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UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁS
FACULDADE DE HISTÓRIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA
MARCOS PAULO DE MELO RAMOS
“NÃO VIM TRAZER A PAZ, MAS A ESPADA” (Mt 10,34):
REPRESENTAÇÕES COLETIVAS E MANUTENÇÃO DA BATALHA
ESPIRITUAL ENTRE OS EVANGÉLICO-PENTECOSTAIS (1911-1990)
Goiânia
2011
1
MARCOS PAULO DE MELO RAMOS
“NÃO VIM TRAZER A PAZ, MAS A ESPADA” (Mt 10,34):
REPRESENTAÇÕES COLETIVAS E MANUTENÇÃO DA BATALHA
ESPIRITUAL ENTRE OS EVANGÉLICO-PENTECOSTAIS (1911-1990)
Dissertação apresentada ao Programa de pós-
graduação em História da Universidade
Federal de Goiás como requisito parcial para
a obtenção do grau de mestre em História.
Área de Concentração: Culturas, Fronteiras
e Identidades.
Linha de Pesquisa: Identidades, Fronteiras e
Culturas de Migração.
Orientador: Prof. Dr. Leandro Mendes
Rocha
Goiânia
2011
2
R175n Ramos, Marcos Paulo de.
“Não vim trazer a paz, mas a espada” (Mt 10,34) - representações
coletivas e manutenção da batalha espiritual entre os evangélico-
pentecostais (1911-1990). / Marcos Paulo de Ramos – Goiânia, 2011.
186. f.
Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal de Goiás,
Programa de Pós-graduação em História, Faculdade de História, 2011.
“Orientador: Prof. Dr. Leandro Mendes Rocha”
1. Igrejas pentecostais – história. 2. Igreja católica romana –
história. 3. Relações da cristandade – história. 4. Culto e rituais
cristãos – história. 5. Teologia – identidade social – história. I.
Universidade Federal de Goiás. II. Rocha, Leandro Mendes. III.
Título.
CDU: 2-9:272/279.15
27-67:272/279.15
3
RAMOS, Marcos Paulo de Melo. “Não vim trazer a paz, mas a espada” (Mt 10,34):
representações coletivas e manutenção da batalha espiritual entre os evangélico-pentecostais
(1911-1990). Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado em História, da Universidade Federal
de Goiás. Goiânia, UFG, 2 sem. 2011, 185 folhas.
COMISSÃO EXAMINADORA:
__________________________________________
Prof. Dr. Leandro Mendes Rocha
__________________________________________
Profa. Dra. Eliesse dos Santos Teixeira Scaramal
___________________________________________
Prof. Dr. Itelvides José de Morais
____________________________________________
Profa. Dra. Maria Amélia Garcia de Alencar (Suplente)
Dissertação Examinada em ___/___/ 2011.
5
AGRADECIMENTOS
Presto homenagens a todos que direta ou indiretamente contribuíram para a realização
deste trabalho. Aos amigos que compreenderam minha ausência em vários momentos nos
quais deveríamos estar juntos e aos familiares cujos aniversários ou outras datas festivas não
pude comparecer.
Agradeço também ao meu caríssimo orientador Dr. Leandro Mendes Rocha. Suas
críticas e orientação paciente me permitiram adentrar à floresta teórico-metodológica dos
trabalhos científicos com a capacidade de discernir, como ele mesmo gosta de dizer, “entre
cobras e lagartos”.
Ao pessoal do Programa de Pós-Graduação em História pela solicitude com que
sempre nos receberam e pelo apoio nessa trajetória.
Não poderia deixar de mencionar meus pais, Tadeu Ramos de Paula e Sofia de Melo
Paula. Se há algo de virtuoso em minha pessoa, isso se deve ao apoio e amor despendidos por
eles.
6
RESUMO
Este estudo versa sobre os evangélico-pentecostais enquanto segmento religioso unificado
pelo compartilhamento de determinadas representações coletivas. Cunhamos tal termo de
análise ao perscrutamos as continuidades no imaginário social existentes em documentos da
Assembléia de Deus desde sua fundação em 1911 e documentos provenientes da Igreja
Universal do Reino de Deus de fins do século XX. O que nos interessou nesse trabalho, acima
de tudo, foi encontrar as características que possibilitam unidade entre essas duas
denominações. Pretendemos ter demonstrado que a Batalha Espiritual, entendida por vários
autores de peso na área dos estudos pentecostais como elemento característico apenas das
denominações surgidas após a década de 1970, de fato, sempre esteve presente de forma
determinante na constituição identitária dos evangélico-pentecostais. Assim, apresentamos
duas formas mínimas de matrizes interpretativas – “Santidade Próspera” e a “Prosperidade
Santa” – que diferenciariam os pentecostais do século XX utilizando outra base que não a
pretensa exacerbação da Batalha Espiritual. Sugerimos uma possível explicação para o fato de
a Batalha Espiritual ter sido interpretada por certos sociólogos e historiadores como elemento
característico dos neopentecostais somente. Para dar peso ao nosso argumento, realizamos,
também, um trabalho de comparação entre dois grupos de canções evangélico-pentecostais
produzidas em dois momentos distintos na história do movimento e pudemos, por meio da
análise das letras das canções, observar a reincidência das mesmas representações coletivas.
Além disso, realizamos uma análise do Episódio Vaca Brava, evento no qual todo o
arcabouço identitário discutido no decorrer da obra foi exercitado para fomentar um embate
contra o que os evangélico-pentecostais acreditavam ser uma demonstração do avanço do
poder das trevas sobre solo goianiense.
7
ABSTRACT
This study deals with the Evangelical-Pentecostal religious segment while unified by sharing
certain collective representations. We coined that term analysis to scrutinize the continuities
in the social imaginary in documents of the Assembléia de Deus since its founding, in 1911,
and documents from the Igreja Universal do Reino de Deus, in the late twentieth century.
What interested us in this work, above all, was to identify characteristics that enable unity
between these two denominations. We intend to have shown that the Spiritual Battle,
understood by many important authors in the field of Pentecostal studies as a distinctive
element of names only emerged after the 1970s, in fact, always have been presented in a
decisive way in the constitution of the Evangelical Pentecostal identity. Thus, we present two
minimal forms of interpretive matrices – "Prosperous Holiness" and "Holly Prosperity" – that
differentiated the Pentecostals of the twentieth century using other basis than the alleged
exacerbation of Spiritual Battle. We suggest a possible explanation for the fact that the
Spiritual Battle have been interpreted by some sociologists and historians as a distinctive
element of the neo-Pentecostal only. To increase the credibility of our argument, we
performed also a study comparing two groups of evangelical-Pentecostal songs produced in
two distinct moments in the history of the movement and could, by analyzing the lyrics of
songs, observe the recurrence of such representations collective. In addition, we conducted an
analysis of Vaca Brava Episode, in which event the entire framework of identity discussed in
the course of this work was exercised to promote a clash against what the Evangelical
Pentecostals believed to be a demonstration of the progress of the power of darkness on
goianiense soil.
8
SUMÁRIO
Introdução _______________________________________________________________ 10
1. Pentecostalismo e Neopentecostalismo: as igrejas Assembléia de Deus e Universal do
Reino de Deus ____________________________________________________________ 27
1.1. Antecedentes históricos do Pentecostalismo ____________________________ 27
1.2. As tipologias do pentecostalismo brasileiro _____________________________ 35
1.3. Assembléia de Deus (AD) ___________________________________________ 42
1.4. Igreja Universal do Reino de Deus ____________________________________ 46
2. Uma questão de identidade: a Batalha Espiritual ___________________________ 54
2.1. Contextualizando: santidade próspera e/ou prosperidade santa ___________ 60
2.1.1. Santidade Próspera __________________________________________________________ 61
2.1.2. Prosperidade Santa __________________________________________________________ 72
2.1.3. Inovação teológica ou ênfase midiática sobre a Batalha Espiritual? _____________________ 77
2.2. Representações coletivas e continuidades históricas. _____________________ 79
2.2.1. Santa Ceia _________________________________________________________________ 80
2.2.2. Batismo (águas e Espírito) ____________________________________________________ 83
2.2.3. Biblicismo _________________________________________________________________ 87
2.2.4. Visão de mundo dualista ______________________________________________________ 93
2.2.5. Grande Comissão __________________________________________________________ 106
2.2.6. Parousia (Segunda Vinda de Cristo) ____________________________________________ 115
3. Cantos de Batalha: a manutenção das experiências de conflito por meio dos hinos de
louvor e adoração ________________________________________________________ 119
3.1. Santa Ceia _______________________________________________________ 121
3.2. Batismo (águas e Espírito) _________________________________________ 125
3.3. Biblicismo _______________________________________________________ 130
3.4. Visão de mundo dualista ___________________________________________ 134
3.5. Grande Comissão e parousia ________________________________________ 140
4. No front da Batalha Espiritual: considerações acerca do episódio Vaca Brava __ 153
Conclusão ______________________________________________________________ 175
10
Introdução
Neste trabalho realizaremos uma incursão ao imaginário social que imprime sentido às
vidas dos sujeitos integrantes do grupo religioso que convencionamos chamar “evangélico-
pentecostais”1. Não percorreremos, contudo, as complexas sendas do imaginário social –
território identitário extremamente fértil ao desenvolvimento dos mais distintos arranjos
representacionais – sem uma meta específica. Nosso objetivo é entender e demonstrar como, a
partir das relações estabelecidas entre certas representações compartilhadas coletivamente, os
evangélico-pentecostais produzem e mantêm sentido às experiências de conflito vivenciadas
em nome da fé: a Batalha Espiritual. Além disso, queremos demonstrar que essa mesma
Batalha Espiritual é um elemento determinante na formação identitária dos evangélico-
pentecostais desde o início dos primeiros trabalhos da Assembléia de Deus (1911), não sendo,
portanto, uma característica desenvolvida apenas na segunda metade do século XX pelas
chamadas denominações neopentecostais. Essas Batalhas Espirituais muitas vezes têm lugar
em espaços tradicionalmente entendidos como “profanos” – espaços públicos como praças,
terminais rodoviários, passeios públicos, escolas, etc. Discorreremos, nesse sentido, sobre em
que medida a Batalha Espiritual entranha-se na constitutividade da própria identidade
evangélico-pentecostal.
O termo evangélico faz menção direta aos quatro primeiros livros do Novo
Testamento bíblico. Os evangelhos de Mateus, Marcos, Lucas e João. Com a Reforma
Protestante, no século XVI, dois elementos constituintes do novo cristianismo proposto, a
saber, a supremacia da interpretação pessoal das Escrituras – a leitura da Bíblia traduzida
numa língua vulgar – e o “relacionamento com Deus”, derivado dessa interpretação pessoal,
começaram a ser reconhecidos como autoridades no que tange à fundamentação das doutrinas
cristãs. Assim, a submissão à interpretação oficial do texto bíblico provinda de uma fonte
única – a igreja Católica Romana – foi radicalmente questionada. Tanto as denominações
1 Conceito por nós cunhado para fazer referência à comunidade pentecostal brasileira do século XX em função
dos elementos identitários que todas as denominações trazem em comum, apesar da defasagem temporal.
Como não é possível no escopo de um trabalho dissertativo abarcar tal riqueza de detalhes, visto o número
elevado de denominações, vamos focar nossa atenção e análise somente às denominações que contam com os
maiores renome e membresia do país: a Assembléia de Deus e a Igreja Universal do Reino de Deus. Se as
conclusões que alcançamos nessa dissertação em termos de aplicabilidade do conceito de “evangélico-
pentecostais” se encaixam na análise de outras denominações pentecostais, esse é um trabalho que ainda
deverá ser realizado.
11
derivadas da Reforma Protestante, chamadas igrejas históricas (presbiterianos,
congregacionais, batistas, etc.), quanto as denominações surgidas em fins do século XX
(Igreja Internacional da Graça de Deus, Igreja Universal do Reino de Deus, etc.) poderiam ser
consideradas “evangélicas” na medida em que são movimentos religiosos fundados em
interpretações específicas (e particularizadas) dos textos bíblicos com respaldo à figura de
esus Cristo e que levam em consideração a “vida em Jesus” derivada destas mesmas
interpretações.
Tais interpretações, provenientes do meio evangélico, sustentam teologicamente os
desdobramentos doutrinários que regem os rituais públicos e as concepções de conduta e
santidade que marcam a vida privada de cada fiel. Com o fito de facilitar nossa análise, num
trabalho de recorte, manteremos sob a denominação de “protestantes” os fiéis ligados às
igrejas históricas. O faremos mediante as especificidades desse grupo: a manutenção de uma
postura mais “comedida”, menos aguerrida, por parte de seus integrantes no que tange a
Batalha Espiritual. Os protestantes problematizam de outra forma a relação com sua
alteridade, tornando a Batalha Espiritual, nosso objeto de estudo, menos evidente do que é
para os segmentos pentecostais (ALVES, 1982). Desse modo, este estudo não terá como foco
os chamados protestantes.
Pelo fato de ser utilizado para designar ora protestantes históricos ora pentecostais, ou
até mesmo englobando ambos os grupos, evitaremos utilizar somente o termo “evangélico”
para indicar o grupo ao qual analisaremos. Em acordo com as considerações de Prócoro
Velasques Filho e Antônio Gouvêa Mendonça (1990), consideraremos que o termo
evangélico faz referência a todas as igrejas ou denominações que descendem, direta ou
indiretamente, da Reforma Protestante do Século XVIII. Essas igrejas ou denominações,
ainda na esteira de Velasques e Mendonça (1990), têm em comum uma visão teológica que
prega a “volta”, ou seja, um retorno à Bíblia como única regra de fé e de conduta. Com o fito
de objetivar com mais clareza o grupo que analisaremos nesse trabalho, iremos acrescer ao
termo “evangélico” o conceito de “pentecostais”. Assim, recortamos com maior precisão o
grupo que nos interessa analisar: os “evangélico-pentecostais”.
Em linhas gerais, podemos observar dois processos de formação do segmento
pentecostal2 ao longo do século XX aos quais cremos ser coerente a aplicação do termo
“evangélico”. Um primeiro processo seria o de formação das denominações pentecostais de
fato, aquelas que realizam toda a identidade pentecostal em suas práticas (Assembléia de
2 Processo que será analisado em pormenores no primeiro capítulo.
12
Deus, Deus é Amor, IURD, etc.). Um segundo processo seria o de pentecostalização de
algumas igrejas históricas (Igreja Batista Renovada, Igreja Presbiteriana Renovada, etc.).
Estas últimas são as igrejas dissidentes de denominações protestantes que adotam aspectos da
teologia pentecostal, incluindo, conforme as idiossincrasias do pastor local, várias das
inovações teológicas identificadas com o neopentecostalismo (MARIANO, 1999). Não são,
todavia, extremamente diferentes, em questões teológicas, rituais ou de composição de sua
membresia, das igrejas pentecostais e encaram a Batalha Espiritual de forma análoga aos
pentecostais. Se operacionalizássemos “evangélico” como conceito de análise, estariam
subsumidas tanto igrejas de origem protestante renovada quanto igrejas nascidas sob a égide
do pentecostalismo. Tal indiferenciação não seria produtiva em nosso entender. Mesmo
porque a riqueza de detalhes que marcam as diferentes denominações não poderia ser
abarcada neste trabalho dissertativo. Precisamente por isso, restringimos ainda mais nosso
recorte. Dentre os evangélicos estudaremos as ramificações pentecostais. Segundo Roberto
Mariano,
Grosso modo, o pentecostalismo distingue-se do protestantismo histórico, do
qual é herdeiro, por pregar a crença na contemporaneidade dos dons do
Espírito Santo, entre os quais se destacam os dons de línguas (glossolalia),
cura e discernimento de espíritos, e por defender a retomada de crenças e
práticas do cristianismo primitivo, como a cura de enfermos, a expulsão de
demônios, a concessão divina de bênçãos e a realização de milagres
(MARIANO, 2004: 134).
Nosso esforço, ao propormos o termo evangélico-pentecostal, se dá em função de um
recorte metodológico que respeita e busca não ferir a complexidade do campo religioso ao
qual recorremos. Tentamos evitar incorrer no simplismo de crer que poderíamos abarcar todas
as distintas denominações por intermédio do rápido e uniformizador uso do termo
“evangélicos”. Tomado em sua acepção mínima, tal termo ainda é passível de fazer menção
às denominações sociologicamente nomeadas pentecostais e neopentecostais nos estudos
clássicos – frutos das três ondas século XX3 – como também às igrejas históricas
pentecostalizadas ou renovadas. Teologias, doutrinas e práticas muito diversas escondidas sob
um único conceito. Assim, objetivando um conceito que nos desse aceitável segurança teórica
e metodológica na feitura do trabalho, cunhamos o conceito “evangélico-pentecostais”. O uso
do termo “evangélico” acrescido da designação “pentecostal” serve ao propósito de enfatizar
o grupo religioso que será analisado, na medida em que “pentecostal” é um indicativo do que
3 As três ondas de avivamentos que marcam a formação das distintas denominações pentecostais serão discutidas
no primeiro capítulo.
13
muitas vezes é considerado, entre os próprios adeptos, o caráter “barulhento”, “carismático”,
“aguerrido” do “povo de Deus”.
Nosso objetivo primário com a proposta do termo evangélico-pentecostal – abarcando
uma igreja pentecostal (Assembléia de Deus, fundada em 1911) e uma neopentecostal (Igreja
Universal do Reino de Deus, fundada em 1977) – provém do esforço de apreender as
continuidades históricas nas práticas referentes à Batalha Espiritual entre estas distintas
denominações, que podem ser traduzidas em termos de representações coletivas comungadas
tanto por assembleianos quanto por iurdianos. Tais continuidades, cremos ter demonstrado
nos capítulos que se seguem, podem ser rastreadas em função da demonização de sua
alteridade e das decorrentes experiências de combate inerentes à sua constituição identitária.
O estudo que empreendemos nesta dissertação decorreu de uma problemática de
ordem prática: a aplicação da lei 10.639/2003 – modificada pela lei 11.645/2008 – que tornou
obrigatório o estudo de temas e histórias africanas e indígenas nas instituições de ensino
público no Brasil. Nossos esforços, dentro do contexto dos estudos empreendidos pelo
CieAA4, iniciados no ano de 2006, vão ao encontro do conhecimento dos processos históricos
de demonização (negação/subalternização) das práticas de outros segmentos religiosos, não
necessariamente cristãos, pela visão cristocêntrica dos evangélico-pentecostais. Chamou
nosso interesse as reações de repúdio por parte dos evangélico-pentecostais contra o estudo
das religiões de matriz africana e afro-brasileiras como suporte para a discussão da história da
África no Brasil5.
Duas razões embasam nossa escolha para nos aprofundarmos no tema. Primeiramente,
possuímos uma experiência como fiel dentro da visão de mundo evangélico-pentecostal6. Esta
identificação com as representações coletivas evangélico-pentecostais, inerentes ao
imaginário social e às representações coletivas que o povoam, fez-nos atentar para a
gravidade da questão que se colocava com o repúdio à lei 10.639/2003. O número de
4 O CieAA (Centro Interdisciplinar de Estudos África/Américas) visa congregar núcleos e grupos de pesquisa/
ensino/extensão cuja temática seja o conhecimento das humanidades sobre os continentes africano e
americano. Dessa forma, a diretriz central do CieAA é a de colaborar e incentivar estudos e pesquisas que
visam conhecer as diversas vivências humanas presentes em ambos continentes, reunindo para isso difusores,
pesquisadores e professores em um esforço interdisciplinar.[…] Linhas de Pesquisa: Educação para a
cidadania: as Áfricas entre a História, a Geografia e as artes; Espaços africanos e americanos: saberes locais,
religiosidades e dinâmicas sociais. (Profa. Dra. Eliesse Scaramal Coordenadora CieAA/UEG – 2006) 5 Acerca das experiências e dificuldades ligadas ao ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Africana, foi
possível constatar […] resistência percebida entre os alunos quanto aos aspectos relacionados às religiões de
matriz africana e afro-brasileira. […] visto que muitos deles são adeptos de igrejas ou denominações
evangélicas (LOUZADA; ULHOA, 2008). 6 O autor, durante todo o período da juventude (segunda metade da década de 1990 até o ano de 2003),
congregou em igrejas evangélico-pentecostais: Assembléias de Deus, Igreja Quadrangular e, por um curto
período, Internacional da Graça de Deus.
14
evangélico-pentecostais no país cresce a cada ano7 e o esforço de impedir a implementação da
10.639/2003 não era apenas, como poderia parecer para olhos alheios à identidade, um
capricho supersticioso. São atitudes e posturas provenientes do mal estar nascido da
necessidade de aceitar uma lei que assalta o âmago do imaginário evangélico-pentecostal. A
aceitação passiva da lei, pretendemos ter demonstrado ao analisar a Batalha Espiritual,
configura-se como um desafio ao fundamento simbólico e representacional que sustenta a
produção de sentido para vida do evangélico-pentecostal. Ou seja, o fiel vivencia a
implementação da lei, ou qualquer outra apropriação do espaço público por parte de
integrantes de outras religiões8, como um avanço do Reino das Trevas em sua cotidianidade,
uma derrota na Batalha Espiritual contra Satanás e seus asseclas.
Os estudos aos quais tomamos parte dentro do Centro Interdisciplinar de Estudos
África-América (CieAA), sediado na Universidade Estadual de Goiás, configuram-se como a
segunda razão para a escolha do tema tratado aqui. Perscrutávamos as mediações do sagrado
na apropriação de espaços públicos por distintas religiões urbanas, em especial o Candomblé
e a Umbanda. Estas pesquisas desdobraram-se como um encontro com a alteridade do
evangélico-pentecostal que jamais conhecêramos antes de nossa filiação às igrejas
evangélico-pentecostais, mas odiávamos por ditame identitário.
Experiências de campo, etnografias e a leitura de algumas obras consideradas clássicas
na área dos estudos das religiões de matriz africana e afro-brasileiras9 nos fizeram
compreender que a figura do “macumbeiro” estava mais para uma intrincada representação
coletiva que habita o imaginário social evangélico-pentecostal do que para realmente um
adepto de qualquer religião dita “demoníaca”. Começamos a ponderar o quanto a Batalha
Espiritual seria determinante nos processos de construção identitária do fiel evangélico-
pentecostal. Acompanhando as abordagens e recortes nas pesquisas de outros pesquisadores
do CieAA, que tomavam o Candomblé ou a Umbanda como objetos de estudo em sua
7 Conforme os Censos Demográficos do IBGE, os evangélicos perfaziam penas 2,6% da população brasileira na
década de 1940. Avançaram para 3,4% em 1950, 4% em 1960, 5,2% em 1970, 6,6% em 1980, 9% em 1991 e
15,4% em 2000, ano em que somava 26.184.941 de pessoas. O aumento de 6,4 pontos percentuais e a taxa de
crescimento médio anual de 7,9% do conjunto dos evangélicos entre 1991 e 2000 (taxa superior às obtidas nas
décadas anteriores) indicam que a expansão evangélica acelerou-se ainda mais no último decênio do século
XX. (MARIANO, 2004). 8 Analisaremos no capítulo quarto dessa dissertação um evento de enfrentamento ocorrido em Goiânia no ano de
2003 a propósito da exposição de estátuas de Orixás no parque lacustre Vaca Brava. 9 Durante os anos de 2007 e 2008 tomamos parte no mapeamento dos Ilê-axês sediados em Goiânia e em Águas
Lindas de Goiás, trabalho organizado e levado a cabo pela equipe de pesquisadores do CieAA. Alguns livros
considerados clássicos nos estudos sobre religiões de matriz africana e afro-brasileiras são “O Animismo
Fetichista dos Negros Bahianos”, Nina Rodrigues (1935); “O Negro Brasileiro”, Arthur Ramos (1940);
“Candomblés da Bahia”, Edson Carneiro (1ª ed. 1948); “Os Candomblés de São Paulo”, Reginaldo Prandi
(1991); “Orixás da Metrópole”, Vagner Gonçalves (1995).
15
invisibilidade social, em suas historicidades, em suas especificidades e riquezas simbólicas,
percebemos que se quiséssemos compreender melhor as relações conflituosas entre
evangélico-pentecostais e adeptos das religiões de matriz africana e afro-brasileiras
deveríamos fazer um caminho distinto: estudar os evangélico-pentecostais em função da
demonização quanto às religiões de matriz africana e afro-brasileiras10
. Nesse contexto surgiu
um novo problema que resolvemos encarar na feitura desta dissertação.
O trabalho de pesquisa à época nos deu a conhecer as tipologias desenvolvidas pelos
autores mais debatidos11
na área dos estudos tipológicos sobre o pentecostalismo brasileiro.
Estes autores dividiram, em função de suas variações teológicas e doutrinárias, os evangélico-
pentecostais em “ondas” nomeadas diferentemente por cada pesquisador: “pentecostalismo
clássico”, “deuteropentecostalismo”, “pequenas seitas”, “neopentecostalismo”, “igrejas de
cura divina”, “pós-pentecostalismo”. As tipologias, que serão apresentadas e discutidas no
primeiro capítulo deste trabalho, apesar de diversas, se mostraram histórica e
sociologicamente válidas. Contudo, um ponto assente entre os estudiosos que propuseram as
tipologias pentecostais nos pareceu extremamente problemático: a Batalha Espiritual teria
sofrido uma gradativa exacerbação doutrinária e teológica durante o século XX.
A partir de nossa experiência como fiel, participante da identidade assembleiana
tradicional arredia às “novidades” neopentecostais – é importante frisar aqui que congregamos
em uma igreja do interior, afastada dos grandes centros de difusão das práticas
neopentecostais –, pudemos perceber que a Batalha Espiritual já seria de essencial
importância na constituição da identidade do crente. A ideia de um processo de exacerbação
da importância em termos de práticas e representações da Batalha Espiritual entre as
denominações evangélico-pentecostais surgidas em fins do século XX nos pareceu uma
afirmativa no mínimo polêmica. A partir do conhecimento não sistemático que detínhamos de
material textual de cunho doutrinário proveniente dos primeiros anos do pentecostalismo no
Brasil, percebíamos que a Batalha Espiritual não era tratada como um tema secundário para a
constituição identitária dos fieis.
Assim, não são as distinções entre os segmentos pentecostais surgidos durante o correr
do século XX que de fato nos interessam quando o assunto é a perseguição empreendida pelos
evangélico-pentecostais às demais religiões cristãs e não cristãs. De fato, nos interessa é o
10
Estudo que resultou no trabalho monográfico de final de curso. RAMOS, Marcos Paulo de Melo. A negativação
semântica das religiões de matriz africana a partir do discurso evangélico. Trabalho de conclusão de curso
apresentado à Coordenação do Curso de História da Universidade Estadual de Goiás – UnUCSEH – para
obtenção do grau de Licenciado em História. Anápolis, 2007. Orientadora: Profª. Drª. Eliesse dos S. Teixeira
Scaramal. 11
Carlos R. Brandão (1980), Paul Freston (1992), Ricardo Mariano (1999) e Paulo Siepierski (2008).
16
que, a nosso entender, os diferentes segmentos pentecostais detêm em comum: a manutenção
de variadas experiências de conflito contra sua alteridade que, apesar de encontrar sua
justificação num postulado mundo espiritual, são efetivamente realizadas no mundo físico das
relações interpessoais.
Na contramão dos estudos que propuseram tipologias que dividem os pentecostais
perscrutando as distinções em termos de práticas e representações desenvolvidas entre as
gerações de crentes no século XX, nos colocamos a questão sobre quais seriam os elementos
identitários historicamente compartilhados entre pentecostais. Enfim, se haveria algo que
ligasse e possibilitasse o diálogo entre assembleianos e iurdianos apesar do hiato temporal.
Acreditamos que a manutenção da experiência da Batalha Espiritual é o que possibilita tal
comunicação. E, a partir da análise do complexo de representações coletivas que suprem a
vivência da Batalha Espiritual de sentido, teríamos a chave para justificarmos o fato de não
podermos postular tipologias pentecostais pautadas em variações de exacerbação desta mesma
Batalha Espiritual. As tipologias desenvolvidas pelos vários autores que logo passaremos a
discutir ainda se mantêm úteis e viáveis, porém, embasadas em outros parâmetros que não a
exacerbação da combatividade evangélico-pentecostal através do tempo.
Assim, voltamos nossa atenção para a análise das continuidades históricas. Ainda na
época da feitura de nosso trabalho monográfico, percebemos que seria numa estrutura sutil –
que passamos a denominar de “arcabouço identitário” – o local no qual haveríamos de
encontrar respostas para o entendimento da demonização, e da decorrente Batalha Espiritual,
como partes integrantes da visão de mundo evangélico-pentecostal. A ideia de arcabouço nos
veio no bojo da percepção de que todas as tipologias desenvolvidas para o estudo dos
pentecostais apresentavam, mesmo que com pequenas variações interpretativas, a reincidência
de determinadas representações coletivas. Desse modo, surgiam, pouco a pouco, os
rudimentos daquilo que chamamos, nesse trabalho dissertativo, de arcabouço identitário. Daí
o fato do conceito de evangélico-pentecostais servir ao propósito de ressaltar as continuidades
históricas em termos de representações coletivas entre assembleianos e iurdianos. O trabalho
que desenvolvemos analisa a Batalha Espiritual empreendida pelos evangélico-pentecostais –
compartilhada tanto por assembleianos do início do século XX quanto por iurdianos dos anos
1990 – trazendo a lume a existência de um substrato representacional que se manteve durante
o século XX.
Apesar da inquietação que nos moveu no aprofundamento da questão sobre a não
validade da postulada exacerbação da Batalha Espiritual ter nascido de sutilezas perceptíveis
apenas no convívio social entre os próprios evangélico-pentecostais, precisávamos corroborar
17
nossa intuição a partir de material documental controlável no marco de uma rigorosa
metodologia. A intuição não é argumento suficiente no debate científico. Desse modo,
encontramos referências que corroboram nossa hipótese tanto em hinos e textos
assembleianos datados da primeira década do século passado quanto em canções de louvor e
livros doutrinários iurdianos provenientes de fins do século XX e início do século XXI.
Como veremos nos capítulos que se seguem, ocorreram certas variações no que tange
a interpretação dos complexos de representações coletivas que formam o arcabouço
identitário evangélico-pentecostal. Essas variações, porém, não foram suficientes para abalar a
continuidade temática e o potencial de produção de sentido à Batalha Espiritual engendrado
pelas mesmas representações coletivas compartilhadas entre assembleianos e iurdianos.
Propomos, desse modo, uma crítica aos autores que veem na exacerbação da Batalha
Espiritual um dos elementos basilares na divisão dos pentecostalismos em diferentes
tipologias no correr do século XX. A Batalha Espiritual enquanto demonização e perseguição
da alteridade, diferentemente do que propuseram tais pesquisadores, mostra-se como uma
experiência tão básica, necessária e inescapável – na efetivação das identificações com o
imaginário social evangélico-pentecostal – tanto aos pais fundadores das Assembléias (1911),
os suecos Daniel Berg e Gunnar Vingren, quanto ao fundador e líder da IURD (1977), Edir
Macedo.
Exorcismos no meio pentecostal já fazem parte do próprio movimento. Nas
grandes concentrações, nas igrejas, nos lares, essa prática está ligada ao
pentecostalismo. Porém, com a terceira onda, ela é supervalorizada.
“Evangelho é poder, e poder tem de ser exercido, para a derrota de satanás e
a glória de Deus” (MACEDO, 1988, p. 138). O neopentecostalismo levanta
a bandeira da batalha espiritual como tema principal, indo ao encontro de
tudo aquilo que poderia assemelhar-se à “guerra santa”. Umbandistas são
atacados como aliados do inimigo. Algumas igrejas neopentecostais com o
apoio da mídia televisiva se levantam como brava guerreira, dando sinais de
que a luta apenas começa. Em uma entrevista ao Jornal do Brasil (5 de
fevereiro de 1988), um dos pastores dessas igrejas, ao ser questionado sobre
essa batalha, responde: “É verdade que os orixás são o Diabo e que as
pessoas que estão na macumba não prestam, mas nós não brigamos com
eles. Só queremos levar a palavra de Cristo até eles” (BITUN, 2008: 220).
Poucos autores, como Cecília Loreto Mariz (1997), viram na identificação automática
da Batalha Espiritual com os pentecostais da terceira onda (ou neopentecostais) um problema.
A teologia da guerra espiritual não é [...] específica do neopentecostalismo
nem do pentecostalismo apenas. Mas quase nenhum trabalho tematiza a
questão do demônio e da teologia da guerra espiritual em igrejas históricas e
no movimento carismático (MARIZ, 1997).
18
Para suprir esta falta de trabalhos sobre a continuidade histórica da Batalha Espiritual
– talvez a mais imperiosa continuidade no pentecostalismo – foi que propusemos nossa
análise.
O substrato representacional, ou arcabouço identitário, emergiu e foi corroborado a
partir do estudo de documentos teológicos e doutrinais provenientes de, como citado acima,
duas igrejas evangélico-pentecostais representativas no meio: Assembléia de Deus (AD) e
Igreja Universal do Reino de Deus (IURD). A eleição destas duas denominações se deu
basicamente pela complexidade decorrente de abarcar um número maior de igrejas. Ademais,
as duas igrejas escolhidas para instanciar a pesquisa são as que mais possuem membros dentre
os pentecostais clássicos (AD) e os neopentecostais (IURD)12
. Nosso esforço para
desenvolver o argumento e comprovar a importância da Batalha Espiritual como ponto em
comum entre as duas denominações nos levou a transitar pelo século XX, desde a fundação
das Assembléias de Deus, em 1911, até a ascensão da IURD na década de 1990.
Este estudo propõe uma nova interpretação das tipologias pentecostais se inserindo
nos esforços empreendidos por sociólogos e historiadores. O estudo acerca dos pentecostais é
relativamente recente, especialmente entre os historiadores. Prócoro Velasques Filho e
Antônio Gouvêa Mendonça (1990) explicitam-nos as origens do movimento pentecostal.
Segundo os autores as bases teológicas do pentecostalismo do século XX podem ser
rastreadas nos avivamentos dos séculos XVIII e XIX. Utilizamos seus escritos para
fundamentar nossa sumária genealogia do pentecostalismo. Os autores que trabalharam a
questão das tipologias e nos serviram como base para pensar as continuidades históricas no
pentecostalismo durante o século XX foram Carlos R. Brandão (1980), Paul Freston (1992),
Ricardo Mariano (1999) e Paulo Siepierski (2008). Como as análises de Brandão efetivamente
não centralizam a questão das tipologias, sendo um tema secundário em sua obra, valorizamos
a discussão com Freston, Mariano e Siepierski. Estes autores priorizaram análises que
visavam distinguir sócio-historicamente as denominações pentecostais.
A caracterização detalhada das práticas neopentecostais desenvolvida por Mariano
incidiu diretamente na problematização por nós proposta. Para Mariano, um dos autores mais
respeitados entre seus pares, a Batalha Espiritual é um elemento eminentemente pertencente
12
Outro aspecto a se ressaltar é que, apesar do elevado número de denominações pentecostais no país,
Assembléia de Deus, Congregação Cristã no Brasil e Universal do Reino de Deus, juntas, concentram 74%
dos pentecostais, ou treze milhões. Tamanha concentração institucional do pentecostalismo brasileiro, além
de minimizar até certo ponto a importância da fragmentação denominacional ou do divisionismo
organizacional desse movimento religioso, permite compreender porque a Assembléia de Deus e a Universal
são as igrejas que logram, por exemplo, maior visibilidade pública e sucesso na política partidária
(MARIANO, 2004).
19
aos neopentecostais (IURD). Já os pentecostais clássicos (AD), segundo a tipologia do autor,
sustentariam uma postura polêmica, mas pacífica, pouco visível no que tange a Batalha
Espiritual e circunscrita ao campo do discurso. Além disso, para Mariano, os pentecostais
anteriores ao neopentecostalismo não disporiam do acervo teológico da guerra espiritual para
fundamentarem seus processos de identificação na Batalha Espiritual (MARIANO, 2004).
Demonstramos, pela análise documental, que as suposições de Ricardo Mariano estão
equivocadas. Também foi importante para o desenvolvimento de nosso argumento a temática
apresentada por Siepierski acerca da transformação sofrida no âmbito das crenças
escatológicas no seio das igrejas surgidas nas últimas décadas do século XX. A guinada do
pré-milenarismo (AD) para o pós-milenarismo (IURD)13
.
Acreditamos que conhecer os fundamentos imaginários da Batalha Espiritual,
considerada como o elemento fundante do pentecostalismo, será uma contribuição no sentido
de entender a existência, e mais, a necessidade da vivência do conflito – da guerra, da
demonização, e da desumanização do outro – como um dos ditames inescapáveis do processo
de identificação com a proposta evangélico-pentecostal de fé.
Podemos, assim, desdobrar os objetivos dessa pesquisa nas seguintes etapas:
corroborar a existência de continuidades históricas no que tange à Batalha Espiritual entre
pentecostalismo clássico (Assembléia de Deus) e neopentecostalismo (Universal do Reino de
Deus); sugerir uma explicação das razões históricas da tomada da Batalha Espiritual por parte
dos estudiosos no assunto (FRESTON, 1992; MARIANO, 1999; BITUN, 2008) como
elemento constituinte apenas – ou especialmente – das igrejas alinhadas com o
neopentecostalismo; propor um modelo representacional mínimo – arcabouço identitário –
que reúna pentecostais e neopentecostais em função da Batalha Espiritual empreendida contra
outros grupos religiosos. Por fim, verificarmos a existência de representações coletivas
comuns entre letras de hinos provenientes da Harpa Cristã (cancioneiro oficial da AD) e
canções de louvor datadas das duas últimas décadas do século XX (amplamente difundidas
13
Outros trabalhos que foram consultados (Biblioteca Central da UFG e da PUC-Goiás) e auxiliaram no
desenvolvimento da discussão acerca das continuidades e descontinuidades entre pentecostalismo e
neopentecostalismo, são: O Protestantismo em Goiânia, Itelvides José de Morais (2003); O mover do Espírito
Santo na virada do milênio – pentecostais e carismáticos em Goiânia, Neusa Tolentino Santana (2001); A
doutrina dos usos e costumes na Assembléia de Deus, Cláudio José da Silva (2003); As representações do
Diabo no imaginário dos fiéis da Igreja Universal do Reino de Deus, Pedro Antonio Chagas Cáceres (2006);
Tecendo os fios da trama coletiva: possessão e exorcismo rituais na Igreja Universal, Maria Emília Carvalho
de Araújo (2001); Nem culpa, nem condenação; a saída pode ser Jesus – a atuação das igrejas pentecostais
na agência prisional de Goiânia, Flávia Valéria C. B. Melo (2005); O Espírito soprou entre os jovens...
estudo sobre a adesão de jovens ao neopentecostalismo, Ana Rita Marcelo de Castro (2002); A racionalidade
nas igrejas neopentecostais nascidas em Goiânia, Silas Rebouças Nobre (2003); Intenção do texto – o Diabo
e a Guerra Santa no imaginário dos Pentecostais: espiritismo em confronto, Jean Fabrício Dias Veríssimo
(2005).
20
entre a membresia iurdiana) e analisarmos um episódio de enfrentamento no qual a Batalha
Espiritual materializou-se no campo das práticas sociais: o Episódio Vaca Brava.
Como nos aproximar deste combate entre evangélico-pentecostais versus suas próprias
projeções sombrias de alteridade?
Para se compreender uma construção identitária, por mais fluída que esta seja, se faz
necessária a pergunta pelo(s) outro(s) da identidade em questão. Se concordarmos que o
espaço relacional no qual o sujeito processa suas identificações com dado grupo é palco de
embates e concordatas – negociações, enfim –, aceitaremos, também, que a pergunta pela
alteridade é crucial para conhecermos a identidade. Isto se dá tanto pelo desdobramento das
assimilações de práticas que testemunharão as fidelidades e lealdades perante o grupo ao qual
o sujeito se pretende identificar quanto pelo afastamento dos grupos que são anatemizados,
estigmatizados, e que fazem parte da alteridade deste mesmo grupo.
O conceito de identidade será trabalhado como “gerenciamento das situações
conflitivas (...), ou seja, como as pessoas se representam para si mesmas e como se
apresentam umas para as outras, criando redes de solidariedades e alteridades”
(GONÇALVES & ROCHA, 2006: 11). Em concordância com os mesmos autores,
entendemos que este “se representar” e “dar-se a conhecer” são construtos baseados nas
necessidades e interesses dos sujeitos e estão fundadas na fantasia, na projeção e na
idealização.
As identidades são antes de tudo relacionais. Parte-se da alteridade, do que
não se é, para se definir aquilo que se gostaria de ser. Traz tranqüilidade ao
ser humano acreditar que se é o que se pensa que é. […] Uma forma de se
vestir, de se comportar, uma linguagem específica, pode simbolizar a adesão
a um determinado processo de identificação, gerando fidelidades e lealdades
a um determinado grupo, mas também o afastamento de outros setores
sociais, com os quais o processo de identificação não se define
(GONÇAVELS & ROCHA, 2006: 12-13).
Identificação como a entendemos aqui é, assim, um caminho de adesão a determinado
grupo imaginário por parte dos sujeitos sociais que predica dois movimentos: 1) introjeção da
visão de mundo específica que redundará na 2) participação nos modelos de negação –
demonização – quanto ao(s) outro(s) deste mesmo grupo. Um movimento de positividade,
desdobrado na afirmação dos valores coletivos do grupo ao qual se pretende identificar, e um
movimento de negatividade, observado na negação dos vícios ou faltas reconhecidas como
detestáveis pelo mesmo grupo e remetidas ao proceder, às crenças, às expectativas e às
percepções de outros.
21
A identidade, então, seria tributária deste processo de identificação. De fato, o que é
atualizado pelo sujeito em sua prática cotidiana é o processo de identificação que dá coesão a
seu imaginário socialmente constituído, servindo-lhe como cadinho na produção de sentido. A
identidade está mais para aquilo que se gostaria de ser, como um modelo a ser efetivado, do
que aquilo que se é de fato. As representações coletivas, inerentes ao processo de
identificação, estão vinculadas às apreciações dicotômicas do “bom/mal”, “belo/feio”,
“correto/errado”. Estes binarismos, por sua vez, só se sustentam contextualizados se
significados no interior de um mesmo imaginário social. Assim, ao realizar um mapeamento
do imaginário social evangélico-pentecostal encontramos as chaves para entendermos a
Batalha Espiritual.
