizam o
sentido sob perspectivas discursivas e interacionais, foi, na verdade, uma volta ao
que o próprio Saussure já considerava nos primeiros momentos de consolidação
da Lingüística:
A linguagem é um fenômeno; é o exercício de uma faculdade que existe no homem. (...). A conquista desses últimos anos é ter, enfim, colocado não apenas o que é linguagem e a língua em seu verdadeiro nicho, exclusivamente no sujeito falante, seja como ser humano, seja como ser social. (SAUSSURE, 2002, pp.115-116).
- 32 -
O que aconteceu no quadro da Lingüística Cognitiva, portanto, foi muito
mais uma volta aos princípios fundadores da Lingüística do que exatamente uma
evolução de seus princípios teóricos. É preciso considerar, quando se estuda a
linguagem, o que já era possível ler em Saussure, justamente que ela é um
fenômeno e que ela está existe no homem, como sujeito cognitivo e como sujeito
social, em que estão envolvidas, de forma integrada, dimensões físicas, mentais e
sócio-culturais.
Lakoff (1987) defende que a mente humana, na sua relação com a própria
linguagem, se caracteriza por suas propriedades criativas, experimentalistas e
ecológicas. Criativas, porque a mente humana tem a capacidade imaginativa de
criar e recriar complexas redes de domínios, em uma rica dinâmica de expansão
dentro de modelos cognitivos, que caracterizam a composição do pensamento.
Experimentalistas, porque nossos sistemas conceituais são extremamente
dependentes de experiências físicas e culturais. E, por fim, ecológicas, porque se
trata de um esquema com diversos níveis estruturais de organização (mental,
social, físico), cujas relações e efeitos não podem ser localizados isoladamente, já
que um elemento, como parte do sistema, interfere em todos os outros elementos
desse sistema, em uma rede de interligações (cf. LAKOFF, 1987, pp.112-113).
É importante destacar que, na base dessas formulações, a cognição é
considerada um conjunto de capacidades relacionadas a extensos processos de
construção mental (de percepção, memória, raciocínio, aprendizagem,
compreensão e ação) que permite à mente acionar insumos, (re)produzir sentidos
e determinar ações – atividades que posicionam a mente humana como
infinitamente mais complexa e rica do que processamentos de máquinas. Em
outros termos,
a mente é mais do que um mero espelho da natureza ou um mero processador de símbolos, não é casual para a mente que nós tenhamos corpo, o que faz com que a capacidade do pensamento para o entendimento e para a produção de sentido vá além do que uma máquina pode fazer (LAKOFF, 1987, p.xvii)4.
4 Tradução nossa da passagem “the mind is more than a mere mirror of nature or a processor of
symbols, that it is not incidental to the mind that we have bodies, and that the capacity for understanding and meaningful thought goes beyond what any machine can do”.
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A Lingüística Cognitiva, diante desse conceito de mente e de cognição,
objetiva, de forma geral, sistematizar os elementos básicos da relação entre
pensamento e linguagem, formulando hipóteses sobre as estruturas mentais que
levam os indivíduos a organizar seus conhecimentos. Nesses estudos, a
linguagem passa a ser concebida não como um módulo da mente, mas como um
traço (e parte integrante) da cognição humana. A cognição na Lingüística
Cognitiva, da maneira como já pontuamos, é concebida também de forma a não
desconsiderar a cena comunicativa e as condições sócio-culturais de produção de
sentido, organizando modos de compreensão do processamento cognitivo
humano e delimitando construtos teóricos capazes de mapear a organização
cognitiva no seu mais alto nível.
Gilles Fauconnier, ao contra-argumentar os postulados clássicos sobre
linguagem, que consideravam conteúdos, idéias e o próprio sentido como
codificados nas palavras, defende justamente que a
a linguagem não está ligada diretamente com o mundo real ou metafísico; no meio ocorre um extenso processo de construção mental, que não reproduz nem as situações-alvo do mundo real nem as expressões lingüísticas responsáveis por organizá-lo. Esse nível intermediário pode ser chamado cognitivo; ele é distinto do conteúdo objetivo e da estrutura lingüística. A construção se faz quando a língua é usada e é determinada por formas lingüísticas que constroem um discurso, e por uma série de pistas extra-lingüísticas que incluem informações dadas, esquema acessível, manifestações pragmáticas, expectativas, etc. (FAUCONNIER apud GEDES, 1999, p.32).5
Fauconnier elabora, como se vê, uma concepção de linguagem que
considera primordialmente a sua constituição cognitiva e que não exclui as
dimensões interacionais, sociais e culturais.
Essa concepção de linguagem fundamentou, por um tempo, um conceito
bastante importante a essas teorias e que recebe o nome de espaços mentais -
domínios articulados como a base do discurso, que acontecem nos bastidores da
cognição e que estão envolvidos nas manifestações mesmas da linguagem:
5 Citação da obra: FAUCONNIER, G. Quantification, Roles and Domains. In: ECO, U. et alii. Meaning and Mental Representations. Bloomington: Indiana University Press, 1988, pp.61-80.
- 34 -
essencial para o entendimento da construção cognitiva é a categorização de domínios em cima dos quais as projeções acontecem. Espaços mentais são domínios que o discurso constrói para prover uma base cognitiva para argumentar e se conectar com o mundo.” (FAUCONNIER, 1997, p.34)6
Em face a esse raciocínio, o sentido depende de construções mentais
complexas, organizadas através da e na linguagem, e que se denominam
espaços mentais. A constituição de espaços mentais, determinados por índices
tanto gramaticais quanto pragmáticos, depende dos papéis e das relações de
elementos externos e internos que constituem, caracterizam e singularizam cada
espaço. Essa teoria corresponde a um modelo que descreve, portanto, as
evidências de funções gramaticais na construção das configurações discursivas,
em busca, principalmente, da natureza cognitiva dessa construção (cf.
FAUCONNIER, 1994, p.xxxi).
Dentro do que se passou a denominar, então, Modelo dos Espaços
Mentais ou Teoria dos Espaços Mentais, Fauconnier (1994, 1997) postula uma
perspectiva de cognição em que se relacionam intimamente a linguagem e a
estrutura cognitiva. Nesse trabalho, descreveremos brevemente a Teoria dos
Espaços Mentais (que antecede a Teoria das Mesclagens Conceituais), mas com
a ressalva de que, para a nossa proposta, interessa mais os pressuposto dessa
segunda teoria, devido à sua perspectiva integradora e à sua pertinência para o
estudo da tríade discurso, cognição e cultura.
3.1. Teoria dos Espaços Mentais
Espaços mentais são estruturas cognitivas parciais que compreendem um
tipo de descrição de alto nível, em que estão envolvidos domínios interconectados
através dos quais pensamos, interagimos e produzimos sentido; e através dos
quais, também, podemos formular hipóteses sobre a linguagem e próprio
pensamento. Gilles Fauconnier, em entrevista a Cala Coscarelli (2003),
considerando a dificuldade de se definir o que é um espaço mental, já que não se
6 Tradução nossa da passagem “essential to the understanding of cognitive construction is the characterization of the domains over which projection takes place. Mental spaces are the domains that discourse builds up to provide a cognitive substrate for reasoning and for interfacing with the world”.
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pode ver o que está e o que acontece exatamente no cérebro, descreve espaços
mentais, primeiramente, como pequenos conjuntos de memória de trabalho que
construímos enquanto pensamos e falamos, processo em que nós os conectamos
entre si e também os relacionamos a conhecimentos mais estáveis.
Os espaços se delineiam por processos de contrafactualidade entre
elementos constituintes, propriedade da mente sem a qual nenhum espaço se
sustenta. Existem, então, elementos (de espaços-fontes – domínios de origem)
que, através de determinados mecanismos construtores de espaços mentais, se
organizam e se relacionam, criando espaços. Esses espaços, por sua vez, se
misturam com outros elementos, em integração conceitual, fazendo surgir ainda
novos espaços, em conexão pragmática com os primeiros – fenômeno
denominado posteriormente mesclagem conceitual e ao qual nos dedicamos mais
pontualmente nesse trabalho.
Os princípios que administram essas operações são decididos por
processos de identificação e de contraposição entre elementos, em um esquema
de contrafactualidades, processo que, na Teoria dos Espaços Mentais, são
sustentados pela própria hipótese de que produção lingüística, gramática e
estruturas cognitivas se relacionam intimamente. É por esse motivo que, para
Fauconnier (1994), os dados da língua servem para expor aspectos de
elaboradas representações mentais.
De forma geral, o funcionamento do modelo corresponde a domínios locais
que são introduzidos por expressões lingüísticas que suscitam os espaços
mentais. Além de os espaços mentais, ou domínios locais, serem estruturados por
conectores motivados por marcas lingüísticas, eles também são constituídos por
domínios estáveis, não locais. Esses domínios estáveis são caracterizados não só
por sua estabilidade como domínios cognitivos passíveis de serem identificados e
evocados, mas também pela organização, definida internamente, das informações
que constituem esses domínios e, além disso, pela mobilidade de seu
acontecimento, de acordo com as necessidades locais manifestadas. É essa
permanência, essa organização interna e a flexibilidade de sua instanciação que
permitem a esses domínios serem identificáveis e apreensíveis.
- 36 -
No que diz respeito ainda aos domínios estáveis que sustentam os
espaços mentais, eles correspondem a modelos culturais, a scripts e a esquemas
conceituais – são os conjuntos de conhecimentos socialmente produzidos,
previamente estruturados, e que compõem os espaços mentais. Eles são
subdivididos em Modelos Cognitivos Idealizados, também denominados de
esquemas conceptuais - esses esquemas estão disponibilizados na cultura e
correspondem a conhecimentos produzidos socialmente; em Molduras
Comunicativas, os frames, que dizem respeito aos elementos estabelecidos na e
pela interação (o evento comunicativo, as negociações, os papéis sociais, as
identidades); e, por fim, em Esquemas Genéricos, que são esquemas conceituais
mais abstratos.
Dentro da semântica cognitiva, as estruturas referenciais são indicadas por
espaços mentais (ou seja, os espaços mentais são domínios separados relativo a
estruturas referenciais)7, ao passo que as estruturas conceituais são identificadas
pelos Modelos Cognitivos Idealizados e frames, que estruturam os espaços
mentais. As entidades dos espaços mentais são, por um lado, definidas por
regras relacionadas a esses Modelos Cognitivos Idealizados e a esses frames e,
por outro lado, pelos valores estabelecidos para as funções constituintes de
espaços. É importante destacar que os Modelos Cognitivos Idealizados não são,
por si próprios, entidades dos espaços mentais, mas, sim, provedores de
estruturas relacionais, marcando as regras que são incorporadas a esses
espaços. (cf. LAKOFF & SWEETSER in FAUCONNIER, 1994, pp. x-xi. Prefácio).
A Teoria dos Espaços Mentais é elaborada, portanto, como uma teoria dos
modelos cognitivos que envolve tanto domínios locais correspondentes a espaços
mentais quanto modelos conceituais mais amplos que estruturam esses espaços.
Ao se referir à teoria de Fauconnier, Lakoff se refere a essas principais
propriedades do modelo dos espaços mentais destacando a multiplicidade e a
dinamicidade dos processos que envolvem o seu funcionamento:
Os espaços podem conter entidades mentais; os espaços podem ser estruturados através de modelos cognitivos; os espaços podem
7 A teoria dos espaços mentais localiza-se no contexto das abordagens processuais da referência, na contrapartida de abordagens como o correspondentismo, a teoria causal da referência, as semânticas internalistas, etc. (cf. SALOMÃO, 2005, p. 155)
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estar relacionados a outros espaços pelo que Fauconnier chama de "conectores"; uma entidade em um espaço pode estar relacionada a entidades em outros espaços através de conectores; os espaços são prolongáveis nessas entidades adicionais e os MCIs [Modelos Cognitivos Idealizados] podem ser acrescentados aos espaços no curso do processo cognitivo; os MCIs podem introduzir espaços. (LAKOFF, 1987, pp. 281-282). 8
Já no que diz respeito às análises desenvolvidas para descrever essas
relações nos e entre espaços mentais, Fauconnier (1994, 1997) estabelece
algumas categorias teórico-metodológicas de descrição de sentenças e de casos
específicos. No seu trabalho, essas análises envolvem descrição, através de
representações por diagramas, dos processos desencadeados por introdutores de
espaços mentais, normalmente assimilados a marcadores de passado, presente e
futuro; a expressões lingüísticas indicadoras de situações hipotéticas e/ou de
situações ficcionais; a situações pragmáticas que sustentam domínios abstratos,
como domínio da matemática, domínio da política, etc. Na seção a seguir,
explicitaremos justamente uma das principais categorias utilizadas por Fauconnier
em suas descrições, a qual ele nomeia como space builders – os construtores de
espaços mentais.
3.2. Construtores de espaços mentais (space builders)
Os construtores dos espaços mentais consistem em marcas lingüísticas e
contextuais que estruturam os espaços mentais, direcionando as projeções entre
elementos desses espaços e estabelecendo conexões entre eles:
As expressões lingüísticas irão tipicamente estabelecer espaços novos, elementos dentro desses espaços e relações organizadas entre os elementos. Eu chamarei de construtores de espaços mentais essas expressões que podem estabelecer um novo espaço ou que podem recorrer a um espaço já introduzido antes no discurso. (FAUCONNIER, 1994, p.17). 9
8 Tradução nossa da passagem “Spaces may contain mental entities; Spaces may be structured by cognitive models; Spaces may be related to other spaces by what Fauconnier calls “connectors”; An entity in one space may be related to entities in other spaces by connectors; Spaces are extendable, in that additional entities and ICMs [Idealized Cognitive Models] may be added to them in the course of cognitive processing; Os ICMs may introduce spaces.” 9 Tradução nossa da passagem “Linguistic expressions will typically establish new spaces, elements within them, and relations holding between the elements. A shall call space-builders expressions that may establish a new space or refer back to one already introduced in the discourse.”
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Várias construções gramaticais podem ser designadas como definidoras dessas
relações e desses espaços – construções como marcas temporais, modos
verbais, conectivos, sintagmas adverbiais e preposicionais, sentenças nominais e
outros.
Além dos índices gramaticais, os construtores de espaços mentais podem
operar através de informações pragmáticas ou de espaços hipotéticos, que
correspondem a espaços de domínio de atividades. Isso quer dizer que os
espaços mentais não são explicitados apenas por construtores de caracterização
gramatical, mas também por significações gramaticais implícitas e indiretas e por
fatores não-lingüísticos, como aspectos pragmáticos.
Sobre os construtores de espaços mentais (space-builders), o próprio
Fauconnier já sinalizava, em suas primeiras obras, que eles não seriam
suficientes, por si próprios, para dar conta do alto nível de complexidade e
abstração dos espaços mentais, da maneira como ele mesmo pontuou na
passagem a seguir:
A forma lingüística irá restringir a construção dinâmica dos espaços, mas essa construção por si mesma é altamente dependente de construções prévias já executadas anteriormente no discurso: os mapeamentos disponíveis de espaços e de ligações entre espaços; os frames e modelos cognitivos disponíveis; as características locais de molduras sociais em que acontecem as construções; e, claro, as propriedades reais do mundo ao redor. (FAUCONNIER, 1994, p. xxxix). 10
Em outros termos, não há uma estruturação de um campo de espaços
mentais que seja completo para sustentar sua constituição discursiva, ou seja, a
formulação dos espaços mentais ultrapassa a sua estrutura (cf. FAUCONNIER,
1994, p.xxxiv). Dessa forma, uma descrição que objetive descrever o
funcionamento cognitivo de base, em toda sua complexa atividade, não pode
restringir a sua construção a um número limitado e pré-definido de categorias
lingüísticas operadoras desse processo, aplicáveis apenas a sentenças isoladas.
10
Tradução nossa da passagem “the linguistic form will constrain the dynamic construction of the spaces, but that construction itself is highly dependent on previous construction already effected at that point in discourse: available cross-spaces mappings; available frames and cognitive models; local features of the social framing in which the construction takes place; and, of course, real properties of surrounding world”.
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Essa é inclusive uma das revisões que a Teoria das Mesclagens Conceituais
realizou no corpo da teoria que a antecedeu.
3.3. Mesclagens e Integração Conceitual
A Teoria das Mesclagens Conceituais (que pode ser considerada uma
evolução de alguns pressupostos da Teoria dos Espaços Mentais) apresenta a
idéia de mesclagem e integração conceitual como mecanismo básico da mente e
como uma operação cognitiva fundamental. Essa teoria começou a se
desenvolver, ainda na Teoria dos Espaços Mentais, quando se afirmava que as
projeções entre os espaços mentais usadas para criar redes são, na realidade,
muito ricas e podem ser de diferentes tipos (FAUCONNIER em entrevista a
COSCARELLI, 2003).
Mesclagem conceitual corresponde, portanto, a um processamento
cognitivo de alto nível e a uma importante capacidade da cognição de agrupar
espaços mentais, que não são estabilizados e nem encerrados em seus próprios
redutos. Os elementos de domínios diferentes, quando combinados e justapostos,
resultando em espaços com estruturas emergentes, produzem dados ilimitados,
em um jogo conceitual, de criatividade e de dinamicidade.
Nos trabalhos sobre mesclagens conceituais, enfatizam-se justamente a
natureza e o potencial imaginativo e criativo da mente humana, considerando que
todas as formas de pensamento são criativas no sentido de que produzem novos
vínculos, novas configurações e, correspondentemente, novos significados e
novas conceitualizações (FAUCONNIER, 1997, p.149)11. São essas propriedades
de manejar informações entre espaços, produzindo novos elos, correspondências,
configurações e conceitualizacões, que fazem a mente humana ser
incomparavelmente mais complexa e vasta do que os processos de
funcionamento programados para/em um computador.
Por conceito, mesclagem conceitual é uma operação cognitiva que envolve
projeção entre elementos relacionados, no mínimo, a dois espaços de entrada,
resultando em uma integração conceitual, com um espaço emergente e integrado,
denominado ‘espaço mescla’: as mesclagens operam em dois espaços mentais 11 Tradução nossa da passagem “all forms of thought are creative in the sense that they produce new links, new configurations, and correspondingly, new meaning and novel conceptualization”.
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de entrada para prover um terceiro espaço, o espaço mescla. Esse espaço
mescla herda a estrutura parcial dos espaços de entrada, adquirindo uma
estrutura emergente própria (FAUCONNIER, 1997, p.149)12. Isso quer dizer que
cada espaço, conectado analogicamente em uma combinação dinâmica de
modelos cognitivos, pode gerar novos espaços em composição de mesclagem,
por um processo de integração conceitual.
Ao avaliar de forma integrada os processos cognitivos, as implicações
pragmáticas e as estruturações lingüísticas e gramaticais, torna-se possível
explicitar os intercruzamentos que constituem os espaços mesclas e descrever as
dimensões cognitivas, lingüísticas, culturais e sociais envolvidas na construção do
discurso. Fauconnier & Turner (2002) mostram, sobretudo, que a mesclagem
conceitual está na raiz do funcionamento cognitivo da mente do homem moderno,
na prática cotidiana dos indivíduos e no desenvolver de sua cultura, (re)definindo
os modos de viver e de pensar e, principalmente, constituindo a maneira pela qual
as pessoas produzem sentidos.
Fauconnier & Turner (2002), em seu trabalho, mostram também como as
mesclagens operam e como elas são atravessadas por questões como
linguagem, identidade, cultura – as quais, por sua vez, são questões apreendidas
na lógica desses mesmos processos de mesclagem. Essa postura se justifica no
fato de que a teoria da mesclagem se fundamenta no princípio da integração
conceitual, que é considerada a forma pela qual a cognição opera.
Tal pressuposto é tanto objeto dessa teoria, que o articula na maneira de
enxergar a cognição, quanto uma postura dessa teoria, ao abrir espaço para
integrar os seus domínios a outros campos, como a psicologia, a computação, as
ciências sociais. A teoria das mesclagens, ou da integração conceitual, assume,
portanto, como sinaliza Coulson e Oakley (2005), uma postura de pesquisa
interdisciplinar, o que atribui amplitude e profundidade às suas análises.
12 Tradução nossa da passagem “Blending (...) operates in two Input mental spaces to yield a third space, the blend. The blend inherits partial structure from the input spaces and has emergent structure of its own.”
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3.4. O lingüístico e o texto na Teoria das Mesclagens Conceituais
A linguagem tanto se baseia na cognição quanto faz uso dos mecanismos
gerais da cognição, por isso, é possível utilizar as evidências lingüísticas para
estudar os aparatos cognitivos. Sob essa compreensão, torna-se perfeitamente
possível afirmar que as estruturas da linguagem empregam os mesmos
dispositivos usados para organizar modelos cognitivos (cf. LAKOFF, 1987, p.67 e
p.291). A língua, portanto, oferece pistas a respeito das construções no nível
cognitivo e, nesse processo, as expressões lingüísticas possuem significado
potencial.
Além de oferecer pistas do que acontece no nível cognitivo, as estruturas
lingüísticas têm uma outra importante atribuição - ser determinada por e
determinar estruturas sociais e modelos culturais. Para Fauconnier (1997),
algumas palavras e construções gramaticais trazem com elas um conjunto de
conhecimentos que estão por detrás das cenas, como frames, modelos
cognitivos, acepções ausentes, informações enciclopédicas (FAUCONNIER,
1997, p.70)13.
Já no que diz respeito ao conceito de texto dessa teoria, pode-se dizer
justamente que eles são considerados artefatos materiais que carregam as pistas
lingüísticas dos processamentos cognitivos. A estrutura dos textos é repleta de
orientações que acenam para os processos cognitivos de seu produtor -
orientações essas que conduzem e ativam esquemas que possibilitarão atribuir
sentido ao pensamento ordenado em forma de texto. O produtor do texto e,
posteriormente, também o leitor irão realizar amplos e complexos processo de
integração e mesclagens conceituais na organização e na busca de sentidos para
esse texto. A Teoria das Mesclagens Conceituais, portanto, considera os textos
no seu potencial discursivo e requer, para isso, que o tratamento dos dados
considere os aspectos integradores da cognição.
