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1 1. O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO E DIREITOS FUNDAMENTAIS 1.1. Estado Democrático de Direito O termo “Estado Democrático de Direito”, conquanto venha sendo largamente utilizado em nossos dias, é pouco compreendido e de difícil conceituação em face das múltiplas facetas que ele encerra. No Estado contemporâneo, em virtude da maximização do papel do poder público, que se encontra presente em praticamente todas áreas das relações humanas, a expressão “Estado Democrático de Direito” ganha uma extensão quase que ilimitada, mas, conseqüente e paradoxalmente, perde muito em compreensão. O fato de esse termo ter sido incluído em nosso atual texto constitucional, no seu primeiro artigo, adjetivando a República Federativa do Brasil, torna obrigatória a sua interpretação, com todas as conseqüências que dela podem e devem advir. O Estado Democrático de Direito, que significa a exigência de reger-se pelo Direito e por normas democráticas, com eleições livres, periódicas e pelo povo bem como o respeito das autoridades públicas aos direitos e garantias fundamentais, proclamado no caput do artigo 1º da Constituição Federal de 1988, adotou, igualmente em seu parágrafo único, o denominado princípio democrático, ao afirmar que “todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”. 1 O termo "Estado democrático de direito" conjuga dois conceitos distintos que, juntos, definem a forma de mecanismos tipicamente assumidoS pelo Estado de inspiração ocidental. Cada um destes termos possui sua própria definição técnica, mas, neste contexto, referem-se especificamente a parâmetros de funcionamento do Estado Ocidental moderno. Em sua origem grega, "democracia" quer dizer "governo do povo". No sistema moderno, no entanto, não é possível que o povo governe propriamente (o que significaria uma democracia direta). Assim, os atos de governo são exercidos por membros do povo ditos "politicamente constituídos", por meio de eleição. No 1 Alexandre de Moraes. Direito Constitucional. 21ª Ed. São Paulo: Jurídico Atlas, 2007. p 125.

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Dissertação mestrado

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1. O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO E DIREITOS

FUNDAMENTAIS

1.1. Estado Democrático de Direito

O termo “Estado Democrático de Direito”, conquanto venha sendo

largamente utilizado em nossos dias, é pouco compreendido e de difícil

conceituação em face das múltiplas facetas que ele encerra. No Estado

contemporâneo, em virtude da maximização do papel do poder público, que se

encontra presente em praticamente todas áreas das relações humanas, a

expressão “Estado Democrático de Direito” ganha uma extensão quase que

ilimitada, mas, conseqüente e paradoxalmente, perde muito em compreensão. O

fato de esse termo ter sido incluído em nosso atual texto constitucional, no seu

primeiro artigo, adjetivando a República Federativa do Brasil, torna obrigatória a

sua interpretação, com todas as conseqüências que dela podem e devem advir.

O Estado Democrático de Direito, que significa a exigência de reger-se pelo

Direito e por normas democráticas, com eleições livres, periódicas e pelo povo

bem como o respeito das autoridades públicas aos direitos e garantias

fundamentais, proclamado no caput do artigo 1º da Constituição Federal de 1988,

adotou, igualmente em seu parágrafo único, o denominado princípio democrático,

ao afirmar que “todo poder emana do povo, que o exerce por meio de

representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”.1

O termo "Estado democrático de direito" conjuga dois conceitos distintos

que, juntos, definem a forma de mecanismos tipicamente assumidoS pelo Estado

de inspiração ocidental. Cada um destes termos possui sua própria definição

técnica, mas, neste contexto, referem-se especificamente a parâmetros de

funcionamento do Estado Ocidental moderno.

Em sua origem grega, "democracia" quer dizer "governo do povo". No

sistema moderno, no entanto, não é possível que o povo governe propriamente (o

que significaria uma democracia direta). Assim, os atos de governo são exercidos

por membros do povo ditos "politicamente constituídos", por meio de eleição. No

1 Alexandre de Moraes. Direito Constitucional. 21ª Ed. São Paulo: Jurídico Atlas, 2007. p 125.

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Estado Democrático Brasileiro, as funções típicas e indelegáveis do Estado são

exercidas por indivíduos eleitos pelo povo para tanto, de acordo com regras pré-

estabelecidas que regerão o pleito eleitoral.

O aspecto do termo "de Direito" refere-se a que tipo de direito exercerá o

papel de limitar o exercício do poder estatal. No Estado democrático de direito,

apenas o direito positivo (isto é, aquele que foi codificado e aprovado pelos órgãos

estatais competentes, como o Poder Legislativo) poderá limitar a ação estatal, e

somente ele poderá ser invocado nos tribunais para garantir o chamado "império

da lei". Todas as outras fontes de direito, como o Direito Canônico ou o Direito

natural, ficam excluídas, a não ser que o direito positivo lhes atribua esta eficácia,

e apenas nos limites estabelecidos pelo último.

Nesse contexto, destaca-se o papel exercido pela Constituição. Nela

delineiam-se os limites e as regras para o exercício do poder estatal (onde se

inscrevem os chamados "Direitos e Garantias fundamentais"), e, a partir dela, e

sempre a tendo como baliza, redige-se o restante do chamado "ordenamento

jurídico", isto é, o conjunto das leis que regem uma sociedade. O Estado

democrático de direito não pode prescindir da existência de uma Constituição.

No entanto, toda a conceitualização não deverá restringir o elemento

democrático à limitação do poder estatal e a democracia ao instituto da

representação política. Esta, em virtude de seus inúmeros defeitos, não pode

fundamentar o Estado Democrático de Direito, pelo menos não como ele deveria

ser, já que o princípio democrático não se reduz a um método de escolha dos

governantes pelos governados.

O Estado Democrático envolve necessariamente, a soberania popular.

Conforme expõe José Afonso da Silva,

o Estado Democrático se funda no princípio da soberania popular que ‘impõe a participação efetiva e operante do povo na coisa pública, participação que não se exaure, como veremos, na simples formação das instituições representativas, que constituem

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um estágio da evolução do Estado Democrático, mas não o seu completo desenvolvimento. 2

Assim, a substância da soberania popular deve ser representada pela

autêntica, efetiva e legítima participação democrática do povo nos mecanismos de

produção e controle das decisões políticas, em todos os aspectos, funções e

variantes do poder estatal.

Friedrich Müller apregoa que,

a idéia fundamental da democracia é a determinação normativa de um tipo de convívio de um povo pelo mesmo povo. Já que não se pode ter o auto-governo na prática quase inexeqüível, pretende-se ter ao menos a auto-codificação das prescrições vigentes com base na livre competição entre opiniões e interesses, com alternativas manuseáveis e possibilidades eficazes de sancionamento político.3

Para José Joaquim Gomes Canotilho,

o esquema racional da estadualidade encontra expressão jurídico–política adequada num sistema político normativamente conformado por uma constituição e democraticamente legitimado. Por outras palavras: o Estado concebe-se hoje como Estado Constitucional Democrático, porque ele é conformado por uma Lei fundamental escrita (= constituição juridicamente constituída das estruturas básicas da justiça) e pressupõe um modelo de legitimação tendencialmente reconduzível à legitimação democrática.4

Entendemos que o Estado Democrático deve ser transformador da

realidade, ultrapassando o aspecto material de concretização de uma vida digna

para o homem. Este Estado age como fomentador da participação pública em

vários seguimentos. O Estado deve sempre ter presente a idéia de que a

democracia implica necessariamente a questão da solução do problema das

condições materiais de existência. Portanto, foi criado para ultrapassar a idéia

utópica de transformação social, assumindo o objetivo da igualdade, a lei aparece

como instrumento de reestruturação social, não devendo atrelar-se a outros fins

como à sanção ou à promoção.

2 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 28ª Ed. Brasil: Malheiros, 2007, p .66. 3 MULLER, Friedrich. Quem é o povo? A questão Fundamental da democracia. Tradução: Peter Naumam, revisão: Paulo Bonavides, São Paulo:Max Limonad, 1998. p. 57. 4 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional, 6ª Ed. Coimbra: Almedina, 1995, p. 43.

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A democracia como realização de valores de convivência humana de

igualdade, liberdade e dignidade da pessoa é conceito mais abrangente do que

“Estado Democrático de Direito” que surgiu como expressão jurídica da

democracia liberal.

Além disso, é certo que o Estado Democrático deve aparecer com a função

de reduzir antíteses econômicas e sociais e isto se torna possível com a devida

aplicação da Constituição Federal (colocada no ápice de uma pirâmide jurídica

escalonada), que representa o interesse da maioria.

Em suma, após essa reflexão inicial podemos elencar os elementos que

julgamos essenciais no Estado Democrático de Direito, sendo o seu fundamento e

principal aspecto a soberania popular: 1 - A necessidade de providenciar

mecanismos de apuração e de efetivação da vontade do povo; 2 – Ser um Estado

Constitucional, ou seja, dotado de uma constituição material legítima, rígida,

emanada da vontade do povo; 3 - A existência de um órgão guardião da

Constituição e dos valores fundamentais da sociedade, que tenha atuação livre e

desimpedida, constitucionalmente garantida; 4 - A existência de um sistema de

garantia dos direitos humanos, em todas as suas expressões; 5 - Realização da

democracia com a conseqüente promoção da justiça social; 6 - Observância do

princípio da igualdade; 7 - existência de órgãos judiciais, livres e independentes,

para a solução dos conflitos entre a sociedade, entre os indivíduos e destes com o

Estado.5

1.1.1 Origem Histórica

A idéia de Estado Democrático tem raízes no séc. XVIII, e está ligado a

idéia de certos valores da dignidade humana, organização e funcionamento do

Estado e a participação popular. No entanto, na antigüidade, o indivíduo tinha

valor relativo; só alguns participavam das decisões, ou seja, apenas os cidadãos,

aqueles que eram homens e tinham bens; ou segundo Aristóteles (384 – 322 a.

C), no seu livro III, de “A Política”, cidadão era aquele que tivesse autoridade

deliberativa ou judiciária, jamais um artesão ou mercenário, isso porque a virtude

5 http://www.senado.gov.br/web/cegraf/ril/Pdf/pdf_167/R167-13.pdf (artigo escrito por Enio Moraes da Silva - Brasília a. 42 n. 167 jul./set. 2005.

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política, que é a sabedoria para mandar e obedecer, só pertence àquele que não

tem necessidade de trabalhar para viver.

Percebe-se que a idéia de povo é restrita a cidadão, não sendo compatível

com a idéia de povo do século XVIII, época em que “...a burguesia,

economicamente poderosa, estava às vésperas de suplantar a monarquia e a

nobreza no domínio do poder político.”6

Na sua origem, o conceito de democracia encontra definição razoavelmente

pacífica na especificação do regime do demos, nome pelo qual eram designadas

as divisões territoriais administrativas na Grécia antiga, de forma que, por

extensão, tal palavra, originada de demokratia, (ou, no grego, δηµοχρατία) passou

a significar poder popular, governo do povo. Como a tal conclusão, podemos

facilmente notar que os conceitos de "poder popular" e de "governo do povo" não

eram exatamente os que se fazem presentes na contemporaneidade, de forma

que pela dificuldade de se conceituar o que seria poder popular - e, por

conseqüência, de se delimitar o governo do povo - o conceito de democracia tem

sofrido os mais diversos significados durante a história.7 Vale destacar a Carta

de João Sem Terra de 1215: um documento medieval bilateral em que o rei se

obriga a respeitar a lei. O objetivo foi reparar os abusos do rei, pois o mesmo não

abria mão de sua soberania, porém, deveria respeitar o Parlamento, eis a origem

fiscalizadora do Parlamento, no controle dos gastos público.

Imperioso trazer à lume a lição de Carl Schmitt, acerca da Magna Charta de

1215, in verbis:

La Magna Carta inglesa de 15 de Julho de 1215, suele designar-se como modelo y origen de las modernas Constituciones liberales. El desarrollo del Derecho político de Inglaterra tomó um curso peculiar, porque los senõres feudales y estamentos de la Edad Media (alta nobleza, caballeros y burguesia inglesa) y su representación (la Cámara de los lordes y la Cámara de los Comunes) pasaron en un proceso lento e insensible a las condiciones propias del Estado moderno...8

6 DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do Estado. 20a ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 124. 7 Ibid., 146. 8 SCHMITT, Carl. Teoria de la Constitución. Madri: Alianza Universidad Textos, 1996, p. 164.

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Dalmo de Abreu Dallari destaca ainda que à base do conceito de Estado

Democrático, está na noção de governo do povo, e que tal locução deriva

etimologicamente do termo democracia. Ainda, faz menção aos três grandes

movimentos político-sociais responsáveis pela condução ao Estado Democrático,

quais seriam: a Revolução Inglesa, com a influência de John Locke e expressão

mais significativa no Bill of Rights de 1689; a Revolução Americana com seus

princípios expressos na Declaração de Independência das treze colônias

americanas em 1776, e a Revolução Francesa, com influência de Rousseau,

dando universalidade aos seus princípios, devidamente expressos na Declaração

dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789.

Com relação à Revolução Inglesa, aludido autor ressalta dois pontos

básicos tinham por objetivo assegurar a proteção dos direitos naturais dos

indivíduos; a intenção de estabelecer limites ao poder absoluto do monarca e a

influência do protestantismo. Quanto à Declaração da Independência, o autor

destaca a garantia de supremacia da vontade do povo, a liberdade de associação

e a possibilidade de manter um permanente controle sobre o governo.

No tocante à Revolução Francesa, afirma ser um movimento consagrador

das aspirações democráticas. Este movimento evidencia a sociedade política que

tem por fim a preservação da liberdade do homem e a inexistência da imposição

de limites que não seja decorrentes de lei (expressão da vontade geral), bem

como o direito dos cidadãos de concorrer, pessoalmente ou através de seus

representantes, para a formação da vontade geral.

Para Jorge Miranda, o aparecimento histórico do Estado reveste caráter

interdisciplinar, e as conclusões resultantes de uma série de indagações parecem

ser necessidade, em toda sociedade humana, de um mínimo de organização

política; necessidade de situar no tempo e espaço a estrutura do estado;

constantes transformações das organizações políticas; diferenças e

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complexidades entres as sociedades e organizações políticas; tradução no âmbito

de idéias de Direito e das regras jurídicas na formação de cada Estado.9

1.1.2. O Surgimento do Estado

De acordo com Dalmo de Abreu Dallari, a origem do Estado Moderno

remonta ao Absolutismo e a idéia de Estado Democrático aparece no século XVIII,

através dos valores fundamentais da pessoa humana, a exigência de organização

e funcionamento do Estado enquanto órgão protetivo daqueles valores. 10

A doutrina diverge sobre as origens e surgimento do Estado. Dalmo de

Abreu Dallari registra que existem três teorias básicas a respeito da época do

aparecimento do Estado. Pela primeira, o Estado, assim como a sociedade,

sempre teria existido, considerando que o Estado seria uma organização social,

dotada de poder e com autoridade para determinar o comportamento de todo o

grupo. Pela segunda, a sociedade humana teria inicialmente existido sem o

Estado, tendo este sido constituído gradual e localmente para atender as

necessidades ou as conveniências dos grupos sociais. E, finalmente, pela terceira

teoria, somente se pode falar em Estado como uma sociedade política dotada de

certas características bem definidas, como conceito histórico concreto, com a idéia

e a prática da soberania, o que somente ocorreu no século XVII, existindo autores

que apontam o ano de 1648, como a data oficial em que o mundo ocidental se

apresenta organizado em Estados.11

Assim se descrevem os princípios que passaram a nortear os Estados,

como exigência e cumprimento da democracia: 1) a supremacia da vontade

popular (a participação popular no governo); 2) a preservação da liberdade (o

poder de fazer tudo o que não incomodasse o próximo e como o poder de dispor

de sua pessoa e de seus bens, sem interferência do Estado; 3) a igualdade de

9 MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional – Tomo I – Preliminares – O Estado de os Sistemas Constitucionais, 6ª Ed. São Paulo:Coimbra, 1997, p. 44. 10 DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do Estado. 20a ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 150. 11 Ibid, p. 51.

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direitos (a proibição de distinções no gozo de direitos, sobretudo por motivos

econômicos ou de discriminação entre classes sociais). 12

Hodiernamente, podemos compreender o Estado como sendo um

agrupamento social politicamente organizado, gerido por objetivos em comum,

obviamente segundo determinadas normas jurídicas em um território certo e

definido, sob a total tutela de um poder soberano, representado por um governo

independente. Assim sendo, a consolidação do Estado surge à medida em que

coexistem interesses similares de uma coletividade e o devido ânimo de colocá-los

em prática.

Consoante o pensamento de Jean Dabin, que expressa a essência

primordial do Estado:

chegou um momento em que os homens sentiram o desejo, vago e indeterminado, de um bem que ultrapassa o seu bem particular e imediato e que ao mesmo tempo fosse capaz de garanti-lo e promovê-lo. Esse bem é o bem comum ou bem público e consiste num regime de ordem, de coordenação de esforços e intercooperação organizada. Por isso o homem se deu conta de que o meio de realizar tal regime era a reunião de todos em um grupo específico, tendo por finalidade o bem público. Assim, a causa primária da sociedade política reside na natureza humana, racional e perfectível. No entanto, a tendência deve tornar-se um ato; é a natureza que impele o homem a instituir a sociedade política, mas foi a vontade do homem que instituiu as diversas sociedades políticas de outrora e de hoje. O instinto natural não era suficiente, foi preciso a arte humana.13

Destarte, conclui-se que os objetivos do Estado são a ordem e a defesa

social, em suma, o bem estar social, o bem público; sendo os seus três elementos

precípuos o povo, o território e o poder político. No dizere de Darcy Azambuja,

"Estado é a organização político-jurídica de uma sociedade para realizar o bem

público, com governo próprio e território determinado”. Dalmo de Abreu Dallari

entende o Estado como sendo "organização jurídica soberana que tem por fim o

bem comum de um povo situado em determinado território". Importante ressaltar

que na correta acepção do termo Estado, mister se faz ressaltar que "o fenômeno

estatal revela-se no elemento pessoal (Estado–Comunidade) como no elemento

poder (Estado-aparelho ou Estado-poder)" nos dizeres de Kildare Carvalho. 12 Ibid, p. 128 13 DABIN, Jean. Doctrine Génerale de l’État, Ed. Sirey, Paris 1939, p.42.

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O conceito de Estado moderno, portanto, assenta-se sobre quatro

elementos básicos: a soberania, o território, o povo e a finalidade. Ele é definido

como a ordem jurídica soberana que tem por fim o bem comum de um povo

situado em determinado território.14

Para os fins de nosso estudo, interessa em especial a questão da soberania

estatal, uma vez que ela é indispensável para a análise do Estado Democrático de

Direito. E essa característica somente se apresenta com relação ao conceito de

Estado moderno. Sérgio Resende de Barros leciona que não houve na prática

antiga a idéia de um poder supremo, soberano, embasado em si e por si mesmo,

sem lei que o vinculasse à base social; ou seja, um poder solutus a legibus. A

idéia de soberania, como marca de uma sociedade política por ela diferenciada, é

moderna. Recuando ao máximo, chega ao fim do medievo. 15

A concepção do Estado moderno vem atrelada ao entendimento de que o

Estado é o único criador do Direito e ele mesmo solucionará os conflitos sociais

por intermédio do Estado-juiz que aplicará as normas positivadas pelo próprio

Estado-legislador. É a monopolização da produção jurídica e sua aplicação por

parte do Estado. É paradoxal que tal sistema jurídico tenha sido preconizado e

efetivamente implementado pelo Estado Liberal, influenciado pelo Iluminismo, uma

vez que o seu pressuposto filosófico é a doutrina dos direitos do homem elaborada

pela escola do direito natural. No entanto, no momento em que se exigiu do

Estado o respeito a tais direitos, deu-se máxima ênfase ao aspecto da legalidade,

concedendo o poder absoluto de produção jurídica ao legislador estatal.16

José Joaquim Gomes Canotilho entende que:

o Estado deve entender-se como conceito historicamente concreto e como modelo de domínio político típico da modernidade. Se pretendêssemos caracterizar esta categoria política da modernidade, dir-se-ia que Estado é um sistema processual e dinâmico e não uma essência imutável ou um tipo de domínio político fenomenologicamente originário e metaconstitucional.”17

14Ibid., p. 118. 15 BARROS, Sérgio Resende de. Direitos humanos: paradoxo da civilização. Belo Horizonte: DelRey, 2003, p. 121. 16 Ibid., p. 18. 17 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional, 6ª Ed. Coimbra: Almedina, 1995, p. 43.

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1.1.3. Estado de Direito e seus Fundamentos

Para alcançar uma compreensão do Estado de Direito, não se pode

prescindir uma análise da distinção entre direito natural e direito positivo,

considerando que essa é uma dicotomia estabelecida pelo pensamento jurídico

ocidental, e que influenciou e ainda influencia fortemente as relações sociedade–

Estado e Estado–indivíduo, sendo que não se pode falar da instituição Estado sem

falar no Direito. Dessa divisão teórica resultam vários questionamentos quando se

perquire da relação do Estado com o Direito.

Norberto Bobbio esclarece que a distinção entre direito natural e direito

positivo já havia sido identificada até mesmo na antiguidade, com Platão e

Aristóteles. Este último utilizou-se de dois critérios para chegar a tal diferenciação:

1 - o direito natural é aquele que tem em toda parte a mesma eficácia, enquanto o

direito positivo tem eficácia apenas nas comunidades políticas singulares em que

é posto; 2 - o direito natural prescreve ações cujo valor não depende do juízo que

sobre elas tenha o sujeito, mas existe independentemente do fato de parecerem

boas ou más a outros. Prescreve ações cuja bondade é objetiva. O direito positivo,

ao contrário, é aquele que estabelece ações que, antes de serem reguladas,

podem ser cumpridas indiferentemente de um modo ou de outro, mas uma vez

reguladas pela lei, importa (isto é: é correto e necessário) que sejam

desempenhadas do modo prescrito pela lei. 18

Os filósofos da Idade Média também discorreram sobre o assunto, deixando

assente que existe uma clara distinção entre direito natural e direito positivo, tendo

este a característica de ser posto pelos homens, em contraste com o primeiro que

não é posto por esses, mas por algo (ou alguém) que está além desses, como a

natureza (ou o próprio Deus).

Essa distinção, que perdura até hoje, ganha importância no tocante à

questão do exame do Estado de Direito e, em última análise, do Estado

Democrático de Direito, quando se sabe que o positivismo jurídico reduziu todo o

Direito a direito positivo, afastando o direito natural da categoria do Direito, pois

18 BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico. Tradução e notas de Márcio Pugliesi, Edson Bini, Carlos E. Rodrigues. São Paulo: Ícone, 1995, p. 17.

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essa corrente doutrinária não considera Direito outro que não seja aquele posto

pelo Estado, sendo este o único detentor do poder de estabelecer as normas

jurídicas que irão reger a sociedade.

Por outro lado, quando se fala de Estado de direito no âmbito da doutrina

liberal do Estado, deve-se acrescentar à definição tradicional uma determinação

ulterior: a constitucionalização dos direitos naturais, ou seja, a transformação

desses direitos em direitos juridicamente protegidos, isto é, em verdadeiros

direitos positivos.

Vale acrescentar que Hans Kelsen, o precursor máximo do positivismo

jurídico, defende que o Direito é um sistema de normas jurídicas, postas pelo

Estado, num escalonamento de autoridade legal hierárquica, em que a

Constituição de um Estado se encontra na camada jurídico-positiva mais alta. 19

Portanto, concluímos que o Estado de direito é aquele em que vigora o

chamado "império da lei", porém este termo engloba alguns aspectos significados:

primeiro aspecto é o de que, neste tipo de Estado, as leis são criadas pelo próprio

Estado, através de seus representantes politicamente constituídos; o segundo

aspecto é que, uma vez criadas pelo Estado, as leis passam a serem eficazes, isto

é, aplicáveis, o próprio Estado fica adstrito ao cumprimento das regras e dos

limites por ele mesmo impostos; o terceiro aspecto, que se liga diretamente ao

segundo, é a característica de que, no Estado de direito, o poder estatal é limitado

pela lei, não sendo absoluto, e o controle desta limitação se dá através do acesso

de todos ao Poder Judiciário, que deve possuir autoridade e autonomia para

garantir que as leis existentes cumpram o seu papel de impor regras e limites ao

exercício do poder estatal.

Na origem, o Estado de Direito tinha um conceito tipicamente liberal, daí

falar-se Estado Liberal de Direito, cujas características básicas foram: a) a

submissão ao império da lei, lei esta emanada do Poder Legislativo, composto por

representantes do povo; b) a divisão de poderes, que separe de forma

19 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito, introdução à problemática científica do direito. Tradução de J.

Cretella Júnior e Agnes Cretella. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 103

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independente e harmônica os poderes legislativo, judiciário e executivo; c) um

enunciado de direitos fundamentais.20

Daí a importância do chamado Estado de Direito, pois após os movimentos

liberalistas, o Estado revestiu-se de outras características marcadas

principalmente pela divisão dos poderes, como técnica que assegure a produção

das leis ao Legislativo e a independência e a imparcialidade do Judiciário em face

aos demais poderes e dos interesses particulares de toda sociedade.

Manoel Gonçalves Ferreira Filho, em seu magistério, esclarece que:

a locução Estado de Direito foi cunhada na Alemanha: é o Rechtsstaat. Aparece num livro de Welcker, publicado em 1813, no qual se distinguem três tipos de governo: despotismo, teocracia e Rechtsstaat. Igualmente foi na Alemanha que se desenvolveu, no plano filosófico e teórico, a doutrina do Estado de Direito. Nas pegadas de Kant, Von Mohl e mais tarde Stahl lhe deram a feição definitiva.21

Segundo ensinamentos de José Afonso da Silva:

a superação do liberalismo colocou em debate a questão da sintonia entre o Estado de Direito e a sociedade Democrática. A evolução desvendou sua insuficiência e produziu o conceito de Estado Social de Direito, nem sempre de conteúdo democrático. Chega agora o ‘Estado Democrático de Direito’ que a constituição acolhe no art. 1º como um conceito-chave do regime adotado, tanto quanto o são o conceito de ‘Estado Democrático de Direito’ da Constituição da República Portuguesa (art. 2º) e do ‘Estado Social e Democrático de Direito da Constituição Espanhola’ (art. 10º).22

O conceito de “Estado de Direito” foi ganhando “sinônimos” com o tempo e

muitos desses foram concepções deformadoras. Com a superação do liberalismo,

a expressão Estado de Direito, que inicialmente convertia os súditos em cidadão

livres, tornou-se insuficiente, pois, segundo Carl Schmitt: “Estado de Direito pode

ter tantos significados distintos como a própria palavra ‘Direito’ e designar tantas

organizações quanto as que se aplica a palavra ‘Estado’”. Assim, acrescenta ele,

20 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 28ª Ed. Brasil: Malheiros, 2007, p. 112 21 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Estado de direito e constituição. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 05. 22 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 28ª Ed. Brasil: Malheiros, 2007 p. 113.

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13

há um Estado de Direito feudal, outro burguês, outro nacional, além de outros

conformes com o Direito natural, com o Direito racional e com o Direito histórico. 23

Entendemos, portanto, que o Estado de Direito é sinônimo de Estado de

Justiça, que por sua vez, nada tem a ver com o estado submetido ao poder

judiciário, sendo este apenas um elemento que compõe o Estado de Direito.

Estado submetido ao juiz é Estado cujos atos legislativos, administrativos e

também judiciais ficam sujeitos ao controle jurisdicional no que tange à

legitimidade constitucional e legal

Na concepção jurídica de Hans Kelsen, o conceito de Estado de Direito

também é “deformado”. Para ele, Estado e Direito são conceitos idênticos. Na

medida em que ele confunde Estado e ordem jurídica, todo Estado, para ele, há de

ser Estado de Direito. Como, na sua concepção, só é Direito o Direito positivo,

como norma pura, desvinculada de qualquer conteúdo, tem-se uma idéia

formalista do Estado de Direito ou Estado Formal de Direito que serve também a

interesses ditatoriais, pois, se o Direito acaba se confundindo com o mero

enunciado formal da lei, destituído de qualquer conteúdo, sem compromisso com a

realidade política, social, econômica e ideológica, todo Estado acaba sendo

Estado de Direito.24

Segundo Manoel Gonçalves Ferreira Filho:

os três grandes princípios encontráveis num Estado submetido ao Direito são: o princípio da legalidade, o princípio da igualdade e o princípio da justicialidade. O princípio da legalidade, que contém a afirmação da liberdade do indivíduo como regra geral, seria a fonte única de todas as obrigações dentro de um Estado de Direito. A lei vincula o Poder Executivo, que não pode exigir condutas que não estejam previstas em lei, submete a função do Judiciário, que não pode impor sanção sem que esta esteja definida em lei, e embasa a atuação do Legislativo, que nada pode prescrever senão por meio de uma lei. A igualdade é princípio informador do conceito de lei no Estado de Direito, posto que suas formulações legais devem ser iguais para todos, proibindo o arbítrio, tratando os iguais de forma igual e os desiguais de forma desigual, na medida em que se desigualam. A justicialidade, vista como princípio também, é o controle dos atos do Estado de Direito, que deve conter um procedimento contencioso para decidir os litígios, sejam estes entre

23 Ibid.,. p.113. 24 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Introdução à problemática científica do direito. Tradução de J. Cretella Júnior e Agnes Cretella. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 103, p. 117.

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as autoridades superiores do Estado, ou entre autoridades e particulares, ou, num Estado federal, entre a Federação e um Estado-membro, ou entre Estados-membros etc. 25

Portanto, o reconhecimento e a institucionalização do Estado de Direito

tende a produzir, de forma geral, a eliminação do arbítrio no exercício dos poderes

públicos, a submissão do poder ao império do direito e o reconhecimento de

direitos e garantias fundamentais, que são, em última análise, a materialização de

uma idéia de justiça presente na constituição de um Estado. Por isso, podemos

afirmar que o Estado de direito possui várias dimensões essenciais. A primeira

dimensão essencial é que o Estado de Direito é um Estado subordinado ao direito.

Isso significa, mais concretamente, três coisas: a) o Estado está sujeito ao direito,

em especial a uma Constituição (por isso, que constituição é, segundo José

Joaquim Gomes Canotilho, o estatuto jurídico do político); b) o Estado atua através

do direito; c) o Estado está sujeito a uma idéia de justiça.

As demais dimensões essenciais são, resumidamente, que o Estado de

Direito é um Estado de direitos fundamentais, ou seja, com um conjunto de

normas constitucionais superiores, que obrigam o legislador a respeitá-las,

observando o seu núcleo fundamental, sob pena de nulidade das próprias leis e da

declaração de sua inconstitucionalidade; além disso, deve observar o princípio da

razoabilidade, ou seja, é um Estado de justa medida porque se estrutura em torno

do princípio material normalmente chamado de princípio da proibição de excesso.

Além disso, destacamos que o Estado de Direito é um Estado que estabelece o

princípio da legalidade da administração pública, isto é, um Estado que estabelece

a idéia de subordinação à lei dos titulares dos órgãos, funcionários e agentes do

Estado que responde pelos seus atos, ou seja, é um Estado que civilmente é

responsável por danos incidentes na esfera jurídica dos particulares. O Estado de

Direito é um Estado que garante a via judiciária, ou seja, o acesso ao poder

judiciário no caso de ameaça ou de lesão de direito. Esse princípio é

complementado, entre outros pressupostos, pela garantia de um juízo regular e

independente, pela observância do princípio do contraditório e da ampla defesa,

pela institucionalização do direito de escolher um defensor e pelo reconhecimento

25

FILHO, Manoel Gonçalves. Estado de direito e constituição. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 23.

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15

do cidadão ter a assistência obrigatória de um advogado quando processado pelo

Estado.

Outro ponto fundamental e essencial do Estado de Direito é um Estado

estruturado a partir da divisão de poderes, isto é, do fracionamento do Poder do

Estado e da independência de seus três poderes: Legislativo, Executivo e

Judiciário. Nesse sentido, o Estado de Direito é também, como regra, um Estado

descentralizado, mesmo quando se configura como um Estado unitário.