Um dos instrumentos mais efetivos para tornar inteligível a complexidade social é o
conceito de imaginário social. O imaginário social pode ser entendido como o organizador e
regulador de nossa vida cotidiana (PINTOS, 1995) tornando-se, também, o lugar e o objeto
por excelência dos conflitos sociais (BACZKO, 1985). Utilizaremos as conceituações feitas
por Bronislaw Baczko (1985) e Juan-Luis Pintos (1995) para pensar o imaginário social.
De acordo Bronislaw Baczko (1985), o termo “imaginação”, acompanhada pelos
adjetivos “social” ou “coletiva”, ganhou terreno em fins da década de 60 no bojo dos
movimentos de contestação cultural, tanto na memória dos que vivenciaram os
acontecimentos de então como para os acadêmicos das ciências humanas que procuraram
entender suas causas. O autor chama a atenção para o fato de o termo “imaginário” ter
sofrido, durante a segunda metade do século XX, uma dupla trajetória que o dissociou cada
vez mais dos significados de “ilusório” ou “quimérico”, ao mesmo tempo em que seu uso era
estendido a outras áreas que não apenas a das belas-artes.
A característica marcante, no entendimento de Baczko, acerca dos imaginários sociais
é sua fluidez no sentido de demarcação entre os domínios objetivos e subjetivos na prática dos
sujeitos.
Segundo o autor, tratar da experiência do cotidiano, naquilo que nela é tomado como
corriqueiro e usual, é vital no entendimento do imaginário social. Esta experiência é pensada
em termos das ações dos sujeitos – no nosso caso, os evangélico-pentecostais –, mediante
uma gnosiologia que abarca vivências outras que não apenas aquelas aquilatadas dentro dos
quadros explicativos de uma razão positiva. Entram aqui, como diz Baczko, os desejos, as
aspirações e as motivações que são, se não de todo inapreensíveis, ao menos extremamente
fugidias ao discurso do método nas ciências humanas (BACZKO, 1985). Tais constelações de
22
representações lastreiam e canalizam as manifestações emotivo-volitivas rumo à identificação
com determinado grupo social, como no caso dos evangélico-pentecostais.
A potencia unificadora dos imaginários sociais é assegurada pela fusão entre
verdade e normatividade, informações e valores, que se opera no e por meio
do simbolismo. Com efeito, o imaginário social informa acerca da realidade,
ao mesmo tempo que constitui um apelo a ação, um apelo a comportar-se de
determinada maneira. Esquema de interpretação, mas também de
valorização, o dispositivo imaginário suscita a adesão a um sistema de
valores e intervém eficazmente nos processos da sua interiorização pelos
indivíduos, modelando os comportamentos, capturando as energias e, em
caso de necessidade, arrastando os indivíduos para uma ação comum
(BACZKO, 1985: 311).
A experiência do que se acredita ser o real está inerentemente ligada ao filtro
interpretativo das vivências sociais. Os feixes de percepções que possibilitam ao sujeito “ir até
o real” e os conceitos com os quais tais percepções serão interpretadas encontram, segundo
Baczko, seu fundamento no imaginário social. Deste modo, um ato de “humanização” por
parte de algum sujeito alinhado com determinada identidade pode ser percebido como
verdadeira “desumanização” por parte de sujeitos sociais doutras identidades. O que o crente
entende ser uma atitude de sua parte que possibilita a “salvação” do umbandista, por exemplo,
pode ser lido, pelo próprio umbandista como uma total desumanização de suas crenças e
convicções.
Em qualquer caso os imaginários sociais têm uma função primária que se
poderia definir como a elaboração e distribuição generalizada de
instrumentos de percepção da realidade social construída como realmente
existente. […] Teríamos, portanto que a primeira função ou definição dos
imaginários sociais tem a ver com a instrumentação do acesso ao que se
considere realidade por meio de coordenadas espaços-temporais específicas.
[…] Assim [o imaginário social] não se constitui como campo específico de
conhecimento objetivo ou de projeções de desejos subjetivos, mas estabelece
uma matriz de conexões entre diferentes elementos da experiência dos
indivíduos e das redes de ideias, imagens, sentimentos, carências e projetos
que estão disponíveis em um âmbito cultural determinado (PINTOS, 1995:
s/p).
Desse modo, a tentativa de abordar o imaginário social pode ser comparada com o
enfrentamento entre Perseu e Medusa. Perseu seria transformado em pedra se olhasse nos
olhos de Medusa. Mas, Perseu precisava enfrentá-la. Como fazê-lo sem quedar transformado
em estátua sem vida? Como Perseu, precisamos buscar uma saída metodológica ao
abordarmos a desconcertante riqueza inerente ao imaginário social. Pois, se abordarmos
diretamente o imaginário social reificando-o, inescapavelmente receberemos os olhos opacos
da estátua que perdem toda complexidade e riqueza da vida. Corremos sério risco de ambos,
23
sujeito e objeto, produzirmos uma leitura empobrecida. Um método que pretendesse incidir
diretamente sobre o imaginário social poderia degringolar a pesquisa numa fixação estranha a
própria dinâmica e fluidez do real. O social desapareceria na objetivação de um quadro de
referências pretensamente inteligível.
Para evitar que isto aconteça colocaremos nossa atenção na análise de determinadas
representações coletivas e nas relações que são estabelecidas entre elas, mapeando
indiretamente o imaginário social evangélico-pentecostal em busca das continuidades
históricas no que tange à Batalha Espiritual. Utilizaremos as propostas de Roger Chartier
(2007) para trabalharmos com o conceito de representações coletivas.
En efecto, esa noción [representação] permite vincular estrechamente las
posiciones y las relaciones sociales con la manera en que los individuos y los
grupos se perciben y perciben a los demás. […] Las representaciones
colectivas […] incorporan en los individuos, bajo la forma de esquemas de
clasificación y juicio, las divisiones mismas del mundo social. Son ellas las
que transmiten las diferentes modalidades de exhibición de la identidad
social o de la potencia política tal como las hacen ver y creer los signos, las
conductas y los ritos (CHARTIER, 2007: 70).
Por intermédio das representações coletivas, podemos vincular posições e relações
sociais às percepções de juízo e de valor que os evangélico-pentecostais utilizam tanto para
demarcar seu espaço social quanto para inscrever o(s) outro(s) no espaço imaginário
designado para ele(s). Desse modo, podemos rastrear as representações coletivas não como
reflexos verdadeiros ou mentirosos da realidade, mas sim como entidades que vão construindo
as divisões mesmas do mundo social. Como escreve Chartier,
[…] esas representaciones colectivas y simbólicas hallan, en la existencia de
representantes, individuales o colectivos, concretos o abstractos, los garantes
de su estabilidad y su continuidad. […] Las representaciones no son simples
imágenes, verídicas o engañosas, de una realidad que les sería externa.
Poseen una energía propria que persuade de que el mundo o el pasado es, en
efecto, lo que dicen que es. En ese sentido, producen las brechas que
fracturan a las sociedades y las incorporan em los individuos (CHARTIER,
2007: 70-73).
Respondendo aos desafios epistêmicos colocados à história como disciplina nos anos
oitenta, Roger Chartier propôs uma saída conciliadora aos dois grandes paradigmas que
polarizaram as produções nas ciências humanas durante o século XX. Por um lado, uma
corrente em débito com a filosofia do sujeito que escamoteia os condicionamentos sociais
triunfalizando a ação individual; por outro lado, propostas eminentemente estruturalistas de
análise nas quais os sujeitos acabam aparecendo como meros “suportes” das estruturas sociais
(CARVALHO, 2005). A saída proposta por Chartier, que tomaremos de empréstimo para
24
realizar nossa análise, encontra sua possibilidade no tratamento que o autor faz das
representações coletivas.
Para fundamentar a pesquisa, em termos das fontes documentais, buscávamos acesso
aos escritos doutrinários da Assembléia de Deus que datassem das primeiras décadas do
século XX. Nos meses iniciais de trabalho acreditamos que só poderíamos realizar nossas
análises embasados nas letras das músicas do hinário “Harpa Cristã”, cancioneiro oficial das
Assembléias de Deus, haja vista não termos encontrado arquivos que mantivessem a
documentação necessária. Contudo, com o avanço das pesquisas, viemos a conhecer e
adquirir a coleção “Artigos Históricos - Mensageiro da Paz” (2004), publicada pela CPAD
(Casas Publicadoras das Assembléias de Deus). A coleção, composta por três volumes, traz
como subtítulo “Os artigos que marcaram a história e a teologia do Movimento Pentecostal no
Brasil”. Foi organizada por uma comissão editorial assembleiana que levou em consideração
as tradições e doutrinas ainda vigentes no seio das Assembléias de Deus.
O jornal “Mensageiro da Paz” foi fundado durante a Primeira Convenção Geral das
Assembléias de Deus em 1930 e ainda se encontra em circulação. A importância deste veículo
de comunicação pode ser reconhecida em sua função de propagador dos fundamentos
teológicos do pentecostalismo durante a primeira metade do século XX. Como ainda não
haviam escolas teológicas alinhadas ao pentecostalismo, o jornal assumia o papel de formação
inicial do corpo de membros e obreiros das Assembléias. O primeiro volume dos “Artigos
Históricos - Mensageiro da Paz” ainda reúne vinte artigos dos jornais percussores: “Boa
Semente” e “Som Alegre”. Estes dois periódicos assembleianos cobrem o período de 1911 a
1930. Ou seja, com a aquisição desta coleção, havia sido sanado o problema do acesso aos
documentos oficiais – no caso, os jornais – que nos dão acesso à suma teológica do
pentecostalismo clássico.
Para cumprir nossa proposta utilizamos documentação concernente, também, às ideias
neopentecostais de fé. O acesso aos conteúdos da teologia e dos dogmas referentes ao
neopentecostalismo, por sua relativa novidade, foi-nos menos problemática. Encontramos
nossa fonte na vasta produção literária do Bispo Edir Macedo, fundador da IURD. Realizamos
uma triagem do material, escolhendo para a análise os seguintes livros: “Nos Passos de Jesus”
(2001), “O Poder Sobrenatural da Fé” (2007) e “Orixás, Caboclos & Guias, deuses ou
demônios?” (2008). Os critérios para a escolha foram os seguintes: a natureza do tema
trabalhado – procuramos aquelas obras que explicitassem as características básicas das
crenças iurdianas – e o sucesso de vendagem (os três livros são considerados Best-sellers).
25
As letras das canções de louvor também se configuraram numa rica fonte documental
para o estudo das representações coletivas dos evangélico-pentecostais. Os cantos que foram
analisados nesta dissertação apresentam em seu conteúdo, em grande medida, metáforas de
combate e/ou reproduzem as representações coletivas que compõem o arcabouço identitário.
Nestes cantos, por nós denominados “cantos de batalha”, está presente um forte apelo à
vivência, à experiência da Batalha Espiritual, exatamente por serem explícitas as menções à
luta e ao enfrentamento com as forças espirituais malignas que, por sua vez, podem agir por
intermédio da vida, das escolhas, das aspirações e práticas dos que não são evangélico-
pentecostais (os “gentios”). Além disso, ao enfatizar o combate, tais construções discursivas
muitas vezes acabam por descrever também os métodos, campos de batalha e inimigos contra
os quais o crente precisa munir-se de “poder espiritual”.
Deste modo, a Harpa Cristã, citada a pouco, serviu-nos como fonte documental
primaz. A primeira edição da Harpa data de 1922 e foi desenvolvida para suprir as
necessidades da marcação de diferença entre os fiéis da primeira geração das Assembléias de
Deus e as igrejas protestantes históricas. Os “pais fundadores” das Assembléias sentiram que
a doutrina pentecostal não estava, de todo, sendo enfocada pela coleção de cânticos em uso.
Os fiéis de então utilizavam como hinário a coleção Salmos e Hinos. Esta coleção, por sua
vez, foi organizada (1861) por Dr. Robert Reid Kalley e Sarah Poulton Kalley e contava com,
aproximadamente, 50 cânticos. Os Salmos e Hinos não refletiam a nova realidade teológica,
doutrinária e de usos e costumes que surgiam com o movimento pentecostal nas primeiras
décadas do século XX. Escolhemos este cancioneiro como fonte para prospecção de material
documental de análise pelo fato de ainda serem muito utilizados seus hinos, não só nas
Assembléias de Deus como também noutras denominações evangélico-pentecostais. Outro
grupo de canções foi levantado mediante estudo do hinário oficial da IURD, “Louvores do
Reino”. Às canções provenientes deste hinário, acrescentamos as produções de três nomes
influentes em matéria de aceitação musical no meio evangélico-pentecostal (marcadamente
entre os iurdianos) nos últimos vinte anos: o grupo de louvor Diante do Trono, a pastora
cantora Ludimila Ferber e a cantora Cassiane.
Deste modo, a Batalha Espiritual se nos dará a partir do complexo de representações
coletivas que sustentam o binarismo primário “nós/outros” e que, em última instância,
concorre para a demonização do outro que os evangélico-pentecostais constroem para si. Essa
construção se dá mediante a atualização de seu imaginário social desdobrado nas
representações coletivas que sustentam sua identidade. Tais discursos cristalizam certas
26
posturas – “o guerreiro”, “o segador”, “o ungido de Deus”, “o vencedor” – que o crente
assume ao vivenciar a Batalha Espiritual como mais adiante veremos.
Esta dissertação foi organizada em quatro capítulos que, pretendemos, realizam os
objetivos propostos nesta introdução.
O primeiro capítulo apresenta um histórico das igrejas evangélico-pentecostais
escolhidas como representantes, respectivamente, do pentecostalismo e do
neopentecostalismo: a Assembléia de Deus e a Igreja Universal do Reino de Deus.
Discutiremos os antecedentes históricos do pentecostalismo para situarmos a origem e
formação das mencionadas denominações. Apresentaremos, também, uma discussão
bibliográfica sobre as tipologias do pentecostalismo brasileiro com a intenção de elucidar a
proposta e o uso que fazemos do conceito de “evangélico-pentecostais”.
O segundo capítulo trabalha a questão da constituição da identidade evangélico-
pentecostal. Buscamos apresentar e discutir como se organizam as representações coletivas
que imprimem sentido à Batalha Espiritual e a tornam parte constituinte do imaginário social
evangélico-pentecostal. Aprofundamos a discussão pontuando as representações coletivas
presentes nos documentos analisados para, desse modo, propor um arcabouço identitário –
composto por sete representações coletivas – comum aos fiéis pentecostais das Assembléias
de Deus e aos iurdianos.
No terceiro capítulo realizamos a análise dos “cantos de batalha”. Buscamos
corroborar a validade do arcabouço identitário evangélico-pentecostal ao expor a manutenção
das experiências de conflito por meio dos hinos de louvor e de adoração. E, por fim, no quarto
capítulo analisamos o Episódio Vaca Brava por intermédio das publicações do jornal
goianiense Diário da Manhã. Evento de embate que, apesar de não ter sido encabeçado por
assembleianos ou iurdianos, contou com sua aprovação e materializou todo o discurso de
demonização do outro característico da Batalha Espiritual.
27
1. Pentecostalismo e Neopentecostalismo: as igrejas Assembléia de Deus e
Universal do Reino de Deus
1.1. Antecedentes históricos do Pentecostalismo
Neste capítulo trataremos da história do pentecostalismo. Apresentaremos, também,
uma discussão acerca das tipologias mais utilizadas nos estudos sobre os pentecostais e
analisaremos, sucintamente, a trajetória em solo brasileiro de duas denominações
proeminentes no campo: a Assembléia de Deus (AD) e a Igreja Universal do Reino de Deus
(IURD). Antes de desenvolvermos a discussão sobre as tipologias que dividem os
pentecostais do século XX, cumpre, minimamente, conhecer a história do movimento
pentecostal.
O movimento pentecostal é historicamente tributário dos movimentos de
“avivamento” ou “reavivamento” ocorridos ainda no seio das igrejas protestantes históricas
inglesas e norte americanas nos séculos XVIII e XIX. Segundo E. Evans (s/d), um autor
evangélico escrevendo sobre o tema, podemos entender que a história dos avivamentos seria:
[…] a história dos tratamentos bondosos de Deus para com os homens. É
aquilo que Jonathan Edwards denominou de “a história da redenção,” e
como tal, é a única história verdadeira, isto é, é o único estudo do passado
que se acha adequadamente “em perspectiva,” pois alí (sic.) estão delineados
a revelação e o desenvolvimento do propósito soberano de Deus. Portanto,
encará-lo como mero exercício intelectual, manifesta uma baixa avaliação do
significado, implicações e consequências do reavivamento. O assunto está
cheio, não apenas de interesse, mas também de instrução; e aquele que leva a
sério o estudo dos reavivamentos, não irá muito longe sem envolver-se
intimamente e ocupar-se fervorosamente com as questões que surgem. Não
pode haver neutralidade ou passividade aqui, pois este estudo desafia a fé,
incentiva a oração e motiva o louvor (EVANS, s/d: 01).
O avivamento pode ser entendido como uma re-encenação do primeiro Pentecostes.
Segundo a Bíblia de Estudos Plenitude (2001), o Pentecostes era uma festividade judaica
ocorrida anualmente. Também chamada “Festa das Semanas” ou “Dia dos Primeiros Frutos”,
quando eram celebradas as primícias das colheitas israelitas. Em Deuteronômio 16:16 exige-
se, pela lei estabelecida conforme os mandamentos de Deus, que os judeus homens fossem à
Jerusalém três vezes ao ano para comemorar as principais festas: a Páscoa, na primavera;
Pentecostes (gr. Pentekostos, “cinqüenta”), sete semanas e um dia depois da Páscoa; e a Festa
dos Tabernáculos, ao final da colheita de outono.
28
Cumprindo-se o dia de Pentecostes, estavam todos reunidos no mesmo lugar;
e, de repente, veio do céu um som, como de um vento veemente e
impetuoso, e encheu toda casa em que estavam assentados. E foram vistas
por eles línguas repartidas, como que de fogo, as quais pousaram sobre cada
um deles. E todos foram cheios do Espírito Santo e começaram a falar em
outras línguas, conforme o Espírito Santo lhes concedia que falassem (Atos
2:1–4) (BÍBLIA de Estudos Plenitude, 2001: 1105-1106).
A tradição cristã acredita que foi na celebração de Pentecostes que, pouco depois da
crucificação de Jesus, ocorreu o que foi acima relatado. Pedro e os demais seguidores do
Cristo se reuniam em oração quando foram “batizados” pelo Espírito Santo e manifestaram
um dom espiritual, marca distintiva dos pentecostais, o qual seja: a capacidade de falar em
línguas estranhas (Glossolalia). Prosseguindo a leitura do texto vamos encontrar, a partir do
versículo 14 do mesmo capítulo, o discurso proferido por Pedro, o apóstolo que assumiu as
funções de líder da nova religião nascente. De acordo com sua interpretação do fenômeno, o
que se passava não era nada mais do que o cumprimento de uma profecia escrita no livro de
Joel, no Velho Testamento, a saber:
E há de ser que, depois, derramarei o meu Espírito sobre toda a carne, e
vossos filhos e vossas filhas profetizarão, os vossos velhos terão sonhos, os
vossos jovens terão visões. E também sobre os servos e sobre as servas,
naqueles dias, derramarei o meu Espírito. E mostrarei prodígios no céu e na
terra, sangue, fogo e colunas de fumaça. O sol se converterá em trevas, e a
lua, em sangue, antes que venha o grande e terrível dia do Senhor. E há de
ser que todo aquele que invocar o nome do Senhor será salvo; porque no
monte Sião e em Jerusalém haverá livramento, assim como o Senhor tem
dito, e nos restantes que o Senhor chamar (Joel 2:28–32) (BÍBLIA de
Estudos Plenitude, 2001: 867-868).
Os evangélico-pentecostais, enquanto herdeiros autonomeados do cristianismo
primitivo, acreditam que com a morte do Cristo realizou-se a promessa do envio do
Consolador, o Espírito Santo, que capacitaria os jovens cristãos a cumprir sua Grande
Comissão: a pregação da palavra de Deus e a conversão do maior número possível de pessoas
à fé no Cristo ressurreto. Deste modo, o Espírito Santo infundiria na comunidade dos irmãos
uma atmosfera de santidade permeada por muita oração acompanhada pela ocorrência de
eventos maravilhosos (EVANS, s/d). Este é o caso dos avivamentos. Nas conjunturas de
avivamento ocorre um recrudescimento das evangelizações missionárias nos bairros próximos
das igrejas avivadas. Logo a mensagem de visitação do Espírito se espalha por cidades
vizinhas podendo até mesmo ocorrer o envio de equipes missionárias a outros estados ou
países. Os avivamentos dos séculos XVIII e XIX seriam, segundo Mendonça e Velasques,
originariamente entendidos como instrumentos sociais e técnicas para levar pessoas a terem
um contato imediato com Deus (MENDONÇA & VELASQUES,1990).
29
Uma breve apresentação da história dos avivamentos nos séculos XVIII e XIX se faz
interessante na medida em que podemos reconhecer os rudimentos do entendimento e
vivências de fé pentecostais sendo gestados nalgumas práticas das igrejas protestantes
históricas inglesas e norte-americanas. Os avivamentos começaram nesses dois países quase
simultaneamente. Em 1734, na cidade de Northompton, nos Estados Unidos, começou o
primeiro avivamento de grandes proporções com as pregações sobre a justificação pela fé do
pastor congregacional Jonathan Edwards (1703-1758). Posteriormente, Edwards recebeu o
auxílio de George Whitefield (1714-1770), também pregador de multidões. Simultaneamente,
John Wesley (1703-1791), que conheceu Whitefield quando ambos estudavam em Oxford,
realizava inúmeras campanhas de pregações através da Inglaterra. Além disso, John Wesley
esteve em missão por dois anos, durante a juventude, na colônia norte-americana de Geórgia.
Foi John Wesley, influenciado pelo puritanismo e pelo pietismo, quem deu início à prática
metodista de fé, sendo assim chamada por aplicar métodos de controle de tempo às atividades
devocionais.
Enquanto estudava em Oxford, ajuntava-se ali um pequeno grupo dos
estudantes para orar, estudar as Escrituras juntos diariamente, jejuar as
quartas e sextas-feiras, visitar os doentes e encarcerados e confortar os
criminosos na hora da execução. Todas as manhãs e todas as noites cada um
passava uma hora orando sozinho em oculto. Nas orações paravam de vez
em quando para observarem se oravam com o devido fervor. Sempre oravam
ao entrar e ao sair dos cultos na igreja. Três dos membros desse grupo, mais
tarde tornaram-se famosos entre os crentes: 1) João Wesley, que talvez tenha
feito mais que qualquer outro para aprofundar a vida espiritual, não somente
de então, mas também de nosso tempo; 2) Carlos Wesley, que chegou a ser
um dos mais espirituais e famosos escritores de hinos evangélicos; e 3) Jorge
Whitefield, que se tornou o comovente pregador ao ar livre. (BOYER, 1985:
64).
As preleções e performances dos pastores dos avivamentos do século XVIII no púlpito
objetivavam evocar o máximo de emotividade de seus ouvintes. Colocar o foco das pregações
e das práticas de fé nos arroubos emocionais, fomentando-os nos fiéis, é, de fato, uma
característica marcante dos avivamentos. Conta-se que o famoso sermão de Jonathan
Edwards, Pecadores nas mãos de um Deus irado, fazia com que aqueles que estavam na
assistência se agarrassem aos bancos em desespero acreditando que estavam prestes a serem
tragados pelo inferno. Jonathan Edwards, a propósito, foi um dos primeiros a organizar o
30
pensamento teológico14
que sustentou os grandes avivamentos dos séculos XVIII e XIX.
Transcrevemos uma passagem da preleção de Edwards:
“Aí está o Inferno com a boca aberta. Não existe coisa alguma sobre a qual
vós vos possais firmar e segurar. Entre vós e o Inferno existe apenas a
atmosfera... Há, atualmente, nuvens negras da ira de Deus pairando sobre
vossas cabeças, predizendo tempestades espantosas, com grandes trovões. Se
não existisse a vontade soberana de Deus, que é a única coisa para evitar o
ímpeto do vento até agora, seríeis destruídos e vos tornaríeis como a palha
da eira... O Deus que vos segura na mão, sobre o abismo do Inferno, mais ou
menos como o homem segura uma aranha ou outro inseto nojento sobre o
fogo, durante um momento, para deixá-lo cair depois, está sendo provocado
ao extremo... Não há que admirar, se alguns de vós com saúde e calmamente
sentados aí nos bancos, passarem para lá antes de amanhã...” (BOYER,
1985: 56).
Até o final de 1734, o avivamento se espalharia por vários Estados da colônia norte-
americana. Os pregadores sempre centralizavam em suas mensagens a incapacidade do
homem de se autojustificar por meio de suas próprias obras. Os avivalistas organizavam
reuniões de oração e instavam na conversão de seus ouvintes. A conversão estava
visceralmente ligada à emoção e à percepção de si como totalmente à mercê de poderes
espirituais tremendamente assombrosos, tanto para o bem quanto para o mal. Tais poderes
espirituais estavam dissimulados nas rotinas pecaminosas da banalidade cotidiana e
moldavam a vida de perdição. Quem agia por meio do pecado estava a serviço da ação de
Satanás.
Quanto àqueles que buscavam a vida de santificação, por meio da cumplicidade na
morte de Cristo ao mortificarem-se no afastamento das práticas detestáveis deste mundo de
pecados, faziam-se agentes das forças espirituais celestiais. Assim, o ser humano era
maniqueisticamente entendido como um títere dos poderes espirituais. Dava-se enorme
importância ao destino último da alma humana: Céu ou Inferno.
O temor que tal temática impingia aos ouvintes aumentava exponencialmente as
inclinações à vivência da conversão. Orlando Boyer, em seu livro Heróis da fé (1985),
apresenta uma descrição feita por um contemporâneo dos cultos presididos pelo avivalista
Whitefield.
“Quase nunca pregava sem chorar e sei que as suas lágrimas eram sinceras.
Ouvi-o dizer: ‘Vós me censurais porque choro. Mas, como posso conter-me,
quando não chorais por vós mesmos, apesar das vossas almas mortais
14
A teologia por detrás dos avivamentos desse período ficou conhecida como teologia da Nova Inglaterra (New
England Theology). Foi uma escola teológica congregacional surgida na década de 1730 fundamentados nos
escritos de Edwards no Estado de Nova Inglaterra (EUA).
31
estarem à beira da destruição? Não sabeis se estais ouvindo o último sermão,
ou não, ou se jamais tereis outra oportunidade de chegar a Cristo!’. Chorava,
às vezes, até parecer que estava morto e custava a recuperar as forças”
(BOYER, 1985: 75-76).
Noutra passagem, Boyer apresenta trechos da autobiografia de Whitefield que servem
para entendermos melhor o andamento dos cultos de avivamento do século XVIII.
“Oh! Quantas lágrimas foram derramadas, com forte clamor, pelo amor do
querido Senhor Jesus! Alguns desmaiavam e quando recobravam as forças,
ouviam e desmaiavam de novo. Outros gritavam como quem sente a ânsia da
morte. E depois de eu findar o último discurso, eu mesmo senti-me tão
vencido pelo amor de Deus que quase fiquei sem vida. Contudo, por fim,
revivi e, depois de me alimentar um pouco, estava fortalecido bastante para
viajar cerca de trinta quilômetros, até Nottingham. No caminho, a alma
alegrou-se cantando hinos. Chegamos quase à meia-noite; depois de nos
entregarmos a Deus em oração, deitamo-nos e descansamos na proteção do
querido Senhor Jesus. Oh! Senhor, jamais existiu amor como o teu! (...) No
dia seguinte em Fog’s Manor, a concorrência aos cultos foi tão grande como
em Nottingham. O povo ficou tão quebrantado que, por todos os lados, vi
pessoas banhadas em lágrimas. A palavra era mais cortante que espada de
dois gumes e os gritos e gemidos alcançavam o coração mais endurecido.
Alguns tinham semblantes pálidos como a palidez de morte; outros torciam
as mãos, cheios de angústia; ainda outros foram prostrados ao chão, ao passo
que outros caíam e eram aparados nos braços de amigos. A maior parte do
povo levantava os olhos para os céus, clamando e pedindo misericórdia de
Deus. Eu, enquanto contemplava, só podia pensar em uma coisa: o grande
dia. Pareciam pessoas acordadas pela última trombeta, saindo dos seus
túmulos para o juízo” (BOYER, 1985: 79-80).
Nos anos que se seguiram de 1760 até 1800 os avivamentos sofreram certo declínio.
Segundo Mendonça & Velasques (1990), uma das principais razões para o declínio foram os
desentendimentos que acabavam ocorrendo entre os ministros avivados e os ministros
protestantes históricos que não aceitavam as manifestações de emoção extremada como
indícios da ação do Espírito Santo. Em alguns casos chegaram a ocorrer cismas dentro das
igrejas, o que redundava na formação de denominações isoladas. Entretanto, apesar de os
grandes ajuntamentos públicos para ouvir sobre o dia do juízo fossem menos constantes
durante a segunda metade do século XVIII, outras iniciativas estavam surgindo. Uma das
iniciativas que mais se difundiu foi a dos acampamentos realizados em áreas rurais.
Os acampamentos eram reuniões destinadas a pregações, cânticos e orações,
realizadas fora da cidade, e duravam diversos dias. Assemelhavam-se muito
aos atuais acampamentos ou retiros espirituais praticados pelas Igrejas e
movimentos paraeclesiásticos no Brasil. Inicialmente, os acampamentos
destinavam-se a reuniões de estudos bíblicos e participação nos sacramentos.
Com o passar do tempo, transformaram-se em reuniões de evangelização,
nas quais predominavam manifestações emocionais violentas, semelhantes
32
às que ocorrem hoje nos cultos e reuniões pentecostais (MENDONÇA &
VELASQUES, 1990: 84-85).
Estes acampamentos serviram para gestar os avivamentos do século XIX. Ademais, o
século XIX foi palco de expressivas mudanças políticas, econômicas e sociais nos Estados
Unidos que preparariam terreno para uma nova temporada de avivamentos. O alargamento
das fronteiras geográficas, mediante compra e guerra, fez com que o espaço físico do país
saltasse de 2.223.000 quilômetros quadrados em 1783 para 7.710.000 quilômetros quadrados
em 1853. A cultura do “Destino Manifesto”, desdobrada na conquista e cristianização dos
territórios que ligavam o Atlântico ao Pacífico, moveu muitos pregadores a acompanharem a
marcha para o Oeste. Entretanto, os avivalistas puritanos e arminianos, protagonistas dos
avivamentos do século XVIII, academicizados e elitistas em demasia, não eram os mais aptos
a enfrentar o novo estilo de vida rústico do Oeste. Eles deram lugar aos metodistas, um novo
grupo que começava seus trabalhos nos Estados Unidos no século XIX. As bases do
movimento metodista provinham do arminianismo, do puritanismo e do pietismo. O
arminianismo era uma concepção teológica que sustentava que Deus oferecia a salvação a
todos os que aceitassem Jesus Cristo como salvador. Ou seja, negava ferrenhamente as
doutrinas de predestinação de Calvino que mitigavam a liberdade de escolha do indivíduo.
Assim, o destino final do homem estava condicionado à experiência da fé e não a um
predeterminismo de Deus (MENDONÇA & VELASQUES, 1990).
Do puritanismo os metodistas aprenderam que, apesar de não haver uma predestinação
absoluta, um a priori quanto à salvação, Deus dá a conhecer aqueles que lhe estão a agradar a
vontade a partir dos sinais exteriores. Estes sinais exteriores eram lidos tanto no
comportamento dos fiéis como também em seus rendimentos. Entretanto, como os sinais
externos nunca são muito claros, o fiel vivia esforçando-se para criá-los artificialmente.
Quanto mais bens terrenos uma pessoa possuir, mais certeza ela terá de que Deus lhe destina a
salvação.
O pietismo, por sua vez, contribuiu em vários pontos doutrinais para o
desenvolvimento do metodismo. Ao pregar a perfeição cristã, os pietistas introduziram o
ideário do progresso à conduta do crente. Fazia-se necessário buscar o progresso pessoal na
vida espiritual. Espírito e mundo têm suas características de antípodas exacerbadas. Ser
mundanizado era sinônimo de estar em pecado e perdido nas garras de Satã. Além disso, a
pregação acerca da cura divina, ou seja, o alcance do livramento das doenças e fatigas
humanas por meio da ação de Deus, encontra no pietismo da primeira metade do século XIX
33
seu nicho de desenvolvimento (SIEPIERSKI, 2008). Mendonça & Velsques (1990) sintetizam
as características do pietismo.
A salvação não devia ser esperada para depois da morte, mas era realidade
presente, como realização subjetiva individual. As disputas teológicas eram
consideradas irrelevantes e até mesmo prejudiciais à fé individual. O que
importava era a presença de Cristo no coração. O pietismo era um
movimento eminentemente leigo. Partindo da doutrina luterana do
sacerdócio universal do cristão, afirmava que todo crente era ministro de
Deus e administrador de sua palavra (MENDONÇA E VELASQUES, 1990:
95).
A partir dessas bases teológicas e doutrinais, o metodismo definiu condutas e práticas
que davam espaço para a ação individual sem desconsiderar a comunhão entre os fiéis. O
afastamento da “mundanidade”, a busca da perfeição cristã e a responsabilidade evangelística
são características ainda presentes, mesmo que com certas variações interpretativas, em
denominações pentecostais atuais.
Os presbiterianos e congregacionais inicialmente realizaram esforços para acompanhar
a marcha para o oeste. Estes, porém, acabaram se mostrando insuficientes devido ao alto grau
de preparo que era cobrado de seus pastores, preparo que não podia ser alcançado muito longe
dos centros teológicos da costa leste dos Estados Unidos. Em contrapartida, os metodistas
eram, em sua quase totalidade, leigos semi-alfabetizados, “vocacionados” por meio dos
acampamentos de avivamento. Falavam a linguagem dos colonos e estavam dispostos a seguir
a marcha sem fixar-se numa determinada localidade. Os pregadores metodistas deste molde
eram muitos e espalharam-se com rapidez pelos novos territórios.
Em meados da segunda metade do século XIX, com a paulatina sedentarização e
formação de cidades até a costa oeste, a balança começou a pesar para as igrejas
presbiterianas e congregacionais. O despreparo e a falta de prestígio social dos metodistas
começaram a se fazer sentir quando da chegada de pastores melhor preparados de outras
denominações. Um processo de migração denominacional se estabeleceu, fazendo com que os
metodistas perdessem muitos de seus membros para os recém chegados. A solução para a
perda de seguidores foi encontrada pelos metodistas ao estabelecerem seminários e faculdades
de teologia por todo o novo território.
O acirramento das contradições sociais que acompanharam o movimento de
industrialização que avançou para o oeste na segunda metade do século XIX – com o
inescapável acirramento de lutas entre uma classe explorada e outra exploradora –,
proporcionou nova assistência aos movimentos de avivamento que ocorreram na virada do
34
século. Estes, todavia, já são considerados avivamentos pentecostais, os quais redundaram no
envio de missionários para várias partes do globo, inclusive para o Brasil.
A característica que marca a diferença entre os avivamentos do século XVIII e
primeira metade do século XIX dos avivamentos pentecostais de fins do século XIX e início
do XX é o falar em línguas estranhas, a glossolalia. O falar em línguas estranhas foi tomado,
em fins do século XIX, como o indício, por excelência, do batismo com o Espírito Santo. Os
dois pastores considerados os iniciadores do pentecostalismo, como movimento que aceita a
contemporaneidade dos dons do Espírito Santo, foram Charles Fox Parham e William Joseph
Seymour.
Charles Parham é considerado o pioneiro do pentecostalismo nos EUA.
Através de sua direção, estudantes da Escola Bíblica de Betel, em Topeka,
Kansas, foram ensinados a buscarem pela verdadeira evidência do
recebimento do Espírito Santo através do estudo do capítulo segundo do
livro de Atos dos Apóstolos. Uma das alunas, Agnes Ozman, em 01 de
janeiro de 1901, se tornou a primeira a falar em línguas estranhas,
experimentando, segundo ele, a evidência inicial do derramamento do
Espírito Santo da mesma forma que os apóstolos no dia de Pentecostes. Nos
dias posteriores a esse acontecimento, o próprio Parham e outros estudantes
passaram pela mesma experiência. Posteriormente, ele iniciou a publicação
de um periódico quinzenal, denominado Apostolic Faith, que se tornou o
principal veículo de difusão de seus ensinamentos. […] O afro-americano
William Seymour também é considerado um dos mais importantes líderes da
primeira geração pentecostal. Após ouvir Charles Parham em Houston,
Texas, ele recebeu um convite para pastorear uma pequena comunidade em
Los Angeles. Teve um papel destacado no movimento conhecido como
Azusa Street Mission. Ele e seus discípulos contribuiram para dar um caráter
mundial ao nascente pentecostalismo, visto que este movimento se tornou
um grande centro de difusão da mensagem pentecostal. (GUIMARÃES,
2005: 35)
Uma vez que abordamos o pentecostalismo em suas matrizes anglo-americanas,
cumpre-nos falar dos desdobramentos desse movimento no Brasil. Quando os primeiros
missionários pentecostais chegaram ao país, já existiam aqui alguns contingentes
significativos de protestantes desde meados do século XIX, apesar da dominância do
catolicismo como religião popular. Estes protestantes, todavia, dadas as características
doutrinárias e teológicas de suas práticas específicas – que não entram no escopo de nossa
discussão – não haviam empreendido campanhas proselitistas em larga escala. Foram os
pentecostais que desafiaram, durante o correr do século XX, a tradicional dominância católica
do imaginário popular. Acompanhando as trajetórias das igrejas evangélico-pentecostais de
maior expressividade – em termos de membresia –, AD e IURD, vislumbramos grande parte
do processo de constituição histórica dos pentecostalismos brasileiros.
35
[…] Reunidos pela crença e pelos conceitos teológicos de salvação pessoal,
de santidade, de cura divina, do batismo com o Espírito Santo como
autoridade para o ministério, e pela expectativa do iminente retorno de Jesus
Cristo, eram amplamente providos de uma grande motivação para dar ao
despertamento verificado entre eles um impacto de longo alcance (tradução
nossa). Estes movimentos relacionavam escatologia e pneumatologia. A
crença na atualidade da experiência do derramamento do Espírito Santo, à
semelhança dos tempos apostólicos, sinalizava que os últimos dias haviam
chegado. E esta dupla percepção contribuiu para que um sentido de urgência
se acercasse dos primeiros pentecostais, razão porque um intenso movimento
missionário se alastrou pelo próprio EUA e pelo mundo, nas duas primeiras
décadas do século XX. (GUIMARÃES, 2005: 36).
Contudo, antes de apresentarmos a discussão da formação das igrejas evangélico-
pentecostais que foram eleitas como eixo de nossa análise, faz-se necessário que munamo-nos
dos conceitos básicos que presidem os estudos sobre o pentecostalismo. Passamos, assim, a
apresentar as tipologias mais caras aos pesquisadores do movimento pentecostal brasileiro
para, logo após, prosseguirmos com a apresentação das trajetórias históricas da igreja
Assembléia de Deus e da Igreja Universal do Reino de Deus.
1.2. As tipologias do pentecostalismo brasileiro
Os autores que desenvolveram estudos acerca do pentecostalismo concordam e
reconhecem esta religiosidade específica como um fenômeno pertencente ao século XX. Os
pontos de desacordo se encontram em como objetivar o pentecostalismo por meio dos recortes
tipológicos. De acordo com Freston (1992), a primeira onda de avivamento brasileira teria
durado de 1910 até 1950, fundamentada no movimento pietista de intensificação da fé que
ocorreu nos EUA no final do século XIX, especialmente dentro das igrejas metodistas que,
como vimos, valorizavam, acima de tudo, o batismo com o Espírito Santo, detectado pelo
falar em línguas estranhas, a glossolalia.
A segunda onda durou de 1950 até fins da década de 70. Teve a cidade de São Paulo
como seu centro de difusão, sendo que a tônica das pregações foi dada pela ênfase teológica
no dom de cura divina. Freston reconhece a segunda onda marcadamente como um momento
de pulverização com o surgimento de dezenas de pequenas denominações. Três grandes
grupos formaram-se neste período: A Igreja Quadrangular (antiga Cruzada), em 1951; a Brasil
Para Cristo, em 1955; e a Deus é Amor, em 1962.
A terceira onda começou no final dos anos 70 e ganhou força no decorrer dos anos 80.
Freston propõe que o palco desta onda foi o Rio de Janeiro. Caracterizou-se como um boom
de novas denominações evangélicas que incorporaram em seu discurso a Teologia da
36
Prosperidade proveniente dos púlpitos norte-americanos de meados dos anos 40 – firmada
como doutrina em meados da década de 70. A ênfase recai agora no poder que possui o fiel de
reivindicar das potestades espirituais – os poderes divinos – o direito de gozar do melhor
desta terra (MARIANO, 1999). Sua prosperidade será, assim, diretamente proporcional à sua
fidelidade para com os mandamentos do Senhor, sendo o mais citado e, tema das mais
piedosas preleções, o mandamento que dá conta do pagamento do dízimo dos rendimentos do
fiel para sustento da “obra”. A mais conhecida igreja que surge nesse período é a Igreja
Universal do Reino de Deus (IURD), fundada em 1977 pelo pastor Edir Macedo. Podemos
citar também a Igreja Internacional da Graça de Deus, sob a liderança de seu cunhado, o
missionário R. R. Soares, além da Sara Nossa Terra (fundada no Distrito Federal), Luz Para
os Povos e a igreja Videira, estas últimas duas surgidas em solo goianiense, em fins da década
de 80 e meados da década de 90.