13 Tradução nossa da passagem “some words and grammatical constructions being with them an array of background knowledge, including frames, cognitive models, default assumptions, encyclopedic information”
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3.5. Cognição e social
Fauconnier (1994), ao discutir o elemento social em sua teoria, aponta,
dentre outros aspectos, para o uso da noção de frame. Nesse momento, ele
explicita uma conexão possível entre a noção de espaço, no sentido lingüístico-
cognitivo, e a noção de frame, no sentido sociológico. Para Goffmam (cf.
GOFFMAN apud FAUCONNIER, 1994), a interação comunicativa é inserida em
um frame, considerado uma moldura comunicativa e um jogo em que estão
envolvidos rituais e valores instituídos e negociados socialmente.
Na Teoria das Mesclagens Conceituais, a cognição não aparece
desvinculada da dimensão social. E mais, a cognição tem um caráter
eminentemente social. E é essa natureza social da cognição que faz necessário
considerar que há âncoras materiais que sustentam os processamentos das
integrações conceituais, para que assim seja possível ir além da compreensão da
experiência subjetiva e da internalidade (cf. SALOMÃO, 2005, p.159). O próprio
ato de fazer sentido e de interpretar, para o qual precisamos dessas âncoras
materiais, é uma operação social.
Para Hutchins (2005), o quadro teórico das mesclagens conceituais é
extremamente oportuno para pensar as relações entre estrutura mental e
estrutura material. Na busca dessa compreensão, ele defende, discute e
exemplifica a ancoragem material das mesclagens conceituais, dizendo que os
modelos culturais, determinados socialmente, não são idéias que residem dentro
da mente. Ao contrário, para esse autor, esses modelos também e principalmente
precisam estar incorporados a algum artefato material, fazendo com que se
estabilizem as representações conceituais. Em outros termos, os modelos
cognitivos são modelos sociais, presentes em (e constituinte de) elementos
(materiais) estabelecidos na e pela sociedade (como os próprios textos, por
exemplo).
O uso do termo social nas semânticas cognitivas, além de atualizar a
emergência, nas ciências cognitivas, da tendência de se pensar no domínio do
social, convoca também as ciências sociais a pensarem no domínio do cognitivo.
A idéia implicada nesse raciocínio é de que a ciência cognitiva se estenda nas
direções mais diversas, não só se integrando a campos como a psicologia, a
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lingüística, os estudos sobre inteligência artificial, mas também chegando
principalmente ao alcance das ciências sociais – já que todas essas áreas se
debruçam sobre objetos cujo estatuto inevitavelmente passa pela cognição
humana. Trabalhos como esses mostram os benefícios significativos que
emergem da integração de princípios dos estudos cognitivos na prática das
ciências sociais e vice-versa. A linguagem, em sua perspectiva integrada e
integradora, não pode ser compreendida em nenhuma perspectiva isoladamente.
Desse modo, o estudo da linguagem deve ser tanto um estudo cognitivo quanto
social.
A cognição deve ser entendida, por esse motivo, em uma perspectiva
integradora, na qual são fundamentais aspectos sócio-históricos e culturais,
definidos por (e definidores de) temas como política, economia, leis, sociedade,
dentre outros. Nesse sentido, a aproximação entre estudos da linguagem que
priorizem a cognição sem desconsiderar o social e de estudos da linguagem, na
sua dimensão discursiva, que priorizem o social, sem, contudo, desconsiderar o
cognitivo é uma postura que pode trazer, além de resultados produtivos,
implicações teóricas relevantes.
3.6. Cognição e cultura
Ao se aproximar os termos cognição e cultura, torna-se necessário, antes
de tudo, reafirmar que as operações cognitivas estão relacionadas
inevitavelmente com a apropriação do conhecimento cultural. Segundo Lakoff
(1987), nós organizamos nosso conhecimento por meio de Modelos Cognitivos
Idealizados, que têm um status cognitivo correspondente a complexas estruturas
categóricas com efeitos e capacidades prototípicas. Modelos Cognitivos
Idealizados são usados tanto para entender o mundo quanto para criar teorias
sobre ele, o que é uma importante hipótese sobre o significado em sua rica
diversidade.
Como o próprio nome indica, esses modelos cognitivos são “idealizados”,
ou seja, são fundamentados em ideais. Lakoff considera justamente que os ideais
adquirem valores, com efeitos prototípicos, em agrupamentos culturalmente
significados e que muitos conhecimentos culturais são organizados em termos de
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ideais (LAKOFF, 1987, p.87)14. Como se vê, no conceito de Modelo Cognitivo
Idealizado, o termo ‘cultura’ aparece como fundamental, já que esses modelos
são disponibilizados e naturalizados nas culturas.
Na Teoria das Mesclagens Conceituais, o processo de integração e de
mesclagem é parte importante do que está por detrás das cenas, no dia-a-dia do
uso da linguagem, nas formações dos consensos, na cultura. No processo de
mesclagem, como foi descrito mais acima, a integração de redes conceituais
articula justamente modelos culturais que, por vezes, são profundamente
naturalizados. Trata-se de um processamento em que cognição e cultura se
constituem, construindo condições de pertencimento (e de pertinência) a
determinados agrupamentos com condições históricas específicas, que conduzem
os modos de produção de sentido e que, por sua vez, correspondem a nossa
maneira de pensar e de agir, ou seja, correspondem aos nossos hábitos e
práticas culturais.
3.7. Cognição e discurso
Na entrevista que concedeu a Carla Coscarelli, ao ser interrogado sobre a
relação entre Espaços Mentais e Enunciação, Fauconnier diz:
Eu não tenho nada específico a dizer, exceto por um embasamento comum que é o fato de não ver a linguagem como formas sintáticas estáticas que são logicamente interpretadas em sistemas semânticos, mas que vê como de extrema importância a dinâmica completa de situação comunicacional, assim como vê como importante o dado de que, nas situações enunciativas nós nos adaptamos à medida em que o discurso dinamicamente se desdobra. Nesse sentido, uma das coisas que podemos dizer é que os espaços mentais incorporam as situações encunciativas do falante, do ouvinte, do narrador e assim por diante (FAUCONNIER em entrevista a COSCARELLII, 2003).
Como se vê, Fauconnier utiliza, no desenvolvimento de seus pressupostos
teóricos, princípios tanto semânticos quanto pragmáticos, de forma a considerar a
linguagem em seu uso. É sob essa perspectiva que se pode entrever a presença
de uma acepção de discurso nesse construto teórico. É possível dizer que
discurso, para essa teoria, corresponde à linguagem para além de suas estruturas
14 Tradução nossa da passagem “a lot of cultural knowledge is organized in terms of ideals”.
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e à linguagem em uso, em que os elementos cognitivos, sociais, culturais
interagem entre si. Além disso, podemos dizer que a dimensão discursiva, na
Teoria das Mesclagens Conceituais, está também no fato de que ela considera,
na formulação de sua teoria, as regras contextuais e situacionais, o sujeito e o
aspecto interativo e interacional da linguagem.
Essa teoria, mesmo localizando o social e o cultural como dados
fundamentais para a cognição e para as estratégias cognitivas de interpretação e
de produção de sentido, não é considerada, em sua natureza, uma teoria do
discurso. Há uma diferença teórica relevante entre essa teoria e aquelas
explicitamente nomeadas como teorias do discurso, como bem observa Salomão:
Enquanto os estudos discursivos mais se guiam pelos aspectos sociais da gênese do sentido (a microfísica da interação, os gêneros textuais, as ordens ideológicas subjacentes), os estudos cognitivos têm preferido focalizar os processos mentais de categorização e esquematização, as projeções entre domínios epistêmicos, as transferências figurativas da estrutura conceptual, o gerenciamento do fluxo discursivo. (SALOMÃO, 2005, pp. 157-158).
A Teoria das Mesclagens Conceituais localiza-se dentro dos estudos
cognitivos e, por isso, privilegia o foco nos processos mentais. No entanto, é
preciso considerar que existem tanto processos cognitivos quanto processos
discursivos (e os dois se interconstituem), o que justifica levar mais a fundo as
conseqüências da dimensão social da linguagem, expandindo a compreensão das
implicações da natureza cultural e material da mente humana.
Em uma perspectiva discursiva, torna-se necessário considerar que o
discurso vai muito além do funcionamento cognitivo por si próprio e que regras,
convenções, relações, identidades e representações sociais são negociadas e
construídas nesse e através desse discurso (cf. SINHA, 2005, p. 1537), estando
nele envolvidas questões de ideologia, por exemplo. É com base nessa
possibilidade de articulação entre estudos discursivos e estudos cognitivos que
assumimos a proposta de fazer dialogar uma análise do discurso com a Teoria
das Mesclagens Conceituais, potencializando o seu alcance.
- 46 -
4. Considerações finais
A exposição dos princípios gerais da Análise Crítica do Discurso e da
Teoria das Mesclagens Conceituais assumiu apenas um caráter introdutório,
tendo sido pontuadas questões fundamentais para a etapa seguinte de nosso
trabalho. Tal exposição, por esse motivo, esteve, a princípio, descomprometida da
hipótese de trabalhar com pressupostos de uma análise do discurso e de uma
teoria lingüístico-cognitiva conjuntamente. No entanto, a própria forma como
foram explorados os elementos de cada arcabouço teórico pretendeu introduzir o
trabalho posterior de aproximação teórica.
O desenvolvimento desse capítulo objetivou, portanto, apenas apresentar
os principais fundamentos das teorias que irão dar suporte à aproximação entre
os conceitos de discurso, cognição e cultura. Como foi possível perceber, a
exposição dessas teorias se concentrou, por um lado, na apresentação breve de
seus pressupostos gerais e, por outro lado, na descrição da forma como cada
uma se relaciona com a tríade de conceitos que elegemos como objeto dessa
dissertação.
De que modo a aproximação entre as duas teorias pode conduzir, então,
uma discussão a respeito da interdependência entre esses conceitos? Como essa
aproximação fundamentaria uma concepção de linguagem em uma perspectiva
integrada e integradora? Como conciliar duas teorias com propósitos bastante
diferentes e de que maneira essas teorias podem se complementar? Quais as
orientações metodológicas de uma e de outra teoria e qual a possibilidade de
integração entre elas? Como construir uma prática de análise que leve em
consideração a latência, na linguagem, dos domínios discursivos, cognitivos e
culturais? Diante desses questionamentos, buscando respostas para eles,
propomo-nos ao desenvolvimento do objetivo central dessa dissertação, a que
nos dedicaremos no capítulo seguinte.
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CAPÍTULO II
Discurso, Cognição e Cultura: uma proposta de aproximação teórica
- 48 -
1. Considerações iniciais
Após descrever, em linhas gerais, a que vem cada um dos dois lugares
teóricos que delimitam essa pesquisa, objetivamos discutir as motivações que
orientam a proposta de aproximar esses construtos em um projeto não só de
compreensão da linguagem como de construção de um aparelho metodológico de
análise motivado por essa compreensão. Falamos aqui do que, dentro dos
domínios de nossa hipótese, nos possibilitaria operá-la. Nesse capítulo, portanto,
serão explicitadas as vias de construção desse objeto com que temos trabalhado
- um objeto teórico - para posteriormente, no capítulo seguinte, desempenhar uma
prática de análise, a partir da delimitação de um corpus específico.
Na primeira etapa desse segundo capítulo, será organizada uma discussão
que descreva a tríade discurso, cognição e cultura em prol de uma concepção de
linguagem integrada e integradora. Já em uma segunda etapa, ponderando o
potencial da Análise Crítica do Discurso e da Teoria das Mesclagens Conceituais
frente ao conceito de linguagem organizado na etapa anterior, essas teorias serão
aproximadas naquilo que elas podem se complementar, criando um terceiro
espaço emergente resultante do diálogo entre elas. E, por fim, como um dos
objetivos específicos dessa pesquisa, será elaborada uma metodologia que
contemple o projeto teórico defendido e ofereça instrumentos para funcionalizar e
potencializar análises.
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2. Linguagem: discurso, cognição e cultura
Na dispersão dos discursos que procuram apreender a linguagem e
descrever suas propriedades, tarefa a que se dedica a Lingüística, há de se
encontrar, como um recurso de sistematização, as regularidades que tornam
possível elaborar conceitos e identificar traços que demarquem uma
compreensão de linguagem. A diversidade de tais compreensões gera as
diferenças entre as várias lingüísticas que conhecemos. Nessa pesquisa,
optamos por avistar a linguagem de três vias que consideramos fundamentais
para o seu entendimento: o social, o cognitivo e o cultural. Para isso, criamos a
hipótese de um diálogo teórico diante do qual iniciaremos a discussão sobre as
relações fundadoras entre discurso, cognição e cultura.
A cognição humana pode ser apreendida como o domínio de inteligência e
de inteligibilidade do Homem, em que estão envolvidos tanto o exercício
intelectual frente a conhecimentos e a interações mediadas por esses
conhecimentos na articulação de estruturas quanto os processos relacionados às
atividades do pensar e do agir. O domínio social, que nasce da interação do
homem com o mundo, corresponde, grosso modo, ao próprio ato de habitar os
espaços desse mundo e de construir relações entre os elementos constituintes
desses espaços, entre seus atores e entre os artefatos materiais por eles
apropriados ou criados. No entremeio entre a cognição e o social, a cultura é
justamente as diferentes maneiras de habitar o social e de conduzir as suas
práticas na experiência cognitiva dos seres e das coisas que esses seres criam e
significam.
Diante dessa perspectiva, cognição, social e cultura são conceitos que, de
maneira ou de outra, fazem participar nos seus domínios o papel fundamental e
constitutivo da linguagem. E, além disso, cognição, social e cultura são conceitos
que, como é possível depreender, também estabelecem entre si relações
fundamentais. É na integração entre esses conceitos (e entre cada um desses
conceitos e a linguagem) que motivamos a tríade discurso, cognição e cultura.
Como delimitamos, para as nossas discussões, duas áreas específicas de estudo
da linguagem, a Análise Crítica do Discurso e a Teoria das Mesclagens
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Conceituais, voltemo-nos para o que pensam, dentro dessas relações,
especificamente os estudiosos dessas duas áreas.
Van Dijk (1999), ao falar do uso da linguagem, explicita as dimensões que
a constituem e ressalta a necessidade de uma postura multidisciplinar para o
estudo da linguagem e do discurso:
O uso da linguagem, os discursos e as comunicações entre pessoas reais possuem dimensões intrinsecamente cognitivas, emocionais, sociais, políticas, culturais e históricas. Por isso mesmo, uma teorização formal necessita estar dentro de contextos teóricos mais amplos desenvolvidos em disciplinas diferentes. A ACD estimula muito especialmente essa multidisciplinariedade. (VAN DIJK, 1999, p.24). 15
Como vemos, van Dijk considera que o discurso possui dimensões não só sociais,
políticas, históricas e culturais, mas também dimensões cognitivas e emocionais.
Justamente a favor dessa heterogeneidade de dimensões atribuída ao uso da
linguagem e ao discurso, esse autor articula uma postura multidisciplinar,
ampliando os contextos teóricos de compreensão da linguagem como prática
social.
Da mesma forma, Chilton (2005), um outro teórico que também sugere
articular uma compreensão de discurso sem que se desconsidere a cognição,
enfatiza as capacidades individuais, biológicas e mentais envolvidas no
entendimento da linguagem em uso:
Discurso, que é o mesmo que dizer linguagem em uso, é produzido e interpretado por indivíduos humanos em interação. A linguagem só pode ser produzida e interpretada por mentes humanas (e aparatos vocais, etc). Se a linguagem é produzida e interpretada por mentes humanas, então ela interage com outras capacidades cognitivas (como também com o sistema motor). Em particular, se o uso da linguagem (discurso) é, como se defende nos postulados da ACD, conectada por construções de conhecimento sobre objetos sociais, identidades, processos, etc.,
15 Tradução nossa da passagem “El uso del lenguaje, los discursos y la comunicación entre gentes reales poseen dimensiones intrínsecamente cognitivas, emocionales, sociales, políticas, culturales e históricas. Incluso la teorización formal necesita por tanto insertarse dentro del más vasto contexto teórico de los desarrollos em otras disciplinas. El ACD estimula muy especialmente dicha multidisciplinariedad.”
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ela só pode ser considerada porque acontece na mente dos indivíduos em interação. (CHILTON, 2005). 16
Um conceito de discurso que se preocupe em localizar a linguagem como
prática social necessariamente pressupõe a interação entre sujeitos. Como
vemos, Chilton (2005) demarca essa interação entre indivíduos (que, no discurso,
ocupam lugares sociais e, por isso, são sujeitos) como um argumento para
defender que o uso social da linguagem só se completa porque ele também
acontece na mente desses indivíduos em interação. Em outros termos, para esse
teórico, não é apenas a determinação social da linguagem que conceitualiza o
discurso, mas há outros elementos importantes na interação humana tão
determinantes quanto o é o social.
Voltamo-nos, agora, para a outra extremidade do diálogo teórico que
propomos (extremidades frente às quais nos equilibramos na proposta de uni-las
nessa dissertação). Fauconnier (1997) diz, mesmo não denominando como
discurso o uso da linguagem, que
o mais surpreendente aspecto da organização da linguagem e do pensamento é a unidade fundamental das operações cognitivas que servem para construir os sentidos comuns do dia-a-dia, as razões do senso comum de nossa existência diária, os mais elaborados argumentos e discussões em que nos engajamos, e as mais elaboradas teorias científicas e produções literárias e artísticas que estão nas culturas, presentes acima do curso do tempo. (FAUCONNIER, 1997, p.187).
Ao considerar os processamentos cognitivos como unidade fundamental
organizadora da linguagem e do pensamento, Fauconnier (1997) pontua a
imediação entre cognição e linguagem. Tal postura se justifica pelo próprio lugar
em que ele se posiciona: seus estudos se enquadram, como sabemos, em uma
Lingüística Cognitiva, que cunha em seu próprio nome a importância da cognição
(assim como uma Análise Crítica do Discurso marca o discurso em sua 16 Tradução nossa da passagem “Discourse, that is to say language in use, is produced and interpreted by human individuals interacting with one another. Language can only be produced and interpreted by human brains (and vocal apparatus, etc). If language is produced and interpreted in human brains, then it interacts on any account of language with other cognitive capacities (as well as motor systems). in particular, if language use ( discourse) is, as the tenets of CDA asset, connected to the ‘construction’ of knowledge about social objects, identities, processes, etc., then that construction can only be taking place in the mind of (interacting) individuals.”
- 52 -
terminologia, conduzindo a importância da determinação social da linguagem nos
objetos que estuda). De volta à postura de Fauconnier na citação anterior, em que
ele explicita a cognição como unidade fundamental da linguagem, há de se dizer
que ele o faz de forma a localizá-la nos sentidos comuns produzidos no dia-a-dia
e nas diversas manifestações da linguagem presentes na cultura e na história. Em
sua definição de linguagem, portanto, como se vê, estão presentes os domínios
sócio-culturais e o uso da linguagem.
Guardadas as diferenças teóricas entre van Dijk (1999) e Chilton (2005), de
um lado, e Fauconnier (1997), de outro, todos eles manipulam o cognitivo e o
social (ou o sócio-cultural) conjuntamente para identificar a linguagem. A
abordagem desses três teóricos, cada um a sua maneira, nos são, por isso,
produtivas para estudar o uso da linguagem, antes de tudo, como uma atividade
conjunta. É pelo que defende os teóricos que invocamos acima que assumimos
ser pertinente e oportuno compreender a linguagem de nenhuma perspectiva
isoladamente.
O discurso corresponde à linguagem em uso, a linguagem como prática
social, em que estão envolvidas relações ideológicas; a cognição aparece
importante na mesma proporção, já que esse uso da linguagem, mesmo que
socialmente determinado, acontece na mente de indivíduos em interação – ou
seja, a produção e a compreensão de textos é também uma atividade de
processamento cognitivo. Não é interessante enfocar o social ou o cognitivo na
linguagem como dimensões que se excluem. Se existem comunidades
discursivas, seus membros só podem ter acesso a elas se estiverem a seu
alcance recursos e conhecimentos internalizados, como as estratégias cognitivas
prévias (que são organizadas socialmente) correspondentes desde o saber
lingüístico às representações de mundo e às crenças e valores.
A partir do que articulamos acima, é importante dizer que o uso da
linguagem e as atividades cognitivas desse uso são constituídos na e pela cultura
e, ao mesmo tempo, constituem a cultura, estabelecendo com ela uma relação de
mútua determinação. Se entendermos cultura como as diferentes maneiras de
habitar as práticas sociais e, se as práticas sociais são constituídas na e através
da linguagem, é indispensável aproximar, para definir linguagem, discurso e
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cognição de cultura. Para Langacker (cf. LANGACKER apud SILVA, 2004), a
linguagem e a cultura são sub-faces imbricadas da cognição, já que sem a
linguagem, um certo nível de conhecimento/desenvolvimento cultural não poderia
ocorrer e, inversamente, um alto nível de desenvolvimento lingüístico só se obtém
através da interacção sócio-cultural (SILVA, 2004).
Não há como entender a cognição humana fora do tempo, da história e da
sociedade em que o homem vive. Da mesma forma, seria impertinente olhar para
a sociedade e para a história e desconsiderar o indivíduo (e sua cognição). A
linguagem, nesse raciocínio, assume uma posição estratégica, já que ela está
para cognição assim como está para a sociedade. E linguagem, pela postura que
assumimos nessa pesquisa, não pode ser compreendida fora do seu uso, ou seja,
fora de um conceito de discurso. Estão aí as principais motivações para unir
discurso, cognição e cultura na tarefa de compreensão da linguagem - esse
objeto tão vasto e heterogêneo em si.