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16

1.2 Direitos Fundamentais

Direitos fundamentais são os considerados indispensáveis à pessoa

humana, necessários para assegurar a todos uma existência digna, livre e igual; a

definição desses direitos denominados “fundamentais” envolve diferentes

aspectos. Numa acepção material, podemos afirmar que eles dizem respeito aos

direitos básicos que o indivíduo, natural e universalmente, possui em face do

Estado; em acepção formal, os direitos são considerados fundamentais quando o

direito vigente em um país assim os qualifica, normalmente estabelecendo certas

garantias para que estes direitos sejam respeitados por todos.26

José Joaquim Gomes Canotilho afirma que:

“tal como são um elemento constitutivo do Estado de Direito, os direitos fundamentais são um elemento básico para a realização do princípio democrático. Mais concretamente: os direitos fundamentais têm uma função democrática dado que o exercício democrático do poder: 1 - significa a contribuição de todos os cidadãos para o seu exercício (princípio direito de igualdade e da participação política); 2 – implica participação livre assente em importantes garantias para a liberdade desse exercício (o direito de associação, de formação de partidos, de liberdade de expressão, são, por ex., direitos constitutivos da próprio princípio democrático; 3 – envolve a abertura do processo político no sentido da criação de direitos sociais, econômicos e culturais, constitutivo de uma democracia econômica, social e cultural. Realce-se esta dinâmica dialética entre os direitos fundamentais e o princípio democrático. Ao pressupor a participação igual dos cidadãos, o princípio democrático entrelaça-se com os direitos subjetivos de participação e associação, que se tornam, assim, fundamentos funcionais da democracia.27

Aludido autor entende ainda que os direitos fundamentais, como direitos

subjetivos de liberdade, criam um espaço pessoal contra o exercício de poder

antidemocrático, e como direitos legitimadores de um domínio democrático

asseguram o exercício da democracia mediante a exigência de garantias de

organização e de processos com transparência democrática (princípio maioritário,

publicidade crítica, direito eleitoral). Por fim, como direitos subjetivos a prestação

sociais, econômicas e culturais, os direitos fundamentais constituem dimensões

26 PINHO, Rodrigo César Rebello. Teoria Geral da Constituição e Direitos Fundamentais. 2a edição, Saraiva, São Paulo, 2005, p. 60. 27 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional, 6ª Ed. Coimbra: Almedina, 1995, p. 430.

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17

impositivas para o preenchimento intrínseco, através do legislador democrático,

desses direitos.28

1.2.1. Evolução Histórica e Aspectos Conceituais

A história dos direitos fundamentais está diretamente ligada ao

aparecimento do constitucionalismo, no final do século XVIII, que, entretanto,

herdou da idade média as idéias de contenção do poder do Estado em favor do

cidadão, sendo exemplo mais relevante neste sentido a célebre Magna Carta,

escrita na Inglaterra, em 1215, pela qual o Rei João Sem Terra reconhecia alguns

direitos dos nobres, limitando o poder do monarca.

Numa breve abordagem histórica da evolução dos direitos fundamentais

encontraremos traços gerais das primeiras declarações de direitos e nas cartas de

franquia da Idade Média, que continham enumerações de direitos.

Desde a Revolução de 1789, as declarações de direitos são um dos traços

do Constitucionalismo, como observa Manoel Gonçalves Ferreira Filho:

a opressão absolutista foi a causa próxima do surgimento das Declarações. Destas a primeira foi a do Estado da Virgínia, votada em junho de 1776, que procurava estabelecer os direitos fundamentais do povo norte-americano, tais como a liberdade, a igualdade, eleição de representantes etc., servindo de modelo para as demais na América do Norte embora a mais conhecida e influente seja a dos "Direitos do Homem e do Cidadão", editada em 1789 pela Revolução Francesa. 29

Com a Revolução Francesa, em 1789, se acentuaram os movimentos e

documentos escritos que buscavam garantir aos cidadãos os seus direitos

elementares em face da atuação do poder público. Como dito, um dos

documentos mais conhecidos neste sentido foi a denominada Declaração dos

Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, produto daquela revolução ocorrida

em território francês. Assim, mister se faz ressaltar que no século XVIII foram

feitas conquistas substanciais e definitivas, contudo o surgimento das liberdades

28Ibid., p. 431. 29 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalvez. Estado de direito e constituição. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 281.

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18

públicas tem como ponto de referência duas fontes primordiais: o pensamento

iluminista da França e a Independência Americana.

Em 1948, logo após a 2ª Guerra Mundial, a Organização das Nações

Unidas fazia editar a Declaração Universal dos Direitos do Homem, estendendo

para praticamente todo o mundo o respeito e a proteção aos direitos fundamentais

do ser humano.

A Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948, preocupou-se,

fundamentalmente, com quatro ordens de direitos individuais, conforme assevera

Celso Ribeiro Bastos: "Logo no início, são proclamados os direitos pessoais do

indivíduo: direito à vida, à liberdade e à segurança. Num segundo grupo

encontram-se expostos os direitos do indivíduo em face das coletividades: direito à

nacionalidade, direito de asilo para todo aquele perseguido (salvo os casos de

crime de direito comum), direito de livre circulação e de residência, tanto no interior

como no exterior e, finalmente, direito de propriedade. Num outro grupo são

tratadas as liberdades públicas e os direitos públicos: liberdade de pensamento,

de consciência e religião, de opinião e de expressão, de reunião e de associação,

princípio na direção dos negócios públicos. Num quarto grupo figuram os direitos

econômicos e sociais: direito ao trabalho, à sindicalização, ao repouso e à

educação".30

Para José Joaquim Gomes Canotilho, as expressões ‘direitos do homem’ e

‘direitos fundamentais’ são freqüentemente utilizadas como sinônimas. Segundo a

sua origem e significado poderíamos distingui-las da seguinte maneira: direitos do

homem são direitos válidos para todos os povos e em todos os tempos (dimensão

jusnaturalista-universalista); direitos fundamentais são os direitos do homem,

jurídico-institucionalmente garantidos e limitados espaço-temporalmente.

Sem dúvida que a causa principal do reconhecimento de direitos naturais e

intangíveis em favor do indivíduo é de ordem filosófico-religiosa. Uma grande

contribuição é tributada ao Cristianismo, com a idéia de que cada pessoa é criada

à imagem e semelhança de Deus; portanto, a igualdade fundamental natural entre

todos os homens.

30 BASTOS, Celso Ribeiro. A Era dos Direitos. 10 ed., Rio de Janeiro: Campus, 1992, p. 34.

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19

Norberto Bobbio afirma que:

a Declaração Universal representa a consciência histórica que a humanidade tem dos próprios valores fundamentais na segunda metade do século XX. É uma síntese do passado e uma inspiração para o futuro: mas suas tábuas não foram gravadas de uma vez para sempre.31

Paulo Bonavides, discorrendo sobre a importância das declarações dos

direitos do homem e enaltecendo aquela nascida na França, alega que:

Constatou-se então com irrecusável veracidade que as declarações antecedentes de ingleses e americanos podiam talvez ganhar em concretude, mas perdiam em espaço de abrangência, porquanto se dirigiam a uma camada social privilegiada (os barões feudais), quando muito a um povo ou a uma sociedade que se libertava politicamente, conforme era o caso das antigas colônias americanas, ao passo que a Declaração francesa de 1789 tinha por destinatário o gênero humano. Por isso mesmo, e pelas condições da época, foi a mais abstrata de todas as formulações solenes já feitas acerca da liberdade. O teor de universalidade da Declaração recebeu, aliás, essa justificativa lapidar de Boutmy: Foi para ensinar o mundo que os franceses escreveram; foi para o proveito e comodidade de seus concidadãos que os americanos redigiram suas Declarações. 32

Assim, podemos afirmar que os direitos fundamentais são o resultado de

um longo processo histórico, de uma lenta evolução. Eles não nasceram em uma

data específica e nem foram engendrados em um único país, embora alguns

momentos da história e certos Estados possam ser mencionados como relevantes

para seu surgimento e fortalecimento.

Em verdade, porém, como já mencionado, esses direitos do ser humano

deitam suas raízes mais longínquas no cristianismo, que contribuiu enormemente

para que o homem fosse visto e tratado de forma isonômica, uma vez que a

doutrina cristã prega que o homem foi criado à imagem e semelhança de Deus,

valorizando assim a criação divina e permitindo-lhe que adquirisse respeito e fosse

tratado de forma digna.

Nessa evolução histórica, surgiram várias declarações de direitos do

homem, como as já mencionadas Magna Charta Libertatum (1215), a Declaração

31 BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. 10 ed., Rio de Janeiro: Campus, 1992, p. 34 32 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 18ª Ed. Brasil: Malheiros, 2006, p.571.

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americana (1776), a francesa (1789), e a Declaração da ONU (1948), que,

certamente, influenciaram o surgimento das proteções jurídicas dos direitos

fundamentais em outros países.

Para José Afonso da Silva, Direitos Fundamentais são "situações jurídicas,

objetivas e subjetivas, definidas no direito positivo, em prol da dignidade,

igualdade e liberdade da pessoa humana". Melhor dizendo: "São direitos

constitucionais na medida em que se inserem no texto de uma constituição ou

mesmo constem de simples declaração solenemente estabelecida pelo poder

constituinte”. São direitos que nascem e se fundamentam, portanto, da soberania

popular. Eis algumas características dos Direitos Fundamentais: 33

(1) Historicidade. São históricos como qualquer direito. Nascem, modificam-se e desaparecem. (...); (2) Inalienabilidade. São direitos intransferíveis, inegociáveis, porque não são de conteúdo econômico patrimonial. Se a ordem constitucional os confere a todos, deles não se pode desfazer, porque são indisponíveis; (3) Imprescritibilidade. (...) Vale dizer, nunca deixam de ser exigíveis. Pois prescrição é um instituto jurídico que somente atinge os direitos de caráter patrimonial, não a exigibilidade dos direitos personalíssimos, ainda que não individualistas, como é o caso; (4) Irrenunciabilidade. Não se renunciam direitos fundamentais. Alguns deles podem até não ser exercidos, pode-se deixar de exercê-los, mas não se admite que sejam renunciados.34

No Brasil, face a nova concepção acerca dos direitos fundamentais,

anteriormente mencionada, foi também incorporada às Constituições Brasileiras,

de modo que, dentro do direito constitucional positivo, a Constituição elenca os

princípios fundamentais da República Federativa do Brasil. A primeira

Constituição, diz Manoel Gonçalves Ferreira Filho, a adotar, em seu texto, essa

inspiração foi da de 1934, no que foi seguida pelas posteriores. As anteriores –

1824 e 1891 – como era de se esperar, manifestavam em seu texto o apego à

concepção individualista dos direitos fundamentais.35

33 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 27ª. Ed., ver. e atual.- São Paulo: Malheiros, 2006, p. 183. 34 Ibid., p. 185. 35 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de Direito Constitucional. 25 ed., São Paulo: Saraiva, 2000, p. 285.

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Vale mencionar que a Constituição de 1988 classifica dos Direitos

Fundamentais em cinco grupos: Direitos Individuais; Coletivos; Sociais; à

Nacionalidade e Políticos.

Os direitos fundamentais são as bússolas das Constituições; não há

constitucionalismo sem direitos fundamentais. Afirma Paulo Bonavides explicando

que:

a pior das inconstitucionalidades não deriva, porém da inconstitucionalidade formal, mas da inconstitucionalidade material, deveras contumaz nos países em desenvolvimento ou subdesenvolvidos onde as estruturas constitucionais, habitualmente instáveis e movediças, são vulneráveis aos reflexos que os fatores econômicos, políticos e financeiros que sobre ela se projetam. 36

Não resta dúvida de que à margem da teorização, no âmbito exclusivo da

realidade de nosso tempo, os obstáculos para a concretização dos direitos

fundamentais e as ameaças de que poderão tornar letais à liberdade enquanto

direito fundamental, vem ganhando espaço e força gradativamente.

Em rigor, diante dos novos perfis empresariais do sistema capitalista, das

ofensas ao meio ambiente, da expansão incontrolada de meios informáticos e,

principalmente, da mídia posta a serviço do Estado e das cúpulas hegemônicas da

economia, tais ameaças tendem a se tornar cada vez mais sérias e delicadas,

obstaculizando a sobredita concretização dos direitos fundamentais.

Portanto, podemos concluir que os Direitos Fundamentais estão inseridos

dentro daquilo que o Constitucionalismo denomina de princípios constitucionais

fundamentais, que são os princípios que guardam os valores fundamentais da

Ordem Jurídica. Sem eles, a Constituição nada mais seria do que um aglomerado

de normas que somente teriam em comum o fato de estarem inseridas num

mesmo texto jurídico; de modo que, onde não existir Constituição não haverá

também direitos fundamentais.

36 BONAVIDES, Paulo Bonvides. Curso de Direito Constitucional. 18ª Ed. Brasil: Malheiros, 2006, p. 600.

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1.2.2 Classificação dos Direitos Fundamentais

Direitos fundamentais, como já dissemos, em sua acepção formal, são

aqueles direitos básicos do indivíduo e do cidadão, reconhecidos pelo direito

positivo do Estado, que exige deste uma abstenção ou uma atuação no sentido de

garanti-los. No Brasil, essa expressão engloba vários direitos, tais como: os

individuais, os coletivos, os difusos, os sociais, os nacionais e os políticos.

No entanto, os direitos fundamentais podem ser estudados e concebidos

das mais diferentes maneiras. Dentre essas formas, podemos analisar os referidos

direitos dividindo-os em dimensões sob a forma de gerações, como o faz Paulo

Bonavides, Norberto Bobbio e outros doutrinadores.

A primeira geração de direitos dominou o século XIX, e é composta dos

direitos de liberdade, que correspondem aos direitos civis e políticos. Tendo como

titular o indivíduo, os direitos de primeira geração são oponíveis ao Estado, sendo

traduzidos como faculdades ou atributos da pessoa humana, ostentando uma

subjetividade que é seu traço marcante. 37

A segunda geração de direitos, da mesma forma que a primeira, foi

inicialmente objeto de formulação especulativa nos campos político e filosófico, e

possuíam grande cunho ideológico.Assim como os de primeira geração

dominaram o século XIX, pois tiveram seu nascedouro nas reflexões ideológicas e

no pensamento antiliberal desse século.38

Cingidos ao princípio da igualdade – sendo esse a razão de ser daqueles –

os direitos de segunda geração são considerados como sendo os direitos sociais,

culturais, coletivos e econômicos, tendo sido inseridos nas constituições das

diversas formas de Estados sociais, portanto dispersos nos textos legais.

Quanto a esses direitos de segunda geração, salienta Paulo Bonavides, in

verbis:

atravessaram, a seguir uma crise de observância e execução, cujo fim parece estar perto, desde que recentes constituições, inclusive a

37 Ibid, p. 517. 38 Ibid, p. 518.

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do Brasil, formularam o preceito da aplicabilidade imediata dos direitos fundamentais. De tal sorte, os direitos da segunda geração tendem a tornar-se tão justificáveis quanto os da primeira; pelo menos esta é a regra que já não poderá ser descumprida ou ter sua eficácia recusada com aquela facilidade de argumentação arrimada no caráter programático da norma.

Os direitos de terceira geração (fraternidade ou solidariedade) são

identificados como sendo o direito ao desenvolvimento, o direito à paz, o direito ao

meio ambiente, o direito de propriedade sobre o patrimônio comum da

humanidade e o direito de comunicação. 39

Tecendo comentários sobre a terceira geração de direitos, Norberto Bobbio,

comenta que para Celso Lafer, os direitos de terceira geração são direitos cujos

sujeitos não são os indivíduos, mas sim, os grupos de indivíduos, grupos humanos

como a família, o povo, a nação e a própria humanidade.40

Lançadas as bases por Paulo Bonavides, tem-se que a "globalização

política na esfera da normatividade jurídica introduz os direitos de quarta geração,

que, aliás, correspondem à derradeira fase de institucionalização do Estado

social".41

Segundo ele, os direitos da quarta geração consistem no direito à

democracia, direito à informação e o direito ao pluralismo. Deles depende a

materialização da sociedade aberta do futuro, em sua dimensão de máxima

universalidade, para a qual parece o mundo quedar-se no plano de todas as

afinidades e relações de coexistência.

Enquanto direito de quarta geração, a democracia positivada há de ser,

necessariamente, uma democracia direta, que se torna a cada dia mais possível,

graças aos avanços tecnológicos dos meios de comunicação, e sustentada

legitimamente pela informação correta e aberturas pluralistas do sistema. É de se

lembrar, também, que deve ser uma democracia isenta, livre das contaminações,

vícios e perversões da mórbida mídia manipuladora.

39 Ibid, nota 10, p. 518. 40BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. 10 ed., Rio de Janeiro: Campus, 1992, p. 13, nota 11. 41 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 18ª Ed. Brasil: Malheiros, 2006, p. 524-256.

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24

Assim, podemos dizer que os direitos da segunda, terceira e quarta

geração, além de dispersos em todo texto legal jurídico, não se interpretam, mas

sim, concretizam-se. E é no seio dessa materialização, dessa solidificação, que se

encontra o futuro da globalização política, o início de sua legitimidade e a força

que funde os seus valores de libertação. Enfim, conforme enfatiza Paulo

Bonavides, "os direitos da quarta geração compendiam o futuro da cidadania e o

porvir da liberdade de todos os povos. Tão-somente com eles será legítima e

possível a globalização política".42

Essas gerações, numa primeira análise, representariam a conquista pela

humanidade de três espécies de direitos fundamentais, amparada nos ideais

divulgados especialmente na Revolução Francesa, os quais se resumiam no lema

“liberdade, igualdade e fraternidade”. Coincidentemente, cada uma dessas

expressões representaria uma geração de direitos a ser conquistada.

Portanto, podemos concluir em breve resumo que os direitos fundamentais

de primeira geração corresponde àqueles direitos básicos dos indivíduos

relacionados a sua liberdade, considerada em seus vários aspectos, buscando

também controlar e limitar os desmandos do governante, de modo que este

respeite as liberdades individuais da pessoa humana. A segunda geração, por sua

vez, fundada na idéia da igualdade, significa uma exigência ao poder público no

sentido de que este atue em favor do cidadão, cobrando uma prestação positiva

do Estado aos chamados direitos sociais, direitos não mais considerados

individualmente, mas sim de caráter econômico e social.

E, ainda, a terceira geração, que corresponde a fraternidade, que

representa a evolução dos direitos fundamentais para alcançar e proteger aqueles

direitos decorrentes de uma sociedade já modernamente organizada, que se

encontra envolvida em relações de diversas naturezas, especialmente aquelas

relativas à industrialização e densa urbanização; assim, podemos mencionar: o

direito ao desenvolvimento, o direito à paz, o direito ao meio ambiente

ecologicamente equilibrado, o direito à comunicação, os direitos dos consumidores

e vários outros direitos especialmente aqueles relacionados a grupos de pessoas

42Ibid. p. 526.

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mais vulneráveis (a criança, o idoso, o deficiente físico, etc). Por derradeiro, uma

quarta geração de direitos fundamentais, identificada por vários autores, que

decorreria da atual globalização desses direitos, tais como a democracia, o direito

à informação e ao pluralismo.

Paulo Bonavides esclarece que:

via de regra, todo direito fundamental concreto demanda, para sua interpretação, o exame dos seguintes aspectos: o aspecto objetivo-institucional, por exemplo, no caso da Família; o da prestação estatal, haja vista o direito de acesso à cultura: o direito fundamental à prestação jurisdicional, e, finalmente o aspecto da vertente subjetiva que opera no caso de liberdade religiosa, unida, porém, ao status corporativus, como exemplificado pela igreja e comunidades religiosas.43

Com igual energia e clareza elucidativa, da gênese hermenêutica, dos

direitos fundamentais na sede de sua teorização, arremata ele:

É um processo ordinário no Estado constitucional o nascimento e a morte das teorias dos direitos fundamentais. O que deve permanecer é a idéia da proteção pessoal. E todas as teorias dos direitos fundamentais devem colocar-se a serviço da mesma.

Com efeito, tem razão o constitucionalista: as teorias dos direitos

fundamentais nascem e morrem com os regimes políticos, com as ideologias, com

os teoristas dos Estado, com os filósofos do poder e com os pensadores políticos.

Paulo Bonavides conclui afirmando que,

as teorias modernas e contemporâneas, não importam a sua diversidade, só terão acolhida no constitucionalismo do Estado democrático se tiverem por elemento primário e base de legitimação a liberdade nas quatro dimensões que a dogmática evolutiva daqueles direitos ostenta, e que já foram referidas também sob a designação de direitos de quatro gerações, isto é, direitos individuais, sociais, do desenvolvimento, da paz e do meio ambiente e, de último, despontando no horizonte social e político, os direitos da quarta geração, a saber, a democracia, o pluralismo e a informação. 44

43 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 18ª Ed. Brasil: Malheiros, 2006, p.598. 44 Ibid, p.599.

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26

2. O DEVIDO PROCESSO LEGAL E OS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS

DO PROCESSO CIVIL

A norma contida no enunciado do art. 5º, LIV, da Constituição Federal é um

princípio porque não descreve um comportamento, mas sim a realização de um

fim. Isso não significa que a norma não prescreva comportamentos, mas apenas

que tais comportamentos (obrigatórios justamente por serem necessários à

realização do fim) não estão descritos no enunciado, como ocorre com as regras.

O princípio do devido processo legal está relacionado à idéia de controle do

poder estatal. O Estado pode, através de seus órgãos, a fim de realizar os fins

públicos, impor restrições aos bens individuais mais relevantes. No entanto, não

pode fazê-lo arbitrariamente. O escopo do princípio estudado é reduzir o risco de

ingerências indevidas nos bens tutelados, através da adoção de procedimentos

adequados. Ou ainda, garantir que a prolação de determinada decisão judicial ou

administrativa seja precedida de ritos procedimentais assecuratórios de direitos

das partes litigantes. 45

Ao devido processo legal é atualmente atribuída grande responsabilidade

por ser um princípio fundamental, ou seja, sobre ele repousam todos os demais

princípios constitucionais, ou seja, é um super princípio.

Nelson Nery Júnior, Paulo Roberto Dantas de Souza Leão, José Rogério

Cruz e Tucci, Cândido Rangel Dinamarco e Paulo Rangel, afirmam que no devido

processo legal estariam contidos todos os outros princípios processuais, como o

da isonomia, do juiz natural, da inafastabilidade da jurisdição, da proibição da

prova ilícita, da publicidade dos atos processuais, do duplo grau de jurisdição e da

motivação das decisões judiciais. Com muita precisão, Cristina Reindolff da Motta

afirma que "a todo momento que se fizer análise ou reflexão acerca de algum

princípio processual constitucional, com certeza poder-se-á identificar nuances do

Princípio do Devido Processo Legal, e vice-versa". 46

45 ÁVILA, Humberto. Fundamentos do Estado de Direito. São Paulo: Ed. Malheiros, 2005, p. 63/64. 46 JÚNIOR, Humberto Theodoro. A garantia fundamental do devido processo legal e o exercício do poder de cautela no Direito Processual Civil. Revista dos Tribunais, São Paulo, 1991. p. 11.

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27

Nota-se uma critica subliminar da doutrina à expressa inserção desse

princípio no texto constitucional. Tal crítica não é no sentido de que não fosse ela

necessária ou o princípio não a merecesse, mas da redundância que decorreria da

referência expressa ao devido processo legal após elencado todos os princípios e

direitos processuais constitucionais. Entretanto, países que já tiveram o dissabor

de passar por ditaduras e golpes militares, como o nosso, sabem da importância

da Constituição conter explicitamente as garantias fundamentais derivadas do

processo legal. Trazido praticamente ao final do rol, o devido processo legal tem

por objetivo enfeixar as demais garantias, não como uma redundância, mas como

um inabalável sustentáculo.

O devido processo legal não tem uma definição estanque, fixa ou muito

menos, perene. Isso permite a sua mutabilidade, adaptação gradual, e,

principalmente, evolução, de acordo com a demanda da sociedade.

Luiz Rodrigues Wambier menciona que:

Arturo Hoyos entende que o princípio do devido processo legal está inserido no contexto, mais amplo, das garantias constitucionais do processo, e que somente mediante a existência de normas processuais, justas, que proporcionem a justeza do próprio processo, é que se conseguirá a manutenção de uma sociedade sob o império do Direito. 47

O devido processo legal, foi concebido e conceituado durante muito tempo

como amparador ao direito processual, buscando uma adequação do processo à

ritualística prevista, praticamente confundindo-se ao princípio da legalidade.

2.1. Antecedentes Históricos

A garantia constitucional do devido processo legal prescinde da história do

homem pela busca de sua liberdade, ou seja, libertar-se da servidão que lhe foi

imposta pelo próprio semelhante; revela, sobretudo, a luta pela contenção do

poder. 48

47 BOLQUE, Fernando César. A efetividade dos direitos fundamentais (art. 5º da Constituição Federal) e o princípio da razoabilidade das leis: a atuação do Ministério Público. Disponível na Internet: Acesso em 22 ago 2002. 48 SILVEIRA, Paulo Fernando. Devido processo legal – Due process of Law, Belo Horizonte: Del Rey, 1996. p. 15.

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28

Qualquer abordagem que se pretenda fazer no tocante à garantia do devido

processo legal deve iniciar-se pela análise do panorama político e social da

Inglaterra medial, culminando com a outorga da Magna Carta do Rei João Sem

Terra em 1215.

Porém, nos primórdios, vivia o homem em regime tribal, com total liberdade

e comunhão de patrimônio, restringidos apenas pelo interesse de sobrevivência do

grupo. Após a criação do Estado, os séculos vieram demonstrar que o homem

havia perdido sua liberdade, quase que total, porque o detentor do poder passou a

utilizá-lo, de modo geral, em proveito próprio, ignorando o interesse do povo,

chegando Luís XIV a dizer: "L’État c’ est moi" (O Estado sou eu). 49

Todavia, a saga pela liberdade nunca foi abandonada, pois, para o homem

constitui o seu mais precioso bem, sendo o modo natural de manifestação da vida,

da inteligência, da criatividade, das quais decorrem, inelutavelmente, a indústria e

o progresso, enfim, a civilização. O homem nasceu para ser livre, sujeitando-se ao

mínimo de restrições necessárias à realização do bem comum. 50

Com exatidão Paulo Fernando Silveira nos mostra que:

a lição que se extrai é que as ditaduras e impérios que se apoiaram em ordem absoluta, individual do tirano ou do grupo dominante, contrariando a natureza das coisas, por mais poderosos que tenham sido, entraram em colapso, como registra a história. Apenas o governo democrático, que tem o povo como base, com suas múltiplas diversidades individuais e diferentes anseios, pode desenvolver-se serenamente, administrando a conjuntura variável, pois, ainda que cometa erros, serão, por certo, reparáveis.51

No Direito Inglês a garantia do devido processo legal surgiu no reinado de

John, chamado de Sem-Terra, cujo reinado usurpou de seu irmão Ricardo

Coração de Leão que morreu em virtude de um ferimento de flecha recebido em

uma batalha, como dito.

Paulo Fernando Silveira nos ensina que:

49 Ibid, p.15. 50 Ibid, p.16. 51 Ibid, p.16.

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João Sem-Terra ao assumir a coroa passou a exigir elevados tributos e fez outras imposições decorrentes de sua tirania, o que levou os barões a se insurgirem: ‘Os desastres, cincas e arbitrariedades do novo governo foram tão assoberbantes, que a nação, sentindo-lhe os efeitos envilecedores, se indispôs, e por seus representantes tradicionais reagiu. Foram inúteis as obsecrações. A reação era instintiva, generalizada; e isso, por motivo de si mesmo explícito: tão anárquico fora o reinado de João, que se lhe atribuía outrora, como ainda nos nossos dias se repete, a decadência; postergou regras jurídicas sãs de governo; descurou dos interesses do reino; e, a atuar sobre tudo, desservindo a nobres e a humildes, ameaçava a desnervar a energia nacional, que se revoltou. 52

Assim, em 15/06/1215 John foi obrigado a concordar apondo seu selo real,

com os termos da declaração de direitos, que lhe foi apresentada pelos barões, a

qual ficou conhecida como Magna Carta, ou Great Charter, da qual ainda existem

preservados quatro exemplares originais. Por esse documento, o Rei John jurou

respeitar os direitos, franquias e imunidades que ali foram outorgados, como

salvaguarda a liberdade dos insurretos, entre eles a cláusula do devido processo

legal (due process of law). Destaca-se que a Magna Carta (1215) evidenciou pela

primeira vez, de modo inequívoco, que nenhuma pessoa, por mais poderosa que

fosse, estaria acima da lei, ao assegurar, em seu § 39, com as alterações da Carta

de 1225, com regra absoluta a ser observada, o devido processo legal: 51

Nenhum homem livre será detido ou sujeito a prisão, ou privado dos seus direitos ou seus bens, ou declarado fora da lei, ou exilado, ou reduzido em seu status de qualquer outra forma, nem procederemos nem mandaremos proceder contra ele senão mediante um julgamento legal pelos seus pares ou pelo costume da terra.

Cremos que a função primeira deste documento foi sem dúvida limitar o

poder real, inibindo as tiranias e manobras de João Sem Terra, e, por

conseqüência, garantia aos senhores feudais certos direitos e prerrogativas antes

nunca concedidas.

Portanto, pela primeira vez na história, de forma muito singela, instituiu-se o

devido processo legal que constitui a essência da liberdade individual em face da

lei, ao afirmar que ninguém perderá a vida ou a liberdade, ou será despojado de

52 SILVEIRA, Paulo Fernando. Op. p. 21 apud Pontes de Miranda. História e prática do habeas corpus. 7. Ed., Rio de Janeiro: Borsoi, 1972, p. 11.

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seus direitos ou bens, salvo pelo julgamento de seu pares, de acordo com a lei da

terra. 53

O autor Paulo Fernando Silveira, aduz ainda que:

qualquer pretensão de conceituar o devido processo legal deverá levar em consideração sua origem, que remonta, aos reinados de Henry I (1100/11350 e Henry II (1154/1189), culminando com a assinatura da Magna Carta pelo Rei João Sem Terra – (Jonh Lackland (1199/1216), que sucedeu ao seu irmão Ricardo Coração de Leão-Richard the Lion Heart (1189/1199)".54

Assim, o primeiro ordenamento que teria tratado desse princípio foi a

Magna Carta do rei John Lackland (João "Sem-Terra"), de 15 de junho de 1215,

quando o seu art. 39 se referiu a legem terrae, termo posteriormente traduzido

para a língua inglesa como law of the land, sem, contudo, mencionar a expressão

que hoje conhecemos, due process of law. 55

No Direito Americano a origem o devido processo legal surgiu por meio de

dissidentes protestantes ingleses, que, em fuga, aportaram nas praias americanas

da Virgínia em 1607, trazendo consigo os fundamentos da common law, entre os

quais o princípio do devido processo legal.

Em 1354, ainda na Inglaterra do rei Eduardo III, no conhecido Statute of

Westminster of the Liberties of London, por um legislador desconhecido, foi

utilizada a expressão definitiva e, de forma mais importante, incorporado aquele

texto aos dispositivos da Common Law. Há de se admitir, no entanto, que durante

toda essa época, o instituto era meramente formal, se utilização e sem expressão. 56

53 SILVEIRA, Paulo Fernando. Devido processo legal – Due process of Law, Belo Horizonte: Del Rey, 1996p. 22. 54SILVEIRA, Paulo Fernando. Op. p. 21 apud Pontes de Miranda, História e prática do habeas corpus. 7. Ed., Rio de Janeiro: Borsoi, 1972, p. 79. 55 AGRA, Walber de Moura. Manual de Direito Constitucional. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 79. 56 "None shall be condemned without trial. Also, that no man, of what estate or condition that he be, shall be put out of land or tenement, nor taken or imprisoned, nor disinherited, nor put to death, without being brought to answer by due process of law". JÚNIOR, Nelson Nery. Princípios do processo civil na Constituição Federal. 7. ed. rev e atual com as Leis 1-0.352/2001 e 10.358/2001 – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002. pg. 33. nota 6.