Brandão (1986) classifica os movimentos que surgiram depois da década de 50 – com
a Igreja do Evangelho Quadrangular, da missionária Aimee Semple McPerson, como ponta de
lança – sob o rótulo de “movimentos de cura divina” enquanto sugere que aqueles
provenientes da década de 90 seriam bem entendidos como “pequenas seitas”. Em sua
dissertação de mestrado, defendida em 1995, posteriormente transformada no livro
Pentecostais (1999), Ricardo Mariano realizou uma sociologia do novo pentecostalismo
brasileiro. O autor prefere utilizar os termos “pentecostalismo clássico” para as igrejas
surgidas na primeira onda, “deuteropentecostais”, ou pentecostalismo neoclássico, para
classificar as de segunda onda de Freston e “neopentecostais” para as igrejas surgidas após a
década de 70.
O argumento primordial de Ricardo Mariano é de que as características do sectarismo
e do ascetismo contracultural, atribuídos aos pentecostais pelos trabalhos acadêmicos dos
anos 60 e 70, não são mais suficientes para caracterizar tais religiosos, dadas as
transformações ocorridas em suas práticas nas últimas décadas do século XX. De fato, o
objeto específico com o qual trabalha Mariano são as igrejas neopentecostais formadas a
partir da década de 70, sendo estas as responsáveis pela constituição de outras relações com a
sociedade que lhes abarca.
As igrejas neopentecostais teriam servido, também, como exemplo para a atualização
e modificação de ritos e crenças das denominações pentecostais formadas nos anos 1910, 50,
60 e início dos 70 (MARIANO, 1999). Os processos de “neopentecostalização” das
denominações anteriores não possuiriam, segundo o autor, um caráter de inversão de crenças
ou negação completa da tradição, apesar de haver acréscimo de elementos novos, como a
37
Teologia da Prosperidade. Estas transformações, antes, ocorrem como uma mudança de
ênfase teológica de alguns elementos já presentes em suas doutrinas, axiologia e liturgia.
Tornaram-se, com respaldo e estímulo religiosos, mais imediatistas e
pragmáticos. Isto é, antes de irem viver eternamente ao lado de Deus, futuro
para o qual se crêem destinados, eles querem gozar, ao máximo, com tudo a
que têm direito e sem a menor culpa moral, esta vida e o que julgam haver
de bom neste mundo. Almejam, em suma, a felicidade. Boa fortuna que, com
seus óculos religiosos, testemunham e retraduzem, apesar de sua terrível
condição social, em termos de bem-estar pessoal, progresso material e até
consumo de bens de alto valor monetário (MARIANO, 1999: 08-09).
Mariano esclarece que o termo evangélico, na América Latina, faz menção às
denominações cristãs nascidas na e descendentes da Reforma Protestante européia do século
XVI, designando, assim, tanto as igrejas protestantes históricas (Luterana, Presbiteriana,
Congregacional, Anglicana, Metodista e Batista) como as pentecostais (Congregação Cristã
no Brasil, Assembléia de Deus, Evangelho Quadrangular, Brasil Para Cristo, Deus é Amor,
Casa da Benção, Universal do Reino de Deus etc.). Em linhas gerais, as características que
marcam as diferenças entre o pentecostalismo, nascido nos EUA no início do século XX, e o
protestantismo seriam, segundo Mariano,
[…] pregar, baseado em Atos 2, a contemporaneidade dos dons do Espírito
Santo, dos quais sobressaem os dons de línguas (glossolalia), cura e
discernimento de espíritos. Para simplificar, os pentecostais, diferentemente
dos protestantes históricos, acreditam que Deus, por intermédio do Espírito
Santo e em nome de Cristo, continua a agir hoje em dia da mesma forma que
no cristianismo primitivo, curando enfermos, expulsando demônios,
distribuindo bênçãos e dons espirituais, realizando milagres, dialogando com
seus servos, concedendo infinitas amostras concretas de Seu supremo poder
e inigualável bondade (MARIANO, 1999: 10).
Quanto às diferenças entre pentecostais clássicos e neopentecostais, Mariano
desenvolve as considerações tipológicas de Freston (1992), fazendo com que sua
argumentação explore especificamente esta questão. Os três grandes pontos de defasagem
entre pentecostais clássicos e neopentecostais podem ser evidenciados já na divisão dos
capítulos de sua obra: “a guerra contra o diabo”, “a teologia da prosperidade” e a
“liberalização dos tradicionais usos e costumes de santidade pentecostal”.
Elencando diversas pesquisas que registram a elevada taxa de crescimento apresentada
pelos pentecostais, o autor explica que tal crescimento se deu, em grande medida, nos estratos
mais pobres da população. Entretanto, Mariano nos alerta para o perigo de cairmos no
simplismo da interpretação que vê na correlação entre pobreza e pentecostalismo o único
motivo para tal expansão, pois, além de não explicar as razões do crescimento, a ligação
38
mecânica pobreza-pentecostalismo não lança luz sobre o problema da expansão desigual de
diferentes igrejas.
Paulo D. Siepierski, também pesquisador do segmento religioso pentecostal, em seu
artigo Contribuições Para Uma Tipologia do Pentecostalismo Brasileiro (2003), apresenta
suas conclusões acerca do estado da arte dos estudos concernentes à questão pentecostal. Para
ele, o pentecostalismo clássico, referente às duas primeiras ondas de Freston, possuía uma
uniformidade doutrinária que, a partir da década de 60, começou a ser adotada pelo
protestantismo histórico ao se pentecostalizar. Este protestantismo histórico, como já foi
mencionado, é representado pelas igrejas originadas com a Reforma. Ao se pentecostalizar,
tais igrejas, em sua maioria, acrescentavam o termo “Renovada” após sua designação
histórica.
Além destas metamorfoses sofridas pelas igrejas protestantes históricas, Siepierski
chama a atenção para o fato de que, a partir da década de 70, aquela unidade doutrinária que
marcava as igrejas provenientes das duas primeiras ondas foi rompida, sendo, portanto,
necessária a referência a esta religiosidade no plural. Segundo o autor seremos mais precisos
se falarmos em pentecostalismos.
Comentando uma das primeiras tipologias desenvolvidas para se estudar o
pentecostalismo na América Latina, a do teólogo e sociólogo suíço Lalive d'Epinay,
Siepierski alude aos três elementos básicos identificados por d'Epinay como características da
composição do imaginário do fiel: Cristocentrismo, Rigor Moral e Biblicismo. Sabendo que o
sociólogo suíço pesquisou e escreveu durante a década de 60, Paulo D. Siepierski aproxima-se
de sua tipologia de forma cautelosa. Sua atenção recai sobre o elemento do rigor moral
estudado por d'Epinay. Siepierski se pergunta sobre o quê se assentava este rigor moral. O
autor de Contribuições para uma tipologia do pentecostalismo brasileiro faz com que seu
artigo gravite em torno da análise desta questão, haja vista que, em sua concepção, é
exatamente neste ponto, fundante da visão de mundo pentecostal, que iremos encontrar as
mais radicais mudanças doutrinais e, conseqüentemente, mudanças em suas práticas
identitárias.
Resumindo suas conclusões, Siepierski acredita ser completamente inadequada a
utilização do termo “neopentecostal” para entender as novas denominações surgidas a partir
de 70. Isto porque
A roda da história girou novamente, provocando um paulatino abandono do
pré-milenarismo e um lento, porém seguro, retorno ao pós-milenairismo.
[…] [Estas duas correntes de pensamento] têm se alterado na história do
39
cristianismo. Normalmente; o pré-milenarismo tem-se popularizado em
períodos de crise social e econômica. Já o pós-milenarismo é característica
de períodos de paz social e progresso econômico (SIEPIERSKI, 2008: 78-
80).
Tomando de empréstimo os conceitos temporais propostos por Koselleck (2006) para
sistematizar nossa análise, podemos dizer que a vida do cristão evangélico está em função de
um evento localizado em seu horizonte de expectativas: a volta de Cristo ou Parousia. Este
evento, uma das representações coletivas constituintes do arcabouço identitário que será
trabalhada em detalhes no capítulo segundo, é de suma importância para a manutenção da
Batalha Espiritual. Os fieis direcionam suas histórias pessoais para o cumprimento da
promessa messiânica e milenarista encontrada no livro de Apocalipse, capítulo 20.
E vi descer do céu um anjo que tinha a chave do abismo e uma grande cadeia
em sua mão. Ele prendeu o dragão, a antiga serpente, que é o diabo e
Satanás, e amarrou-o por mil anos. E lançou-o no abismo, e ali o encerrou, e
pôs selo sobre ele, para que não mais engane as nações, até que os mil anos
se acabem. E depois importa que seja solto por um pouco de tempo. E vi
tronos; e assentaram-se sobre eles aqueles a quem foi dado o poder de julgar.
E vi as almas daqueles que foram degolados pelo testemunho de Jesus e pela
palavra de Deus, e que não adoraram a besta nem a sua imagem, e não
receberam o sinal na testa nem na mão; e vieram e reinaram com cristo
durante mil anos (Ap 20:1–4) (BÍBLIA de Estudos Plenitude, 2001: 1368).
Na Bíblia de Estudos Plenitude (2001), encontram-se alguns acréscimos, à guisa de
“respostas espirituais”, no final da edição. Transcrevemos abaixo, na íntegra, a resposta à
pergunta “O que é o milênio?”. O texto é de autoria de Pat Robertson e consta em seu livro
Respostas para as 200 perguntas mais cruciais da vida, direitos autorais de 1984.
Um milênio são mil anos. O milênio bíblico será um período de paz, amor e
irmandade, quando toda a natureza viverá na harmonia que era desejada no
jardim do Éden. O livro de Isaías (11.6-9) fala de um tempo, quando os
animais selvagens viverão em paz com os animais domésticos, quando as
serpentes não picarão mais. Uma criancinha poderá brincar em um ninho de
cobra ou guiar feras selvagens sem ser atacada. As escolas militares
fecharão, e os suprimentos de guerra não mais serão fabricados. O dinheiro e
recurso que agora vão para as guerras serão destinados aos fins pacíficos.
Quando esse dia vier, todas as pessoas terão seu próprio pedaço de terra, seu
próprio lar. Todos morarão em harmonia com seus vizinhos. Ninguém terá
medo de ter seus bens roubados. Haverá paz universal, pois o conhecimento
do Senhor encherá a terra como as águas cobrem o mar. Eu creio que o
milênio seja um período de transição, quando Jesus Cristo voltará a Terra
para mostrar à raça humana como teria sido se o pecado nunca tivesse
entrado no mundo. Será um tempo em que Jesus Cristo reinará como rei, e o
Reino de Deus será estabelecido na terra. Haverá um único governo mundial
sob a liderança de Jesus com estados-nações sujeitos a ele. A Bíblia diz que
representantes das nações da Terra virão a Jerusalém a cada ano (Is 2:2-4; Zc
14:16) (BÍBLIA de Estudos Plenitude, 2001: 1377).
40
Na Bíblia de Estudos das Profecias (2001), outra bíblia de estudos que também está
alinhada com as interpretações evangélico-pentecostais do texto histórico, podemos ler no
acréscimo “O milênio”:
O Milênio se refere ao reinado de mil anos de Cristo, encontrado em Ap. 20.
Muitas passagens do Antigo Testamento também apontam para uma época
durante a qual o rei davídico irá reinar sobre todas as nações do mundo. Há
trás visões principais a respeito do Milênio. O ponto de vista da presente
obra é pré-milenarista. De acordo com esse ponto de vista, Cristo retornará à
Terra (a Segunda Vinda) após a Tribulação. Ele reinará na Terra, em
Jerusalém, durante um período de mil anos, nos quais as promessas de Deus
feitas à nação de Israel serão cumpridas, incluindo a restauração de Israel à
Terra Prometida. Deus irá amarrar Satanás durante essa época e, depois, o
soltará durante um curto período. Satanás irá guerrear contra Cristo, somente
para ser derrotado e jogado no “lago de fogo” (Ap. 20:7,10). Então, Deus
destruirá tudo com fogo e estabelecerá um novo céu e uma nova Terra. Um
ponto de vista sobre o Milênio é o amilenista. Segundo esse ponto de vista,
não haverá um reinado de Cristo literalmente de mil anos na Terra. Após um
período não específico, Cristo voltará para a Terra (a Segunda Vinda), banirá
Satanás e estabelecerá um novo céu e uma nova Terra para a eternidade. O
principal problema dessa visão é que não há boas razões para interpretar os
“mil anos” como sendo outra coisa senão “mil anos”. Um terceiro ponto de
vista sobre o Milênio é o ponto de vista pós-milenarista. Nesse ponto de
vista, o período do Milênio é um período durante o qual o mundo é
“cristianizado” através da obra da igreja, cuja influência trará
progressivamente justiça e paz durante mil anos. Após esse breve tempo de
tribulação, Cristo irá retornar à Terra (a Segunda Vinda), banirá Satanás e
estabelecerá um novo céu e uma nova Terra para a eternidade. A principal
objeção a esse ponto de vista é que requer um milênio feito pelo ser humano
num mundo que está ficando cada vez melhor. Mas as Escrituras descrevem
um mundo numa decadência contínua – um modelo impedido não pela
Igreja, mas pelo próprio Cristo (Ap. 12:20) (BÍBLIA de Estudo das
Profecias, 2001: 1466).
Como podemos observar, o milênio e a Parousia são representações coletivas
fundantes dentro do imaginário social evangélico-pentecostal. Estas representações se
desdobram em duas contagens temporais distintas, uma milenarista e outra messiânica, que
coabitam num cenário escatológico. Os pentecostais interpretam as profecias bíblicas
referentes ao fim a partir de três concepções que Siepierski também discute. São as formas
interpretativas pré-milenarista, pós-milenarista ou amilenarista. Segundo o pré-milenarismo
a vinda de Cristo se dará antes do milênio e do período tribulacional – período de provações,
quando o auxílio do Espírito Santo será retirado do mundo – que introduzirá efetivamente o
milênio; o pós-milenarismo entende a Parousia como epítome do milênio, enquanto o
amilenarismo acredita que não haverá tal período.
De acordo com Siepierski, a grande mudança paradigmática ocorrida no imaginário
social pentecostal pode ser então compreendida, como já foi exposto acima, como uma
41
guinada do ‘pré’ ao ‘pós-milenarismo’. No âmbito das crenças que norteiam a visão pré-
milenarista, encontramos, como central, a iminência da volta do Cristo.
Percebemos, então, sob qual crença se fundava o rigor moral dos pentecostais
estudados por d'Epinay, a iminência da Parousia. No decorrer do século XX, como a
Parousia não se efetuava, os pentecostais “foram forçados a alargar seus horizontes. Para
isso, foi necessária a reestruturação de sua escatologia. A única forma de manter a
esperança em um milênio foi reverter para o pós-milenarismo” (SIEPIERSKI, 2008: 82). Se
Cristo não voltou antes do milênio, certamente após este período ele se manifestará. A ênfase
das preleções agora passa a recair sobre outros elementos estranhos à tipologia clássica de
d'Epinay. Siepierski concorda com Mariano (1999) no reconhecimento destes novos pontos
nodais: “Guerra Espiritual”, “Teologia da Prosperidade” e a “eliminação dos sinais exteriores
de santidade”. Siepierski, sustentando que o prefixo neo tem sido relacionado com
continuidade e não com ruptura, lança a questão: por que neopentecostalismo, se ele difere
sobremaneira do pentecostalismo que o precedeu?
É a partir destas conclusões que o autor propõe que as igrejas surgidas nas décadas de
70, 80 e 90 sejam denominadas pós-pentecostais e, não, “neopentecostais”, por estarem
fundamentadas no pós-milenarismo. Agora os fiéis são impulsionados a agir no mundo. Cristo
não está na iminência de seu retorno. O crente pode, e deve lutar para que a vontade de Deus
seja efetivada em sua realidade imediata.
Ora, para Siepierski, enquanto o cerne das pregações dos pré-milenaristas era a
Parousia, o foco e a instrução dos líderes pós-pentecostais, dentro de uma ótica pós-
milenarista, será a Batalha Espiritual. Nesse sentido, até mesmo os outros pontos que são
distintivos dos pós-pentecostais, a Teologia da prosperidade e a eliminação dos sinais
exteriores de santidade, irão ser articulados em função da Batalha Espiritual.
A ordem agora era atacar Satanás, que passou a ser visto primariamente
como usurpador, resgatando não apenas as pessoas, mas a cultura também.
Em outras palavras, o avanço do reino de Deus representava o recuo do reino
de Satanás e vice-versa (SIEPIERSKI, 2003: 83).
Apesar de concordarmos com Siepierski em vários pontos de sua argumentação,
demonstraremos nos capítulos que se seguem que a Batalha Espiritual sempre esteve presente
de forma determinante no imaginário evangélico-pentecostal. O que teria possibilitado as
mudanças nas práticas entre aqueles que Siepierski chama de pós-pentecostais, no que
concerne à Batalha Espiritual, talvez deva ser buscado noutro campo que não necessariamente
religioso. Sugerimos uma possível saída para esclarecer tais discrepâncias no segundo
42
capítulo deste trabalho. Como pudemos observar, Siepierski também utiliza o argumento da
exacerbação da Batalha Espiritual como um dos fundamentos para o recorte tipológico de sua
proposta de pós-pentecostalismo. Desse modo, ele alinha-se com Ricardo Mariano ao
sustentar que
O dualismo, a luta entre os reinos celestiais e das trevas, permeia todo o
cristianismo e o próprio pentecostalismo clássico. A diferença é que o
neopentecostalismo exacerbou essa guerra, sendo acompanhado de perto,
mas sem o mesmo impacto, por igrejas do deuteropentecostalismo, como
Deus é Amor e Casa da Benção (MARIANO, 1999: 13).
Veremos que as propostas de divisão tipológicas que buscam nessa pretensa
exacerbação da Batalha Espiritual um suporte estão, minimamente, equivocadas. O
pentecostalismo nasce sobre o signo do conflito. Provém da batalha como prática de vida
pautada na fé contra a apostasia de uma vida mundana. O pentecostalismo encontra seus
fundamentos teológicos na crença e vivência de um contato direto e pessoal com Deus. Ele se
fazendo inimigo das razões provenientes da teologia liberal, teologia esta incapaz de
harmonizar os objetivos terrenos e as inspirações celestiais dos fieis. Enfim, o
pentecostalismo, como desenvolveremos adiante, traz no âmago de sua mensagem cristã a
oposição da submissão à vontade divina contra a submissão à vontade de Satanás.
1.3. Assembléia de Deus (AD)
Os fundadores da Assembléia de Deus foram Gunnar Vingren e Daniel Berg. Apesar
da nacionalidade sueca, os dois missionários pentecostais não vieram diretamente de seu país
de origem para o Brasil.
Segundo César (2000), entre 1867 e 1886 quase 450 mil suecos deixaram o país por
causa da escassez de alimentos. O desemprego foi uma força centrífuga que dirigiu a atenção
da maioria dos imigrantes suecos para o meio-oeste dos Estados Unidos. Em fins do século
XIX, a cidade de Chicago, que em 1833 era apenas um vilarejo com dezessete casas, havia se
tornado uma das maiores cidades do mundo, abrigando grande contingente de mão-de-obra
imigrante (SIEPIERSKI, 2008). Daniel Berg chegou à cidade de Chicago em 1902, com a
idade de 18 anos, conseguindo emprego numa quitanda.
Vingren não foi diretamente para Chicago. Chegou aos Estados Unidos em 1903, com
24 anos, e realizou um curso de teologia em seminário batista, tornando-se pastor da igreja
batista em Menominee, no Michigan. Os dois se conheceram em 1909, na convenção das
43
igrejas Batistas reavivadas, em Chicago. O encontro propiciou que Vingren e Berg, a partir do
reconhecimento das afinidades em sua fé pentecostal, começassem a realizar reuniões de
oração, ou vigílias. Numa destas reuniões um irmão de fé chamado Adolf Ulldin entregou
uma “profecia” que ordenava aos dois suecos partirem numa missão de evangelização para
um lugar chamado “Pará” (CESAR, 2000).
Foerster (2010) contextualiza a “profecia” de Ulldin, desmitificando o caráter místico
em referência ao Estado brasileiro do Pará. O autor chama nossa atenção para o fato de já
haver no Brasil, à época das reuniões de oração de Vingren e Berg, um pastor batista, Erik
Nilsson, também sueco. Esse pastor havia saído dos EUA como missionário em 1897 e dirigia
uma igreja em Belém do Pará. Certamente o trabalho de evangelização de Nilsson era
conhecido pela comunidade batista sueca nos EUA. Ou seja, o nome “Pará”, local para onde
Daniel Berg e Gunnar Vingren deveriam se dirigir para “cumprir a vontade do Senhor”, não
era um nome totalmente estranho ao conhecimento da membresia batista à época e, tampouco,
à maioria dos trabalhadores nas indústrias de Chicago. De fato, como escreve Foerster (2010):
"Pará" era uma palavra muito conhecida na região de Chicago. Desde o
aperfeiçoamento do processo de vulcanização efetuado por Charles
Goodyear em 1839 a borracha havia se tornado um insumo industrial
essencial. Entre 1860 e 1910 a Amazônia reinou absoluta como fornecedora
de borracha para a indústria mundial--esse é também o período em que
Chicago se torna o centro industrial dos Estados Unidos--e o tipo "Pará" era
considerado o padrão mundial de qualidade dessa matéria-prima. No início
deste século, longe de ser um local desconhecido no canto do mundo, Pará,
como Belém (Santa Maria de Belém do Grão Pará) era conhecida naquela
época, abrigava centenas de casas de exportação, que estavam em contato
com o mundo todo. O nome "Pará" era uma constante nos centros
industriais, como Chicago, principalmente em 1910, quando o governo
brasileiro através da política conhecida como "valorização" forçou o preço
da borracha tipo "Pará" acima de seis dólares por quilo, triplicando o preço
em relação aos anos anteriores (FOERSTER, 2010: 107-108).
Após receberem a profecia, os dois embarcaram no navio Clement, que se encontrava
em Nova York e sairia em cinco de novembro de 1910. Assim vieram para o Brasil, com
noventa dólares no bolso, sem falar o português e sem ninguém para recebê-los no porto.
Segundo Mafra, em seu texto Casa dos homens, casa de Deus (2007), chegaram a Belém com
dinheiro suficiente apenas para uma refeição e uma noite em hotel de terceira. Nos meses que
se passaram, com os parcos recursos que contavam, Daniel Berg e Gunnar Vingren tiveram
muitas vezes que aplacar a fome com as mangas que cresciam em abundância nas ruas da
cidade.
44
Berg e Vingren congregaram por sete meses na igreja batista de Belém, sob a direção
do pastor Erik Nilsson que, os auxiliando em nome da profissão da mesma fé, acolheu os
missionários cedendo o porão da igreja para que pudessem morar. Daniel Berg trabalhou por
algum tempo como fundidor para auxiliar os dois em seu sustento financeiro. A igreja,
contudo, era de uma orientação tradicional não aberta às “inovações” pentecostais que
marcavam as preleções dos recém chegados, em específico, a doutrina do batismo do Espírito
Santo. Tais “inovações” desdobravam-se como uma nova ordem em matéria de experiência de
fé: imediata, transformadora e milagrosa (MAFRA, 2007). Os desentendimentos doutrinários
redundaram na expulsão dos dois suecos e mais dezenove fiéis que acordaram acompanhá-los
em sua proposta pentecostal. Assim, de um primeiro cisma nasceu a Missão da Fé Apostólica,
nome que logo seria substituído por Assembléia de Deus.
Efetivamente, a primeira igreja fundada no Brasil com o nome de Assembléia de Deus
foi inaugurada em Belém (PA), no dia 8 de novembro de 1914. Gunnar Vingren pastoreava a
igreja, pois contava com uma formação teológica um pouco mais fundamentada. Daniel Berg
evangelizava nas periferias de Belém e cidades circunvizinhas.
O crescimento da nova igreja em seus primeiros quinze ou vinte anos não foi
explosivo. Concentrou-se nos Estados brasileiros do Norte e Nordeste. Segundo Siepierski
(2008), a expansão geográfica da Assembléia de Deus seguiu, num primeiro momento, o
refluxo de migrantes nordestinos desiludidos com a crise do ciclo da borracha e, num segundo
momento, o fluxo de migrantes nortistas e nordestinos para o sudeste do país. De acordo com
Mafra (2007), o fim do monopólio da seringa trouxe a decadência à Belém. Desde 1877,
Belém e cidades do entorno receberam levas de migrantes nordestinos em busca de trabalho.
Uma época de modernização e pompa devida à comercialização do “ouro negro”, a pasta da
seringa. Tal opulência foi substituída por decadência, na qual as contradições sociais entre
elite e trabalhadores eram gritantes.
Desse modo, o fator que garantiu o avanço paulatino da Assembléia de Deus pelo
território brasileiro foi o estabelecimento das pequenas congregações mantidas por pessoas
que, apesar de professar uma modalidade de fé nova, falavam em pé de igualdade com o
grosso da população empobrecida. As congregações da AD se espalharam pelo interior dos
Estados do Norte e Nordeste. O foco da evangelização não se restringia aos grandes centros
urbanos; pelo contrário, buscavam prosélitos em meio à grande massa de trabalhadores rurais
empobrecidos. Como bem salienta Mina (2004)
[…] a pobreza sempre andou de mãos dadas com a inserção e sucesso do
pentecostalismo. Baseados em Rolim, observamos que a situação de penúria
45
econômica daquelas pessoas encontrou uma fonte de alívio nas prerrogativas
pentecostais. A carência de uma ação mais efetiva do poder público e igreja
católica na vida desses interioranos ofereceu caminho aberto para uma ação
bem sucedida dos pioneiros, que pregavam para uma população excluída. A
liberdade nos dias de culto que esses “novos convertidos” (principalmente
ex-católicos) experimentavam era diferente de tudo o que tinham vivenciado
no catolicismo. Todos os crentes, indistintamente, tinham a oportunidade de
subir no púlpito e “pregar a palavra” sem precisar exercer qualquer posto na
hierarquia da nova igreja de então. Além disso, ler a Bíblia, orar e cantar
coletivamente constituíam outra novidade que atraiu muitos adeptos das
comunidades carentes (MINA, 2004: 20).
O fato de a expansão inicial da Assembléia de Deus dar-se em Estados do Norte e
Nordeste, em meio a uma população marcadamente rural talhada pela anomia social
proveniente do choque entre campo e cidade, determinou a formação de uma rígida tradição
de usos e costumes que buscava garantir à comunidade dos “santos” um modelo de práticas
socialmente aceitáveis (MAFRA, 2007; MINA, 2004). Dentro dessa rígida tradição,
repassada pela oralidade, cada membro é um potencial agente de disciplinarização, tanto de
recém convertidos quanto de pastores já com décadas de fé. Discutiremos, no segundo
capítulo, como os usos e costumes mediaram a assimilação por parte dos evangélico-
pentecostais assembleianos de inovações tecnológicas midiáticas popularizadas no século XX
(rádio e TV).
Mina apresenta em seu trabalho uma cronologia da expansão da Assembléia de Deus:
Piauí (1914); Ceará (1915); Pernambuco, Amapá (1916); Amazonas (1917); Roraima,
Paraíba, Rio Grande do Norte e Maranhão (1918); Rondônia, Alagoas e Espírito Santo
(1922); Rio de Janeiro, Santa Catarina e Mato Grosso (1923); Rio Grande do Sul (1924);
Bahia (1926); Sergipe, Minas Gerais e São Paulo (1927); Paraná (1929); Goiás (1931); Acre
(1932); Brasília (1956).
Durante a Convenção Geral de 1930, a primeira de uma série de convenções ocorridas
durante o século XX, quando as lideranças assembleianas suecas se mostravam minoritárias,
ocorreu a passagem da direção do trabalho para os brasileiros. A sede da denominação foi
transferida de Natal para o Rio de Janeiro.
Essa nacionalização ocorreu quando a igreja ainda era muito
nortista/nordestina, o que contribuiu para sedimentar uma característica que
subsiste até hoje. […] A mentalidade da AD carrega as marcas dessa dupla
origem: da experiência sueca das primeiras décadas do século, de
marginalização cultural; e da sociedade patriarcal e pré-industrial do
Norte/Nordeste dos anos 30 a 60 (FRESTON, 1994: 117).
Apesar dos controles sociais em matéria de doutrinas e usos e costumes, ocorreram
cismas dentro das Assembléias. Em 1930 formou-se a denominação Assembléia de Deus de
46
Madureira, fundada por Paulo Leivas Macalão, que havia entrado em discordância com os
missionários suecos. A discussão surgiu em torno do purismo e do radicalismo da mensagem
proposta por Macalão, cuja severidade no trato com os usos e costumes era bem mais
explícita. Até a morte de Macalão, em 1982, o cisma não foi formal, não havia uma
Convenção independente. Entretanto, após a morte de Macalão as pressões sobre a AD de
Madureira, para que sua ação fosse mais fiel à prática tradicional das AD, resultaram na sua
exclusão da Convenção Geral, fato que acarretou a formação de outra Convenção, em 1989, a
Convenção Nacional das Assembléias de Deus de Madureira (Conamad).
De todo modo, não há grande discrepância doutrinária ou teológica entre ambas as
Convenções. Os cargos dentro da igreja são ocupados majoritariamente por homens e seguem
a seguinte escala: auxiliar do trabalho, diácono, presbítero, evangelista e, por fim, pastor.
Atualmente, as Assembléias de Deus são marcadas por uma forte pluralidade social e
teológica. Esta última tem suas raízes em querelas relacionadas à exegese bíblica. Quando os
embates tornam-se insustentáveis os membros insatisfeitos desligam-se da igreja e fundam
outro ministério, apesar de ainda continuarem ligados à CGADB (Convenção Geral das
Assembléias de Deus no Brasil). Já no quesito da pluralidade social, as identificações mais
tradicionais da AD, principalmente as externas, estão sendo postas em xeque por uma nova
classe de membros que experimentam um processo de ascensão social, causando certo mal-
estar entre as alas mais conservadoras da igreja (MINA, 2004).
1.4. Igreja Universal do Reino de Deus
A IURD é considerada a principal denominação surgida na terceira onda do
pentecostalismo brasileiro (FRESTON, 1994). Foi fundada em 1977, ou seja, sessenta e seis
anos separam-na da fundação da Assembléia de Deus. A IURD é uma das igrejas nascidas sob
inspiração da igreja Nova Vida15
. Como boa parte das igrejas denominadas neopentecostais, a
IURD também começou como um pequeno ponto de reuniões, fruto de uma dissidência.
De fato, os primeiros cultos se deram na sala de uma ex-funerária no bairro da
Abolição, subúrbio da zona norte do Rio de Janeiro. Boa parte da grande aceitação da IURD,
15
Dissidente da Assembléia de Deus e fundador da Nova Vida no Rio de Janeiro, o canadense Robert McAlister
foi um profícuo pregador e escritor evangélico que soube fazer uso dos meios de comunicação de massa.
Pioneiro em atrair a classe média para o meio pentecostal, McAlister proporcionou nos anos 60 um verdadeiro
“curso preparatório” sobre batalha espiritual e teologia da prosperidade àqueles que seriam os líderes durante
a nascente terceira onda do movimento pentecostal.
47
no Brasil e no exterior, se deu a partir das idiossincrasias em matéria de estratégias midiáticas
de seu líder máximo, Edir Bezerra Macedo.
Nascido em 1945, na cidade de Rio das Flores, Rio de Janeiro, Edir Macedo cresceu
numa família pobre de migrantes (MARIANO, 1999). O pai, Henrique Francisco Bezerra, era
um pequeno comerciante, a mãe, Eugênia Macedo Bezerra, era dona de casa e deu a luz trinta
e três filhos, dos quais apenas sete sobreviveram. Em 1962, quando contava 17 anos, começou
a trabalhar na Loteria do Rio, agência da qual se desligou em 1981. Um dos diferenciais de
Macedo, em comparação aos líderes das denominações pentecostais anteriores, foi sua
experiência universitária: matemática, na Universidade Federal Fluminense, e estatística, na
Escola Nacional de Ciências e Estatística. Entretanto, não concluiu nenhum dos cursos. Aos
18 anos, em 1963, converte-se ao pentecostalismo na Igreja de Nova Vida. Antes, porém,
havia frequentado os bancos da Igreja Católica e as tendas de Umbanda.
Depois de congregar durante doze anos na Nova Vida, em 1975 Macedo resolve
deixar a igreja. De acordo com Mina (2004), as razões para a saída de Macedo foram o
elitismo cultivado pela denominação, barrando a participação nos trabalhos às camadas mais
pobres, e a falta de apoio às suas atividades de evangelização, consideradas deveras
agressivas. Assim, acompanhado de Romildo Ribeiro Soares, Roberto Augusto Lopes e dos
irmãos Samuel e Fidélis Coutinho, criou a igreja Cruzada do Caminho Eterno. Para tanto, R.
R. Soares e Edir Macedo deviam, antes, ser consagrados pastores por alguma denominação
pentecostal.
A consagração veio por meio do missionário Cecílio Carvalho Fernandes, da Casa da
Benção. Pouco tempo depois da fundação da nova denominação, mais um cisma. Edir
Macedo, Romildo Soares e Roberto Lopes saíram da denominação Caminho Eterno e
fundaram, em 9 de julho de 1977, a Igreja Universal do Reino de Deus. Inicialmente, Romildo
Soares, cunhado de Macedo, assumiu o papel de liderança na nova denominação, mas teve
sua autoridade paulatinamente questionada pelas atitudes de Macedo, cujo discurso era bem
mais aguerrido. Para que se resolvesse a questão, Macedo propôs que uma votação fosse
realizada entre os pastores. Macedo saiu vencedor. Em 1980, R. R. Soares se desligou
oficialmente da IURD, fundando, com a compensação financeira conseguida, a Igreja
Internacional da Graça de Deus.
Andréia Mendes Mina (2004) argumenta que, diferentemente da AD, a IURD foi uma
denominação das grandes cidades desde o princípio da sua expansão. A primeira década da
igreja foi marcada pelo crescimento numérico dos templos, majoritariamente na região
sudeste. As primeiras igrejas foram fixadas no Rio e dois anos depois chegaram a São Paulo e
48
Minas Gerais. Em 1980 estavam na Bahia e no Paraná. Na região norte do país,
estabeleceram-se em 1988. Em 1985 a IURD já estava presente em quase todas as capitais
brasileiras.
Apesar de ter expandido suas fronteiras em território nacional, atualmente ainda há
uma concentração mais forte de templos e fiéis iurdianos no Rio de Janeiro, vindo logo em
seguida São Paulo e Bahia. A inauguração dos trabalhos da IURD pelos Estados deu-se
seguindo o seguinte itinerário: Rio de Janeiro, 1977; São Paulo e Minas Gerais, 1979; Paraná
e Bahia, 1980; Paraíba, 1981; Distrito Federal, Pernambuco e Rio Grande do Sul, 1982;
Sergipe, Pará e Ceará, 1983; Maranhão e Mato Grosso do Sul, 1985; Santa Catarina, 1986;
Alagoas, Rio Grande do Norte, Piauí e Espírito Santo, 1987; Mato Grosso e Rondônia, 1988;
Amazonas e Goiás, 1989; Amapá, 1991; Roraima e Tocantins, 1993.
Além do crescimento dentro do Brasil, a IURD investiu, desde os primórdios, em sua
expansão no exterior. Atualmente a igreja está presente em países dos cinco continentes.
Alguns exemplos de localidades onde a igreja possui templos entre os países americanos:
Canadá, Estados Unidos, México, Argentina, Bolívia, Chile, Colômbia, Equador, Guiana
Inglesa, Paraguai, Peru, Uruguai, Venezuela; entre os países europeus: Alemanha, Bélgica,
Espanha, França, Grécia, Holanda, Inglaterra, Irlanda, Itália, Luxemburgo, Polônia, Portugal,
Romênia, Suécia, Suíça; entre os países africanos: África do Sul, Angola, Botsuana, Cabo
Verde, Camarões, Congo, Costa do Marfim, Etiópia, Gabão, Gana, Guiné Bissau, Lessoto,
Madagascar, Malawi, Moçambique, Namíbia, Nigéria, Quênia, São Tomé e Príncipe, Senegal,
Suazilândia, Tanzânia, Zâmbia, Zimbábue; entre os países asiáticos: China, Filipinas, Índia,
Israel, Japão, Rússia; entre os países da Oceania: Austrália e Nova Zelândia.
Há calorosos debates entre os estudiosos sobre quais foram os fatores determinantes na
expansão iurdiana (MARIANO, 1999; CAMPOS, 1999). Apresentaremos alguns pontos, os
quais parecem ser pontos assentes entre os pesquisadores. Para termos uma noção do caráter
meteórico da expansão iurdiana, no início da década de 1980 haviam apenas 21 templos em 5
Estados brasileiros; já em 1989 a IURD possuía mais de 571 templos espalhados pelo país.
Por volta do ano de 2004, o número de igrejas sob a autoridade de Edir Macedo ultrapassava
4000 templos, somente no Brasil. Quanto às explicações desta carreira bem sucedida entre os
pentecostais, elegemos duas teses entre as apresentadas até então. A primeira tese ressalta as
características específicas do uso dos meios de comunicação pela liderança iurdiana. A
segunda tese fala-nos sobre a formação, organização e hierarquia dos pastores.
Sem dúvida alguma uma das chaves do sucesso da IURD é exatamente o uso que esta
instituição faz dos meios de comunicação. Já desde os primeiros passos na carreira do
49
ministério, quando ainda não era o líder máximo na IURD, Edir Macedo não hesitou em
trabalhar no rádio para propagar sua mensagem, fazendo-se conhecer. Começou com um
programa de 15 minutos, alugados na Rádio Metropolitana do Rio de Janeiro.
As lideranças pentecostais, de acordo com Mariano (1999), em geral, preferem o rádio
à TV. São pelo menos três as razões dessa predileção: o menor preço de locação ou de compra
das emissoras, seu baixo custo de manutenção e sua elevada audiência entre os estratos mais
pobres da população. Sendo acentuadamente inferior ao custo do televangelismo, o
radioevangelismo resulta em benefício proselitista bem superior. Daí que são poucas as
igrejas que optaram por concentrar a maior parte de seus investimentos em propaganda
religiosa na TV. Embora seja a denominação brasileira que mais investiu na aquisição de
emissoras de televisão, a Universal prioriza a evangelização pelo rádio.
A razão pela qual investe tantos recursos na compra de emissoras de rádio é
óbvia: sua eficácia proselitista associada à grande audiência desse veículo de
comunicação nos lares dos estratos mais pobres da sociedade, justamente os
mais propensos ou suscetíveis à conversão pentecostal. As emissoras de
rádio AM e FM da Universal fazem proselitismo 24 horas por dia. [...] A
utilidade das rádios para a expansão da igreja é múltipla, crucial. Elas atraem
grande número de pessoas por meio de testemunhos e promessas de bênçãos,
possibilitam a implantação de novas congregações, divulgam a programação
e os eventos da igreja. Contribuem ainda para sua unidade ministerial, ao
transmitirem a “fórmula” (as correntes de oração e os temas de pregação)
semanal a ser adotada pelos pastores em todo o país (MARIANO, 1999: 68-
69).
Ricardo Mariano acrescenta à discussão um trecho de uma entrevista com Carlos
Magno, ex-líder da IURD no Nordeste, referindo-se à importância do rádio na expansão da
IURD.
“A implantação da igreja é praticamente igual em qualquer lugar. Em João
Pessoa, por exemplo, consegui um horário na rádio e comecei a pregar o
evangelho. Arranjei um clube e marquei para fazer reuniões aos domingos.
Muita gente ia porque ouvia o rádio. Começa assim: um núcleo a partir de
um programa de rádio ou televisão e dali nasce a igreja. Só então você aluga
um lugar para reunir as pessoas. Foi assim que começou a Universal no Rio,
com horário alugado na Rádio Metropolitana, na época um programa de 15
minutos. Em Natal, eu implantei a igreja e consegui um horário na televisão,
coloquei na TV Ponta Negra, do senador Carlos Alberto, e depois de 15 dias
fui lá fazer a reunião. E assim implantei a Universal em todos os Estados do
Nordeste, exceto no Ceará” (JORNAL DA TARDE, 2 abr. 1991 apud
MARIANO, 1999: 69).
Atualmente, a IURD é proprietária da TV Mulher, da Rede Record (com 63 emissoras,
sendo 21 delas próprias), 62 emissoras de rádio no Brasil, Gráfica Universal (que publica a
Folha Universal, cuja tiragem semanal supera a cifra de 1,5 milhões de exemplares), Editora
50
Universal Produções, Ediminas S/A (que edita o jornal Hoje em Dia, de Belo Horizonte). A
compra da Record, em fins de 1989, serviu para aumentar tanto sua possibilidade de acesso
aos fiéis quanto seus rendimentos.
A acomodação às necessidades de um público-alvo situado entre as novas demandas
apregoadas pela pós-modernidade nascida em meio à tradicional penúria e miséria terceiro-
mundista, fez com que a IURD desenvolvesse discursos e práticas que abarcam uma gama
muito maior da sociedade do que o pentecostalismo assembleiano, tipologicamente
caracterizado como “clássico” (FRESTON, 1994), era capaz de alcançar.
Do ponto de vista comportamental, é a mais liberal. Haja vista que suprimiu
características sectárias tradicionais do pentecostalismo e rompeu com boa
parte do ascetismo contracultural tipificado no estereótipo pelo qual os
crentes eram reconhecidos e, volta e meia, estigmatizados. De modo que
seus fiéis foram liberados para vestir roupas da moda, usar cosméticos e
demais produtos de embelezamento, freqüentar praias, piscinas, cinemas,
teatros, torcer para times de futebol, praticar esportes variados, assistir a
televisão e vídeos, tocar e ouvir diferentes ritmos musicais. Práticas que, nos
últimos anos, também foram sendo paulatinamente permitidas por igrejas
pentecostais das vertentes precedentes, com exceção da Deus é Amor, que
manteve incólume a velha rigidez ascética. Em todas as vertentes
permanece, porém, a interdição ao consumo de álcool, tabaco e drogas e ao
sexo extraconjugal e homossexual (MARIANO, 2004: 124).
A organização do maquinário humano do pastorado que a Universal arregimenta e
administra também é um dos elementos que influenciaram em seu crescimento. Em 1980,
Edir Macedo estabeleceu o governo eclesiástico episcopal. Assumiu o posto de bispo primaz e
o cargo vitalício de secretário-geral do presbitério. Renunciou, contudo, em 1990, para evitar
que eventuais sanções penais contra si atingissem a igreja.