3. O discurso para a Análise Crítica do Discurso
A Análise Crítica do Discurso é, como um domínio do saber, uma análise
de discurso que toma contornos de análise lingüística, de análise sócio-
ideológica, de análise cultural. Um dos objetivos da ACD é fazer funcionar
conjuntamente essas dimensões para identificar e descrever o papel da
linguagem na estruturação das relações de poder na sociedade, em que estão
envolvidas práticas ideológicas. Especificamente a análise lingüística, em uma
perspectiva funcional, tem um papel importante na ACD, já que ela é utilizada
como um método para descrever o funcionamento social das ideologias – postura
que se justifica na própria idéia de que linguagem e sociedade estabelecem entre
si uma relação de recíproca determinação.
A ACD considera, por conseqüência, que a sociedade se constitui
discursivamente e que práticas sociais e práticas discursivas sejam processos
que se definem um pelo outro. Para Fairclough (2001), o discurso (denominação
que recebe, como já dissemos, a interação entre práticas sociais e discursivas e
as estruturas lingüísticas manifestadas em textos) tem, portanto, um potencial
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político, por sua propriedade de estabelecer, localizar e transformar as relações
de poder e os sujeitos sócio-históricos; e um potencial ideológico, por manter,
reproduzir e naturalizar os significados e representações de mundo, investindo
nas crenças e no conhecimento de indivíduos socialmente interpelados.
Na base desse conceito de discurso defendido pela ACD, aparece uma
noção de ‘contexto’ que inclui desde elementos sociais, políticos e ideológicos,
como foi pontuado acima, a elementos psicológicos (cf. FAIRCLOUGH, 2003). A
caracterização de ‘linguagem/discurso’, nos próprios desdobramentos dessa
definição de contexto, identifica um objeto de proporções amplas - socialmente
definido, mas que deixa entrever os domínios culturais e cognitivos. Nessa
amplitude, as relações entre linguagem e prática social, que determinam o
conceito de discurso, pressupõem as relações entre linguagem e cognição e
linguagem e cultura.
No que diz respeito às relações entre linguagem e cognição, consideramos
que as práticas sociais e discursivas abrangem processos mentais, individuais e
psicológicos envolvidos na produção e interpretação de textos, como o
conhecimento e as convenções culturais internalizados que formam, inclusive,
estruturas prévias de interpretação. Na Análise Crítica do Discurso, no entanto, os
estudos sobre cognição são escassos e pouco abrangentes, dada a própria
postura de considerar a linguagem como prioritariamente prática social.
Os autores que dedicam espaço ao problema da cognição em suas teorias,
na ACD, organizam discussões sobre seu papel e sua natureza frente aos
domínios discursivos da linguagem, mas não levam tão a fundo as suas
conseqüências no discurso. Dentre esses autores, citam-se van Dijk (1997),
Chilton (2005), Wodak (2006). O primeiro articula mais extensamente conceitos
como ‘modelos mentais’ em sua teoria, já os outros dois dão lugar à dimensão
cognitiva do discurso em um ou outro trabalho que desenvolvem.
Os trabalhos de van Dijk têm como traço peculiar a orientação cognitiva
presente em suas discussões sobre discurso, ideologia e poder. Para esse autor,
existem modelos mentais que representam relações sociais internalizadas, em
que se podem acessar os processo de compreensão de mundo e, por sua vez, os
processos de representação. Van Dijk vê, dessa maneira, o funcionamento da
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ideologia como cognitivo, além de social, já que, para esse teórico, a manutenção
de determinadas representações de mundo se dá pela estruturação e
manipulação de modelos mentais envolvidos na produção de sentido e no
processamento discursivo.
Wodak (2006) considera a relevância das pesquisas sobre cognição e
linguagem, destacando a possibilidade de contribuições que as ciências
cognitivas têm a oferecer para a ACD. A cognição assume, para essa autora, um
lugar estratégico na compreensão do discurso e está altamente implicada na
mediação entre o discurso e a sociedade. Ao encadear as diferentes dimensões
envolvidas na produção e compreensão de textos, ela discute a participação das
experiências e dos conhecimentos adquiridos na descrição e interpretação dos
sentidos, trazendo para suas reflexões conceitos como frames, esquemas, scripts
(conceitos recorrentes, como sabemos, nos estudos sobre cognição e linguagem).
Já para Chilton (2005), que critica as restrições que as análises do discurso
impõem ao elemento cognição, é necessário considerar, nas questões de
representação social, o papel desempenhado pela mente humana. A ACD
apresenta extensos trabalhos sobre as relações entre os domínios sócio-políticos
e os domínios lingüísticos, mas a compreensão dessas relações, na maior parte
desses trabalhos, exclui ou não focaliza o funcionamento da mente humana e o
papel que ela assume no discurso. Chilton (2005) avança, se posiciondo contra
essas restrições, ao considerar a importância da dimensão cognitiva no discurso,
apontando para a possibilidade de recorrer à série de pesquisas sobre cognição
que circula atualmente e que tem potencial para responder problemáticas de
análises do discurso em contextos sociais e políticos.
Já no que se refere à maneira como a ACD articula as relações entre
linguagem e cultura, além do que já foi pontuado na seção 2.6 do capítulo
anterior, ressaltamos aqui as ligações entre a ACD e os estudos e teorias
culturais. O cunho ‘crítico’ da ACD se justifica na convergência de teorias críticas
no seu projeto de fundação - como as teorias de Foucault, por exemplo. É esse
grupo de teorias conhecidas, dentre outras denominações, como Teorias Críticas
da Cultura que alimentou também a formação de trabalhos dentro de um outro
campo - de fronteiras amplas - conhecido como Estudos Culturais. A ligação entre
- 56 -
a ACD e os Estudos Culturais parte, dentre outros motivos, dessa semelhança de
origens teóricas e epistemológicas.
ACD e Estudos Culturais, no entanto, são dois campos distintos, mas que
podem contribuir entre si em seus projetos. Cardiff (2003) fala, por exemplo, da
importância de uma ACD nos domínios dos estudos da cultura:
A ACD é apresentada como uma teoria que oferece meios de dizer que ‘as formas lingüísticas são dotadas de um potencial sistemático e repetível capaz de desvendar práticas sociais’ (…). Por outro lado, os Estudos Culturais, sem a ACD, podem ser 'incapazes de mostrar precisamente como a construção discursiva de formas culturais é alcançada no dia a dia de nossas vidas’. (CARDIFF, 2003).17
Ao propor o uso da ACD nos domínios dos Estudos Culturais, esse autor
não considera uma relação unilateral entre esses dois campos. Os Estudos
Culturais podem também oferecer instrumentos para a compreensão da
linguagem como atividade cultural, além disso os estudos de cultura têm
instrumentos para fortificar a própria compreensão das práticas sociais e
discursivas. Maior parte dos objetos e domínios do saber que a ACD elege em
seus trabalhos tem fortes implicações culturais e são amplamente discutidas nos
Estudos Culturais - como mídia, gênero, raça, política18. A referência a esses
estudos aparece como uma contribuição possível dos Estudos Culturais dentro da
ACD, visto que a descrição cultural de um objeto de análise e dos dados
lingüísticos desse objeto emerge nas próprias diretrizes gerais da ACD.
4. Lingüística Cognitiva: linguagem, cognição e cultura
No quadro da Lingüística Cognitiva, consolidaram-se algumas perspectivas
teórico-metodológicas importantes para a organização de sua agenda. Uma
delas, por exemplo, refere-se à busca de orientação em posturas defendidas pelo
17 Tradução nossa da passagem “CDA is presented as a theory offering the ‘potential for a systematic/repeatable insight into the linguistic form capable of unraveling social practice’ (…). On the other hand cultural studies, without CDA, has been ‘unable to show precisely how the discursive construction of cultural forms is achieved in everyday life.” 18 Exceto aquelas vertentes dos Estudos Culturais afiliadas à psicanálise, cujo referencial teórico desencontra-se dos referenciais defendidos nos domínios da ACD.
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funcionalismo lingüístico, que se opôs fortemente ao formalismo de algumas
lingüísticas tradicionais. Nesses pressupostos funcionalistas, articula-se a idéia
fundamental de que a linguagem, entendida no seu uso e nas estratégias
contextuais de seu acontecimento, se identifica por e em processos cognitivos,
sócio-culturais e interacionais. Dessa maneira, o estudo da linguagem deve se
preocupar tanto com os processamentos mentais quanto com a interação e a
experiência social e cultural que determinam o uso da linguagem.
Sob essas diretrizes, na Lingüística Cognitiva, uma das preocupações
emergentes e que permeiam grande parte de seus trabalhos é a relação entre
linguagem, cognição e cultura. Ao tomar a linguagem sem desconsiderar o
sujeito, avaliando a relação deste com os objetos do mundo, essa lingüística se
interessa pela forma como a linguagem contribui para a construção de
conhecimentos sobre o mundo e sobre os próprios sujeitos, considerando desde
fatores físicos, biológicos e psicológicos até fatores situacionais, sociais,
históricos e culturais.
É muito importante ressaltar que o enfoque na cognição, dentro da
Lingüística Cognitiva, não implica em considerar a mente como uma entidade
descontextualizada. Por exemplo, considerar os processamentos cognitivos de
base não significa desconsiderar os outros fatores sócio-histórico-culturais, que
são, inclusive, demarcados como entidades que interagem de forma essencial
com a cognição. Tal postura é defendida na medida em que se acredita que
as mentes individuais não são entidades autónomas, mas corporizadas-encarnadas e altamente interactivas com o seu meio; e é através desta interacção e acomodação mútua que a cognição e a linguagem surgem, se desenvolvem e se estruturam. Não existe, pois, propriamente linguagem humana independentemente do contexto sócio-cultural. Mas não é menos verdade que a linguagem reside primariamente nas mentes individuais, sem as quais a interacção linguística não poderia ocorrer. (...) A Linguística Cognitiva reconhece explicitamente, não só que a capacidade para a linguagem se fundamenta em capacidades cognitivas gerais, como também que todas estas capacidades são culturalmente situadas e definidas. (SILVA, 2004).
Considerar a mente como individual, mas não autônoma e demarcar sua
corporeidade e sua interatividade com o meio é, como podemos ver, uma postura
- 58 -
que justifica o pressuposto da Lingüística Cognitiva de definir linguagem não só
como integrada à e integradora da mente, mas também como intricada nas
relações e nos contextos sócio-culturais. Langacker diz justamente, no que
concerne às lingüísticas cognitivas, que apesar de seu foco ser o aspecto mental,
lingüísticas cognitivas podem ser descritas também como lingüísticas social,
cultural e contextual” (1997:240) ou “o advento da lingüística cognitiva também
pode ser anunciado como um retorno às lingüísticas culturais (1994: 31)
(LANGACKER apud SILVA, 2004)19.
Para esse quadro da Lingüística Cognitiva, as mesclagens conceituais,
como importante capacidade cognitiva, posiciona a cultura como parte e motivo
de um processo integrador da cognição e, também, como resultado dessas
integrações. Por essa posição da cultura como constituinte dos processos
cognitivos, podemos visualizar os processos mentais na própria forma como se
organizam (ou na forma como foram organizados) os produtos da cultura e a
história que os define. Dessa forma, é possível dizer que a cultura oferece setas e
traz material suficiente para descrever as capacidades mentais e a complexidade
das operações cognitivas.
Se por um lado, temos acesso, na cultura, a um mapeamento dos
processamentos mentais de mais alto e profundo nível, por outro lado, temos
acesso à cognição pelo estudo de dados da cultura. As interconexões que atrelam
estruturas e elementos de domínios diferentes e os fazem formar novos espaços,
em uma integração conceitual, são não apenas parte, mas constituem o que se
encontra nas cenas do nosso dia-a-dia e nos bastidores de todo uso da
linguagem – ou seja, mente e cultura podem ser consideradas faces de um
mesmo processo.
Os mecanismos de mesclagem conceitual (cf. FAUCONNIER & TURNER,
2002), em que espaços mentais se interceptam, criando estruturas emergentes, e
sob os quais funciona um amplo processo de criação e de criatividade, podem ser
considerados uma das próprias características observáveis nas manifestações da
19 Tradução nossa da passagem “despite its mental focus, cognitive linguistics can also be described as social, cultural, and contextual linguistics” (1997: 240) ou “the advent of cognitive linguistics can also be heralded as a return to cultural linguistics” (1994: 31)”.
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cultura (e nos produtos dessas manifestações) de que o homem é agente. A
linguagem funciona como o próprio princípio organizador desse processo.
Construímos mesclagens conceituais a partir de estruturas conceituais
amplas, que envolvem esquemas de experiência, cenários estabelecidos ou
resgatados no uso da linguagem, papéis atribuídos aos participantes das
interações, modelos culturais de compreensão de mundo. Voltamos a repetir,
nesse momento, em referência novamente a Fauconnier & Turner (2002), que o
princípio das mesclagens é o próprio princípio pelo qual aprendemos, pensamos e
vivemos, já que, segundo esses autores, é por esse mecanismo basilar que
(re)organizamos incessantemente os nossos pensamentos e as nossas ações.
Para Fauconnier & Turner (2002, p.xiv), no que diz respeito às integrações
conceituais e aos produtos da mente resultantes dessas integrações, há
sistemáticos mapeamentos e esquemas e sistemáticos meios de combiná-los que
sublinham ostensivamente diferentes concepções e expressões20, tais
concepções e expressões estão atravessadas no comportamento, nos atos, nas
produções do homem e na própria forma como o homem habita o mundo. Quando
produzimos sentido e quando pensamos ou agimos (processos sócio-cognitivos),
o fazemos correspondentemente aos nossos hábitos e práticas culturais.
Cognição e cultura encontram-se, dessa maneira, fortemente intricadas e
comprometidas entre si.
A produção de sentido, sob essa perspectiva, não é um atributo apenas
mental, mas passam pelo sentido desde as emoções e os comportamentos do ser
até a história e a cultura em que esse ser-sujeito se insere e é significado. Dessa
forma, é possível dizer que o mundo e o indivíduo não são entidades separadas,
mas interagem entre si, de forma a se acoplarem. O sentido e a forma como
significamos o mundo (e a nós mesmos, como parte do mundo) partem desse
princípio integrador, do qual emerge uma perspectiva interacional e cultural diante
da cognição e da linguagem – perspectiva que identifica a Lingüística Cognitiva.
As relações entre linguagem e cultura devem considerar ainda que o
desenvolvimento cognitivo tem uma natureza cíclica, na medida em que se define
20 Tradução nossa da passagem “there are systematic mappings schemes, and systematics ways of combining them, that underlie ostensibly different conceptions and expressions”
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entre capacidades psicológicas inatas e experienciações prévias especificamente
culturais. Essas capacidades e experiências não são extremidades de um mesmo
processo, mas se interconstituem – o que não significa dizer que não há um
domínio do cognitivo e um domínio do social, mas sim que esses domínios são
marcados essencialmente pela presença de um no outro. A Lingüística Cognitiva
se dedica a essas relações, esquematizando-as e sistematizando-as através de
análises lingüísticas, já que a língua oferece não só pistas, mas se determina
diante dessas relações que fazem relacionar linguagem, cognição e cultura.
5. A proposta de aproximação teórica
O que motiva a hipótese da aproximação teórica que temos defendido é a
concretização de um conceito de linguagem sustentado na tríade discurso,
cognição e cultura. Aproximar a Análise Crítica do Discurso e a Teoria das
Mesclagens Conceituais não tem como objetivo dizer o que essas teorias
apresentam em comum ou o que não poderia permitir essa aproximação. A nossa
proposta não é ver as congruências e não congruências entre elas, até porque
sabemos que são teorias com domínios e métodos diferentes e com prioridades
distintas. A hipótese que sustentamos se funda na idéia de que, nos instrumentos
de compreensão de linguagem organizados por essas duas teorias, há pontos
que podem se complementar.
Tanto uma quanto outra teoria, como já vimos, oferecem caminhos para
entender a linguagem nas suas dimensões discursivas, cognitivas e culturais. No
entanto, cada uma prioriza um conceito específico e, por isso, não se dedica
extensivamente ao outro conceito. O termo discurso aparece muito timidamente
na Teoria das Mesclagens Conceituais e a ACD oferece recursos para
potencializar esse conceito de discurso, buscando maiores conseqüências da
dimensão discursiva no domínio cognitivo. O termo cognição aparece na ACD,
mas ocupa um espaço restrito. A Teoria das Mesclagens Conceituais, em nosso
caso, pode aprofundar esse conceito de cognição, trazendo projeções de análises
sobre o processamento cognitivo e as representações mentais. Já o termo cultura
aparece nas duas teorias, mas tem, em cada uma, desdobramentos diferentes – é
- 61 -
justamente na aproximação entre discurso e cognição que esses desdobramentos
podem se conciliar.
Na dinâmica dessa aproximação teórica, um dos pontos centrais sobre o
qual procuramos respostas é como relacionar processos mentais de
representação e de categorização a processos sócio-culturais de representação e
compreensão do mundo. Se, por um lado, entendemos a mesclagem conceitual
como um processamento cognitivo; por outro lado, no processo de interpretação
dos textos e da linguagem em uso, a mesclagem conceitual funciona
discursivamente. Dessa maneira, só temos acesso ao processamento cognitivo
via discurso; e, no mesmo processo, o discurso só se cumpre via processamento
cognitivo.
Partimos do pressuposto de que os espaços delimitados no texto, dentro
dos quais é possível produzir determinados sentidos (ou as misturas entre
espaços, que permitem novas conceitualizações, em um jogo de sentidos) são
representações do que acontece em níveis mais abstratos da cognição, nas
construções mentais que precedem à formação do texto e permeiam
posteriormente o processo de produção de sentido. As mesclagens e as
integrações entre domínios conduzem e determinam tanto a dinâmica de troca
entre interlocutores quanto a experiência individual e sócio-cultural de cada
participante dessa dinâmica.
Dessa forma, na linguagem em uso estão envolvidas desde a cognição (em
que a linguagem lhe é parte, não um módulo separado), às dimensões sócio-
culturais, que orientam toda a produção de sentido. Não é possível considerar,
frente às diretrizes que assumimos nessa pesquisa, esses itens (cognitivos e
sócio-culturais) como instâncias separadas, independentes e auto-suficientes. A
linguagem, para nós, como já assumimos por diversas vezes, é uma atividade
conjunta e integrada – não existe lugar no social que esteja fora do cognitivo, da
mesma forma que não existe lugar no cognitivo que esteja fora do social.
Além disso, é preciso considerar que os espaços mentais e os processos
de integração entre eles, representados no texto, orientam uma leitura acionada
em/por valores sociais, ideologicamente demarcados. É possível dizer que as
mesclagens conceituais trabalham, assim, na construção de representações
- 62 -
sociais, que, por sua vez, são organizadas a partir de determinadas crenças e
conhecimentos partilhados, em que agem as ideologias. O que sugerimos,
perante essa hipótese, é procurar fazer funcionar conjuntamente pressupostos
das duas teorias, articulando uma análise lingüístico-cognitiva a uma análise
discursiva crítica. É através da construção de uma metodologia, que sistematize
uma forma de concretizar a discussão teórica, que poderemos visualizar o
alcance dessa hipótese. Esse é precisamente o nosso objetivo no
desenvolvimento da seção seguinte.
6. Metodologia
Todo o caminho de reflexões percorrido até aqui, como já demarcamos em
diversos momentos, tem por finalidade defender um conceito de linguagem que
contemple os conceitos de discurso, de cognição e de cultura. Tal propósito se
configura na própria hipótese de aproximação, o que desde o início nos propomos
defender, entre a Análise Crítica do Discurso e a Teoria das Mesclagens
Conceituais. Desenvolvemos, no primeiro capítulo, uma apresentação dos
principais fundamentos de uma e de outra teoria; posteriormente, já no percurso
desse segundo capítulo, apostando na possibilidade de complementação entre as
teorias, discutimos o potencial que ambas carregam para o trabalho com a
linguagem nos termos da tríade discurso, cognição e cultura, experimentando
uma aproximação entre seus pressupostos.
O que nos acomete, agora, é como essa discussão pode extrapolar seu
alcance para práticas de análise. Em outros termos, a questão que emerge, nesse
momento da pesquisa, é como a juntura teórica proposta pode encontrar
respaldos metodológicos que a sustentem. Se nos colocamos diante de duas
teorias a princípio diferentes, com aberturas metodológicas distintas; se nos
permitimos deslocar uma análise de discurso e uma teoria lingüístico-cognitiva
para um movimento convergente, é porque, de certa forma, postulamos a
possibilidade de que essas duas teorias pudessem trabalhar juntas para a
construção de procedimentos de análise que articulassem e pusessem em
- 63 -
funcionamento uma concepção de linguagem em suas dimensões discursivas,
cognitivas e culturais.
Cabe-nos, explicitando primeiramente – e de forma separada - a
metodologia da Análise Crítica do Discurso e da Teoria das Mesclagens
Conceituais, propor uma terceira metodologia que ocupe posição mediadora entre
as duas teorias. Só assim poderemos desenvolver um exemplo de prática de
análise a partir de um corpus específico, que será para nós não só o lugar de
aplicação da metodologia elaborada, mas principalmente o espaço prático que
justificará o uso da linguagem nos termos que temos defendido em nosso
trabalho.