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Daí em diante, as garantias outorgadas a contragosto por João Sem Terra –

morto aos 10 de outubro de 1216, firmaram-se como um símbolo da liberdade e do

desenvolvimento do povo inglês, influenciando o resto do mundo, principalmente

as colônias da América do Norte. A própria “magna charta”, como aponta Jorge

Miranda, foi confirmada seis vezes por Henrique III, três vezes por Eduardo I,

catorze vezes por Eduardo III, seis vezes por Ricardo II, seis vezes por Henrique

IV, uma vez por Henrique V e uma vez por Henrique VI.

A Constituição dos Estados Unidos da América, onde muito se desenvolveu

o devido processo legal, não trata originalmente do instituto, sendo abordado

explicitamente nas suas emendas, na 5ª e na 14ª Emenda. Na primeira emenda

referida, a cláusula due process of law apareceu pela primeira vez ao lado do

trinômio "vida, liberdade e propriedade" e, na segunda, sofreu grande

transformação-evolução, passou a significar também a "igualdade na lei", e não só

"perante a lei", além de marcar a sua utilização efetiva. Tais inserções deram-se

pela tendência de acompanhar a evolução das Constituições de alguns Estados,

como Maryland, Pensilvânia e Massachusetts, que já contavam com o a garantia

em testilha, pois, por sua vez, acompanhavam as Declarações de Direitos das

Colônias de Virgínia, Delaware, Carolina do Norte, Vermont e de New Hampshire,

posteriormente transformados em Estados federados.

Na América Latina, a Argentina e o México, desde o nascedouro de suas

Constituições, em 1853 e 1857, respectivamente, já contavam com o instituto. Na

Europa continental, a Itália e a Alemanha, países onde há enorme

aprofundamento científico no direito processual serviram de exemplo para os

demais, como Espanha e Portugal. 57

A Declaração Universal dos Direitos do Homem (Paris, 1948), a 6ª

Convenção Européia Para Proteção dos Direitos Humanos e Liberdades

Fundamentais (Roma, 1950) e o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos

57 Ibid, "All persons born or naturalized in the United States, and subject to the jurisdiction thereof, are citizens of the United States and of the State wherein they reside. No State shall make or enforce any law which shall abridge the privileges or immunities of citizens of the United States; nor shall any State deprive any person of life, liberty, or property, without due process of law; nor deny to any person within its jurisdiction the equal protection of the laws".

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das Nações Unidas (1966) consagram proteções e garantias individuais que

denotam o encampar daquele princípio.

No Brasil, é pacífico entre os doutrinadores que o princípio do devido

processo legal foi abraçado por todas as Constituições pátrias, desde 1924, em

especial a de 1967 e Emenda Constitucional nº 01, de 1969, pois, quando

consignaram os princípios da ampla defesa, do contraditório e da igualdade,

teriam, tacitamente, aceitado a existência daquele. Porém, a inclusão definitiva e

expressa da garantia do due process of law veio somente com a Constituição

Federal de 1988, mais precisamente em seu artigo 5º, LIV: "ninguém será privado

da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal", sendo

complementada pelo inciso LV do mesmo artigo: “aos litigantes em geral são

assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela

inerentes.”

Sabemos que a Magna Carta não teve, na sua gênese, a intenção mais

pura de servir à cidadania, à democracia ou ao povo em geral, posto criada como

uma espécie de garantia para os nobres, do baronato, contra os abusos da coroa

inglesa. Entretanto, ela continha institutos originais e eficazes do ponto de vista

jurídico para a repressão dos abusos do Estado, que até hoje se fazem reluzentes

em praticamente todas as constituições liberais do mundo.

2.2 Características do Devido Processo Legal

Em seu nascedouro, o devido processo legal foi concebido como uma

garantia de feições apenas processuais, como princípio que viria a assegurar que

a privação da liberdade e da propriedade somente seriam possíveis através de um

processo regular. Mas, como aponta Nelson Nery Júnior, o devido processo legal

é caracterizado pelo trinômio vida-liberdade-propriedade, ou seja, “tem-se o direito

de tutela àqueles bens da vida em seu sentido mais amplo e genérico. Tudo o que

disser respeito à tutela da vida, liberdade ou propriedade está sob a proteção da

due process clause”.

O devido processo legal, como mencionado, foi concebido e conceituado

durante muito tempo como amparador ao direito processual, buscando uma

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adequação do processo à ritualística prevista, praticamente confundindo-se ao

princípio da legalidade. Ele ganhou força expressiva no direito processual penal,

mas já se expandiu para processual civil e até para o processo administrativo.

Conceituar o devido processo legal é tarefa ingrata. Há duas facetas sobre

as quais incide tal princípio: o procedural due process (sentido processual) e o

substantive due process (sentido material).

Oportuno transcrever as palavras de Cintra, Grinover e Dinamarco, acerca

do princípio sub analisis:

o devido processo legal, como princípio constitucional, significa o conjunto de garantias de ordem constitucional, que de um lado asseguram às partes o exercício de suas faculdades e poderes de natureza processual e, de outro, legitimam a própria função jurisdicional. 58

A necessidade de intervenção judicial nas atividades estatais –

principalmente legislativas – fez nascer uma bipartição ideológica a pairar sobre o

devido processo legal, principalmente no direito norte-americano através dos

julgados da Suprema Corte. Entendeu-se que não somente em sentido processual

deveria o princípio garantir o trinômio vida-liberdade-propriedade, porque de tão

amplo deveria cuidar de corrigir eventuais abusos do poder soberano ao legislar.

Em outras palavras, criou-se a idéia de que o devido processo legal –

concebido como cláusula anti-arbítrio – seria também responsável por vincular a

produção legislativa à idéia de razoabilidade ou proporcionalidade. Baseada no

espírito que norteou a Magna Carta de 1215, diz a doutrina: uma lei não pode ser

considerada uma law of the land, nos termos desejados pelo due process of law,

se incorrer na falta de razoabilidade, ou seja, quando for arbitrária. 59

A idéia de “governo dos juízes”, com os tribunais assumindo a função de

censores da vida social, política e econômica da nação norte-americana, fez com

que a visão unicamente processualista do devido processo legal retratasse a

entrada em cena do judiciário como árbitro autorizado e final das relações do 58 RANGEL, Paulo. Direito Processual Penal. 7ª. ed. rev. ampl. atual. Lumen Juris: Rio de Janeiro, 2003, p. 04. 59 CASTRO, Carlos Roberto de Siqueira. O devido processo legal e a razoabilidade das leis na nova constituição do Brasil. Rio de Janeiro: Forense, 1989, p.57.

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governo com a sociedade civil, revelando o seu papel de protagonista e

igualmente ‘substantivo’ no seio das instituições governativas.60

Esse conjunto de garantias de ordem constitucional - processual,

encontrado apenas na nossa mais recente doutrina, não é novidade para os

americanos, que há muito se debruçam sobre o devido processo legal. Vejamos o

trecho do voto proferido no voto no caso Anti-Facist Committe vs. McGrafth (1951),

pelo Juiz da Suprema Corte Americana, Felix Frankfurter:

Due process não pode ser aprisionado dentro dos traiçoeiros lindes de uma fórmula... ‘due process’ é produto da história, da razão, do fluxo das decisões passadas e da inabalável confiança na força da fé democrática que professamos. ‘Due process’ não é um instrumento mecânico. Não é um padrão. É um processo. É um delicado processo de adaptação que inevitavelmente envolve o exercício do julgamento por aqueles a quem a Constituição confiou o desdobramento desse processo.61

O procedural due process, também chamado de devido processo adjetivo

ou procedimental, é considerado mais restrito que o devido processo material e

caracteriza-se pela simples norma de respeito ao procedimento previamente

regulado. Inobstante o alcance diminuto, esta faceta do devido processo legal é

mais empregada pela doutrina e pelos usuários do Direito, talvez exatamente por

conta do vocábulo "processo" do princípio estudado, foi ele apenas sub-utilizado

nesta acepção.

A doutrina, mesmo ciente da vigência da cláusula due process of law nas

constituições anteriores e do seu alcance a todos os tipos de procedimentos,

debruçou-se especialmente na sua aplicação ao direito processual penal, em

seguida, à jurisdição civil e, recentemente, aos procedimentos administrativos.

Convém enfatizar sua aplicação ao direito processual civil, sendo

indiscutível que nesse campo, entre outros, garante o direito à citação, do

conhecimento do teor da acusação, de julgamento rápido e público, à igualdade de

partes, à proibição da prova ilícita, à gratuidade da justiça ou ao desembaraçado

60 Ibid., p. 57. 61

Apud Carlos Roberto de Siqueira Castro. O devido Processo Legal e a razoabilidade das leis na nova Constituição e Brasil, Rio de Janeiro: Forense, 1989, p. 56.

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acesso a essa, ao contraditório, ao juiz natural e imparcial, ao duplo grau de

jurisdição, à ampla defesa.

"Resumindo o que foi dito sobre este importante princípio, verifica-se que a

cláusula do procedural due process of law nada mais é do que a possibilidade

efetiva de a parte ter acesso à justiça, deduzindo pretensão e defendendo-se do

modo mais amplo possível, isto é, de ter his day in Court, na denominação

genérica da Suprema Corte dos Estados Unidos".62

O devido processo legal substantivo ou material é a manifestação do devido

processo legal na esfera material. Considera-se o seu alcance mais amplo que o

seu lado procedimental, pois se manifesta em todos os campos do Direito

(administrativo, civil, comercial, tributário, penal, entre outros).

O conteúdo substancial de cláusula do devido processo legal apresenta-se,

indubitavelmente, "amorfo e enigmático, que mais se colhe pelos sentimentos e

intuição do que pelos métodos puramente racionais da inteligência." 63

O substantive due process tutela o direito material do cidadão, inibindo que

lei em sentido genérico ou ato administrativo ofendam os direitos do cidadão,

como a vida, a liberdade e a propriedade, outros destes derivados ou inseridos na

Constituição.

A Suprema Corte Americana entende que tem direito a examinar qualquer lei e

determinar se ela constitui um legítimo, não-abusivo, exercício do poder estatal. O

ministro do Supremo Tribunal Federal, Carlos Velloso, prolatou acórdão que em

poucas palavras traz a perfeita essência do aspecto material do devido processo

legal:

due process of. law, com conteúdo substantivo - substantive due process - constitui limite ao Legislativo, no sentido de que as leis devem ser elaboradas com justiça, devem ser dotadas de razoabilidade (reasonableness) e de racionalidade (racionality), devem guardar, segundo W. Holmes, um real substancial nexo com o objetivo que se quer atingir. Em verdade, o devido

62 CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; Ada Pellegrini Grinover; Cândido Rangel Dinamarco. Teoria Geral do Processo. 14ª ed. São Paulo: Malheiros, 1998. p. 56. 63

DONADEL, Adriane. As garantias do cidadão no processo civil, Org. Sérgio Gilberto, Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p. 263.

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processo legal material não apresenta limites e, pode abranger quaisquer direitos que a imaginação permita conceber. 64

No direito brasileiro a aplicação do devido processo legal em seu aspecto

substancial é tendência que caminha a passos lentos, em ritmo incompatível com

aqueles que podemos identificar ao longo da história constitucional norte-

americana, até porque naquela nação podemos identificar em fases bem nítidas a

evolução do conceito substantivo da garantia, enquanto no Brasil a utilização

desta concepção dá-se em casos isolados. Porém, não é difícil perceber em

algumas decisões – a se destacar o pioneirismo do Supremo Tribunal Federal – a

utilização dos critérios de razoabilidade e proporcionalidade no controle da

produção legislativa.65

Informa a doutrina que a utilização do devido processo legal em sua feição

substantiva foi pela primeira vez utilizado no Brasil, ainda que não declarado

expressamente, numa decisão do STF em 1968, em que o ministro Themístocles

Cavalcanti foi relator de um habeas corpus em que era pretendida a declaração de

inconstitucionalidade.

Caio Tácito alerta que a Constituição Federal adotou a princípio da

legalidade ao determinar que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer

alguma coisa senão em virtude de lei”, querendo significar que a Lei é a vontade

geral da nação, nascida da manifestação dos agentes delegados da sociedade –

mandato eletivo. Mas, para que tal poder não reste absoluto, a regra da separação

dos poderes constitucionais submete os atos do Legislativo ao controle final do

judiciário, para que leis contrárias à Constituição ou violadoras de direitos e

liberdades, sejam anuladas e destituídas de eficácia.

Salienta, ainda, o autor que a jurisprudência francesa construiu a noção do

desvio de poder ou desvio de finalidade como fundamento da declaração de

nulidade de atos administrativos; a jurisprudência da Suprema Corte norte-

americana construiu para conter abusos desta natureza o requisito do devido

processo legal em seu aspecto substantivo, através do teste de racionalidade e, a 64

JÚNIOR, Nelson Nery. Princípios do Processo Civil na Constituição Federal. 7. ed. rev e atual com as Leis 1-0.352/2001 e 10.358/2001 – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 40. 65 MESQUITA, Gil Ferreira de. Princípios do contraditório e da ampla defesa no processo civil brasileiro. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2003. p.55.

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seguir, o padrão de razoabilidade para aferir a legalidade da legislação; o direito

alemão adotou o princípio da proporcionalidade, ou princípio do proibição de

excesso, para permitir ao intérprete aferir a compatibilidade entre meios e fins, de

modo a evitar restrições desnecessárias ou abusivas contra os direitos

fundamentais; e na Espanha também domina tal princípio.66

Mas, embora saliente a variação de princípios adotados em tais

ordenamentos, ao tratar do direito brasileiro também eleva ao mesmo significado

as noções de proporcionalidade e razoabilidade, enfatizando que “a Constituição

de 1988 deu ênfase aos princípios éticos que lastreiam sua estrutura. (...) E

incorpora ao quadro constitucional o princípio do devido processo legal como

elementar à garantia da liberdade e do patrimônio (art. 5º, LIV).67

Também encontramos a opinião de Carlos Roberto de Siqueira Castro em

seu estudo sobre o devido processo legal e a razoabilidade, o autor prefere o

princípio da razoabilidade para explicar a utilização do devido processo legal em

seu aspecto material no controle da constitucionalidade das leis. Adverte o autor

que, ainda que por apego ao metido literal e precário de interpretação das normas

jurídicas assim não se entendesse, restaria induvidoso que o postulado da

razoabilidade das leis deriva diretamente da aplicação do substantive due process,

a ser empregado com criatividade e senso de justiça pelos órgãos responsáveis

pela guarda à Constituição. 68

De modo diverso manifesta-se Raquel Denize Stumm, que encontra no

princípio da proporcionalidade o substrato que justifica a aplicação do devido

processo legal em sua feição material. Para a autora, pressupondo a existência de

um Estado Federal e uma constituição rígida, o Poder judiciário atua na busca de

dois objetivos principais: o primeiro é a harmonização dos conflitos entre União e

os Estados-membros; o segundo é justamente a proteção das liberdades civis e

dos direitos fundamentais ostentados por todos os destinatários do poder. Na trilha

desse último objetivo, o devido processo legal substantivo apresenta-se como o

66 TÁCITO, Caio. A razoabilidade das leis. Rio de Janeiro:Revista Forense, 1996, p.3. 67 Ibid., p. 4-5. 68 No mesmo sentido Nelson Nery Júnior (op. Cit., p. 35-38) e Augusto do Amaral Dergint. Aspecto material do devido processo legal. 253-254

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instrumento de maior amplitude, justamente porque funciona como limite à

aplicação de atos normativos arbitrários e irracionais.69

Não obstantes os avalizados posicionamentos, preferimos a doutrina que vê

nos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade uma possível relação de

intimidade, mas não uma consciência que permita a utilização de ambos termos

como sinônimos. Ficamos com Willis Santiago Guerra Filho, que formulou uma útil

distinção entre os dois princípios: a) O princípio da Proporcionalidade tem origem

no direito público alemão e desobedecê-lo significa ultrapassar irremediavelmente

os limites do que as pessoas em geral considerariam aceitável, em termos

jurídicos. É princípio com função negativa; b) O princípio da razoabilidade tem

origem anglo-saxônica opera seus efeitos à medida em que pretende demarcar

aqueles limites aceitáveis, indicando como nos mantermos dentro deles, mesmo

quando não pareça irrazoável ir além. É princípio com função positiva.70

Num ângulo mais amplo, uma afirmação torna-se inafastável, pois os

princípios concretizadores (da proporcionalidade e da razoabilidade) são

subprincípios responsáveis pela concretização do substantivo devido processo

legal. 71

69 STUMM, Raquel Denize. Princípio da Proporcionalidade no direito constitucional brasileiro. Porto Alegre:Livraria do Advogado, 1995, p.169. 70 GUERRA FILHO, Willis Santiago. Dos direitos humanos aos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997, p. 25-26. 71 LIMA, João Batista de Souza. As mais antigas normas de direito. 2ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 1983, p. 287, nota 3.

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2.3 Princípios Constitucionais no Processo Civil

O estudo do direito processual jamais pode divorciar-se dos princípios que o

orientam. Cândido Rangel Dinamarco já advertira que:

todo conhecimento só é verdadeiramente científico quando tiver por apoio a consciência dos princípios que o regem: sem essa consciência, há grande risco de perder a necessária coerência unitária entre os conceitos exarados e jamais ter-se segurança quanto ao acerto e boa qualidade dos resultados das investigações.72

Em nome de uma coerente metodológica temos que empreender uma

pequena análise a cerca do vocábulo princípio na tentativa de lhe empregar-lhe o

sentido adequado. É inegável que o direito deve ser considerado como um

sistema normativo, sinal da evolução alcançada pela ciência jurídica que, partindo

do conceito isolado de normas jurídicas, concebe o direito como um conjunto de

normas ligadas umas às outras. Contudo, o direito não deve ser concebido como

um conjunto estático de normas jurídicas, algo hermeticamente fechado, produto

acabado e imune a sofrer modificações. Ao contrário, deve ser entendido, nas

obras de José Joaquim Gomes Canotilho, como um sistema normativo aberto de

regras e princípios.

Decompondo tal concepção, temos que é um sistema aberto por possuir

uma estrutura dialógica, ou seja, dotada de disponibilidade e capacidade de

aprendizagem das normas, captando as mudanças sociais e transformações no

sentido dos valore; é sistema normativo porque a estruturação das expectativas,

referentes a valores, programas, funções e pessoas é realizada por via das

normas; e as normas do sistema são reveladas na forma de princípios ou de

regras jurídicas.73

72 DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil. São Paulo: Malheiros, 200, p.191, nota 16. 73 MENDONÇA JÚNIOR, Delosmar. Princípio da ampla defesa e da efetividade no processo civil brasileiro. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 12. No mesmo sentido a lição de Ferraz Júnior. “O sistema de que falamos neste passo tem, ademais, caráter dinâmico. O termo sistema dinâmico provém de Kelsen, em oposição ao estático, capta as normas dentro de um processo de contínua transformação. Normas são promulgadas, subsistem no tempo, atuam, são substituídas por outras ou perdem sua atualidade em decorrência de alterações nas situações normandas” (FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito. 2ª ed., São Paulo: Atlas, 1994. p. 177)

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Imperiosa, portanto, a distinção entre princípios e regras. Para desenvolver

o propósito de distinguir princípios e regras, o método que se apresenta adequado

é o de José Joaquim Gomes Canotilho, que sugere cinco critérios para alcançar tal

desiderato: 1 – Grau de Abstração – os princípios possuem elevado grau de

abstração em relação às regras jurídicas; 2 – Grau de determinabilidade – as

regras são aplicadas diretamente, já os princípios necessitam de mediação

concretizadora do legislador ou do juiz; 3 – Caráter de fundamentabilidade do

sistema – enquanto as regras têm apoio nos princípios, estes são fundamentais,

na medida em que são elementos fundamentais, na medida em que são

elementos estruturantes no sistema jurídico; 4 – Proximidade da ideai de direito –

a vinculatividade das regras está ligada a seu conteúdo meramente funcional, e os

princípios formam pautas vinculantes, em razão do imenso teor valorativo, ligadas

à idéias de direito e de justiça; 5 – natureza normogenética – os princípios, por

estarem na base do sistema jurídico, são fundamentos de regras. 74

Ainda com propósito de distinção, podemos anotar que em caso de conflito

existente entre regras jurídicas, pelo menos uma deve ser invalidada, gerando

antinomia, que é uma situação de incompatibilidade de normas no ordenamento,

devendo uma excluir a outra. A explicação é encontrada na definitiva fixação

normativa decorrente de regras, que devem ser cumpridas na medida exata de

suas prescrições, não havendo no sistema a possibilidade de validade coexistente

entre regras que se contradizem.

Quanto aos princípios, já que coexistem, permite-se o balanceamento de

valores e interesses, conforme o seu peso determinada situação e ponderação

com outros conflitantes. Deste modo, havendo colisão entre dois princípios,

autorizada a supremacia de um sobre o outro, em determinada circunstância

social, de modo que ambos permaneçam com igual validade no sistema.75

74 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional. 6ª Ed. Coimbra: Almedina, 1995. p. 166-167. 75 Ibid, p. 168. A mesma advertência a respeito da solução de antinomias entre princípios é feita por Alexandre Walmott Borges, que defende: “a prevalência de princípios deve ser realizada, sempre, com a hierarquização para o caso concreto. Essa hierarquização é ditada por valores – os componentes do sistema. As relações entre os valores e os princípios é fundamental para que se saiba qual princípio há de preponderar para o caso em análise. Com isso, deve ficar bem assentado o seguinte: os princípios não são superiores, ou inferiores, por sua posição estática e formal. É superior ou inferior por sua maior relevância para o caso analisado, por análise material” (Ensaios sobre sistema jurídico. p. 80).

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Ultrapassada tal questão, temos que definir o que vem a ser princípio para o

direito processual civil. Para tanto o ponto de partida é o próprio conceito de direito

processual civil, entendido como um sistema de princípios e normas que

regulamentam o exercício da jurisdição quanto às lides de natureza civil, como tais

entendidas aquelas que não são de natureza penal e as que não ingressam na

órbita das jurisdições especiais.76

São justamente os princípios que permitem ao legislador a criação de novos

institutos e ao intérprete a compreensão das normas vigentes no ordenamento

jurídico. Podemos dividir os princípios processuais em dois grupos:

a) Princípios informativos ou idealizadores – aqueles que têm influência

direta na elaboração de qualquer norma processual, na busca do aprimoramento

da tutela jurisdicional. São eles: o princípio lógico, compreendendo a busca de

instrumentos rápidos e eficazes na apuração da verdade; o princípio econômico,

pelo qual se procura o mínimo dispêndio de trabalho, tempo e despesas, tornando

o processo acessível a todos; o princípio jurídico, através do qual busca-se a

igualdade no processo, ensejando-se às partes iguais oportunidade; e, o princípio

político, pelo qual objetiva-se a formulação de uma legislação na qual se alcance o

máximo de garantia social com o mínimo de sacrifico da liberdade individual.

b) Os Princípios gerais ou fundamentais – são normas que decorrem do

ordenamento posto, variando em espaço e tempo, constituindo-se em opções do

sistema jurídico, considerando-se aspectos políticos, éticos e ideológicos.77

Neste último grupo podemos incluir os seguintes princípios: da igualdade,

da ação, da disponibilidade e indisponibilidade, do contraditório, da ampla defesa,

da lealdade processual, do duplo grau de jurisdição, do impulso oficial, da

oralidade, da imparcialidade do juiz, do dispositivo, da persuasão racional do juiz,

da livre investigação das provas, da motivação das decisões judiciais, da

economia processual, da publicação e da instrumentalidade das formas.

76 SANTOS, Moacyr Amaral dos, Primeiras linhas de direito processual civil. 15ª ed., São Paulo:Saraiva, 1992, p.15. 77 MARQUES, José Frederico. Instituições de direito processual civil. 2ª ed., Vol 2, Rio de Janeiro: Forense, 1962, p. 107. No mesmo sentido: Cintra, Grinover e Dinamarco.

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42

Lembra José Manoel de Arruda Alvim Netto que:

os princípios informativos do processo são regras de ordem predominantemente técnica e, portanto, desligadas de mais intensa permeação ideológica, enquanto os princípios fundamentais são diretrizes palpavelmente inspiradas por características políticas. Sendo assim, os princípios informativos são mais “universais” do que os gerias, eis que predominantemente técnicos, “com muito mais facilidade se desprendem dos sistemas positivos e são manos ou pouco influenciados pela realidade social; são regras adquiridas mercê da evolução técnica-jurídica e incorporadas ao patrimônio da ciência.78

Alguns dos princípios gerais listados pela doutrina são consagrados em

nível constitucional como, por exemplo, o princípio da igualdade (art. 5º, I) e os

princípios do contraditório e ampla defesa (art. 5º, LV). Outros, aparecem no plano

infraconstitucional, como o princípio da lealdade processual (art. 14 do CPC), do

impulso oficial (art. 262, do CPC) e da persuasão racional do juiz (art. 131, do

CPC).

Há, ainda, a necessidade de cumprimento satisfatório de solucionar

conflitos e conduzir os envolvidos à ordem jurídica justa, o que faz residir também

em âmbito constitucional uma série de garantias que passam a fazer parte

daquele sistema como garantias do contraditório, da ampla defesa, da motivação

das decisões judiciais, do juiz natural, etc – destinadas a dar efetividade jurídica,

sendo necessária a complementação com outras determinações de menor

espectro, dotadas de profundo significado social e político pelas quais o Estado de

Direito oferece meios específicos para o controle jurisdicional de seus próprios

atos: o mandado de segurança individual e coletivo, o mandado de injunção, o

habeas data, a ação popular, ação direita de inconstitucionalidade e a ação civil

pública.79

Por outro lado, o sistema também é composto por limitações, porque o

mesmo Estado que se compromete a prestar a jurisdição em caso de lesão ou

ameaça de lesão do direito (art. 5º, XXXV, da CF), também autolimita-se nesse

78 ALVIM NETTO, José Manoel de Arruda. Tratado de direito processual civil. 2ª ed., Vol 1, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1990, p. 81, nota 71. 79 DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil. São Paulo: Malheiros, 2000, p.109, nota 16.

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exercício no plano constitucional criando em verdadeiro jogo de garantias e

limitações. A mais ampla de todas limitações consiste na proibição sistemática ao

exercício ex officio da jurisdição, através da qual fica a formação do processo civil

condicionada a iniciativa da parte interessada. Nesta seara, podemos arrolar como

limitações ao exercício da jurisdição a observância obrigatória das normas

procedimentais contidas na legislação, porque não pode o juiz furtar-se à prática

de atos essenciais ou praticá-los de forma diferente daquela informada pela lei,

causando dano aos litigantes. Temos, ainda, as regras de competência, porque

ato jurisdicional realizado por juiz diferente daquele indicado pela constituição ou

pela legislação infraconstitucional é passível de nulidade.

Não podemos olvidar das limitações bastante significativa que constituem

objeto de profundo exames e investigações na ciência processual: os

pressupostos de admissibilidade dos provimentos de mérito. Aqui estão incluídas:

a proibição de medidas jurisdicionais requeridas por quem não seja titula dos

interesses em conflito (ilegitimidade); o ingresso em juízo sem necessidade da

tutela jurisdicional (art. 3º, do CPC); a escolha da via procedimental inadequada: e

a proposição de demanda cuja providencia pretendida seja teoricamente

inadmissível na ordem jurídica do país.80

Portanto, notamos que a Constituição Federal impõe ao exercício da função

jurisdicional uma série de limitações, ditadas com o objetivo de assegurar às

partes uma série de posições e possibilidades durante o processo e que não

podem ser desrespeitadas pelo juiz e pelas partes. Assim, é certo que nosso

sistema jurídico é tutelado por uma série de disposições constitucionais a serem

atendidas pelo legislador ao elaborar normas processuais e pelo intérprete

(mormente o juiz) encarregado de captar o significado de tal elaboração legislativa.

Tal tutela reside nos chamados princípios e garantias constitucionais, de índole

acentuadamente política e que correspondem a importantes opções do moderno

Estado de Direito.

Nessa linha de entendimento, conclui Cândido Rangel Dinamarco: “Mas a

tutela constitucional do processo não seria efetiva se as grandes linhas-mestras

80 Ibid., p. 111.

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desenhadas pela constituição (princípios) não ganhassem eficácia imperativa

mediante as correspondentes garantias. Consistem as garantias constitucionais

em preceitos dotados de sanção, isso significando que sua inobservância afetará

de algum modo a validade sobre os imperativos constitucionais. Por isso é que

geralmente os dispositivos constitucionais reveladores dos grandes princípios são

encarados como garantias, a ponto de ser usual o uso indiferente dos vocábulos

princípio e garantia para designar a mesma idéia.” 81

A análise dos princípios gerais do processo, especialmente o contraditório e

a ampla defesa, far-se-á com a utilização indiferente dos dois vocábulos, assim

como no tratamento do devido processo legal, no entanto, vale enfatizar dois

aspectos importantes: o primeiro é que tais garantias devem ser entendidas como

princípios gerais do processo, ou mais especificamente, princípios gerais

constitucionais do processo, porque, como visto, enquadra-se em ambas

classificações; O segundo refere-se à amplitude da previsão constitucional de

princípios gerais do processo , porque fica constatado que além dos supracitados,

temos ainda que considerar a existência em nossa Carta do princípio do devido

processo legal, o da inafastabilidade da jurisdição, da igualdade, da liberdade, do

juiz natural e da publicidade.

Porém, como é facilmente notado, incluímos o devido processo legal (art.

5º, LVI) no rol dos princípios constitucionais do processo, mas a doutrina

normalmente o considera, como já dissemos, como regra de fechamento, ou seja,

é princípio do qual derivam todos os demais, garantindo-lhe o status de super

princípio. Embora saibamos que os princípios processuais convivem

harmoniosamente entre si e não guardam posição de superioridade ou

inferioridade, torna-se imprescindível o estudo da amplitude do due process of law

no direito processual civil brasileiro, para que determinemos a real fisionomia que

lhe foi conferida pela atual Constituição Federal.

Ao determinar que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer

alguma coisa senão em virtude de lei”, a Constituição Federal (art. 5º, III)

assegurou o direto à tutela jurisdicional, mas determinou ainda que tal exercício do

81 Ibid., p. 195.

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Estado deverá seguir outros preceitos reguladores contidos no mesmo dispositivo,

principalmente aqueles que impedem a exclusão de lesão ao direito da esfera de

apreciação do Poder Judiciário (inciso XXXV), o direito ao devido processo legal

(inciso LIV) e o direito ao contraditório e à ampla defesa por todos os envolvidos

em processo judicial ou administrativo (inciso LV). É uma clara demonstração de

que nossa Constituição foi erguida ao nível das mais avançadas Constituições do

mundo, em termos de garantia da tutela jurisdicional.

Também pode ser incluído na extensa abrangência do devido processo

legal o respeito à dignidade da pessoa humana que, embora advenha de uma

previsão constitucional de caráter não processual (art. 1, III), é princípio

fundamental do Estado Democrático de Direito que se pretendeu instalar no Brasil

com a nova Constituição. Diz Celso Bastos que:

embora dignidade tenha um conteúdo moral, parece que a preocupação do legislador constituinte foi mai de ordem material, ou seja, a de proporcionar às pessoas condições para uma vida digna, principalmente no que tange ao fator econômico. Por outro lado, o termo ‘dignidade da pessoa humana’ visa a condenar práticas como a tortura, o racismo e outras humilhações tão comuns no dia-a-dia de nosso país. Esse, foi, sem dúvida, um acerto do constituinte, pois coloca a pessoa humana como fim último de nossa sociedade e não como simples meio para alcançar certos objetivos , como, por exemplo, o econômico. 82

Assim, o direito à vida privada, à intimidade, à honra, à imagem, por

exemplo, surgem como conseqüência imediata da dignidade da pessoa humana,

que assume dupla concepção: primeiro, deve ser considerada como direito

individual de proteção ao indivíduo contra o Estado e em relação aos demais

indivíduos; segundo, há de ser analisado somo dever fundamental de tratamento

igualitário entre os cidadãos, que pode ser resumido em três princípios do direito

romano: viver honestamente (honestere vivere), não prejudique ninguém (alterum

non laedere) e dê a cada um o que lhe é devido (suum cuique tribuere). 83

A determinação constitucional de que “ninguém será privado da liberdade

ou de seus bens sem o devido processo legal” reflete num primeiro momento a

proibição de que os cidadãos sejam privados daqueles bens jurídicos somente

82 BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de direito constitucional. 21ª ed., São Paulo: Saraiva, 2000, p. 158-159. 83 MORAES, Alexandre de. Direitos humanos fundamentais. 2ª Ed., São Paulo: Atlas, 1998, p. 60-61.