Temendo que seu substituto na liderança da IURD no Brasil, Renato Suhett, agregasse
muito poder, Macedo, que estava vivendo nos EUA, consagrou dezenas de novos bispos para
que pudessem assumir funções diretivas em nível regional, estadual e nacional. Esta estratégia
também visava evitar cismas, pois, Macedo reestruturou o poder eclesiástico, criando três
instâncias hierárquicas: Conselho Mundial de Bispos, Conselho de Bispos do Brasil e
Conselho de Pastores. Com isso, a igreja manteve os princípios de verticalidade e
concentração de seu governo episcopal, que continuou encimado por Edir Macedo.
Mas a continuidade do trabalho só é possibilitada pelo enorme número de pastores e
obreiros do qual dispõe. O trabalho dos pastores é, minimamente, estafante. O pastor comanda
os cultos em todos os seus aspectos, ora, canta, prega e faz os pedidos de ofertas. São, em sua
maioria, jovens e incentivados a não terem filhos para poderem se dedicar ainda mais à obra
iurdiana. Estão sempre realizando três ou quatro cultos diários, além de aconselhamento e
51
trabalhos nas rádios. Não possuem autonomia alguma em matéria da arrecadação de dízimos e
ofertas e, tampouco, acerca dos grandes temas sobre os quais deverão pregar em cada uma das
campanhas. As decisões são tomadas pelos bispos que, para evitar que pastores e congregação
criem laços muito fortes – correndo o risco de cismas – fazem com que haja uma rotatividade
de pastores em cada igreja. Um pastor nunca permanece mais do que dois anos no mesmo
templo (MINA, 2007).
Como o reino dos céus está ao alcance de todos aqui na terra, não há mistérios ou
mensagens herméticas a desvendar. Basta instar para que se aceite a Cristo, declarar
verbalmente já ter recebido suas promessas bíblicas, ser fiel nos dízimos, generoso nas ofertas
e ter fé (MARIANO, 2004). Aliás, alinhados com a teologia da prosperidade, os pastores
iurdianos são extremamente insistentes no quesito dízimos e ofertas, mesmo porque será a
capacidade de arrecadação que determinará sua ascensão na hierarquia eclesiástica. Quanto
mais arrecadarem, mais abençoados pela ação do Espírito Santo será o ministério de
determinado pastor, ao menos assim entendem.
A eficiência arrecadadora da Universal se deve em grande parte à sua
agressividade, insistência e incomparável habilidade persuasiva nessa
matéria. Quem não paga o dízimo, advertem os pastores, rouba a Deus, que,
na condição de dono de todas as riquezas existentes, exige de volta 10% dos
recursos que concede aos seres humanos. Dinheiro que deve ser empregado
cabalmente na realização da obra de evangelização. Essa concepção se alia à
crença de que só alcança bênçãos quem tem fé. No caso, ter fé significa crer
piamente no que os pastores pregam e agir conforme os ditames dessa
pregação. Para provar a própria fé e granjear as recompensas decorrentes do
exercício dessa virtude teologal, os fiéis são induzidos a realizar sacrifícios
ou desafios financeiros. Como o tamanho da fé se mede pelo maior ou
menor risco que assume no ato de doação, quem deseja demonstrar elevada
fé precisa assumir grandes riscos financeiros ou realizar grandes desafios.
Até porque, promete-se, quanto maior o desafio, maior a retribuição divina
(MARIANO, 2004: 129).
Dentro desse quadro de simplificação e pragmatismo, a formação teológica do corpo
de pastores iurdianos é mínima. De fato, por muitos anos a IURD manteve no Rio de Janeiro
a Faculdade Teológica do Reino de Deus, porém, cerrou as portas da instituição ao perceber
que as minúcias dos debates teológicos só serviam ao propósito de afastar cada vez mais seus
pastores das demandas imediatas de seus membros. A manutenção de uma linguagem
coloquial por parte dos pastores, que não raras vezes apropriam-se de gírias e regionalismos
para ressignificá-los num contexto que sirva aos interesses proselitistas da IURD, auxilia na
constituição de um ambiente de familiaridade. Os pastores buscam “falar a língua do povo”.
52
Outra tendência marcante da IURD que, de certa forma auxiliou em sua ascensão e
abriu um precedente a ser seguido por outras denominações pentecostais e neopentecostais, é
seu investimento na obra política. Elencamos, brevemente, alguns candidatos eleitos com o
apoio político direto da IURD: um deputado federal em 1986, quatro deputados federais em
1990, seis em 1994, quatorze em 1998, vinte e dois em 2002. Também, no mesmo ano de
2002, a IURD conseguiu eleger o senador Marcelo Crivella (PL-RJ). Além disso, a igreja
conta com diversos vereadores e deputados estaduais espalhados pelo país (MARIANO,
2004).
Como vimos neste capítulo, as origens das igrejas pentecostais brasileiras remontam
aos movimentos de grandes avivamentos ingleses e estadunidenses de fins do século XVIII e
decorrer do século XIX. Foram no seio desses movimentos que ocorreram a valorização e a
sistematização teológico-doutrinária que fizeram dos arroubos emocionais indicadores de
experiências espirituais. A glossolalia, o falar em línguas estranhas, determinou o coroamento
deste processo formativo que, em fins do século XIX, marcaria o desenvolvimento do
pentecostalismo propriamente dito. Por sua vez, o pentecostalismo trouxe como principal
característica a crença na atualidade da ação do Espírito Santo por meio dos dons espirituais,
tal qual ocorria – segundo acreditam os mesmos pentecostais – nos tempos da Igreja
Primitiva, como é relatado no livro de Atos dos Apóstolos.
Analisamos, também, as principais tipologias utilizadas para nortear os estudos acerca
dos pentecostais. Tipologias estas que procuram marcar as diferenças entre as distintas formas
de expressões doutrinais, teológicas e de práticas que se desenvolveram entre os pentecostais
no decorrer do século XX. Discutimos brevemente sobre quais elementos – em termos de
práticas e doutrinas – incidem os recortes tipológicos desenvolvidos pelos autores clássicos na
área. Problematizamos, preliminarmente, que a Batalha Espiritual, enquanto prática
identitária, não deveria ser tomada como elemento fundante de qualquer tipologia que busque
marcar diferenças entre segmentos pentecostais, haja vista que ela configura-se como prática
necessária e inescapável na composição do processo de identificação com o imaginário
evangélico-pentecostal, seja para assembleianos de 1911, seja para iurdianos de 1990.
Aprofundaremos essa discussão específica no capítulo seguinte. Por fim, apresentamos um
sucinto histórico das denominações que nos serviram para desenvolver nossa proposta
conceitual de evangélico-pentecostais como recorte tipológico fundado no que Assembléia de
Deus e Igreja Universal do Reino de Deus têm em comum. Essa unidade está em função do
arcabouço identitário composto por sete representações coletivas que, constitutivas do
imaginário social evangélico-pentecostal, produzem e mantém sentido à Batalha Espiritual.
53
Quais são estas representações e como se desdobram em práticas são temas que
aprofundaremos nos capítulos que se seguem.
54
2. Uma questão de identidade: a Batalha Espiritual
Nas diferenças doutrinárias existentes entre evangélicos, os pentecostais
procuram funcionar cooperativamente, porque as Escrituras ensinam-nos a
manter a unidade do Espírito até que todos cheguemos à unidade da fé. Nós
afirmamos que as verdades que nos unem são muito maiores que as
diferenças que parecem nos separar. Num honesto esforço de exaltar Cristo,
e em reconhecimento da tarefa de alcançar o mundo perdido, os pentecostais
procuram cooperar com cada membro do corpo de Cristo, para glorificar a
Deus (ZIMMERMAN, T. F. in ARTIGOS Históricos – Mensageiro da Paz,
2004: 31-32. Grifos nossos).
Com o objetivo de corroborar a constituição de sentido à Batalha Espiritual como
necessária e inescapável nas identificações com a mensagem evangélico-pentecostal de fé,
rastreamos e analisamos representações coletivas provenientes de diferentes fontes
documentais de natureza teológico-doutrinárias. Desse modo, pudemos questionar os autores
que consideravam a Batalha Espiritual um elemento marcadamente ligado às mais recentes
formas de fé pentecostal (neopentecostais ou pós-pentecostais). A Batalha Espiritual já
compunha a identidade evangélico-pentecostal, desde a formação da Assembléia de Deus no
início do século passado, como elemento constitutivo. Seguindo a sugestão do pastor
assembleiano T. F. Zimmerman, citado acima, propomos que determinadas representações
coletivas podem ser entendidas como “verdades” que unem os pentecostais. Apesar das
discrepâncias doutrinárias, em certos aspectos de seu proceder os crentes estão em maior
uniformidade do que nos dá a entender a enorme quantidade de subdivisões denominacionais.
Assembléia de Deus e Igreja Universal do Reino de Deus possuem, minimamente, uma
Batalha Espiritual em comum.
Para termos acesso a esta Batalha Espiritual, estudamos – e passamos a apresentar – os
elementos básicos que lhe fornecem sentido. Estes elementos básicos serão encarados em
termos de representações coletivas, haja vista sua capacidade de nortear as práticas e mediar
os julgamentos de valor daqueles que se identificam com o imaginário social evangélico-
pentecostal.
Nossa principal preocupação nesta pesquisa foi demonstrar que a Batalha Espiritual –
como experiência vivenciada, como vocabulário compartilhado, como meta a cumprir-se –,
diferentemente do que foi apregoado por alguns estudiosos de renome na área (FRESTON,
1992; MARIANO, 1999; BITUN, 2008), já integrava plenamente o imaginário social dos
55
primeiros evangélico-pentecostais (AD). Esta integração da Batalha Espiritual nos processos
de identificação não era parcial, atenuada ou incompleta, como sugeriram tais autores. Pelo
contrário, os elementos necessários para a manutenção do sentido à Batalha Espiritual – as
representações coletivas componentes – se fazem presentes, como cremos ter demonstrado,
desde os primórdios do movimento pentecostal no Brasil. Para objetivar nossa análise,
passamos à discussão acerca do arcabouço identitário evangélico-pentecostal.
Consideramos que a Batalha Espiritual configura-se, basicamente, como experiência
de conflito engendrada inescapavelmente na identificação com o imaginário social
evangélico-pentecostal. Este conflito de cunho identitário predica a demonização da alteridade
que se dá nos arranjos imaginários traduzidos em constelações de representações
historicamente compartilhadas pelas comunidades pentecostais. A experiência de conflito
vivenciada pelo sujeito, com vistas a manter-se prenhe de sentido, precisa efetivar-se na ação
prática, em sua cotidianidade. A crença e a efetiva participação na Batalha Espiritual é parte
indispensável na constituição do sentido de temporalidade (plano divino de Salvação) e
espacialidade (territórios sagrados e profanos) aos evangélico-pentecostais. O evangélico-
pentecostal entende o passado, o presente e o futuro como diferentes dimensões temporais que
cooperam no cumprimento do plano divino de Salvação da humanidade pecadora. A
efetivação deste plano divino está no futuro e pode ser entendida como uma representação
coletiva específica, a Parousia – o retorno de Cristo: Jesus prometeu voltar uma segunda vez
para arrebatar seus seguidores.
Para que tal retorno se realize, todo o mundo deve ser evangelizado. Nesta ordenança,
encontramos a origem de uma segunda representação coletiva, a Grande Comissão. As
representações coletivas Parousia e Grande Comissão configuram, basicamente, aplicando-se
as categorias de análise temporal desenvolvidas por Koselleck (2006), o horizonte de
expectativas dos crentes.
Com o objetivo de tornar-se parte integrante do “corpo de Cristo”, ou seja, a igreja, o
recém convertido evangélico-pentecostal precisa ser iniciado em, minimamente, duas
ritualísticas específicas: ser batizado por imersão nas águas e participar da Santa Ceia. Os
ritos do batismo nas águas e da Santa Ceia também podem ser tomados como poderosas
representações coletivas. A particularidade destas representações se assenta no fato de ambas
as ritualísticas apontarem para a dimensão passada. Batizar-se nas águas é repetir o ritual do
novo nascimento inaugurado por Jesus nos primórdios de seu trabalho evangelístico. A
participação na Santa Ceia impinge no crente o sentimento de fazer-se herdeiro da fé de
incontáveis gerações de cristãos que mantiveram intacta a bimilenar celebração instituída por
56
Jesus pouco antes de sua crucificação. O batismo nas águas e a celebração da Santa Ceia
configuram-se como representações coletivas que, na esteira de seu alto valor simbólico,
desdobram-se em experiências práticas que auxiliam na composição do espaço de
experiências compartilhadas pela comunidade evangélico-pentecostal.
Numa adaptação do quadro de referências de Kosellec (2006), introduziremos uma
dimensão presente articulando horizonte de expectativas e espaço de experiências. Sabemos
que o autor não criou os conceitos para serem entendidos como blocos sem comunicação.
Tanto o horizonte de expectativas quanto o espaço de experiências de determinada
comunidade social compõe e participa na constituição das vivências identitárias desta mesma
comunidade apontando tanto para a tradicionalidade de símbolos compartilhados quanto para
realizações desdobradas em práticas na dimensão presente, na agência do sujeito. Porém, para
objetivar com mais precisão o arcabouço identitário que propomos, inserimos a dimensão
presente aquém das duas outras dimensões temporais no afã de organizar estruturalmente a
análise do imaginário social evangélico-pentecostal.
Na dimensão temporal presente gravitam três representações coletivas que poderiam
facilmente ser apresentadas instanciando tanto as expectativas futuras quanto as experiências
passadas: o Biblicismo, o batismo com o Espírito Santo e o Dualismo. As duas primeiras
representações coletivas caracterizam-se como uma preparação constante, verdadeira
propiciação, que o crente deve cultivar para tornar-se e manter-se apto aos embates
espirituais. A última representação coletiva elencada na dimensão temporal presente, o
Dualismo, perpassa, em especial, toda a visão de mundo evangélico-pentecostal. Preferimos
elencá-la na categoria “presente” para marcar a diferença e abrangência de sua natureza
social, que será discutida quando, mais adiante, analisarmos uma a uma cada representação
coletiva.
Temos, assim, o arcabouço identitário mínimo com sete representações coletivas
específicas que unem assembleianos e iurdianos no cumprimento de sua missão cristã.
Espaço de experiências
- Passado
Presente
Horizonte de
expectativas –
Futuro
Representações
Coletivas
- Santa Ceia
- Batismo nas águas
- Biblicismo
- Batismo no Espírito
Santo
- Dualismo
- Grande Comissão
- Parousia
Quadro 1: Representações coletivas componentes do arcabouço identitário evangélico-pentecostal
57
A Batalha Espiritual encontra sustentação e sentido a partir dos arranjos ou
constelações dessas sete representações coletivas constitutivas do imaginário social comum
aos assembleianos e iurdianos.
A missão última dos crentes seria “alcançar o mundo perdido”. Concordamos com o
pastor Zimmerman, citado no início do capítulo, ao elencar os objetivos que fazem os
pentecostais cooperarem em unidade, a saber: o esforço de exaltar a Cristo e o
reconhecimento da tarefa de alcançar o mundo perdido. Os evangélico-pentecostais se
entendem inseridos num mundo marcadamente dualista. O dualismo, entendido neste trabalho
como uma representação coletiva, demarca os nítidos e pretensamente imutáveis contornos do
“mundo” no qual se inserem os crentes. Utilizaremos o termo mundo entre aspas sempre que
estivermos nos referindo ao mundo criado a imagem e semelhança da identidade evangélico-
pentecostal. Tal “mundo” é reflexo da realidade espiritual maior que o engloba e define. O
“mundo” dos evangélico-pentecostais é, em essência, um lugar onde o mal é a regra. A
exceção a essa regra é o poder de Jesus acionado por intermédio dos verdadeiros cristãos.
Nesse mundo dualista as forças cósmicas do bem e do mal (tais forças são boas ou más
em essência) combatem incansavelmente pela posse das almas humanas. O evangélico-
pentecostal toma socialmente consciência de si como um indivíduo esclarecido em meio a
uma sociedade de perdidos pecadores incapazes de perceberem verdades espirituais muito
sérias e “reais”16
. De fato, no entendimento do fiel, o Diabo está por trás do que ocorre neste
mundo.
Esta construção mesma, “por trás”. Trata-se de uma locução adverbial de lugar que,
quando enunciada, apesar de indicar o local no qual se esgueira a força maligna – por trás das
aparências mundanas, lugar essencialmente espiritual no além –, acaba por referendar no
crente um determinado poder. Este seria o poder de perceber, acessar, vislumbrar algo
indispensável para compreender o verdadeiro andamento do “mundo”. Os evangélico-
pentecostais tomam o mundo físico como um mero reflexo das batalhas que ocorrem
primordialmente no mundo espiritual. Os conflitos pela posse das almas humanas, na mesma
medida em que são travados no espiritual, refletem no “mundo” dos evangélico-pentecostais.
Decorre daí que unicamente aqueles que percebem o mundo espiritual podem entender, em
toda sua complexidade, o mundo físico. Da sobreposição do mundo espiritual e do mundo
físico surge o “mundo” no qual vive e interage o crente.
16
No capítulo quarto, ao apresentarmos o Episódio Vaca Brava, desenvolveremos melhor a ideia da
incapacidade de perceber a “verdade espiritual” que marca a vida dos não evangélicos.
58
Tomando a Bíblia como referência inquestionável e interpretando seu texto de forma
literal, os evangélico-pentecostais colocam-se em combate ombreados pelas hostes angelicais.
Tentam convencer o maior número possível de pessoas a se afastarem das forças do Mal. Para
convencê-las e salvá-las, os crentes precisam fazer com que seus interlocutores reconheçam-
se como “perdidos”. Os perdidos são os não crentes. Demonizam, assim, as práticas sociais –
religiosas ou não – anteriores à conversão do não crente, ou gentio. Todos os ambientes do
cotidiano do crente (escola, trabalho, lazer, etc.) são espaços nos quais, potencialmente, ele
poderá exercer seu papel de “guerreiro espiritual” esperando surgir apenas um momento
oportuno à pregação (alguns não esperam oportunidades, forçam-nas nos locais mais
inusitados).
Há, também, entre os evangélico-pentecostais, uma categorização que divide todo o
contingente populacional do “mundo” em três grupos: os gentios, aqueles também chamados
“do mundo”; os judeus, o “relógio de Deus”17
; e os chamados “salvos”, “crentes”, “santos”,
etc., aqueles a quem está destinado o paraíso eterno junto a Deus.
Desse modo e a partir destes recortes identitários (Eu – Outros), a identificação com o
imaginário social evangélico-pentecostal predica a violência no trato com a alteridade, pois,
na medida em que apregoa a mensagem da Salvação o crente é obrigado, ao preço de ver
colapsar sua identidade se não fazê-lo, a convencer seu interlocutor de sua perdição. A
mensagem da perdição antecede necessariamente a mensagem da salvação. No trabalho do
convencimento por meio do discurso, o evangélico-pentecostal realiza a demonização das
práticas religiosas que não coadunam com sua visão de mundo. Tal demonização ocorre
baseada na ressemantização das práticas e conteúdos religiosos disponíveis no multifacetado
quadro religioso brasileiro.
A manifestação de intolerância por parte dos evangélicos se configura como uma
manifestação de sua religiosidade própria, não sendo entendida pelo evangélico-pentecostal
como um ato execrável de desrespeito. Antes, o crente vê sua “pregação da verdade” como
um mandamento basilar que, segundo seu entendimento, quando efetivado, poderá ser a
última chance de salvação para o gentio “perdido pecador”. Crendo não estarem abertos às
influências de outras visões de mundo, os evangélico-pentecostais cultivam uma postura não
dialógica em relação à verdade espiritual. Postura essa que arrefece a convivência pautada no
respeito com outras religiões e formas de religiosidades.
17
Pois os eventos que marcam a história do povo judaico nutrem a escatologia evangélico-pentecostal e a
informa sobre o “fim dos tempos”.
59
Assim sendo, o modo como é entendida a Batalha Espiritual neste trabalho faz com
que a consideremos para além das lutas contra espíritos malignos encenadas nos cultos das
grandes catedrais iurdianas (OLIVEIRA, 2007). A Batalha Espiritual, como parte constitutiva
do imaginário social evangélico-pentecostal, desdobra-se como um modo específico de estar
no espaço (territorializando-o como “santo”) e no tempo (vivenciando-o como “Plano
Divino”). Estas apropriações são levadas a cabo por intermédio das sete representações
coletivas apresentadas anteriormente. Veremos que elas surgem primeiramente nos
documentos provenientes da AD e são reincidentes em textos da IURD. Constituem o que
chamamos arcabouço identitário evangélico-pentecostal. Acreditamos que os autores que
estudam os neopentecostais, ao fazerem recair sua atenção aos embates performáticos de
exorcismos nos cultos de denominações neopentecostais como a IURD, exorcismos estes
exacerbadamente propagandeados por diferentes mídias, acabam por tomar a Batalha
Espiritual contra o mal como elemento que fundamenta – num grau de excepcionalidade – a
divisão tipológica neopentecostal ou de terceira onda. Tais estudos servem para reforçar a
ideia equivocada de que a Batalha Espiritual foi pouco desenvolvida no imaginário social da
AD do início do século XX.
Como o fizeram Ricardo Mariano (1999) e Freston (1992), considera-se que as
vertentes pentecostais precedentes ao neopentecostalismo – pentecostalismo clássico,
pentecostalismo histórico, deuteropentecostalismo, pentecostalismo neoclássico – não
dispunham do acervo teológico da Batalha Espiritual.
Por intermédio do estudo da permanência histórica do arcabouço identitário
compartilhado entre assembleianos e iurdianos, demonstramos que a Batalha Espiritual, em
termos de suas representações coletivas fundantes, já estava presente no imaginário
assembleiano desde as primeiras décadas do século XX.
Não queremos, contudo, negar a validade histórica do modelo tipológico proposto por
Mariano (1999) a partir de Freston (1992), a saber, a divisão dos pentecostalismos em três
ondas: pentecostalismo clássico, deuteropentecostalismo e neopentecostalismo. Acreditamos
que as distinções sociológicas – as descontinuidades históricas –, sobretudo as existentes entre
pentecostalismo clássico e neopentecostalismo, são possíveis e convenientes para
fundamentar uma abordagem científica. Devem, entretanto, se sustentar por meio da análise
de outros fatores sócio-históricos que influíram na descontinuidade interpretativa das sete
representações coletivas componentes do arcabouço identitário evangélico-pentecostal. A
Batalha Espiritual como experiência – mais ou menos “intensa” – não é um elemento que
fundamente com razão as distinções tipológicas. No tópico que se segue sugerimos outra base
60
a partir da qual, acreditamos, podem ser pensadas as distinções e descontinuidades históricas
entre pentecostalismo clássico (AD) e neopentecostalismo (IURD).
2.1. Contextualizando: santidade próspera e/ou prosperidade santa
Freston (1992), Siepierski (2008) e Mariano (1999) concordam que três elementos
podem, basicamente, ser considerados centrais quando estudamos as transformações ocorridas
no pentecostalismo brasileiro do século XX. Seriam eles: a teologia da prosperidade, a
negação dos sinais exteriores de santidade e a exacerbação da Batalha Espiritual. Ou seja,
uma aquisição no nível teológico, uma negação na esfera da tradição e uma “mudança de
ênfase”.
A aquisição no nível teológico seria a teologia da prosperidade. Segundo os autores, a
análise dos desdobramentos da “chegada” desta teologia, proveniente dos púlpitos norte-
americanos da década de 1940, predica um olhar sobre a recepção e adaptação desta mesma
mensagem a partir da realidade sócio-histórica da membresia brasileira ocorrida quando da
sua apropriação pelo discurso pentecostal brasileiro. A negação na esfera da tradição se deu
quanto aos “usos e costumes” – rígido comportamento ascético e sectário da AD – que, por
sua vez, pode ser entendida por meio de estudos que incidam sobre as transformações nas
demandas sociais, hábitos de consumo e contextualização das transformações
culturais/contraculturais na segunda metade do século XX. Assim, pode ser rastreada a
paulatina negação dos sinais exteriores de santidade empreendida no avanço do
neopentecostalismo. Finalmente, a mudança de ênfase teria ocorrido no âmbito da Batalha
Espiritual.
Trataremos rapidamente dos dois primeiros pontos históricos de defasagem entre
pentecostalismo e neopentecostalismo: a aquisição da teologia da prosperidade e negação dos
sinais exteriores de santidade. Nosso propósito nesta seção se assenta na análise e crítica
daquilo que foi trabalhado por Mariano (1999) como a suposta exacerbação da Batalha
Espiritual, daí realizarmos uma apresentação sucinta dos dois pontos iniciais de defasagem
entre pentecostais, não nos aprofundando demasiadamente nessas temáticas.
O papel da Batalha Espiritual nas identificações evangélico-pentecostais não foi
“exacerbado” entre os anos 1960 e 1970, com o advento do neopentecostalismo. Ocorreram,
antes, variações no que tange à prescrição dos modos como o fiel deveria manter-se ativo
dentro da Batalha Espiritual. Estas variações passam mais pelas reinterpretações e usos que
fazem os neopentecostais dos meios de comunicação de massa do que pela implementação de
61
novas coordenadas sociais – desenvolvimento de novas representações coletivas – que sustém
as percepções dos crentes no vivenciar da Batalha Espiritual. No lugar de se tornar mais
intensa, a Batalha Espiritual tornou-se socialmente mais visível por meio de outra abordagem
desenvolvida pelos neopentecostais diante das novas possibilidades midiáticas surgidas nas
últimas décadas do século XX. Então, se não se trata de uma exacerbação da Batalha
Espiritual – fazendo com que tal prática se tornasse característica específica do
neopentecostalismo –, poderíamos perguntar: sob quais aspectos podemos falar em
transformações dentro do quadro de representações coletivas dos evangélico-pentecostais?
Propomos pensar as transformações ocorridas durante o século XX no meio evangélico-
pentecostal brasileiro nos termos de uma gradativa variação interpretativa das representações
coletivas, que deslocou as prescrições que regem a cotidianidade do crente fazendo com que
ele deixasse o cultivo de uma “Santidade Próspera” em busca da “Prosperidade Santa”.
Santidade Próspera e Prosperidade Santa seriam duas matrizes interpretativas aplicadas ao
mesmo imaginário social. Esta variação ou defasagem teológica teria ocorrido, acreditamos,
no bojo das transformações estudadas, respectivamente, por Siepierski e Mariano: a guinada
do pré ao pós-milenarismo, o uso comercial em larga escala dos meios de comunicação com
fins evangelísticos, a introdução da teologia da prosperidade a partir da década de 1970 e as
consequentes novas propostas comportamentais de participação no “mundo” – negação dos
sinais exteriores de santidade – registradas entre os neopentecostais.
2.1.1. Santidade Próspera
Se o leitmotiv da IURD é o conhecido “pare de sofrer!”, o da Assembléia de Deus da
primeira metade do século XX poderia muito bem ser: “mesmo sofrendo, não pare!”. A
santidade Próspera pode ser entendida como um modo característico do pentecostalismo
clássico interpretar as representações coletivas constituintes do imaginário social evangélico-
pentecostal, dando especial valor àquilo que tange à conduta ascética e sectária do crente. O
foco recai sobre o policiamento que o evangélico-pentecostal realiza sobre seu linguajar, seu
trajar, suas relações pessoais e até sobre seus pensamentos. Sempre instanciado numa divisão
binária entre bem e mal que engloba toda e qualquer área de agência humana (cultural,
política, econômica, social), o crente busca alinhar-se às práticas identitariamente
reconhecidas como “santas”.
Da santificação como ditame identitário decorre o policiamento das práticas. Assim,
cada crente é impelido a buscar uma conduta moral irrepreensível – desdobrada nos “usos e
62
costumes” assembleianos –, pautada numa abordagem específica do sofrimento como
positividade. Os sofrimentos de todas as espécies – financeiro, físico, nas relações pessoais,
etc. – seriam circunstâncias especiais permitidas por Deus, que não deveriam ser
questionadas. Isto se dá, pois, segundo o pastor Nils Kastberg, escrevendo para o jornal
assembleiano Som Alegre, em janeiro de 1930, o “caminho para o céu é pelas muitas
tribulações”. O pastor acrescenta:
Talvez não compreendes por que tens que sofrer assim, mas ouve o que
Paulo diz: “A tribulação produz a paciência”, Rm 5.3. O sofrimento,
portanto, produz fruto bom em tua vida. Se porventura agora não
compreendes, esteja certo de que quando o brilho do dia eterno reluzir sobre
a tua vida, tudo se esclarecerá na luz verdadeira, na luz do Senhor, e ali
todos os “porquês” terão as suas respostas. Todos os enigmas se
esclarecerão, e tudo que foi em parte, eternamente passou, 2Co 13.9,13.
Enquanto esperas, sofre quieto com santo silêncio! Dá graças a Deus pelas
rosas além do caminho, e também pelos espinhos no meio delas, até que a
manhã sem nuvens raie (2Sm 23.4). Pode ser que estás sofrendo para
poderes compreender, ajudar e consolar os que padecem. (...) É necessário
possuíres um espírito quebrantado para poderes quebrantar outros
(ARTIGOS Históricos – Mensageiro da Paz, 2004: 46. 1 v).
Não compete ao crente alinhado com a Santidade Próspera indagar sobre as razões de
seu sofrimento. A mente de Deus é insondável, ninguém pode imaginar quais desígnios
determinou para seu povo. Deste modo devem os verdadeiros cristãos resistir de qualquer
forma, sempre permanecendo sem blasfemar. As contradições sociais e as mazelas
decorrentes de uma organização social excludente não devem ser questionadas, simplesmente
enfrentadas com a resignação que marca tal entendimento de santidade. É a vontade de Deus
que se manifesta com um propósito misterioso. O prêmio ou galardão do crente não está nesta
terra, está no porvir, como escreve Frida Vingren para o jornal Mensageiro da Paz, em
setembro de 1931:
As coisas desta vida, dinheiro, bens, seja o que for, não servem de alimento
para a alma, que saiu de Deus. Considera o que estás fazendo, e não arrisca a
tua salvação, a tua vida, pelos tesouros terrestres, pois além destes não
poderem satisfazer a alma, tornam-se em laços e armadilhas no teu caminho
(ARTIGOS Históricos – Mensageiro da Paz, 2004: 109. 1 v).
E, segundo as palavras do pastor Aldo Petterson escrevendo ao mesmo jornal, em
março de 1935:
Irmão, você é um membro ativo do corpo de Cristo? Está trabalhando para
ganhar almas para Cristo? Então receberás o galardão quando o Mestre vier.
(...) O galardão estará com Ele quando vier para buscar a sua eleita [a igreja],
63
a sua noiva para levá-la para a glória (ARTIGOS Históricos – Mensageiro da
Paz, 2004: 143. 1 v).
Além dos textos citados, provenientes do jornal Mensageiro da Paz, podemos
encontrar a mesma mensagem – concernente ao pagamento ou retribuição no céu àqueles que
suportarem em Jesus uma vida pautada nos sofrimentos – sendo reafirmada por meio de
diversas canções na edição de 1923 da Harpa Cristã. Como exemplo, analisemos as duas
últimas estrofes do hino 26 da Harpa Cristã A Formosa Jerusalém, de autoria de Emílio
Conde.
A Formosa Jerusalém – 26 (trecho)
Pensa na celestial melodia / Que a terra encherá de Beulá; / E das harpas a
doce harmonia / Ao passar o Jordão se ouvirá. / Mesmo em dores que levam
à morte, / Sê constante, não voltes atrás, / Tua herança, tua eterna sorte, / É
Jesus, o Fiel, o Veraz.
Se é glorioso pensar nas grandezas, / Nos prazeres que acodem aqui. / Qual
será desfrutar as riquezas / Que esperam os salvos, ali? / Os encantos do
mundo não podem / Ofuscar essa glória dalém; / Não almejas viver, ó amigo,
/ Nessa formosa Jerusalém? (HARPA CRISTÃ, 1998: s/p).
Com efeito, os distintos entendimentos que os crentes fazem do que seja o sofrimento
– e quais propósitos os mesmos cumprem neste “mundo” – encerram, a nosso ver, as
principais defasagens entre as visões de mundo pentecostais (clássica e neopentecostal). Para
um assembleiano, resistir resignadamente a um sofrimento neste mundo, ao viver em Jesus, é
um motivo de orgulho e lastro para fortalecer seu testemunho cristão. Para os neopentecostais,
o sofrimento será encarado de maneira totalmente diversa, como veremos adiante.
Padecer por Cristo é uma honra para os pentecostais alinhados com a Santidade
Próspera. A Harpa Cristã, hinário oficial das Assembléias de Deus, apresenta no hino 28,
intitulado Deus vai te guiar – de autoria de Frida Vingren, edição de 1923 –, a seguinte
mensagem:
Andas carregado de tristeza e dor, / Sem nenhum auxílio, nem um Salvador?
/ Ouve a mensagem de teu bom Jesus, / E tem mais coragem, leva a tua cruz.
(coro)
Deus vai te guiar com Sua forte mão; / Podes descansar na tribulação; / Seja
tua vida livre de pesar; / Em tristeza e lida Deus vai te guiar.
Toda carga por ti, Ele quer levar; / Alma dolorida, ouve o Seu falar; / Senda
espinhosa Ele já andou, / Morte afrontosa por ti suportou.
Se estás tentado, Deus te ajudará, / Sempre confiando, te libertará; / As
pisadas segue do teu Salvador, / Crendo em Deus, prossegue, seja como for
(HARPA CRISTÃ, 1998: s/p).
“Seja como for”, o crente deve resistir e seguir seu Salvador para obter a desejada
salvação. Mesmo porque, o efetivar do retorno de Jesus está muito próximo na visão dos pré-
milenaristas assembleianos. Não há tempo para “alegrias mundanas”, meras imagens
64
distorcidas do que será a bem aventurança junto a Deus no céu. O descrédito e desvalorização
de fruir o gozo que o “mundo” oferece são facilmente percebidos na letra do hino 36 da Harpa
Cristã, O Exilado. Transcrevemos a primeira estrofe:
Da linda pátria estou bem longe; / Cansado estou; / Eu tenho de Jesus
saudade, / Oh, quando é que eu vou? / Passarinhos, belas flores, / Querem
me encantar; / São vãos terrestres esplendores, / Mas contemplo o meu lar
(HARPA CRISTÃ, 1998: s/p).
Nem a natureza e suas belezas simples e cotidianas estão fora do quadro de
julgamentos que norteiam as interpretações da Santidade Próspera. Se há beleza neste
“mundo”, mesmo a considerada moralmente neutra beleza natural, ela passa pelo crivo do
discurso dualista evangélico-pentecostal. No início de todas as coisas, segundo o
entendimento cristão, o homem maculou o mundo natural ao cometer o pecado original. Até
mesmo os vegetais, animais e minerais sofreram o peso do pecado e foram, assim,
desvirtuados. Um belo pôr de sol, a plumagem ou o canto de determinado pássaro, os
delicados perfumes e cores das flores neste “mundo” são apenas, no entendimento do
evangélico-pentecostal que cultiva uma Santidade Próspera, indícios das verdadeiras belezas
que Jesus foi preparar para os seus seguidores no céu. Assim sendo, apesar dos vislumbres de
beleza neste “mundo” de pecados, esta mesma beleza não deixa de ser uma pálida promessa
do que há por vir. Este “mundo” é majoritariamente um lugar de sofrimentos segundo a
interpretação da Santidade Próspera.
As afrontas e dificuldades de toda sorte servem para, além de fortalecer o caráter do
“verdadeiro cristão”, indicar que estamos temporalmente na iminência da Parousia. Assim, a
concepção da Santidade Próspera contextualiza-se num quadro pré-milenarista. Tal concepção
escatológica prediz que os trabalhos e sofrimentos que recairão sobre os crentes nos
momentos imediatamente anteriores ao Arrebatamento (segunda vinda de Cristo) serão
acentuados. Ou seja, sofrer e resistir em Jesus são também formas de anunciar a sua volta. Por
tais motivos, a santidade que o fiel cultiva por meio da resignação e resistência é “próspera”.
Próspera no sentido de que, confirmando as convicções dogmáticas sobre a Segunda Vinda de
Cristo ao resistir aos sofrimentos, o crente exercita suas virtudes santas. O pentecostal clássico
da AD, mediante a resistência aos trabalhos e sofrimentos deste “mundo”, faz com que
prospere sua própria santidade, diferentemente dos neopentecostais iurdianos que santificam
sua prosperidade. As virtudes santas – paciência, fé, esperança, humildade, resignação – estão
diretamente ligadas à ideia da aquisição de uma fundamentação espiritual, um revestimento de
poder espiritual que concederia ao crente capacidade para perceber e resistir às forças das
65
trevas, tendo acesso ao que está “por trás” do mundo material. Nesse sentido, Bruno
Skolimowisk, escrevendo para o Mensageiro da Paz, em 1931, procede a uma escoima social
em seu artigo Quem são meus irmãos?
Quem é meu irmão? É aquele que ama o fumo, a cerveja e o vinho? – Não!
É aquele que conversa muito e diz muitas palavras inúteis? – Não! Nossos
irmãos são os que andam nos caminhos do Senhor, com toda a verdade e
sinceridade. (...) Quais são meus irmãos? Repito: – são aqueles que andam
com Jesus e confiam somente Nele. Amigo, que não és crente, vê bem: se
Jesus estivesse ao teu lado, chamar-te-ia irmão? Ele não te reconheceria
como tal. E o apóstolo Paulo – ele certamente reprovaria a tua vida
pecaminosa no mundo. Para ti, que desprezas a igreja de Deus, ele não teria
nenhuma palavra de consolação, podes ficar certo disso. (...) Agora, quero
contar-vos onde estão os meus irmãos e minhas irmãs. Vem uma pobre
lavadeira, com as mãos calosas e espinha encurvada. Ela vive para o Senhor
e fala também línguas estranhas, é cheia do Espírito Santo. Digo-vos, com
alegria, essa é minha irmã. Para mim, ela é uma rainha (ARTIGOS
Históricos – Mensageiro da Paz, 2004: 113-115. 1 v).
Na perspectiva da Santidade Próspera, as marcas no corpo que a vida rude e os
sofrimentos advindos da pobreza acarretam não são tomadas como sinais de opróbrio. Pelo
contrário, são lidos como similares aos sinais que o apóstolo Paulo diz trazer em seu corpo –
marcas e cicatrizes de ferimentos causadas por perseguidores e pelas muitas viagens a serviço
da expansão do cristianismo –: “Desde agora ninguém me inquiete; porque trago no meu
corpo as marcas do Senhor Jesus” (Gálatas 6:17). Veremos logo adiante que esta valorização
feita pelo discurso do pentecostalismo clássico do corpo maltratado – “as mãos calosas e a
espinha encurvada” – sofreu significativas mudanças com a inserção da teologia da
prosperidade, a negação dos sinais exteriores de santidade e a guinada pós-milenarista que
marcam o discurso das igrejas neopentecostais, acentuadamente o discurso iurdiano.
A prosperidade e a abundância na vida do crente no pentecostalismo clássico têm
outros sentidos daqueles atribuídos pelos teólogos e doutrinadores neopentecostais alinhados
com a teologia da prosperidade. A vida próspera é a vida de santificação. Mais uma vez, uma
Santidade Próspera. Podemos observar o uso deste sentido para os termos “abundância” e
“prosperidade” na edição de 1923 da Harpa Cristã. O hino 374, Vida Abundante, de autoria de
Paulo Leivas Macalão traz a seguinte mensagem:
Nós queremos ter vida abundante, / De pureza e de santidade, / Para
amarmos a Deus em verdade, / Pela graça que Ele nos deu
(coro)
Vem nos dar Tua vida abundante, / Nosso amado e divino Senhor; / Tua vida
de gozo exultante, / Abundante no Consolador.
Nós queremos ter vida abundante / De amor, que o Pai nos tem dado / Em
Jesus, o Seu Filho amado, / Cuja vida por nós derramou.
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Nós queremos ter vida abundante / De Jesus, a veraz fortaleza, / Que nos dá
do perdão a certeza, / E nos enche de consolação (HARPA CRISTÃ, 1998:
s/p).
A letra do hino deixa claro o desejo do crente: querem ter suas vidas abundantes sim,
mas uma abundancia de pureza, santidade, amor e Jesus. A Santidade Próspera, entendemos,
se fundamenta na interpretação literal, numa base pré-milenarista, do texto de Mateus 6:31-
33:
Não andeis, pois, inquietos, dizendo: Que comeremos ou que beberemos ou
com que nos vestiremos? (Porque todas essas coisas os gentios procuram).
Decerto, vosso Pai celestial bem sabe que necessitais de todas essas coisas;
Mas buscai primeiro o Reino de Deus, e a sua justiça, e todas essas coisas
vos serão acrescentadas (BÍBLIA de Estudos Plenitude, 2001: 957).
Não há necessidade de um cuidado excessivo por parte do crente para conseguir o
necessário à manutenção da vida. Deus o garantirá. Consequentemente, a maioria daqueles
alinhados com a Santidade Próspera consegue, por meio de seu esforço diário, apenas o
suficiente para a reprodução da força de trabalho. Que o crente trate primeiramente de
santificar-se, mantendo o testemunho cristão ao resistir docemente no amor de Jesus em suas
dificuldades e sofrimentos. Para facilitar a compreensão dessa mensagem, a esposa de um dos
fundadores da Assembléia de Deus, Frida Vingren, publicou no jornal Som Alegre –
precursor do Mensageiro da Paz –, de fevereiro de 1930, um perfil do “salvo”, que explicita
as características básicas da “fé dos santos”.
“A fé dos santos”, são as doutrinas fundamentais, que o apóstolo [Paulo] nos
recomenda a guardar. Sim, ele diz: “pelejai por ela” – a fé.