6.1. A metodologia na Análise Crítica do Discurso
A Análise Crítica do Discurso, no vasto e heterogêneo campo que a
identifica, recebe atribuições que a localizam ora como uma teoria, ora como uma
proposta metodológica e ora como um projeto de estudo crítico da linguagem que
reúne algumas perspectivas teóricas. Uma das suas características centrais é a
sua interdisciplinaridade, o que faz com que ela aceite, nos seus domínios,
metodologias das mais diversas. Emilia Ribeiro Pedro (1997), ao descrever os
aspectos metodológicos da ACD, considera justamente que
a ACD trabalha com um leque amplo de categorias descritivas e metodológicas. Como refere Kress (1990), nas práticas da ACD cada investigador tem o seu lugar e usa metodologias de análise num modelo teórico particular, sem que se percam de vista os objectivos e as finalidades que fazem de todos os investigadores membros de um projecto comum. (PEDRO, 1997, p.33)
As características teórico-metodológicas basilares da ACD, portanto, não
oferecem (e nem têm como proposta oferecer), para aqueles que buscam
fundamentos na ACD ou que a ela se filiam, um método único e com fronteiras
bem delimitadas que direcionem suas análises. Os pesquisadores que se voltam
a esse ‘projeto’ encontram, sim, determinados enfoques que podem adquirir
consistência em planos diversificados. Diante de uma seleção do que nos
propósitos gerais da ACD mais interessa ao analista, o corpo metodológico
tomará formas diferentes, fazendo com que se construam, por conseguinte,
- 64 -
caminhos de investigação peculiares a cada pesquisa. Apesar dessa dispersão
que caracteriza a metodologia da ACD, procuraremos levantar alguns
instrumentos e posturas mais ou menos regulares que a identificam.
A Análise Crítica do Discurso, mesmo reunindo diferenças metodológicas
dentro de seu corpo, busca a construção de um aparelho teórico que atenda ao
estudo do discurso, numa perspectiva crítica, frente às relações ideológicas e ao
jogo do poder estabelecidos na e pela linguagem. Como uma teoria do discurso, a
ACD busca sistematizar o fenômeno social da linguagem, localizando sua origem,
sua estrutura e sua formação diante de elementos constituintes desse social,
como a história, a ideologia, o poder. Já a ACD, como uma teoria lingüística
funcional ou como uma teoria do discurso fundamentada lingüisticamente, trata de
explicar o sistema da linguagem no seu uso, ou seja, nos seus processos
comunicativos e funcionais.
Há ainda que se considerar a ACD como uma teoria social, da forma como
o próprio Fairclough (2001) sugere. Nessa condição, a ACD busca também as
relações sócio-histórico-culturais envolvidas nos processos de representação e
identificação sociais, que atravessam os diversos campos da sociedade, como a
economia, a política, a mídia. E, por fim, como defendem mais pontualmente
algumas vertentes da ACD (citamos como exemplo van Dijk, Chilton, Wodak),
buscam-se também as condições psicológicas, cognitivas e mentais na/da
constituição ideológica da linguagem e do discurso.
Por ser uma teoria social do discurso, não é objeto da ACD o estudo de
elementos lingüísticos específicos, mas sim as problematizações da relação entre
linguagem e sociedade. No entanto, por ser também uma teoria lingüística do
discurso, a ACD considera fundamental a potencialidade de análises lingüísticas
assim como a potencialidade lingüística das análises. Dessa maneira, a ACD
busca instrumentos metodológicos nas teorias sociais e culturais e também nas
teorias lingüístico-funcionais, procurando conciliá-las para a compreensão dos
problemas considerados objetos dessa teoria. Trata-se de uma postura
extremamente fértil para diálogos e aproximações teóricas, já que a ACD
apresenta como sugestão metodológica a própria investigação de interfaces entre
teorias, o que deve contribuir com a extensão de seu projeto.
- 65 -
Um outro aspecto metodológico dentro da ACD pode ser resumido no que
descreve Fairclough (2001), a partir da proposta de um quadro tridimensional de
compreensão do discurso, em relação aos três momentos necessários para uma
análise crítica do discurso: a análise textual, a análise discursiva e a análise
social. Essas três dimensões se sobrepõem na descrição e interpretação de uma
prática discursiva. Meyer (MEYER apud PEDROSA, 2007) considera, diante
disso, a possibilidade, dentro da ACD, de se iniciar uma análise pelos aspectos
textuais, pela prática discursiva ou pelas práticas socioculturais, não havendo um
consenso quanto à seqüência desses níveis de análise:
Não há um consenso sobre onde iniciar a análise de um texto, se ao nível dos componentes lingüísticos, isto é, o texto em si, e das práticas discursivas envolvidas, ou se ao nível das práticas socioculturais associadas ao uso do texto, sendo possível iniciar com qualquer um desses níveis. (MEYER apud PEDROSA, 2007).
Independente da postura que tome um analista em relação ao seu objeto e
à sua pesquisa, se o seu trabalho se filia à ACD, suas análises provavelmente
irão contemplar desde o texto e as estruturas lingüísticas ao domínio sociocultural
– de forma a não entender essas dimensões separadamente, mas como
momentos constituintes da prática discursiva. Um dos princípios que rege essa
postura estabelece a análise do texto e da estrutura lingüística como um método
para estudar as relações sociais, já que, nesse construto teórico, no que diz
respeito à própria concepção de discurso, como prática social ou como um
momento das práticas sociais, não se desconsidera a dimensão lingüística do
discurso.
A forma como a ACD trata os dados lingüísticos recebe forte influência
metodológica dos estudos funcionais da gramática, mais especificamente da
Lingüística Sistêmica Funcional. Vários estudos da ACD recorrem, para
fundamentar suas análises textuais, às categorias descritas pela Gramática
Funcional, dentre elas as que se referem ao vocabulário (como a significação, as
nominalizações, as metáforas), as que dizem respeito aos elementos de coesão
(como os conectivos e a argumentação lingüística) e as que propõem análise dos
elementos de gramática (como tema, transitividade, modalidade). Apesar de
- 66 -
receber maior influência da Gramática Funcional, para a análise de textos,
encontramos na ACD, dentre outros casos, análises que recorrem à pragmática
(com análises de implicaturas, pressuposições, atos de fala) e estudos que
buscam teorias que descrevem estruturas cognitivas, como a própria concepção
de metáfora.
O uso da análise lingüística e da análise textual como um momento
fundamental de uma análise do discurso é, portanto, uma das posturas mais
recorrentes da ACD e é, para nós, um traço não só fundador das análises de
dados a que nos proporemos no capítulo seguinte, mas uma motivação singular
para orientar a própria hipótese de aproximação teórica com uma teoria
lingüística. Procuraremos, fincados no projeto da ACD, buscar recursos
metodológicos de uma teoria da Lingüística Cognitiva, assim como, fincados da
Teoria das Mesclagens Conceituais, buscar recursos metodológicos de uma
análise do discurso.
6.2. A metodologia na Teoria das Mesclagens Conceituais
Na Lingüística Cognitiva, quadro dentro do qual se definem tanto a Teoria
dos Espaços Mentais quanto a Teoria das Mesclagens Conceituais, não há ainda
um comportamento metodológico muito bem definido. Em cada conjetura decidida
dentro da Lingüística Cognitiva, é possível observar métodos diferentes, mas que
sustentam uma mesma regularidade de preocupações, como: a análise de dados
autênticos, ou ainda o recorte de dados baseados no seu uso; o tratamento das
informações lingüísticas como integradas a outros processos mentais e como
pistas dos mecanismos cognitivos; a interatividade da construção do sentido, em
que estão envolvidas questões mais amplas, numa perspectiva cultural e
histórica; dentre outras posturas (cf. AZEVEDO, 2006, p.23).
Para essa pesquisa, interessa o que especificamente a Teoria das
Mesclagens Conceituais propõe como metodologia de análise. A concepção de
espaços mentais, como se sabe, precede ao conceito de mesclagens, que como
uma evolução daquela teoria herda alguns de seus procedimentos metodológicos.
Tanto espaços mentais como mesclagens são reconhecidos dentro de uma
- 67 -
Semântica Cognitiva, que por sua vez busca instrumentos nos métodos da
Gramática Cognitiva para sustentar alguns de seus procedimentos.
A Gramática Cognitiva defende primordialmente a gramática da língua
como processamento cognitivo, coordenando uma visão não-reducionista da
estrutura lingüística. Esse modelo postula determinadas diretrizes para uma
orientação metodológica, dentre os quais se destacam as considerações de que
a análise lingüística e a teorização devem se apoiar nos dados de uso, de que a compreensão e a produção são integradas, só separáveis para propósitos metodológicos, de que o sistema lingüístico está interconectado com outros sistemas cognitivos e de que as representações lingüísticas são emergentes e não vistas como entidades fixas (AZEVEDO, 2006, p.29).
Já a Semântica Cognitiva, além de recorrer a essas postulações pontuadas
acima, defende ainda – e primordialmente – que, no uso da linguagem, estão
envolvidos aspectos contextuais e relações mais amplas que estão além do que
defendiam concepções reducionistas que se preocupavam apenas com aspectos
relacionados à estrutura lingüística. Fauconnier, por exemplo, observando os
preceitos mais caros à Lingüística Cognitiva, define método da seguinte maneira:
Os métodos devem compreender tanto os aspectos contextuais do uso da linguagem até a cognição não-lingüística. Isso denota o estudo do discurso em sua totalidade, da linguagem em seu contexto, das inferências de fato feitas por participantes em uma interação, de frames aplicáveis, de pressupostos implícitos e construal21, dentre outros (FAUCONNIER, 2003, p.2).22
Fauconnier, mesmo que não determine como objeto de suas reflexões a
dimensão discursiva da linguagem, defende, como se pode ver, uma análise que
não silencia a história que atravessa e constitui os dados lingüísticos, já que é
preciso considerar, antes de tudo, que esses dados foram retirados de uma
situação de uso da linguagem comprometida com uma série de fatores sócio-
culturais. Há de se considerar, no entanto, que os respaldos metodológicos da
21 Construal refere-se à nossa capacidade de conceptualizar uma mesma situação objetiva de formas variadas, possibilidades alternativas de apresentação de uma mesma situação (AZEVEDO, 2006, p.26). 22 Tradução nossa da passagem “Methods must extend to contextual aspects of language use and to non-linguistic cognition. This means studying full discourse, language in context, inferences actually drawn by participants in an exchange, applicable frames, implicit assumptions and construal, to name just a few.”
- 68 -
Teoria dos Espaços Mentais, como veremos a seguir, apresentam muita
sistematicidade para lidar com os traços lingüístico-cognitivos dos dados e pouca
sistematicidade para avaliar os elementos contextuais e sócio-culturais desses
dados, ou seja, os elementos discursivos.
Na Teoria dos Espaços Mentais, a observação da gramática e da estrutura
lingüística proporciona explicações de como os dados da língua servem para
revelar aspectos de uma elaborada representação mental. As expressões
lingüísticas (e a gramática da língua) desempenham um importante papel ao
mediarem a dinamicidade da construção e da estruturação dos espaços assim
como da interconexão estabelecida entre eles. As marcas lingüísticas,
pragmáticas e contextuais que introduzem espaços mentais são denominadas,
como já explicitamos no primeiro capítulo, ‘construtores de espaços mentais’. É
sistematizando o funcionamento desses construtores que essa teoria faz da
gramática e da estrutura lingüística um método de análise do processamento
cognitivo.
As sentenças, no que diz respeito às formas lingüísticas que as constituem,
são estágios das construções discursivas que podem conter diversas
informações, através de variados planos gramaticais. Há informações ou
expressões que desempenham papel fundamental na formação de espaços e
contribuem na sua construção. Os tempos e modos verbais, as descrições que
introduzem novos elementos nos espaços, os processo de referenciação que
identificam esses elementos (nomes, anáforas, descrições), as construções
sintáticas, a composição lexical, as marcações preposicionais, os encadeamentos
de pressuposições são exemplos do que Fauconnier (1994) identifica como
‘construtores de espaços mentais’.
Ao declarar o trabalho com sentenças, Fauconnier (1994, p. xxvii e p.xlv)
justifica que considera as sentenças, ao contrário da perspectiva formalista, não
como auto-suficientes e como contenedoras dos significados, mas como um
passo dentro do extenso processo de construção de significados. Ele considera
ainda, no trabalho com sentenças, as suas condições de uso - como as
configurações prévias em que elas aparecem, o contexto e os conhecimentos
- 69 -
implicados, as funções pragmáticas, os frames, os esquemas, as conexões e
integrações conceituais (cf. FAUCONNIER, 1994, p.xxvii).
No entanto, mesmo que se considere uma análise não descontextualizada
e não descolada de sua situação sócio-comunicativa, o grande problema da
Teoria dos Espaços Mentais é justamente concentrar-se em análises de
sentenças e em categorias limitadas correspondentes aos próprios construtores
de espaços mentais. Para o nosso trabalho (e também para a Teoria das
Mesclagens Conceituais), essas posturas não se fazem interessantes, até porque
estamos dentro de um projeto que visa a estudar a linguagem em uso,
fundamentada na tríade discurso, cognição e cultura.
A Teoria dos Espaços Mentais e a Teoria das Mesclagens Conceituais,
fazendo referência a uma importante noção dentro da Lingüística Cognitiva,
recorrem ao princípio do mapeamento para representar as relações mentais que
descreve. Esse princípio é emprestado da própria noção matemática de
conjuntos, em que elementos criam, migram ou se interceptam em conjuntos.
Fauconnier (1997) entende que produzimos e interpretamos significados através
de uma rede de mapeamentos sob os quais a nossa mente funciona. Na
Lingüística Cognitiva,
mapeamentos são operações mentais complexas entre domínios. Os domínios incluem, na sua estruturação, frames prévios e os espaços mentais, introduzidos localmente. Os mapeamentos são parciais, assimétricos e móveis. Todo esse processamento é subjacente à gramática cotidiana. (AZEVEDO, 2006, p.34).
Esse lugar teórico aponta, como podemos ver, para a idéia de que
utilizamos a linguagem, pensamos e interagimos através de extensas redes
possíveis de serem mapeadas. Tal compreensão frente aos processamentos
cognitivos é que motiva representar em diagramas esses processamentos, como
um método mesmo para descrever a complexa rede de relações mentais. Nessas
teorias, recorre-se, portanto, com bastante freqüência ao recurso gráfico de
representação, tomando emprestado, como já se disse, a linguagem da
matemática.
A representação de espaços mentais e espaço mesclas em diagramas se
dá justamente a partir da administração de diversos elementos gráficos que
- 70 -
representam estágios desse processamento: os espaços são representados em
círculos/grupos; esses grupos são compostos internamente por elementos
representados por pontos e/ou por letras; os arranjos e as disposições de
elementos (que são arranjos parciais e localizados) se definem através dos
espaços, no jogo dinâmico estabelecido entre eles - essas relações são
representadas por linhas (ou setas) cheias ou pontilhadas, dentre outros artifícios.
(cf. Fauconnier, 1994, p.16).
Em um desenho gráfico que exemplifique essa representação, teremos
esquemas como o disposto a seguir, que foi elaborado, de forma hipotética,
apenas para ilustração:
espaço A espaço AB = espaço C
espaço B
Um outro princípio que organiza o funcionamento dos espaços mentais e
de sua estruturação (assim como das interconexões estabelecidas entre
elementos que compõem os espaços) refere-se à natureza de relações
estabelecidas entre espaços de origem (ou espaços fontes) e espaços alvos,
dentro dos quais se projetam elementos oriundos dos espaços fontes – como foi
possível observar no diagrama disposto acima. As expressões lingüísticas
construtoras de espaços mentais é que cumprem o papel de estabilizar novos
a
b b’ c’
a’
c
frames, scripts
espaço A
frames, scripts
espaço B
frames, scripts
espaço C .
. .
. .
- 71 -
espaços, elementos dentro desses espaços e relações estabelecidas entre esses
elementos.
O processamento cognitivo no entendimento da Teoria dos Espaços
Mentais passa a receber configurações ainda mais complexas com o
desenvolvimento do conceito de mesclagem que, utilizando os mesmos recursos
gráficos para representar espaços mentais, acrescenta novas complexidades, a
partir da idéia de integração conceitual, ao processamento cognitivo resgatado
pela/na linguagem. É o que se pode observar no quadro abaixo, elaborado por
Fauconnier para representar o processo de constituição de espaços mesclas:
(FAUCONNIER, 1997, p.151) A disposição dos diagramas utilizados na compreensão dos processos de
construção, estruturação e interconexão de espaços mentais e de espaços
Generic Space
(Espaço Genérico)
input I 1 input I 2
Blend
(Mescla)
- 72 -
mesclas provém de uma percepção imagética pela qual funcionam a cognição
humana e a linguagem. A relação dessas imagens com o mundo não é direta,
mas o mundo e essas imagens se interceptam. A cultura mantém influência sobre
essa imagética ao mesmo tempo em que dela recebe comandos. Por esse
motivo, por não ser simples representar em diagrama a própria relação entre
cognição e cultura e a própria complexidade dos processamentos cognitivos, que
o uso desses diagramas pode ser limitador e, até, inviável.
Outro recurso metodológico importante dentro desse construto teórico é o
uso de conceitos como Modelos Cognitivos Idealizados, modelos culturais, scripts
e frames – esse último tendo um alcance maior, na medida em que pode ser
usado para se referir aos demais. Para nós, que pretendemos considerar a
dimensão discursiva e cultural da linguagem, essas noções trazem subsídios
importantes que irão instrumentalizar as análises que pretendemos desenvolver
no capítulo seguinte. Trata-se da forma como nossas experiências, culturalmente
demarcadas, organizam a mesclagem de espaços mentais; os esquemas
disponíveis para a produção de sentido; os papéis previamente estruturados e
que determinam a comunicação; e os modelos cognitivos e culturais que
amparam a integração e a interligação entre espaços.
Diante dessas diretrizes metodológicas, assumiremos a postura de utilizar
muito mais os seus pressupostos do que propriamente os seus procedimentos.
Essa teoria assume, para nós, o importante papel de oferecer instrumentos para
mapear a organização cognitiva no processo de produção de sentido e no
discurso, mas ela mesma não organiza procedimentos metodológicos suficientes
para tal. O que nos interessa de forma central é o próprio princípio das
mesclagens conceituais como processamento cognitivo de base e como
importante capacidade da mente de (re)produzir sentidos e (re)ordená-los,
conforme os eventos comunicativos demandam; e, ainda, o que nos interessa é a
própria postura integradora que essa teoria descreve e estimula.
6.3. A construção de uma metodologia Após descrevermos os principais fundamentos e diretrizes metodológicas
da Análise Crítica do Discurso e da Teoria das Mesclagens Conceituais, lançamo-
- 73 -
nos agora ao objetivo de fazer convergir pressupostos desses dois construtos
teóricos para a elaboração de uma metodologia. É muito importante observar que
tanto a ACD quanto a Teoria das Mesclagens Conceituais não sugerem uma
metodologia rígida – ambas permitem e incentivam uma postura interdisciplinar.
Dessa maneira, encontramos abertura dos dois lados para elaborar um conjunto
de procedimentos metodológicos que invista na hipótese da aproximação teórica
que vimos trazendo até aqui.
É preciso esclarecer, primeiramente, o grau de comprometimento com
cada uma das duas teorias. A estratégia adotada – prevista na própria seqüência
de apresentação – consiste em um posicionamento que permita que, de dentro da
ACD, seja possível convocar a Teoria das Mesclagens Conceituais para um
diálogo. Tal postura não faz da ACD a principal âncora da aproximação, mas
simplesmente a define como o ponto de partida. É essa posição intermediária que
não permite ao nosso trabalho se filiar a nenhum ponto especificamente – o que
objetivamos é buscar recursos que conciliem esses pontos em um único corpo de
análise, criando um espaço metodológico integrado.
Recorremos, portanto, para iniciar uma descrição metodológica, à postura
da ACD de sugerir três níveis (interdependentes) de análise: a análise textual, a
análise social e a análise discursiva. Adotaremos esse procedimento como um
carro-chefe para os demais. A seqüência para esses três momentos de análise
seguirá a seguinte lógica: descrever alguns dados sociais para fundamentar a
análise de textos e analisar os textos para desencadear as análises discursivas. O
encadeamento ‘análise da prática social, análise textual e análise da prática
discursiva’, mesmo que didaticamente se subdivida, pode, em momentos
oportunos, confundir suas partes ou buscar respostas de uma parte na outra.
A cognição, como defendemos fortemente, é um elemento que perpassa
todas essas três etapas de análise. E a cultura, por sua vez, por não se dissociar
da cognição e por estar diretamente vinculada com o social, com o texto e com o
discurso, deverá ser também um elemento constante em cada uma das etapas.
Na análise social, a cultura aparece como uma condição da própria existência
social do objeto e de suas implicações históricas e a cognição aparece como um
elemento do social (assim como o social é também um elemento da cognição). Na
- 74 -
análise textual, a cultura está nas instâncias de circulação e consumo dos textos,
já a cognição está presente nos elementos mentais constituintes dos processos
de produção e interpretação. Na análise da prática discursiva, para qual
convergem todas as outras análises, cognição e cultura se unem ao discurso por
todos os motivos pelos quais sustentamos a tríade basilar dessa dissertação.
Para uma análise da prática social, acreditamos que o objeto e o corpus
devam ser alvos de uma descrição que atente para as relações sociais, para os
dados culturais e para os aspectos cognitivos implicados no discurso. Isso
significa contextualizar o objeto na história e na sociedade em que ele se insere e
não tratar nenhum dado fora dessa contextualização. Além disso, no que se
refere à cognição, isso também significa descrever os matizes comunicativos
acionados para aquele uso de linguagem especificamente, quais esquemas e
papéis internalizados são postos em jogo no evento comunicativo, a que modelos
culturais recorre esse evento, quais são as expectativas dos participantes da
comunicação frente a uma rede de acontecimentos que a integram, entre outros
aspectos a mais que se resumem nos conceitos de script, frames, modelos
culturais, esquemas genéricos, Modelos Cognitivos Idealizados.
Em uma primeira etapa, os objetivos da análise que propomos nessa
metodologia são, deste modo, contextualizar o corpus/objeto, ressaltar as suas
práticas sociais e discursivas de representação, apresentar as temáticas que o
envolvem e sua implicação cultural, buscar os dados sociais, políticos e culturais
que fundamentem as análises das estruturas discursivas, descrever qual o
universo cultural que emerge nos textos e qual a sua moldura comunicativa e
buscar apontar quais conhecimentos operam no tipo de evento, permitindo a
identificação dos elementos da interação (identidades e papéis sociais, por
exemplo). Após descrever essa rede de configurações, deve-se buscar uma outra
fase de análises, agora mais centrada no texto.