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através de intervenção do Estado, exercendo a função jurisdicional. Num momento

seguinte, a atuação estatal deve estar fundada naquele sistema de garantias e

limitações. Quer dizer, a condução pelos magistrados da atividade jurisdicional

deverá atender aos pilares do Estado Democrático de Direito externados no

preâmbulo da Constituição Federal, sendo-lhes vedado o exercício da jurisdição

além dos limites de sua competência, bem como intervir na esfera jurídica do

cidadão além do que é permitido pelos mandamentos constitucionais.

Segundo Antônio Cláudio da Costa Machado, a decomposição do art. 5,

LIV, da Constituição Federal, quer significar três valores jurídicos a serem

pautados em respeito ao princípio do devido processo legal: a) um julgamento

imparcial que a própria Constituição já se ocupa de buscar ao instituir os princípios

do juiz natural, da motivação dos atos judiciais e da coisa julgada; b) o pleno

exercício da ação e da defesa que a Lei Maior busca assegurar ao prever o

princípio do acesso a Justiça ou inafastabilidade jurisdicional, o contraditório, a

ampla defesa e a garantia da assistência judiciária; c) um procedimento regular ou

propício à realização de justiça, que a Carta de 1988 reconhece como sendo

aquele inspirado pelos princípios da igualdade, da publicidade e da realização da

proibição de prova ilícita.84

Assim, a afirmação de Nelson Nery Júnior de que a previsão do devido

processo legal por si só tornaria dispensável a enumeração de grande parte dos

incisos do art. 5º, dentre os quais aqueles de índole processual, faz com que a

garantia tenha o mérito de:

traçar o perfil democrático do processo e atrair à órbita das medidas de tutela constitucional certas garantias não caracterizadas como verdadeiros princípios ou lançadas de modo genérico em outros dispositivos constitucionais mas que com ele guardam pertinência. 85

Podemos dizer que qualquer decisão que venha a ferir um princípio

constitucional do processo ou qualquer garantia que não se caracterize com o

princípio, mas com algum guarde pertinência, estará ferindo o devido processo

84 COSTA MACHADO, Antônio Cláudio da. Normas processuais civis interpretadas, São Paulo: Juarez de Oliveira, 2001, p. 9-10. 85 JÚNIOR, Nelson Nery. Princípios do Processo Civil na Constituição Federal. 7. ed. rev e atual com as Leis 1-0.352/2001 e 10.358/2001 – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002. p. 245.

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legal. E mais, se uma disposição infraconstitucional for emitida ou uma decisão

judicial proferida, que respeite tais garantias, mas venha ferir as premissas do

Estado liberal democrático será violadora da garantia ampla e vaga do due

processo of law, carecendo, pois de legitimidade constitucional.

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2.4. O Princípio do Contraditório e da Ampla Defesa

Não é inútil observarmos que o princípio do contraditório, assim como

ocorre com o da ampla defesa, somente foi expressamente consagrado aos

litigantes no processo civil com a atual Constituição Federal, que em seu art. 5º,

LV, regula: “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados

em geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e

recursos a ela inerentes”. Porém, as previsões constitucionais nos textos

anteriores não foram suficientes para fazer com que a produção doutrinária ficasse

alheia às tentativas de encontrar, em algum dispositivo constitucional, a

consagração destas garantias fundamentalmente democráticas do processo.86

Desde a Constituição Imperial foram dedicados esforços neste sentido,

porque o devido processo legal, também consagrado expressamente apenas com

a Constituição de 1988, sempre foi observado pela interpretação de dispositivos

constitucionais que não o consagravam. Por conseqüência, se o esforço

doutrinário resultava positivo, encontrando dispositivo no qual se pudesse

vislumbrar a garantia do due process of law, os seus corolários também restariam

consagrados.

Já afirmou Geraldo Ataliba que o princípio é uma norma,

mas é mais do que uma norma, uma diretriz, é um norte do sistema, é um rumo apontado para ser seguido por todo o sistema. Rege toda a interpretação do sistema e a ele se deve curvar o intérprete, sempre que se vai debruçar sobre os preceitos contidos no sistema.87

E assim, debruçados na tarefa de estudar os princípios do processo civil, é

que alguns doutrinadores têm deixado à margem de seus escritores uma questão

extremamente importante: a distinção entre as garantias do contraditório e da

ampla defesa.

Não é raro encontrarmos um tratamento comum para os dois princípios. As

razões nos parecem bem simples, porque estando previstos num mesmo

86 MESQUITA, Gil Ferreira. Princípios do contraditório e da ampla defesa no processo civil brasileiro. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2003, p. 119. 87 Apud Rui Portanova. Princípio do processo civil. 3ª ed., Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999, p. 13.

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dispositivo constitucional (art. 5º, LV), por serem considerados corolários do

devido processo legal, e principalmente, por serem as derivações imediatas que

dão a esta cláusula todo o status de super princípio, ao lado da isonomia, nada

mais natural que seu estudo seja feito em conjunto. Contudo, o maior problema é

justamente este, porque as tratarem das garantias num mesmo tópico da doutrina,

os autores têm deixado de empreender tarefa imprescindível à boa compreensão

de sua distinção. Não estamos afirmando que entre eles não haja nenhuma

relação. Ao contrário, são conceitos que se completam, são dependentes entre si,

mas jamais podem ser confundidos.88

Como visto, a consagração expressa dos princípios em estudo ocorreu

somente com a Constituição Federal de 1988, que também lhes conferiu o

contorno de garantias destinadas aos litigantes em processo civil e trabalhista, aos

acusados em processo penal e interessados em processo administrativo. Contudo,

nas Constituições anteriores sempre houve uma menção à ampla defesa e ao

contraditório, mas dirigidos exclusivamente ao processo pena, confirmando a tese

doutrinária de que o processo civil é costumeiramente preterido pelo constituinte.

Ada Pellegrini Grinover, na vigência da EC/1, de 1969, também manifestava

sua preocupação com a ausência de dispositivos constitucionais voltados ao

processo civil,

em matéria penal, substancial ou processual, as Constituições brasileiras sempre foram ricas em garantias, vedando penas e protegendo a liberdade física, expedindo normas sobre a prisão legal, erigindo em princípio constitucional a incomunicabilidade da pena, assegurando a integridade física e moral do preso, garantindo o contraditório e o direito de ampla defesa.89

Mas a doutrina jamais deixou de empreender esforços para fazer com que o

processo civil também fosse contempladas pelos princípios do contraditório e

ampla defesa, ainda que não consagrados expressamente naquelas

Constituições. Vejamos, então, os dispositivos constitucionais que se relacionam

com o tema em discussão:

88 MESQUITA, Gil Ferreira. Processo e Constituição: anotações para uma teoria geral do processo. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2003, p. 137. 89 GRINOVER, Ada Pellegrini. As garantias constitucionais do direito de ação. São Paulo:Revista dos Tribunais, 1973, p. 128.

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50

a) A Constituição Imperial (1824), em seu art. 179,VIII, prescrevia:

“ninguém poderá ser preso sem culpa formada, excepto nos casos

declarados na Lei (...).”

b) A Constituição Republicana (1891), no art. 72,§16:”Aos acusados se

assegurará na lei a mais ampla defesa, com todos os recursos e meios

essenciaes a ella, desde a nota de culpa, entregue em vinte e quatro

horas ao preso e assignada pela autoridade competente, com os nomes

do accusados e das testemunhas.”

c) A Constituição de 1934, no art. 113, §24: “ A lei assegurará aos

accusados ampla defesa, com os meios e recursos essenciaes a esta.”

d) A Constituição de 1937, em seu art. 122, n.11, garantia:” À exceção do

fragrante delito, a prisão não poderá efetuar-se senão depois de

pronuncia do indiciado, salvo os casos determinados em lei e mediante

ordem escrita da autoridade competente. Ninguém poderá ser

conservado em prisão sem culpa formada, senão pela autoridade

competente, em virtude de lei e na forma por ela regulada; A instrução

criminal será contraditória, asseguradas, antes e depois da formação da

culpa, as necessárias garantias de defesa.”

e) Na Constituição de 1946, o art. 141, § 25, assim prescrevia: “É

assegurada aos acusados plena defesa com todos os meios e recursos

essências a ela, desde a nota de culpa, que assinada pela autoridade

competente, com os nomes do acusador e das testemunhas, será

entregue ao preso dentre em 24 horas. A instrução criminal será

contraditória.”

f) A Constituição de 1967, o art. 150, § 15, anotava: “ A lei assegurará aos

acusados ampla defesa, com os recursos a ela inerentes. Não haverá

foro privilegiado nem tribunais de exceção.”

g) Já a Emenda Constitucional n.1 de 1969, repetiu em seu art. 153, § 15,

a redação da Constituição de 1967.90

Para alguns autores, como Rui Porta Nova, a ausência de disposição

expressa garantindo o contraditório e a ampla defesa ao âmbito processual civil

90 MESQUITA, Gil Ferreira. Princípios do contraditório e da ampla defesa no processo civil brasileiro. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2003, p. 120.

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51

não impediu o desenvolvimento da doutrina nesse sentido, já que a Declaração

Universal dos Direitos Humanos, em seu art. 8º, e o princípio da igualdade davam

embasamentos suficiente para tanto. Diz o referido dispositivo da Declaração:

“Todo homem tem direito a receber dos tribunais nacionais competente, remédio

efetivo para os atos que violem os direitos fundamentais que lhe sejam

reconhecidos pela Constituição ou pela lei.” 91

A justificativa para a posição é simples: com a provação da Declaração em

1948, todas as Constituições brasileiras que se seguiram – inclusive a de 1946

que estava em vigor – admitiam em seu texto que a especificação dos direitos e

garantias expressas em seus textos não excluíam outros direitos e garantias

decorrentes do regime dos princípios por elas adotadas. Assim estava expresso

no art. 144, da Constituição de 1946, no art. 150, § 35, da Constituição de 1967;

no art.153, § 36, da Emenda constitucional n.1 de 1969 e finalmente no art. 5º, da

Constituição Federal de 1988.

Podemos considerar que, em termos processuais, a maior inovação da

atual Constituição Federal foi a consagração expressa do devido processo legal

(art. 5º, LIV). Alguns autores chegam a afirmar que a cláusula confunde-se, dada

sua abrangência e generalidade, com a próprio Estado de Direito e, por tais

características, alguns incisos do mesmo art. 5º tornaram-se dispensáveis e uma

melhor técnica legislativa poderia tê-los evitado ao longo do novo texto.92

É opinião freqüente, também, que, em âmbito processual, o mandamento

contido no referido inciso LIV, vem completado pelo seu seguinte (LV) que

disciplinou, também de forma inédita no ordenamento brasileiro, o contraditório e a

ampla defesa para todos os litigantes em processo judicial – seja cível, penal ou

trabalhista – e para os interessados em processo administrativo. Os destinatários,

portanto, foram fixados pela própria Constituição, não restando dúvida a respeito

91 PORTANOVA, Rui. Princípio do processo civil. 3ª ed., Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999, p. 161. 92 JÚNIOR, Nelson Nery. Princípios do processo civil na constituição Federal. 7. ed. rev e atual com as Leis 1-0.352/2001 e 10.358/2001 – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 40.

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da aplicação daquelas garantias no âmbito processual civil, como ocorria nas

Cartas anteriores. 93

Também deve ser observado que a redação do dispositivo quer deixar

claro, embora nem sempre consiga deixar se fazer entender, que contraditório e

ampla defesa querem significar conceitos diferentes, embora exista entre eles uma

relação de complementação. É inconcebível imaginar que o propósito do

legislativo tenha sido outro, pois ao afirmar que ”são assegurados o contraditório e

ampla defesa, com meios e recursos a ela inerentes”, o constituinte fez crer que

são duas as garantias consagradas num único preceito.

Contudo, é preciso interpretar o alcance que o legislador constituinte

pretendeu dar as expressões contraditório e ampla defesa. Certamente não

desejou que significassem a mesma coisa, o mesmo fenômeno. O exercício de

interpretação torna-se necessário além do fato de existir certo descuido

doutrinário, porque mesmo as normas claras, de conteúdo indiscutível, merecem

atenção do hermeneuta. Alertava André Franco Montoro:

a interpretação é sempre necessária, sejam obscuras ou claras as palavras da lei ou de qualquer outra norma. É preciso determinar seu sentido e alcance. Naturalmente, quando o texto é claro a interpretação é mais fácil e surge espontaneamente. Mas, quando o texto é obscuro a interpretação é mais difícil e por isso sua necessidade se evidencia. 94

Moacyr Amaral Santos parte didaticamente da noção de que a

bilateralidade da ação gera a bilateralidade do processo. Deste modo, há em todo

processo no mínimo duas partes – o autor como aquele que invocou a prestação

jurisdicional e o réu que deverá ser citado para estar completa a relação jurídica

processual. Colocado entre as partes, o juiz, por força do seu dever de

imparcialidade, ouvindo uma parte, não deixará de ouvir a outra. Esse o princípio

da audiência bilateral “audiatur et altera pars” ou do contraditório, “conforme o qual

não pode o juiz decidir sobre uma pretensão se não é ouvida ou citada para ser

93 A lição de Arruda Alvim é nesse sentido: “mais ainda, no entanto, a regra do inc. LV, do mesmo art. 5º, da CF de 1988, deve ser reputada uma relativa concretização do conceito do inc. LIV, ou, explicitação dos elementos virtualmente constitutivos da idéia desse inc. LIV” (José Manoel de Arruda Alvim Neto. Tratado de direito processual civil. Revista dos Tribunais, 1990. V.1. p. 66). 94 MONTORO, André Franco. Introdução à ciência do direito. 23º ed. Revista dos Tribunais:São Paulo, 1995. p. 371.

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ouvida, a parte contra a qual ou sem face da qual é proposta. Ao ataque do autor

deverá suceder a defesa do réu”. 95

Assim, defende que é imprescindível oportunizar ao réu momento para

apresentar defesa, de modo que pela simples oportunidade estará respeitado o

princípio. A tese vem aparada na doutrina de Liebman:

entende-se que o princípio se dá a todas as partes a possibilidade de defender-se; que o façam efetivamente, que compareçam a juízo e ofereçam as suas razões, ou permaneçam inativas, ou mesmo sejam contumazes, depende de sua livre determinação.96

Em síntese, Moacyr Amaral Santos propões três afirmações exclusivas a

cerca do princípio do contraditório: a) o princípio da igualdade das partes nos atos

processuais é corolário do contraditório uma vez que o processo civil

desenvolvem-se em atos de ataques e defesas e também em atos de ataques e

contra-ataques, resultando imperioso o tratamento paritário das partes para que

estas possam exercer seus direitos e cumprir seus deveres processuais em

igualdade de condições – conforme art. 125, I, do Código de Processo Civil; b) a

citação do réu no começo do processo sob pena de nulidade, é que proporciona

ao réu oportunidade para apresentação de sua defesa, sendo, portanto, uma

manifestação do contraditório; c) a índole constitucional do princípio do

contraditório não lhe permite exceções, mesmo nos raros casos em que a lei

processual permite ao juiz manifestar-se inadita altera parte como nos casos das

urgentes medidas cautelares, aquele em face de quem se dirige a pretensão terá

oportunidade de manifestar-se e defender-se logo em seguida.97

Para Vicente Greco Filho, a garantia mais importante para o processo

penal, em torno da qual todo fenômeno processual gravita, é a da ampla defesa,

que consiste “na oportunidade de o réu contraditar a acusação, através da

previsão legal de termos processuais que possibilitem a eficiência da defesa”, não

significando, porém, oportunidades ou prazos ilimitados, já que a própria

95 SANTOS, Moacyr Amaral. Primeiras linhas de direito processual civil. 14º ed. São Paulo: Saraiva, 1991. v.2.p. 76-77. 96 Ibid., p. 77. 97 Ibid., p. 77.

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legislação processual estabelece os termos, prazos e os recursos suficientes, de

modo que a eficácia da defesa dependerá da atividade do réu.98

Já o contraditório é definido pelo citado autor como meio ou instrumento

técnico para a efetivação da ampla defesa, através: a) da possibilidade de

contrariar a acusação; b) da possibilidade de requer a produção de provas que

deve obrigatoriamente ser produzidas, se pertinentes; c) do acompanhamento da

produção de provas, participando ativamente das audiências, questionando

testemunhas, por exemplo; d) da manifestação sempre após a acusação; e) da

manifestação em todos os atos e termos processuais aos quais devem estar

presentes; e f) da possibilidade da interposição de recurso nos casos de

inconformismo com a sentença. Afirma ainda que, “tais providencias de defesa

estão previstas como faculdades na legislação processual e não precisam efetivar-

se em todos os casos, podendo o réu deixar voluntariamente de exercer as que

entender desnecessárias.” 99

Importante também a observação a respeito da defesa técnica, a ser

efetivada por advogado. No processo penal ela apresenta-se como essencial à

observação do princípio da ampla defesa. Ao contrário do que ocorre no sistema

inglês e norte americano, em que o próprio acusado pode promover sua defesa;

no sistema pátrio, ainda que o réu não queira ser defendido, ainda que recuse-se

a nomear advogado ou seja revel, deverá o juiz do feito responsabilizar-se pela

nomeação de profissional habilitado para tanto.100

Quanto a função do magistrado Vicente Greco Filho afirma que,

é princípio do processo penal, que interfere na garantia da ampla defesa, a aferição, pelo juiz, da verdade real, e não apenas da que formalmente é apresentada pelas partes no processo. O poder inquisitivo do juiz na produção das provas permiti-lhe ultrapassar a descrição dos fatos como parecem no processo, para determinar a realização ex officio de provas que tendam à verificação da verdade real, do que ocorreu, efetivamente, no mundo da natureza. Essa faculdade faz com que o juiz exerça, inclusive sobre a defesa, uma forma de fiscalização de sua eficiência, podendo destituir o advogado inerte ou determinar as

98 FILHO, Vicente Grego. Direito processual civil brasileiro. 15º ed; São Paulo: Saraiva, 2000. v.1. p. 56. 99 Ibid., p. 58, passim. 100 Ibid., p. 58.

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provas para descoberta da verdade, ainda que sem requerimento do réu.101

O citado autor aduz que ainda que a efetividade do contraditório não deve

ser postergada, devendo autor e réu ser intimados de todos os atos processuais,

facultado o pronunciamento sobre todos os documentos e provas produzidos pelo

adversário, bem como a interposição de recursos contra decisões que lhes tenham

causado prejuízo, a ponto de o CPC permitir o recurso de agravo de instrumento

contra todas as decisões interlocutórias. Cita-se, inclusive, uma exceção às

faculdades do contraditório no Código de Processo Civil, em que impõe proibição

à parte de falar nos autos se for condenado pela prática de atentado, que consiste

na violação de penhora, arresto, seqüestro ou imissão na posse, prosseguir em

obra embargada ou praticar outra qualquer inovação ilegal no estado de fato no

curso de processo, perdurando tal proibição até que seja purgado o atentado, ou

seja, até que seja resposta a situação anterior. 102

Rui Portanova classifica os princípios de primeiro e segundo graus: a) o

princípio do juiz natural (2º grau) informa todos os demais princípios ligados à

jurisdição e à pessoa do juiz, sendo eles (1º grau), a inércia da jurisdição,

independência, imparcialidade, inafastabilidade, gratuidade judiciária, investidura,

aderência ao território, indelegabilidade, indeclinabilidade, independência da

jurisdição civil e criminal; b) o princípio do acesso à justiça (2º grau) informa todos

os demais princípios ligados à ação e à defesa, sendo eles (1º grau), princípio da

demanda,da autonomia da ação dispositivo, ampla defesa, defesa global,

eventualidade, estabilidade objetiva da demanda, estabilidade subjetiva da

demanda, perpetuatio jurisdictione e recursividade; e c) o princípio do devido

processo legal (2º grau) informa todos os demais princípios de primeiro grau

ligados ao processo e ao procedimento, sendo eles (1º grau ), o do impulso oficial,

do contraditório, da publicidade, finalidade, do prejuízo, da busca da verdade, da

licitude da prova, avaliação da prova, do livre convencimento, da persuasão

racional, duplo grau de jurisdição, da fungibilidade do recurso etc.103

101 Ibid.,p.59 102 Também estaria sujeito às mesmas penalidades o executado que praticasse atos atentatórios à dignidade da justiça, agindo deslealmente, conforme as hipóteses do art. 600, do CPC, sanção que foi substituída pela multa com a Lei n. 8.953/94, responsável pela alteração do art. 601 do mesmo diploma processual. 103 PORTANOVA, Rui. Princípio do processo civil. 3ª ed., Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999, p. 14.

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Note-se que o autor trata o princípio do contraditório como derivação do

devido processo legal, como prefere grande parte da doutrina – para nós também.

Já a ampla defesa, para o autor, seria corolário do acesso ao judiciário. Contudo,

observamos também, com a devida vênia, que o autor contradiz-se e confirma

pensamento no sentido de que ambas garantias são conseqüências do due

process of law. Vejamos:

Hoje os litigantes continuam com pleno direito de alegar fatos e propor provas. Isso constitui parte do princípio do ampla defesa, o qual contempla esta liberdade e trata de forma geral a sua extensão quanto `as alegações, às provas, enfim às garantias de um devido processo legal.104

E, ainda:

Hoje, está expresso: ‘ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal’ (art.5º,LIV). Diversos outros dispositivos constitucionais completam o sentido do princípio em comentário. São exemplos que aparecem no mesmo art.5º o direito de petição aos Poderes Públicos (XXXIV), a não-exclusão da apreciação do Poder Judiciário de lesão ou ameaça (XXXV), o juiz natural (XXXVII), o contraditório e a ampla defesa (LV).105

Especialmente quanto ao princípio da ampla defesa, Rui Portanova

enuncia-o da seguinte forma: “o cidadão tem plena liberdade de, em defesa de

seus interesses, alegar fatos e propor provas”. Em outras palavras, o direito de

defesa não é uma generosidade, mas um interesse público, já que essencial a

qualquer estrutura estatal que se pretenda democrática.106

Ensina que a ampla defesa é conseqüência do contraditório, porém, como

características próprias, porque além de tomar conhecimento de todos os termos

processuais, o litigante tem o direito de alegar fatos e prová-los e – assim como

ocorre com o direito de ação – tem o direito de não apresentar defesa alguma.

Caso opte pela defesa, deve-lhe ser assegurada plena liberdade.

Por conseguinte, a ampla defesa compreende: a) um conjunto de atos

tendentes a proteger um direito, seja mediante a exposição das pretensões

104 Ibid., p. 110. 105 Ibid., p. 146. 106 Ibid., p. 125.

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inerentes ao mesmo, seja mediante a atitude de repelir as pretensões do

adversário; b) função dos advogados no patrocínio de seus clientes; c) exceções

dilatórias, peremptórias ou mistas, contra a demanda principal. Nesse passo, a

ampla defesa no processo civil tem caminhado para uma aproximação com a

defesa penal, devendo ser entendida através de um duplo significado: a

autodefesa – representando direito subjetivo disponível que tem o acusado de

defender-se, inclusive comparecendo pessoalmente a todos os atos processuais –

e a defesa técnica – injunção legal indeclinável, pressuposto inarredável do

desenvolvimento regular da relação jurídica processual. Aliás, a própria

Constituição Federal (art.5º,LV) não distingue área de atuação do princípio, seja o

processo judicial civil ou penal e até mesmo aos procedimentos administrativos.

Ensina ainda:

Em verdade, a ampla defesa no cível ainda tem sido considerada como ônus, e não dever, como acontece no processo penal. Tanto assim que nosso CPC diz que o réu poderá oferecer, no prazo de 15 dias, em petição escrita, contestação, exceção e reconvenção. Não temos no cível, como temos no processo criminal, a obrigatoriedade de nomear defensor dativo quando o réu não comparecer (CPP, art.396, parágrafo único). É inconfundível a disponibilidade do direito material (interesse privado) com a disponibilidade do direito processual (regida por interesse público). Por isso, o interesse público que informa também o processo civil tem feito o princípio da defesa cada vez mais abrangente. 107

Invocando a lição de Fritz Baur, o autor defende que, para atender

perfeitamente os mandamentos constitucionais, o princípio da ampla defesa

deverá ser cuidadosamente informado pelo princípio da efetividade social do

processo, ou seja, deverá ser interpretado da maneira mais abrangente possível,

não sendo suficiente à parte seja garantido o direito de defender-se, mas que essa

defesa seja plena, dando-se liberdade de oferecer alegações e meios de uma

defesa efetiva, alcançando-se a paridade de partes no processo. Enfim, a ampla

defesa deve ser vista com certa “cara de humanidade”, não devendo, portanto,

107 Ibid., p. 126.

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limitar-se a razões meramente legais, estando aberto à possibilidade de cogitação

valorativa para, no caso concreto, amenizar as injustiças sociais.108

Quanto ao princípio do contraditório, Rui Portanova enuncia que “é a ciência

bilateral dos atos e termos processuais e possibilidade de contrariá-los com

alegações e provas”, podendo-se dizer que é conceito inerente à própria definição

do que venha a ser processo democrático, porque este implica, ainda que

implicitamente, na participação do indivíduo na preparação do ato de poder.

Segundo o autor, o contraditório assenta-se fundamentado nos preceitos

lógico e político. Em outras palavras, a bilateralidade da ação, geradora da

bilateralidade do processo, é o fundamento lógico; já na regra de que ninguém

poderá ser julgado sem ser ouvido repousa o fundamento político. Daí, o princípio

torna-se dinâmico em razão destes dois preceitos, surgindo a necessidade de um

processo dialético, característica que vai atingir todos os atos do processo

responsáveis pelo convencimento do juiz. Por outro lado, não basta a simples

comunicação dos atos processuais às partes para que se manifestem, porque o

contraditório não deve ser apenas nominal e formal, deve ser pleno e efetivo,

preocupando-se cada vez mais, no processo civil, da concepção que lhe é dada

no processo penal: a preocupação com a qualidade da defesa. 109

Assim, afirma Rui Portanova que tanto a doutrina quanto a jurisprudência

têm aplicado o princípio do contraditório de maneira cada vez mais abrangente.

Por exemplo: não podem as partes ser surpreendidas por decisão judicial

amparada em tese jurídica que não tinham percebido ou tinham considerado sem

maior significado. Em outras palavras, mesmo o conhecimento ex officio deve ser

precedido de prévio conhecimento da parte. Diz ainda: “além disso, a parte deve

tomar conhecimento de eventual novo rumo que o juízo irá tomar. Aqui dar-se a

necessidade do contraditório para a liberdade de escolha do direito pelo juiz

consubstanciada no iura novi curia.” 110

Outra situação que deve ser vista com novos olhos refere-se à revelia.

Primeiro porque devemos distinguir o que seja revelia – ausência de contestação – 108 Ibid., p. 126-128. 109 Ibid., p. 160-161. 110 Ibid., p. 162.

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do que seja efeito da revelia – presunção de veracidade dos fatos alegados pelo

autor na inicial. Este último somente ocorre em relação aos fatos e não ao direito,

de modo que não será produzido em se tratando de direitos indisponíveis.

Ademais, tal presunção é juris tantum, não estando o juiz obrigado a proferir

julgamento antecipado da lide, conforme ordena o art.330, II, do CPC, se não

estiver convencido das razões do autor através da análise das provas juntadas até

então aos autos. Ao réu revel, continua, deverá ser nomeado curador especial, se

sua citação foi efetivada via edital ou por hora cera, sendo obrigatória a

apresentação da contestação pelo curador, que não pode concordar com o pedido

do autor.111

Em linhas conclusivas, adverte o autor:

Pode-se dizer que o princípio do contraditório começa antes da citação e não termina depois da sentença. Se já na elaboração da inicial a idéia de bilateralidade tem seus reflexos, por igual a sentença, com a necessidade de motivação, é informada pelo princípio. Com efeito, ao julgar, o juiz reflete a importância que deu ao direito da parte de influir em seu convencimento e esclarecer os fatos da causa. Na concepção tradicional, o contraditório é visto estaticamente, em correspondência com a igualdade formal das partes. Contudo, do ponto de vista crítico, menos individualista e mais dinâmico, o princípio do contraditório postula a necessidade de ser a eqüidistância do juiz adequadamente temperada. O plano da concreta aplicabilidade da garantia do contraditório tem íntima relação com o princípio da igualdade, em sua dimensão dinâmica (princípio igualizador). Assim, o contraditório opera com vistas à eliminação (ou pelo menos diminuição) das desigualdades jurídicas ou de fato, entre os sujeitos do processo. 112

Nelson Nery Júnior não faz alusão específica ao princípio da ampla defesa,

pois para o autor o contraditório além de consistir numa manifestação do princípio

do estado de direito, liga-se intimamente ao princípio da igualdade de partes e ao

princípio do direito de ação, pois a Constituição Federal ao garantir aos litigantes o

contraditório e a ampla defesa, quer significar que tanto o direito de ação, quando

o direito de defesa são manifestações do princípio do contraditório. A conclusão a

que chega o autor toma em consideração o que modernamente tem sido

entendido no direito italiano, em que tem-se buscado consonância ente o art. 24,

111 Ibid., p. 162. 112 Ibid., p. 162-163.

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da CF Italiana, e o art. 101, do CPC Italiana, razão pela qual Luigi Paolo Comoglio,

por exemplo, entende que o contraditório significa garantia de ação e de defesa

para ambas as partes.113

Em sua explanação, Nery Júnior defende que a amplitude do princípio do

contraditório alcançaria então os litigantes, bem como o assistente litisconsorcial e

simples, o Ministério Público (como parte ou fiscal da lei), podendo ser invocado

tanto por pessoa física quanto jurídica não só para a manutenção da igualdade

processual, mas também dos direitos fundamentais.114

Manifesta-se o autor:

por contraditório deve entender-se, de um lado, a necessidade de dar-se conhecimento da existência da ação e de todos os atos do processo às partes, e, de outro, a possibilidade de as partes reagirem aos atos que lhe sejam desfavoráveis. Os contendores têm direito de deduzir sua pretensões e defesas, realizarem as provas que requereram para demonstrar a existência de seu direito, em suma, direito de serem ouvidos paritariamente no processo em todos os seus termos.

Nesse sentido, adota uma linha de pensamento da qual podemos concluir

que o princípio do contraditório está firmado, para processo civil, no binômio

informação e reação – a primeira, obrigatória, realizada no direito brasileiro através

das citações e intimações; a segunda, facultativa, exercida a critério da parte

interessada.

É claro que ao tratar o contraditório desta forma, está o autor deixando claro

que sua amplitude no processo civil é bem diversa daquela a ser observada no

processo penal. Neste último, deve ser efetivo, real, substancial. Tais

características podem ser facilmente observadas nas situações particulares do

processo penal, como por exemplo, na obrigatoriedade de defesa técnica para o

réu, ainda que revel. Em havendo defensor, ainda assim, somente estará satisfeito

o mandamento constitucional se a defesa não for desidiosa, incorreta, insuficiente

tecnicamente, devendo o feito ser anulado nestas hipóteses e nomeado outro

113JÚNIOR, Nelson Nery. Princípios do processo civil na constituição Federal. 7. ed. rev e atual com as Leis 1-0.352/2001 e 10.358/2001 – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 128. 114 Ibid., p. 129.