Isto inclui tanto (a fé), o uso prático dela em nossa vida particular, como um
trabalho defensivo. Proclamemos, portanto, em primeiro lugar, salvação
completa de todos os vícios e pecados. Uma salvação que comece no
coração pelo novo nascimento, e depois penetre em todo o ser – corpo,
espírito e alma. Um salvo não tem vício, mas está liberto pelo precioso
sangue de Cristo. Um salvo não é mundano – nos seus modos de viver, no
falar – no vestir – e no seu procedimento em geral. Mas ele vive para Cristo
– uma vida reta e pura no meio de uma geração corrupta. É necessário
proclamar esta salvação, para que o Espírito Santo possa fazer a sua obra
libertadora nos corações dos pecadores que ouvem a Palavra do Senhor. A
Igreja de Deus consiste de “salvos” e não de viciados. Se alguém aceita a
Palavra do Senhor por um mero interesse, ou por uma certa influência, sem
ser convertido pelo poder de Deus, não permanecerá na igreja dos salvos.
Mas depois de algum tempo durante o qual causou escândalos e
perturbações, volta para o mundo – pois o mundo estava no seu coração. (...)
Também faz parte desta fé a santificação. Há crentes que ainda não entraram
neste caminho. Estão apenas confiando na sua própria fé, ou em bênçãos
recebidas há muito tempo, esquecendo-se do que está escrito: “sem
santificação ninguém verá o Senhor”. Na Igreja do Senhor não há lugar para
murmuradores, críticos e maliciosos. (...) O pastor é criticado, a direção do
67
trabalho, as pregações, os testemunhos, enfim tudo. Atitude esta que mostra
uma grande lacuna na santificação, e falta de verdadeiro temor de Deus. (...)
O Batismo do Espírito Santo faz parte da fé dos santos. Não baixemos a
bandeira – deixando de anunciar todo o “conselho de Deus” (At 20.27). (...)
Deixando de anunciar o batismo do Espírito Santo é fácil introduzirem-se na
igreja pessoas que não crêem verdadeiramente, e não suportam
manifestações do poder de Deus. E isto não tem boa influência sobre a vida
espiritual da igreja. (...) Enfim – a Vinda do Senhor é uma parte da mesma
fé. Isto tem sido o assunto querido dos santos em todos os tempos; daqueles
que amam o Senhor Jesus de todo o seu coração. Anunciar a Vinda do
Senhor é um meio de despertamento que cada vez mais se torna importante,
pois estamos perto da “meia-noite”, e o sono quer se apoderar das virgens
que estão esperando a vinda do noivo. Pelejai pela fé, uma vez entregue aos
santos (ARTIGOS Históricos – Mensageiro da Paz, 2004: 32-34. 1 v).
Podemos depreender da exposição feita por Frida Vingren certas características que
não poderiam faltar aos “santos” assembleianos durante a primeira metade do século XX: a
libertação dos vícios e pecados, o afastar-se do mundanismo, o cultivo de uma vida em
santificação, o anúncio e a vivência do Batismo no Espírito Santo e a crença na volta de
Cristo.
Acreditamos não incorrer em erro ao agruparmos as três primeiras características
(libertação dos vícios e pecados, afastar-se do mundanismo e o cultivo de uma vida de
santificação) numa mesma característica desdobrada em várias práticas ao percebermos que
elas estão voltadas ao exercício de uma santificação baseada no ascetismo. Podemos
considerar que as palavras-chave destas ordenanças, desdobradas em identificações com as
representações coletivas evangélico-pentecostais, são: “separação” – do mundo de pecado –,
“libertação” – das práticas demonizadas pelos fieis – e “santificação” – para receber o
verdadeiro temor de Deus. Práticas estas que só farão sentido se lidas dentro de seu
imaginário social particular. A vivência e anúncio do Batismo no Espírito Santo e a volta de
Cristo são características que, apesar de terem sofrido algumas mudanças interpretativas
durante o tempo que separa os pentecostais clássicos dos neopentecostais, mesmo assim, são
reproduzidos por esses últimos de forma similar às práticas dos primeiros. Ou seja, estão
resguardadas no imaginário social as mesmas bases representacionais do início do século XX.
Analisaremos com maior detalhamento tais continuidades mais adiante.
Para podermos vislumbrar com mais precisão como a Santidade Próspera era
entendida e vivenciada – e ainda o é em alguns meios evangélico-pentecostais menos visíveis
socialmente –, vamos analisar como se deu a recepção por parte dos assembleianos de
inovações tecnológicas no âmbito das comunicações que transformaram o século XX. O
modo pelo qual acolheram a TV e o rádio diz-nos muito acerca da modalidade interpretativa
68
da Santidade Próspera ao refletir posturas ascéticas derivadas da compreensão do que era
inerentemente bom ou mau nos avanços tecnológicos “mundanos”.
Vimos que a afirmação da “santa pobreza”, entre os assembleianos, como uma
positividade serviu para fazer frente a uma sociedade marcada por gritantes desigualdades
sociais – sua pobreza, contudo, seria posteriormente recompensada no céu com riquezas
indizíveis. Além disso, os evangélico-pentecostais da AD desenvolveram uma rígida prática
sectária e ascética baseando-se num dualismo obsedante. Vida e morte do crente estavam
prescritas na observância dos “usos e costumes”. Assim, as novidades tecnológicas como o
rádio18
e a TV19
foram recebidas com maus olhos, pois sua utilização, por mais que pudesse
servir aos intentos evangelísticos de disseminação da mensagem pentecostal, colocava numa
situação paradoxal a identidade assembleiana fundada na separação das “coisas mundanas”.
Em 1975 foi publicada a primeira resolução da igreja Assembléia de Deus sobre as normas de
“usos e costumes”. Redigida durante a convenção geral de 1975, foi um marco no sentido de
verter para um documento escrito as observâncias e restrições sociais que foram sendo
18
“Edgard Roquete Pinto, antropólogo, foi um dos grandes incentivadores do rádio no Brasil. Cronologicamente,
há registros que comprovam que a primeira emissora de rádio brasileira surgiu com a fundação da Rádio Clube
de Pernambuco, em Recife, no dia 6 de abril de 1919. Em 1922, é tida como a primeira irradiação oficial a
transmissão feita a partir do alto do corcovado, no Rio de Janeiro, nas comemorações do Centenário
da independência do Brasil. ”O rádio é o divertimento do pobre(..), e a informação dos que não sabem ler”,sob
estas palavras Roquete Pinto enxergou no rádio um veículo que pudesse difundir a cultura e história brasileira.
Em 1923, são instalados aparelhos receptores na cidade do Rio de Janeiro, idealizada por roquete Pinto. Outras
emissoras começaram a surgir não somente com uma programação informativa, mas planejada em primeiros
passos para transmitir a nossa música e arte. Com a evolução tecnológica, nos anos 30, as rádios criaram
programas de auditório, o que fez do rádio um veículo popular. Em 1934, a Rádio Sociedade do Rio de Janeiro
foi transformada em Rádio Municipal do Rio de Janeiro, popularmente conhecida como rádio Roquete Pinto. As
rádio nesta fase se fortaleceram como lançadoras de grandes talentos musicais como Francisco Alves, Vicente
Celestino, Dalva de Oliveira, Emilinha Borba, entre outros. Na década de 50, o rádio difundiu as transmissões
esportivas, como a Copa de 58, todos torceram pelo Brasil através do rádio. Em 1953, haviam números que
identificaram a existência de cerca de 500 emissoras de rádio no país e quase meio milhão de aparelhos
receptores.” (texto de Fernando Rebouças, publicado em 2 jun 2008, disponível em: <http://migre.me/5bFaa>.
Acessado em 21 jul 2010). 19
A televisão no Brasil foi inaugurada oficialmente no dia 18 de setembro de 1950, por iniciativa do jornalista
Assis Chateaubriand, que fundou o primeiro canal de televisão no país – a TV Tupi – importando toda a
aparelhagem dos Estados Unidos. No dia 18 de setembro de 1950, oficialmente a TV Tupi canal 03 de São
Paulo, PRF-3 TV, transmitiu suas primeiras imagens. Nascia aí a televisão no Brasil. A televisão se
desenvolveu rapidamente no Brasil, tanto tecnologicamente, com um rápido aperfeiçoamento técnico, quanto
em número de TVs nos domicílios brasileiros, que em pouco mais de uma década saltou da casa das centenas
para a casa dos milhões. Sérgio Mattos (2002) em estudo que buscou historiar a televisão brasileira dividiu o
desenvolvimento da TV no Brasil em seis fases, a saber: 1) fase elitista (1950- 1964), os televisores, ainda
muito caros, eram considerados artigos de luxo aos quais somente a elite econômica tinha acesso; 2) fase
populista (1964-1975), quando a televisão era considerada um exemplo de modernidade e programas de
auditório de baixo nível tomavam grande parte da programação; 3) fase de desenvolvimento tecnológico
(1975- 1985) quando as redes de televisão se aperfeiçoaram e começaram a produzir com maior
profissionalismo os seus próprios programas com estímulo de órgãos oficiais visando, até mesmo, a
exportação; 4) fase da transição e da expansão internacional (1985- 1990); momento de abertura democrática
e de intensificação das exportações de programas; 5) fase da globalização e da TV paga (1995-2000), quando
o país buscou modernizar-se e a televisão se adaptou aos novos rumos da redemocratização; 6) fase da
convergência e da qualidade digital (2000 -), quando do desenvolvimento da tecnologia, apontando para uma
maior interatividade na televisão. (Roiz & Fonseca; 2009).
69
construídas e repassadas por meio da oralidade durante mais de sessenta anos. No documento
de 1975, não se discutiu diretamente o uso do rádio. Este, como logo se verá, já havia sido
integrado ao universo assembleiano, apesar de, vez por outra, virulentos ataques ao seu “mau
uso” ainda surgirem nos púlpitos e em publicações da igreja.
Diferente era a carreira da TV entre os assembleianos. Sua utilização ainda estava em
pauta na Convenção de 1975 – dada a popularização dos aparelhos e organização de
programas à época – e apareceria no texto da resolução sobre os “usos e costumes”.
A proposta da resolução de 1975 foi apresentada por Geziel Nunes Gomes a pedido do
pastor presidente da CGADB, Túlio de Barros Almeida, no encontro realizado na cidade de
Santo André, entre os dias 20 e 24 de janeiro. O conteúdo da “Resolução de Santo André” –
como ficou conhecida – reunia muito dos debates de quarenta e cinco anos de encontros da
liderança assembleiana e várias regras que já vinham sendo praticadas pelos membros da
igreja desde os primórdios da Assembléia de Deus no Brasil (ROIZ & FONSECA, 2009). A
resolução que foi apresentada e aprovada no dia 22 de janeiro dizia:
E ser-me-eis santos, porque eu, o Senhor, sou santo, e separai-vos dos povos,
para serdes meus (Lv 20.26). A Convenção Geral das Assembléias de Deus
no Brasil, reunida na cidade de Santo André, Estado de São Paulo, reafirma
o seu ponto de vista no tocante aos sadios princípios estabelecidos como
doutrinas na Palavra de Deus - a Bíblia Sagrada - e conservados como
costumes desde o início desta obra no Brasil. Imbuída sempre dos mais altos
propósitos, ela, a Convenção Geral, deliberou pela votação unânime dos
delegados das igrejas da mesma fé e ordem em nosso país, que as mesmas
igrejas se abstenham do seguinte:
1. Uso de cabelos crescidos, pelos membros do sexo masculino;
2. Uso de traje masculino, por parte dos membros ou congregados,
do sexo feminino;
3. Uso de pinturas nos olhos, unhas e outros órgãos da face;
4. Corte de cabelos, por parte das irmãs (membros ou congregados);
5. Sobrancelhas alteradas;
6. Uso de mini-saias e outras roupas contrárias ao bom testemunho
da vida cristã;
7. Uso de aparelho de televisão – convindo abster-se, tendo em vista a má
qualidade da maioria dos seus programas; abstenção essa que justifica,
inclusive, por conduzir a eventuais problemas de saúde;
8. Uso de bebidas alcoólicas (Convenção Geral de 1975. Resolução de Santo
Andre. In: ROIZ & FONSECA, 2009: 195-196).
O uso do rádio e da TV – que a IURD não hesitou fazer em seu processo de expansão
– foi longamente debatido e cerceado pelas rígidas convenções da AD. A maior antiguidade e
acessibilidade do rádio fizeram com que seu uso fosse ponderado desde as primeiras
Convenções Gerais. Já em 1937, em São Paulo, era aventada a questão: “é lícito pregarmos o
Evangelho pelo rádio?”.
70
Aberto que foi o assunto, vários irmãos falaram, mostrando como o rádio
tem servido, já em diversas partes como benção para transmitir as verdades
de Deus, não obstante vermos também os perigos que o mesmo pode trazer
no caso de os crentes se apegarem ao rádio, não querendo mais ir às igrejas
e, mesmo que apenas adquirindo rádios, contaminando-se com as músicas
mundanas e outras palestras prejudiciais que o mesmo pode trazer. O senhor
nos ajudou nesse ponto, pois no finalizar, todos estavam de comum acordo
de que evemos sempre aceitar os convites para cantar, tocar e pregar pelo
rádio e aproveitar tais oportunidades quando trazidas por Deus. Mas quanto
à questão de ter rádio, no momento atual, a Convenção achou que não
devemos ter (Convenção Geral de 1937. In: ROIZ & FONSECA, 2009:
2743).
Mesmo com aval para fazer uso do rádio, os fiéis deveriam evitar adquirir aparelhos
para não facilitar a disseminação de ideias não cristãs nos lares assembleianos. Durante as
décadas de 1940 e 1950, ocorreu um rápido crescimento do radioevangelismo assembleiano.
Apesar de a doutrina aconselhar a não assistência aos programas, estes se multiplicaram20
.
Este crescimento se deu acompanhando o aumento da radiofonia no Brasil. O uso do rádio
entrou abertamente em discussão na Convenção Geral de 1962, no Recife. Não foi discutida,
contudo, a utilização ou não por parte dos membros, pois os que encabeçaram as discussões, à
época, foram os pastores que já trabalhavam com o radioevangelismo. Estes, não querendo
exaltar os ânimos ao levantar questão tão delicada, posto que desafiasse de certa forma a
doutrina dos usos e costumes, abordaram indiretamente o tema ao proporem a questão “como
fazer para as Assembléias de Deus no Brasil manterem um programa oficial radiofônico
diário em uma potente emissora?”. Assim, o uso do rádio, tanto para a evangelização quanto
por parte da membresia que possuísse o aparelho, foi sendo lentamente aceito, mesmo que
ocorressem rompantes de preciosismo em nome da “sã doutrina” por parte de alguns pastores
menos inclinados a aceitar a radiofonia. André Dioney Fonseca, em seu trabalho “É lícito
pregarmos o evangelho pelo rádio?”:os debates sobre o radioevangelismo nas Convenções
Gerais das Assembléias de Deus no Brasil (2009), cita um exemplo de ataque à utilização do
rádio publicado em 1969, na revista A Seara.
20
“O programa do pioneiro do radioevangelismo na igreja Assembléia de Deus Lawrence Oslon, ainda que sob
forte oposição, foi ao ar em 1947, na Rádio Cultura de Lavras em Minas Gerais. Em 1950, o pastor José
Gomes Moreno da cidade de Curitiba deu início ao programa “Voz Evangélica das Assembléias de Deus”
pela Rádio Guairacá. Em janeiro de 1955, Lawrence Oslon lançou pela Rádio Tamoio o histórico programa
“Voz das Assembléia de Deus”. Ainda no ano de 1955, o pastor Alcebíades Pereira de Vasconcelos propôs à
igreja de São Luís no Maranhão a criação de um serviço de evangelização pelo rádio. Sendo aprovada a
proposta, o programa utilizou, num primeiro momento, os estúdios da Rádio Ribamar, transferindo-se no ano
de 1956, para a Rádio Timbira do Maranhão. Também do ano de 1955, foi ao ar o programa “O Som do
Evangelho” na igreja de Belém do Pará. Com a transferência de Alcebíades Pereira de Vasconcelos em 1960
da capital do Maranhão para a capital do estado do Pará, a igreja Assembléia de Deus da cidade Belém
entraria numa nova fase do radioevangelismo, posto que toda a experiência de Vasconcelos nas rádios de São
Luís serviu para reestruturação da radiofonia evangélica na capital paraense” (ROIZ & FONSECA, 2009:
2744).
71
Habituados às pregações programadas, desprezam as mensagens simples dos
irmãos que não tiveram estudo. Ora a pregação do rádio tem que ser
antecipadamente preparada com as boas regras da homilética e da gramática,
com muito cuidado para não conter erro teológico nem de linguagem, é
diferente da feita improvisadamente [sic] no púlpito pelo “pregador da roça”.
Uma coisa porém é certa: o radiólatra é árvore sem fruto na igreja. Não
coopera nas despesas feitas para a extensão da obra evangélica; nem mesmo
para os programas de rádio. Torna-se improdutivo! Fica em casa ouvindo o
rádio sim, mas sem receber as indispensáveis instruções doutrinárias. O
rádio prega, mas nem sempre doutrina. Em muitos casos a família se
corrompe com a imundície que o rádio lhe transmite. Já presenciei em casa
de crente, criancinhas fazendo voltas no corpo quando ouviam, pelo rádio, as
músicassambalísticas (FONSECA, 2009: 2746).
A partir desta sucinta apresentação de como se deu o processo de introdução do Rádio
e da TV no meio assembleiano, podemos vislumbrar a ação das concepções de mundo guiadas
pela visão da Santidade Próspera. A lenta introdução das tecnologias midiáticas desenvolvidas
e popularizadas no século XX fala-nos da tensa aceitação e tímido uso que delas fizeram os
assembleianos. Certamente menos da TV que do Rádio. As restrições atingiam tanto a massa
dos membros quanto boa parte das lideranças que só precariamente puderam desenvolver
atividades evangelísticas nestes meios, diferentemente do uso em larga escala empreendida
pelos iurdianos, tanto do Rádio quanto da TV
Pudemos perceber que os ditames dos “usos e costumes” estavam intimamente ligados
à manutenção da vivência da Santidade Próspera. Um cerceamento do indivíduo com objetivo
de aquilatá-lo no grande rebanho de Jesus, desdobrado num feérico controle dos gostos.
Discutiremos em pormenores no próximo tópico que tal controle mostrar-se-ia incompatível
com as tendências de uma sociedade de consumo em expansão. Outro ponto discrepante entre
assembleianos e iurdianos será o desenvolvimento de uma postura, entre os últimos, de
aceitação das novidades “mundanas” como potenciais práticas aceitáveis entre seus fiéis.
Claro, as novidades só são assimiladas mediante um complexo processo de ressignificação
dentro dos quadros imaginários evangélico-pentecostais (ver nota 35, no capítulo 3). Esta
inclinação a receber e interagir com as novidades “mundanas” só foi possível mediante uma
desvalorização da tradição dos “usos e costumes” empreendida pelos neopentecostais. Tal
tradição configurava-se (e ainda se configura) como um dos maiores obstáculos ao tornar
apetecível a fé evangélico-pentecostal às novas classes consumidoras brasileiras surgidas na
segunda metade do século XX. Tanto é assim que Edir Macedo, líder da IURD, enriqueceu o
panteão infernal ao propor a existência de um novo demônio, o “Exu Tradição”. Para Macedo,
o preciosismo no que tange ao cumprimento das práticas dos “usos e costumes” pode ser
entendido como um obstáculo ao recebimento do poder espiritual.
72
Enquanto você, amigo leitor, estiver satisfeito com a tradição histórica de
sua Igreja, com seus rituais e cerimônias, com sua liturgia e com a sua
aceitação das coisas como estão, não será ungido pelo Espírito Santo […] há
um demônio chamado Exu tradição (sic I) que penetra sorrateiramente,
obrigando os membros da Igreja a atentar-se tão somente para usos,
costumes e normas eclesiásticas (MACEDO, 1993: 133).
2.1.2. Prosperidade Santa
A Prosperidade Santa pode ser entendida como um modo característico de
interpretação que o neopentecostalismo realiza das representações coletivas compartilhadas
pelo imaginário social evangélico-pentecostal calcado na teologia da prosperidade e numa
relativa abertura às novidades em matéria de tecnologias sociais. As características dessa
matriz interpretativa redundam nas práticas sociais que sustentaram o novo “perfil de
santidade” dos chamados neopentecostais. Apesar da defasagem em relação àqueles que se
guiam pela Santidade Próspera, os evangélico-pentecostais alinhados com a Prosperidade
Santa – tomamos os fiéis da IURD como representantes deste segmento – compartilham
grande parte da bagagem representacional que o pentecostalismo clássico da AD usa para
pensar o “mundo”. Desse modo, o hiato entre Santidade Próspera e Prosperidade Santa está,
basicamente, em nuances interpretativas e acréscimos doutrinários, não no surgimento de
novas representações coletivas.
Para o neopentecostal, a conduta “santa” será aquela que prima pelo sucesso
econômico e social pautados no discurso da teologia da prosperidade, fazendo agir o “santo”
no sentido de cooperar com Deus na implantação de seu Reino aqui na terra. Assim, a
Prosperidade Santa está intimamente relacionada à visão escatológica pós-milenarista, como
apresentada por Siepierski (2008). Ao fundamentar esta nova experiência de “santidade”, Edir
Macedo, líder máximo da IURD, propõe outra explicação para a origem dos sofrimentos,
diferente daquela desenvolvida na primeira metade do século XX pelos doutrinadores
assembleianos.
Essa é a razão fundamental pela qual o Senhor permite que tenhamos
problemas e passemos por tribulações: para que tenhamos a nossa fé sempre
em exercício constante, pois é através das dificuldades que obtemos
perseverança e, consequentemente, experiência. A fé precisa ser exercitada
constantemente, até que se torne sólida, para então subirmos outros degraus
de maiores realizações, para agradar a Deus... (MACEDO, 2007: 162).
O sofrimento, do mesmo modo como na AD, é visto como uma espécie de purificador
do caráter cristão. Porém, diferentemente da AD, que entende serem insondáveis as razões
73
destes sofrimentos e alimenta a ideia de haver retribuição pelo esforço da resistência
resignada a estes mesmos sofrimentos no céu, os crentes da IURD julgam compreender o
porquê de suas tribulações e esperam vivenciar o bônus de seu esforço em vida. Como
escreve Edir Macedo, o sofrimento faz a fé tornar-se sólida para propiciar ao fiel a capacidade
de “maiores realizações”. Estas “realizações” não são excepcionalmente espirituais como o
eram para a AD. A transformação histórica que levou o discurso evangélico-pentecostal
oscilar de um modelo que visava cultivar a Santidade Próspera como regra de vida –
marcadamente pré-milenarista – rumo ao novo modelo, por nós denominado Prosperidade
Santa, foi gradual e realizou-se acompanhando, basicamente, as transformações
socioeconômicas brasileiras. Num processo de concomitância, acomodando-se às novas
demandas sociais dos anos 60 e 70 do século passado, a identidade evangélico-pentecostal
flexibilizou seus discursos e ampliou seu leque de condutas moralmente aceitáveis ou
“santas”. Novas estratégias evangelísticas para ampliar o Reino de Deus na terra.
Surgiu uma nova concepção acerca do uso dos meios de comunicação de massa,
pautados na teologia da prosperidade e na nova relação de aparente positividade do crente
com o “mundo”. O rádio, a TV, os jornais, começaram a ser sistematicamente utilizados com
fins de “evangelizar” os perdidos e formar os conversos, fazendo com que os discursos
identitários dos crentes ganhassem cada vez mais visibilidade social: canções, livros,
preleções gravadas, folhetos. Enquanto a Assembléia de Deus, em seu ideário de Santidade
Próspera, dilatou o seu período de quarentena aos usos dos meios de comunicação ao pregar
um afastamento “saudável” das coisas do “mundo”; a Prosperidade Santa, característica dos
neopentecostais, inverte o discurso.
A suprema tarefa dos cristãos é por o Evangelho onde ele deve estar: na rua
principal, nas grandes avenidas e bulevares da humanidade; fora, em lugares
públicos, nos centros de informação e ação, nos transportes, montado em
carros e botes, imprimindo-lhe velocidade nas rodas da tecnologia moderna,
nas impressoras digitais multicores, nas bobinas de fitas de áudio, vídeo e de
filmes de ação (FRANCEN, s/d: 05).
Desse modo, as possibilidades de emergência das reinterpretações dentro do
imaginário evangélico-pentecostal encontram seu fundamento no repensar do pentecostalismo
em função da Prosperidade Santa como nova regra de vida contraposta aos “usos e costumes”.
Uma nova concepção do que seja o sofrimento e outro entendimento da santidade vieram no
bojo da negação dos sinais exteriores de santidade. Este repensar pode ser rastreado, segundo
Prandi (2008), nas três últimas décadas do século XX.
74
No período que vai de 1950 a 1970, o modelo ideal do religioso pentecostal
era o crente trabalhador (homem ou mulher) comedido nos hábitos, submisso
à autoridade, modesto no vestir, avesso ao consumismo. Dinheiro era coisa
do diabo, era perdição. Muito adequado a uma sociedade cuja economia
remunerava mal o trabalhador. Em meados dos anos 1970 a economia
começou a mudar, e o setor produtivo industrial, que era o carro chefe do
desenvolvimento econômico da América Latina, se viu ultrapassado pelo
setor terciário do comércio e serviços. O ideal do operário que produzia e se
contentava com um salário baixo foi substituído, de modo crescente, pelo
modelo do consumidor inserido num mercado cada vez mais globalizado, em
que todos podem comprar muito, mesmo que seja as quinquilharias asiáticas
vendidas a preços irrisórios e artigos falsificados mais baratos. O consumo
generalizou-se apoiado num sistema de crédito ao consumidor acessível a
todos. Nessa nova cultura consumista, o velho pentecostalismo passou a
dizer pouco para muitos. Já no final da década de 1970, temos novidades
marcantes: a chegada da teologia da prosperidade e o surgimento das igrejas
do neopentecostalismo. E a nova religião desdemonizou o dinheiro e o
consumo: a Deus apraz que seus filhos gozem de conforto e do acesso aos
bens de que dispõe a humanidade […] (PRANDI, 2008: 15).
Segundo L. S. Campos (1999), foi no bojo da grande depressão dos anos 1930 que, a
partir das crenças das camadas médias da população norte-americana, desenvolveu-se o
embrião da “teologia da prosperidade”. Contudo, mesmo que tal coleção de doutrinas já
fizesse sucesso nos púlpitos norte-americanos em fins da década de 1940, foi apenas na
década de 1970 que a teologia da prosperidade seria reconhecida como uma doutrina
sistematizada. A mensagem central de tal teologia é a de que a pobreza é obra da ação
demoníaca e que Deus, sendo um pai amoroso e rico, não quer que seus filhos vivam em
miséria, mas sim, prósperos, saudáveis e ricos21
(CAMPOS, 1999). É uma mensagem que
vem ao encontro das necessidades de uma grande parcela da população brasileira como um
bálsamo às exasperações daqueles que, economicamente excluídos, buscam de toda forma se
manter dentro de uma sociedade de consumo cada vez mais rica em opções.
Ora, Deus quer nos dar vida abundante e nós queremos ter. Somente o Diabo
e aqueles que lhe pertencem não querem que nós sejamos abençoados. A
pessoa oprimida pela situação financeira tem de iniciar uma verdadeira
batalha espiritual contra os que se opõem ao seu sucesso material. Isso só
acontece através da fé nas promessas de Deus, o único caminho pelo qual ela
conseguirá alcançar a sua vitória. […] Se a pessoa não der os dízimos que
pertencem ao Senhor, é problema dela com Deus. Quanto à nós, pastores,
21
“Com promessas de que o mundo seria locus de felicidade, prosperidade e abundância de vida para os cristãos,
herdeiros das promessas divinas, a Teologia da Prosperidade veio coroar e impulsionar a incipiente tendência
de acomodação ao mundo de várias igrejas pentecostais aos valores e interesses do “mundo”, isto é, à
sociedade de consumo. […] Para os defensores da Teologia da Prosperidade, a expiação do Cordeiro libertou
os homens da escravidão ao Diabo e das maldições da miséria, da enfermidade, nesta vida, e da segunda
morte, no além. Os homens, desde então, estão destinados à prosperidade, à saúde, à vitória, à felicidade. Para
alcançar tais bênçãos, garantir a salvação e afastar os demônios de sua vida, basta o cristão ter fé incondicional
e inabalável em Deus, exigir seus direitos em alta voz e em nome de Jesus e ser obediente e fiel a Ele no
pagamento dos dízimos” (Mariano, 1999).
75
temos apenas que alertar e ensinar o povo a verdade. É claro também que os
que são fiéis nos dízimos têm o privilégio de exigir de Deus o cumprimento
da promessa em suas vidas e, obrigatoriamente, o Senhor tem que cumpri-la
(MACEDO, 2007: 115-117).
Uma característica marcante do discurso na Prosperidade Santa, embasada na teologia
da prosperidade em sua orientação escatológica pós-milenarista, é a abertura que esta dá à
possibilidade do crente cobrar de Deus as bênçãos. No pentecostalismo clássico, e em menor
medida no deuteropentecostalismo – ou pentecostalismo neoclássico –, o crente devia se
submeter à vontade divina, humilhando-se e orando incessantemente para alcançar alguma
bênção almejada. Em contrapartida, segundo a concepção da teologia da prosperidade, ao
morrer na cruz para salvar a humanidade, Jesus Cristo quitou todas as dívidas da raça humana
provindas do pecado. Ou seja, o crente detém o direito legal de ser abençoado agora, neste
“mundo”. Não só pode como deve cobrar de Deus a prosperidade para que esta lhe sirva como
testemunho da superioridade de Jesus sobre os outros “deuses”. Segundo a compreensão dos
neopentecostais, a prosperidade serve majoritariamente a propósitos evangelísticos. Ser
próspero e ser santo não são, assim, condições excludentes. Pelo contrário, a posse de bens
neste “mundo” é sinal de aprovação por parte de Deus da conduta daqueles que o servem.
A ligação entre santidade e prosperidade é tão patente que uma circunstância, segundo
a teologia da prosperidade, pode fazer com que as promessas divinas possam ser
interrompidas em seu cumprimento na vida do fiel: a dúvida. Se uma benção material não é
alcançada na vida de um fiel neopentecostal, logo os líderes religiosos sustentam que a fé,
desdobrada nas intenções daquele que busca, ou os sacrifícios (muitas vezes em formas de
doações em dinheiro para a igreja) não foram suficientemente “santos”. Assim, é esperado do
crente que não duvide minimamente do recebimento da bênção para que o Diabo não o
subjugue anulando o direito sagrado (SOUZA & MAGALHÃES, 2002).
Se a prosperidade é dom de Deus, então, busque-a. Toda vez que você orar
persevere, mantenha-se firme, mesmo que uma voz infernal lhe diga: “Os
prósperos não agradam a Deus; você nunca prosperará”. Nesse caso, diga:
“Não, Satanás! Você está amarrado em Nome de Jesus! Esse dom é meu por
direito” (SOARES, 2003: 12).
Leonildo da Silveira Campos (1997), estudando sobre os neopentecostais e o discurso
da teologia da prosperidade, considera que os crentes que “cobram” de Deus suas bênçãos,
tendo os iurdianos como exemplo máximo, seriam menos “espirituais” do que outros que não
professam a mesma crença na prosperidade terrena, como os assembleianos não
neopentecostalizados. Não apenas Campos, como também outros autores sustentam que,
76
desse modo, os fieis da teologia da prosperidade vão às igrejas e realizam quase que uma
transação comercial com Deus, tendo o templo como um mercado da fé. Os crentes alinhados
com o neopentecostalismo seriam, assim, menos uma membresia e mais uma clientela. Esses
estudiosos reforçam seu argumento a partir das tendências neopentecostais de afastarem-se
dos estereótipos e condutas ascéticas – os sinais exteriores de santidade – que marcavam (e
ainda marcam) o pentecostalismo clássico. Porém, apesar do discurso neopentecostal da
teologia da prosperidade oferecer abertura para tal interpretação sociológica, acompanhemos
as palavras escritas por Edir Macedo logo após discorrer sobre a teologia da prosperidade:
A […] atitude que a pessoa deve tomar para ser abençoada financeiramente é
não colocar o coração em qualquer coisa deste mundo; mesmo as bênçãos de
Deus jamais devem ser objetos de adoração. O que acontece com muita
frequência é que a pessoa começa a prosperar financeiramente e,
automaticamente, quase sem perceber, começa a valorizar o que os seus
olhos estão vendo, em detrimento dos valores espirituais. É comum não ter
muito tempo para ir à igreja buscar a presença de Deus, porque as suas
atividades precisam de mais atenção. (MACEDO, 2007: 118).
Ou seja, apesar de realmente a teologia da prosperidade ter contribuído para uma
ressignificação da riqueza entre os neopentecostais, estes ainda precisam permanecer com
suas mentes, esforços e atenção voltados ao mundo espiritual. E o mundo espiritual só existe
para o evangélico-pentecostal em função do conflito do qual é palco. O mundo espiritual só
existe em função da Batalha Espiritual. Assim, os neopentecostais também precisam se
santificar, mesmo que não nos termos da Santidade Próspera assembleiana. Do contrário,
poderão ser facilmente enganados pelo Diabo. A santificação ainda guarda os termos de um
revestimento de poder espiritual.
Estamos rodeados de testemunhas, fatos e realizações que comprovam a
veracidade da Palavra de Deus, a honra que Ele tem por Sua Palavra.
Devemos, então, tirar todo embaraço: o pensamento maligno de desistir e a
incredulidade. Se a Bíblia diz que a prosperidade é dom de Deus, então,
devemos crer. Temos também de deixar o pecado. Quem é adúltero, ladrão,
desonesto, falso, mentiroso, cheio de vícios etc. não pode esperar receber de
Deus a prosperidade. É preciso tomar uma decisão por seguir realmente a
Palavra de Deus (SOARES, 2007).
Encarar os neopentecostais apenas como “clientes” de suas denominações não é
suficiente para compreender as redes de solidariedades e alteridades que se estabelecem nos
processos de identificação do converso. A descoberta das verdades veladas que julgam
possuir (aquelas que estão “por trás” do mundo físico) e o compactuar do imaginário social
evangélico-pentecostal faz com que o paradigma que os entende como uma empreitada
meramente comercial não seja suficiente para explicar as razões que os levam a tomar parte
77
na Batalha Espiritual. E como partícipes na Batalha, os fieis alinhados com a Prosperidade
Santa compartilham, necessariamente, o arcabouço identitário – desdobrado nas práticas
engendradas no marco das representações coletivas constituintes do imaginário social
evangélico-pentecostal.
2.1.3. Inovação teológica ou ênfase midiática sobre a Batalha Espiritual?
Este trabalho não pretende, de modo algum, esgotar a discussão acerca da revisão dos
fundamentos que sustentam as divisões tipológicas entre os pentecostais. Contudo, esperamos
que nossas sugestões sejam minimamente suficientes para que relativizemos a clássica e
equivocada interpretação da Batalha Espiritual entendida como elemento característico e
fundamental somente do neopentecostalismo. Não contamos com espaço suficiente para
aprofundarmos as possíveis razões que fizeram com que os estudiosos tomassem a Batalha
Espiritual como experiência de identificação marcadamente neopentecostal. Entretanto,
baseados na discussão acima exposta, não agiríamos de forma temerária ao sugerir que a
Batalha Espiritual, como experiência de conflito e demonização da alteridade, conheceu uma
maior visibilidade social a partir da década de 1970 devido aos novos usos e abordagens que
os neopentecostais fizeram das tecnologias midiáticas. Estes usos e abordagens encontram,
cremos, fundamentação nos quadros interpretativos da Prosperidade Santa que, por sua vez,
não demonizam a priori os avanços tecnológicos. Antes, tentam absorvê-los por meio de
apropriações e ressignificações.
Utilizando-se dos meios de comunicação de massa, os neopentecostais garantiram a
difusão massificada de seus ideais evangelísticos – demonizadores da alteridade – no espaço
público e, desse modo, tornaram a Batalha Espiritual mais visível. O conceito de espaço
público – basicamente o espaço midiático de trocas entre os sujeitos sociais – proposto por
Habermas (1984) prevê que as trocas informacionais que caracterizam seu funcionamento são
eminentemente harmoniosas. Habermas entende esse espaço como um lugar onde a expressão
e a ação comunicativa podem favorecer uma consciência coletiva capaz de possibilitar uma
existência solidária, não coercitiva, libertadora e igualitária entre os homens. A história dos
usos midiáticos na segunda metade do século XX foi suficiente para fissurar em vários pontos
a visão deveras otimista que Habermas propõe ao conceituar espaço público.
Segundo Avritzer e Costa, críticos de Habermas e revisionistas do conceito de espaço
público, a ideia de Habermas desconsidera as relações assimétricas de poder, a esfera pública
(ou espaço público) apresenta mecanismos de seleção que definem previamente quem serão
78
os atores que efetivamente terão voz pública e quais serão os temas tratados como públicos
(AVRITZER & COSTA, 2006).
Estes mecanismos são majoritariamente de natureza econômica. O poder monetário
pode comprar a voz nos meios massificados de comunicação. Os neopentecostais, que
multiplicaram exponencialmente o seu poder de arrecadação ao introduzir a teologia da
prosperidade como novo elemento norteador de sua conduta cristã, puderam fazer-se ouvir
através da TV, do Rádio, da Internet.
Assim, o uso racional e estratégico dos meios de comunicação auxiliou enquanto
estopim e mantenedor do acentuado crescimento das igrejas neopentecostais. Contudo, ao
mesmo tempo em que as igrejas neopentecostais – especificamente a IURD –, ao buscar
prosélitos e força política, tornaram seu discurso religioso visível no espaço público
constituído pelas mídias do século XX (radio, jornal, TV, internet), também explicitaram o
caráter fundamentalista da constituição de sua identidade social.
Com sua pedagogia guerreira, a Universal procura manter e acentuar a
dependência de soluções sacrais dos fiéis e, ao mesmo tempo, engajá-los,
cada vez em maior número e com mais ímpeto, numa luta incessante contra
os espíritos das trevas. Para Macedo, os cristãos não devem ficar na
defensiva, mas sim na ofensiva contra o Diabo, revertendo as conseqüências
de seus atos, conquistando território e pessoas para Jesus. Movidos pelo
ressentimento do povo eleito perseguido pelo Diabo, encorajados pela
liderança e embalados pela ira santa, pastores e fiéis ultrapassam o espaço
interno dos templos, provocam conflitos e agridem adeptos das religiões
adversárias, desencadeando a malfadada “guerra santa”. Convictos de que
contribuem para a vitória progressiva do bem sobre o mal, passaram a
combater as fortalezas do inimigo para fortalecer o exército divino e gozar
das bênçãos decorrentes desse posicionamento. […] O resultado de tamanha
disposição e motivação bélicas foi parar na imprensa, em delegacias de
polícia e na Justiça. Constam relatos de agressão física a adeptos dos cultos
afro, tentativas de invasão de centros e terreiros, vilipêndio por meio de
programas de rádio e TV (nos quais acusam umbanda e candomblé de
matarem crianças em rituais satânicos; queimam e destroem objetos,
imagens e assentamentos afros), publicações que os acusam de ligação com
o Diabo, passeatas e concentrações públicas de repúdio e protesto,
imposições forçadas da Bíblia, prática de cárcere privado e ruidosa ocupação
de espaços tradicionalmente utilizados pelos adversários durante suas festas
(MARIANO, 1999: 121-122).
As igrejas arroladas sob o termo neopentecostais são as que historicamente iniciaram
e, por constituição doutrinária na experiência prática de veiculação de comunicação de massa,
souberam melhor fazer uso dos meios eletrônicos de difusão de informações. Sugerimos,
então, que o uso racional e estratégico das mídias garantiu maior visibilidade tanto das
mensagens consideradas positivas pelas denominações evangélico-pentecostais – que
79
redundaram num acréscimo na taxa de conversos – quanto das mensagens calcadas no ódio
identitário às outras formas de manifestações religiosas, entendidas como diabólicas.
2.2. Representações coletivas e continuidades históricas.
Passemos, enfim, ao escrutínio das continuidades históricas das representações
coletivas que imprimem sentido à Batalha Espiritual, corroborando, assim, que esta já vem
fundamentando o imaginário social dos evangélico-pentecostais desde que estes
estabeleceram e expandiram a Assembléia de Deus no Brasil, durante os primeiros anos do
século XX. A Batalha Espiritual pode se rastreada por intermédio da continuidade histórica
das representações coletivas que lhe imprimem sentido. AD e IURD são passiveis de serem
tomadas como comunidade unificada se levarmos em consideração o compartilhamento do
arcabouço identitário evangélico-pentecostal.
Realizando o trabalho de análise do imaginário social compartilhado entre pentecostais
e neopentecostais, percebemos que o nível da compreensão das representações coletivas
compartilhadas entre os evangélico-pentecostais é um local privilegiado para entendermos a
demonização de sua alteridade. Alternando análises de citações de cunho teológico-
doutrinário, provenientes de escritos de pastores assembleianos datados das primeiras décadas
do século XX, e citações de escritos do líder da IURD, Edir Macedo, datadas, por sua vez, de
fins do século XX, demonstramos e corroboramos a existência do arcabouço identitário que
imprime sentido à Batalha Espiritual comum aos evangélico-pentecostais.
A teologia da prosperidade e a negação dos sinais exteriores de santidade, como
vimos, serviram para criar uma defasagem entre as percepções de algumas representações
coletivas presentes no imaginário evangélico-pentecostal. As distintas interpretações que
resultaram daí redundaram nas práticas e doutrinas neopentecostais que, apesar de
compartilharem o mesmo imaginário social dos pentecostais, encaram a participação neste
“mundo” doutra forma.
Na análise que se segue iremos respeitar a ordenação exposta no início deste capítulo,
a saber, uma ordenação de cunho temporal. Se tomarmos um sujeito participante quer da AD,
quer da IURD, este terá sua identidade invariavelmente configurada, minimamente, a partir da
constelação das sete representações coletivas aqui trabalhadas. Como já apresentamos
anteriormente, utilizamos os conceitos temporais de Koselleck (2006), a saber, espaço de
experiência (passado) e horizonte de expectativas (futuro), acrescidos de uma dimensão
presente para organizarmos a análise do leque de representações coletivas fundantes da
80
Batalha Espiritual. A cada uma destas dimensões (passada, presente e futura), designamos
determinadas representações coletivas componentes do imaginário social evangélico-
pentecostal.