Em uma análise textual, é a análise lingüística que aparece como
fundamental – o que é um traço comum entre as duas teorias. Na ACD, a análise
lingüística é um método para estudar as relações sociais, já que as estruturas
lingüísticas fornecem pistas do que acontece na sociedade. Na Teoria das
Mesclagens Conceituais, atribui-se à análise lingüística a função de permitir
- 75 -
acesso ao processamento cognitivo. No lingüístico convergem, portanto, a
sociedade e a cognição.
Para uma análise lingüística (lingüístico-textual), deve-se considerar os
dados lingüístico-textuais sob uma perspectiva funcional. Essa é uma postura que
tanto a ACD quanto a Teoria das Mesclagens Conceituais assumem e articulam
em seus pressupostos. Especificamente na hipótese de aproximação teórica que
propomos, essa análise lingüística passa pelos procedimentos de análise da
Teoria das Mesclagens Conceituais, mas assume conseqüências maiores com as
implicações atribuídas pela ACD à análise lingüística. A proposta é compreender
como os processos integradores das mesclagens, manifestados nos textos, agem
no processo de representação social e de construção discursiva de identidades.
Desse modo, temos aqui que abandonar as análises de sentenças, como
aparece na maior parte da literatura sobre espaços mentais, para analisar textos.
A Teoria das Mesclagens Conceituais, nos seus pressupostos mesmos,
desconstruiu a postura da Teoria dos Espaços Mentais de prender suas
descrições a sentenças. Não interessa a nós somente o que uma sentença
disponibiliza na construção de espaços, mas como esses espaços locais estão
posicionados diante de espaços mais amplos e globais projetados no texto – uma
perspectiva que é, inclusive, integradora.
Já o uso de diagramas, como faz a Teoria das Mesclagens Conceituais,
para a descrição e o mapeamento dos processamentos cognitivos de formação
de espaços mesclas será, para nós, relativamente possível. Representar em
diagramas toda a malha de espaços mesclas, com toda a representação
simbólica de relações e interceptações, seria de extrema complexidade, já que
estaríamos de frente a uma proposta descabida de representar o próprio discurso
em diagramas.
Essa postura, no entanto, não condena exatamente o uso desse recurso
metodológico para mapear algum processo de mesclagem, e sim o seu uso como
indispensável, reconhecendo a extrema complexidade de representar em gráficos
todas as relações semânticas, pragmáticas e discursivas envolvidas na produção
de sentidos. Até porque os textos são semanticamente heterogêneos e podem
conter uma variedade de informações simultâneas relativas aos diferenciados
- 76 -
aspectos de construção discursiva e à inserção contextual dos processos de
construção do sentido.
Todas as duas etapas referidas até então (a análise da prática social e a
análise textual) já configuram dados para uma análise da prática discursiva,
completando os três momentos de análise propostos na ACD. Especificamente a
análise da prática discursiva, aplicada aos pressupostos do diálogo teórico que
propomos, deve ser capaz de aliar as análises dos processamentos cognitivos às
análises das práticas sociais e discursivas de representação. É a análise da
prática discursiva que vai dizer que as mesclagens conceituais têm propriedades
discursivas, além de cognitivas e, por isso, estão para o social tanto quanto estão
para a cognição.
O que essa metodologia encaminha não é nem uma análise cognitiva, nem
uma análise lingüística, nem uma análise discursiva e nem uma análise cultural –
o que queremos é uma convergência dessas análises em um objeto. Diante de
uma concepção de linguagem que faça funcionar conjuntamente os elementos da
tríade discurso, cognição e cultura, não poderia haver uma metodologia que
desarticulasse esses elementos. Apesar de que, por efeito de organização
metodológica, por ora, esses elementos apareçam separados, é muito importante
não perder de vista a sua integração, que deve chegar ao momento de análise
com todo vigor de sua pertinência, aliado à hipótese de ver funcionando, em uma
mesma prática de análise, duas teorias distintas, integradas em um espaço
emergente resultante de sua aproximação.
- 77 -
7. Considerações finais
Conduzido pelos pressupostos da Análise Crítica do Discurso, que
descreve, conforme os escopos que defende, o conceito de discurso, buscamos -
no intuito de considerar, além dos domínios sociais, os domínios cognitivos da
linguagem - a Teoria das Mesclagens Conceituais, que enxerga a cognição por
uma perspectiva integrada. Essa busca, por sua vez, faz aparecer um traço em
comum nessas duas teorias: uma e outra organizam, nas suas discussões, de
alguma maneira, um conceito de cultura, posicionando-a como constitutiva das
manifestações da linguagem. Mostram-se aqui os pilares que sustentam, em
nossa pesquisa especificamente, a combinação entre os conceitos de discurso,
cognição e cultura.
Toda essa trajetória articulada no decorrer do primeiro e do segundo
capítulo constituiu uma discussão teórica que reclama agora um exemplo de
prática de análise. O capítulo seguinte tem justamente a proposta de ver funcionar
essa discussão e de avaliar as suas conseqüências. O objetivo de agora é menos
teórico e consiste em, no emprego da metodologia proposta, buscar a sua
operacionalização em um corpus específico, tornando mais concreto o projeto
teórico-metodológico defendido.
- 78 -
CAPÍTULO III
O Presidente Lula e o embate ‘Fórum Econômico Mundial x Fórum Social Mundial’:
uma análise a partir das relações entre discurso, cognição e cultura
- 79 -
1. Considerações iniciais
Como eixo central dessa dissertação, organizamos um objeto estritamente
teórico, descrevendo as razões de sustentação da tríade discurso, cognição e
cultura e estabelecendo uma aproximação entre teorias, justificada nessa tríade.
Agora a pesquisa assume um outro status, que se fundamenta na finalidade
teórica dos capítulos anteriores, mas que busca complementar aquelas
discussões com uma prática de análise. Por esse motivo, nesse capítulo, o nosso
estudo torna-se mais descritivo, na medida em que pretende esquematizar e
mapear as características de um corpus, na descrição e interpretação de sua
ocorrência.
O objeto com que trabalharemos na prática de análise corresponde às
representações que circularam na mídia acerca do Presidente Luiz Inácio Lula da
Silva, em 2003 e 2005, quando ele assumiu a postura de participar
simultaneamente de dois eventos projetados, na esfera pública mundial, como
inconciliáveis em suas propostas: o Fórum Social Mundial, encontro com que o
próprio Lula colaborou para a fundação e continuidade; e o Fórum Econômico
Mundial, Fórum a que ele se opunha fortemente até pouco tempo antes da
eleição histórica que o levou à Presidência.
Para formar um corpus, foram delimitadas, dentro da mídia impressa
nacional, duas revistas semanais de grande circulação, a Veja e a IstoÉ. Dentre o
que foi encontrado nessas revistas, nos anos de 2003 e 2005, referente à
participação do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva nos Fórum Econômico
Mundial e Fórum Social Mundial, selecionamos as reportagens O elo entre dois
mundos (Veja, 29 de janeiro de 2003 – edição 1787), Elo entre dois mundos
(Veja, 02 de fevereiro de 2005 – edição 1890), Lula lá e cá (IstoÉ, 29 de janeiro
de 2003 – edição 1739) e Vitrine Brasil (IstoÉ, 02 de fevereiro de 2005 – edição
1842).23
Em uma primeira etapa, contextualizaremos esse corpus em suas
determinações sociais, históricas e culturais. Posteriormente, tomando os textos
das reportagens, conduziremos análises a partir das diretrizes metodológicas 23 Todas as reportagens que compõem o corpus seguem em anexo, ao final do corpo da dissertação.
- 80 -
propostas no capítulo anterior, desenvolvendo um trabalho de análise discursiva,
lingüístico-cognitiva e cultural. Nesse percurso, a ênfase recairá tanto no
processamento cognitivo quanto no processamento discursivo, levando em conta
as implicações culturais. É dessa forma, portanto, que será conduzida uma
análise da maneira como se constrói a identificação do Presidente Luiz Inácio
Lula da Silva, especificamente nas reportagens selecionadas, diante da
representação de embate entre os dois fóruns rivais, demarcando a ação da mídia
na circulação de representações acerca de agentes sociais.
- 81 -
2. Fórum Econômico Mundial e Fórum Social Mundial
O Fórum Econômico Mundial (FEM) surge em 1971, convocado pelo suíço
Klaus Schwab, professor de negócios e empresário. A princípio, tratava-se de
uma reunião informal entre líderes políticos da Europa, nas montanhas da Suíça,
em Davos. Posteriormente, essa reunião passa a acontecer de ano em ano e
ganha novos membros, formalizando-se no Fórum Econômico. Com o propósito
de colaborar na melhoria da situação do mundo, esse fórum diz incentivar o
engajamento e a parceria entre líderes e a discussão sobre interesses globais e
locais em uma sociedade globalizada. Reúnem-se executivos-chefes de
corporações, líderes políticos nacionais, intelectuais e jornalistas de vários países,
com o objetivo de discutir o desenvolvimento, em suas demandas econômicas,
decidindo e elaborando uma agenda para a economia mundial.
Em contraposição ao Fórum Econômico Mundial e em reposta aos sentidos
que circulam sobre esse Fórum (sentidos como o de imperialismo, o de elitismo, o
de neoliberalismo e o de hegemonia), vários eventos dispersos pelo mundo
aconteceram com o objetivo de afrontar a globalização econômica representada
em Davos. Esses movimentos constituídos como contra-poder ao capitalismo
liberal e à hegemonia têm ganhado, principalmente após a Guerra Fria, uma força
crescente como expressão pública organizada (STEINBERGER, 2005, p.34). Um
evento especificamente, nestes últimos anos, tornou-se o maior representante
dessa esquerda mundial, justamente por corresponder a convergências de
variados e específicos movimentos sociais. Trata-se do Fórum Social Mundial
(FSM).
Janeiro de 2001: organiza-se a sua primeira edição na cidade brasileira de
Porto Alegre. Em sua proposta fundadora, estava o desígnio de concentrar forças
e de se posicionar como contraponto ao tradicional evento de Davos. Essa
proposta de contraposição está presente na semelhança proposital dos nomes:
um movimento social que se formaliza como ‘fórum’ e que propõe alcance
‘mundial’. Segundo os idealizadores do Fórum, essa troca de adjetivos teria o
potencial de dizer, de forma concisa, a serviço de que nascia o FSM. Outra
semelhança fundamental foi a escolha por datas idênticas ao acontecimento do
- 82 -
FEM, o que deixava claro: ou Davos ou Porto Alegre. A caracterização do Fórum
Social Mundial como opositor ao Fórum Econômico Mundial foi realmente, como
se vê, uma proposta fundadora.
Segundo um dos idealizadores do Fórum Social, Bernard Cassen, jornalista
e diretor-geral do Le Monde Diplomatique, o objetivo era organizar um movimento
anti-Davos, que, inclusive, já vinha acontecendo em variadas manifestações e
encontros, mesmo que ainda tivessem alcance limitado (cf. CASSEN, 2001, p.15).
O FSM reuniu múltiplas identidades (nacionais, culturais e políticas), em um
internacionalismo alternativo, para discutir o mundo em suas questões sociais. O
Fórum adquiriu uma importância planetária, refletida na própria presença da mídia
durante seu acontecimento, que, mesmo considerando o FSM como um carnaval
da ideologia dos contras, deu suficiente visibilidade a ele, reafirmando a sua
importância histórica (cf. CATTANI, 2001, p.9).
É preciso ressaltar ainda que falar sobre Fórum Social Mundial é falar de
Brasil. Porto Alegre virou símbolo, em uma remissão metonímica, da criação e
continuidade desse Fórum. Deonísio da Silva, que escreve semanalmente no
espaço Último Segundo na página eletrônica do Observatório da Imprensa, em
seu artigo Porto Alegre e Davos – o trem está atrasado ou já passou, publicado
no período posterior à participação do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva tanto
no Fórum Econômico Mundial quanto no Fórum Social (em 2003), inicia suas
ponderações nas palavras: Você vê, ouve e lê. Impossível evitar o noticiário.
Porto Alegre tomou conta do Brasil com a força do Fórum Social Mundial24.
Outras cidades, em outros países, também foram sedes, até então, de algumas
edições do Fórum – Mumbai (Índia, 2004), Caracas (Venezuela, 2006), por
exemplo. No entanto, é o nome ‘Porto Alegre’ que, com mais recorrência na
mídia, é identificado como referência ao FSM.
As diferenças entre FEM e FSM parecem evidentes. Mas, decerto, é
preciso avaliar com mais cuidado o que se apresenta e se desdobra sob essa
obviedade. Tratando-se de um embate discursivo, de uma luta que acontece no
interior dos fóruns e que também está presente na repercussão dos fóruns no
24 Artigo retirado do site [http://observatorio.ultimosegundo.ig.com.br/artigos/fd290120031.htm] em 06 de maio de 2006.
- 83 -
mundo, uma série de questões se abre e indica a complexidade das relações que
atravessam esses eventos e sua relevância (geo)política. Uma análise dos
discursos da mídia sobre o Fórum Social Mundial e o Fórum Econômico Mundial é
também uma análise dos discursos geopolíticos da mídia. Os procedimentos de
uma análise discursiva permitiriam abordar de modo sistemático as condições de
produção desses discursos e, por conseguinte, desautomatizar não só a
apreensão que se tem dos acontecimentos, assim como também a compreensão
das práticas sociais envolvidas.
É muito importante, dentro das perspectivas de nosso trabalho, pensarmos
na forma como os domínios ‘Fórum Econômico Mundial’ e ‘Fórum Social Mundial’
se estruturam (ou são levados a se estruturarem) na mente dos indivíduos-
sujeitos no momento de leitura das reportagens. Primeiramente, é preciso
considerar que grande parte das pessoas conhece os objetos ‘FEM’ e ‘FSM’
através do que a mídia divulga sobre eles e através da maneira como a mídia os
apresenta – seja na televisão, seja nos diversos jornais e revistas, seja nos sites
de cada um dos Fóruns. A mídia cria, na demanda de apresentar o mundo ao seu
público-audiência, a necessidade de trabalhar sobre espaços que identifiquem
esses Fóruns ou que, numa rede de outros espaços previamente estruturados na
memória pessoal ou social, façam emergir, em um integração conceitual, uma
estrutura que possa produzir um efeito do ‘novo’ que inaugura um domínio de
compreensão.
Em nossa apreensão de mundo, os domínios ‘FEM’ e ‘FSM’ são
inaugurados, mas não estréiam nenhum espaço inédito. No momento de
apresentar os Fóruns, os meios da mídia se utilizam de estruturas prévias já
internalizadas no conhecimento de mundo dos indivíduos - por exemplo, as
oposições ‘esquerda x direita’, ‘capitalismo x socialismo’ -, fazendo com que
esses supostos novos domínios sejam catalogados em um arquétipo ou em
modelos já organizado culturalmente e sob os quais a mídia trabalha, até mesmo
para reproduzir ideologias e agir sobre sua manutenção. Dessa maneira, é no
jogo com a cognição de seus leitores/ouvintes (ou no jogo das cognições
envolvidas na comunicação), que aqueles que falam sobre os Fóruns, na própria
- 84 -
concepção que elaboram para o público, constroem e determinam o aparecimento
desses Fóruns na mídia.
3. Luiz Inácio Lula da Silva: um cristão novo A eleição presidencial de 2002, que finalmente levou Lula a ocupar o posto
de Presidente da República, foi decidida dentro uma conjuntura inédita. Aquele
candidato das eleições anteriores, representado pela aspereza, intolerância e até
agressividade, adota a partir de então uma imagem um tanto quanto diferente do
início de sua vida pública. O Lula Light ou o Lulinha paz e amor toma corpo e é
apontado como a versão de Lula que o levou à Presidência.
Desde os meses anteriores ao momento histórico que caracterizou a
chegada de Lula ao poder, jornais e revistas o anunciavam nos parâmetros de
uma conversão aos preceitos capitalistas, ora assimilada a um marketing político
ou a uma maquiagem eleitoral (e, por isso, Lula era identificado ainda como quem
oferecia ameaça), ora assimilado a um processo de amadurecimento (o que
categorizava Lula como um político preparado para o cargo de Presidente da
República). Dentro desse contexto, uma das denominações veiculadas pela
revista Veja cunhava justamente o termo ‘cristão novo do capitalismo’ para se
referir às mudanças de Lula.
Desde então, a identidade atribuída a Lula passa a oscilar entre o que o
caracterizava no início de sua vida política (a esquerda, a militância, etc) e o que
passa também a caracterizá-lo das eleições de 2002 em diante (posturas de
aceitabilidade às atividades do capitalismo). Ao representar essa mudança de
Lula, fez-se necessária uma nova ordem de sentido que re-significasse a sua
identidade. No entanto, essa nova ordem mantém necessariamente relações com
a estrutura precedente, exatamente aquela sobre a qual se pretendia projetar um
rompimento. No novo Lula, há lembrança da velha imagem que o identificava. É
nesse sentido que sua identidade, construída sob o olhar das mais variadas
formações discursivas, em um processo de integração conceitual, passa a
apresentar uma natureza híbrida e oscilante.
No contexto dos primeiros meses de governo, marcado por um ineditismo
histórico, o Presidente Luiz Inácio Lula da Silva decidiu-se participar dos dois
- 85 -
Fóruns Mundiais considerados como eventos opostos e inconciliáveis de
discussão do mundo na contemporaneidade. Tal postura veio alimentar ainda
mais a representação híbrida da identidade política de Lula. Participar do Fórum
Social Mundial, logo após a uma vitória da esquerda, que chega ao cargo político
máximo do país, era uma atitude previsível; mas se propor a ir a Davos e
participar simultaneamente do Fórum Econômico Mundial foi, dentre suas ações
iniciais, a mais inesperada.
A presença de Lula nos dois fóruns colocou em pauta, na mídia de todo
mundo, a representação dos dois eventos e a relação de Lula com cada um
deles. Em 2003, esse acontecimento repercutiu extensamente e carregava as
implicações da recente chegada de Lula à Presidência. No ano seguinte, Lula não
foi nem ao Fórum Social, que não aconteceu no Brasil, e nem ao Fórum
Econômico. Mas em 2005, o Presidente, retomando a mesma postura de dois
anos atrás, vai a Davos e a Porto Alegre. Não tão conclamado como em 2003 e já
distanciado de um ineditismo, Lula é vaiado no Fórum Social e não é recebido
como uma estrela no Fórum Econômico. No entanto, a sua presença nos dois
encontros ainda repercute e é significada de maneira muito semelhante a de
2003. A mídia cumpriu justamente o papel de acompanhar e significar a presença
simultânea do Presidente nesses dois eventos, fazendo circular uma rede de
representações tanto sobre o Presidente Lula quanto sobre os fóruns.
4. A mídia e o potencial cultural de produção de textos
A potencialidade social de espaços do mundo é veiculado a uma prática
social e cultural que o legitime. A mídia, como uma prática social e cultural
característica de um período pós-moderno-midiático, tem justamente esse poder
de legitimar e de instaurar compreensões de mundo, já que nela se reconstroem e
se reproduzem valores sociais e já que ela tem o poder organizador de discursos.
Por esse motivo, Steinberger (2005) considera que os jornais e revistas são
capazes de desenhar mapas do mundo e são eles próprios mapas pós-modernos
que propõem roteiros de compreensão do mundo, podendo indicar em que lugar
estamos e quem somos (STEINBERGER, 2005, p.30).
- 86 -
A mídia tem instrumentos fortes (e ela mesma é um forte instrumento de
poder) para controlar os meios de produção de sentido, construindo e articulando
sistemas de referências. Como uma instituição que produz incessantemente
textos e que realiza, por isso, o trabalho da cultura, as ações da mídia passam
pela apropriação, pela manutenção e pelos legados dos sistemas de cultura que
se abrem e que podem ser lidos nesses textos, como objetos culturais. O trabalho
com o texto e com a textualidade, portanto, é uma forma de organizar o processo
investigativo de circulação de discursos na mídia - como uma prática cultural
determinada e como instância produtora de cultura - e, por conseqüência, na
sociedade, como espaço condutor da mídia e como espaço re-elaborado e
legitimado por essa mídia.
Fredric Jameson (1997), em A lógica cultural do capitalismo tardio, nas
suas considerações sobre textualidade e escritura, defende justamente que a
cultura passa, na lógica do capitalismo multinacional, a se apresentar na forma de
textos, que se articulam e são atravessados por seu contexto sócio-histórico. Ao
defender que a cultura seja a lógica do capitalismo tardio, a esfera da organização
social passa a ser entendida, segundo esse teórico, como um arranjo em
dominância do cultural. É possível, sob essa perspectiva, dizer que o texto e a
textualidade, como o formato da cultura que se apresenta, organizam a própria
lógica da esfera pública inaugurada nesse estágio tardio do capitalismo.
A sociedade característica desse estágio – do capitalismo multinacional – é
conhecida, dentre outras denominações, como sociedade das mídias, sociedade
da informação, sociedade eletrônica e sociedade do consumo. Nesse cenário,
não se fala somente de mudanças culturais, mas de mudança do lugar da cultura
na estrutura dessa sociedade. A ascensão das mídias e de sua projeção
funcionalizam as tecnologias de produção e reprodução do simulacro. Falamos de
uma cultura como simulacro25 para dizer desse mundo transformado na imagem
de si próprio – o que não é somente um traço da sociedade pós-moderna, mas
um efeito de sua própria lógica.
25 Trata-se de um termo utilizado por Eduardo Subirats (1989), a partir do qual ele descreve um mundo que vive a imagem de si próprio. Para esse autor, nós vivemos a reprodução do mundo, ou seja, o seu simulacro técnico-científico. Subirats relaciona a cultura como simulacro principalmente à mídia.