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defensor, “tudo em nome do princípio do contraditório conjugado ao da ampla

defesa, ambos garantidos pela Constituição.115

Já no processo civil, a amplitude do contraditório é menor, sendo suficiente

que seja dada oportunidade às partes “para se fazerem ouvir no processo, por

intermédio do contraditório recíproco, da paridade de tratamento e da liberdade de

discussão da causa”. Com isso, pode o réu, devidamente citado, não responder

aos termos da ação revelia – e isso não significa afronta ao princípio do

contraditório, se a oportunidade de contradizer a pretensão do autor lhe foi

concedida em termos reais e não apenas em sentido formal. 116

Assim também ocorre com o julgamento antecipado da lide (art. 330, do

CPC), onde não é ferido o contraditório, já que ocorrerá tão somente naquelas

hipóteses em que tenham lugar os efeitos da revelia, portanto, após oportunidade

de defesa realmente proporcionada ao réu com a citação. Por tais razões Nelson

Nery prefere falar em bilateralidade da audiência, como princípio do processo civil.

O autor defende que o contraditório no processo civil manifesta-se nos três

tipos clássicos de processos: conhecimento, execução e cautelar, sendo

indiferente ainda tratar-se de procedimento de jurisdição contenciosa ou

voluntária. Quanto a estes últimos, ressalta que não se trata de observar o

contraditório em seu aspecto técnico-processual, uma vez que não há a presença

de litigantes nestas espécies de procedimentos e, além do mais, presididos que

são pelo princípio inquisitório, permitem o juiz decidir até mesmo por equidade

(arts. 1.107 e 1.109 do CPC).117

Quanto à presença ou não do contraditório nos processos de execução o

autor defende clara posição:

o contraditório também se manifesta no processo de execução, embora de forma menos abrangente e incisiva do que nos processos de conhecimento e cautelar, pelas próprias peculiaridades do processo executivo. Com os embargos do devedor se instaura verdadeiro processo de conhecimento incidentemente ao processo de execução. Nos embargos, por

115 Ibid., p. 130-131. 116 Ibid., p. 57. 117 Ibid., p. 134-135.

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óbvio, incide o contraditório amplo. No entanto, mesmo antes de opor embargos do devedor, o que somente pode ocorrer depois de seguro o juízo pela penhora, o devedor pode utilizar-se de instrumentos destinados à impugnação no processo da execução, notadamente no que respeita às questões de ordem pública por meio da impropriamente denominada exceção de pré-executividade. 118

Portanto, poderá o devedor apontar irregularidade formal do título executivo,

a ausência de citação, a incompetência absoluta do juízo, o impedimento do juiz,

bem como quaisquer outras questões de ordem pública, todas representando

manifestação do princípio do contraditório no processo de execução. Ainda assim,

a respeito de qualquer ato praticado durante o desenvolvimento procedimental,

deve ser dada oportunidade (através de intimação) ao executado para manifestar-

se, podendo, por exemplo, impugnar a atualização do débito, invocar a ordem de

preferência na penhora etc.

Humberto Theodoro Júnior ao examinar os princípios informativos – que em

seu entendimento são consagrados por um conjunto de normas de direito

processual oriundas principalmente do devido processo legal – dedica algumas

observações ao princípio do contraditório.

Na lição do autor, o contraditório consiste “na necessidade de ouvir a

pessoa perante a qual será proferida a decisão, garantindo-lhe o pleno direito de

defesa e de pronunciamento durante todo o curso do processo”. Não há privilégios

de qualquer sorte. Daí, surgem três conseqüências básicas deste princípio: a) a

sentença só afeta as pessoas que forem parte no processo, ou seus sucessores;

b) só há relação processual completa após regular citação do demandado; e c)

toda decisão só é proferida depois de ouvidas ambas as partes. 119

Ensina que o contraditório não se resume na simples oportunidade que

deve ser dada à parte de manifestar-se sobre as alegações do outro litigante, mas,

sobretudo, de produzir contraprova, sob pena de se cometer cerceamento de

defesa. Assim, ao contrário do que ocorre em outros princípios processuais em

118 Ibid., p.136-137. 119 THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de direito processual civil. Revista dos Tribunais, São Paulo, nº 665, mar. 1991, p. 24-25.

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que são admitidas exceções, o contraditório é absoluto, devendo ser sempre

observado por juiz e partes sob pena de nulidade do processo.

Porém, não devemos entender tal característica como sendo uma

supremacia do contraditório sobre os demais princípios, uma vez que o devido

processo legal exige que o contraditório por vezes tenha que ceder

momentaneamente a medidas indispensáveis à eficácia e efetividade da garantia

de acesso ao processo justo. Como exemplo, segundo o autor, temos as

hipóteses de medidas liminares cautelares ou antecipatórias que são concedidas a

uma parte sem a defesa da outra. Tais medidas, no entanto, somente devem ser

utilizadas em regime de excepcionalidade, de verdadeira urgência, e não podem

se transformar em completa e definitiva eliminação da garantia do contraditório e

ampla defesa. Tanto é tão logo seja cumprida a medida urgente, deve ser

proporcionada à parte contrária possibilidade de defender-se, uma vez que “a

solução definitiva da causa somente será alcançada após o completo exercício do

contraditório e ampla defesa por ambos os litigantes”. 120

Aludido autor conclui exemplificando que o contraditório deve harmonizar-se

com os demais princípios processuais, como nos casos típicos de cerceamento de

defesa que utiliza como ilustração: um documento foi juntado aos autos sem

ciência da parte contrária, ou uma diligência probatória foi cumprida sem que um

dos litigantes fosse intimado a dela participar. Nestas situações não se anulará o

processo se a sentença não se baseou nas provas irregularmente produzidas,

havendo necessidade para tanto de efetivo prejuízo: o efeito nocivo do elemento

de convicção sobre o resultado do processo.

Devemos observar que Humberto Theodoro Júnior, embora esteja tratando

do princípio do contraditório, indica várias situações em que tanto o princípio foco

de sua explanação quanto o princípio da ampla defesa devem ser respeitados,

numa clara demonstração de que os entende como expressões indicando o

mesmo fenômeno. Se não for este seu pensamento, faltou-lhe cuidado na

120 Ibid., p. 25.

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apresentação do tema, data vênia. Aliás, ao arrolar os princípios informativos do

processo civil, não indica a ampla defesa, mas, somente o contraditório. 121

Na verdade, o princípio do contraditório, sem o que não se pode admitir o

processo como democrático, não é senão um simples aspecto do direito

fundamental e genérico da igualdade de todos perante a lei, que, no campo da

justiça, se traduz na igualdade das partes no processo.122

Segundo Celso Ribeiro Bastos, devemos entender a ampla defesa como “o

asseguramento que é feito ao réu de condições que lhe possibilitem trazer para o

processo todos os elementos tendentes a esclarecer a verdade”. É por isso que

ela assume múltiplas direções, ora se traduzindo na inquirição de testemunhas,

ora na designação de um defensor dativo, não importando, assim, as diversas

modalidades, em um primeiro momento. Assim, a ampla defesa transforma-se

naquele instrumento assegurador de que o processo não se converterá “em uma

luta desigual em que ao autor cabe a escolha do momento e das armas para

travá-la e ao réu só cabe timidamente esboçar negativas.123

Celso Ribeiro Bastos refere-se à ampla defesa como garantia inerente à

figura do réu, por entender que as mesmas faculdade não podem estar à

disposição de ambos os litigantes, o que poderia redundar em extrema injustiça,

principalmente porque o demandado está em posição naturalmente desvantajosa.

Ao autor, por exemplo, cabe o privilégio de escolha do momento para iniciar a

ação. Por conseqüência lógica, esta condição não pode ser estendida ao réu, que

deve acatá-lo, e, a ele submeter-se, surgindo daí uma primeira função da ampla

defesa que é justamente propiciar meios compensatórios à perda da iniciativa,

restaurando um princípio de igualdade entre litigantes essencialmente diferentes.

Daí concluir com propriedade:

121 Além desse aponta como princípio informativo do processo: devido processo legal, inquisitivo e dispositivo, duplo grau de jurisdição, boa-fé e lealdade processual e verdade real. Como princípio informativos do procedimento: oralidade, publicidade, economia processual e eventualidade ou preclusão (Ibid., p. 22). 122 THEODORO JÚNIOR, Humberto. A garantia fundamental do devido processo legal e o exercício do poder de cautela no direito processual civil. Revista dos Tribunais, São Paulo, nº 665, mar. 1991, p. 11-22 123 BASTOS E MARTINS, Celso Ribeiro e Ives Gandra da Silva. Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva, 1989, p. 266.

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a ampla defesa só estará plenamente assegurada quando uma verdade tiver iguais possibilidades de convencimento do magistrado, que seja ela alegada pelo autor, que pelo réu. Às alegações, argumentos e provas trazidos pelo autor é necessário que corresponda uma igual possibilidade de geração de tais elementos por parte do réu. Há que haver um esforço constante no sentido de superar as desigualdades formais em sacrifício da geração de uma igualdade real.124

No tocante ao contraditório, Celso Ribeiro Bastos entende que este está

inserido na ampla defesa, quase confundindo-se com ela integralmente porquanto

uma defesa – modernamente – não pode se senão contraditória, cabendo igual

direito à outra parte de opor-se, apresentando versão que lhe convenha ou até

mesmo interpretação jurídica diversa daquela promovida pelo autor. E afirma:

Daí o caráter dialético do processo que caminha através de contradições a serem finalmente superadas pela atividade sintetizadora do juiz. É por isto que o contraditório não pode se limitar ao oferecimento de oportunidade para produção de provas. É preciso que ele mesmo avalie se a quantidade de defesa produzida foi satisfatória para a formação do seu convencimento. Portanto, a ampla defesa não é aquela que é satisfatória segundo os critérios do réu, mas sim aquela que satisfaz a exigência do juízo.125

Enfatiza Gil Ferreira de Mesquita que a função jurisdicional somente poderá

ser desempenhada satisfatoriamente pelo magistrado, se este contar com a

colaboração das partes (autor e réu) através da formulação de suas razões, o

fornecimento de informações e a produção de provas. O contraditório presta-se

justamente, de início, para a manutenção do processo como fenômeno dialético,

necessário para que ambos os litigantes tenham no decorrer da atividade

processual as mesmas condições para defesa de seus interesses, já que sujeitos

parciais da relação jurídica processual. 126

Dizia Francesco Carnelutti que:

se a colaboração de uma parte é parcial ou em outras palavras, tendenciosa, este defeito se corrige com a colaboração da parte contrária, posto que esta tem interesse em descobrir a outra parte

124 Ibid., p. 267. 125 Ibid., p. 267-268. 126 MESQUITA, Gil Ferreria de. Princípio do contraditório e ampla defesa no processo civil brasileiro. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2003, p. 156-157. Enfatiza ainda “O contraditório, no entanto, não tem como destinatário apenas os sujeitos processuais. Também o legislador é atingido por seus efeitos, uma vez que não poderá elaborar norma jurídica que venha a suprimir o mandamento constitucional.”

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da verdade; portanto, o que torna possível e útil dita colaboração é o contraditório.127

Para Kazuo Watanabe, a atividade do Estado não pode dispensar a

participação dialética das partes,

A cognição torna-se necessária no momento em que o Estado avoca para si o monopólio da justiça, interpondo-se entre os homens em conflito de interesses. A interposição do Estado atende à razão política de evitar o prevalecimento do mais forte e de substituir a força pela justiça, num esforço de solucionar os conflitos pelos meios mais civilizados, e isso somente se consegue conhecendo-se as razões de ambas as partes. 128

Salvatore Satta aduz que o contraditório efetivamente proporcionado aos

litigantes é indiscutivelmente necessário para regular a formação do processo

antes de sua própria existência, já que o processo que desenvolve-se sem a

observância das regras do contraditório é juridicamente nulo. Mesmo as exceções

feitas pelo legislador em vários dispositivos são aparentes, já que o contraditório

não poderá sofrer qualquer derrogação. E completa: “pode-se realmente admitir

que enquanto geralmente se dispõe á observância do contraditório com a citação,

em casos peculiares se podem também variar as formar de ingresso em juízo, ou

sujeitar o contraditório eventual, ou adiá-lo, jamais suprimi-lo.”129

Desta forma, podemos concluir que a participação das partes, considerando

sujeitos parciais da relação jurídica processual, somente pode ser proporcionada

com a tomada de conhecimento de todos os atos processuais praticados durante a

atividade processual, sejam eles realizados pelo Estado (juiz e seus auxiliares),

sejam realizados pelos seus adversários. Daí o caráter essencial dos atos de

comunicação processual para que o contraditório seja observado, que deverá ser

exercido através da transmissão de informações sobre os atos processuais

praticados, dirigidas às pessoas interessadas e em cuja esfera de direito tais atos

poderão atuar. No sistema do atual Código de Processo Civil a comunicação é

realizada através da citação e das intimações.

127 CARNELUTTI, Francesco. Como se faz um processo. Tradução de Hiltomar MARTINS Oliveira: Ideal, 2000, p. 99. 128 WATANABE, Kazuo. Da cognição no processo civil. . 2ª ed., Campinas: Bookseller, 2000, p. 44. 129 Salvatore Satta. Apud MESQUITA, Gil Ferreira de. Princípio do contraditório e ampla defesa no processo civil brasileiro. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2003, p. 179.

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A citação, definida no art. 213 do CPC, é o ato pelo qual o réu toma

conhecimento da existência de uma ação contra ele promovida e, querendo,

poderá apresentar respostas, sob pena de revelia. Trata-se, portanto, de ato de

comunicação dirigido à figura do demandado e, salvo situações excepcionais,

somente ocorrerá uma vez para cada réu no decorrer do processo. As intimações,

a seu turno, são definidas no art. 234, do CPC, como os atos pelos quais “se dá

ciência a alaguem dos atos e termos do processo, para que faça ou deixe de fazer

alguma coisa”. Estas são dirigidas tanto ao autor quanto ao réu (com comando ou

não para praticar um ato), e ainda, são meios hábeis á comunicação dirigida a

terceiros, interessados que não integrem a relação jurídica processual.

No entendimento de Eduardo Cambi, o movimento dialético que se instaura

com a ação (autor) e a reação (réu), o juiz forma seu convencimento (síntese), que

é plasmado na sentença. Mas esta poderá existir mesmo que não haja defesa,

pois a defesa é a faculdade e não um dever do réu. O que é mais importante, e

configura-se imprescindível para o atendimento ao contraditório, é que ninguém

pode ser condenado sem ter prévia oportunidade de ser ouvido em juízo, embora

a atuação da jurisdição deva existir mesmo na ausência do exercício do direito de

defesa. Citado autor conclui com exatidão:

trata-se de conferir oportunidades razoáveis para que cada uma das partes realize, dentre os vários atos juridicamente admissíveis, aquele que considere o mais apropriado para neutralizar o movimento contrário, tirando o melhor proveito possível. (...) Nisso consiste a tática processual, na qual estão implícitas as responsabilidades e as habilidades de cada litigante, podendo o processo ser comparado a um jogo de xadrez, em que cada competidor, deve antes de fazer qualquer movimento, estudar sua situação jurídica e a do adversário, bem como tentar prever qual a possível reação, inclusive psicológica, que o ato venha a causar na parte contrária e no juiz. 130

De todas essas observações, parece tecnicamente correto admitir que a

participação direita do juiz durante todo o desenvolvimento da atividade processual

seja fator indispensável ao pronto atendimento ao contraditório, porque toda a

atividade dialética realizada pelos litigantes, embora estejam em juízo cada qual

defendendo seus interesses como objetivo mediato, tem como objetivo imediato

130 CAMBI, Eduardo. Direito constitucional à prova no processo civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 125.

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participar da formação do convencimento do juiz, o responsável pela entrega da

prestação jurisdicional às partes, favorável a uma delas e desfavorável a outra.

Temos, pois, que o princípio do contraditório não se presta apenas a dar

ciência aos litigantes de todos os atos do processo, mas também para

proporcionar-lhes oportunidades de reagir contra quaisquer atitudes prejudiciais do

juiz ou do adversário. Daí, a doutrina comumente apresenta a garantia através de

um binômio: informação-reação. Esta fórmula sofre variações dependendo do

autor consultado: Vicente Greco Filho prefere falar em informação e

contraposição; Rogério Lauria Tucci e José Rogério Cruz e Tucci optam por

informação e manifestação; Cândido Dinamarco aponta informação e participação;

enquanto Joaquim Canuto Mendes de Almeida refere-se a informação e

contrariedade. Optamos por adotar a concepção de Nelson Nery Júnior, baseado

no entendimento de Sérgio La China: informação e reação.131

Este binômio pode ser considerado a condensação ideológica do princípio

do contraditório em âmbito processual civil e penal, mas apresenta-se distinto

dependendo do ramo do processo a examinar. No processo penal, por exemplo,

tanto a informação quanto a reação são obrigatórias (no interrogatório réu tem

direito ao silêncio). Quer dizer, mesmo estando o réu autorizado a realizar sua

auto-defesa no processo criminal deverá ter sua defesa patrocinada por advogado,

responsável pela defesa técnica.

131 JÚNIOR, Nelson Nery. Princípios do processo civil na constituição Federal. 7. ed. rev e atual com as Leis 1-0.352/2001 e 10.358/2001 – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 130.

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3. O CONTRADITÓRIO NA EXECUÇÃO

Segundo professor Antônio Cláudio Costa machado:

Processo de execução é o processo disciplinado pela lei cujo escopo é a entrega pelo Estado de um provimento jurisdicional que satisfaça concretamente o direito já reconhecido num título executivo. Por meio dele não se busca a declaração de direito, mas a realização efetiva e material desses, o que se dá pela invasão do patrimônio jurídico do devedor em seu mais amplo sentido, pelo Estado.132

A execução foi, por muito tempo, considerada como fase suplementar da

ação. Sustentavam os juristas que, no processo judiciário, a primeira fase era o

conhecer dos fatos, ou seja, processo de cognição ou conhecimento, que findava

com o querer do juízo – decisão – investido de eficácia especial, e atribuía ao

vencedor direito reconhecido (que era conhecido e querido). Era preciso, porém,

que tal reconhecimento se impusesse ao vencido, para que se fizesse valer o seu

direito. Em outras palavras, era necessário que o juiz agisse, complementando a

atividade jurisdicional, alcançando o resultado esperado. Dizia-se, por isso, que a

atividade jurisdicional era o somatório da atividade de conhecimento e da atividade

de coerção (conhecimento e execução = atividade jurisdicional). Em conseqüência

desse entendimento, sustentava-se haver uma unidade lógica entre ação e

execução, tal como no processo humano, consistindo no “saber, querer e agir”,

correspondendo à execução à última etapa. Sendo assim a execução passou a

ser a última etapa para assegurar a eficácia do julgado.

No processo de conhecimento, a incidência do princípio do contraditório é

indiscutível, até mesmo porque a estrutura procedimental construída no processo

civil brasileiro prevê a prática de atos processuais, em momentos facilmente

identificáveis, que bem caracterizam o respeito a tal garantia. No processo de

execução, contudo a facilidade de vislumbrar se o contraditório não se apresenta

nos mesmos moldes, não sendo recentes os esforços das doutrinas brasileiras e

alienígena no sentido de determinar a presença (ou não) do princípio no processo

de execução, que em face de suas características próprias, sempre foi colocado

132 COSTA MACHADO, Antônio Claudio. Código de Processo Civil Interpretado. 6ª ed., São Paulo: Editora Manole, 2007, p. 723.

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70

em posição comparativa com o processo de conhecimento, até mesmo para a

determinação da incidência ou não da garantia do contraditório.

Humberto Theodoro Júnior, salientando as diferenças entre processo de

conhecimento e de execução, invocando Liebman, sustenta que aquela diferença

consiste “no fato de pender processo de cognição à pesquisa do direito dos

litigantes”, enquanto o de execução “parte justamente do direito do credor,

atestado pelo título executivo.”133

Significa que na execução não há dúvidas quanto ao direito do credor, seu

pressuposto é a certeza desse direito, não sendo a execução um processo

contraditório. Nele não se discute o mérito da relação jurídica material entre as

partes, o que não quer dizer que não se reconheça ao devedor a possibilidade de

resistir à pretensão executiva. É que essa resistência não se instala no processo

de execução, mas fora dele, através dos embargos de devedor onde instalar-se-á

o contraditório, limitado na matéria passível de discussão. Não há, portanto,

contestação, mas defesa incidente do executado.

Poderíamos, numa conceituação objetiva, necessária ao entendimento do

iniciante da matéria, conceituar a execução como conjunto de atos materiais

destinados a concretizar o direito do credor, reconhecido ou declarado na

sentença (título judicial) ou inserido no título a que a lei confere igual eficácia (título

extrajudicial).

Em sede de proposições doutrinárias, conforme indica Ângelo Bounsignore,

temos três posições indicando a divergência do princípio do Contraditório no

processo de execução: a) exclusão absoluta do contraditório diretamente no

processo de execução; b) Admissão da incidência com limitação; c) vigência

absoluta do princípio no processo de execução. Os defensores da primeira

entendem que por suas características próprias, estaria o processo de execução

alheio à incidência do contraditório, admissível sua presença apenas quando

propostos os embargos do devedor, ação incidental e cujo objetivo – discutir o

mérito do direito pretendido pelo exeqüente e/ou suscitar defeitos na constituição e

133 THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil. Vol. I, 34ª ed., Rio de Janeiro:

Forense, 2000, p. 53.

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71

desenvolvimento da execução – exige a observância daquele princípio. A terceira

posição, à qual nos filiamos, é justamente aquela que vislumbra no próprio

processo de execução necessidade de obediências ao contraditório, mesmo que

suas características o diferenciem tanto do processo de conhecimento.134

3.1. Histórico do Processo de Execução

No Direito Romano, a execução visava a própria pessoa do executado,

vencido na ação. A execução se fazia através da manus injectio, que se traduzia

no seguinte: O vencedor da demanda, depois de 30 dias do julgado, sem que o

vencido cumprisse a obrigação imposta na sentença, conduzia este último, á força,

á presença do juízo e, perante testemunhas, lançava-lhe a mão o julgador, manus

injectio, gesto que autorizava o credor a encarcerá-la, transportando-o algemado.

Feito isto, devia o credor apregoá-lo em três feiras, a intervalos de nove dias,

declarando o valor da condenação para que alguém por ele saudasse o débito. Se

não aparecesse alguém para ajudá-lo no cumprimento da obrigação, o credor

tinha direito de vendê-lo fora da cidade – trans tiberium, podendo até matá-lo. 135

No direito clássico, a situação do vencido melhorou porque as partes

deveriam comparecer perante o pretor, se o vencido não cumprisse a obrigação, e

poderia até argüir, em sua defesa, a nulidade da sentença ou expor exceção,

como a do pagamento, o que fazia surgir a litiscontestatio e o judicium. Se fosse

novamente vencido, era condenado ao pagamento em dobro do que devia. Se,

porém, diante do pretor confessava a obrigação, tinha início a execução. Significa

que a sentença condenatória não era, a rigor, um título executivo, mas tão-

somente a obligatio judicati, que substituía a primitiva obrigação.136

Se o devedor, vencido, não cumpria a condenação, o credor tinha de propor

contra o mesmo a actio judicati, que, esta sim, leva à execução, caso o devedor

não pagasse. É que o imperium só o pretor possuía; o arbítrio não. Na época

pretoriana, a manus injectio ainda era a forma de execução, só que o credor

adjudica o devedor para fazê-lo pagar a dívida com o seu trabalho. Só muito 134 LUCON, Paulo Henrique dos Santos. Garantia do tratamento paritário entre as partes. In; José

Rogério Cruz e Tucci. Garantias Constitucionais do processo civil. Revista dos tribunais, 1998, p. 91. 135 RODRIGUES, Maria Stella Vilella Souto Lopes. ABC do Processo Civil, V.I Processo de Conhecimento e Processo de Execução, Editora RT, p. 45. 136 http://www.escritorioonline.com/webnews/noticia.php?id_noticia=5098& (acesso em 23/09/08).

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72

tempo depois é que surgiu a forma de execução sobre os bens de devedor, a

pignoris capio, criação do pretor Rutílio.137

Nessa forma de execução, os bens do vencido eram vendidos, levados a

praça, e o produto da venda servia ao pagamento de credor, dividindo aqueles

proporcionalmente entre credores, se outros viessem a protestar pelo pagamento

de seus créditos em face do mesmo devedor. Era a bonorum venditio. Tal

execução dava grande lucro ao comprador dos bens, já que poderia, depois,

vendê-los parceladamente. Em razão disso, concedeu-se ao vencido o direito de

pedir que a venda de seus bens se fizesse parceladamente, até que seu produto

solucionasse a divida executada na distracio bonorum.

Finalmente, na fase final do Direito do Império surgiu a pignus ex causa

judicati captum, do Imperador Antônio Pio, que era forma de execução menos

onerosa para o devedor executado, pois que só se lhe penhoravam os bens

necessários à satisfação do julgado. No Direito português, a execução se fazia de

duas maneiras, pela actio judicati e por ofício do juiz. Este é o modo usual,

ocorrendo pelo pedido feito pelo credor ao juiz, para que obrigasse o devedor a

cumprir o julgado. Aquele tinha lugar quando a execução se fazia perante juízo

diverso daquele onde proferida a sentença, o que, hoje, se faz através de

precatória executória.

No nosso Direito a execução, até o Código Processual Civil de 1939, era

fase complementar do processo de conhecimento. Era a atuação da sanção, que

decorria da sentença. E para isso criaram-se regras para a execução da dívida. No

ordenamento brasileiro, só o patrimônio responde (exceto nos casos de

depositário infiel e pagamento de pensão alimentícia, casos em que pode ocorrer

prisão). Essas regras criadas tiveram como princípio a existência de duas pessoas

honestas: um devedor e um credor, e todos com um objetivo: o primeiro pagar o

débito e o outro receber o crédito.

A dívida representada pelo título executivo extrajudicial exigia a propositura

de ação especial, ação executiva, com procedimento especial como se vê do art.

298 do CPC de 1939.138

137 Ibid, p. 51.

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73

O código de 1939 vigeu até 1973, quando, sob a batuta de Alfredo Buzaid,

então Ministro da Justiça, foi promulgada a Lei nº 5.869 de 11/01/73 que, no dizer

de Cândido Rangel Dinamarco representou "um passo de gigante no que diz

respeito a alguns aspectos da técnica processual, à adoção de conceitos

modernos, à correta estruturação dos institutos." 139

Cândido Rangel Dinamarco ensina que:

O Código de Processo Civil de 1973 não se caracterizou como

repúdio a uma velha estrutura ou aos seus pressupostos, com

opção por uma nova, inspirada em novas e substanciais

conquistas. Mesmo tendo sido elaborado com o declarado intuito

de constituir-se efetivamente em um novo estatuto e não em

meros retoques à lei velha, o Código Buzaid foi ainda o retrato do

pensamento jurídico-processual tradicional e, nesse plano, não

havia tanto a modificar então como em 1939. Urgia, sim, corrigir

os defeitos evidenciados pela experiência trintenária, além de

aperfeiçoar os institutos à luz dos maiores conhecimentos do

direito processual, já incorporados à cultura brasileira na década

dos anos setenta, de Enrico Túlio Liebman.140

Em seu artigo sobre “A reforma do processo de execução. Pontuações ao

Projeto de Lei nº 3.253/2004”, Maria de Fátima Abreu Marques Dourado, sustenta

que o novo código vinha pôr o sistema processual civil brasileiro em consonância

com o progresso científico dos tempos atuais, Buzaid destacou como principais

inovações no processo de execução, que, a partir de então, faria parte do Livro II e

não mais da última parte da lei, como no Código de 1939 (arts. 882 usque 1.030),

os seguintes pontos:

1) a unidade do processo de execução, ou seja, não mais haveria dois meios de

se realizar a execução, como no direito luso-brasileiro, que previa a via pela parata

executio (títulos executivos extrajudicial) e pela ação executiva (quando fundada

em título executivo judicial), mas, abraçando as idéias de Liebman e a evolução

138 Ibid. p. 53. 139 DINAMARCO, Cândido Rangel. A reforma da reforma. 3ª ed. Malheiros : São Paulo, 2002, p.21. 140 Ibid. p. 22-23.

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74

histórica, a novo código adotou a equivalência das sentenças e dos instrumentos

públicos;

2) a criação do instituto da insolvência civil, com a distinção entre a execução

contra devedor solvente e execução contra devedor insolvente. Na primeira

hipótese, o devedor possui bens livres e desembaraçados e o credor obtém a

satisfação de seu direito em execução singular, na segunda hipótese, as dívidas

excedem às possibilidades do devedor de solvê-las, e, neste caso, dá-se a

insolvência civil, cuja declaração produz o vencimento antecipado das dívidas, a

arrecadação dos bens e a execução por concurso universal.141

Desde sua promulgação até os dias atuais, o Código de Processo Civil

passou por uma série de reformulações, através de leis que foram sendo editadas

ao longo dos anos, tudo com vistas a obtenção de uma legislação processual mais

eficiente diante da enormidade de demandas que surgiram, principalmente após a

Constituição de 1988 que introduziu no ordenamento pátrio princípios e garantias

fundamentais, entre eles a ampliação do acesso a justiça.

Antes mesmo de entrar em vigor – a Lei que instituiu o Código de Processo

Civil teve vacatio legis de um ano – alguns dispositivos foram retificados pela Lei

5.925 de 01/10/73. A partir de então, outras alterações vieram através das leis nº

6.851 de 17/11/80 e nº 8.898 de 29/06/94, esta última alterou dispositivos relativos

à liquidação de sentença e lei nº 8.953 de 13/12/94, que por sua vez modificou

vários dispositivos do processo de execução, trazendo profunda reformulação ao

Livro II do Código de Processo Civil.

Em dezembro de 2001, foi publicada a lei nº 10.358 que, dentre outras

coisas, fez alterações no artigo 575 do CPC que trata da competência para a

execução fundada em título executivo judicial, revogando o antigo inciso III e

introduzindo o inciso IV, estabelecendo que quando o título executivo for sentença

penal condenatória ou sentença arbitral a execução se processará perante o juízo

cível competente.

141 http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=7885 (acesso em 22/09/09)

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75

Esta mesma lei alterou, ainda, o artigo 584 do CPC para determinar nova

redação ao inciso III e acrescentar o inciso VI elevando a sentença arbitral à

categoria e título executivo judicial. Mais recentemente, foi editada a lei nº 10.444

de 07/05/02, que reformulou vários artigos do Código de Processo Civil, muitos

deles pertencentes ao processo de execução.

As alterações trazidas pela Lei 11.382 de 2006, que cuidou da execução de

títulos extrajudiciais, buscaram agilizar o processo de execução a fim de satisfazer

o direito do credor, atacando várias situações em que o processo atrasasse a

efetivo resultado esperado, em muitas situações claramente protelatórias. A

sistemática é uma seqüência do rumo das alterações já introduzidas pela lei

11.232/05 que cuidou da execução de título executivo judicial, a que deu o nome

de cumprimento de sentença (art. 475-J a 475-R).

Portanto, podemos afirmar que nova etapa reformista foi desencadeada no

final de ano de 2.005, com a edição da Lei nº 11.187, de 20-10-2005, que alterou

pontualmente o recurso de agravo. Após isso, editaram-se as Leis 11.232, de

22/12/2005, 11.276, 11.277, ambas de 07/02/2006 e Lei 11.280, de 16/02/2006.

Em linhas gerais, adotou-se o sincretismo das tutelas, alterou-se a sistemática da

liquidação das sentenças com resolução de mérito, suprimiu-se a execução de

título judicial como meio processual autônomo criando em seu lugar o "incidente

de cumprimento de sentença", afora a alteração dos embargos executivos

judiciais, substituídos pela impugnação sem efeito suspensivo (em regra).142

142 MAFRA, Jéferson Isidoro. Sincretismo processual. CD-Rom n. 52. Produzida por Sonopress Rimo Indústria e Comércio Fonográfico Ltda.

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3.2 O Contraditório no Processo de Execução de Sentença e de Título Extrajudicial.