Duas representações coletivas que auxiliam na constituição identitária do espaço de
experiências – Santa Ceia e Batismo nas águas22
–; três representações coletivas que
compreendem a vivência presente da Batalha Espiritual como um desdobramento do plano de
Salvação da humanidade que fomenta a linearidade da seta temporal passado, presente e
futuro – Batismo no Espírito Santo, biblicismo e o dualismo –; e, provendo de sentido o
horizonte de expectativas dos crentes, duas representações coletivas compartilhadas pelos
evangélico-pentecostais – Grande Comissão e Parousia. Estas representações coletivas não
foram aleatoriamente escolhidas entre as várias que constituem o imaginário social estudado.
Elas foram se mostrando reincidentes na extensão das análises que realizamos ao nos
debruçarmos sobre o material documental de ambas as igrejas, AD e IURD. Além disso, são
as que mais frequentemente eram mencionadas, direta ou indiretamente, quando realizamos o
escrutínio do material documental derivado dos hinários e discografias estudadas para
composição do capítulo terceiro.
2.2.1. Santa Ceia
A primeira representação coletiva que elegemos para compor o arcabouço identitário é
o rito da Santa Ceia. Os evangélicos, desde os protestantes históricos até os neopentecostais,
mantiveram apenas dois dos sete sacramentos católicos23
: o Batismo e a Santa Ceia (ou
eucaristia). Os Sacramentos são sinais externos e visíveis, ordenados por Cristo, que
estabelecem e prometem bênçãos espirituais. Mesmo que o termo sacramento não apareça na
Bíblia, pode ser intuído em várias passagens (LOPES & FERNANDES, 2008). A participação
no rito da Santa Ceia é amparado na literalidade da passagem da primeira epístola aos
Coríntios, versículos vinte três até trinta e quatro24
.
22
Discutiremos as doutrinas dos Batismos conjuntamente, num único tópico. 23
Os sete sacramentos católicos são: batismo, confirmação do batismo (crisma), confissão (ou penitência),
eucaristia, ordem (sacerdotal), matrimônio e unção dos enfermos. 24
“Porque eu recebi do Senhor o que também vos ensinei: que o Senhor Jesus, na noite em que foi traído, tomou
o pão; e, tendo dado graças, o partiu e disse: Tomai, comei; isto é o meu corpo que é partido por vós; fazei isto
em memória de mim. Semelhantemente também, depois de cear; tomou o cálice, dizendo: Este é o Novo
Testamento no meu sangue; fazei isto, todas as vezes que beberdes, em memória de mim. Porque, todas as
vezes que comerdes este pão e beberdes este cálice, anunciais a morte do Senhor, até que venha. Portanto,
qualquer que comer este pão ou beber o cálice do Senhor, indignamente, será culpado do corpo e do sangue
do Senhor. Examine-se, pois, o homem a si mesmo, e assim coma deste pão, e beba deste cálice. Porque o que
come e bebe indignamente come e bebe para sua própria condenação, não discernindo o corpo do Senhor. Por
81
Mas, para além do rito socialmente visível, a Santa Ceia é experimentada como um
momento de ligação emocional muito intensa com o passado da fé. Os cristãos martirizados e
os períodos de apostasia25
se fazem presentes no rito da Santa Ceia por meio da convicção,
embasada na fé, de que o Espírito Santo não permitiu que a celebração máxima à memória do
Cristo fosse anulada durante os quase dois mil anos que separam a atual geração de fiéis
daqueles apóstolos que inicialmente comeram da carne e beberam do sangue de Jesus.
Na coletânea de artigos históricos do Mensageiro da Paz podemos encontrar algumas
referências a celebração da Ceia. Analisemos a seguinte referência escrita pelo pastor João de
Oliveira em junho de 1962:
A ceia do Senhor é outra ordem sagrada. Devem os crentes se reunir nesse
dia em sua congregação para, pela obediência da fé, com um coração aberto,
obedecer a esse mandamento (Lc 22.19-20 e 1Co 11.23,31). Todos os
crentes, no dia da Ceia, isto é, no partir do pão, deveriam estar unidos e
presentes no ato. Havendo embaraços, devem ser consertados em tempo, e
caso esteja doente, deve pedir ao pastor que lhe administre no leito esse
divino ato da Santa Ceia do Senhor. (ARTIGOS Históricos – Mensageiro da
Paz, 2004: 84. 2 v).
A importância da participação no rito da Ceia, para o evangélico-pentecostal, se
assenta na continuidade de um mandamento estabelecido pelo próprio Cristo. É uma das
formas primárias de se afirmar a identidade ao fortalecer as ligações com a comunidade dos
“santos”. Apenas os membros batizados nas águas podem participar do “corpo e sangue” de
Jesus, ou seja, comer o pão e beber o suco de uva. Dentre os irmãos, a participação é vetada
àqueles que estiverem em pecado, ou seja, tiverem realizado algo detestável ou não aceitável
aos olhos da comunidade da qual faz parte. O restabelecimento da participação se dá depois
de um período de provação estipulado pelo pastor. Esta prática é mais comum entre os
assembleianos zelosos pelos “usos e costumes”. Os iurdianos raramente afastam seus
membros da participação na Santa Ceia. Estes últimos entendem que a participação na
celebração do corpo e sangue de Cristo serve como um forte argumento para propiciar o
arrependimento e o “conserto” daquele que pecou. Se seguirmos na leitura do texto do pastor
Oliveira, o encontramos repreendendo aqueles que não realizam a Ceia do Senhor com o
devido respeito.
causa disso, há entre vós muitos fracos e doentes e muitos que dormem. Porque, se nós nos julgássemos a nós
mesmos, não seríamos julgados. Mas, quando somos julgados, somos repreendidos pelo Senhor, para não
sermos condenados com o mundo. Portanto, meus irmãos, quando vos ajuntais para comer, esperai uns pelos
outros. Mas, se algum tiver fome, coma em casa, para que vos não ajunteis para condenação. Quanto às
demais coisas, ordená-las-ei quando for ter convosco.” (Bíblia de Estudos Plenitude, 2001) 25
Na visão dos evangélico-pentecostais, a apostasia da fé e a trajetória de constituição e hegemonia da igreja
Católica Romana – até a Reforma – são períodos equivalentes, pois a fé Católica seria, no seu entender,
apostata.
82
Infelizmente, quantos crentes desejam estar de coração na Ceia do Senhor?
Até muitos se excluem a si mesmos desse ato importante, “inventando
viagens”, ou mesmo ocupando-se em serviços caseiros no dia da celebração
da Ceia do Senhor. Que poderá suceder a tais criaturas no Dia de Cristo?
(ARTIGOS Históricos – Mensageiro da Paz, 2004: 84. 2 v).
Participar da Santa Ceia é, basicamente, confirmar o testemunho da ancestralidade
cristã, afirmar a união com a comunidade viva dos fieis e anunciar a espera da Segunda Vinda
de Cristo. Os evangélico-pentecostais buscam espelhar a prática de comunhão dos cristãos
primitivos. Desse modo, este é um ritual que, majoritariamente, aponta para uma dimensão
passada, apesar de fazer menção ao futuro regresso de Jesus. Dá à constituição identitária um
sentimento de pertença ao plano de salvação, à “História” escrita por Deus. Nesse sentido, a
“História”, como a entende os evangélico-pentecostais, está amparada num espaço de
experiências que trabalha ressemantizando o corpus historiográfico ocidental de forma que
este esteja consonante com o cumprimento da vontade divina.
Edir Macedo não abriu mão da prática da Santa Ceia para formar sua igreja. De fato,
nem poderia. O rito está fortemente incrustado na prática cristã. Além disso, a ordenança dos
termos do ritual está explícita no texto bíblico. Edir Macedo, em suas elucubrações
doutrinárias, explica as razões de Cristo ter estabelecido tal ordenança:
Muito embora o Senhor Jesus não tenha feito nenhum paralelo da Páscoa
com a Santa Ceia, até porque Ele participou primeiramente da Páscoa e
depois da Ceia, podemos compreender perfeitamente que Ele quis instituir, à
sombra da Páscoa, uma nova liturgia, que tivesse o mesmo calor espiritual
da Páscoa, para todos os que O aceitam como Salvador. Para exemplificar,
tomemos o povo judeu, que teve na Páscoa a marca de sua libertação. Para
os povos não-judeus, os quais viriam a aceitar o Senhor Jesus como
Salvador, qual seria a marca ou a festa litúrgica para expressar a sua
libertação do pecado e do inferno? Com esse propósito, o Senhor Jesus
instituiu a Santa Ceia (MACEDO, 2001: 70).
Entretanto, Edir Macedo vai além, utilizando o ritual de confirmação da espera de
Cristo como metáfora para sustentar o pensamento da Prosperidade Santa.
[…] Quando o Senhor Jesus determinou que o pão abençoado e partido para
os Seus discípulos era o Seu corpo, estava mostrando o real sentido da Sua
vida física, isto é, Seu vigor e Sua saúde, partidos em favor de todos que O
aceitam como Salvador, a fim de que venham a ser participantes da Sua
própria natureza, gozando de Sua saúde física.
[…] Essa nova e última aliança coloca definitivamente o cristão diante de
Deus-Pai, na posição de um real e verdadeiro filho, com obrigações, mas
com todas as regalias e privilégios, inclusive poder se dirigir a Deus tal qual
o Senhor Jesus fez e, ainda por cima, o direito de receber a infusão do
Espírito Santo. […] A Santa Ceia anuncia todo o ministério glorioso do
nosso Senhor: Suas curas; Seus milagres extraordinários; Sua compaixão e
interesse pelos pobres e oprimidos, além de apontar Sua grande e magnífica
83
vitória sobre o diabo e todos os seus demônios, na Sua morte e ressurreição
ao terceiro dia. Em resumo, podemos considerar que, da mesma forma pela
qual o corpo do Senhor Jesus, simbolizado pelo pão, nos dá a total saúde
física, também o Seu sangue, simbolizado pelo vinho, nos dá a saúde
espiritual (MACEDO, 2001: 72-73).
A Santa Ceia, enquanto rito compartilhado entre assembleianos e iurdianos, desdobra-
se numa das representações coletivas que menos sofreu ressignificações com a mudança da
matriz interpretativa da Santidade Próspera para a da Prosperidade Santa. A acessibilidade
literal do ritual no texto bíblico, amparada numa tradição que ecoa em todas as denominações
evangélico-pentecostais do século XX, não deixa muitas brechas para qualquer tipo de
polêmica quanto à necessidade de sua perpetuação no imaginário social.
2.2.2. Batismo (águas e Espírito)
A “doutrina dos batismos” é um dos fundamentos da visão de mundo evangélico-
pentecostal. Desdobra-se em duas representações coletivas compartilhadas pelos fiéis: o
batismo nas águas e o batismo no Espírito Santo (ou batismo com fogo). O batismo nas águas
remete o fiel à perpetuação do rito do “novo nascimento”. Assim, o converso é inserido numa
comunidade imaginada milenar, daí a arrolarmos ao espaço de experiência evangélico-
pentecostal. Já o batismo com o Espírito Santo prepara o fiel para enfrentar, no presente, as
ameaças demoníacas ao engajar-se na Batalha Espiritual (todas as tais ameaças espirituais se
desdobram no mundo físico).
Visando a participação efetiva na identidade religiosa, o crente precisa passar pelo rito
do batismo nas águas. Fundamentados nas passagens bíblicas que relatam os feitos de João
Batista pouco antes de Jesus iniciar seu ministério terreno, os crentes, em seu projeto
imaginário de promover a imitação da vida de Jesus, sustentam que o cristão precisa,
inescapavelmente, realizar o batismo nas águas: o batismo do arrependimento. Este é um dos
temas polêmicos causador de discussões entre a visão cristã pentecostal e a Católica
Apostólica Romana.
Para os evangélico-pentecostais, o batismo por aspersão praticado pelos católicos não
é o verdadeiro batismo. Só o batismo por imersão nas águas, praticado por suas igrejas desde
os primórdios do movimento pentecostal, pode ser considerado como autêntico rito de
separação entre o “velho homem” – o homem mundano e pecaminoso – e a “nova criatura” –
cuja vida pretensamente estará em função dos ensinamentos de Jesus. O batismo nas águas,
assim como a Santa Ceia, é um elo entre o converso e as pretéritas gerações de crentes.
84
Identificar-se com esta representação coletiva em especial é ter acesso a um espaço de
experiências – o testemunho dos mártires e missionários – rico em exemplos de resignação,
resistência e virtude aos olhos dos fieis.
O “Velho homem” é um termo retirado do texto bíblico que designa a vida viciosa,
detestável e pecaminosa que o recém convertido sinaliza estar abrindo mão ao ser batizado
nas águas. As águas “sepultam o velho homem” que se arrepende de seu pecado. Quando é
levantado de dentro do lago, rio ou piscina em que foi mergulhado pelo pastor, o velho
homem dá lugar à nova criatura em Jesus. Desta forma, de acordo com a visão evangélico-
pentecostal, o batismo por aspersão praticado pelos católicos é duplamente condenável, pois,
além de não “sepultar” simbolicamente o corpo do velho homem nas águas, tal como fazia o
próprio João Batista aos que lhe procuravam, os católicos batizam recém-nascidos e crianças
que, no entender dos crentes, não estão aptas a tomar uma decisão consciente por Jesus. Só
quando há consciência, convicção de pecado e arrependimento é que são realizados os
batismos nas águas entre os evangélico-pentecostais (mesmo que esta convicção
supostamente se dê aos dez ou doze anos de idade).
Já o batismo no Espírito Santo seria uma segunda etapa de participação na identidade
evangélico-pentecostal a ser conquistada pelo crente. O Batismo com fogo, como as outras
representações coletivas trabalhadas neste arcabouço identitário, possui determinado apelo à
participação na tradição apostólica, ou seja, sinaliza a manutenção da herança cristã.
Entretanto, será na contingência do presente que sua realização encontra meios de sustentar o
imaginário da Batalha Espiritual. Enquanto o batismo nas águas é um ritual material – o meio
é a água física – que sinaliza ao mundo espiritual, o batismo no Espírito Santo será um
fenômeno espiritual que, segundo assembleianos e iurdianos, redunda em sinais físicos –
glossolalia. Sobre as distinções entre batismos e suas funções na vida do crente,
acompanhemos um trecho do artigo O batismo no Espírito Santo e com fogo de autoria de
Elienai Cabral, publicado no jornal Mensageiro da Paz, em janeiro de 1986.
Precisamos perceber as distinções existentes em ambos os batismos. O
batismo em águas é a administração figurada do arrependimento e da obra
regeneradora. A Água é a figura da purificação, da lavagem, da limpeza. Por
isso, o batismo em águas, sob um prisma negativo, é a figura da dor, da
tristeza para com o pecado, da humilhação do “eu carnal” e o aborrecimento
do pecado. Porém, o batismo no Espírito Santo em fogo tem um sentido
positivo na nova vida em Cristo Jesus (ARTIGOS Históricos – Mensageiro
da Paz, 2004: 46. 3 v).
O mesmo Elienai Cabral, no artigo A atividade do Espírito Santo na nova vida,
publicado, também, no jornal Mensageiro da Paz, de agosto de 1983, explica sobre o tempo
85
que pode transcorrer entre batismo nas águas e batismo no Espírito Santo. Por vezes o crente,
mesmo após o batismo nas águas, pode levar anos para conseguir o batismo com o Espírito.
Um crente pode ser “cheio do Espírito” sem “ser batizado no Espírito
Santo”. Estar cheio do Espírito significa estar pleno da nova vida em Cristo.
Toda pessoa quando aceita a Cristo recebe a imediata habitação do Espírito
Santo no seu interior. Todas as bênçãos da salvação, como convicção dos
pecados; a cura das doenças; o desejo de servir a Deus; a paz interior são
produzidas pelo Espírito no interior do crente. A disposição para servir e
louvar a Deus; o ímpeto para evangelizar resultam de uma vida “cheia do
Espírito”. Ser batizado no Espírito é uma experiência distinta que equivale a
ser mergulhado na fonte do Espírito. Ser cheio do Espírito equivale a receber
um derramamento por cima e para dentro. É como tomar água da fonte e
derramar dentro de uma vasilha té (sic.) enchê-la, sem imergi-la na dita
fonte. Entretanto “ser batizado” significa ser mergulhado dentro da fonte. É
imergir a vasilha na fonte (ARTIGOS Históricos – Mensageiro da Paz, 2004:
36. 3 v).
Hulda Stadtler (2002), psicóloga que estudou a conversão ao pentecostalismo e as
alterações cognitivas que esta acarreta ao converso, legou-nos um testemunho minimamente
interessante de sua passagem como pesquisadora participante não sistemática dentro da
religião. De fato, a autora relata haver vivenciado uma verdadeira experiência pentecostal
descrevendo-a nos termos que seguem:
Eu estava em um culto pentecostal como "uma boa observadora participante"
e assim dirigi-me para a frente do grupo junto com outros e solicitei que os
pastores impusessem suas mãos sobre minha cabeça para que recebesse o
batismo do Espírito Santo, tal qual estava sendo pregado. Eu pensava, se sou
de qualquer modo uma crente, e se é verdadeira a experiência do que os
crentes chamam "batismo de fogo" eu quero comprová-lo. Mas nada ocorreu
durante aquele momento. Fui então para casa pensando sobre o que dizer
quando escrevesse em meu trabalho. Para completar minhas dúvidas, 90%
dos casos de glossolalia que já havia analisado poderiam ser considerados
casos de aprendizagem por instrução. Porém, por outro lado, 10% dos casos
vistos, não poderia incluir sob a mesma análise qualitativa, porque eu não
encontrava qualquer dissonância entre o discurso dos falantes sobre suas
experiências espirituais e o comportamento diretamente observado. Após
três ou quatro horas de volta a minha casa, esquecida do que havia ocorrido
durante o culto, eu combinava, no telefone, com outros crentes para ir
participar de um novo culto. Subitamente, após desligar o telefone, meu
corpo começou a tremer e eu passei a sentir uma espécie de dor psicológica
profunda como se buscasse em vão perdão por uma culpa desconhecida. Daí
comecei a chorar e chorar sem que pudesse controlar o choro. Penso que
gastei uma boa meia hora desse modo, e o choro não parecia com nada que
eu houvesse experienciado antes. A única coisa que me veio a cabeça foi
perguntar: o que é isto meu Deus? A palavra Deus, provavelmente dita de
modo automatizado, expandiu-se de modo impressionante em minha mente e
ecoava sem parar. Eu repetia, Deus, Deus, Deus, sem poder conter a
extensão pulsante desta idéia. Então, uma alegria profunda tomou conta de
meu corpo como ondas de energia e eu sentia calor e frio alternadamente.
Mas o sentimento era bom, muito bom como se houvesse um mar de alegria
86
e ondas dentro de mim. Após algum tempo dirigi-me ao banheiro para olhar
meu rosto no espelho, muito embora ainda estivesse chorando. A visão
chocou-me, meus olhos eram duas pedras de sangue embora eu conseguisse
ver perfeitamente. Decidi telefonar para uma médica amiga. Ela apareceu
pouco tempo depois e não conseguia entender porque meu quadro clínico
pareceu-lhe perfeitamente normal. Fui a um hospital de olhos pois não era a
especialidade de minha amiga. O médico examinou-me clinicamente, em
seguida observou cuidadosamente meus olhos e a pressão, mas não
encontrou qualquer razão fisiológica para aquilo. A pressão era mais que
normal. Voltei para casa com um tampão em um dos olhos e com a
recomendação de que nada fizesse que envolvesse esforço visual durante
uma semana. Tudo desapareceu tão rápido quanto surgiu, menos um
pequeno derrame que marcou a experiência por uns dois anos (STADTLER,
2002: 120).
A autora argumenta que o estopim para ativar as alterações cognitivas sofridas quando
da conversão ao pentecostalismo, pode ser rastreado na co-participação no sentimento
coletivo de convencimento de culpa e subsequente necessidade de perdão. Ainda segundo
Stadtler, o novo sistema cognitivo ao qual o sujeito passa a comungar quando de sua
conversão – encarado neste trabalho como a constelação mínima das sete representações
coletivas elencadas –, além de promover um forte sentimento de pertença à comunidade
(identidade), é capaz de ressignificar e explicar as adversidades da vida cotidiana em função
de elementos inerentes ao imaginário pentecostal. Para a autora, as alterações na visão de
mundo do sujeito que se reconhece como deixando uma vida pecaminosa e mundana (a vida
de um gentio) ao identificar-se às comunidades pentecostais têm origem nas alterações da
concepção de pessoa – o modo como o indivíduo pensa a si mesmo – geradas por mensagens
religiosas poderosas. Isto fica demonstrado, segundo Stadtler, quando os crentes recorrem
sistematicamente às doutrinas para raciocinar tanto sobre problemas formais, quanto aos
problemas do dia-a-dia. Assim, o pentecostalismo trabalha no sentido da transformação das
estruturas cognitivas de percepção e interação do sujeito com seu meio e consigo mesmo
através da reconstrução de sua visão pessoal de realidade (STADTLER, 2002).
Toda esta refinada e sutil transformação imaginária dá-se no cadinho das
representações coletivas compartilhadas pelos evangélico-pentecostais. Os batismos, nas
águas e no Espírito Santo, são, aos pentecostais, invariantes identitárias fundacionais. Daí
podermos encontrar as mesmas representações acerca das doutrinas dos batismos nos textos
de Edir Macedo datados de fins do século XX.
De fato, o batismo nas águas é mais que um testemunho público da
conversão de uma pessoa ao Senhor Jesus. Através dele somos sepultados da
mesma maneira que o Senhor o foi, significando que a nossa vida, para nós e
para o mundo, está definitivamente morta. Pelo sepultamento, através do
batismo, deixa de existir o nosso eu para o pecado, o qual já não terá mais
87
domínio sobre nós, porque através do batismo já estamos mortos para ele.
[…] O arrependimento, portanto, é a condição básica para o candidato ser
batizado [nas águas]. Muitas pessoas se batizam sem se arrependerem. O
resultado é a existência em nosso meio de pessoas “convencidas”, e não
“convertidas” ao Senhor Jesus Cristo. Elas estão sempre criando problemas
para a Igreja em geral: ora discutem com um, ora brigam com outro, falam
do pastor, das obreiras; enfim, nunca estão contentes com nada, pois o
ambiente no qual estão não lhes pertence. Tais pessoas continuam vivendo
sob o domínio do pecado, uma vez que não têm sua carne sepultada com
Cristo (MACEDO, 2001: 76-78).
Edir Macedo, mais ousado do que os articulistas do Mensageiro da Paz, chega a
oferecer aos fieis ávidos pelo revestimento de poder espiritual um “passo-a-passo” para que o
crente consiga ser batizado com o Espírito Santo.
De repente você sentirá uma alegria, e esta vai aumentando gradativamente
até haver um gozo inexplicável sentido no corpo; daí seu linguajar passará a
ser bem diferente. Você não entenderá nada; mesmo assim, continuará a
falar estranhamente e não sentirá vontade de parar mais. Você estará selado e
batizado com o Espírito Santo! Quando alguém é batizado com o Espírito de
Deus, recebe logo, imediatamente, o fôlego de Deus em sua vida, para lutar e
vencer qualquer tipo de batalha. O Espírito Santo passa a coordenar nossas
ações de tal modo que jamais deixamos brechas para sermos atingidos pelo
diabo. Tornamo-nos ilimitados nas realizações da vontade de Deus
(MACEDO, 2001: 87-88).
2.2.3. Biblicismo
Por biblicismo entendemos uma coletânea de doutrinas que configuram certa postura
que rege o uso da Bíblia. Essas doutrinas são tributárias, em sua forma pentecostal, às
teologias fundamentalistas desenvolvidas nos EUA por igrejas protestantes históricas durante
o século XIX. Possuem em seu cerne, de acordo com Azevedo (1999), as seguintes
características: afirmação do livre-exame da Bíblia, subordinação da experiência espiritual à
Bíblia, leitura atomizada e seletiva, interpretação literal e devocional, eventual uso da Bíblia
como amuleto. Azevedo, que realizou uma análise sobre a influência dos livros protestantes
no Brasil durante o século XX, considera, em sua pesquisa, os pentecostais como protestantes,
sem maiores distinções tipológicas. O pesquisador demonstra que apesar de serem poucos os
livros voltados ao tema, há uma teologia orgânica não-sistematizada entre os protestantes. A
razão para a escassez de tratados teológicos entre o segmento religioso, ainda segundo
Azevedo, se dá pelo caráter de insignificante necessidade de trabalhos de tal monta. A
teologia pentecostal estaria difusa nos textos devocionais, nos estudos para educação
religiosa, nos artigos para os jornais e, sobretudo, nos hinos cantados pelas congregações. Se
88
se quiser estudar a teologia protestante brasileira, é nessas fontes que se deve beber
(AZEVEDO, 1999). Concordamos com Azevedo no que tange a natureza das fontes
teológicas, apesar de fazer uma ressalva ao modo como o autor unifica indistintamente igrejas
pentecostais e protestantes.
Retomando as colocações de Azevedo acerca do biblicismo, que julgamos serem
passíveis de aplicação aos evangélico-pentecostais, podemos afirmar que o livre-exame da
Bíblia acompanha o cristianismo protestante desde a Reforma. A liberdade interpretativa, que
quase sempre é literal e devocional, deu origem à formação de práticas as mais variadas
dentro do pentecostalismo. As “oportunidades” que se desenvolveram dentro da Assembléia
de Deus – momentos oferecidos para que os membros possam dar seus testemunhos ou
realizar a leitura e comentário de determinado texto bíblico – auxiliaram na manutenção de
uma forma de leitura atomizada e seletiva do texto bíblico. A maior parte da membresia que
iniciou o processo de cristalização de uma mensagem pentecostal estava aquém dos
nuançados debates acadêmicos. Os princípios básicos de contextualização para uma leitura,
no mínimo coerente, por parte dos fieis, redundando numa compreensão detida e ponderada,
dificilmente eram respeitados nos momentos de preleção. Já o uso da Bíblia como amuleto é
uma característica herdada do catolicismo popular. A abertura e leitura de um texto à revelia,
escolhido como que por sorteio após folhear a Bíblia com determinada questão em mente,
também é prática comum realizada pelos evangélico-pentecostais; ou seja, a Bíblia é tomada
por alguns como um oráculo de sortes.
No artigo de Alcebíades P. Vasconcelos, A Palavra do Senhor permanece
eternamente, publicado em setembro de 1953 no Mensageiro da Paz, podemos ler a seguinte
passagem sobre a Bíblia e seu uso pelo crente:
Qual é o motivo de essas duas entidades [a Palavra de Deus e o crente em
Jesus] não sofrerem deterioração com o passar dos tempos? Respondemos:
Há entre elas uma afinidade perfeita que as torna participantes da
imortalidade gloriosa, é a natureza divina! Pois a Palavra é a Palavra de
Deus, e como Deus ela é eterna, Jesus disse: “Os céus e a terra passarão, mas
a minha Palavra não passará” desta compreensão estavam possuídos os
profetas da antiga dispensação, havendo um deles escrito: “Senhor, a tua
Palavra para sempre permanece no céu”. Aleluia! E, o crente, sendo filho de
Deus, tem Dele a promessa de com Ele habitar em seu Reino eterno, por
aqui na terra executar a sua vontade, conforme está escrito: “...aquele que faz
a vontade de Deus, permanece eternamente”. Graças a Deus. Meus amigos,
esta vitória do crente, é também vitória da Palavra de Deus, a Bíblia
Sagrada, pois sem o seu conhecimento ninguém chegará a servir a Deus
convenientemente! […] Esta Palavra permanece inalterável, da mesma
forma como saiu daqueles corações inflamados pelo Espírito Santo que
como crateras do Céu, sob mais sublime aspiração, exortaram quanto ao
89
presente e vaticinaram quanto ao futuro do homem, dando-lhe o
conhecimento Daquele que habita eternamente na luz inacessível. Sobre ela
os séculos não têm influído e jamais influirão. Ela permanecerá para quando
tudo que é aparente desaparecer. Ela existirá nos “novos céus e nova terra”
onde habitará a justiça! (ARTIGOS Históricos – Mensageiro da Paz, 2004:
59. 2 v).
Segundo Mendonça & Velasques (1990), o fundamentalismo é uma das características
presentes nos movimentos pentecostais. Uma das bases do fundamentalismo como doutrina
apropriada por AD e IURD pode ser identificada como o biblicismo que beira uma verdadeira
biblolatria. O biblicismo desenvolvido pelas igrejas evangélico-pentecostais brasileiras pode
ser considerado como um derivado da tese da inerrância bíblica, defendida pelos teólogos de
Princeton no século XIX. Os defensores da inerrância bíblica sustentam que o texto bíblico é
infalível e inspirado pelo Espírito Santo. Porém, não a Bíblia em suas traduções, mas somente
os textos manuscritos originais que de fato seriam dignos de receberem essa atribuição. Este
aspecto foi atenuado pelos evangélico-pentecostais que, instando em fundamentar sua visão
dogmática de mundo e raramente tendo acesso aos textos escritos nas línguas originais (grego
e hebraico), foram forçados a considerar os diversos homens que trabalharam nas traduções
da Bíblia como participantes num tipo de inspiração pelo Espírito Santo, um revestimento de
poder espiritual místico que os teria guiado enquanto trabalhavam na tradução do texto
sagrado. Desse modo, os defensores da inerrância garantiram um vigoroso argumento em
favor de suas concepções biblicistas. A pureza do texto original foi mantida quando o Espírito
Santo capacitou misticamente os tradutores.
Podemos citar duas outras características da tese da inerrância bíblica que, no cerne
das ideias biblicistas, foram apropriadas e/ou modificadas pelos evangélico-pentecostais.
Seriam as seguintes: a inerrância bíblica não diz respeito à exatidão de informações científicas
ou geográficas e a historicidade dos fatos bíblicos é tomada como descrição fiel do passado.
Deste modo, há aqueles que sustentam que a Bíblia contém instruções sobre a realidade
espiritual somente, considerando a ciência como linguagem menos valiosa.
O homem natural não pôde ainda compreender a razão da fé; não conseguiu,
ainda, captar os seus recursos ilimitados, nem a sua origem. Isso porque o
seu campo de estudo e pesquisa se restringe apenas ao mundo físico, muito
embora nesse mesmo campo da Ciência seja necessário usar de recursos
abstratos para apoiar suas teorias, as quais se tornam ultrapassadas com o
decorrer dos séculos, ignorando a força maior da certeza absoluta
(MACEDO, 2007: 160).
Entretanto, há aqueles que não dão crédito algum ao discurso científico. Nesse sentido,
alguns evangélico-pentecostais, entre eles os que possuem menos instrução, consideram que
90
os fatos científicos são, em verdade, mentiras armadas por Satanás para enganar o homem.
Um exemplo são as opiniões acerca da descoberta de fósseis de dinossauros. Como o mundo,
segundo a literalidade bíblica obsedante, não teria mais do que sete mil anos, a existência de
repteis gigantes vivendo há 65 milhões de anos só pode ser, aos olhos dos biblicistas mais
aguerridos, um engodo maligno para contribuir com a descrença de nossa geração corrupta.
Zwinglio M. Dias, em seu texto Fundamentalismo: o delírio dos amedrontados
(2008), ao comentar o trabalho de Heinrich Shäfer sobre o fundamentalismo, escreve que por
meio do biblicismo o evangélico-pentecostal rompe a diferença categorial entre o divino e o
humano, entre a fé e a visão, entre a confiança e o conhecimento. Por meio da literalidade de
sua prática de exegese ele transforma aquilo que é próprio dos atores (suas necessidades e
seus interesses) em algo que se torna absoluto e passa a ter validez universal. Isto se dá por
dois motivos. Primeiramente, por aproximar-se do texto, ou da experiência com o Sagrado, a
partir de preconceitos determinados por suas situações particulares (pessoais, sociais,
políticas, etc.), o texto, ou a experiência, é transformado pelo evangélico-pentecostal num
espelho – ainda que turvo – dos seus próprios interesses. Há aqui um processo ativo de
projeção da subjetividade do leitor aproveitando-se, inconscientemente, das ambiguidades
inerentes ao texto sagrado. Em segundo lugar, por considerar esta experiência, cognitiva ou
emocional, que é necessariamente uma experiência particular, portadora de validez absoluta e
universal.
Através desta operação conceitual o fundamentalismo religioso utiliza o elemento
transcendente do sagrado como meio para que o sujeito, norteado pelo imaginário social
evangélico-pentecostal, retome aquilo que lhe é cotidianamente próprio de um modo novo:
como algo sacro. Zwinglio conclui que a vivência sob a égide da hermenêutica
fundamentalista será, desse modo, sempre auto-centrada (ZWINGLIO, 2008).
A crença na ação do Espírito Santo como mantenedor da inerrância do texto bíblico
está patente na passagem que citamos abaixo. “De Deus não se escarnece”, diriam os fieis
evangélico-pentecostais. O texto foi retirado do artigo do pastor Alcebíades P. Vasconcelos,
datado de 1953.
Voltaire, depois de declarar ser a Bíblia “A maravilha de todos os escritos
orientais e de uma beleza admirável e conclusões tais de arrancar lágrimas
de enternecimento”, loucamente, em sua incredulidade, profetizou a seu jeito
cético, que ao fim da alguns anos, seria a Bíblia como qualquer outro livro
dos filósofos, entregue ao esquecimento! Deus, no entanto, respondeu a essa
louca profecia dum modo especial: A Sociedade Bíblica adquiriu a casa onde
a mesma fora anunciada, e dali, a Bíblia clama e exorta a nobre nação
francesa a se preparar para Deus. Isto ainda em nossos dias, quando a
91
memória do falso profeta está desaparecendo juntamente com a sua filosofia
negativa (ARTIGOS Históricos – Mensageiro da Paz, 2004: 62. 2 v).
As colocações sobre a inerrância e as práticas de literalidade na interpretação do texto
bíblico, as fundamentações do biblicismo, prosseguem vigorosas nas produções doutrinárias
de autoria do Bispo Edir Macedo, da IURD. Nos textos analisados encontramos diversas
passagens referentes ao biblicismo, indicando, assim, uma efetiva continuidade desta
representação coletiva. Vejamos alguns exemplos:
A Bíblia é uma coleção de 66 livros que contêm a revelação de Deus para os
homens. Eles foram escritos por, pelo menos, 36 homens, durante um
período de 1500 anos. Esses homens, ao escreverem os seus livros, foram
poderosamente inspirados pelo Espírito Santo, a ponto de todas as palavras
ficarem perfeitamente colocadas dentro da exata expressão da mente de
Deus. Tanto que o próprio Senhor Jesus a utilizou nos mínimos detalhes
dentro do Seu ministério terreno. Dentre aqueles homens que foram dirigidos
pelo Espírito de Deus para escrever a Bíblia, havia reis, agricultores,
pastores, advogados, pescadores, um médico e um cobrador de impostos.
Embora esses homens tenham sido simples, em sua maioria, ainda assim, a
Palavra que Deus lhes inspirou a escrever é incontestável: não houve, não
há, e jamais haverá alguém que possa provar o contrário do que ela afirma. É
como o próprio Senhor Jesus disse: “Passará o céu e a terra, porém as
minhas palavras não passarão.” (Mateus 24.35). […] A sua palavra prova
por si mesma que é a única verdade capaz de levar o ser humano à liberdade
que lhe tem sido negada por causa da falta de conhecimento do Deus Vivo.
As pessoas que têm negado a veracidade da Palavra de Deus, ou que lhe têm
omitido a perfeição, procedem desta forma pelo fato de que os espíritos em
que elas têm confiado com fé são justamente os que lhes cegam o
entendimento, a ponto de não conseguirem ver que as suas próprias vidas são
a maior evidência do grande engodo da mente que dá crédito ao ocultismo
(MACEDO, 2001: 69-70).
Dificilmente o fiel alinhado com a identidade evangélico-pentecostal poderá achar
uma saída dessa aporia metalinguística: o texto bíblico é sagrado, pois há passagens nele que
assim o afirmam. Se se toma a Bíblia como afirmação da vontade divina, as passagens que no
texto bíblico ponderam sobre sua inerrância saltam aos olhos do leitor fiel como indícios
óbvios e, por isso, indiscutíveis da própria sacralidade. Não perceber isso e não compactuar
das visões biblicistas é uma característica que deriva da ação de um ressumado ímpio aos
olhos da comunidade evangélico-pentecostal.
A Bíblia convence o homem de sua situação errada quanto a Deus e à vida.
Pela ação do Espírito, ela o leva à conversão. Guia o homem a Cristo e ao
encontro da vida plena e abundante n’Ele. […] Não existe outro livro capaz
de transformar bêbados, prostitutas, pervertidos, ladrões, assassinos, viciados
ou maníacos em criaturas piedosas, tementes a Deus e úteis à sociedade!
(MACEDO, 2001: 31).
92
Edir Macedo nos explica como funciona o mecanismo divino de unção dos intérpretes
e tradutores da Bíblia: o fato de serem guiados na leitura pela ação do Espírito Santo. Ou seja,
percebemos que, para que a mensagem pentecostal não ficasse à deriva nos modismos ou nas
interpretações deveras particularizadas do texto bíblico – cada crente com seu próprio
Evangelho –, fez-se necessário o desenvolvimento de uma determinada tradição interpretativa
repassada de púlpito a púlpito através dos decênios, durante o século XX. As características
mínimas dessa tradição interpretativa compartilhada por assembleianos e iurdianos podem ser
apreendidas na própria manifestação da representação coletiva do biblicismo.
É importante frisar que a Bíblia, sem a unção do Espírito Santo, é um
simples livro de História. Para poder servir aos propósitos de Deus, precisa
ser lida sob a orientação do Espírito de Deus; de outra forma, tornar-se-á
apenas letra, “... porque a letra mata, mas o espírito vivifica.” (2 Coríntios
3.6) De fato, a sua interpretação não poderia ser de outra fonte, porque era e
é necessário que seu próprio Autor explique exatamente o que quer dizer,
pois se cada um a interpretar à sua maneira, como se poderia realmente
conhecê-la? É por essa razão que existem muitos falsos profetas, falsos
pastores, falsas igrejas e inúmeras religiões que, inspiradas por espíritos
enganadores e mentirosos, têm interpretado a Bíblia à sua maneira, no
sentido de tirar proveito para si mesmos, e levando, literalmente, bilhões de
almas para o inferno. Como podemos saber a interpretação correta? É
justamente por isso que o Espírito Santo nos foi enviado, para guiar-nos a
toda verdade, conforme o Senhor Jesus prometeu: “Tenho ainda muito que
vos dizer, mas vós não o podeis suportar agora; quando vier, porém, o
Espírito da verdade, ele vos guiará a toda a verdade...” (João 16.12,13)
(BÍBLIA de Estudos Plenitude, 2001).
Uma última característica que vale a pena frisar: só por intermédio do conhecimento
prático – como manusear as interpretações biblicistas no marco do arcabouço identitário
evangélico-pentecostal – é que o fiel torna-se capaz de conduzir com êxito a Batalha
Espiritual. Conhecer a Palavra de Deus é deter técnicas de esgrima. A Bíblia é uma espada
nas mãos dos crentes.
“Lâmpada para os meus pés é a tua palavra, e luz para os meus caminhos.”
(Salmos 119.105). Não pode haver perfeita comunhão com Deus sem o
conhecimento da Sua santa vontade. Quando Jesus venceu o diabo, Ele o fez
usando a Palavra de Deus [Bíblia]. Ela é a espada do Espírito Santo. Quando
a usamos com fé, nada há neste mundo capaz de nos derrotar, pois ela
penetra no mais íntimo de nosso ser, ao ponto de dividir a alma e o espírito,
juntas e medulas. Quando pronunciada por um servo de Deus, em nome do
Senhor Jesus, produz efeitos extraordinários. Todo aquele que deseja vencer
satanás deve conhecer bem a Palavra de Deus, a Bíblia Sagrada. O centurião
disse para o Senhor Jesus que enviasse apenas uma palavra e o seu servo
seria curado. Dito e feito! A palavra chegou até o servo do centurião e
realizou o milagre. É através dessa maravilhosa Palavra que os maiores
milagres têm acontecido. Ela produz fé em nossos corações para resistirmos
93
ao diabo; logo, a necessidade de conhecê-la se faz obrigatória (MACEDO,
2001: 21-22).
2.2.4. Visão de mundo dualista
Entendemos o dualismo como uma forma de representar o mundo que divide a
totalidade do universo em duas esferas antagônicas: bem supremo/sagrado e mal
absoluto/profano. O dualismo cristão vem ao encontro da necessidade de conciliar a
existência de um Deus supremamente bom, que quer salvar seus filhos, e a existência do mal
e do sofrimento sobre a terra. Fazendo com que o Adversário resista, por meio dos pecados
dos homens, à vontade de Deus, os cristãos vêm construindo em seus dois mil anos de história
uma resposta à contradição entre um suposto amor divino onipotente direcionado aos homens
que, ainda assim, vivem em sofrimento na terra. Ou seja, julgamos que o dualismo seja, além
de uma poderosa representação coletiva, o cimento que dá coesão ao edifício imaginário
evangélico-pentecostal, uma espécie de contexto.
A trajetória de constituição histórica do repertório de discursos que fundamentam o
dualismo nos movimentos pentecostais do século XX é vasta e intrincada. Não nos compete
desenvolvê-la neste trabalho, porém, uma apresentação introdutória do tema nos será de
grande valia para compreendermos melhor o suporte que o dualismo provê à Batalha
Espiritual. Podemos dizer que o cristianismo apropriou-se da imagem do Diabo (adversário)
hebreu, expandido-a. Pôde, desse modo, dar aos seus seguidores uma justificação plausível
acerca das razões de tantos tormentos neste mundo: tudo faz parte do grande plano salvífico
de Deus.
O cristianismo primitivo foi herdeiro das idéias referentes ao mal desenvolvidas no
Oriente Próximo desde a formação tribal de Israel (aproximadamente 2000 a.C.). Durante o
cativeiro da Babilônia (século VI a.C.), os judeus entraram em contato com uma miríade de
divindades estrangeiras, rapidamente identificadas como demônios. O mal no pensamento
hebraico configurar-se-ia universal no período helenístico (séculos IV – I a.C.). No período
formativo da religião cristã, nos primeiros séculos de nossa era, o mal foi intensamente
vivenciado no cotidiano do fiel, desdobrado em sangrentas perseguições empreendidas pelos
romanos.