- 87 -
Fredric Jameson (1997), diante dessas condições do pós-moderno, propõe
justamente que um trabalho crítico sobre a cultura tenha o papel de encontrar
artifícios para a tarefa de análise dos textos de cultura, para que, diante deles,
seja possível compreender o funcionamento ideológico dessa sociedade. Para
cumprir essa tarefa, uma das propostas declaradas por Fredric Jameson
corresponde à organização e à sistematização de um mapeamento cognitivo da
cultura engajadas a uma intervenção política das análises - o que deve acontecer
através da análise de textos. Se considerarmos que, na dimensão cognitiva da
nova ordem, a mídia é o mapa que articula nossa compreensão do mundo
(STEINBERGER, 2005, p.25), analisar os textos da mídia é ter acesso (indireto) a
como funciona a cognição de nossa época e dos indivíduos-sujeitos que a
compõem.
Por essa postura defendida por Fredric Jameson (1997) e pelos
posicionamentos que Steinberger (2005) assume em relação à mídia e aos
discursos regulamentados por essa mídia, acreditamos que o quadro
metodológico que propomos no capítulo anterior seja dotado de um potencial
especialmente relevante para o estudo e análise de textos em suas implicações
culturais. No momento em que essa metodologia se sustentou na tríade discurso,
cognição e cultura, propusemos justamente o mapeamento cognitivo dos
discursos, a partir do material lingüístico-textual disponível para esse
mapeamento, considerando os seus aspectos ideológicos e sugerindo um
engajamento das análises. Pretendemos, então, ler os textos das reportagens que
compõem o nosso corpus, como objetos culturalmente situados, mapeando os
processamentos cognitivos que deram azo a esses textos, juntamente com as
relações entre as práticas discursivas e sociais que os constituem.
Consideramos importante demarcar ainda a relação entre mídia e
cognição. Que a mídia tem o poder de configurar mentalidades e que ela abre
mapas de compreensão de mundo já nos referimos pontualmente acima, mas há,
além disso, uma outra relação fundamental. A mídia, nos seus diversos formatos,
oferece uma infinidade de enquadramentos determinantes para a nossa forma de
ver o mundo. É possível dizer hoje que essa mídia (especialmente a televisiva) é
- 88 -
capaz de ditar até a maneira como deve funcionar a nossa cognição26. Essa
observação se justifica no próprio entrelaçamento entre cultura e cognição, que
defendemos como essencial no entendimento de linguagem e, por conseqüência,
na apreensão das práticas discursivas.
A problematização do nosso corpus corresponde à identificação do
Presidente Lula diante da representação de embate entre o FSM e FEM, mas a
forma como delimitamos esse objeto privilegia um enquadramento específico, que
diz respeito primeiramente à mídia, posteriormente à mídia impressa e, por fim, à
revista de circulação semanal. Entender as especificidades desse tipo de
enquadramento e descrevê-las é indispensável para levantar as condições de
leitura dessas reportagens e as portas de entrada da cognição diante delas.
Como recebemos essas revistas em nossas mãos, para quem ela são feitas,
quais os papéis articulados para os participantes desse tipo específico de
comunicação e que recursos são acionados para legitimar esses papéis? Essas
são questões que se apresentam como emergenciais e que tocam em domínios
culturais, cognitivos e discursivos – e são, por isso, constitutivas das análises que
estamos a desenvolver nesse capítulo.
5. O trabalho da Geopolítica da Cultura e/ou da Geopolítica da Mídia
Steinberger (2005) propõe a Geopolítica da Cultura e/ou a Geopolítica da
Mídia ao redor de questões definidoras da cultura contemporânea – a sua
constituição midiática, a globalização, as redes mundiais. O seu objetivo é
fundamentar um quadro de reflexões para sistematizar e entender a nova ordem
global e a formação de crenças sobre as relações geopolíticas diante dessa
ordem, em que a mídia desempenha um papel central. Uma das propostas dessa
autora é a análise do que se inclui ou do que se exclui, do que é parte ou do que
não é parte nesses lugares geopolíticos que se re-definem constantemente no
trânsito de uma produção de espaços institucionalizados através dos discursos.
O conceito de globalização retoma um fenômeno que não se restringe
apenas à contemporaneidade, mas que ganha, nessa condição, especificidades 26 Se a televisão tem o poder de influenciar os comportamentos, os modos de pensar e de agir, a maneira de interferir no mundo e de organizá-lo através de processos mentais, ela tem o poder de ordenar nossa cognição e de organizar a sua própria forma de funcionamento.
- 89 -
determinantes. No bojo desse conceito, se articula um conjunto de compreensões
culturais, econômicas e políticas. Para Steinberger,
a intensificação da globalização e as novas tecnologias informacionais desencadearam um sentimento de desterritorialização e provocaram a necessidade de uma nova ordem de compreensão geopolítica dos sentidos, assim como das identidades que circulam no espaço mundial hoje (STEINBERGER, 2005, p. 96).
Não seria possível considerar, então, os dois Fóruns como uma nova ordem de
compreensão geopolítica? Nessa ordem de compreensão, como se assimilam as
identidades?
A proposta da Geopolítica da Cultura e/ou da Geopolítica da Mídia nasce
diante de uma postura investigativa frente a esses processos de instituição da
imagem do mundo geopolítico no âmbito pós-moderno-midiático. O potencial
social de tais imagens de mundo está vinculado ao potencial de inserção dessas
imagens numa prática social. Nesse processo, a mídia assume um papel
determinante, pois é ela que, como demarcamos acima, disponibiliza, na
compreensão cognitiva da nova ordem, os nossos mapas de compreensão de
mundo. A geopolítica da cultura sugere um tratamento cultural das questões
geopolíticas, ocupando-se, então, do estudo das condições de produção dos
discursos geopolíticos. Como a nova ordem internacional é midiática, tendo a
mídia o poder de configurar mentalidades e sendo a mídia o campo preferencial
na batalha das ideologias geopolíticas, a Geopolítica da Cultura é também uma
Geopolítica da Mídia.
Nesses dois blocos de formação e de discussão geopolítica inaugurados
pelos Fóruns, como a nossa mídia articula e dissemina a sua compreensão
geopolítica? Como se constroem sistemas de referências sobre os dois Fóruns?
Nesses sistemas de referências, quais são os traços que identificam os seus
participantes? Como o nosso país é posicionado dentro dessa compreensão,
especialmente no momento da participação simultânea do Presidente Lula nos
dois Fóruns? Levar esses questionamentos a uma análise permite um
mapeamento de como as questões da geopolítica se veiculam na e através da
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mídia (em nosso caso, especificamente através da mídia impressa) em nosso
país e de como o Presidente Lula é representado nessa conjuntura.
Na análise sistemática de nosso corpus, os direcionamentos metodológicos
da pesquisa podem fundamentar um mapeamento cognitivo e discursivo, fazendo
um trabalho crítico, em um tratamento cultural das questões sugeridas. Essa é
justamente uma das propostas da Geopolítica da Cultura e/ou da Geopolítica da
Mídia e, devido a sua pertinência dentro da perspectiva de nosso trabalho,
consideramos importante citá-la, tirando proveito de seus pressupostos.
6. Revistas semanais de circulação nacional: Veja e IstoÉ
O nosso corpus é composto de reportagens impressas publicadas em
revistas semanais. Desse modo, os textos que correspondem a essas
reportagens (nos seus objetivos e no seu formato) atendem a um jogo específico
de interação determinado pelo gênero ‘reportagem da mídia impressa’ e pelo
suporte comunicativo ‘revistas semanais’. Os conhecimentos acionados na
produção e leitura desses textos, assim como os esquemas envolvidos nesses
eventos especificamente, respondem por essa condição. Além disso, esses textos
atendem também à linha editorial específica da revista em que são produzidos, já
que eles precisam estar em harmonia frente ao todo da revista e frente à
concepção informativa e formativa assumida por ela.
Por esses motivos, o estudo dos textos que compõem o nosso corpus deve
levar em consideração essas variantes, observando as suas implicações
cognitivas (o que está em movimento na interação, quais são as negociações
necessárias nas relações interpessoais estabelecidas nesses eventos, que
esquemas sustentam a comunicação nessas reportagens e com quais
expectativas o jogo entre os interactantes se organiza), as suas implicações
culturais (de que maneira essas revistas estão inseridas culturalmente e como ela
seleciona o seu público-alvo) e as suas implicações discursivas (quais estratégias
essas revistas utilizam para produzir efeitos de sentido específicos, quais os
direcionamentos ideológicos dessas revistas e de quais instrumentos elas se
servem para controlar as suas representações de mundo).
- 91 -
Primeiramente, gostaríamos de descrever qual o funcionamento e quais as
características específicos de uma revista impressa de circulação semanal.
Diferentemente de outros suportes (como a televisão, o jornal, o rádio), as
revistas semanais de informação carregam o potencial de oferecer ao seu leitor
uma contextualização mais elaborada dos fatos e uma maior organização e
acuidade dos dados, já que gozam de um tempo relativamente maior do que os
outros meios. Quem compra uma revista não está em busca de notícias
exatamente (até porque as notícias já foram anunciadas pela televisão e pelos
jornais diários impressos), mas sim está em busca de organização, elaboração,
contextualização, análise e aprofundamento dos fatos que foram notícia.
O tempo maior de elaboração permite que haja maiores condições para
aprofundar as reflexões sobre os temas antes de serem publicados:
Em uma matéria de revista, há espaço, em geral, para dar a informação – que é sempre o objetivo principal – mas também para comentar, dar opinião, tentar articular as questões com o contexto em que se vive (TOJAL & ALTMAN, 1989, p.127).
É característica da linguagem de revista, portanto, a melhor elaboração de seus
textos, dado o tempo maior para reflexão, para desdobramentos e para análises
críticas, assim como também o tempo maior para checar as informações e para
criar estratégias de arredondá-las a interesses específicos. Alguns jornais -
principalmente os de grande circulação -, no entanto, assumem essa linguagem
das revistas, o que faz preciso justificar que as revistas acumulam características
não-específicas, mas que lhe são mais intensas: elas entretêm, trazem análise,
reflexão, concentração e experiência de leitura (SCALZO, 2003, p.13).
A revista tem, ainda, mais do que os jornais, um potencial quase didático
de elaborar suas informações, organizando e esquematizando os acontecimentos,
nomeando fatos e classificando-os. É, por isso, que a imprensa semanal tem a
vantagem e a responsabilidade de funcionar como guia, pelo fato de organizarem
a semana (TOJAL & ALTMAN, 1989, p.130). As revistas carregam, assim, a
representação de funcionarem como manuais para a compreensão de mundo - e
trabalham incessantemente na manutenção desse atributo, como recurso mesmo
de sua sustentabilidade. Essa característica, comumente assimilada às revistas, é
- 92 -
ela própria um instrumento de poder que faz legitimar o seu lugar na sociedade e
o seu papel de formadora de opiniões.
Já no que diz respeito à formatação dessas revistas, os seus textos
recebem um aspecto mais atrativo e requintado e o seu material é melhor em
relação ao de um jornal e tem maior durabilidade – o papel, a cor, a abertura das
fotos, a qualidade da impressão. A propriedade de seu material e de seu suporte
lhe dá o estatuto de ser menos efêmera do que folhas de jornais (ou do que uma
notícia televisiva). Além disso, em relação aos jornais diários impressos, a revista
pode ser guardada e arquivada com muito mais facilidade, o que lhe atribui um
valor mais documental, já que o seu formato é mais apropriado e adequado para
uma busca em um futuro acesso a edições antigas27.
Há ainda uma outra característica muito importante das revistas: elas se
destinam a públicos bem mais restritos e segmentados do que os de jornais, por
exemplo. Existem revistas de informações genéricas, revistas femininas, revistas
de economia, revistas científicas, revistas religiosas, revistas de culinária, revistas
para adolescentes, dentre várias outras. Por esse motivo, as revistas têm a
capacidade de reafirmar a identidade de grupos de interesses específicos,
funcionando muitas vezes como uma espécie de carteirinha de acesso a eles
(SCALZO, 2003, p.50).
Os leitores de uma determinada revista são levados a ocupar um lugar
marcado para identificá-lo como sujeito participante do jogo coordenado pelos
editores e por uma linha editorial. No entanto, as diferenças de recepção, de
condições de produção de sentido, de contextualizações de leitura e dos próprios
indivíduos que recebem a revista não permitem dizer que essa seja uma
regularidade estável. Mesmo que as revistas trabalhem para um público-alvo
específico, nem todos os seus leitores obrigatoriamente irão fazer parte do
segmento da sociedade frente ao qual ela se legitima como representante.
É importante, no entanto, considerar, na instância de produção de seus
textos, para quem e para que cada revista trabalha e quais são as simetrias do
público que ela elege como sendo seu alvo. A linha editorial é justamente essa
política que reúne as principais diretrizes e perspectivas e o conjunto de valores e
27 Referimo-nos a arquivos não-eletrônicos e não-digitalizados.
- 93 -
de paradigmas assumidos pela empresa jornalística. Os textos que compõem a
revista, em favor de um coerência interna, devem obeder a esssa linha editorial
tanto naquilo que dizem e tanto no que pretendem produzir como efeito de
sentido. A linha editorial de Veja e da IstoÉ e os traços que as identificam dentro
da mídia impressa nacional se diferenciam, mas não se opõem: mesmo que em
graus diferentes, são revista que tendem a posicionamento típicos dos grupos
dominantes.
Tanto a Veja (Editora Abril) quanto a IstoÉ (Editora Três) são classificadas
como revistas de informação geral, por apresentarem conteúdos
predominantemente jornalísticos e por lidarem com uma variedade de assuntos
tratados de forma genérica. Em ambas, encontramos desde espaços dedicados
ao cotidiano, à política e à economia (nacional e internacional) até colunas que
abordam temas como comportamento, saúde, tecnologia, cinema, literatura,
ecologia, dentre outros. A periodicidade das duas é semanal e tanto uma quanto
outra tem sua circulação correspondente às maiores entre as revistas publicadas
na mídia impressa brasileira.
Para uma análise que se quer discursiva, considerar o suporte e o gênero
do texto e a natureza do aparelho midiático que o veicula torna-se importante, na
medida em que essas são informações que constituem a prática social e a prática
discursiva envolvidas na circulação dos textos das reportagens. Já para uma
análise que não se quer desprendida das implicações culturais do objeto,
descrever as revistas em que o corpus se forma é não desconsiderar os textos
das reportagens como objetos culturais feitos para serem vendidos e consumidos
e que, como produto, jogam com e para as leis de mercado. E, ainda, para uma
análise que também se quer cognitiva, definir o texto da reportagem no interior da
revista que o publica é oferecer dados sobre a moldura comunicativa desse texto,
elencando, assim, os conhecimentos operativos que configuram o evento de
comunicação e as ordens cognitivas evocadas, como as identidades, os papéis
sociais, os cenários e os alinhamentos envolvidos no evento comunicativo.
- 94 -
7. Análise do corpus Na metodologia proposta no capítulo anterior, adotamos a postura
fundamentada na Análise Crítica do Discurso de encaminhar três níveis de
análise interdependentes: uma análise social, uma análise discursiva e uma
análise textual. Consideramos também, na natureza desses três níveis de análise,
a importância de localizar, na descrição e interpretação do discurso, a presença
constitutiva da cognição e da cultura. As etapas já desenvolvidas nesse terceiro
capítulo buscaram justamente atender a essa demanda de contextualizar o objeto
nas suas dimensões discursivas, em que estão envolvidos os seus domínios
sociais, históricos e políticos; nas suas dimensões culturais, em que se destacam
a lógica da contemporaneidade, sob que se sustenta o corpus, e o papel que a
mídia desempenha dentro dessa lógica, por exemplo; e nas suas dimensões
cognitivas, em que se organizam molduras comunicativas que reúnem
conhecimentos invocados na interação, como o tipo de texto e o lugar em que o
texto aparece, as informações e os dados culturais presentes no saber
internalizado de que se valem os interactantes no processo de produção de
sentidos.
A partir de então, sustentados nessa primeira etapa de descrição do objeto,
partiremos para uma análise mais textualmente orientada, que levará em conta,
como previsto na metodologia, os processos de integração e de mesclagens
entre/de espaços mentais. Consideramos a mesclagem conceitual como um
processamento cognitivo - essa forma de processamento da mente, por um lado,
é projetada na própria composição textual e, por outro lado, é utilizada como
recurso mesmo de controle de produção de sentido.
Sob essa perspectiva, os dados lingüísticos serão avaliados como escolhas
feitas pelo produtor do texto no objetivo de controlar determinadas representações
e como pistas para identificar as crenças e as ideologias imbricadas no modo de
pensar e de dizer o que se pensa. Durante a descrição dos dados, caminharemos
entre o conceito de mesclagem e a forma como, no texto e no uso social da
linguagem, o processamento cognitivo e o discurso funcionam conjuntamente.
Para isso, defendemos a idéia central de que as representações mentais agem
- 95 -
sobre a manutenção de representações sociais e de que a determinação social
das representações coordena os processos mentais de representação.
Para sistematizar o tratamento do corpus e organizar as análises,
descreveremos cada reportagem separadamente, considerando, diante da
demanda dos textos, os aspectos lingüístico-discursivos e lingüístico-cognitivos.
Posteriormente, já em um momento final, os resultados de análise irão convergir
tanto no que as reportagens respondem conjuntamente quanto nas diferenças de
abordagem entre elas. A ênfase no ponto de vista textual não excluirá a análise
sócio-discursiva, assim como a nossa postura diante dos textos refletirá as
diretrizes de orientações discutidas nos capítulos anteriores e que sustentam a
nossa proposta, na busca de considerar, no processo de produção de sentido, o
imbricamento das dimensões discursivas, cognitivas e culturais.
7.1. Revista Veja 7.1.1. Reportagem O elo entre dois mundos
A reportagem O elo entro dois mundos foi publicada na seção Brasil e a
palavra-chave ou o termo remissivo que a identificou foi Globalização. Tais
informações fornecidas sempre no índice da revista e no topo da página da
reportagem assumem um importante papel ao funcionarem como dados de
enquadramento da leitura. Elas desencadeiam um funcionamento cognitivo
determinante no processo de produção de sentido, já que trabalham para ativar
determinadas estruturas de conhecimento consideradas centrais para o ajuste
das interpretações.
Isso porque, ao situar a reportagem e seu tema nos espaços Brasil e
Globalização, a revista cria expectativas sobre os objetos, os cenários e os
eventos que irão compor o texto e que estarão nele representados. Esse jogo
coloca em cena conhecimentos prévios, socialmente produzidos e culturalmente
disponíveis, correspondentes a domínios estáveis que irão sustentar os próprios
processos de integração entre espaços mentais, presentes na composição
textual.
Alem disso, esses dados comportam uma grande significação ao
apontarem justamente para o que a revista entende como as portas de entrada da
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reportagem e para as práticas sociais envolvidas na produção do texto. Na
escolha da seção Brasil e da grande temática Globalização, a revista antecipa um
processo discursivo de identificação do país, situado historicamente no momento
de publicação da reportagem e dentro de suas relações com a lógica global da
contemporaneidade. O termo Brasil, em 2003, evoca a própria chegada do Lula à
Presidência da República e toda a rede de representações veiculadas,
principalmente pela mídia, frente às ações do Presidente nos seus primeiros
meses de governo. Dentre essas ações, está a primeira viagem internacional, que
inclui a participação de Luiz Inácio Lula da Silva no Fórum Econômico Mundial –
justifica-se aí o próprio uso de Globalização como tema-chave.
Pensemos agora no título O elo entre dois mundos, que se encarrega de já
trazer o mapa do que acontece em toda reportagem – essa seria justamente a
função principal de um título. Há três principais espaços sob os quais os sentidos
se constroem nesse título e que permanecem por todo texto como uma estrutura
central de compreensão – há um mundo de um lado e, em posição oposta, um
outro mundo; entre eles, transgredindo uma oposição ideologicamente marcada,
há um terceiro espaço que representa o elo. Especificamente no enunciado O elo
entre dois mundos, por sua própria estrutura temática, é o espaço-elo que
desencadeia, posteriormente, os outros dois espaços que ele une. Forma-se, em
uma representação imagética, um mapa como o seguinte:
O ELO entre DOIS MUNDOS
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Durante todo o texto, observamos essa mesma estrutura inaugurada no
título. Ora a reportagem se incube de desenhar a configuração de um espaço-
mundo, ora de outro e, no seu principal desígnio, vai compondo, em uma
integração conceitual, o espaço-mescla que faz representar o elo entre os dois
mundos. E não é só o espaço que representa o Elo que pode ser considerado um
espaço-mescla, mas os outros dois espaços – os dos dois mundos – também o
são. No decorrer do texto, como veremos, essa composição-mescla aparece e
contribui inclusive para localizar quais conhecimentos de mundo e crenças
compartilhadas estruturam internamente os domínios locais configurados nesses
espaços.
Logo no subtítulo, o locutor explicita os referentes que nomeiam os
espaços sob os quais os sentidos se agendam adiante:
(1) Ao unir as mensagem de Porto Alegre e Davos, Lula desponta como o construtor
da terceira via real. De um lado, Porto Alegre, em uma remissão metonímica ao Fórum Social
Mundial; de outro lado, Davos, através do mesmo recurso metonímico, indicando
o Fórum Econômico Mundial; e, como um elo que propõe unir esses dois mundos,
aparece a figura de Lula nomeada de construtor da terceira via real. Os espaços
representados no título começam a ganhar qualificações: os dois mundos são
Porto Alegre e Davos, respectivamente, e o espaço elo recebe outros nomes
como Lula e terceira via real:
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Na legenda de uma das fotos e no início do primeiro parágrafo do texto, o
locutor amplia os dizeres do subtítulo com os seguintes enunciados:
(2) Lula pode ser a síntese entre Davos e a Porto Alegre de João Pedro Stedile, líder do MST, e José Bové, o ativista antiglobalização francês.