Com a entrada em vigor da Lei n. 11.232/2005 (Reforma da Execução), a

satisfação dos créditos reconhecidos em títulos executivos judiciais passa a

depender apenas de uma “fase de execução” do processo de conhecimento

denominada “cumprimento de sentença” (arts. 475-I a 475-R). Antônio Cláudio

Costa Machado explica que, “a conseqüência disso é que o Livro II do CPC

passou a reger, principalmente, o processo de execução fundado em título

executivo extrajudicial, e subsidiariamente, a execução de título judicial (art. 475-

R)”.143

Afirma ainda, aludido professor, que de todos os dispositivos que compõem

a chamada Reforma da Execução (Lei n.11.232/2005), dois deles correspondem,

de fato, à coluna vertebral do novo sistema implantado: o art. 162, §1º, que

eliminou do conceito de sentença a necessária eficácia de extinção do processo; e

o art. 475-I, caput, que cria a fase de “cumprimento de sentença”.

Assim, temos que as execuções para entrega de coisa e de obrigação de

fazer e de não fazer – chamadas pela doutrina de específicas, posto que por meio

delas se busca a satisfação do credor mediante a realização da própria prestação

a que se obrigou o devedor, contrapõem-se às execuções por quantia certa,

apelidadas de genéricas, ante a circunstância de que a satisfação do credor é

alcançada pela entrega de um montante em dinheiro que nem sempre

corresponde à prestação ou recusa obstinada do devedor em cumpri-la, hipóteses

em que as execuções específicas se convertem em genéricas.

Costa Machado entende ainda que, sob tal ponto de vista classificatório, o

termo “execução genérica” não se sustenta em nenhuma das situações em que o

desejo e a pretensão do credor tem por objeto exatamente a quantia certa, visto

que nesse contexto a execução por quantia é tão especifica quanto as execuções

específicas. Já a execução por quantia certa contra devedor solvente é a mais

comum das execuções indubitavelmente, não só por causa da possibilidade de

conversão aludida, como também porque a maioria das relações jurídicas no

143 COSTA MACHADO, Antonio Cláudio. Código de Processo Civil Interpretado. 6ª ed., São Paulo: Editora Manole, 2007, p. 723.

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77

mundo moderno envolve prestações pecuniárias e, além disso, a prática mostra

que a regra é a solvência e não a insolvência dos devedores (a execução por

quantia certa contra devedor insolvente – arts. 748 a 786 – é a outra modalidade

de execução genérica disciplinada pelo CPC). 144

Com a entrada em vigor da lei n. 11.232/35 (Reforma da Execução), o

Capítulo IV, Título II do Livro II, passa a reger o processo de execução por quantia

fundado em título executivo extrajudicial apenas, porque os títulos judiciais se

executam por meio de “cumprimento da sentença”, ou seja, uma fase de execução

do próprio processo condenatório (arts. 475-I a 475 – R).

Passamos agora a analisar a incidência do contraditório nas execuções

derivadas de obrigações específicas, isto é: obrigações pessoais cujo objeto é

determinado e específico. Tal distinção é importante porque a doutrina brasileira

tende a aproveitar as disposições dos artigos 621 e seguintes do CPC para todos

os tipos de execução, seja obrigacional ou real, como denuncia Ovídio Baptista da

Silva.145

3.2.a. Contraditório na Execução para Entrega de Coisa Certa

Há uma tendência em confundir o que seja execução real e pessoal, pois

doutrinadores como José Carlos Barbosa Moreira lecionam que a obrigação de

entregar coisa certa pode ser derivada de direito real ou pessoal. Não

concordamos com tal afirmativa, pois a pretensão real, inexoravelmente, é

fundada em direito real e não em direito obrigacional. 146

A “entrega de coisa certa” é uma das execuções mais simples, tanto é que

o Código dispensou apenas oito artigos para o seu regulamento. Trata-se de

execução de forma específica. Segundo João Lace Kuhm:

Na execução genérica por crédito, o credor se satisfaz com o equivalente em dinheiro, nesta não. O bem buscado é a coisa e só com esta se satisfará o credor. Não vedado, todavia, quando a

144 Ibid., p.834-835. 145 SILVA, Ovídio Baptista. Curso de Processo Civil, Vol. II, 2ª ed. Porto Alegre: Sérgio Fabris Editor 1993, p. 84. 146 MOREIRA, José Carlos Barbosa. Novo Processo Civil Brasileiro. Vol.II, 2ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 1980, p. 24.

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78

impossibilidade de reavê-la, satisfazer-se com as perdas e danos daí resultantes. Neste caso, segue o rito da execução genérica – após apurado o quantum debeatur, o procedimento é de execução por quantia certa. 147

Afirma ainda aludido autor que, no que diz respeito à incidência do

contraditório, nenhuma novidade se apresenta. A citação é imperativa para o

desenvolvimento regular do feito, tal que em qualquer outro processo, seja de

conhecimento ou de execução. As questões são as mesmas, e forma tratadas

quando do exame da execução por crédito.

Outros incidentes podem ocorrer, todavia, também nesse tipo de

procedimento, mas o texto legislativo não anuncia nenhuma particularidade

expressiva. Todos os incidentes que poderão dar azo ao conhecimento de

questões se relacionam com o cumprimento da obrigação no plano fático, tais

como aqueles envolvendo o bem reclamado, modo de entrega etc.

De peculiar, ao revés da execução genérica, diz a lei que o processo se

encerra por sentença que julgue cumprida a execução. Naquela, encerra-se pela

satisfação do credor com o recebimento de seu crédito, pela transação, renúncia

ao crédito, ou qualquer outro meio de remição, reclamando mera declaração

judicial do ocorrido, apenas para produção de efeitos. Aqui, contraria-se todo o

primado do procedimento executivo que afirma, reiteradamente, inexistir decisão

terminativa. O artigo 624 do CPC determina a exigência de lavração do termo para

extinguir ou não a execução. É, sem dúvida, um elemento caracterizador deste

tipo de execução onde o contraditório aflora soberano. João Lace Kuhn explica

ainda que:

A sentença, decisão de mérito, acarreta coisa julgada material com todos os seus reflexos. Só é concebida, com validade e legitimidade, se obtida dentro de processo livre, democrático e, principalmente, contraditório. O duplo grau de jurisdição é imprescindível, também, para a segurança da prestação jurisdicional, e nele se observa, intensamente, sob pena de nulidade, o contraditório puro, sem atenuações e limitações. 148

147 KUHN, João Lace. O princípio do contraditório no processo de execução. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998, p. 99. 148 Ibid., p. 101.

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Não temos receio em afirmar que, tal como no tema da execução geral, a

execução de entrega de coisa certa guarda o mesmo móvel ideológico no que diz

respeito às garantias constitucionais atinentes a emprestar legitimidade à

jurisdição. Com a entrada em vigor da Lei nº 8953/94, que permitiu a utilização de

títulos executivos extrajudiciais para aparelhar a execução, importante questão se

apresenta. No caso de a res não ser encontrada, por desaparecimento,

perecimento ou outro motivo qualquer, deve, nos termos da lei, converter-se em

perdas e danos, continuando a execução, nos mesmos autos, por quantia certa.

Todavia, é certo que para se obter o quantum a ser executado como

indenização, devemos realizar uma verdadeira cognição, com produção dos mais

variados tipos de provas dentro do processo de execução – pois não temos a

possibilidade da liquidação de sentença – como procedimento cognitivo autônomo.

Há, no entanto, um elemento fundamental, face à disciplina legislativa

acerca da necessidade do contraditório executivo – sob pena de macular a

execução. É a rega do artigo 630 do CPC (entrega de coisa incerta), onde está

disposto que qualquer parte poderá impugnar a escolha da outra, em 48 horas,

impugnar a escolha feita pela outra, e o juiz decidirá de plano, ou se necessário

ouvindo perito de sua nomeação, enfim: realizando uma verdadeira cognição

dentro do processo de execução.

Alcides Mendonça Lima, ao comentar a regra do artigo 630, diz estabelecer-

se um singelo contraditório entre as partes, explicando que tudo está contido no

princípio do artigo 620 do mesmo diploma, cuja finalidade é evitar o ônus

injustificado para o devedor (modo menos gravoso). 149

Não podemos concordar como eminente professor no aspecto singelo, pois

pode ser na extensão, mas, na importância para o prosseguimento do feito, é

fundamental. Diríamos que se torna o incidente – contraditório executivo -, na

execução de entrega de coisa incerta, prejudicial à ação principal. Uma vez não

resolvida a questão do bem a ser perseguido, refoge de conteúdo a própria ação,

149 LIMA, Alcides Mendonça Lima. Comentários ao CPC, Vol.VI, tomoII, 3ª ed. Rio de Janeiro:Forense, 1979, p. 804-805.

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80

perde o objeto e sentido. Há, antes de tudo, a necessidade de se verificar e

individuar o objeto, a coisa que se pretende ver excutida.

A faculdade de “manifestação” cabe a qualquer das partes. A demonstração

da presença do contraditório, como forma prejudicial ao desenvolvimento válido do

processo, é inequívoca. O artigo 630 do CPC é expoente cristalino da

preocupação do legislador em dotar o sistema das execuções de mecanismos que

o tornasse mais efetivo, dando-lhe condições de produzir efetividade ao processo,

distribuindo a jurisdição com justiça e equidade. Para tanto, obviamente, louvou-se

nos princípios maiores do processo, sendo um deles o do contraditório.

3.2.b. Contraditório na Execução de Obrigação de Fazer e não Fazer

Para as execuções de “Obrigação de Fazer”, a lei processual só admitia,

até bem pouco, título judicial. Previa que o devedor seria citado para cumprir a

condenação – artigos 632 e 638. Sobre o tema, Ovídio Baptista da Silva entende

ser difícil a distinção da estrutura procedimental destas como estão propostas,

inclusive sem antecipação executória liminar como as das chamadas “execuções

lato sensu”.150

Atualmente, como o advento da Lei nº 8.953/94, não mais fica o

procedimento executivo apenas vinculado aos títulos judiciais, pois, inspirado no

sistema lusitano, a lei alterou o artigo 632 para permitir que também os títulos

extrajudiciais possibilitem a execução, não alterando, entretanto, a antecipação da

atividade executória, marcada registrada do processo de execução. Resta,

destarte, a anomalia executiva da inexistência da antecipação liminar dos atos de

realização.

João Lace Kuhn trata o tema afirmando que:

Cremos também que o desaceleramento da utilização deste mecanismo processual é fato inconteste. Como se sabe, as dificuldades para obrigar os indivíduos a realizar ou não alguma coisa sempre foram muito questionadas porque invadem a esfera dos direitos individuais, aliadas às dificuldades impostas pela lei

150 SILVA, Ovídio Baptista da. Curso de Processo Civil, Vol. II, 2ª ed. Porto Alegre: Sérgio Fabris Editor 1993, p. 92.

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81

para o exercício desses direitos desestimulam, ainda mais, seu emprego. 151

Ainda, a Lei 8.952/94, incluiu no processo de conhecimento o art. 461 que,

em nosso entender, veio para elidir a aplicação do procedimento executório das

obrigações de fazer e não fazer. Tal dispositivo abarca todo o procedimento

cognitivo, peculiar do procedimento ordinário, aliado ao executivo tendente a

realizar os resultado práticos equivalentes ao adimplemento. É a generalização

das execuções lato sensu. A lei criou um dispositivo onde se enquadram todas as

obrigações de fazer, inclusive com a possibilidade de antecipação da tutela, o que

é estranho no regramento da execução das obrigações de fazer e não fazer, dos

art. 632 e seguintes. Tanto num caso como no outro a cognição é ampla.

Analisando o art. 461 do Código de Processo Civil, afirma João Lace Kuhn:

O que o contraditório está presente como nunca. No procedimento executivo, com suas peculiares limitações estruturais há a cognição “necessária”. Já o previsto no art. 461 há, dependendo do caso posto em juízo, uma simples cognição sumária, ou uma cognição exauriente. A possibilidade da antecipação da tutela é um elemento diferenciador entre os dois tipos de procedimentos determinando a supremacia da disciplina estabelecida no art. 461 com relação às dos art. 632. e seguintes. Pensamos, nada obstante a convivência conjunta e independente dos dois mecanismos postos à disposição das partes, o da execução, como tal, integrante do livro II, está com os dias contados, pelo desuso que inexoravelmente vai ocorrer, face à sistemática prevista no art. 461 do CPC. É a grande mudança, juntamente com o art. 273 do mesmo diploma, são os expoentes máximos da reforma do CPC. 152

O contraditório, nessa classe de ações, se faz presente com maior

intensidade e freqüência que nas outras, pelas características intrínsecas do

procedimento. Giuseppe Borrè, analisa detidamente todos estes aspectos153 sob a

prisma do direito italiano, ensinando que a própria disciplina ordinatória dos atos

carece de um contraditório executivo, a realizar-se incidentalmente ao processo de

execução.

151 KUHN, João Lace. O Princípio do Contraditório no Processo de Execução. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998, p. 103. 152 Ibid., p. 103. 153 Giuseppe Borrè, Apud KUHN, João Lace. O Princípio do Contraditório no Processo de Execução. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998, p. 106.

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82

O artigo 634 do CPC determina: “Se o fato puder ser prestado por terceiros,

é lícito ao juiz a requerimento do exeqüente, decidir que aquele o realize à custas

do executado. O parágrafo único diz o exeqüente adiantará as quantias previstas

na proposta que, “ouvida as partes”, o juiz houver aprovado.

Claro está que o comando constante na norma instaura um contraditório,

cuja inobservância resultará na nulidade procedimental. Os atos não são

realizados de ofício, mas sempre a requerimento da parte interessada podendo

parte contrária manifestar-se sobre tais pedidos.

A seguir, o artigo 635 do CPC, percorre a mesma linha de comportamento

“Prestado o fato o juiz ouvirá as partes no prazo de dez dias: não havendo

impugnação, dará por cumprida a obrigação, e em caso contrário, decidirá a

impugnação”. Os termos da lei dispensam quaisquer comentários sobre a

presença do contraditório nessa classe de execução. São claros e expresso, negá-

lo não seria a melhor doutrina.

Assim com previsto no CPC, a “obrigação de não fazer”, prevista em

apenas dois artigos, importa, apenas, afirmar a presença do contraditório aqui

também. Independente dos chamados embargos que, para Ovídio Baptista da

Silva, não passam de uma simples contestação; são inúmeras as situações de

oposição do réu a aludida execução. São manifestações incidentais que deverão

ser conhecidas e instruídas em atenção ao princípio do contraditório.

Na espécie, vale tudo o que já foi dito relativamente à transformação da

execução específica em execução geral, autorizada pelo parágrafo único do artigo

643 do CPC.

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83

3.3 O Contraditório na Impugnação, Exceção de Pré-executividade e Embargos do Devedor.

Contraditório na Impugnação

Uma das grandes inovações trazidas para o sistema processual civil

brasileiro pela Lei n.11.232/2005, que instituiu ente nós a chamada Reforma da

Execução, é a substituição do instituto dos “embargos à execução fundada em

sentença” (arts. 741 a 743) pela nova figura da “Impugnação”, ou impugnação à

execução, que os arts. 475-L e 475-M regulamentam. Antes de mais nada,

registre-se que a substituição mencionada ocorreu por conta de uma simples

mudança terminológica: trocou-se a locução “(...) fundada em sentença” por outra

“(...) contra a Fazenda Pública”, no título do Capítulo II do Título III (“Dos embargos

do Devedor”) do Livro II (“Processo de Execução “) – e também no caput do art.

741 onde a locução substituída foi “título judicial” – e com isso limitou-se o

cabimento dos embargos apenas á execução contra a Fazenda e, ao mesmo

tempo, disciplinou-se neste artigo e no subseqüente o novo instituto da

impugnação á execução.

Também a liquidação da sentença deixou de figurar no Livro II, que trata do

Processo de Execução, para constar, com a reforma, do Capítulo IX, do Título VIII

(Do Procedimento Ordinário), do Livro I, que disciplina o Processo de

Conhecimento. Com isso, também a liquidação, como regra (para o art. 475, N, I),

passou a ser uma etapa do processo de conhecimento, a exemplo do que hoje se

dá com a execução de título judicial. Para citar apenas um reflexo da reforma,

nesse ponto, pode-se destacar que a parte deixará de ser citada, como previa o

revogado art. 603, do CPC, para, na nova sistemática, ser intimada, também na

pessoa do seu advogado, só que para se manifestar sobre o simples requerimento

de liquidação (art. 475-A e §1º).

Costa Machado afirma com clareza que:

Parece importante observar que a inexistência dos embargos à execução no âmbito disciplinar deste inovador Capítulo X dedicado ao “cumprimento da sentença”, deve-se claramente ao fato de ter a Reforma (da Lei n. 11.232/205) transformado o “processo” de execução por quantia em “fase de execução” (do processo condenatório), com o que se eliminou, a um só tempo, tanto a necessidade de novo ato citatório com a possibilidade de

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ajuizamento da ação incidental de embargos, tudo à luz do propósito mais alto de tornar a execução da sentença por quantia um procedimento ágil e eficiente; os embargos à execução continuam existindo apenas no processo de execução por quantia, fundado em título extrajudicial (art.745), e na execução contra a Fazenda Pública (art. 741). 154

Tecendo comentários a respeito do instituto da “Impugnação”, aludido

professor comenta que o recém criado instituto não tem natureza de ação de

conhecimento incidente como os embargos à execução, mas se traduz em simples

exercício do direito de defesa contra a execução. No regime dos embargos, a sua

oposição não deixa significar exercício de defesa, mas se trata de defesa que só

se veicula por meio de ação, enquanto no regime do “cumprimento da sentença”, o

direito de defesa não depende mais de dedução de pretensão a ser atendida para

destruir o título ou nulificar o processo, manifestando-se apenas como resistência

aos atos executivos que já se praticaram por desconformidade com a lei

processual ou material.

Além disso, é necessário reconhecer a existência de uma distinção formal

relevantíssima: enquanto os embargos à execução dependem de petição inicial e

de processamento em apenso (art. 736, parágrafo único), a impugnação à

execução se processa, como regra, nos próprios autos onde se desenvolve a fase

de “cumprimento da sentença” (art. 475 M,§ 2º).

Quanto o procedimento, nota-se que o presente art. 475 – L, que trata da

Impugnação, e o subseqüente art. 475-M, nada prescrevem a esse respeito, o que

nos leva a concluir que, aplicando-se subsidiariamente “as normas que regem o

processo de execução de título extrajudicial” (art. 475-R), deve-se buscar no art.

740 e em seu parágrafo único os regramentos da forma de processar a

impugnação à execução (recebimento, intimação do credor para manifestar-se em

quinze dias, eventual julgamento antecipado, designação de audiência de

instrução e proferimento de sentença – Art. 740).

De uma análise sistemática desse novo instrumento de defesa do devedor,

na fase de execução para cumprimento da sentença, nota-se a clara intenção do

legislador de afastar a natureza de ação, rotineiramente atribuída aos embargos 154 COSTA MACHADO, Antonio Claudio Costa. Código de Processo Civil Interpretado. 6ª ed., São Paulo: Editora Manole, 2007, p. 526.

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do devedor. Nessa linha, apenas para exemplificar, a nova impugnação não terá,

como regra, efeito suspensivo, o qual poderá ser atribuído ou não pelo juiz quando

relevantes os fundamentos e houver risco de grave dano de difícil ou incerta

reparação para o executado, afastando, assim, a prévia segurança do juízo (art.

475-M). Além disso, será a impugnação resolvida por decisão interlocutória,

desafiada por agravo de instrumento, salvo quando acolhida pelo juiz, hipótese em

que se der ensejo à extinção da execução, o recurso cabível será o de apelação

(art. 475-M, §3º).

Quanto a segurança do juízo como requisito do oferecimento de defesa, o §

1º, do art. 475-J dispõe expressamente que “do auto de penhora e de avaliação

será de imediato intimado o executado (...), podendo oferecer impugnação,

querendo, no prazo de quinze dias”. Portanto, apesar do Capítulo X não fazer

referência expressa à segurança do juízo, parece indubitável que o requisito é

exigido pela nova sistemática, no entanto, abre espaço para discuções.

E ainda, conclui Costa machado que:

não podemos deixar de dar registro ao fato que, também nesta nova fase de execução, ou fase “do cumprimento da sentença”, tem cabimento a exceção de pré-executividade por meio da qual, em situações excepcionais, o devedor pode tentar buscar o proferimento de uma sentença de extinção da execução e, assim, livrar-se da necessidade de ver seus bens penhorados par poder se defender pela via da impugnação.155

Contraditório e Exceção de Pré- executividade

Na execução de Pré-executividade há grande polêmica na doutrina sobre a

necessidade de exame de mérito dada a inexistência das condições da ação. Num

primeiro momento, pensamos ser, simplesmente, uma oposição de mérito, pois

fulmina o direito à ação proposta. Todavia, em análise mais acurada, verificamos

não se tratar apenas disso, pois ataca os requisitos exigidos para o exercício da

ação de execução, não inquina o direito material intrinsecamente, mas apenas a

sua manifestação através da proposição da ação.

155 Ibid., p.527.

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Somos parceiros da tese que, quando se trata de condições de

processabilidade, não haverá, em princípio, ataque ao direito, isto é, ao mérito.

Este fica preservado, sendo-lhe facultada, sempre, a utilização de um rito

processual a fim de realizá-lo, podendo, evidentemente, propor outra ação e nunca

repetir a inepta ou inquinada por falta de requisito.

Galeno Lacerda afirma que há defesa para o executado sem exigências:

são as chamadas prévias lato sensu que dizem respeito às condições da ação, ou

do próprio título executivo é atacado nos seus próprios pressupostos, com

argumentos idôneos e sérios, não há necessidade da chamada segurança do

juízo, figura criticada em se tratando de títulos executivos extrajudiciais, pois não

há juízo a ser seguro. 156

Todo o tipo de processo exige um mínimo de pressupostos gerais de

existência, assim também o de execução. Inicia-se pela petição inicial, cujos

requisitos são elencados no CPC (282 a 295 e 614 a 616). Deve possuir um órgão

jurisdicional previamente estabelecido para o endereçamento da demanda. O

autor deve possuir capacidade postulatória e deve estar representado em juízo por

quem tenha capacidade processual, além de embasar sua pretensão num título

executivo líquido, certo e exigível.

Os pressupostos acima referidos devem ser obedecidos. A carência de

algum deles acarreta a nulidade relativa ou absoluta do processo, conforme o que

ocorrer. Sabe-se que a execução visa a recompor a situação das partes realizando

coativamente a satisfação do credor. Para tanto, realiza diversos atos práticos

tendentes a retirar parcela do patrimônio do devedor e repassar ao credor. Não

seria justo, todavia, que devedor suportasse ameaça ao seu patrimônio quando o

pretenso credor não reunisse as condições necessárias para buscar, através do

direito constitucional de ação processual, a proteção estatal.

A falta de pressupostos processuais, seja de ordem objetiva ou subjetiva,

pode, e deve, ser atacada antes mesmo da penhora. Pelas peculiaridades

intrínsecas, entendemos não ser obrigatória a garantia para discutir temas que,

certamente, levarão à extinção da execução indevidamente proposta, ou por quem

156 LACERDA, Galeno. Despacho Saneador. 2ª ed. Porto Alegre:Sérgio Fabris Editor, 1985, p. 82.

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não é parte, ou não tem legitimidade para tal, ou ainda por aquele que não possui

título executivo líquido, certo e exigível. A penhora, bloqueio ou depósito são

medidas executivas, pois com tais atos inicia-se a expropriação propriamente dita,

e, por certo, não se adequariam a processos cujas condições pré-processuais, ou

mesmo processuais, não fossem atendidas.

Segundo afirmação de João Lace Kuhn:

A provocação regular do Estado é fundamental para o desenvolvimento válido do processo e a busca da prestação jurisdicional adequada. É uma questão de política jurisdicional. Sabe-se, pela experiência, da inutilidade de manter-se uma demanda quando for a parte ilegítima, o pedido impossível, ou faltar interesse ao demandante. Frente a isso nega-se a prestação do serviço jurisdicional.157

O indeferimento de ofício ou a pedido será proclamado em sentença,

mesmo no processo de execução, cabendo apelação. Já a inaceitação dos

argumentos do demandado, quanto a tais condições da ação, será decisão

interlocutória e requererá agravo de instrumento.

Marcelo Lima Guerra dedicou algumas idéias ao tratar da pré-

executividade. Entende o autor, que o executado pode dispor da defesa prévia

sempre que ocorrerem situações relativas às condições da ação ou qualidade do

título. Isto é, valer-se de uma defesa contra o processo, em certas oportunidades,

antes da citação. Alega que, por tratar de defesa que ataca a admissibilidade,

tanto a doutrina como a jurisprudência estão se firmando em admitir tal

possibilidade em atenção ao princípio do prejuízo e, principalmente,

acrescentamos, ao do contraditório executivo. 158

A exceção de pré-executividade nada mais é do que a defesa direta em

atenção ao sagrado direito de defesa do executado no processo de execução que

não obedece aos requisitos legais exigidos por lei, independente dos embargos e

sem garantia do juízo.

157 KUHN, João Lace. O Princípio do Contraditório no Processo de Execução. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998, p. 121. 158 GUERRA, Marcelo Lima. Execução Forçada Controle e Admissibilidade. Coleção estudo de direito processual civil – Enrico Túlio Liebman – Vol. 32, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995, p. 146-147.

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João Lace Kuhn ensina que:

Já em 1975, Pontes de Miranda, em um parecer memorável para o chamado caso Manesmann, citado por quase todos os doutrinadores como o embrião da tese da exceção de pré-executividade, dizia; ‘Se alguém entende que pode cobrar dívida que conste de instrumento público, ou particular, assinado pelo devedor e por duas testemunhas e ao demandado público é falso, ou de que a sua assinatura, ou de alguma testemunha é falsa, tem o juiz de apreciar o caso antes de ter o devedor de pagar ou de sofrer a penhora’.

Para Araken de Assis o sentido de que a exceção de pré-executividade é

uma oposição excepcional, decretável de ofício, quando ao juiz for dado conhecer

a falta de pressupostos processuais, ou a requerimento da parte. Continua

afirmando que o fato desconstitutivo requer prova pré-constituída, e que a rejeição

do incidente reclama agravo de instrumento como remédio idôneo para a

reapreciação da matéria pelo órgão ad quem. 159

Para nós importa, apenas, mostrar o incidente como representante do

contraditório executivo. Como se conhece, inexiste execução sem título. A célebre

afirmação de Carnelutti, sine titolo, sine excuzione, imortalizou idéia que a

execução é dependente do título. Tirante os pressupostos subjetivos, este é o

mais agudo e mais incidente caso de exceção de pré-executividade.

Não é lícito ao credor, nem moral, tentar constranger o devedor com uma

execução aparelhada por um título que não preencha todos os requisitos de

liquidez, certeza e exigibilidade, fato que refoge ao conhecimento prévio do juiz, ao

contrário daquelas outras condições, tais como endereçamento, petição inicial,

representação etc. Não é justo que o devedor suporte o ônus de uma contrição

sobre seu patrimônio para discutir um título pago ou título que ainda não venceu.

Assim, plenamente justificável o incidente antes da penhora, ou qualquer outra

defesa no processo de execução, pois este é o mérito da discussão, devendo as

partes argumentar e apresentar suas razões, e o magistrado, como parte

integrante dessa relação processual, decidir. Há, destarte, cognição, com princípio

159 ASSIS, Araken de. Manual do Processo de Execução, Vol. I, Porto Alegre:Lejur, 1987, p.346-347.

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da ampla defesa e do contraditório, agindo a toda evidência, como ensina João

Lace Kuhn.160

Necessário salientar, ainda, a possibilidade de quase todas as condições de

processabilidade serem detectadas pelo julgador no exame da petição inicial. A

falta de condição da ação, muitas e muitas vezes, se detecta em exame

preliminar. A condução atenta e segura do magistrado elidirá, em inúmeras

oportunidades, a necessidade de interposição de exceção de pré-executividade.

Também é verdade que a falta de condição da ação ou por ausência de

requisitos formais do título, não é caso de preclusão do direito da parte de opor-se

ao prosseguimento da execução indevidamente proposta.

Tal oposição deve ser considerada, pois, manifestação típica de

contraditório, mas que se revela diferente dos embargos nos seguintes termos: a)

aos embargos tem natureza de ação incidente, enquanto a exceção é um

incidente processual; b) os embargos devem atender aos requisitos do art. 282, do

CPC, já a exceção não tem forma a ser seguida, resumindo-se em simples

petição; c)os embargos têm prazo preclusivo para propositura, a exceção pode ser

oposta em qualquer prazo, já que questões de ordem pública também o são, como

a prescrição, a decadência, o pagamento e a compensação; d) a exceção não

enseja a produção de prova testemunhal ou pericial, admitindo-se apenas a

documental, enquanto nos embargos a produção de provas é ampla; e c) os

embargos prestam-se à defesa e ao contra-ataque, enquanto a exceção é

instrumento apenas para defesa. 161

Ainda para justificar a presença do contraditório em tal incidente, é

interessante a questão da resposta à exceção de pré-executividade, porque já

pairou dúvida na doutrina sobre necessidade ou não de o juiz abrir prazo para o

credor manifestar-se sobre o incidente promovido pelo executado. A ausência de

norma processual específica a regular a exceção proporcional à doutrina utilizar a

analogia para obtenção de resposta ao problema.

160 KUHN, João Lace. O Princípio do Contraditório no Processo de Execução. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998, p. 123. 161 MOREIRA, Alberto Camiña. Defesa sem embargos do executado. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 40.

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Como defende Alberto Camiña Moreira, devem ser aplicadas as regras dos

arts. 326 e 327, do CPC, ou seja, para os casos em que o executado argüir fato

impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do exeqüente ou qualquer das

matérias enumeradas no art. 301, deverá o juiz ordenar a intimação do exeqüente

para, querendo, manifestar-se sobre os termos da exceção. O autor sugere ainda

a designação de audiência para tentativa de conciliação, atitude já tomada por

alguns juízes mais cuidadosos.162

Em síntese, cabe exceção de pré-executividade para combater: a ausência

de pressupostos de constituição e de validade da relação processual; a presença

de pressupostos processuais negativos, como a coisa julgada, litispendência,

perempção e compromisso arbitral; a ausência de condições da ação; a nulidade

da execução; os vícios do título executivo; o excesso de execução, prescrição,

decadência, pagamento, compensação e novação.

Contraditório nos Embargos do Devedor

Os embargos à execução possuem características e roupagem próprias.

Pesquisadores do direito apontam como marco exordial dos embargos o Direito

Romano. Naquela oportunidade, uma vez obtida a sentença judicial, o devedor

tinha trinta dias para cumprir com o decisum; e, assim não procedendo, o credor

poderia propor uma demanda denominada actio fudicati, segundo ensinamentos

de Hugo Leonardo Penna Barbosa.163

No Direito Francês que, pela primeira vez, os embargos do devedor foram

vistos como “ação”. Na França, o juiz não cuidava da execução da sentença,

sendo a mesma feita pelos sargents du Roi, iniciada por meio de simples

requerimento do credor possuidor do título.

José Alonso Beltrame explica que:

O devedor poderia se opor por meio de exceções, que não poderiam ser julgadas pelos sargents, em razão do fato de os mesmo não disporem de legitimidade para apreciá-las, fazendo-

162 Ibid., p. 54-55. 163 BARBOSA, Hugo Leonardo Penna; PINHO, Humberto Dalla Bernardina de; DUARTE, Márcia Garcia Duarte. Nova Sistemática da Execução dos Títulos Extrajudiciais e a Lei n. 11.382/06. Rio de Janeiro:Editora Lúmen Júris, 2007, p.100.

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se necessária a retomada da atividade do juiz. À medida que o juiz reassumisse a causa, iniciava-se a oposição, ou seja, fuma forma de ação, como o meio de manifestação do inconformismo do devedor perante o Judiciário.164

O direito Lusitano, desde as Ordenações Afonsinas, já cuidava dos

embargos em seu texto legislativo. No direito contemporâneo brasileiro não há

mais a hipótese do processo de execução quando a obrigação deriva de uma

decisão transitada em julgado, ou seja, de um título executivo judicial (salvo em

sentença arbitral, penal e homologada pelo STJ.