Segundo Carlos Roberto F. Nogueira (1986) em sua obra “O Diabo no Imaginário
Cristão”,
[…] a religião tribal dos hebreus (Jahveh) evoluirá em direção a um
monoteísmo de caráter absoluto, que sublinhará a onipotência e a
94
onipresença de Deus, como o supremo poder do universo e criador de todas
as coisas, situação que conferirá às forças do Mal um poder insignificante
(NOGUEIRA, 1986: 06).
O Judaísmo – religião matriz da qual se desenvolveu o cristianismo –, relegava em
seus primórdios um papel secundário aos poderes malignos. Tanto é assim que observamos
serem raras as referências ao Mal no Velho Testamento. A carreira beligerante dos povos
hebraicos, entretanto, cumpriu a função de expô-los a constantes – e turbulentos – contatos
culturais.
Como vitoriosos ou vencidos, os israelitas sempre desenvolveram interpretações dos
fatos que remetiam os resultados de suas ações diretamente à esfera espiritual. Na posição de
vitoriosos numa determinada guerra, era Jahvéh, o Senhor dos Exércitos, quem na verdade
havia triunfado sobre os deuses dos outros povos. Como derrotados, pagavam o preço por
terem cometido, enquanto nação, algum pecado contra o Altíssimo. Eram punidos por seu
deus tribal sofrendo dominações por parte de povos vizinhos. Assombrava-os a ideia de
reconhecer algum tipo de supremacia aos “demônios” que eram adorados pelos estrangeiros.
Deste modo, a trajetória de insultos e dominações sofridas pelos hebreus será também
a história da formação do panteão de demônios que acabaram por povoar o imaginário cristão.
A figura de Satan (hostilizar, acusar, caluniar) pode ser encontrada no livro de Jó. Porém,
Satan, como um dos “filhos de Deus”, ainda é representado no livro de Jó como um
cumpridor de ordens do Divino, não possuindo a autonomia necessária para dirigir um
exército maligno contra o Criador e, o que ainda é mais importante, contra o homem. De
acordo com Nogueira, o momento decisivo para a formação de uma hierarquia demoníaca foi
o cativeiro da Babilônia, no século VI a.C. Durante este período, encontraremos a formação
da idéia de Lúcifer, “o filho da aurora”, título divino atribuído ao rei da caldéia que foi
ressignificado pelos hebreus para identificar o líder das hostes demoníacas. O cativeiro trouxe
também o contato com o Masdeísmo persa que, através de sua compreensão dualista do
universo dividido entre o Bem (Ahura Mazda) e o Mal (Angra Mainyu), seria fundamental
para o desenvolvimento do cânone maligno judaico, pois:
Fornecerá o pano de fundo […] que libertará o Demônio no pensamento
judaico e possibilitará, através da assimilação da crença em espíritos
benéficos e maléficos, a composição de uma hierarquia angélica,
transformando os anjos, anteriormente símbolos da manifestação divina, em
entidades autônomas (NOGUEIRA, 1986: 11).
95
Enquanto organizavam os demônios sob a autoridade do Diabo numa hierarquia
paralela à dos anjos, os judeus personificavam as forças do Mal e sistematizavam ideias antes
apenas dispersas em sua tradição oral acerca do Inimigo.
No período helenístico, marcado pelo encontro extremamente produtivo entre as
tradições Ocidentais e Orientais, fluíram livremente processos de criação e trocas simbólicas
sumamente importantes para a afirmação da doutrina demonológica hebraica.
Quando, no século II a.C., foram traduzidos para o grego os livros sagrados
(das diversas religiões existentes), denominaram-se demoníacos (daimonia)
os ídolos e divindades pagãs e alguns dos animais fantásticos que povoaram
as crenças do antigo Oriente. Estabelecida uma mesma denominação
comum, uma parte das doutrinas demonológicas, incorporadas à tradição
helênica, penetrou entre os hebreus, associando-se aí às tradições orais,
inundando as crenças judias de espíritos malfazejos (NOGUEIRA, 1986:
14).
Temos, assim, o fornecimento de um substrato riquíssimo de arquétipos divinos e
semi-divinos provenientes dos “quatro cantos do mundo”. Estes serviram de base para a
criação, através de apropriações e ressignificações – verdadeiras demonizações –, de
infindáveis tipos e espécies de demônios. Tanto é que, se antes do período helenístico pouco
se fez necessária a cristalização da ideia de um lugar específico para conter os demônios (eles
habitavam o espaço entre o céu e a terra), agora teremos o desenvolvimento da idéia da
“Morada do Mal” como limite simbólico do ponto espiritual extremo. Se os atos e escolhas
durante o período de vida de um determinado homem fossem considerados pecaminosos, este
seria enviado a habitar, com o término de sua vida, nas profundezas da terra – a depositária da
podridão da morte –, local perfeito para conter o insaciável Inferno. Além disso, a riqueza
imagética do período helenístico, contando com representações de deuses e de criaturas
fantásticas de outras nações como sátiros, centauros, gigantes e harpias, foram utilizados para
compor as imagens do Diabo e seus asseclas. Deste modo, o dualismo foi paulatinamente se
constituindo.
Desenvolve-se uma distinção mais nítida entre anjos e demônios,
incorporada no contato com os povos vizinhos, e constitui-se uma doutrina
escatológica, até então ausente entre os hebreus, uma vez que a preocupação
de sobrevivência da nação suplanta a preocupação individualista de salvação
da alma no além, impedindo uma verdadeira figuração do outro mundo,
presente nos sistemas religiosos vizinhos, notadamente o caldeu e o persa
(onde a doutrina dualista acentua o prestígio do além), que prevêm destinos
diferentes para os pecadores e os puros, a noção de Inferno assume um alto
grau de elaboração na literatura apócrifa (NOGUEIRA, 1986: 14).
96
O advento do cristianismo se dará em solo simbólico deveras fértil ao
desenvolvimento da trama cósmica na qual os homens se viram enredados dentro do discurso
de Cristo e seus seguidores. A ressurreição do Cristo, defendida pelos seguidores mais
íntimos, foi o estopim para deflagrar, no mundo físico, um novo capítulo da colossal Batalha
Espiritual entre Deus e o Diabo, duas potências completamente antagônicas e excludentes.
Dentro da visão dualista cristã não há meio termo nem posição de neutralidade. Ou está-se do
lado de Deus, ou trabalha-se para o Diabo.
Os primeiros cristãos, chamados “primitivos” – denominação usada para se referir aos
cristãos dos primeiros quatro séculos de nossa era (GAARDER, 2005) –, alimentavam um
otimismo exacerbado quanto à vitória de Cristo sobre as forças do Mal. Aos cristãos havia
sido dado um novo poder, com o envio do Espírito Santo, que os capacitava subjugar o Diabo
e seus anjos na medida em que estes já teriam sido derrotados através do sacrifício redentor
do Cristo. Satã, com o cristianismo, já não era apenas um agente local, preso à cosmovisão
judaica e agindo somente contra os descendentes carnais de Abraão; ele se tornou a
representação máxima de todo o Mal. Seus ataques eram dirigidos contra os homens como
espécie. Seu objetivo primário é perverter a obra de Deus fazendo com que a criação mais
amada, o homem, se rebele contra a vontade de seu Pai espiritual e seja condenado à perdição
eterna no lago de fogo do inferno. Mesmo sendo o Diabo portador de um poder terrível, nada
desprezível, os cristãos primitivos poderiam, através de sua fé, abortar os planos do maligno,
exorcizando-o dos corpos, mentes e práticas dos gentios. Esse poder era garantido pela
presença do Espírito Santo – o Consolador –, a terceira pessoa da Trindade. Dessa forma, toda
e qualquer coisa que afastasse o homem, em seus esforços de manter a prática cristã, era
rotulada como diabólica: um pecado.
Em momento historicamente mais recente, durante a Baixa Idade Média, detectou-se
um retrocesso do otimismo que caracterizava o imaginário social do cristianismo primitivo
em função de suas expectativas acerca do triunfo de Cristo e o estabelecimento iminente do
Reino de Deus na terra. Durante este período o Diabo foi paulatinamente investido de maior
autoridade espiritual. As sociedades européias do medievo imputaram ao Diabo um papel de
predomínio no mundo, ele passa a ser uma constante não apenas na vida de gentios, como
também de cristãos por meio das infinitas tentações arquitetadas. Os estudos sobre
demonologia se multiplicaram em número.
Na Baixa Idade Média, os teólogos discutem com afinco os meios e os objetivos do
mal. Não se tratava mais de uma desorganizada massa de espíritos lutando para abocanhar a
alma humana. Os teólogos de outrora escrevem que o Inferno era tão organizado, ou ainda
97
mesmo, mais organizado, do que qualquer reino humano. Havia uma fortíssima hierarquia
entre os demônios, o que os possibilitava levar adiante seu projeto maligno de modo
impecável. As diversas situações limites vivenciadas pelos europeus durante os séculos XIII e
XIV – as quais são relembradas por meio da famosa tríade “fome, peste e guerra” – foram
utilizadas para fundamentar a ação do Diabo na terra e, ao mesmo tempo, corroborar as
especulações dos demonólogos. Nogueira nos dá um exemplo bem empírico da transformação
ocorrida no imaginário social cristão durante o período, angústia e medo substituíram o
otimismo triunfalista cristão.
Em Salamanca, a velha catedral possuía um “juízo Final”, do século XII,
pintada sobre uma parede lateral, onde não era vista por todos. Composição
pouco dramática, apresentava um Cristo majestoso e sereno, à sua direita e à
sua esquerda, os escolhidos e os condenados. Nos séculos XV e XVI, a
catedral é reformada e a cena é deslocada para a abside, ficando em frente ao
público. Dessa forma, as cenas se agigantavam e se tornavam mais vigorosas
e, por fim, o Cristo está voltado para os condenados e esboça um gesto de
rejeição (NOGUEIRA, 1986).
As ideias concernentes à Batalha Espiritual chegam à época dos governos absolutistas,
na Europa, tendo como principal temática não mais o Senhor, distante dos homens e refugiado
nas grandes e sombrias catedrais medievais. A Modernidade verá a figura do Diabo ser
agigantada no imaginário social cristão. Ele está presente no cotidiano, em cada falha
humana, nos deslizes de caráter, nas promessas não cumpridas, nos desejos e pensamentos
tidos como pecaminosos. Não há mais limites para a ação do Inimigo, ele começa a ser visto
em todos os lugares, em todos os momentos. O homem não poderia permanecer impassível
ante o triunfo de Satã. Inicia-se a caça às bruxas. No período de 1486 até 1669, o Malaus
Maleficarum foi reeditado 34 vezes (NOGUEIRA, 1986).
A Reforma Protestante e a Contra-Reforma configuraram-se, também, como
momentos profícuos para prosperar a carreira de Satanás no Ocidente. A alcunha “Besta do
Apocalipse” era batida e rebatida entre os representantes dos dois movimentos. Ora era um
Papa católico que estava a serviço de Satã ora um dos Reformadores que trabalhava para
cumprir a vontade de seu senhor, o Diabo. Quanto aos fiéis, católicos ou protestantes,
acompanhavam em pânico o crescimento da importância do Demônio. Tal pode ser
vislumbrado através das palavras de Lutero.
Nós somos corpos submetidos ao Diabo, em um mundo onde o Diabo é o
príncipe e deus. O pão que comemos, a bebida que bebemos, as vestimentas
que usamos, até o ar que respiramos e todos os pertences de nossa vida
corporal, fazem parte de seu império (NOGUEIRA, 1986).
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Nos séculos XVIII e XIX, que testemunharam os grandes avivamentos preparatórios
para o movimento pentecostal, o Diabo tudo permeia, vê através de cada fresta, se insinua em
sonhos à noite e em visões durante a vigília. As palavras do apóstolo Pedro em sua primeira
epístola fazem-se sentir em todo seu peso: “Sede sóbrios, vigiai, porque o diabo, vosso
adversário, anda em derredor, bramando como leão, buscando a quem possa tragar;” (I Pe. 5:
8). Não é de se espantar que o movimento contestatório do Romantismo tenha proposto uma
inversão de papéis no mínimo radical.
O romantismo transformará Satã no símbolo do espírito livre, da vida alegre,
não contra uma lei moral, mas segundo uma lei natural, contrária à aversão
por este mundo pregada pela igreja. Satanás significa liberdade, progresso,
ciência e vida. […] O Diabo passa a representar a rebelião contra a fé e a
moral tradicional, representando a revolta do homem, mas com a aceitação
do sofrimento porque este é uma fonte purificadora do espírito, uma nobreza
moral, da qual só pode surgir o bem da humanidade (NOGUEIRA, 1986).
O movimento pentecostal reelaborou uma teologia, fortemente marcada pelo
dualismo, como resposta a esta tendência de valorização das forças do Mal por alguns
segmentos culturais e um concomitante “esfriamento” no fervor cristão. Os evangélico-
pentecostais reativaram e renovaram os antigos termos, por algum tempo atenuados, que
definiram durante séculos a Batalha Espiritual. Deste modo, podemos contextualizar as
passagens escritas pelo missionário assembleiano Nils Kastberg, em fevereiro de 1930, no
jornal Som Alegre.
Tu crês na salvação pelo sangue do Cordeiro? Então serás odiado, de igual
modo como Abel. Entrarás em aperto, e sofrerás perseguições até dos teus
parentes e amigos. […] Tu crês na libertação pelo sangue do Cordeiro? Tens
experimentado o poder deste sangue na tua vida? Fostes liberto dos teus
vícios e pecados? Ele [Jesus] salvará o seu povo dos seus pecados. Fostes
salvo do mundo com as suas concupiscências? O teu “eu” está crucificado
em Cristo? Não vives mais para ti, nem para o mundo, mas Aquele que te
amou e deu a sua vida em sacrifício da tua alma? Se foi assim, então estás
verdadeiramente livre. […] Quando Jesus vier, levará para si mesmo os que
têm andado com Ele para que onde estiver, eles estejam também. Sim, um
dia – e este dia não tarda –, o mundo ficará livre daqueles que dele não são
dignos. […] Tu crês que Deus tem preparado uma glória para os que o
amam? Para os que sofrem aqui por amor a Jesus? Glória a Deus! O nosso
lar não é aqui neste mundo de sofrimento; somos peregrinos e estrangeiros.
[…] Irmãos, o mundo ficará mais e mais apertado para nós. O inimigo das
nossas almas, Satanás, tem grande fúria, pois sabe que resta pouco tempo. O
sol da graça está se declinando para os gentios e a vinda do Senhor se
aproxima. Vamos nos aproximar de Jesus, viver em comunhão com Ele e
uns com os outros, para assim sermos indignos deste mundo, mas dignos de
sermos arrebatados para a Glória (ARTIGOS Históricos – Mensageiro da
Paz, 2004: 30-31. 1 v).
99
A concepção de dualismo nas Assembléias de Deus é bem retratada nas passagens
citadas acima. Segundo Kastberg, as esferas de atuação nesta vida são estipuladas através das
fórmulas: “no mundo” ou “em Jesus”. Não há terceira via. Está-se no mundo ou em Jesus.
Estar em Jesus, obviamente, não muda a inserção física do crente no “mundo”. Aqui nasce
uma tensão identitária importantíssima na manutenção de sentido à Batalha Espiritual entre os
evangélico-pentecostais: a conversão e a vida em Jesus, por mais santas e íntegras que possam
ser, ainda assim transcorrem no “mundo”. Para ser medianamente resolvido, o problema é
remetido à outra base: pode-se permanecer no “mundo”, contudo, o “eu” do crente não deverá
mais ser para si. Viver só fará sentido se for para Cristo. Uma defasagem entre
pentecostalismos (pré-milenarista, AD, e pós-milenarista, IURD) pode ser observada, assim,
nas distintas concepções do que vem a ser a vida “em Jesus”.
Como já vimos, as distinções podem ser rastreadas por meio da diferenciação entre as
matrizes interpretativas que regem a leitura do arcabouço identitário evangélico-pentecostal: a
Santidade Próspera dos assembleianos ou a Prosperidade Santa dos iurdianos. Em ambas as
propostas de vida em Jesus, e este é um ponto em comum entre as duas matrizes
interpretativas, a imersão do convertido à fé pentecostal precisa ser total. A identidade cristã
canibaliza outras expressões identitárias do sujeito que se converte, como em suas relações no
trabalho, na comunidade enquanto vizinho e/ou cidadão, na escola, etc. Todas as entradas e
saídas no que tange às sociabilidades do convertido serão reestruturadas de modo a assegurar
seu testemunho cristão pessoal.
Outro texto retirado da coleção de artigos históricos do Mensageiro da Paz, datando
de dezembro de 1930, de autoria de Lewi Pethrus, comenta uma das passagens mais
emblemáticas da hermenêutica bíblica pentecostal acerca do dualismo universal.
Lemos em Efésios 6.12: “Porque não temos que lutar contra carne e sangue,
mas, sim, contra os principados, contra as potestades, contra os príncipes das
trevas deste século, contra as hostes espirituais da maldade, nos lugares
celestiais”. Acontece que às vezes atacamos a carne e o sangue procurando
convencer os homens dos seus erros, sem nos lembrar de que a nossa luta
não é contra carne e sangue, pois atrás das heresias está o poder das trevas
que não se deixa vencer. De acordo com 1 João 2.19, o espírito do anticristo
já vem reinando neste mundo, e os homens estão sendo movidos e dirigidos
por este espírito e poderes estranhos. Não podemos de forma alguma
convencê-los através de batalhas carnais. Mas, devemos ter compaixão de
tais pessoas e concentrar a nossa luta contra o poder das trevas que está atrás
dos seus erros. E nesse combate não vale nada o emprego de armas carnais.
Se por acaso vencermos as batalhas com as armas carnais a nossa vitória é
humana, mas se a luta for espiritual a vitória será divina. (ARTIGOS
Históricos – Mensageiro da Paz, 2004: 75. 1 v).
100
O dualismo inerente ao universo simbólico evangélico-pentecostal lastreia a Batalha
Espiritual. Sua dinâmica, marcadamente teleológica, está amparada no irresistível avanço das
forças do bem contra as forças do mal com o cumprimento do plano divino da salvação. Os
comentários do pastor Pethrus, acima apresentados, versam sobre a epístola de Paulo aos
Efésios, amplamente citada para fundamentar a Batalha Espiritual. O “mundo”, espaço da
“carne e sangue”, pode ser entendido como um desdobramento do mundo espiritual. É
interessante notar que, de acordo com tal ponto de vista, o mundo espiritual será “mais real”
que a realidade mesma, afinal, são as relações de poder no interior do mundo espiritual que
determinam o desenrolar dos eventos no mundo da “carne e sangue”. O crente é o único
espiritualmente capacitado para enxergar “por trás” da carne e sangue.
O Inimigo, Satanás, e seu séquito de anjos caídos, realizam sua natureza de maldade
pura através de suas ações emblemáticas: “matar, roubar e destruir”. Seu único objetivo ao
efetivar seu plano maligno é carregar consigo o maior número de pessoas para o Lago de
Fogo, última morada dos pecadores quando chegar o fim dos tempos.
Satanás, segundo o pensamento evangélico-pentecostal, sabe que não possui chances
de triunfar contra o Senhor numa guerra aberta. Ele está consciente que sua condenação é
iminente, e mais, já foi derrotado quando Jesus morreu na cruz para salvar a humanidade. Só
lhe resta conspurcar a criação mais amada de Deus, o homem, fazendo-o se desviar da
presença do Altíssimo por meio do pecado.
Como o diabo realiza seus intentos? Segundo Pethrus ele age “por trás” das ações
erradas dos homens. Nesta passagem, escrita em 1930, vemos, mais uma vez, a afirmação da
capacidade possuída pelo crente de discernir os reais (espirituais) intentos satânicos por detrás
das mais banais ações cotidianas – veremos a reincidência desta capacidade mais adiante ao
analisar alguns trechos escritos por Edir Macedo. Poderíamos nos referir a esta concepção
como uma “teologia do desvelamento”, haja vista ser sua mensagem principal o conhecimento
de que ao crente, aquele que vive “em Jesus”, foi confiado uma capacidade não compartilhada
pelos habitantes do mundo da “carne e sangue”. Tal capacidade dá aos crentes poder para ver
por detrás do véu do mundo material. Eles podem identificar a agência das forças malignas
em qualquer instância de nosso mundo físico. Do mesmo modo, julgam poder identificar a
ação das forças benéficas. O dualismo só pode ser conhecido e controlado por aqueles
espiritualmente preparados para tal. Os crentes podem retirar o véu da carne, do sangue e ler
as “astutas ciladas de Satanás”, enxergando a absoluta verdade que dirige a ação dos homens.
Como escreveu Nils Kastberg, em fevereiro de 1930:
101
Os homens deste mundo crêem, com facilidade em toda loucura que
pertence (ao mundo), mas não podem perceber as coisas espirituais. As
coisas sobrenaturais são para eles loucura. (ARTIGOS Históricos –
Mensageiro da Paz, 2004: 29. 1 v).
Essa capacidade do crente é importantíssima para a sustentação de seu imaginário
dualista na medida em que é por meio dela que o crente regerá seu cotidiano, vigiando e
avançando, lutando para evitar ceder território ao Inimigo.
O texto de Lewi Pethrus fala, ainda, das “armas carnais” e das “armas espirituais”. As
armas carnais são entendidas pelo evangélico-pentecostal como sendo a teologia liberal,
baseada em erudição e profunda capacidade de oratória do pregador alcançada mediante
estudo. Aqueles que usam a “lógica” e intrincados argumentos para levar seus ouvintes a
reconhecerem seus pecados são os que fazem uso de armas carnais. Como vimos, é uma
característica pentecostal o repúdio à formação acadêmica de seus pastores – característica
essa que será encontrada ainda hoje na constituição do presbitério iurdiano. A posse das armas
espirituais, por sua vez, só pode ser garantida na vida “em Jesus”. Ou seja, para poderem
combater o “bom combate” contra as forças das trevas, os crentes precisam fazer com que os
elementos de sua identidade evangélico-pentecostal sejam reconhecidos pela comunidade de
sua rotina, ele precisa de reconhecimento público. Assim, atenua-se a dúvida que sempre
permeia suas relações sociais ambíguas, derivadas das imposições de sua identidade: estar no
mundo sem nele viver.
Enquanto o Diabo e seus asseclas trabalham para carregarem consigo o maior número
de pessoas ao Lago de Fogo, a missão dos crentes é espalhar a Palavra de Deus de modo a
conscientizar os gentios de sua perdição. O trabalho de evangelização é entendido nos termos
de uma batalha para arrancar as almas das pessoas das garras do inferno. Consideramos esta
necessidade de evangelização – o “Ide e pregai” – como uma das representações componentes
do arcabouço identitário evangélico-pentecostal. Iremos nos deter em suas especificidades
mais adiante. Por ora, basta-nos entender que a necessidade premente de se fazerem prosélitos
por meio da conversão reforça a compreensão da dualidade do mundo – ou você está em Jesus
ou no mundo – e confirma, dentro do quadro de referências simbólicas do evangélico-
pentecostal, a milenar Batalha Espiritual. A Batalha Espiritual, por sua vez, precisa desdobrar-
se em sinais exteriores, em práticas. Apesar de ter sua origem no campo simbólico, não pode
ficar contida apenas em pulsões subjetivas, ou a identidade social do fiel – sua participação na
comunidade dos salvos – ficará ameaçada.
A Assembléia de Deus criou todo um discurso de santificação pautado na separação
do mundo instanciada na possibilidade de se reconhecer a linha divisória entre o fiel e o infiel
102
a partir dos sinais exteriores de santidade. Podemos observar o discurso da separação do
mundo no texto que se segue, publicado no Mensageiro da Paz de julho de 1931, de autoria
do pastor João Trigueiro.
Ora, hoje, para se perceber que deve haver, indispensavelmente, uma linha
divisória entre o fiel e o infiel, como de fato o há, basta atentar na parábola
do rico e de Lázaro – entre ambos existia uma separação. Ainda que Lázaro
ou o rico quisessem não poderiam beber, juntos, do mesmo copo; nem
mesmo inclinando o corpo e estirando o braço poderia Lázaro, com o dedo,
alcançar a língua do rico atormentado. Ainda hoje perdura,
incontestavelmente, como já dissemos, essa linha de divisão, posta a separar
o pervertido e infiel, do cristão fiel, cuja linha é a Bíblia, que, numa
linguagem altissonante, adverte e obriga o crente a separar-se das trevas
deste mundo. Essa Bíblia, que universalmente deve ser lida e obedecida,
ordena, evidentemente, a completa isenção de qualquer terreno pecaminoso
– saí dela, povo meu, para que não sejais participantes dos seus pecados e
para que não recebas das suas pragas; eis o que foi revelado ao desterrado da
Ilha de Patmos, a propósito da Babilônia decaída (Ap. 18.4), e cujos dizeres
referem-se tanto à corrupção de um povo, como à de um indivíduo. Pelo que,
saí do meio deles, e apartai-vos, é a regra, perfeita, exposta na Palavra de
Deus, para o bem-estar de seus filhos (ARTIGOS Históricos – Mensageiro
da Paz, 2004: 99. 1 v.).
Como consequência dessa divisão, surge um discurso nos moldes sanitaristas de
quarentena ao mundo: “para que não sejais participantes dos seus pecados e para que não
recebas das suas pragas”. O crente deve se afastar deste mundo habitado e controlado pelos
demônios ou será inescapavelmente “contaminado” por seu pecado, tendo, deste modo, sua
salvação em Jesus ameaçada. No dualismo evangélico-pentecostal há uma absoluta negação
do mal, não há espaço para diálogos ou negociações: simplesmente “saí do meio deles”. No
trecho apresentado acima, podemos acompanhar o escritor da AD instando na manutenção
dos sinais exteriores de santidade. Seus conselhos, em forma de mandamentos, se
fundamentam na literalidade bíblica, ou seja, no biblicismo.
Percebemos a continuidade da representação coletiva do dualismo dos assembleianos
da primeira metade do século XX em escritos iurdianos do início do século XXI. O dualismo
do universo é para Edir Macedo uma verdade inquestionável. O líder da IURD, mesmo
contrário ao ascetismo assembleiano, escreve sobre a postura do crente que vive em Jesus.
Aceitar Jesus como Senhor e Salvador inclui mais que uma simples
resolução mental. “Aceitar”, no sentido bíblico, significa crer, confiar e
seguir. Muitos dizem que aceitam Jesus, mas trocam Seu nome por outros e
não depositam sua fé totalmente n’Ele. Dizem que aceitam Jesus, entretanto
afirmam que “todos os caminhos levam a Deus”. Submetem-se às entidades
e aos “santos” e neles depositam sua confiança. Dizem até que “Deus é bom,
mas o diabo não é mau”, fazendo assim a vontade de satanás. Tais pessoas
não podem ser libertas se procedem dessa maneira, pois Deus não é de
103
confusão. O verdadeiro seguidor de Jesus não pode ficar entre o sim e o não;
não pode coxear entre dois pensamentos. Isso aos olhos de Deus é absurdo.
Ninguém pode estar na luz e nas trevas ao mesmo tempo, porque ou a luz
dissipará as trevas, ou as trevas abafarão a luz (MACEDO, 2001: 19-20).
Mais uma vez, ou se está “em Jesus” ou “no mundo”. Não há possibilidade de fugir da
dualidade, não há meio termo. O pensamento de Macedo não abre espaço para dúvidas ou
questionamentos sobre qual seria a natureza espiritual que dirige as ações neste mundo, qual
poder está “por trás” dele.
Nós, cristãos, vivemos em uma sociedade que tem sido aliada de Satanás.
Significa ser este mundo contrário a Deus e a tudo quanto d’Ele provém.
Jamais poderemos esperar compreensão com a nossa fé; muito pelo
contrário, este mundo estará constantemente procurando destruir aquilo que
Deus nos concedeu. Portanto, o seguidor do Senhor Jesus Cristo precisa estar
sempre preparado para enfrentar todo tipo de luta, com o objetivo exclusivo
de manter sua fé e, consequentemente, sua salvação (MACEDO, 2007: 09-
10).
O dualismo marca fortemente o discurso de Macedo, líder da IURD. Nos parece
interessante como as palavras de Macedo ecoam os pensamentos de Lutero, expostos
anteriormente, sobre o dualismo entre bem e mal, mundo físico e espiritual, sagrado e
profano. A sociedade é encarada como aliada de Satanás.
O diabo continua exercendo sobre os incrédulos o mesmo domínio ao qual
Adão se entregou quando pecou. O pecado do homem e o domínio satânico
sobre ele estão dessa forma unidos, estreitamente relacionados entre si
(MACEDO, 2001: 15).
A sociedade, entretanto, não seria uma aliada consciente do maligno, como podemos
observar ao acompanhar a apresentação que Edir Macedo faz da criação do universo. O texto
que segue configura-se numa explicação totalizante da história do cosmos. A raça humana, de
acordo com Macedo, é ontologicamente determinada para submeter-se a apenas uma das
forças que estão em combate, não há possibilidade de não servir a um dos lados, não há
neutralidade. Aquele que se crê neutro, já está a serviço do mal. As pessoas são
necessariamente peças, brancas ou negras, no jogo de xadrez cósmico entre Deus e Satanás.
Deste modo, o líder da IURD considera que a raça humana ficou subordinada à Satanás logo
após sua criação, com Adão e Eva. Assim, todos aqueles que não compartilham do
cristianismo evangélico-pentecostal seriam usados pelo poder do mal, pois ao desobedecer ao
Senhor, trocam voluntariamente a submissão divina pela satânica.
Ele [Adão] foi criado à imagem e semelhança do Altíssimo e perfeito era em
todos os sentidos. Assim como satanás (a palavra significa em hebraico
104
“inimigo”) penetrou na Terra e a tornou sem forma e vazia, também
penetrou na vida de Adão e Eva. Sutilmente os envolveu de tal forma, que
eles deixaram de dar ouvidos à Palavra de Deus para ouvirem satanás.
Começou, então, a grande tragédia da humanidade, o seu caos e vazio,
porque, deixando o homem de se submeter a Deus, ficou subordinado a
satanás. Ora, Deus é luz, ordem e disciplina, e com Ele não podem habitar o
erro, o pecado e as trevas. Por isso mesmo, Ele foi obrigado a fazer com o
homem o que fizera com lúcifer: expulsou-o da Sua presença (MACEDO,
2001: 12).
As categorizações se sucedem no texto de Macedo. Deus e seu Reino são designados
como sendo a luz, ordem e disciplina. Satanás, por sua vez, é o agente do erro, do pecado e
das trevas. Esta categorização não é fortuita; está amparada por uma tão complexa quanto
antiga categorização simbólica e estética fundamentada numa ética cristã ocidental. Como
indício dessa estética podemos citar uma passagem do manual de Montabert para os artistas,
redigido na primeira metade do século XVIII.
O branco é o símbolo da divindade ou de Deus. O negro é o símbolo do
espírito do mal e do demônio. O branco é o símbolo da luz. O negro é o
símbolo das trevas, e as trevas exprimem simbolicamente o mal. O branco é
o emblema da harmonia. O negro, o emblema do caos. O branco significa
beleza suprema. O negro, a feiúra. O branco significa a perfeição. O negro
significa o vício. O branco é o símbolo da inocência. O negro, da
culpabilidade, do pecado ou da degradação moral. O branco, cor sublime,
indica a felicidade. O negro, cor nefasta, indica a tristeza. O combate do bem
contra o mal é indicado simbolicamente pela oposição do negro colocado
perto do branco (SANTOS, 2005: 58).
Macedo não está fundando nada novo no que concerne à apreciação estética a partir do
senso comum ao pensar a divindade cristã. Aproveita-se dos símbolos que estão inculcados na
sociedade para fundamentar seu argumento. Querendo definir com ainda mais precisão “o
mundo” no qual vivemos, Edir Macedo continua seu texto revelando características
detalhadas do reino das trevas.
Impotente, exteriormente religioso, científico, culto, elegante, o mundo está
dominado pelos príncipes satânicos. Sob sua enganosa aparência exterior é
uma caldeira fervente de ambições nacionais e internacionais, rivalidades
comerciais, lágrimas escondidas atrás de um sorriso. Satanás e sua hierarquia
de seres espirituais da maldade (Daniel 10.13; Efésios 6.12) são os agentes
invisíveis e a causa real da sede de poder e inteligência maléfica dos
ditadores e de todos aqueles que buscam e usam seu poder terreno para o
mal. Estes tais são os dirigentes visíveis. As guerras e os conflitos
periódicos, produzindo morte, derramamento de sangue inocente e extrema
violência, são os acompanhantes indispensáveis (MACEDO, 2001: 13).
Desentendimentos políticos e agruras econômicas em nível planetário são computados
como obras do maligno. O Diabo tem o poder tanto de agir no micro cosmos da vida privada
105
do sujeito quanto de dirigir as ambições destruidoras dos líderes mundiais. Toda a
historicidade desaparece. Os processos que compõem a formação das nações, os diversos
processos de colonização e descolonização, os interesses que configuram o campo econômico,
etc; os esforços para interpretá-los são negados, ou melhor, desmerecidos. O noticiário que
anuncia novo conflito, algum levante social ou até mesmo um terremoto que tenha destruído
determinada cidade é imediatamente interpretado pelo crente sem maiores problemas ou
dúvidas. O mundo não é complexo, ao contrário, ele é deveras simples: o Diabo sempre age
para destruir. Ele faz as nações entrarem em guerra, os subalternos se rebelarem contra seus
dirigentes e move a natureza para fazer dano ao homem. Para que tamanha malignidade possa
ser impetrada sem problemas, Satanás conta com um apoio logístico invejável.
Na categoria da organização satânica, satanás exerce domínio absoluto sobre
os espíritos caídos que o seguiram em sua rebelião original. Sua autoridade
é, sem dúvida, um atributo a ele delegado pelos seus servos. Esses espíritos,
havendo decidido seguir satanás, em vez de permanecerem leais ao seu
Criador, foram confirmados irremediavelmente na maldade e abandonados
no erro. Assim sendo, estão em completo acordo com seu príncipe e lhe
rendem voluntário serviço em seus diferentes encargos e posições, num reino
altamente organizado (Mateus 12.25). Sua decisão inicial os ligou para
sempre ao seu programa de engano e à sua inevitável condenação
(MACEDO, 2001: 13).
Satanás não possui os atributos de onisciência, onipresença e onipotência como Deus.
Ele compensa suas limitações divinas por meio de um contingente gigantesco de auxiliares, os
demônios26
. Macedo, no afã de doutrinar seus seguidores que, em sua maioria contam com
formação teológica elementar, detalha as características dos demônios:
Ao lado de sua inteligência sobre-humana e de sua moral viciosa, os
demônios possuem uma força assombrosa. Têm poder sobre o corpo humano
para causar: Mudez (Mateus 9.32,33) Cegueira (Mateus 12.22) Demência
(Lucas 8.26-36) Manias suicidas (Marcos 9.22) Males físicos (Marcos 9.18)
E as mais variadas deformidades físicas (Lucas 13.11-17). Não há razão para
supormos que o diabo e seus anjos tenham deixado de agir na atualidade, tal
qual nos dias dos apóstolos (MACEDO, 2001: 14).
A contemporaneidade dos demônios é inquestionável. Um dos maiores golpes de
Satanás para manter tanto sua soberania no mundo quanto os homens afastados de Deus é
fazer com que as pessoas acreditem que ele não existe. A não crença no Diabo é já, para
Macedo, uma das características dos que vivem sob o domínio dele.
26
Segundo o relato do Velho Testamento, um terço dos anjos do céu seguiram Lúcifer em sua rebelião e foram
expulsos juntamente com ele.
106
A incredulidade, com seu terrível castigo da condenação eterna (Marcos
16.16), é o resultado da obra perniciosa de satanás no homem (Efésios 2.1,2;
2 Coríntios 4.4; Mateus 13.25). Todos quanto recusarem crer no Evangelho
agem por instigação satânica, que os retém em seu poder (Atos 26.18;
Colossenses 1.13). A própria negação da existência pessoal de um demônio é
consequência da operação do diabo no coração do homem (2 Coríntios
11.14). […] Uma vez longe de Deus, mais perto de satanás e, por isso
mesmo, a humanidade vem passando por tudo o que lemos e ouvimos nos
noticiários. Ninguém se entende; pais contra filhos e vice-versa; luta de
classes; revoluções e guerras. A luta da humanidade foi, é e será, até a
segunda vinda do Senhor Jesus Cristo, tal qual uma disputa entre todos os
urubus por uma única carniça no deserto. A fome, a doença, a guerra e todo
o mal tomaram o lugar de destaque neste velho mundo, tornando-o sem
forma e novamente vazio... O amigo leitor pode notar que todas as agruras
vindas à existência humana são decorrentes de uma única faísca de
destruição, constituída pela rebelião do homem contra Deus, seu Criador.
Por causa da sua estupidez espiritual, ele deixou de dar ouvidos à Palavra de
Deus para ouvir o diabo e, por isso, continua no sofrimento e na dor. O
homem colhe hoje o que plantou ontem, e colherá amanhã o que plantar
hoje. Tudo depende dele, o homem, este ser rebelde e estúpido. Enquanto se
mantiver aliado ao diabo, continuará sofrendo por sua rebeldia diante de
Deus (MACEDO, 2001: 15-18).
Como pudemos observar, o dualismo está presente como fundamento do imaginário
social tanto em escritos assembleianos da primeira metade do século XX quanto nos textos
redigidos em fins do mesmo século para formação da fé dos seguidores de bispo Macedo. O
dualismo, agindo como pano de fundo na Batalha Espiritual, alimenta as experiências de
combate e o ódio identitário a alteridade do evangélico-pentecostal. Assim, é a partir do
pensamento dualista que encontram meios simbólicos, tanto pentecostais clássicos, quanto
neopentecostais, para manter as suas posturas de batalha, ora vigiando, ora avançando sobre o
reino das trevas neste “mundo”. A luta é perene.
2.2.5. Grande Comissão
A Grande Comissão é um dos mandamentos bíblicos basilares na constituição da
identidade evangélico-pentecostal. De fato, a rápida expansão do pentecostalismo durante o
século XX se deve, em grande medida, ao esforço no cumprimento desse mandamento. Os
quatro Evangelhos narram em seus capítulos finais o comissionamento que Jesus delegou aos
seus seguidores. Segundo o evangelho de Marcos, poderíamos resumir a Grande Comissão na
fórmula “Ide e Pregai”. Em nossa leitura dos autores que trabalharam com os
pentecostalismos, percebemos como este elemento identitário foi pouco trabalhado, se não
omitido de todo. Para podermos entender melhor algumas características básicas relacionadas
107
à Grande Comissão, vamos lançar mão da análise dos textos auxiliares da Bíblia de Estudos
Plenitude.
A Bíblia de Estudo Plenitude (2001) é uma das Bíblias evangélicas (não contém os
livros apócrifos27
) editada com o acréscimo de comentários nos bordos das páginas, além de
diversos boxes explicativos inseridos no corpo dos capítulos que unem a literalidade do texto
bíblico à doutrina pentecostal. Estas Bíblias comentadas são uma empreitada editorial norte-
americana dos anos oitenta que visava aumentar a vendagem e contemplar um público cada
vez mais ávido em fundamentar seus argumentos dogmáticos. As Bíblias de estudo
evangélicas foram popularizadas no Brasil durante a década de noventa do século passado. A
já mencionada Bíblia de Estudo Plenitude traz como subtítulo: “a Bíblia de Estudo que revela
toda a plenitude de Deus em toda a Palavra de Deus”. A citação de alguns de seus
comentários nos auxiliará no entendimento do que seja a “Grande Comissão”.
Apresentaremos o texto bíblico ao qual faz menção (em itálico) e, logo em seguida, o
comentário acrescentado.
Mateus 28: 19,20:
Portanto, ide, ensinai todas as nações, batizando-as em nome do Pai, e do
Filho, e do Espírito Santo; ensinando-as a guardar todas as coisas que eu
vos tenho mandado; e eis que eu estou convosco todos os dias, até à
consumação dos séculos. Amém!
Comissionados sob o chamado do Rei. Como o tema de Mateus é Cristo
como Rei, não é de surpreender que a incumbência final de Jesus nos aos
seus discípulos reflita sua perspectiva global. Ao ensinar a vida e princípios
do Reino (“Reino” aparece mais de 50 vezes em Mateus), Jesus guia seus
seguidores a pensar, viver e orar para que seu Reino alcance todo o planeta
(6.10). No cap. 13, suas parábolas ilustraram a expansão global do Reino (v.
33). Quando seus discípulos começaram a ministrar, ele lhes disse para
pregar em todos os lugares: “O Reino de Deus está chegando”. Depois, antes
de sua ascensão, o Rei deu a Grande Comissão. Essa incumbência máxima
de ir a todas as nações ordenava que o ensinamento e a pregação
procurassem trazer todas as nações ao seu Reino (28. 18-20).
Profeticamente, ele prevê que o fim somente chegaria quando “este
evangelho do Reino” fosse pregado “em todo o mundo” (24.14). “Nações”
(gr. ethne) significa “grupos de pessoas” – hoje em dia há cerca de 22.000 no
mundo (BÍBLIA de Estudos Plenitude, 2001: 992. Grifos do autor).
A Grande Comissão é um mandamento basilar que está intimamente ligado a
efetivação da segunda vinda de Cristo. Os evangélico-pentecostais precisam espalhar a “boa
nova” da volta de Jesus. O salvador dos crentes só poderá se manifestar pela segunda vez
27
Primeiro Livro de Macabeus ou I Macabeus; Segundo Livro de Macabeus ou II Macabeus; Judite; Baruc;
Eclesiástico; Livro de Tobias; Livro da Sabedoria; adições em Ester; adições em Daniel (ou nomeadamente os
episódios da História de Susana e de Bel e o dragão).
108
depois que as “boas novas” da salvação forem pregadas em todas as nações, depois que cada
ser humano tiver tido a possibilidade de escolher entre Deus ou o Diabo.
Marcos 16. 15-18:
E disse-lhes: Ide por todo o mundo, pregai o evangelho a toda criatura.