(3) Como primeiro chefe de Estado a participar dos dois fóruns rivais, o de Davos e o
de Porto Alegre, Luiz Inácio Lula da Silva pode ser a ponte entre as duas correntes de pensamento antagônicas que competem pelo coração e mente da opinião pública mundial. O Fórum Econômico Mundial, em Davos, se reúne anualmente na cidade suíça e reflete as opiniões de líderes dos países ricos e de grandes empresários multinacionais. O Fórum Social Mundial, também realizado anualmente, em Porto Alegre, como uma resposta esquerdista ao encontro dos Alpes, dedica-se a encontrar alternativas ao capitalismo. Os participantes dos dois fóruns nunca conseguiram encontrar alguma coisa em comum. Agora, existe um elo. Lula participará dos dois encontros. Com essa atitude do presidente brasileiro, abre-se uma brecha no maniqueísmo.
Como se vê, o trabalho de representação dos dois Fóruns Mundiais como
movimentos antagônicos caminha, contrariamente à projeção dos Fóruns como
inconciliáveis, a favor da construção de um espaço em que esses dois mundos se
encontram convergidos. Essa tramitação, provocada pela participação de Lula
nos dois Fóruns, quebra o maniqueísmo com o qual funcionava a presença do
. a . b
. c . d
FEM
FSM
O elo
Presidente Lula
Terceira via real
. a . b
. c . d
a - Davos b - econômico (capitalismo) c- Porto Alegre d – social (socialismo)
- 99 -
FSM e do FEM no mundo e, por conseqüência, na mídia. A presença do
Presidente nos dois encontros fez emergir a necessidade de uma identificação
que respondesse por tal postura - processo que trouxe para discussão os
propósitos de cada Fórum e a sua relação com o Presidente do Brasil.
Em (3), no trecho Agora existe um elo, o marcador lingüístico agora produz
justamente o efeito de um antes e de um depois da participação do Lula. Se o que
identificava a relação entre FSM e FEM era a lógica do maniqueísmo, o elo
representado por Lula re-significa essa lógica, já que passa a existir uma
motivação comum entre os movimentos. Os espaços identificadores dos Fóruns,
principalmente frente à relação estabelecida pela presença de Lula em Porto
Alegre e em Davos, são mesclas que emergem de dois outros grandes domínios
presentes na narrativa da reportagem e na memória social: o capitalismo e o
socialismo.
O FEM pode carregar a marca do econômico em seu nome, mas vem
incluindo o social em sua agenda. O FSM carrega a marca do social, mas tem em
um de seus maiores símbolos (o próprio Lula) posturas que não desconsideram o
econômico. No texto da reportagem, essa identidade mesclada dos Fóruns
aparece em trechos como:
(4) Desde que assumiu, o presidente brasileiro tem se mostrado um adepto inflexível
da estabilidade monetária, da austeridade fiscal e do respeito às leis de mercado. O Fórum de Porto Alegre nunca gostou dessas bandeiras capitalistas, mas vê-se obrigado a engoli-las quando o homem que as incorpora em sua prática de governo se chama Luiz Inácio Lula da Silva.
(5) Para surpresa de muitos participantes, o discurso inflamado e radical de Mahathir
Mohamad, primeiro-ministro da Malásia, foi recebido com aplausos de pé em Davos (...) num discurso de contornos perfeitos para a platéia antiamericana de Porto Alegre.
(6) Para Lula, ser considerado um dos expoentes do Fórum Econômico Mundial é
uma vitória antecipada.
Claramente, é o social que identifica o FSM e é o econômico que marca o
FEM, mas suas fronteiras se vêem esmaecidas frente à participação de Lula nos
dois Fóruns. Os espaços que se formam (ou que se re-formulam) para identificar
tanto os Fóruns quanto o Lula tomam contornos específicos diante da conjuntura
histórica que os fundamenta. O trabalho sob essas identificações parece ser um
- 100 -
dos objetivos principais da reportagem e, na estrutura global do texto, acontece
da forma como mapeamos a seguir:
- 101 -
Esse quadro, longe de esgotar a complexidade de organização do texto e
as ativações na memória que ele provoca e que foram provocadas para que ele
existisse, sistematiza um mapeamento dos principais grupos de formação de
sentido e das relações entre eles. Espaços integrados de compreensão, as
mesclagens, são representados no texto e trabalham para determinadas
compreensões motivadas por efeitos de sentido provocados pela própria forma
como se estruturam e se organizam as informações. Uma análise de um ponto de
vista textual, como prevê a Análise Crítica do Discurso, tem justamente a função
de descrever e interpretar como o texto e as estruturas lingüísticas trabalham para
o controle dos sentidos e, por conseqüência, para a manutenção ideológica das
representações sociais de eventos e agentes dessa sociedade.
O que faz localizarmos grupos correspondentes ao FEM e ao FSM e
grupos que sustentam a formação da idéia que identifica esses mundos; o que faz
com que, na convergência da representação atribuída a cada um dos Fóruns, seja
elaborado um espaço que identifique o presidente Lula é o próprio modo de
funcionamento da mente e a capacidade cognitiva de se processar por/através de
espaços mentais e de mesclas entre eles. E esse princípio pode ser usado como
instrumento mesmo para manejar determinadas representações de mundo na
mente dos leitores acerca dos Fóruns e acerca do agente social localizado no
Presidente.
É possível entender, então, o processo de representações das identidades
como espaços articulados para construí-las. A construção discursiva de
identidades e de representações sociais pode ser desempenhada, portanto,
através da articulação de/entre espaços construídos ao longo desse discurso, em
processos de identificação. Temos na reportagem O elo entre dois mundos, na
percepção global do texto, uma rede de categorizações que foi representada no
quadro da página anterior. Caminharemos sobre cada conjunto, analisando a sua
constituição.
A oposição ‘Fórum Econômico Mundial x Fórum Social Mundial’ é
construída, na reportagem, sob as estruturas de um modelo cristalizado na
história mundial, em que o econômico e o social travam batalhas ideológicas que,
inclusive, outrora dividiu o mundo entre capitalistas e socialistas. É possível dizer,
- 102 -
portanto, que essa oposição representada em ‘FEM x FSM’, mesmo que
significada em uma outra conjuntura histórica, se arma sob um esquema
conceitual já disponível na cultura e que corresponde às oposições ‘econômico x
social’ e ‘capitalismo x socialismo’. Esse processo se encontra marcado
textualmente através de pistas deixadas na própria forma de construir espaços de
identificação desses Fóruns.
O FEM é nomeado, logo no início da reportagem, como o encontro dos
Alpes. A ambigüidade dessa expressão se dá no trânsito entre dois espaços
mentais, um que identifica o lugar geográfico do Fórum (Davos, nos Alpes Suíços)
e um outro que metaforicamente representa o lugar geopolítico desse Fórum
(encontro dos grandes e dos poderosos do mundo, aqueles que ocupam os
lugares mais altos na escala percentual de divisão de riquezas monetárias). A
expressão encontro dos Alpes pode ser entendida, então, como um espaço
mescla emergente que une, no interior da identificação do FEM na reportagem, o
lugar geográfico e o lugar geopolítico desse encontro:
(Espaço Genérico)
input I 1 input I 2
(Mescla)
dimensão geográfica Os Alpes
dimensão geopolítica
Encontro dos ricos e
poderosos do mundo
FEM Alpes Suícos
Encontro
dos Alpes
- 103 -
O uso da expressão Encontro dos Alpes, sobre o qual recai o processo de
mesclagem descrito no diagrama anterior, produz um efeito de sentido que
demarca determinadas relações sociais pautadas na presença do FEM no mundo.
Além disso, termos como líderes dos países ricos, grandes empresários
multinacionais, capitalismo, estabilidade monetária, austeridade fiscal e respeito
às leis de mercado aparecem como referência direta ou indireta ao FEM e são
elementos que compõem o espaço que o identifica. Esses elementos, por sua
vez, inscrevem a representação desse Fórum como grupo dominante,
hegemônico e voltado principalmente para a economia e para as leis de mercado.
No entanto, essa é apenas uma das faces que caracteriza o espaço ‘FEM’
no texto, já que existem interceptações de outros elementos estranhos ao grupo
ideológico que orienta a identificação desse Fórum. Esses elementos estranhos
correspondem, dentre outros, a própria participação e presença, no Fórum, do
Presidente Lula, um líder de esquerda, e ainda a inclusão de temas sociais, como
a fome, na agenda do encontro. Elementos considerados tão estrangeiros ao
objetivo do FEM que causaram tamanha repercussão na mídia.
Já no que diz respeito à forma como a revista conduziu uma identificação
do FSM, o que vemos é uma maior demora para apresentá-lo. Durante o texto da
reportagem, há mais recorrência de uso de adjetivos e de atributos para se referir
ao FSM do que ao FEM, o que se justifica na própria idéia de que o FSM está
apenas em sua terceira edição e ainda reclama sentidos que o identifique. Ao
contrário, o FEM existe há mais trinta anos e o seu nome já circula na mídia há
um bom tempo. Porto Alegre é o outro nome do FSM e aparece como referência
ao encontro daqueles que se opõem e não pertencem ao encontro dos Alpes. No
molde de oposição pré-estabelecida historicamente entre capitalismo e
socialismo, o FSM vem ocupar os espaços de representação dessa segunda
alcunha, que não aparece explicitamente no texto da reportagem, mas que toma
corpo em outras denominações.
Para criar um porto de ancoragem frente a esse nome tão recente no
cenário mundial, aparecem qualificações como resposta esquerdista ao encontro
dos Alpes; Porto Alegre de João Pedro Stedile, líder do MST, e José Bové, o
ativista antiglobalização francês; alegres militantes de Porto Alegre; platéia
- 104 -
antiamericana; dentre outras. O FSM aparece como o ‘outro Fórum’ e recebe
contornos do dissenso que o representa: o MST e os ativistas antiglobalização.
Esses são grupos invocados para que os leitores (re)conheçam o FSM e o
classifique dentro de uma aliança ideológica específica. O MST e os ativistas
antiglobalização compreendem espaços mentais que oferecem elementos para a
constituição de um espaço que identifique o Fórum de Porto Alegre e lhe dê
contornos – uma identidade que, no mesmo instante em que se constrói, se vê
ameaçada pela participação de Lula (Presidente do País em que se insere Porto
Alegre e um dos maiores representantes do FSM) no fórum rival.
A representação discursiva presente na expressão elo entre dois mundos
vem acompanhada dessa trajetória de identificação social e ideológica que
apresenta os dois Fóruns. Dentro da rivalidade que os identifica, passa-se a
encontrar uma brecha com o nome Luiz Inácio Lula da Silva. É na convergência
entre elementos do espaço ‘FEM’ e do espaço ‘FSM’ que emerge um terceiro
espaço que trabalha para a identificação discursiva do agente social localizado
em Lula. Se ora Lula é assimilado a uma estrela da esquerda mundial que
carrega a bandeira do Fórum de Porto Alegre, ora ele responde como expoente
do Fórum Econômico Mundial e como dono de posturas que não ofendem as leis
de mercado – posturas que, na representação que se quer de Lula, não se
excluem, mas sim, estrategicamente, se complementam a favor da função de elo
entre dois mundos nele depositada.
Ao mapeamos tais processos de mesclagens, foi possível visualizar a
representação discursiva dos grupos FEM e FSM e a forma como essas
representações recaem sobre a construção (também discursiva) da identidade
social do Presidente Lula. Foi possível visualizar também como um
processamento cognitivo (as integrações conceituais) passa a ser, em projeção,
um princípio de composição textual, o que faz possível descrevê-lo através da
análise do texto. Além disso, identificar as mesclagens projetadas no texto
funcionou como um método para descrever a forma como os grupos e agentes
são representados – nesse processo, os espaços mesclas são, sobretudo,
espaços do discurso articuladores de relações sociais e articulados sob elas.
- 105 -
7.1.2. Reportagem Elo entre dois mundos Da reportagem publicada em 2003 para a que foi publicada em 2005 - e
que tinham como tema a participação do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva nos
Fóruns Econômico e Social -, os títulos permanecem quase idênticos, com uma
diferença apenas e que, apesar de mínima, é potencialmente significativa. Trata-
se da supressão do artigo “o” no título da reportagem de 2005 e que corresponde
a uma escolha lingüística justificada pelo próprio momento histórico em que as
reportagens foram publicadas. Em 2003, Lula era considerado O Elo; em 2005,
esse atributo (como tantos outros) não desaparecem, mas perdem a sua força –
Lula passa a ser apenas um elo. Há, como se vê representado na própria
supressão do artigo, no que diz respeito à figura do Lula, uma perda de ineditismo
entre 2003 e 2005.
Mesmo diante desse “desencantamento”, a representação de Lula como
participante dos Fóruns continua obedecendo a uma mesma estrutura discursiva
de identificação. Nas reportagens de 2003 e de 2005 publicadas na Veja, não é
somente o título das reportagens que conserva uma semelhança, a própria rede
de espaços que organiza o texto se equivale em grande parte, como é possível
perceber no quadro a seguir, correspondente à organização da reportagem Elo
entro dois mundos:
- 106 -
A maneira de designar os Fóruns e de agregar elementos de um e de outro
espaço de identificação (relativos a esses Fóruns) para se referir ao Presidente
Lula se assemelha, como é possível perceber, àqueles processos descritos na
análise sobre o texto da reportagem publicada em 2003. Há, como não poderia
Porto Alegre Davos Alpes Suíços
Presidente Luiz Inácio Lula da Silva
- Lula espalha a utopia de um mundo sem miséria e sem fome. - Lula recebe cada vez apoio mais amplo. - Lula é vaiado no FSM. - O Presidente fez bem mais do que discurso para platéias distintas. - Em sua presença tanto em um quanto em outro Fórum, Lula mostrou que encarna melhor do que qualquer outro Chefe de Estado o papel de elo entre pólos tão opostos. - Lula é a esperança de que os dois mundos – o rico e o pobre, o norte e o sul – possam criar um ambiente que favoreça o diálogo e a troca solidária. - Lula é um interlocutor dos pobres juntos aos ricos e destes juntos aos pobres. - Lula serve de ponte entre os dois mundos e tem o que os ricos admiram e o que os pobres precisam. - Lula é uma figura híbrida e pendular. - Lula encarna o papel de elo entre a realidade e a utopia. - A defesa de lula em aumentar o montante de ajuda à pobreza vem conseguindo maior ressonância. - Lula não foi o primeiro a levantar esse assunto num fórum internacional, embora a repercussão que o tema tem alcançado deva ser parcialmente atribuída a sua teimosa militância pessoal.
Fórum Social Mundial - militantes vaiaram o Lula - mundo dos pobres / Sul - pobres não confiam 100% no Lula - Alguns participantes do FSM condenam as posturas de Lula
Fórum Econômico Mundial
- mundos dos ricos / Norte - ricos não confiam 100% no Lula - Lula é recebido com cuidado em Davos - FEM organiza uma frente de luta contra a miséria nos países africanos. - A guerra contra pobreza aparece agora ostensivamente na agenda de Davos.
- 107 -
deixar de ser, alguns acréscimos e ênfases que diferenciam uma reportagem da
outra e que, inclusive, estão presentes em algumas escolhas lingüísticas - como
acontece na própria supressão do artigo no título da reportagem de 2005. Dadas
essas semelhanças, cabe a nós apenas discorrer sobre o que não está presente
na reportagem anterior ou sobre o que dela se diferencia.
No subtítulo, que também apresenta uma estrutura muito semelhante ao da
reportagem de 2003, aparecem os dizeres
(7) De Porto Alegre a Davos, Lula espalha a utopia de um mundo sem miséria e sem
fome - e começa a receber apoio cada vez mais amplo. Na expressão De Porto Alegre a Davos, o uso das preposições de e a, que
comportam idéia de movimento e direção, faz representar o ponto de partida e o
alvo das ações de Lula. É possível dizer que se trata de uma escolha que
demarca a origem do Lula no Fórum Social Mundial, não apagando a sua história,
e que representa, além disso, a idéia de que ações de Lula não recaem apenas
sobre esse Fórum, mas que elas vão em direção aos desígnios do Fórum
Econômico também. Associar a origem de Lula ao Fórum Social reforça as
regularidades de identificação entre esse Fórum e o Lula. A projeção de
elementos do espaço que identifica o FSM no espaço que organiza a
representação de Lula como elo entre dois mundos acontece justamente através
dos domínios em comum entre esses espaços e que, no texto da reportagem,
recebem nomes como esquerda, militância, utopia.
Como se vê, a representação do ator social Luiz Inácio Lula da Silva como
uma figura híbrida e pendular se dá através da projeção de elementos entre
domínios que estruturam internamente os espaços identificadores dos fóruns. Na
relação com Porto Alegre, tanto o Lula é um elemento que compõe o espaço que
identifica o FSM, quanto o FSM é um traço que marca a origem de Lula no
espaço que o representa. Já na relação com Davos, o Presidente re-afirma uma
identidade que ele construiu sobre si e que a mídia cumpriu o papel de divulgar –
a de um Lula que não condena as leis de mercado, que respeita a austeridade
fiscal e que não tem o capitalismo como seu arquiinimigo. É por convergir em si
posturas compreendidas em domínios diferentes (e até divergentes), o que tomou
corpo na própria participação simultânea nos fóruns, que adjetivos como híbrido e
- 108 -
pendular respondem por uma integração conceitual que caracteriza esse espaço
de identificação do Lula nessas reportagens que tomamos em nosso corpus.
É importante dizer ainda que, na oposição entre os Fóruns representada
nessa reportagem de 2005, há a sobreposição de dois outros espaços de
oposição: ricos x pobres e Norte x Sul. Trata-se de modelos já disponibilizados
(como o são a dicotomia ‘capitalismo x socialismo’, ‘econômico x social’) e que
sustentam internamente a estruturação dos espaços mentais que opõem FEM e
FSM – espaços que, na própria natureza mesclada de sua composição,
desconstroem (mesmo que em parte) a oposição representada nos modelos que
os estruturam internamente. De um lado o FSM é o Fórum dos pobres e do Sul e
de outro lado o FEM é o fórum dos ricos e do Norte, mas pobres e ricos e Norte e
Sul têm na figura de Lula, como é articulado no texto da reportagem, uma mostra
de que suas fronteiras podem se dissimular, deixando coincidirem elementos
entre si.
7.2. Revista IstoÉ 7.2.1. Reportagem Lula lá e cá
Desde as primeiras eleições presidenciais para as quais o Lula se
candidatou, a expressão Lula lá aparecia quase como um lugar comum nas
campanhas do PT. O título da reportagem que agora analisaremos estrutura-se
justamente na memória dessa expressão historicamente marcada na trajetória de
Lula até a Presidência. Ao examinarmos essa manifestação pelo processamento
das mesclagens conceituais, a expressão Lula lá e cá, além de dividir o mundo
em dois espaços, o que aparece fortemente marcado pelos advérbios lá e cá,
remete a um outro espaço relacionado à história política de Lula e sua trajetória à
Presidência.
Esse título produz um efeito de sentido que une aquele Lula das
campanhas Lula lá ao Lula recém chegado ao poder e que, na sua primeira
viagem internacional, vai ao Fórum de lá, o Fórum Econômico Mundial. Esse jogo
lingüístico demarca a presença de dois domínios, responsáveis, desde então, por
uma identificação híbrida de Lula: o Lula candidato de esquerda das campanhas
- 109 -
presidenciais (o Lula lá) e o Lula Presidente que sai de seu país para participar de
um Fórum fortemente rejeitado pelas esquerdas do mundo (O Lula lá):
Além disso, aqueles dois espaços marcados pelo lá e pelo cá, o primeiro
relacionado ao FEM e o segundo ao FSM, localiza a voz daquele que fala na
reportagem: o locutor se posiciona próximo ao FSM, o Fórum de cá, o Fórum do
Brasil, o fórum dos pobres; ao mesmo tempo em que representa o Fórum
Econômico Mundial como distante de nosso país, o que aparece na reportagem
tanto nos moldes de uma distância geográfica como nos moldes de uma distância
geopolítica. A representação discursiva da identidade de Lula, assim como nas
demais reportagens analisadas, se orienta na convergência dos espaços de
oposição relacionados aos fóruns, como se pode observar também logo no
subtítulo da reportagem:
(8) Presidente vai a Porto Alegre e a Davos e faz ponte entre ricos e pobres nos dois
fóruns rivais.
(Espaço Genérico)
input I 1 input I 2
(Mescla)
Lula lá slogan de
campanhas eleitorais. (Lula da
esquerda)
Lula lá Presença de Lula no fórum
de lá – O Fórum
Econômico Mundial
Lula lá
Lula como
uma figura
híbrida.
- 110 -
Enquanto a revista Veja nomeou como elo a relação que Lula estabelece
entre os Fóruns rivais, a revista IstoÉ elege o termo ponte para denominar essa
relação. Nas duas situações, deposita-se em Lula a personificação de um
possível diálogo entre os Fóruns. É a Lula, figura construída em um espaço
mescla que representa sua identidade como híbrida, que se atribui o perfil de
quem pode operacionalizar esse diálogo. Nessa reportagem especificamente,
conservando aquela mesma orientação presente nas reportagens da Veja, tais
relações entre os Fóruns e o Lula aparecem na composição textual da maneira
como projetamos no quadro seguinte:
Cá - Porto Alegre Verdadeiro Enclave Petista.
Chovia em Porto Alegre.
Lá - Davos A bela estação de esqui encravada nos
Alpes Suíços / Nevava em Davos.