A partir da Lei nº 11.232 de 2005, o cumprimento de sentença passou a

correr nos próprios autos do processo de conhecimento do qual se originou a

sentença, sem a necessária propositura de nova demanda com fins executórios, o

mesmo se dando nas hipóteses de sentenças estrangeira, arbitral ou penal

condenatória, homologatória de acordo etc. Por outro lado, o instituto do processo

de execução não foi excluído do ordenamento. Ao contrário, ganhou novos

contornos por meio da Lei nº 11.382/06, que permitiu a adequação do processo á

sistemática legal contemporânea.165

Segundo entendimento de J. E. Carreira Alvim e Luciana G. Carreira Alvim

Cabral, os embargos referidos no art. 736 não recebem qualquer adjetivação -,

como no art. 694, em que são denominados embargos do executado -, sendo, na

doutrina e na jurisprudência chamados de embargos à execução, por se tratar de

uma ação que, no fundo, traduz a defesa oposta por quem resiste à pretensão

executória.166

Prescreve o parágrafo único do art. 736 que os embargos à execução serão

distribuídos por dependência, autuados, em apartado, e instruídos com cópias das

peças processuais relevantes, que podem ser declaradas autênticas pelo próprio

advogado, sob sua responsabilidade pessoal (art. 544, § 1º, in fine).

164 Ibid., p. 39. 165 BARBOSA, Hugo Leobardo Penna; PINHO, Humberto Dalla Bernardina de; DUARTE, Marica Garcia. Nova sistemática da execução dos títulos extrajudiciais e a Lei 11.382/06. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2007, p. 100-101. 166 ALVIM, J. E. Carreira; CABRAL, Luciana G. Carreira Alvim. Nova execução de Título Extrajudicial. Comentários à Lei 11.382/06. 3ªed. Curitiba: Juruá, 2007, p. 198.

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Essa providência, de processamento em apartado, resultou da técnica

adotada pelo Código de Processo Civil de 1973, na sua redação original, em que

se preferiu unificar o processo de execução, tanto de título judicial quanto

extrajudicial, mas, a partir do momento em que a execução de título judicial

passou a ser objeto de “cumprimento”, na modalidade de execução sincretizada, já

não teria sentido manter a autuação em apartado.

Como a reforma operada pela Lei nº 11.382/06, ganha força o termo

“executado” em vez de “devedor”; a expressão que melhor traduz, atualmente,

essa atividade processual é embargos do executado, expressão usada por

exemplo, pelo art. 694 pelo parágrafo único do art. 736, pelo art. 738,§ 3º e pelo

art. 739 A: embora o Título III do livro II tenha mantido a expressão “Dos embargos

do devedor”.

É certo que a natureza jurídica ou a ratio essendi dos embargos do

executado encontra guarida na garantia constitucional da ampla defesa e do

contraditório. A Constituição Federal é clara ao afirmar que seu artigo 5º LV,

acerca da inviolabilidade da garantia do devido processo legal, sem distinguir a

que tipo de processo se refere.

Assim, não cabe ao legislador infraconstitucional dispor de forma a restringir

a aplicação deste princípio fundamental em razão da natureza do processo, seja

ele cognitivo, cautelar ou de execução. Cândido Rangel Dinamarco discorreu

sobre o tema, anunciando que:

Hoje, pode-se até considerar superada a questão fundamental da incidência in executivis da garantia do contraditório, mercê dos termos amplos da disposição contida no inc. LV do art. 5º da Constituição Federal. O processo executivo inclui-se, como é óbvio, na categoria processual judicial que o texto constitucional enuncia sem qualquer resalva ou restrição.167

A aplicação da garantia do devido processo legal nos processo de

execução ocorre de uma forma muito peculiar, pois, os títulos extrajudiciais têm

eficácia executiva, visto que revestidos de presunção de legalidade. Para que a

obrigação nele contida seja cumprida, o credor não precisará utilizar-se da via

167 DINAMARCO, Cândido Rangel. Execução Civil. 8ª ed. São Paulo:Malheiros, 2002, p. 183.

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cognitiva para o cumprimento da obrigação. Poderá valer-se da ação de execução,

que não sucumbe ao lastro probatório do qual se revestem aquelas demandas.

Por outro lado, existe a garantia constitucional de que todo demandado

deverá ser ouvido e terá a oportunidade de se manifestar em juízo, inclusive

opondo-se a uma execução civil, claro que em observância ao princípio do

contraditório. Apesar de não se tratar de uma ação cognitiva, o demandado pode

alegar em sua defesa todas as matérias, tais como se demanda de conhecimento

fosse, conforme prescreve o art. 745 do CPC: “Nos embargos, poderá o executado

alegar: (...) V – qualquer matéria que lhe seria lícito deduzir como defesa em

processo de conhecimento”. Assim se formarão os embargos à execução. Neste

sentido, salienta Enrico Tullio Liebman:

O título executório inclina para o lado do credor a balança da justiça e a oposição restaura em prol do devedor o equilíbrio, quando se demonstre injustamente turbado. Na verdade, o estado, que realiza por seus próprios órgãos a execução, tem um interesse próprio, atinente à ordem pública, em evitar que se exerçam atos de execução contra quem não deve; e, pois que esse perigo só se pode evitar por iniciativa do devedor, a possibilidade de que ele proponha suas razões representa um princípio fundamental inviolável para o ordenamento da execução.168

Portanto, os embargos são a forma de defesa do executado, o meio pelo

qual poderá apresentar suas razões que se prestem a desconstituir o título, o que

caracteriza o princípio da ampla defesa e também do contraditório. Os embargos

terão o caráter de uma nova ação, na qual o devedor-executado passa a ser o

demandante, recebendo a nomenclatura de embargante; já o credor-exequente,

que foi quem propôs a execução, passará a ser o demandado, ou seja, o

embargado.

Assim, os embargos têm natureza jurídica de auto-suficiente, de ação

incidental, que cuidará de tratar de questões de fato e de direito, que visem a

desconstituir o título executivo e que não poderiam ser tratadas na ação principal,

a de execução, dada característica desta última de não-cognitiva. São os

embargos uma ação constitutiva negativa, proposta em oposição a um processo

168 LIEBMAN, Enrico Tullio. Embargos do Executado. Tradução de José Guimarães Menegale. São Paulo: Saraiva, 1952, p. 188 e 196.

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de execução, em que o executado visa a desconstituir o título executório, como

ensina Izner Hanna Garcia.169

Em síntese, os embargos são, portanto, uma ação incidente ao processo de

execução, na qual o executado manifesta sua oposição e defesa, que não poderia

fazer na ação de execução, visto que esta não admite cognição. Os embargos

buscam uma sentença que desconstitua o título (constitutiva negativa).

Há, no entanto, várias espécies de embargos. A modalidade de embargos

de terceiro encontra guarida legal nos artigos 1.046 a 1.054, que podem ser

possuidores, credores hipotecários, pignoratícios etc, que tem seus bens

constritos em razão de esbulho ou turbação oriunda de determinação judicial, tem

como objetivo desembaraçar, separar bens indevidamente envolvidos em

processo alheio e se trata de um processo incidental, autônomo, que será autuado

em apenso á demanda executória.170

Já os embargos à execução de título extrajudicial, em face de devedor

solvente, cuidarão das partes envolvida diretamente na demanda executória. Os

legitimados a propô-los serão os executados. Os embargos devem ser autuados

em apenso ao processo de execução. Ter-se-á o prazo de 15 (quinze) dias para

serem opostos e poderão ser recebidos no efeito suspensivo.

Os embargos à execução poderão ser opostos ainda pelo executado

insolvente. Nestes casos, regidos pelos artigos 748 e seguintes do CPC, o credor

de obrigação líquida, certa e exigível, requererá seja declarada a insolvência do

devedor, que poderá oferecer sua oposição dentro do prazo de 10 (dez) dias,

contados da data da juntada aos autos do mandado de citação.

Antes da nova redação do processo de execução, esta modalidade de

oposição à execução forçada – em face de devedor insolvente – gozava da

dispensa da segurança do juízo para ser apresentada, contrariando a antiga regra

de necessária garantia do juízo para a oposição de embargos.

169 GARCIA, Izner Hanna Garcia. Embargos á Execução. Rio de Janeiro: Aide Editora, 2002, p. 56. 170 ASSIS, Araken de Assis. Manual da Execução. 10ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 1.179.

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Os embargos à adjudicação são a modalidade de oposição do adjudicado

ou de terceiro em razão de fatos ocorridos posteriormente à penhora que possam

resultar na inexigibilidade da execução.

Os embargos à alienação decorrem da nova modalidade de expropriação

em virtude da alteração na sistemática da execução de título extrajudicial, pelo

qual o exeqüente poderá dispor do bem para si (adjudicação) ou tentar aliená-lo

por iniciativa particular, antes que o bem seja exposto à basta pública.

Do mesmo modo que os embargos à adjudicação, o demandante nos

embargos à alienação, que pode ser o executado ou terceiro, está adstrito a alegar

matérias ulteriores ao ato de penhora.

Por fim, os embargos à arrematação são o remédio oponível em caso de

arrematação do bem penhorado em hasta pública, cuja matéria alegável restringir-

se-á a questões ocorridas posteriormente à penhora.

Os embargos de retenção por benfeitorias, previstos originariamente no

artigo 744 do CPC, foram expressamente revogados pelo artigo 7º, IV, da Lei

nº11.382/06, que passou a tutelar o direito no artigo 45, IV, apontando a matéria

como uma das argüíveis nos embargos do executado. Igualmente, foram extintos

do ordenamento pátrio os embargos à execução de título judicial, uma vez que,

em razão do advento da Lei nº 11.232 de 2005, deixou de existir a necessária

propositura de ação de execução para impor o cumprimento da decisum transitada

em julgado, haja vista que o cumprimento de sentença se processará

independentemente de processo de execução, como já mencionado.

Portanto, os embargos à execução introduzem uma ação de conhecimento

no organismo da execução, pelo que deve seguir o regime das ações de cognição

em geral, podendo inclusive ser objeto de julgamento antecipado, se não houver

necessidade de produzir outras provas em audiência.171

Tanto quanto qualquer ação, devem os embargos atender ás condições

gerais da ação, que são o interesse de agir, a possibilidade jurídica do pedido e a

171 FUX, Luiz Fux. A Reforma do Código de Processo Civil. Niterói:Impetus, 2006, p. 313.

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96

legitimidade das partes; a possibilidade jurídica do pedido e a legitimidade das

partes; evidentemente, com as especificidades típicas do processo de execução.

Não apenas o devedor pode opor-se à execução por meio de embargos,

mas também o “terceiro responsável” pode oferecer embargos à execução e não

apenas embargos de terceiro, onde se limita a pretender excluir o seu patrimônio

da execução alheia. O responsável secundário também é parte legítima para

embargar a execução, aduzindo defeitos de forma e de fundo, posto que, se

destruir o processo, automaticamente libera o seu patrimônio da responsabilidade

assumida.172

O processo de execução segue um procedimento próprio, só lhe aplicando

as regras do processo de conhecimento subsidiariamente (art. 598 do CPC),

naquilo em que forem compatíveis os dois processos.

Assim, enquanto no processo de conhecimento, a defesa se faz geralmente

através de contestação (art. 301), no processo de execução se faz através de

embargos, que, no plural, traduzem uma especial modalidade de defesa.

É certo que o exeqüente, não podendo fazer justiça pelas próprias mãos,

tem a faculdade (ou o direito) de submeter a sua pretensão ao conhecimento e à

tutela do Judiciário; e o executado, por sua vez, não podendo repelir por si a

pretensão do exeqüente, tem também a faculdade de submeter a sua demanda ao

conhecimento e tutela daquele Poder, e de tal sorte ficam ambos sujeitos à

jurisdição do juiz competente, como ensina Amílcar de Castro173.

Diversamente do que acontece no processo de conhecimento, em que a

defesa se comporta nos limites da resistência à pretensão do autor, e, por isso, é

denominada de “contestação” – exceto no procedimento sumário, que comporta

pedido contraposto (art. 278.§ 1º), no processo de execução, o executado assume

posição semelhante à autor, sendo toda a sua atividade de processual

desenvolvida com o propósito de desconstituir o título executivo. Não é o fato de a

defesa denominar-se “embargos” que transforma de defesa em ataque, porque, no

172 Ibid., p. 314. 173 CASTRO, Amílcar de Castro. Comentários ao Código de Processo Civil. 2ª ed. São Paulo:Revista dos Tribunais, 1976, p. 383.

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97

procedimento monitório, por exemplo, a defesa do réu se faz por meio de

embargos monitórios, e, no entanto, continuam sendo uma defesa.

Por serem os embargos do executado uma atividade direcionada ao ataque

à pretensão do exeqüente, com o objetivo de desconstituir o título executivo que

embasa a demanda, a doutrina lhes reconhece a natureza de ação, na modalidade

de ação desconstitutiva. Os embargos do executado surgem mais com o aspecto

de ataque, do que de reação; e com o aparecimento deles, suspensa, ou não a

execução (art. 739-A e § 1º) , invertem-se as posições das partes no processo de

execução: entra o executado a agir como autor, inaugurando o litígio incidente,

novo processo, não de execução, mas de conhecimento, de verificação positiva,

ou negativa, e o exeqüente é que, nessa demanda incidente, faz as vezes de réu,

na defesa do ataque feito ao título exeqüendo, ou ao processo de execução.174

Existe uma diferença entre o contraditório que se forma no processo de

conhecimento e no processo de execução, pois este vem fundado num título

executivo extrajudicial – por isso, dispensa, originariamente, a formação de um

titulo executivo num processo -, enquanto aquele depende da formação desse

título, o que se obtém, num processo, mediante uma sentença de mérito, que

resolve o pedido do autor. Amílcar de Castro afirma que:

Os italianos costumam falar em contraditório eventual, de vez que, em razão da natureza do título em que se funda, pode perfeitamente funcionar sem litígio. Esse o motivo por que, no processo de execução, afirma-se, em doutrina, que o contraditório é eventual, podendo existir, ou não, na medida em que o processo pode funcionar sem litígio. No fundo, não é que, neste caso existindo o título não-impugnado, inexista litígio, pois o litígio não se forma apenas em razão de uma pretensão contestada, mas, também, de uma pretensão insatisfeita (Carnelutti), e é uma pretensão insatisfeita que enseja a execução.175

No processo de execução, o executado não é citado para embargar,

embora possa fazê-lo, mas para efetuar o pagamento da dívida no prazo de três

dias (art. 652), ou, como salientava Amílcar de Castro, para “confirmar o

inadimplemento, pois o exeqüente já vem a juízo com um título executivo,

174 Ibid., p. 384. 175 Ibid., p. 384.

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98

contendo uma obrigação certa, liquida e exigível, que, por si, constitui prova

bastante de sua pretensão que é a de promover o processo de execução”.176

Antes da reforma, o oferecimento de embargos dependia, necessariamente,

da garantia do juízo, dispondo o art. 737 que não seriam admissíveis embargos do

devedor antes de seguro o juízo, pela penhora, na execução por quantia certa

(inc.I), e pelo depósito, na execução para entrega de coisa (inc.II). Após a reforma

operada pela lei. 11.383/06, o executado pode opor-se á execução por meio de

embargos, independentemente de penhora, de depósito ou caução, como reza

agora o art. 736, em conseqüência do que foi revogado o antigo art. 737, que

tratava da garantia de juízo.

Apesar do art. 736 dispor que o executado pode se opor à execução

independentemente de penhora, depósito ou caução, isso só ocorrerá se não tiver

ele bens penhoráveis, pois, nos termos do art. 652, caput, é citado para, no prazo

de 3 (três) dias, efetuar o pagamento da dívida, e, não o fazendo, o oficial de

justiça, munido da segunda via da penhora, procede de imediato à penhora de

bens e à sua avaliação, lavrando-se o respectivo auto, intimando-se, na mesma

oportunidade o executado, como reza o art. 652 e § 1º.

Como já mencionado, se pretender o executado oferecer exceção ou

objeção de pré executividade, deve fazê-lo no prazo para efetuar o pagamento,

que é agora de três dias, pedindo ao juiz que suspenda a penhora e faça recolher

a segunda via do mandado até que esse incidente processual seja resolvido, pois,

se não o fizer, o oficial de justiça procederá de imediato á penhora, se encontrar

bens penhoráveis.

Reza a exposição de motivos que, com o sistema adotado no art. 736,

desaparecerá qualquer motivo para a interposição da assim chamada “exceção de

pré-executividade”, de criação pretoriana e que tantos embaraços e demoras

causa ao andamento das execuções. No fundo, essa visão é ilusória, pois a

exceção de pré-executividade continuará tão presente quanto antes, sempre que o

executado tiver algum motivo para opor tal modalidade de defesa, desde que o

faça no prazo de três dias que lhe é assinado para o pagamento.

176 Ibid., p. 385.

Page 99: Diss Adriana1

99

Fato é que, se houver bens penhoráveis, já terá ocorrido, por ocasião dos

embargos à execução (art. 738), a penhora de bens e sua avaliação, cabendo ao

juiz apenas verificar, havendo requerimento do executado neste sentido, se é, ou

não, caso de suspensão da execução, paralisando-a, ou não.

No entanto, como na execução de título extrajudicial, a execução é

definitiva (art. 587), e os embargos á execução têm natureza de ação, a sentença

que vier a ser proferida estará, eventualmente, sujeita a apelação, a qual, se

houver, determina a subida dos autos dos embargos (apartados) ao tribunal,

prosseguindo a execução nos autos originais. Esse é também o motivo pelo qual

não se fala em “contestação”, mas em “embargos”, porquanto estes têm, e aquela

não, a natureza jurídica de ação.

No processo de conhecimento, se o autor não provar o pedido, o réu será

absolvido ainda que não prove sua contestação; mas no processo de execução,

não provando o executado seus embargos, será ele o vencido.177

A instrução dos embargos, com cópias das peças processuais relevantes, é

necessária para a eventual hipótese de virem os autos a subir ao tribunal em

virtude de recurso, que, no caso é a apelação, mas, na verdade, não passarão de

cópia do título executivo extrajudicial, do eventual protesto (se tiver havido) e da

procuração outorgada ao advogado do executado.

Podemos concluir que seja na impugnação, na exceção de pré-

executividade ou nos embargos do devedor, o princípio do contraditório sempre

impera cristalino, pois a lei é clara em se intimar, a parte contrária para a devida

manifestação ou defesa de qualquer ato, ou seja, é clara a ocorrência da “ação-

reação” em todo processo de execução.

3.4 As Controvérsias sobre a Incidência do Contraditório na Execução

Como já mencionado, o princípio do contraditório deriva de comando

constitucional e abrange todos os tipos de processos, inclusive o de execução,

principalmente por ser procedimento autônomo com vida e regras próprias.

177 CASTRO, Amílcar de Castro. Comentários ao Código de Processo Civil. 2ª ed. São Paulo:Revista dos Tribunais, 1976, p. 384.

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100

Segundo Joaquim Canuto Mendes de Almeida, o contraditório é: “a ciência

bilateral dos atos e termos processuais e possibilidades de contrariá-los”. Não

restam dúvidas que de que tal princípio é aplicado em qualquer procedimento,

sem exceção, sob pena de ferir a lei maior.

Encontramos no campo doutrinário os mais gabaritados autores

posicionando-se contrários à incidência do contraditório no processo executivo.

Enrico Tullio Liebman merece destaque especial, até porque indiscutível sua

influência na construção do novo processo civil brasileiro, principalmente a partir

do Código de Processo Civil de 1973.

Para o autor, há uma distinção basilar entre os processos de execução e de

conhecimento, a ponto de justificar a ausência do princípio do contraditório

naquele; enquanto na execução a atividade do órgão jurisdicional é praticada e

material, na cognição é investigatória e interpretativa, visando a reproduzir e a

avaliar os fatos para obter um resultado final de caráter ideal. A posição das partes

também faz diferença nas duas espécies de processo, explica o autor que:

na cognição estão em posição de igualdade de equilíbrio, pois não se sabe qual delas está com a razão, e nada pode ser feito sem que todas elas sejam ouvidas ou possam fazer-se ouvir, de acordo com o princípio do contraditório. Na execução não há equilíbrio entre as partes, não há contraditório; uma delas foi condenada e sobre este ponto não pode mais, em regra, haver discussão. É certo que a controvérsia e o contraditório podem reaparecer, mas isto somente em novo processo de cognição de caráter incidente (embargos). 178.

Enrico Tullio Liebman, apesar de dizer em certas passagens que o princípio

devesse se estender a todos os procedimentos, afirma que a diferença existente

entre a cognição e a execução não permite que nesta haja incidência do

contraditório. 179

Alega, para sustentar tal posição, que, na execução, a atividade do órgão

jurisdicional é prevalentemente prática, diversa da exercida na cognição, que é

investigatória, lógica, interpretativa, visando a reproduzir e a avaliar os fatos para

obter um resultado final de caráter ideal. Afirma que tal não ocorre na execução,

178 LIEBMAN, Enrico Tullio Liebman. Processo de execução. 2ª ed., São Paulo: Saraiva, 1963, p. 33-34. 179 LIEBMAN, Enrico Tullio Liebman. Processo de Execução. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 1980, p. 44.

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101

pois as posições das partes são diferentes. No primeiro caso, a cognição, há

igualdade; na execução não há este equilíbrio. Somente aceita o contraditório

quando de um novo processo cognitivo, ou seja, via incidental de embargos.

Ademais, explica o autor que a presença do título executivo permite ao juiz

conduzir a execução independentemente da demonstração de existência do direito

do autor. Tal eficácia não quer significar a ausência total de controvérsias, que

poderão surgir no próprio processo de execução (desrespeito às formas e limites

procedimentais estabelecidos em lei) ou referentes à própria situação jurídica

material existente entre as partes (pagamento, prescrição ou qualquer fato

extintivo da obrigação). Contudo, Enrico Túllio Liebman não concebe a idéia de

que tais questões possam ser discutidas diretamente na execução, porque há

meio próprio à disposição do executado: os embargos.180

Outro autor que merece destaque é Salvatore Satta que, seguindo a mesma

linha de pensamento de Enrico Túllio Liebman, posiciona-se contrário à presença

do contraditório no processo de execução, motivando sua tese na estrutura e

objetivos de ambas espécies de processo, afirmando que no processo de

execução, está o devedor em posição de submissão ao credor. Enquanto na

cognição busca-se estabelecer uma norma para o caso concreto, com a incidência

da lei, na execução busca-se adequar a vontade da lei, substituindo a vontade do

devedor através da transferência de parcela de seu patrimônio ao credor. Há, para

o autor, uma exigência insuprível do contraditório, mas que no processo de

execução é satisfeita a posteriori, pó ocasião dos embargos – até porque o

princípio do contraditório é resultante da combinação entre ação e exceção,

pressupondo esta a absoluta liberdade de impugnar a postulação do autor. Na

execução, por definição, isso não ocorre.

Salienta o autor que:

as impugnações opostas pelo devedor serão por certo incidentais no processo de execução, mas não intrínsecas dele, vale dizer, como deverão ser autonomamente consideradas. Se fossem

180 Ibid., 145-146, passim.

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102

intrínsecas, a ação executiva e a normativa que a determina perderiam qualquer significado.181

O princípio sagrado do contraditório só poderia aparecer em outro processo

de cognição, com a possibilidade de o devedor impugnar o ato do credor, ou seja,

voltar-se contra os atos da execução com as oposições de rito ou de mérito. Tanto

uma como a outra são impugnações incidentais, correspondentes, em nossa

legislação processual, os embargos do devedor.

Destarte, tanto Salvatore Satta quanto Enrico Tullio Liebman só admitem a

possibilidade, dentro do processo de execução, que se observe o princípio do

contraditório nos embargos do devedor, pois, como um procedimento de cognição

plena, estaria autorizado pela ciência processual a ser o veículo adequado para

discutir as questões com toda a extensão e profundidade, valendo-se de todos os

mecanismos postos à disposição dos contendores, inclusive com a bilateralidade

dos atos processuais, ou seja: o contraditório pleno.

Entre os autores brasileiros Athos Gusmão Carneiro e Alfredo Buzaid

também postaram-se contrários à incidência do contraditório no processo de

execução. Athos Gusmão Carneiro posiciona-se, utilizando-se ensinamentos de

Carnelutti sobre a definição de título executivo, também pela impossibilidade de

incidir neste procedimento o princípio do contraditório, pois tem em mente que o

título executivo deve ser incontroverso e com eficácia plena, não sendo possível,

assim, dentro do processo executivo, haver qualquer tipo de conhecimento

referente a qualquer fato que possa ocorrer no curso da lide. Assim, também

sustenta a posição de que a única hipótese possível de haver conhecimento

dentro do processo de execução é com a interposição de embargos que,

sobrestando o feito principal, e um procedimento de cognição exauriente, decide

todas as questões relativas ao título ao próprio direito do credor.

No processo de execução, afirma Carneiro que, “o exeqüente não argüi

fatos sujeitos a controvérsias e, por isso, os embargos são a via única para o

surgimento do contraditório”.182

181 SATTA, Salvatore Satta. Direito processual civil. Tradução de Luiz Autuori. 7ª ed., Rio de Janeiro: Borsoi, 1973. v.2. p. 532.

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103

Para Alfredo Buzaid, ainda que a execução seja considerada novo

processo, nela nada pode ser questionado, eis que o devedor encontra-se em

situação de desigualdade em relação ao credor, tendo este proeminência jurídica

sobre aquele, restando ao executado os embargos, não para se defender, mas

para atacá-la, procurando inutilizar a eficácia executiva do título.183

É impossível a qualquer tipo de procedimento ser estanque como querem

tais doutrinadores. Assim como entendemos ser impossível, no processo de

conhecimento, que o juiz, imbuído da melhor intenção de prestar a jurisdição, não

execute nada, no estrito sentido da palavra, entendida como modificação do

mundo fático, em razão de determinação judicial. Pouco provável será que, na

execução, não se conheça nada. São conceitos e posições que serão tratados a

seu tempo.

Com o mesmo entendimento, Celso Ribeiro da Silva, conclui tal como seus

inspiradores, ou seja, pela inaplicabilidade do princípio sob exame no processo de

execução. Todavia, observa-se, sua tese, um mesmo equívoco dos demais

defensores da inaplicabilidade do princípio do contraditório na execução. Suas

observações carecem de consistência científica e de adequação, como que se

referisse às execuções em geral. 184

É certo que o contraditório, na execução, tem um caráter limitado, mas

existe e incide em determinados momentos, perfeitamente identificáveis, onde

haverá, sim, o conhecimento por parte do juiz, forçando-o a decidir questões

presentes no procedimento e que serão fundamentais para o processo.

Citado autor entende não poder incidir o princípio porque o processo de

conhecimento anterior já realizou amplamente e seria uma repetição inócua e

inadequada, de nada servindo, a não ser para entravar os feitos. Defende, em

razão da natureza do processo executório, a inadmissibilidade de contrariedade no

seu bojo.

182 CARNEIRO. Athos Gusmão Carneiro. Da execução no novo CPC. Revista de Processos, São Paulo, n.10, p. 97-99, abr/jun.1978, p. 98. 183 KUHN, João Lace Kuhn. O Princípio do Contraditório no Processo de Execução. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998, p. 51 184 Apud, KUHN, João Lace Kuhn. O Princípio do Contraditório no Processo de Execução. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998, p. 49.

Page 104: Diss Adriana1

104

Afirma que a desigualdade das posições entre autor e réu também é fator

determinante para a exclusão da incidência dialética no seio da execução. Conclui,

afirmando: se o magistrado pudesse conhecer na execução, estaria a desmentir o

caráter abstrato do título executivo e, desta forma, todo o instituto da execução

sucumbiria. Aceita o contraditório apenas quando da propositura dos embargos, o

que é óbvio. Nessa condição, evidentemente, se abre a possibilidade de discutir

tudo, inclusive, voltar-se contra a executividade do título, retirando-lhe o caráter

abstrato literal que o compõe, assim como também rever o próprio direito do

credor.

Comentando Isolde Favaretto, citado por João Lace Kuhn, afirma que, na

sua tese, aborda, minuciosamente, o assunto, trazendo opiniões de doutrinadores

que defendem tanto um ponto de vista quanto o outro. Na verdade, Isolde

Favaretto não toma posição sobre a questão, mas deixa antever que se filia às

correntes mais conservadoras e afirma não haver contraditório no processo de

execução. Sua manifestação deve-se, seguramente, à tendência de filiar-se

dogmaticamente às doutrinas pregadas por Salvatore Satta, que o inspiraram para

defender a posição mais conservadora do processo civil contemporâneo, o que

não deve ser considerado como equívoco, pois a maioria da doutrina prega a

mesma tese.

João Lace Kuhn afirma ainda que:

Tantos outros autores poderiam ser citados: dentre nós, Calmon de Passos, reproduzido por José Raimundo Gomes da Cruz, quando afirma que, na execução, o réu não é citado para propriamente defender-se, mas para cumprir o julgado; dente os estrangeiros, Menestrina, citado por Giuseppe Tarzia, entendendo que o executado nesse processo não é sequer parte e está o devedor liberado da cognição; o alemão Kohler, também citado por Tarzia, ensina que no processo de execução o devedor é uma parte processual, mas não dotado de poder de contraditar, pois esse procedimento não possui estrutura contraditória. 185

Não cabem, ao nosso ver, posições de meio-termo, ou intermediárias, como

querem alguns autores. A simples atenuação do princípio não lhe retira a condição

de incidente. De fato ele existe, porém, por circunstâncias próprias é observado

desta ou daquela maneira, com aquela ou esta grandeza. É simples: existe ou não 185 Ibid., p. 51.

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105

existe. Incide ou não. Alegar que cabe aqui, mas ali deve ser afastado, é

inconcebível. Afinal, o devedor deve sujeitar-se a tudo? Não pode nada alegar? Se

alegar, não pode exercer oposição? São questões que ficam claras na medida em

que há uma sistematização de conceitos a fim de buscar a unidade do estudo.

A grande questão a ser posta é efetivamente, a de que não se está falando

sob o ponto de vista do mérito cognitivo da causa, pois aí sim, estaríamos a tentar

destruir a teoria dos títulos de créditos. Queremos, apenas, demonstrar que a

teoria, dogmaticamente insculpida, avessa ao contraditório dentro do processo de

execução, é, em primeiro lugar, falsa; em segundo, perniciosa para o processo e

para as partes; em terceiro, ilusória, devendo ser considerada dentro da dinâmica

processual, visando sempre ao escopo a que se destina, como elemento de

segurança da própria atividade estatal administradora e prestadora de jurisdição.

Com outro entendimento, evidentemente, há aqueles que aceitam, de forma

pacífica, a presença do contraditório no processo de execução. Nesta esteira de

doutrinadores encontramos inúmeros nomes proeminentes no estudo do processo

e, especificamente, no de execução.

Cândido Rangel Dinamarco, que entende, de fato, ter o processo de

execução como objetivo principal os atos de realização, e não de conhecimento

puro. Há, entretanto, toda uma dinâmica tendente à satisfação do credor sem,

todavia, descurar dos princípios básicos do processo civil e especialmente o do

contraditório.

O fato de a execução visar a retirar do patrimônio do devedor certa parcela

e transferi-la ao credor, em atos práticos, não lhe retira a necessidade de observar

as técnicas e os princípios processuais, sem as quais, defende citado autor, não

seria possível manter o mínimo de igualdade entre a exigência da satisfação do

credor e o patrimônio do devedor. Defende esta posição, pois execução não é

mero procedimento e quando se fala em processo de execução se está falando de

processo mesmo e, portanto, cercado de todas as garantias legislativas tendentes

ao escopo final, que é o da pacificação social.

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106

Como poderá ser atendida dita pacificação social sem haver a instauração

de meio judicial com todas as garantias constitucionais emprestadas pelo Estado,

especialmente no processo de execução? Como alcançar o desiderato sem a

citação, sem o conhecimento de questões incidentes ao feito? É obvio, conforme

entendimento de Cândido Rangel Dinamarco, que quanto ao mérito da causa, pela

própria estrutura procedimental, não é aconselhável ser questionada, mas todos

os incidentes necessários a sua consecução devem ser conhecidos, discutidos e

decididos dentro do processo de execução.