Presidente Luiz Inácio Lula da Silva - Lula faz ponte entre ricos e pobres nos dois fóruns rivais. - Lula está alçado à condição de um verdadeiro pop star da política. - Lula quer globalizar a bandeira do pacto social. - Lula almeja conquistar o papel de líder mundial e de porta-voz dos países em desenvolvimento. - O presidente investiu-se de uma espinhosa missão diplomática ao prometer servir de ponte entre ricos e pobres. - Lula é primeiro chefe de estado a ir ao FSM. - A relação de Lula com o Fórum Social Mundial é estreita. - Lula causou frisson na gélida estação de esqui suíça. - Chefes de estado, presidentes de multinacionais e representantes de ONGs que participaram do FEM lotaram a embaixada do Brasil de pedidos de encontro com Lula. - Se Lula tem laços umbilicais com o Fórum Social Mundial, também tem em sua comitiva um tradicional participante do encontro de Davos, que antes ia na condição de empresário e que dessa vez aparece como ministro do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior. - O terreno é fértil para a pregação de Lula em busca de uma nova ordem mundial.
Fórum Social Mundial - Pobres. - O Fórum Social Mundial é despojado, crítico e irreverente. - No FSM, reúnem-se milhares de ativistas de ONGs, integrantes de partidos de esquerda, artistas e pensadores críticos ao chamado status quo. - Movimento anti-globalização. - Lema do FSM: um outro mundo é possível.
Fórum Econômico Mundial - Ricos e endinheirados do mundo. - É um Fórum suntuoso. - O Fórum reúne poderosos empresários, banqueiros, políticos e intelectuais, na maioria representantes do Primeiro Mundo. - Tema do FEM: construindo a confiança. - O Fórum Econômico Mundial recebe a presença de um governante de um partido de esquerda.
- 111 -
Ao categorizar e caracterizar cada um dos Fóruns, o locutor se aproveita,
assim como aconteceu na reportagem Elo entre dois mundos, de uma oposição
previamente estruturada que separa pobres de ricos, armando sob esse molde a
rivalidade entre FSM e FEM. Nesse processo de elaboração de espaços para
identificar os Fóruns, o locutor desse texto, ao contrário das reportagens da Veja,
utiliza bastantes adjetivos e metáforas. O Fórum Social Mundial é apontado como
despojado, crítico e irreverente, se opondo a suntuosidade do Fórum Econômico
Mundial. O clima tropical de Porto Alegre, onde chove e faz calor, versus o clima
europeu dos Alpes, onde neva e faz frio, é utilizado como um recurso de
integração conceitual para enfatizar a diferença dos fóruns. Nesse caso, a
metáfora se realiza no deslocamento entre um espaço que reúne traços
geofísicos de Porto Alegre e Davos para um espaço que organiza as diferenças
geopolíticas entre os Fóruns.
Um outro exemplo de metáfora nessa reportagem aparece no trecho a
seguir:
(9) Alçado à condição de um verdadeiro pop star da política desde que venceu a
eleição, Lula pretende aproveitar seu prestígio em alta para mostrar ao mundo que é possível globalizar a bandeira do pacto social. Durante seis dias dois gigantescos eventos servirão como privilegiados palcos para Lula testar seu desempenho para o papel que almeja conquistar: o de um dos principais líderes mundiais, o porta-voz dos países em desenvolvimento.
O uso de expressões como pop star e palco para se referirem,
simultaneamente, ao Lula e aos Fóruns como lugares que recebem Lula trabalha
sob os domínios fontes de identificação do famoso e do artista (daquele que se
apresenta em palcos) para significar um domínio alvo que deve dizer sobre o
papel de Lula, como um Chefe de Estado na participação de Fóruns Mundiais.
Essa projeção entre domínios, cria um espaço que, significado pelos elementos
do domínio fonte, assinala a representação que se quer do domínio alvo. Lula
aqui é representado como um artista famoso que é recebido como pop star e que
usa os espaços dos fóruns como palcos que promovem sua visibilidade. Essa
representação de Lula como quem quer visibilidade permanece na reportagem
publicada em 2005 e, explorada por uma outra metáfora, compõe o título Vitrine
Brasil.
- 112 -
7.2.2. Reportagem Vitrine Brasil
Antes de descrever propriamente o funcionamento de alguns importantes
processamentos metafóricos presentes no texto dessa reportagem, gostaríamos
de apresentar, como foi de praxe nas análises anteriores, um mapeamento que
organiza a forma como se constroem espaços de identificação no texto:
Porto Alegre Temperatura quente em
Porto Alegre.
Davos Temperatura gelada em Davos
Presidente Luiz Inácio Lula da Silva - Equilibrista: Lula é o único chefe de Estado que discursa nos dois fóruns. Seu tema é a fome. - Lula quer dar visibilidade às ações de seu governo para atrair investimentos estrangeiros e capital privado. Lula assume, com isso, a tarefa de vender o Brasil lá fora. - Lula se tornou estrela do encontro das elites mundiais. - Lula ouviu vaias no FSM. - Lula propôs ao FSM uma união entre os dois Fóruns. - No FEM, Lula sentiu o calor da recepção dos líderes mundiais. - Lula foi convidado a participar da reunião do G8. - O samba enredo do presidente Lula coincide como o tema do FEM: “Assumindo responsabilidades por escolhas difíceis”. - Lula já fez história com suas participações nos eventos: é o único chefe de Estado com ginga suficiente para participar de dois fóruns rivais, em Davos e Porto Alegre. Haja jogo de cintura.
Fórum Social Mundial - O Fórum Social Mundial foi criado em 2001 por ONGS e movimentos de esquerda. - Ativistas e radicais participantes do FSM vaiaram Lula. - O encontro dos pobres. - O FSM foi criado para se contrapor ao FEM.
Fórum Econômico Mundial - Na edição deste ano, o encontro de Davos foi pautado pela discussão sobre a fome, o tema levantado por Lula há dois anos. - O Fórum Econômico Mundial, nascido há 35 anos nos Alpes suíços, reúne a elite financeira e econômica, além de estrelas do mundo cultural. - O FEM discute a guerra contra a fome no mundo – um tema que passou a ser considerado pelos participantes do FEM a tarefa mais importante. - O tema deste ano do Fórum de Davos encaixa-se com perfeição no samba-enredo do presidente Lula: “Assumindo responsabilidades por escolhas difíceis”
- 113 -
Essa estrutura de identificação do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva
perante à representação de rivalidade entre o Fórum Econômico e o Fórum Social
acontece nessa reportagem sob a égide de um título como Vitrine Brasil. No corpo
do texto, esse título se ancora mais fortemente na participação de Lula no Fórum
Econômico Mundial do que no Fórum Social Mundial. Trata-se de uma metáfora
que se explicita na idéia, que aparece no decorrer da reportagem, de que Lula
quer dar visibilidade às ações de seu governo para atrair investimentos
estrangeiros e capital privado, assumindo, com isso, a tarefa de vender o Brasil lá
fora. Lula investe nessa tarefa participando do Fórum Econômico, onde
convergem as potências do capital privado e os estrangeiros que podem investir
no país.
A metáfora Vitrine Brasil, assim como as outras metáforas presentes nas
reportagens já analisadas, assumem um papel peculiar nas relações cognitivas,
culturais e discursivas. Para o modelo cognitivista de compreensão da metáfora,
ela é considerada uma operação intelectual e/ou um recurso cognitivo que
consiste em pensar um domínio de experiência através da experiência de outro
domínio, o que desvela o poder criativo da metáfora ao organizar conceitualmente
e re-elaborar domínios de compreensão do mundo. Os sistemas metafóricos
estão subjacentes à própria utilização corriqueira da linguagem, ao que Lakoff
(1987) denomina metáfora conceitual, enfatizando-a como uma operação
cognitiva e como essencialmente cultural. Dessa maneira, a metáfora também
pode ser compreendida nos termos da Teoria das Mesclagens Conceituais.
Já para a Análise Crítica do Discurso, a metáfora é, além disso, uma forma
de identificar e de representar. Para Fairclough (2001, p.241), ao significarmos
através de uma metáfora (e não de outra) estamos representando a realidade de
uma forma (e não de outra). A metáfora é então uma estratégia de representação
e de identificação de aspectos do mundo e corresponde a um tipo de escolha do
locutor (consciente ou não), que traz uma pista de seus posicionamentos sociais e
ideológicos. Pensemos, por exemplo, na metáfora explorada nos trechos a
seguir28, retirados da reportagem Vitrine Brasil:
28 Localizemos, para efeito de análise, apenas a metáfora do carnaval, pois há no trecho (1) ainda mais metáforas introduzidas pelo uso do substantivo duelos e holofotes, por exemplo.
- 114 -
(10) Davos e Porto Alegre abriram alas neste ano para o bloco do Planalto passar. O duelo de idéias, que desde 2001 atrai os holofotes mundiais em dois fóruns antagônicos – o Econômico e o e Social –, se transformou neste ano em gigantescas passarelas para o presidente Luiz Inácio Lula da Silva e seu governo. Uma semana antes de o Carnaval chegar, representantes de 18 ministérios e outros órgãos da administração federal desfilaram nas avenidas globais durante seis dias, entre a quarta-feira 26 e a segunda-feira 31, quando termina o Fórum Social.
(11) O tema deste ano do Fórum de Davos encaixa-se com perfeição ao samba-
enredo do presidente Lula: “Assumindo responsabilidades por escolhas difíceis”.
Para significar a participação do Presidente nos dois Fóruns Mundiais, o
locutor se valeu da estrutura de um domínio de experiência relacionado ao
carnaval, se apropriando de seu campo semântico com o uso de um vocabulário
específico (abrir alas, bloco, passarelas, desfilar em avenidas, samba-enredo). A
postura do Presidente em participar dos fóruns rivais (um domínio localizado que
é alvo da referência ao domínio ‘carnaval’), aparece em um espaço emergente
representado por um deslocamento de sentidos característico de um
processamento metafórico:
Carnaval - abrir alas
- blocos
- passarelas
- desfilar em
avenidas
- samba-enredo
Participação do Presidente nos
dois Fóruns Mundiais
- Lula quer dar
visibilidade ao seu
governo
Metáfora “Davos e Porto Alegre abriram alas neste ano para o bloco do
Planalto” A participação de
Lula nos dois fóruns foi um carnaval
BRASIL
país do
carnaval
- 115 -
Nesse processo, organizado pela própria natureza da metáfora, estão
envolvidos uma série de espaços: desde os domínios fonte e alvo até o espaço
emergente de integração desses dois domínios, em que está pressuposto um
quarto espaço, que traz para o jogo um modelo de compreensão de nosso país
fortemente disseminado. Tal metáfora reconhece, em domínios mais estáveis e
nas estruturas da memória pessoal e social, um Modelo Cognitivo Idealizado (ou
seja, um conhecimento socialmente produzido e culturalmente disponível) que
localiza o Brasil como o país do carnaval, fazendo reproduzir, na identificação que
se quer de seu Presidente, uma representação do país fundada no que se
considera um de seus símbolos, o carnaval. O uso dessa metáfora, sustentada
também em recursos de ironia, desencadeia, portanto, sentidos que
carnavalizam, quase literalmente, as posturas do Presidente Lula.
- 116 -
8. Considerações finais
Como um traço recorrente nas quatro reportagens que compõem o nosso
corpus, o Presidente Luiz Inácio Lula da Silva aparece representado, frente à
projeção de embate entre o Fórum Econômico Mundial e o Fórum Social Mundial,
como um elo ou como uma ponte entre esses dois mundos. Ao organizamos um
mapeamento de como funcionou esse processo de identificação, tomados pelos
princípios de um modelo teórico que entende a produção de sentidos como
acionada por e através de mesclagens conceituais, preservou-se uma mesma
estrutura de composição e que pode ser avaliada no quadro seguinte:
- 117 -
A identificação de Lula como participante dos dois Fóruns acontece através
de um espaço mescla que faz convergir elementos originados de espaços de
identificação relacionados a um fórum e ao outro. E, no mesmo processo, é a
participação de Lula nos dois Fóruns que inaugura uma identificação híbidra de
cada um desses encontros – em que o econômico e o social aparecem, mesmo
que com pesos diferentes, na representação de ambos. No entanto, essa
identidade mesclada dos Fóruns teve significações diferentes na referência a
cada um.
A presença de Lula no FSM é representada como uma ameaça à ideologia
desse Fórum. Já a presença de Lula no FEM representa um investimento positivo
para a face desse encontro, que passa a ser divulgado como um encontro que
não deixa de lado as questões sociais emergentes. O elo personificado em Lula,
da forma como foi constituído nas reportagens das revistas Veja e IstoÉ, beneficia
a representação que se quer do FEM e, ao mesmo tempo, posiciona o Presidente
como servindo mais aos propósitos desse Fórum e não aos do outro, no qual
historicamente a sua imagem se funda.
A Teoria das Mesclagens Conceituais, como um modelo teórico para a
compreensão dos processos de representação mental envolvidos nos
mecanismos de produção de sentido, permitiu-nos ver os textos como cognição
distribuída, em que o modo de funcionamento da mente é o próprio princípio
organizador da composição textual. O uso da análise lingüístico-textual
encaminhou, a partir daí, uma maneira de perceber como estruturas cognitivas –
especificamente aquelas que desencadeiam a projeção de espaços mesclas no
texto – são utilizadas no processo de formação de representações sociais,
permitindo observar o funcionamento de aspectos mais abrangentes, como
questões políticas e culturais.
Diante da localização da prática discursiva, partimos para leitura do texto,
buscando sistematizar o seu funcionamento a partir da compreensão das
mesclagens conceituais como um processamento cognitivo fundamental na e
para a produção e a interpretação textual. Esses espaços que, em um primeiro
momento, emanavam dos processos mentais envolvidos na produção do texto e
que, no processo de elaboração desse texto, foram articulados lingüisticamente
- 118 -
para conduzir os sentidos desejados pelo locutor, podem ser lidos e re-mapeados
nessa leitura. A integração entre espaços mentais, como um mecanismo de
compreensão e de interpretação, carrega o potencial de orientar os sentidos ao
traçar um mapa de compreensão do mundo ali representado – representações
mentais que funcionam socialmente e representações sociais que funcionam
mentalmente.
É por esse motivo que é possível dizer que os processamentos cognitivos,
em sua textualidade, tornam-se processamentos discursivos. Podemos observar
justamente que os agrupamentos representados nos diagramas das análises das
quatro reportagens trabalham para a identificação de grupos e de agentes sociais
e que, por isso, funcionam no discurso como uma forma de agir sobre a
representação desses grupos e desses agentes.
Ao considerarmos que as representações e as identificações sociais sejam
construídas por meio de classificações mantidas no discurso e, conjuntamente,
considerarmos que o processo acontece pela combinação de elementos que
identificam grupos de sentido, é possível dizer que as classificações mantidas no
discurso para construir identidades podem funcionar através de categorizações e
delimitações que trabalham pelo princípio mesmo de funcionamento da mente.
Em outros termos, a forma de organizar o discurso é conseqüência da forma
como se comporta a nossa mente e, na contrapartida, a forma como se comporta
a nossa mente pode oferecer instrumentos para a própria organização de nossas
representações de mundo.
Segundo van Dijk (1997), a construção e a negociação das identidades
sociais, na dimensão cognitiva que comporta a própria organização do discurso,
se definem por representações que partem de grupos dominantes. Quando se
fala de revistas como a Veja e a IstoÉ, por exemplo, fala-se de um lugar ‘de elite’,
em termos de um poder simbólico - e é desse lugar que a mídia representa os
grupos sociais e se auto-representa. As teorias ideológicas do discurso permitem
apontar justamente para a forma específica como os membros de determinados
grupos expõem as ideologias próprias a esse grupo, controlando suas
representações. Steinberger (2005) diz exatamente, como já citamos em outro
momento, que, na dimensão cognitiva da nova ordem, a mídia é o mapa que
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articula nossa compreensão do mundo (STEINBERGER, 2005, p.25), enfatizando
as relações entre cognição, mídia e o controle das representações no e pelo
discurso.
Dessa maneira, as regras discursivas da linguagem, imbricadas com a
própria forma de funcionamento cognitivo, perpassam as relações de produção e
reprodução institucionais, sociais e culturais envolvidas na comunicação – e vale
dizer que essas regras estão sempre sujeitas aos efeitos ideológicos. Os códigos
que atravessam esse processo são circuitos pelos quais a ideologia e o poder
significam os discursos e são por eles significados. Esses códigos permitem abrir
mapas de sentido, em que as culturas são categorizadas e em que se está
inscrito toda uma série de significados sociais, práticas e usos, poder e interesse
(HALL, 2003, p.396).
Durante esse capítulo, buscamos justamente, em uma experiência de
aplicação da metodologia sustentada na tríade discurso, cognição e cultura,
visualizar as relações discursivas, cognitivas e culturais que recaem sobre o
corpus que propomos. Na contrapartida, pudemos descrever um objeto
culturalmente situado através de um instrumental metodológico elaborado
justamente para compreender a cultura nas suas relações com a linguagem e, por
sua vez, com o discurso e com a cognição. Trata-se de uma via de apreensão,
determinada pelas escolhas teóricas e pelos recortes que fizemos, e que, por
assim se apresentar, desvela apenas partes do objeto, impedido pelas leis do
próprio discurso de ser apreendido em sua totalidade.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
Desde o início de nossas reflexões, pontuávamos a importância de
considerar a linguagem sob uma perspectiva conjunta, ponderando suas
dimensões cognitivas, discursivas e culturais. Tal posicionamento fundamentou e
promoveu a aproximação entre duas teorias que, mesmo com objetivos
diferentes, foram organizadas para o estudo de um mesmo objeto: a linguagem. A
integração entre pressupostos teórico-metodológicos da Análise Crítica do
Discurso e da Teoria das Mesclagens Conceituais, além de reunir pontos de vista
sobre a linguagem, desempenhando uma compreensão ampla de suas
manifestações, permitiu fundamentar uma metodologia que prioriza, nas práticas
de análise, a importância e a pertinência de estudar o papel fundamental da
linguagem nas relações humanas, atentando para sua implicação cultural, para a
sua realização discursiva e para o seu funcionamento cognitivo, de forma
integrada e interdisciplinar.
Fauconnier e Turner (2002) postulam que a forma pela qual pensamos,
aprendemos e vivemos obedece a um princípio motivado no potencial criativo da
mente humana de inovar e experimentar novas combinações – princípio
denominado integração conceitual, a que repetidamente fizemos referências. A
postura que assumimos em nossa pesquisa, não coincidentemente, é uma
manifestação mesma desse princípio. Ao defendermos a compreensão da
linguagem por uma perspectiva integrada e integradora e ao mesclarmos
pressupostos de duas teorias, utilizávamos - ao mesmo tempo em que
descrevíamos - o potencial cognitivo de interceptar elementos de diferentes
domínios, em busca de uma integração conceitual que privilegiasse a tríade
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discurso, cognição e cultura e em busca também de uma metodologia que fizesse
executar práticas de análise sustentadas nessa tríade.
Um dos pilares dessa metodologia, como consideramos recorrentemente
em nossas reflexões, corresponde ao uso do texto e da análise textual como
fundamentais na descrição e interpretação do discurso. Se por um lado
consideramos o texto como objeto cultural (implicado na lógica de produção,
circulação e consumo), por outro lado percebemos o texto tanto como uma forma
material de cognição quanto como lugar em que se estabelecem relações sociais,
ideologicamente determinadas.
A análise textual, ancorada em um embasamento lingüístico, por fazer
convergir aqueles três conceitos constituintes da tríade, é um princípio essencial
dentro da metodologia que propomos e guarda tanto na Análise Crítica do
Discurso quanto na Teoria das Mesclagens Conceituais um papel importante em
seus recursos metodológicos. No modelo tridimensional proposto por Fairclough
(2001), a que fazemos jus no corpo de nossa metodologia, o ponto de vista
textual é parte integrante das práticas discursivas e sociais e deve estar presente
em qualquer análise que se queira discursiva. Já na Teoria das Mesclagens
Conceituais, as estruturas lingüísticas e o texto apresentam pistas do que
acontece na mente e nos processos cognitivos mais profundos e podem ser
usados como método nas descrições de processamentos mentais.
Nas práticas de análise desenvolvidas no terceiro capítulo, utilizamos o
conceito de mesclagens conceituais como recurso para uma análise lingüístico-
textual e também cognitiva, posicionando o texto e sua estrutura como objeto de
investigação. Dessa maneira, as mesclagens conceituais, como um modo de
funcionamento da mente e como um pressuposto organizador das informações,
dos conhecimentos de mundo e das crenças culturalmente compartilhadas,
funcionou como um instrumento teórico capaz de responder não só pelos
elementos lingüístico-cognitivos, mas pelas relações fundamentais e fundadoras
da tríade discurso, cognição e cultura.
Na ponte construída entre uma análise do discurso e uma teoria lingüístico-
cognitiva, uma das hipóteses que sustentamos foi justamente como se dá a
passagem entre representações mentais e representações sociais e, por
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conseqüência, entre processamento cognitivo e processamento discursivo. E
ainda, como a cultura joga com essas representações funcionando como
mantenedora de determinadas crenças e como as representações atravessam a
cultura, constituindo-a.
Esse trabalho quis, primordialmente, buscar uma possibilidade de
entendimento da linguagem tanto como processo quanto como produto social,
cultural e cognitivo. O grande desafio de uma proposta dessa natureza é
justamente como equilibrar os conceitos de discurso, cognição e cultura tanto na
descrição dos pressupostos que definem e conceitualizam linguagem quanto na
efetivação de práticas de análises. Estar preso a nichos específicos restringe a
integração e dificulta o acesso contrabalanceado a cada elemento da tríade.
Apostar em um conceito integrado e integrador para a linguagem exige,
inclusive, renúncia de algumas fronteiras fortemente arraigadas em nosso modo
de pensar e em nosso próprio modo de fazer uma ciência da linguagem.
Acreditamos que é na interface entre teorias e abordagens, buscando força na
diversidade de pontos de vista, que se faz possível desenvolver discussões sobre
as afinidades necessárias (e emergentes) entre discurso, cognição e cultura na
compreensão e apreensão da linguagem, como objeto de estudo e como
elemento mais importante (e ordinário) das práticas e das relações humanas.
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