Posicionar-se nesse sentido é, na verdade, aceitar a concretização daquilo

que Cândido Rangel Dinamarco vem defendendo em seus escritos:

(..) falar em due process of law, em contraditório e em ampla defesa significa superar os meros conceitos estáticos que costumam envolver os sujeitos da relação processual e concentrar o interesse na dinâmica da atuação de cada um, em vista do objetivo final que é sempre o de oferecer o real acesso à ordem jurídica justa através do processo.186

Pontes de Miranda, ao comentar as ações executivas de cognição

incompleta, como denomina, observa que quando o Estado atribui a algum

documento ou causa certeza suficiente para que se possa fazer a execução, dita

certeza é diversa para todos os casos de efeitos executivos. Diz Pontes de

Miranda que, “a prevalência, é pelo efeito executivo nesse procedimento,

diversamente da cognição onde prepondera o efeito declaratório, constitutivo,

condenatório ou mandamental”. Mas admite a presença do conhecimento na

execução, guardadas suas proporções e desideratos. Alguma cognição há.187

Araken de Assis está entre doutrinadores que lecionam existir um

contraditório eventual dentro do processo de execução. Assim, portanto, participa

da corrente daqueles mestres que vislumbram a presença da dialética dentro da

execução. Pois, como dissemos, ela existe, seja de forma eventual ou continuada.

186 DINAMARCO, Cândido Rangel Dinamarco. Instituições de direito processual civil. São Paulo: Malheiros, 2001. v.1, p. 165, nota 41. 187 MIRANDA, Pontes de Miranda. Comentários à Constituição de 1967. 2ª ed. Rio de Janeiro: Revista dos tribunais, 1976, p. 26.

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107

A simples denúncia de sua presença é bastante como elemento caracterizador, e

para efeitos científicos basta. 188

Tecendo comentários a respeito de Araken de Assis, o autor João Lace

Kuhn alega que, apesar de o processo de execução estar voltado para operações

práticas desenvolvidas no mundo fático, não pode ser estranha ao juiz da causa a

realização de atividades cognitivas necessárias ao cumprimento do objetivo final

que, como ensina, é a modificação efetiva da realidade material. Ou seja, a

satisfação do credor com a transferência de patrimônio daquele para este. 189

João Lace Kuhn afirma ainda que, para José Frederico Marques leciona

haver possibilidade da existência do contraditório dentro do processo de

execução; citando Redenti e Crisanto Mandrioli, alega ter o contraditório, nesse

caso, significado diverso do que no processo de conhecimento, mesmo sendo as

partes da execução sujeitos da relação jurídica processual, possuindo poderes e

direitos processuais. Sustenta este posicionamento porque, quanto ao mérito,

dentro do processo de execução, não é permitido ao réu exercer oposição,

entretanto, o princípio de desenvolve em questões atinentes a certos atos da

execução. As partes têm poderes, no processo, para intervir, opinar sobre o

conteúdo e desenvolvimento dos atos articulados.

Humberto Theodoro Junior, aborda o tema dizendo que ninguém pode ser

atingido na esfera jurídica sem lhe ser dada oportunidade de defesa.

Especialmente pelo fato de ser o princípio do contraditório constitucionalmente

assegurado e uma peça imprescindível do due process of law, afirma não se tratar

de exclusividade do processo de conhecimento, incide também no processo de

execução. 190

O autor José Rogério Cruz e Tucci, que defende a bilateralidade dos atos e

termos processuais no processo de execução. Assim como Ovídio Baptista da

Silva, não denomina o princípio de contraditório, mas de bilateralidade da

188 Apud, KUHN, João Lace Kuhn. O Princípio do Contraditório no Processo de Execução. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998, p. 55. 189 Ibid. p, 56. 190 THEODORO JÚNIOR, Humberto Theodoro Júnior., em artigo em homenagem ao professor Alcides Mendonça Lima. Processo de Execução de as Garantias Constitucionais e Tutela Jurisdicional. Porto Alegre: Sérgio Fabris Editor, 1995, p. 156.

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108

audiência, acrescentando que também o processo de execução, nada obstante a

realização de operações práticas no desenrolar de seus atos, não fica imune à

dialética típica de qualquer processo. 191

Na doutrina alienígena encontramos, segundo João lace Kuhn, tanto como

na nacional até aqui comentada, inúmeros escritores que se dedicaram ao estudo

do tema. Aludido autor reproduz opiniões de apenas alguns deles, tendo em conta

que o conteúdo e a importância de suas propostas merecerem atenção especial.

Sérgio La China, aborda como firmeza o tema, fazendo um exame circunstanciado

de todas as implicações que traduzem a presença do contraditório no processo de

execução. Seu estudo inicia pela forma mais embrionária de formação do conflito.

Começa por verificar que, para existência de um processo, é necessário um autor

e um réu em posições distintas. Na execução, continua, há o credor insatisfeito e o

devedor inadimplente. Afirma que se existe um, é porque, necessariamente, existe

o outro, pois se assim não fosse não existiria a insatisfação e muito menos o

processo.192

Está é uma posição pré-processual, mas sem dúvida se esta não existir,

não ocorrerá a seguinte, ou seja, a processual. Não é possível, como diz o autor,

existir uma posterior sem a existência de uma anterior. É uma questão de lógica

formal. É a primeira resistência. Tal contrariedade manifesta-se imediatamente ao

descumprimento voluntário. Instala-se, desde aí, o contraditório.

Ensina Sérgio La China que o estudo deve ser feito no âmbito do processo

e deve ser reservar ao conteúdo processual, pois a mais vigorosa noção civilista

de crédito impede que, no processo de execução, se discuta o mérito da causa, e,

portanto, resta gravitarem os processualistas apenas na órbita que lhe pertence: o

processo. Para tanto, busca arrimo no artigo 101 do CPC italiano, que, entende,

ser a fonte inspiradora de todo o procedimento dialético endoprocessual vigente

na Itália.

191 TUCCI, José Rogério Cruz e Tucci, em artigo em homenagem ao professor Alcides Mendonça Lima. A Tutela Processual do Direito do executado. Porto Alegre: Sérgio Fabris Editor, 1995, p. 242. 192 Apud, KUHN, João Lace Kuhn. O Princípio do Contraditório no Processo de Execução. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998, p. 59.

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Assim também Francesco Carnelutti, citado por João Lace Kuhn, diz que o

princípio do contraditório é a garantia mais eficaz da, imparcialidade do juiz. Afirma

que o progresso da ciência processual permite, através de seus avanços,

visualizar a presença do contraditório também no processo de execução. Altera a

posição do executado no leito, deixando de ser mera parte em sentido material

para se tornar parte em sentido processual, cabendo-lhe, daí, funções de agir e

reagir em defesa de seus interesses processuais.

Já o autor italiano Giuseppe Tarzia ensina que, efetivamente, os atos de

execução e realização do direito são de ordem prática, mas toda a preparação

destes se desenvolve em procedimentos que exigem, por força constitucional, a

presença do contraditório. São, como diz, os elementos representantes do

conteúdo mínimo e irredutível do contraditório.

Examinado sempre à luz do direito italiano positivo, continua o autor,

fazendo uma distinção da aplicação do contraditório na execução. Diz não haver,

de fato, um contraditório prévio, como no processo de conhecimento face às

peculiaridades da execução em razão de sua estrutura e finalidade.

A formação do ato final da execução é eivada de elementos que denunciam

o contraditório. Tanto é que, se inobservados alguns dos requisitos, especialmente

o dialético, é passível de nulidade, sendo maior ou menor sua extensão de acordo

com a substância do ato.

O sistemas democráticos contemporâneos não admitem a submissão das

pessoas uma pelas outras. O sistema de paridade de forças, o sistema de

igualdade processual, como que seja chamado, é elemento fundamental de

garantia constitucional. Não há dúvida de que o próprio direito positivo, tanto o

italiano, pelas conclusões de Giuseppe Tarzia, quanto o nacional, possuem, em

seus conteúdos, mesmo que voltados ao processo de execução, disciplina que

observe efetivamente o contraditório. Como diz Sérgio La China, o devedor não

resiste ao direito, mas sim à satisfação do direito.

Moacyr Amaral Santos – defensor da presença de um contraditório– vale

um menção especial:

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Também no processo de execução se contém uma relação processual (...). Entretanto, enquanto na relação processual de conhecimento domina o princípio do contraditório, a relação processual da execução, que se inicia com a petição de execução e se completa com a citação do executado, não se informa, senão de modo bastante atenuado, por aquela princípio. Na execução, formada a relação processual, as atividades contidas se desenvolvem contra o executado, que não pode impedi-las, não lhe cabendo senão o poder de exigir que se realizem na conformidade e nos limites da lei. 193

Nosso tribunais também já apresentaram tese de que no processo de

execução propriamente não se deve respeito ao contraditório, o que ocorrerá

apenas em sede de embargos do devedor.

O TJRS já decidiu que a origem do bem penhorado, e a conseqüente

nulidade da penhora, deve ser discutida nos embargos do devedor e não nos

próprios autos da execução, onde não cabe o contraditório:

Não é processo de execução, que tem cunho satisfativo, sede para discussão acerca da origem do bem que se pretende ver penhorado. A alegação de que o imóvel indicado e de propriedade do agravo/executado e não do terceiro, por se este ‘ teste de ferro’ do recorrido, deve ser discutida com ação própria, onde ampla a produção de provas e assegurado o contraditório. Agravo improvido” (AI 598220622 –j.30.3.1999)

O TARJ, em linha semelhante de pensamento, decidiu que a

desconstituição da penhora incidente em bem de família só pode ocorrer via

embargos do devedor:

Penhora efetivada em imóvel residencial próprio do casal, ou da entidade familiar. Desconstituição somente através do procedimento próprio, observado o contraditório ente as partes interessadas (AI 490/95 – 7º Câm. – Rel. juiz Maurício Gonçalves de Oliveira – j 20.9.1995).

Para não nos tornarmos cansativos, um derradeiro posicionamento, agora

do 1º TACSP:

Despacho do magistrado que, homologando-a, determina a intimação dos réus remanescentes para fins de fluência do prazo para pagamento ou oferecimento de bens por aplicação analógica do art. 298, § único do CPC.Inadmissibilidade. Processo em que

193 SANTOS, Amaral Moacyr dos Santos. Primeiras Linhas de direito processual civil. 13ª ed., São Paulo: Saraiva, 1993. v. 3, p. 218.

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não há contraditório. Defesa somente possível através dos embargos, cujo prazo começa a fluir da intimação da penhora para cada devedor. Aplicação do art. 569 e inteligência do art. 598 do referido código (AI 426.20-5 – 2º Câm. – Rel. juiz Rodrigues de Carvalho – j. 210.1989).

Filiamo-nos àquela corrente que entende ser imprescindível o respeito ao

contraditório no processo de execução, independentemente da interposição de

embargos do devedor, porque este são ação de conhecimento como tal, respeitam

sem limitação os princípios do contraditório, da ampla defesa e da isonomia. Além

do mais, com os embargos nasce uma nova reação jurídica processual,

envolvendo de um lado o embargante e de outro o embargado – executado e

exeqüente no processo de execução, respectivamente – que devem ter à sua

disposição liberdade total para demonstrar ao magistrado suas razões na tentativa

de formação do seu convencimento.

Por isso mesmo a doutrina define os embargos como “ação de

conhecimento”, geradora de processo incidental e autônomo, mediante a qual,

com a suspensão creditícia do exeqüente e a validade da relação processual

executiva.194

A ordem contida no art. 5º. LV, da Constituição Federal prevê que o

princípio do contraditório, assim como o da ampla defesa, deve ser respeitado em

relação aos litigantes em qualquer processo judicial, bem como os interessados

em processo administrativo. Ora, o processo de execução, embora tenha

características próprias que o diferem do cognitivo, também deve ser enquadrado

no gênero “processo judicial”, o que logicamente o faz alvo de incidência do

princípio do contraditório.

Ademais, a essência do contraditório pode ser encontrada no trinômio pedir-

alegar-provar, que também encontra-se presente no processo da execução,

porque não só o processo cognitivo produz resultados com características próprias

para atingir o patrimônio do particular, porque o de execução sempre o atinge, por

vezes resultando mesmo a expropriação dos bens penhorados. Além do mais, os

resultados advindos do exercício do poder estatal somente serão impostos

194 WAMBIER, Luiz Rodrigues Wambier. Curso avançado de processo civil. 2ª ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999. v. 2, p. 286.

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legitimamente após a indispensável participação dos interessados, de modo que

privar de participação no processo o executado é medida que torna aquele

exercício ilegítimo, principalmente porque só lhe restará, na hipótese, sujeitar-se

aos atos do juiz e permanecer inerte diante do exercício do poder estatal sobre

seus bens. 195

O processo de execução também exige a presença das condições da ação

e dos pressupostos processuais, questões de ordem pública que podem ser

conhecidas de ofício pelo juiz (art.267, § 3º, 1º parte. Art. 301, § 4º, do CPC),

sendo obrigatório o exame até mesmo pelo tribunal, conforme já decidiu o STJ:

I – O Tribunal da apelação, ainda que decidido o mérito na sentença, poderá conhecer de ofício da matéria concernente aos pressupostos processuais e às condições da ação. II – Nas instâncias ordinárias não há preclusão para o órgão julgador enquanto não acabar o seu ofício jurisdicional na causa pela prolação da decisão final; III – No processo de execução as partes exercitam direito de ação contra o Estado e tal ação deve ser apreciada pelos mesmo critérios que norteiam a ação de cognição, sob pena de quebra de unidade do sistema. (Ag. Rg. Resp.192.199- RS – 4º Turma – Rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira – DJU 20.9.1999, p.66).

Assim, tanto no processo de conhecimento quanto no de execução este

exame poderá ser feito desde o despacho da inicial, primeiro momento em que se

enseja o controle ao juiz.

Porém, não há na execução um momento próprio para o juiz sanear a

relação processual, como aquela existente na cognição (art.331 do CPC). Então,

nada mais lógico do que se admitir que exeqüente e executado trabalhem em

conjunto com o magistrado, fornecendo-lhe elementos informativos para que

conheça daquelas questões de ordem pública. Como defende Luiz Rodrigues

Wambier:

seria ilógico dizer que o juiz pode conhecer dessas matérias na execução, mas a parte não tem o direito de suscitá-las; todo poder conferido ao argente público traz consigo o dever de seu

195 DINAMARCO, Cândido Rangel Dinamarco. Instituições de direito processual civil. São Paulo: Malheiros, 2001. v.1, p. 308, nota 41.

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exercício (função) – e as partes tem o direito de provocar o cumprimento desse dever.196

A respeito de tais questões de ordem pública, tem sido admitida no

processo de execução a chamada exceção de pré-executividade, como já foi

explicado no capítulo anterior, modalidade de oposição do executado via petição

avulsa (sem necessidade de embargos) e independente da segurança do juízo

pela penhora, como explica Vicente Greco Filho:

Como os defeitos do art. 618 estão expressamente cominados como nulidades, o juiz pode reconhecê-los de ofício, independentemente de embargos do devedor. A matéria é de ordem pública, podendo ser argüida a qualquer tempo e por qualquer meio. Os embargos são a sede própria para a alegação de nulidades (art. 741), mas nas matérias do art. 618 qualquer oportunidade é valide.197

O legislador foi cauteloso ao determinar que “quando por vários meios o

credor puder promover a execução, o juiz mandará que se faça pelo modo menos

gravoso para o devedor” (art.620, do CPC). Esclarece Cândido Rangel Dinamarco

que:

Nem sempre o executado encarna a figura do devedor desidioso e mal-intencionado, interessado em procrastinar, preocupado em tirar proveito das imperfeições da justiça e delongas do processo, empenhado em privar o credor daquilo que lhe é devido. Isso acontece e com muita freqüência até.198

Trata-se, pois, de uma garantia que tem o devedor de que seu patrimônio

não será dilapidado pelo Estado no exercício legítimo de sua função jurisdicional,

tanto é que garantido ao executado por quantia certa, a penhora dos bens,

seguindo a gradação legal estabelecida no art. 655, do CPC.

Em verdade, quis o dispositivo informar que dentre dois ou mais atos

executivos a serem praticados contra o executado num mesmo procedimento, o

juiz deve optar por aquele que lhe trouxer menor prejuízo. Tal ordem apresenta-se

como um temperamento entre duas finalidades estabelecidas pelo legislador: a

196 WAMBIER, Luiz Rodrigues Wambier. Curso avançado de processo civil. 2ª ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999. v. 2, p. 124. 197 GRECO FILHO, Vicente Greco Filho. Direito processual civil brasileiro. 14ª ed., São Paulo:Saraiva, 200. v.3, p. 52. 198 DINAMARCO, Cândido Rangel Dinamarco. Instituições de direito processual civil. São Paulo: Malheiros, 2001. v.1, p. 308, nota 41.

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utilidade da execução (por isso os bens mais fáceis de serem alienados vêm

primeiro) e o princípio da execução menos onerosa (por isso ao executado cabe a

nomeação e a doutrina admite que por vezes a gradação legal seja invertida em

benefício do devedor. Nesse passo já decidiu o TJRS:

Considerando o vultuoso valor do crédito, torna-se inadmissível a penhora e dinheiro, tendo como devedor instituição financeira, visto que tal constrição judicial poderá trazer prejuízo ao devedor, que deverá ser executado de forma menos gravosa (art. 620, CPC). Agravo improvido” (AI598124899 – 15º Câm. Cível. – Rel.Des. Manuel Martinez Lucas – j.9.9.1998).

Ora, se não se admitisse o contraditório no processo de execução, não

poderia o executado exigir o cumprimento do disposto no art. 620 do diploma

processual civil. É certo que a regra é destinada ao exeqüente e ao juiz, num

primeiro momento, devendo de início o próprio credor escolher a forma menos

gravosa de proceder à execução, no decorrer da atividade processual, cabe ao

juiz do feito examinar-se os atos processuais efetivamente estão sendo praticados

segundo a vontade do legislador. Contudo, o maior interessado no cumprimento

da ordem é o próprio devedor, a quem devem ser dadas oportunidades para

apresentar manifestação contra os atos atentatórios à sua prerrogativa.

O posicionamento de nossos tribunais vêm garantindo o respeito à regra do

art. 620, do CPC, e conseqüentemente a observância ao princípio do contraditório.

Vejamos três exemplos:

a) o TJRS também entendeu que, “realizada a avaliação pericial, as partes têm direito, em respeito ao princípio do contraditório, de se manifestar sobre o laudo, para o que devem ser corretamente intimadas. Destarte, a equivocada intimação das executadas caracteriza cerceamento de defesa e importa em nulidade do ato”,referindo-se à publicação oficial que não continha o nome dos advogados das partes, na forma dos arts. 236, § 1º, e 247, ambos do CPC (ai 198098295- 14º Câm. Cível – Rel. Dês. Aymore Roque Pottes de Mello – j. 25.6 1998).

b) o TARJ concede ao “co-executado, na iminência de ter o prédio em que reside com os seus familiares penhorado, por indicação do credor exeqüente, fazendo a prova regular de que refere-se a um bem de família, como definido na Lei n.8.009/1990, pelo princípio do contraditório, por economia processual, e pelo dizer claro do art. 3º, caput, da lei mencionada”autorização para “postular, nos próprios autos, a não concretização do ato de

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constrição judicial fadado a ser ineficaz” (AI833/94- 6º Câm. – Rel. juiz Ronald Valladares – j 27.9.1994).

c) o TRF, da 3º Região, apreciou agravo de instrumento interposto contra decisão tomada pelo juiz nos próprios autos da execução em que determinava o desligamento de duas linhas telefônicas, “a fim de garantir que a penhora incidente sobre direitos a ela relativos não viesse a ser frustrada, em razão de eventual e abusiva utilização dos aparelhos”.

O Tribunal acolheu o recurso, por entender que não havia nos autos

qualquer indício de que a garantia seria defraudada, devendo a execução correr

da forma menos gravosa ao executado (AIn.92.03.21964-1 – 2º Turma – Rel. juiz

Souza Pires j. 15.10.92).

Antonio Carlos Marcato aponta para a manifestação do princípio do contraditório

em cada passo do processo de execução,

quer pela exigência da citação do devedor, quer pela imposição da intimação da penhora, quer ainda pela possibilidade que se abre àquele para impugnar a avaliação, pedir a redução da penhora ou opor-se ao pedido de reforço da mesma. 199

Tal comportamento combativo do executado só é proporcionado porque

toma que conhecimento de todos os atos do processo. Enfim, afirmar que o

executado deve participar do controle da regularidade da execução é admitir a

presença do contraditório.

No processo de execução também falamos em relação jurídica processual –

com a presença de seus sujeitos principais: partes e juiz – que se inicia com a

petição de execução e se completa com a citação do executado. Ora, se é

necessária a criação do devedor para ser formada a relação processual, além das

intimações que ocorre durante o decorrer de toda atividade processual, nada mais

lógico que se concluir pela presença do contraditório no processo de execução.

Dar ciência às partes de tudo que ocorre no processo, principalmente informar ao

executado de que em seu desfavor corre uma ação, é admitir-se o respeito ao

princípio.

199 MARCATO, Antonio Carlos. Preclusões:limitação ao contraditório? Revista de processo, São Paulo, n.17, p. 105-114, jan/mar. 1980, p. 112.

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Marcelo Lima Guerra defende a incidência do contraditório no processo de

execução, afirmando ser uma das maiores evidências o artigo 9º do CPC, que

exige, quando na execução o réu é citado por edital, a presença de curador

especial para o desenvolvimento válido e regular do feito. Admite, entretanto,

tratar-se de tema polêmico, mas hoje completamente pacificado pelo Supremo

Tribunal Federal. Conclui, peremptoriamente, pela incidência do princípio no

processo de execução, especialmente pela necessidade da citação e do

acompanhamento do executado para que o feito se desenvolva com o fim de

satisfazer o credor, mas da maneira menos gravosa para o devedor.

Aponta ainda, que o contraditório é concebido pela doutrina como a

necessária ciência que deve ser dada a ambas as partes daqueles atos praticados

no processo, possibilitando-lhes cooperar e contrariar. E arremata:

Tendo como premissa tal concepção de contraditório não há de deixar de reconhecer sua incidência no processo de execução. Desde logo, observa-se que é assegurada a necessária informação do que ocorre nesse processo, e onde também é indispensável a citação inicial, bem como a intimação dos demais atos processuais. (...) Dessa forma, conclui-se que o contraditório incide claramente no processo de execução, tanto por ser aí garantida a necessária informação (especialmente a citação inicial do devedor ) sobre os atos processuais, como também por assegurada a participação do devedor no controle da regularidade da execução. 200

Ainda temos que analisar a hipótese do executado presumidamente citado,

porque nesses casos deverá o juiz nomear-lhe curador especial, nos termos do

art. 9º, II, do Código de Processo Civil e Súmula 196, do STJ, que orienta: “Ao

executado que, citado por edital ou pó hora certa, permanecer revel. Será

nomeado curador especial, com legitimidade para apresentação de embargos”.

Certo é que o tema gera polêmica, até porque a doutrina discute o cabimento da

citação por hora certa no processo de execução. Contudo, a tendência no Brasil é

aceitar a orientação sumulada, como afirma Gil Ferreira Mesquita.201

200 GUERRA, Marcelo Lima Guerra. Execução forçada:controle de admissibilidade. São Paulo:Revista dos Tribunais, 1995, p. 26-30. 201 MESQUITA, Gil Ferreira Mesquita. Princípios do contraditório e da ampla defesa no processo civil brasileiro. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2003, p. 238.

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Mas, sem ingressarmos na discussão acerca da legitimidade ativa do

curador especial para propositura dos embargos, resta evidente que o conteúdo

da Súmula revela a preocupação corrente de que o executado deve tomar ciência

da ação que lhe é proposta (citação) e acompanhá-la em todos seus termos

(intimações). Se não responde à citação ficta, não há melhor alternativa para

atendimento ao princípio do contraditório do que nomear-lhe curador para defesa

de seus interesses, tomando ciência de todos os atos processuais praticados, ou

seja, o respeito e incidência do contraditório.

São estes quatro argumentos que entendemos necessários à justificativa de

nosso posicionamento aceitando a presença do princípio do contraditório no

processo de execução, independentemente dos embargos, que são ação

incidental de conhecimento, onde o princípio reina absoluto. Temos que a simples

possibilidade que deve ser dada ao executado pra manifestar-se sobre a avaliação

do bem penhorado, por exemplo, é respeito ao contraditório, bem como

acompanhar a prática de todos os atos processuais para evitar lesão à

prerrogativa de menor lesão (art. 620, do CPC) e todas as hipóteses possíveis

para propositura da exceção de pré-executividade configuram manifestação

inequívoca e que o processo de execução também desenvolve-se dialético,

guardadas as características próprias que o diferenciam do processo cognitivo.

É importante salientar, por derradeiro, que o contraditório é garantia que

atinge não só o executado, mas também deve ser observado em face do

exeqüente, principalmente face a Lei 11.382/2006 (reforma da execução

extrajudicial). Todavia, alguns atos são praticados no decorrer do processo de

execução e que caracterizam respeito ao contraditório em benefício do credor,

dente eles: a) requerimento para ampliação e reforço de penhora (art. 685, II);

pedido de adjudicação do bem penhorado (art. 685); c) pedido de nova avaliação

do bem constritado (art. 683); e. d) pedido de alienação antecipada do bem (art.

670).

Não devemos duvidar, pois, que tanto a reação do executado ao oferecer

suas impugnações no próprio processo de execução, independentemente de

embargos, quanto a reação do exeqüente, nas várias possibilidades em que

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manifesta-se em defesa de seus interesses, são possibilitadas pelo princípio do

contraditório.

Para nós, é inequívoco que o contraditório incide no processo de execução.

O exame doutrinário esclarece peremptoriamente a questão. Não resta dúvida da

ocorrência deste fenômeno. A execução é apenas um dos tipos de processo

previsto na legislação atual. O contraditório incide, conforme comando

constitucional, em todo o processo civil, logo, por uma questão de silogismo

primário, também sobre o processo de execução.

CONCLUSÃO

O Contraditório é princípio de direito Constitucional, constante na

Constituição nacional e com garantias constitucionais, insculpido no artigo 5º,

inciso LV, da atual Carta, e nas Constituições anteriores. Como princípio

constitucional, sobrepões-se a qualquer outro princípio de direito processual.

A execução é, sem dúvida, a expressão maior da jurisdição, pois sem ela o

bem da vida buscado no processo judicial, se não cumprida a decisão

espontaneamente, ficará sem ser realizado. A execução é o corolário máximo da

jurisdição. Sem ela ficaria inócuo e desprovido de sentido todo o processo. A

cogência da execução é o que empresta força e credibilidade ao processo judicial.

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O império exercido pela jurisdição é, em última análise, a realização da função

estatal, dentro da tripartição de poderes.

As igualdade entre ditos poderes constitucionais, tão importante para o

mundo moderno, obriga o Estado a criar mecanismos para poder realizar a

pacificação social através do Judiciário (via processo), no qual o processo de

execução é, sem dúvida alguma, o seu expoente máximo. Sem ele, já frisamos,

inóquo e supérfluo todo o processo, pois processo que termina com uma

exortação, nas palavras do Giuseppe Chiovenda, para que o devedor cumpra o

julgado, é ineficaz e de uma perda de tempo irreparável e irresponsável.

Nem sempre foi assim. A doutrina clássica não acata o contraditório na

execução pela simples razão de que, se execução é uma parte do processo de

conhecimento, clara está a impossibilidade, nesta fase, de se voltar a ter cognição

no procedimento. Se já exaurido todo o conhecimento que devia ter o juízo sobre o

feito, nada mais lhe resta senão realizar o direito.

São as novas tendências, as novas necessidades e o tempo que se

encarregam de mudar conceitos e nos levam a questionar paradigmas, muitas

vezes arraigados por séculos, tanto no nosso ordenamento jurídico, como também

em nossas outras atividades, pois devem servir para manter a paz e distribuir a

justiça entre os partícipes sociais.

A própria lei, no âmbito normativo, disciplina o contraditório como elemento

essencial para a existência da própria demanda, quando alude às figuras do autor

e do réu, aquele que propõe e aquele contra qual é proposta uma ação, pelo fato

do descumprimento voluntário de alguma obrigação, sob pena de inexistir a causa,

e, por conseqüência, desnaturar o processo.

Assim, também o processo de execução não deverá apartar-se deste

conceito de demanda, em função da resistência de uma das partes. Há sempre

uma evidente reação de contrariedade calcada no próprio sentido do

descumprimento de uma obrigação decorrente de título executivo – extra ou

judicial – sempre representativo da obrigação que não foi honrada

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espontaneamente. Na verdade, na execução não há uma resistência quanto à

existência do direito, mas contra a satisfação do mesmo.

Certo é que o contraditório se faz presente no processo de execução. Não

de uma forma tradicional, como meio de obtenção de prova para criação do direito.

Na execução o direito, mérito, já está criado, ou pela sentença anterior, ou pelo

título extrajudicial. Neste sentido, sim, concordamos, deve o contraditório ser

atenuado, pois se incidir plenamente deixa a execução de ter sua finalidade,

perpetuando os processos indefinidamente, com graves prejuízo às partes e ao

próprio aparelho judiciário. Todavia, deve ter presença, sim, no processo.

Presença inestimável na esfera do procedimento tendentes à realização do direito.

O ônus do cumprimento é recusado pelo devedor da obrigação em todos sos

momentos e no limite das suas forças. O processo de resistência, de

contrariedade, é nato do ser humano e não seria dentro do processo de execução,

por simples apego a dogmas ou paradigmas, que se faria desprezado,

submetendo o devedor a imposições até maiores do que deveria suportar pelo

simples fato de não poder refutar.

Entretanto, por ser idéia “nova” para a ciência processual, diante dos

milênios utilizados para insculpir o direito material em nosso ordenamento

moderno, tanto o processo (gênero), como a execução (espécie), ensaiam seus

primeiros passos. Devem, por conseguinte, ser aprimorados e adequados, sempre

com o objetivo maior, pois são instrumentos e estão a serviço da sociedade para

cumprir a função que lhe foi reservada.

Entendemos vencida a compreensão da autonomia e independência do

processo de execução pela presente exposição. Não há mais espaço no sistema

processual brasileiro vigente para dúvidas dessa estirpe. Execução é processo

independente, autônomo, com regras e disciplina especiais, pois seu fim é

especial, mas nunca fora dos princípios gerais da jurisdição e da segurança do

tráfego jurídico exigido nas civilizações democráticas modernas.

A execução é um processo com objetivos diversos dos insculpidos no

processo de conhecimento, por isso o contraditório existente na execução também

é diferenciado, em razão desse objetivo diferenciado.

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O contraditório executivo é limitado ao objeto controvertido ocorrente no

curso da execução, cinge-se ao quad objetum, não atinge o mérito. A observação

do contraditório é obrigatória como medida de garantia e segurança das partes no

processo.

Os mecanismos onde afloram o princípio devem ser invocados pelas partes

em atenção ao previsto no art. 2º do CPC, a fim de produzir efetividade jurídica

aos pedidos. Uma das tantas finalidades da utilização do princípio do contraditório

é emprestar às partes, com segurança, definitividade das decisões do Judiciário.

As regras que obrigam a aplicação do princípio, no processo de execução,

não se aplicam aos procedimentos, ordinatórios não-jurisdicionais, tais como

procedimentos administrativos de condução do processo. Os casos apresentados,

onde demonstramos a incidência do contraditório no processo de execução, não

são exaustivos, correspondem apenas aos casos mais comuns que encontram

suporte na lei processual.

BIBLIOGRAFIA

AGRA. Walber de Moura. Manual de Direito Constitucional. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002. ALVIM, J. E. Carreira Alvim; CABRAL, Luciana G. Carreira Alvim Cabral. Nova execução de Título Extrajudicial. Comentários à Lei 11.382/06. 3ªed. Curitiba:Juruá, 2007. ALVIM NETTO, José Manuel de Arruda. Tratado de direito processual civil. 2ª ed., Vol 1, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1990.

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