Quem crer e for batizado será salvo; mas quem não crer será condenado. E
estes sinais seguirão aos que crerem: em meu nome, expulsarão demônios;
falarão novas línguas; pegarão nas serpentes; e, se beberem alguma coisa
mortífera, não lhes fará dano algum; e imporão as mãos sobre os enfermos
e os curarão.
Comissionados no espírito servil de Cristo. Para compreender a Grande
Comissão em Marcos, devemos apreender o espírito de enfoque de Marcos
sobre Jesus como Servo. As profecias messiânicas, como Is 42.1-21; 49.1-7;
50.4-11; 53.12 prevêem que o caráter servil de Jesus faria uma obra
específica e agiria com obediência incondicional e imaculada.
Marcos mostra o caráter servil de Jesus omitindo sua genealogia (mediante a
qual os outros evangelhos estabelecem sua identidade), mostrando que,
como servos de Cristo, nós também podemos aprender o essencial para
cumprir a Grande Comissão. Cristo procura aqueles que servirão sem buscar
reconhecimento, procurando exaltar Cristo generosa e obedientemente e
torná-lo conhecido. Tais servos estabelecem sua personalidade e ministérios
através de sua própria devoção e obediência a Jesus, sua disposição de servir
sem interesses – sendo seu único exercício de poder propagar o amor de
Deus – ministrando sua vida aos perdidos, aos doentes e àqueles em
cativeiro. Eles o fazem sempre e onde Deus soberanamente ordena, seja
mediante ofertas, idas ou orações intercessórias. O amor e obediência servis
de Jesus compele seus servos a um serviço leal e franco (BÍBLIA de Estudos
Plenitude, 2001: 1020).
Outra característica da Grande Comissão é a de poder ser realizada de diversas formas
pelo fiel. Pode-se realizá-la ao auxiliar na arrecadação de recursos financeiros para enviar e
manter missionários nas mais diversas partes do mundo. Também há a possibilidade tornar-se
um dos que vão para a “linha de frente” ao oferecer-se ao trabalho missionário. Este trabalho,
todavia, não precisa ser necessariamente realizado noutros países. As visitas aos hospitais,
presídios, asilos e as pregações feitas em locais públicos e/ou a panfletagem realizada aos fins
de semana, anunciando e convidando os gentios para participarem dos cultos podem ser
consideradas formas de cumprimento da Grande Comissão. O crescimento da Assembléia de
Deus até as transformações ocorridas nas décadas de oitenta e noventa com a
neopentecostalização – a AD passa a assimilar os métodos de evangelização eletrônica –, se
deve, em grande medida, ao cumprimento da Grande Comissão nos termos de pregação
pessoal.
Outra forma através da qual o crente pode realizar sua obrigação religiosa identitária
para com a Grande Comissão é a oração intercessória. É importante sublinhar que as maneiras
mencionadas de cumprimento do mandamento do “Ide e Pregai” não são excludentes. Pode-se
109
orar para que as almas perdidas encontrem Jesus, realizar doações para as missões e ainda
realizar um paciente – mas não por isso pouco vigoroso – trabalho de aproximação dos
gentios que compõem a cotidianidade de vivências na qual o crente está inserido. Eles
precisam ser convencidos de que estão em pecado, vivendo de forma errada e, sem sombra de
dúvida, irão para o inferno se não negarem toda e qualquer prática que não seja arrolada como
santa. É a Boa Nova da Salvação.
Lucas 24. 45-48:
Então, abriu-lhes o entendimento para compreenderem as Escrituras. E
disse-lhes: Assim está escrito, e assim convinha que o cristo padecesse e, ao
terceiro dia, ressuscitasse dos mortos; e, em seu nome, se pregasse o
arrependimento e a remissão dos pecados, em todas as nações, começando
por Jerusalém. E dessas coisas sois vós testemunhas.
Comissionados para ir com a compaixão de Cristo. A ênfase de Lucas na
Grande Comissão é consoante com seu tema: Cristo, o Filho do Homem –
mostrando a humanidade e divindade de Jesus em harmonia. A beleza e
singularidade de seu caráter – tanto divino quanto humano – são reveladas
quando esse Ser Divino leva o ser humano pecador a um Deus Santo. Em
perfeita santidade de vida, Jesus reflete compaixão pela humanidade
maculada pelo pecado e sofrimento – pessoas com o coração partido,
doentes, maltratadas e consternadas. Nosso cumprimento da Grande
Comissão exige um alcance muito universal ao ministrar compaixão e
preocupação humana. O estilo de Jesus – sensível e tangível – é um apelo a
seus seguidores para responderem rapidamente a sua ordem e para
responderem com a compaixão dele. Nenhuma fronteira geográfica,
nenhuma barreira de pecado, nenhum interesse partidário étnico, político ou
econômico nunca deve restringir nosso alcance ou penetração com
evangelho (BÍBLIA de Estudos Plenitude, 2001: 1066).
A partir de sua visão de mundo dualista que concebe apenas dois destinos para as
almas humanas após a morte – ou a bem-aventurança do Paraíso junto a Deus ou a agonia
eterna do Lago de Fogo em companhia do Diabo –, o evangélico-pentecostal, constituindo-se
identitariamente por meio deste discurso pungente que modela seu imaginário social, não
raras vezes, se desespera com a possibilidade real de perder seus familiares e amigos mais
chegados para Satanás. É um sentimento de compaixão pelo “perdido pecador” que, mais do
que fixar sua comiseração nas práticas entendidas pelo evangélico-pentecostal como viciosas
e detestáveis ao Senhor – inscritas no corpo daquele que recebe a mensagem de salvação –,
volta-se para uma potente atitude imaginativa que prevê o destino de dor insuportável que
aguarda a alma imortal e imaterial que habita o corpo daquele mesmo para quem o crente
dirige sua pregação. Esse sentimento proveniente dos quadros representacionais do imaginário
social evangélico-pentecostal revela-se como um verdadeiro combustível ao ímpeto
evangelístico de ganhar almas para o Reino de Deus. Assim, os evangélico-pentecostais em
110
sua grande maioria não levam adiante sua Batalha Espiritual por astúcia ou interesses escusos,
mas, antes, por uma verdadeira compaixão pelas almas depreendida de seu arcabouço
identitário.
João 20. 21-23:
Disse-lhe, pois, Jesus outra vez: Paz seja convosco! Assim como o Pai me
enviou, também eu vos envio a vós. E, havendo dito isso, assoprou sobre eles
e disse-lhes: Recebei o Espírito Santo. Àqueles a quem perdoares os
pecados, lhes são perdoados; e, àqueles a quem os retiverdes, lhes são
retidos.
Comissionados com um mandamento e uma mensagem. O Evangelho de
João apresenta a divindade de Jesus – o Filho de Deus. Como Deus, ele criou
todas as coisas (1.1-3) e, como Deus, ele veio para redimir a todos – trazer a
totalidade do perdão. Esse aspecto de sua missão é transmitido a seus
discípulos, bem como seu comissionamento: Ir com o perdão. Começou aqui
tanto um mandamento como uma missão: 1) “Eu vos envio a vós”.
Precisamente tanto como o Pai enviou o Filho para trazer a salvação como
uma disponibilidade para todos os seres humanos (3.16), nós também somos
enviados para garantir que a disponibilidade seja compreendida por todos. 2)
“A quem perdoardes” indica a natureza condicional de sua provisão. Não se
pode respondê-la a menos que seja salvo. Não há escapatória da natureza
impressionante da terminologia usada aqui por ele. Nós não somos apenas
enviados com a substância da mensagem – a salvação; somos também
enviados para trazer o espírito de sua verdade – o perdão. Apenas o alento do
Espírito dele, que ele assoprou sobre aqueles que escutaram primeiro essas
palavras, pode nos capacitar a ir obedientemente e a alcançar afetuosamente.
É nosso dever disseminar a mensagem (salvação) e seu significado (perdão),
e precisamos receber o Espírito Santo para realizarmos ambos (BÍBLIA de
Estudos Plenitude, 2001: 1099).
O “ganhador de almas” é uma alcunha muito conhecida entre os evangélico-
pentecostais e está embasada no cumprimento da Grande Comissão. É um título que designa
aquele que de fato sofre para levar adiante a “palavra de salvação”. Sobre este sentimento de
empatia espiritual, acompanhemos o que escreve Mark Francen, um reconhecido pregador
para as multidões na África e Ásia, em seu livro Busca pelas almas (s/d).
Quando um indivíduo chama minha atenção meus pensamentos subitamente
entram em seu mundo e me encontro contemplando seu destino eterno.
Alguns destes rostos nunca me abandonam. Eu posso fechar os meus olhos e
vê-los claramente... como se estivessem parados na minha frente. Vez por
outra, eu me pergunto: “Quem os alcançará, senão eu?” Meu querido amigo
em Cristo, a maioria das pessoas do mundo nada sabem do plano redentor de
Cristo. “QUEM OS ALCANÇARÁ SENÃO VOCÊ?” […] Cerca de um
milhão de pessoas no mundo morrem cada semana sem Cristo. Isto não
significa nada para você? Sentimos dor em nosso coração pelos homens e
mulheres que perecem? Não lhe persegue dia e noite o pensamento de que
milhões de pessoas estão perecendo, que multidões estão caindo em
desespero sem um raio de esperança? Quando um homem está revestido com
o poder do alto, ele tem amor pelas almas. Pare de se vangloriar de sua
111
unção se você não tem amor pelas almas. […] A Palavra de Deus é muito
explícita com relação a este dom singular do batismo do Espírito S
anto. Não é uma opção que pode ser ignorada. Não foi dado com o único
propósito de falar em línguas. A maioria tem feito das “línguas” o único
objetivo desta experiência. Uma vez que recebem, eles passam a viver uma
vida cristã sem frutos. O evangelismo mundial é um ministério para todos os
crentes. O propósito de ser cheio com o Espírito Santo não é “falar em outras
línguas”, mas dar prova da ressurreição e testificar de Cristo com confiança,
no poder do Espírito (FRANCEN, s/d: 07-41).
Levar adiante a mensagem da salvação é abrir caminho para a realização do futuro. A
linha de tempo que liga o momento presente ao futuro absoluto (a Parousia) é comprimida ou
encurtada pelo cumprimento do “Ide e Pregai”. Como sua realização é um imperativo na
constituição da identidade do crente, este não pode dar as costas à sua responsabilidade sobre
as almas dos pecadores sem correr o risco de fazer colapsar todo o arcabouço identitário
evangélico-pentecostal. Exatamente por isso consideramos que a manifestação de intolerância
e a prática fundamentalista por parte dos fieis se configuram como manifestações de sua
religiosidade própria, não sendo entendidas pelo evangélico-pentecostal como um ato
execrável de desrespeito, antes, sim, como um mandamento basilar que, de acordo com seu
modo de ver, quando efetivado poderá ser a última chance de salvação para o “perdido
pecador”.
Entre os artigos históricos do jornal Mensageiro da Paz, pudemos identificar diversas
referências ao cumprimento da Grande Comissão. Apresentaremos aqui trechos de dois
artigos de autoria do pastor Alcebíades Pereira Vasconcelos. O primeiro trecho foi retirado do
artigo Um mandamento, uma promessa e um privilégio, publicado em agosto de 1942; o
segundo trecho pertence ao texto Dever e responsabilidade, datado de outubro de 1947.
O senhor Jesus, depois de sua ressurreição, procurou os seus discípulos, a
quem declarou: “É me dado todo poder no céu e na terra. Portanto ide, fazei
discípulos...”, Mt 28.18-19). Eis a nossa responsabilidade pessoal! Fomos
libertos do pecado para servirmos à justiça, cuja servidão nos impõem um
“jugo maneiro e um fardo leve ou suave”, Mt 11.30. O senhor precisa dos
nossos serviços de servos obedientes, a fim de por nosso intermédio levar a
luz da verdade, o Evangelho da salvação, a todo o mundo, em testemunho a
toda criatura; e nós que temos aceitado a Cristo, arcamos com a
responsabilidade de fazer discípulos do Senhor entre todas as nações. […]
Eu percebo que cumprindo o “ide” teremos infalivelmente o Senhor
conosco, ao passo que negligenciando o “ide”, estamos rejeitando sua
presença e nos distanciando de seu plano em relação ao mundo, e ao mesmo
tempo nos tornando passíveis de repreensões e penas por parte de sua justiça
inflexível (ARTIGOS Históricos – Mensageiro da Paz, 2004: 193-194. 1 v).
112
Notamos que bem antes da difusão entre os evangélico-pentecostais brasileiros da
temática concernente ao pagamento de dízimos e ofertas de modo maquínico (Teologia da
Prosperidade), relacionando a ação humana e reação divina num modelo de estímulo-resposta
que redundaria nas propostas neopentecostais de interpretação da Prosperidade Santa,
podemos observar que o germe do modelo estímulo-resposta na esfera do sagrado já norteava
o pensamento evangélico-pentecostal no que concerne ao cumprimento da Grande Comissão.
Se o crente cumprisse o “ide” em seu dia-a-dia, poderia ter a certeza de que Jesus se faria
presente para abençoá-lo. Se não se prestasse a evangelizar aqueles que estivessem ao seu
alcance, instando com veemente fervor para que o gentio aceitasse Jesus como seu Senhor, o
crente se tornava repreensível, pois estaria em desacordo com o plano de Deus e em falta com
sua identificação.
Jesus disse: “Na verdade, na verdade vos digo: O que ouve a minha
Palavra...”, Jo 5.24. Transportemos para aqui a oportuníssima pergunta
paulina: “Como ouvirão se não haver quem pregue?”, Rm 10.14. Eis aqui o
grande dever, pelo qual está responsável a igreja enquanto viver na Terra –
pregar o Evangelho! Jesus ordenou: “Ide, pregai o Evangelho a toda criatura,
quem crer e for batizado será salvo, mas quem não crer será condenado”, Mc
16.15-16. Este dever e responsabilidade do povo de Deus são tremendos,
pois deles dependem a felicidade ou infelicidade do mundo, conforme este
proceder em relação a eles, aceitando-os ou rejeitando-os, bem como de
povo de Deus cumpri-los ou negligenciá-los. Não é difícil ouvir-se crentes e
até membros do ministério buscando portas abertas para entrar por elas, isto
é, esperando o tempo oportuno para pregar o Evangelho a alguma pessoa ou
lugar! Nada mais contrário ao plano de Deus: “Se alguém ouvir a minha
Palavra...” e “Ide, pois, pelas ruas e bairros da cidade, pelos caminhos e
valados e forçai-os a entrar”, Jo 5.24; Mc 16.15 e Lc 14.15-24.
Consequentemente, é nosso dever forçar a porta até que esta se abra. Não diz
o Senhor: “Eis que estou à porta e bato”? Ap 3.20. O príncipe das trevas
deve alegrar-se com o adiamento do tempo para evangelização de “alguém”,
pois não quer que esse “alguém” ouça a Palavra de Deus! […] Portanto, a
nós cumpre pregar, pois é nosso dever e está sob nossa responsabilidade este
serviço “para o qual os anjos desejam atentar”, 1Pd 1.12; devemos fazer com
que a Palavra seja ouvida: “O que ouve a minha Palavra e crer...”. Estamos
encarando como devemos nosso dever e responsabilidade? Alguém no juízo
nos acusará por termos perdido o tempo presente, por esperarmos melhor
oportunidade para lhe pregarmos o Evangelho? “Quem olha o vento nunca
semeará...”, Ec 11.4. Mas, “recebereis poder ao descer sobre vós o Espírito
Santo, e ser-me-eis testemunhas... até os confins da terra”, At 1.8
(ARTIGOS Históricos – Mensageiro da Paz, 2004: 215-216. 1 v).
Verdadeira imersão por parte do sujeito que se converte nos cultos pentecostais e
prática de pregação pessoal objetivando a conversão alheia, aí está a fórmula do avanço no
número de adeptos ao evangelho pentecostal. Pode parecer jocosa a afirmativa, mas
percebemos que aos próprios olhos dos evangélico-pentecostais a felicidade do mundo é
113
garantida pelos esforços que empreendem ao fazer avançar a Palavra de Deus, por mais que o
mundo insista que certamente o silêncio do evangélico-pentecostal seja mais agradável à
manutenção da paz. De fato, o crente está preparado identitariamente para receber as
negativas e os escárnios dos gentios. O crente “sabe” que Satanás enche o coração do infiel
para que ele se afaste do Senhor e dos servos do Senhor. Assim, sempre que alguém recalcitra
em receber a Palavra de Deus por meio de seus seguidores mais completos – os evangélico-
pentecostais –, esta mesma pessoa não está fazendo nada que já não seja esperado pelos que
levam a mensagem.
Como o crente deve reagir numa situação em que seu interlocutor simplesmente não se
submete ao seu imaginário social reconhecendo-se como perdido? As práticas doutrinárias
determinam que, antes de qualquer coisa, o crente deve orar por muito tempo para garantir a
agência das forças celestiais na conversão de alguém. Usam o versículo de Zacarias capítulo
4, versículo 628
para fundamentar que a obra de evangelização de uma pessoa, ou mesmo de
um grupo de pessoas, não depende exclusivamente do esforço retórico ou do acentuado
volume de argumentos que objetivem convencer o outro do pecado. Quem move a obra da
salvação por trás das aparências físicas é o Espírito Santo. Este, porém, necessita de um
“vaso”, um meio pelo qual realizará a vontade de Deus Pai: o crente fiel.
Saber encontrar brechas ou oportunidades para a pregação configura-se num segundo
passo a se tomar quando o interlocutor simplesmente não aceita receber a Palavra de Deus. Se
não for um tempo oportuno para a pregação – se “a porta não estiver aberta” – o crente deve
saber forçá-la para realizar a Grande Comissão. Os pós-milenaristas alinhados com a
Prosperidade Santa trabalham, também, com a conversão da cultura. Por mais que a
proporção de conversões que alcançam ao lançar mão das novas mídias seja bem maior do
que a empreitada “boca-a-boca” pré-milenarista, eles baseiam-se nos mesmos versículos
bíblicos e representações coletivas.
Existem situações em que os evangélico-pentecostais “lavam as mãos” e deixam de
pregar e exortar seu interlocutor à conversão. Acontece com mais frequência quando a pessoa
para quem se está pregando não participa do círculo de amizades do fiel, quando o gentio é
um relativo desconhecido. Nesses casos, logo após cumprir o mandamento do “ide”
anunciando-lhe a perdição (apesar de falar da Salvação o crente precisa, antes de qualquer
coisa, convencer seu interlocutor da perdição; podemos dizer então que a mensagem e a
Palavra que levam não é de fato a de Salvação, mas sim a de Perdição), o evangélico-
28
“Não por força nem por poder, mas pelo meu Espírito, diz o Senhor dos Exércitos”. (Bíblia de Estudos
Plenitude, 2001)
114
pentecostal aquieta sua consciência acreditando ter realizado sua obrigação identitária. Um
sentimento de dever cumprido, pois, a semente da Palavra foi plantada. Após seu trabalho de
semeadura, caberá ao Espírito Santo fazer a semente brotar no coração do gentio.
Encontramos o mesmo cuidado em cumprir a Grande Comissão entre os escritos de
Edir Macedo.
Não resta a menor dúvida de que a maior característica do batizado no
Espírito Santo é o amor pelas demais pessoas. Esse amor é o grande
princípio cristão de toda a ação, ultrapassando todos os nossos interesses
próprios. É muito mais que um simples sentimento de amizade ou
cordialidade entre as pessoas; é uma paixão forte e desenfreada no sentido de
levar as pessoas à salvação eterna, através do Senhor Jesus Cristo; um
profundo desejo de tirar as pessoas do tremendal de lama em que se
encontram neste mundo, levando-as a uma vida nova de pureza e santidade
eterna, em comunhão constante com Deus. Se o candidato ao batismo no
Espírito Santo apresenta uma sede de ganhar almas para o Reino de Deus,
então seu batismo acontecerá mais cedo do que possa imaginar (MACEDO,
2001: 106-107).
Um elemento facilitador para o recebimento do batismo com o Espírito Santo é o
desejo sincero de ganhar mais almas para o Reino de Deus. O sucesso do crescimento da
IURD está intimamente ligado à manutenção da representação coletiva da Grande Comissão.
Edir Macedo não abriu mão, em seus escritos, de salientar a importância do exercício
evangelístico por parte do verdadeiro crente.
Tudo o que Deus espera daqueles que crêem n’Ele de todo o coração é
simplesmente uma atitude de fidelidade à Sua chamada, ou seja, não acredito
que o Espírito Santo tenha-nos feito filhos de Deus para que fiquemos
somente desfrutando dessa riqueza neste mundo e no mundo vindouro. Não!
Se Deus, pelo Seu Espírito, me revelou o plano da salvação e do Salvador
Jesus Cristo, foi para que eu tomasse essa revelação e a espalhasse, o mais
rápido possível, pelos quatro cantos da Terra, a fim de que aqueles que estão
nas trevas possam ver a Luz, da mesma forma como aconteceu conosco
(MACEDO, 2007: 103).
Trabalhar na seara do Senhor colhendo as almas perdidas no mundo de pecado é uma
forma de compartilhar das riquezas que Deus destinou a seu povo. O evangélico-pentecostal
alinhado com a matriz interpretativa da Prosperidade Santa leva a mensagem de Cristo tanto
para cumprir sua identificação quanto para garantir seu galardão, pois, ao realizar a vontade
de Deus, os crentes também garantem o direito de receber suas próprias bênçãos almejadas. O
número de almas alcançadas para o Reino pode ser diretamente proporcional à riqueza
material destinada àquele que cumpre a Grande Comissão.
115
O diabo sabe que “quem fala planta; quem ouve colhe”. O ser humano está
entre as duas palavras: a de Deus e a do diabo. A palavra à qual ele der
crédito o fará servo de quem a proferiu. Se ele ouve a Palavra de Deus, será
Seu servo, mas se ouve a palavra do diabo... De tal constatação podemos
tirar as conclusões do porquê de este planeta se encontrar na miséria e na
dor. A filosofia diabólica tem feito o homem andar inseguro, temeroso e
absolutamente perdido dentro de si mesmo e no mundo. A Palavra de Deus,
ao contrário da do diabo, tem levado o ser humano a uma liberdade
espiritual, dando-lhe consciência para determinar o que é melhor para si
mesmo. Torna-o seguro nas suas atitudes, corajoso e absolutamente
poderoso para a realização da vontade de Deus aqui na Terra, servindo como
seu embaixador e cooperador no desenvolvimento da Criação de Deus. Isso,
entretanto, não acontecerá enquanto não houver a fé absoluta (MACEDO,
2007: 138).
2.2.6. Parousia (Segunda Vinda de Cristo)
A última representação coletiva compartilhada entre assembleianos e iurdianos
elencada neste trabalho e que, julgamos, auxilia a imprimir sentido à Batalha Espiritual é a da
Parousia ou “Segunda Vinda de Cristo”. O messianismo entre os evangélico-pentecostais é
um dos elementos centrais que constituem seu imaginário social e perpassa todos os
segmentos pentecostais surgidos no século XX. Já discutimos brevemente os modelos pré-
milenarista, pós-milenarista e amilenarista estruturados pelos crentes para conceber sua
escatologia. Apesar de haverem discussões e dissensões no que tange ao período de
estabelecimento do Milênio, todos os evangélico-pentecostais concordam que Jesus voltará.
Deste modo, os evangélico-pentecostais, com vistas a abreviarem o tempo de espera (entre os
pré-milenaristas) ou cooperar na instauração do Reino de Deus na terra (entre os pós-
milenaristas), são guiados a voltarem seus esforços para a evangelização dos gentios.
A Parousia, assim, configura-se como o horizonte de expectativas por excelência dos
evangélico-pentecostais. Para atestar a importância de tal representação coletiva,
acompanhemos, logo abaixo, a leitura de um texto escrito por um dos fundadores da AD,
Gunnar Vingren, publicado no Mensageiro da Paz, em abril de 1931.
A realidade é que Jesus vem. As Escrituras assim o dizem. Ele mesmo,
quando esteve neste mundo, falou dos sinais que haviam de preceder à sua
vinda. Por isso, nós, que hoje estamos vendo o cumprimento desses sinais,
não podemos deixar de afirmar que Jesus vem! O Espírito Santo no crente
diz que Ele vem, e a alegria deste é a esperança da vinda de Jesus. Para o
crente, que tem amor a Jesus, é natural esperar a sua vinda. Pois Nele está a
sua vida, gozo, paz e alegria. É seu prazer andar na companhia de Jesus e, se
aqui na terra é tão glorioso andar com Ele, quanto mais não o será encontrá-
lo na sua vinda! Tudo que for de Jesus é puro, santo, e justo; sim, tudo que
Dele procede é glorioso, por isso os santos o amam. […] Este tempo [dos
116
gentios] está para se findar, um dos últimos sinais de que falou Jesus, a
respeito da sua vinda, está se cumprindo hoje – o Evangelho está sendo
pregado a todos, “depois virá o fim” (ARTIGOS Históricos – Mensageiro da
Paz, 2004: 84-85. 1 v).
A Parousia e a Grande Comissão são representações coletivas muito próximas na
medida em que fundamentam e imprimem sentido ao horizonte de expectativas do crente.
Elas se complementam de tal maneira que dificilmente pode-se fazer referência à volta de
Cristo sem mencionar o mandamento do “Ide e Pregai”. Esta relação de concomitância fica
patente no texto de Gunnar Vingren. Outro elemento que chama a atenção no texto de Gunnar
Vingren e é também tributário da Parousia enquanto representação coletiva é o caráter pré-
milenarista dos escritos de Vingren. Nos tempos iniciais de formação da AD, a expectativa
para com o retorno do Cristo alimentava o zelo cristão, como já discutimos. O pré-
milenarismo, vivenciado por intermédio da matriz interpretativa da Santidade Próspera,
acentua a tendência à ressignificação dos acontecimentos tidos como traumáticos ou
catastróficos, em nível regional ou planetário. Os evangélico-pentecostais seguem enxergando
nas desgraças sociais e naturais os sinais dos tempos profetizados por Jesus como marcas
indicativas da iminência de seu retorno. Esta característica é marcante no texto de Emílio
Conde, publicado no jornal Som Alegre, em junho de 1930.
Que presenciamos hoje? Perversão moral, iniqüidade, desumanidade,
voluptuosidade, intemperança, concupiscência, e impiedade. Tudo isso é a
abominação e o assolamento predito no Sermão da Montanha. O cálice da ira
transborda, e o mundo caminha para um epílogo cruel e inevitável. Estamos
às portas do fim dos tempos. Todo o cataclismo se pronuncia pela desordem
moral e social, tal como aconteceu a Sodoma e Gomora. Os nossos dias são
os dias trabalhosos de que fala a Bíblia. Os homens, mesmo os de ciência,
vivem apreensivos diante dos sintomas prenunciadores da decadência da
civilização. Que significa tudo isso? Jesus previu esse tempo. Ele predisse
que a sua volta seria precedida de um período de grande perplexidade, e
“angústia das nações”. Que vemos? Homens desmaiando de terror, na
expectativa das cousas que sobrevirão ao mundo”, Lc 21.26. Como são
verdadeiras as suas palavras! A angústia chegou. A perplexidade domina. O
desespero apodera-se dos homens. Que esperamos? Não vemos como o fim
dos tempos se aproxima? Não se cumprem, de modo tão maravilhoso, tantos
sinais escritos, simultaneamente? Coincidência? Não! Tudo isso são sinais
evidentes da que estamos nos últimos dias e perto da segunda vinda de
Cristo (ARTIGOS Históricos – Mensageiro da Paz, 2004: 61-62. 1 v).
O pastor Emílio Conde, explicitamente pré-milenarista, coloca em evidência a
intensidade dos sofrimentos que sobrevém aos verdadeiros cristãos durante os dias
imediatamente anteriores ao arrebatamento. Dias trabalhosos aos que professam a fé dos
santos. O sofrimento e as perseguições aumentam sobremaneira, mas, se os crentes quiserem
117
subir aos céus com seu salvador, devem permanecer firmes. Num mundo dominado pela
angústia e pela perplexidade, o crente pode sorrir confiante, apesar dos sofrimentos, pois
conhece a verdade por trás das aparências. Os evangélico-pentecostais, diferentemente dos
apreensivos homens de ciência, sabem ler os sinais dos tempos na decadência da civilização.
Edir Macedo, como líder pós-pentecostal, amenizará em seus escritos a expectativa no
que tange ao retorno de Cristo. A mensagem pós-milenarista de Macedo, como já discutimos,
prega o paulatino estabelecimento do Reino de Deus no “mundo”.
Fomos criados com o sentido do dever; para auxiliares ou cooperadores de
Deus, conforme o Espírito Santo afirma através de Paulo: “Porque de Deus
somos cooperadores; lavoura de Deus, edifício de Deus sóis vós.” (1
Coríntios 3.9) Ora, se estamos na condição de colaboradores de Deus na
construção de um mundo melhor aqui na Terra, é porque o Senhor nos deu e
nos dá todas as condições necessárias ao desenvolvimento do nosso trabalho.
[…] O triângulo Deus, homem e natureza passa a funcionar de maneira
perfeita, cada qual dentro da sua área de ação. A natureza colabora com o
homem, o homem colabora com Deus e toda a Criação manifesta e exalta o
Seu poder (MACEDO, 2007: 160-161).
A atenção de Macedo recai no fato de serem os cristãos colaboradores de Deus na
construção do Reino na terra. Apesar disso, a representação coletiva da Parousia não pode ser
eliminada do discurso iurdiano, na medida em que compõe, juntamente com a Grande
Comissão, o horizonte de expectativas dos evangélico-pentecostais.
Há uma grande confusão entre esperança e fé. Ora, a esperança que nós,
cristãos, devemos nutrir em nossos corações, e sem a qual não podemos
viver, é a de que um dia herdaremos o Reino Celestial e viveremos
eternamente com o nosso Senhor Jesus Cristo. Esta esperança se baseia no
futuro, ou seja, o cristão deve andar e viver pela fé, com a esperança de um
dia ver com seus olhos o cumprimento de todas as promessas feitas pelo
Salvador (MACEDO, 2007: 141-142).
Como vimos, se faz necessário relativizar as tipologias pentecostais desenvolvidas por
pesquisadores que se propuseram analisar as variações teológico-doutrinárias desenvolvidas
durante o século XX. Quando o foco de nossa atenção está nas continuidades históricas em
matéria de representações coletivas compartilhadas por assembleianos e iurdianos,
percebemos que os elementos que os tornam uma comunidade, mesmo que dispersa no tempo
e no espaço, são mais relevantes para a formação da identidade social dos fieis do que os
elementos que os caracterizam como denominações distintas. Assim, dos três elementos
considerados básicos para a fundamentação dos recortes tipológicos entre pentecostalismos, a
saber, a negação dos sinais exteriores de santidade, a teologia da prosperidade e a exacerbação
da Batalha Espiritual, vimos que só os dois primeiros – pensados como elementos que
118
ressemantizaram a matriz interpretativa da Santidade Próspera revertendo-a numa
Prosperidade Santa – se mostram historicamente coerentes. A Batalha Espiritual, pensada em
função das representações coletivas que lhe imprimem sentido, é fundacional na constituição
da identidade evangélico-pentecostal e já se mostrava inescapável enquanto processo
identitário desde a fundação da Assembléia de Deus.
Vimos que as representações coletivas que sustentam a Batalha Espiritual estão
imbricadas e perpetuam-se no decorrer do século fomentando experiências de combate ainda
em fins da década de 1990. Sugerimos, também, que a tomada da pretensa exacerbação da
Batalha Espiritual como um elemento que determinaria a proposta neopentecostal de fé
somente pode advir dos novos modos de relação com as mídias que os segmentos evangélico-
pentecostais começaram a desenvolver em fins da década de 1960. Acreditamos que
exposição midiática massiva de sua mensagem evangelizadora no espaço público (mensagem
da Perdição) poderia ser considerada como fator importante nos desdobramentos do processo
histórico que levou os pesquisadores a tomarem as denominações surgidas na primeira metade
do século XX como menos aguerridas ou engajadas na Batalha Espiritual. Esta questão,
porém deverá ser mais bem analisada noutra ocasião.
119
3. Cantos de Batalha: a manutenção das experiências de conflito por meio
dos hinos de louvor e adoração
No capítulo segundo procuramos demonstrar a existência de um substrato
representacional comum às igrejas evangélico-pentecostais Assembléia de Deus e Universal
do Reino de Deus. Verificaremos neste terceiro capítulo como as mencionadas representações
coletivas – mantenedoras do imaginário social evangélico-pentecostal da Batalha Espiritual –
estão presentes em dois grupos de canções de louvor temporalmente separados por, no
mínimo, 70 anos. Ao analisar esses dois grupos de canções, julgamos dar mais um passo no
sentido de corroborar a existência do substrato representacional comum entre AD e IURD.
Lançar luz sobre a perpetuação das representações coletivas que imprimem sentido à Batalha
Espiritual é, em nosso entender, uma contribuição para o entendimento da existência e da
necessidade da vivência do conflito – da guerra, da demonização, e da desumanização do
outro – como um dos ditames inescapáveis do processo de identificação com a proposta
evangélico-pentecostal de fé.
O primeiro grupo de canções que será analisado foi retirado da Harpa Cristã,
cancioneiro oficial das Assembléias de Deus. A primeira edição da Harpa, impressa no
Recife, data de 1922, foi desenvolvida para suprir as necessidades da marcação de diferença
entre os fiéis da primeira geração das Assembléias de Deus e as igrejas protestantes históricas.
A segunda edição da Harpa – que nos servirá para análise – foi impressa no Rio de Janeiro,
em 1923, e contava com 300 hinos.
Os “pais fundadores” das Assembléias sentiram que a doutrina pentecostal não estava,
de todo, sendo enfocada pela coleção de cânticos em uso. Os fiéis de então utilizavam como
hinário a coleção Salmos e Hinos. Este, por sua vez, foi organizado em 1861 pelos
missionários Dr. Robert Reid Kalley e Sarah Poulton Kalley e contava com,
aproximadamente, 50 cânticos. Os Salmos e Hinos não refletiam a nova realidade teológico-
doutrinária e de usos e costumes que surgiam com o movimento pentecostal nas primeiras
décadas do século XX. Daí o ímpeto de produzir e traduzir novos cânticos de louvor para
melhor expressar a perspectiva pentecostal. Escolhemos o cancioneiro Harpa Cristã como
fonte para prospecção de material documental de análise pelo fato de ainda serem muito
utilizados seus hinos, não só nas Assembléias de Deus, como também noutras denominações
120
evangélico-pentecostais. Eles são representantes, como já discutimos no primeiro capítulo, do
que Siepierski (2008) entende ser uma matriz pré-milenarista de concepção pentecostal.
O segundo grupo de canções foi levantado mediante estudo do hinário oficial da Igreja
Universal do Reino de Deus, “Louvores do Reino”, e do acréscimo das produções musicais de
três nomes influentes em matéria de vendagem de discos no meio evangélico-pentecostal nos
últimos dez anos: o grupo de louvor Diante do Trono, a pastora cantora Ludimila Ferber e a
cantora Cassiane. Nos cultos dos quais tomamos parte como pesquisador participante não
diretivo para a produção desta dissertação, em igrejas da Assembléia de Deus e em reuniões
da Universal do Reino de Deus, pudemos perceber, tanto por parte dos grupos de louvor
locais quanto por parte de membros que recebem a “oportunidade” para cantar utilizando o
play back, o uso litúrgio destes novos cânticos. Eles são usados também para a fruição da fé
em momentos de meditação, oração ou apenas entreterimento dos fiéis em sua vida privada.
Representam – este novo repertório de cânticos – o que Siepierski (2008) entende ser os
discursos do novo pós-pentecostalismo. Procuramos entre esses dois grupos de canções de
louvor as continuidades no que tange às representações coletivas que sustentam o imaginário
da Batalha Espiritual.
Como explicitado no capítulo segundo, a Batalha Espiritual pode ser rastreada através
das relações estabelecidas entre sete representações coletivas fundantes do imaginário social
evangélico-pentecostal: a Santa Ceia, os batismos nas águas e com o Espírito Santo, o
biblicismo, o dualismo, a Parousia e a Grande Comissão. As duas últimas representações –
parousia e a Grande Comissão – nos remetem à vivência temporal experienciada em função
de um objetivo determinado: a volta de Jesus para arrebatar os escolhidos.
As representações coletivas da parousia e da Grande Comissão possuem a
característica de agirem diretamente na constituição das concepções temporais do horizonte
de expectativas, dilatando-as. A parousia organiza a vivência do sujeito com vistas à vida
futura, à presença corporal deste mesmo sujeito na “Jerusalém Celestial”. A Grande Comissão
– o mandamento “ide e pregai” – marca o passo da sua efetivação objetiva, as “condições
materiais” para a chegada do Reino de Deus. Mais do que um esperar, a Grande Comissão
evoca o crente a realizar a possibilidade da parousia mediante sua ação direta ao “pregar a
Palavra”, ou seja, fazer prosélitos. É corrente entre as comunidades evangélico-pentecostais
estudadas a crença de que a Segunda Vinda de Cristo se dará somente quando todos os seres
humanos forem “alcançados” pela Palavra e tiverem a oportunidade de se fazerem servos de
Jesus. Daí a ênfase dada ao trabalho coletivo e/ou individual de missões e de evangelização.
121
A comparação entre os dois grupos de canções que se seguem é mais um esforço no
sentido de corroborar a validade de nossa proposta do arcabouço identitário evangélico-
pentecostal ao registrar a recorrência de representações coletivas tanto em canções
eminentemente pré-milenaristas – as do primeiro grupo – e em canções de caráter pós-
milenaristas – as do segundo grupo.
Como apresentado no capítulo primeiro, concordamos com a pertinência das
conclusões de Siepierski (2008), que versam sobre as defasagens teológicas, doutrinárias e em
termos de práticas sociais entre pré e pós-milenaristas. Entretanto, a partir da análise
documental guarnecida de assídua presença no meio dos fiéis, acreditamos serem passíveis de
certa relativização as rupturas que o autor insta em ver entre as denominações pentecostais e
pós-pentecostais. As imagens e conteúdos recorrentes que percebemos nas letras das canções
– primeiramente nos hinos retirados da Harpa Cristã, editada em 1923, posteriormente nas
canções escritas nas últimas duas décadas do século XX – nos remetem às mesmas
representações coletivas, importantes continuidades históricas na constituição da identidade.
Como veremos, as canções analisadas são odes que, direta ou indiretamente, valorizam o
engajamento na Batalha Espiritual.
Reconhecemos, todavia, que as interpretações tenham sofrido variações. Acreditamos
que tais variações se deram a partir da permuta da matriz interpretativa da Santidade Próspera,
para a Prosperidade Santa, como discutido no capítulo segundo. Mesmo assim, tal mudança
de ênfase não teria sido suficiente para anular os arranjos representacionais característicos que
propiciam sentido à Batalha Espiritual.
Utilizaremos a mesma ordem de apresentação das representações coletivas utilizada no
capítulo segundo. Assim, iniciamos nossa análise com o rastreamento das continuidades
históricas no que tange à representação coletiva da Santa Ceia.
3.1. Santa Ceia
Acerca da celebração da Santa Ceia como temática, ou seja, a participação no ritual
que rememora o sacrifício de Jesus ao morrer na cruz com o “corpo e o sangue de Cristo” –
comer um pedacinho de pão e beber um dedal de suco de uva, distribuídos em cultos
específicos para tal comemoração –, podemos encontrar quatro hinos na Harpa Cristã de
1923. Escolhemos para análise aquele que nos pareceu mais significativo pelo fato de
desenvolver o significado terreno e celestial do ritual. Analisaremos o hino 53, A Esperança
da Igreja, sob as iniciais de H. Maxwell Wrigth (1849-1931).
122
A Esperança da Igreja – 53 [íntegra]
Até que volte o Salvador,/ Cercando a mesa do Senhor,/ A Ceia vimos
celebrar,/ De Cristo, a morte anunciar,/ E com humilde devoção,/ Render a
Deus adoração.
Até que volte o Salvador,/ Aqui mostremos Seu amor;/ Com viva fé e
gratidão,/ Participemos deste pão,/ Obedientes a Jesus,/ Lembrando assim a
Sua cruz!
Até que volte o Salvador,/ Bebendo o cálice do Senhor,/ Seu nome queremos
bendizer,/ E mais e mais engrandecer,/ O sangue que Ele derramou,/ O
sangue que nos resgatou!
Se duras são as provações,/ Se fortes as perseguições,/ Se as lutas fazem-se
sentir,/ E custa-nos as resistir,/ Não nos deixemos perturbar:/ São só até
Jesus voltar!
Bem prontos para O receber,/ Devemos sempre aqui viver;/ O tempo foge, o
dia vem,/ A glória esperamos além,/ Pois trabalhemos, com fervor,/ Até que
volte o Salvador (HARPA CRISTÃ, 1998: s/p).
Na primeira estrofe, a Santa Ceia como celebração é relacionada ao seu sentido terreno
– a anunciação da morte de Cristo – e à sua realização espiritual – a volta de Cristo, Parousia.
A “comemoração”, que se dá mensalmente nas igrejas AD e IURD, normalmente no último
domingo do mês, desdobra-se num culto cuja mensagem evoca uma reflexão sobre a prática
de vida dos fiéis. Os irmãos presentes na congregação são convidados a relembrar
acontecimentos que, durante o transcurso dos dias desde a última Santa Ceia, podem ser
caracterizados como realizações pecaminosas. O fiel deve passar em revista sua trajetória
cristã em busca de reconhecer as falhas ou pecados cometidos durante o período. A Santa
Ceia ou a ingestão do pão e do suco de uva marca o momento de “conserto” com Jesus. Pedir
pelo perdão dos pecados cometidos e concordar consigo mesmo alguns pontos de revisão ou
policiamento. Os irmãos que tenham incorrido nalguma prática social tomada como
abominável pelo grupo de fiéis (adultério, roubos, insubmissão à autoridade espiritual de
algum pastor, etc.) são, muitas vezes, instruídos a não participarem da celebração. Precisam
vencer um período de “provas” no qual estará sendo testada sua postura social. Pelo fato de
serem menos rígidos no que tange aos “usos e costumes”, os períodos de provas são menos
constantes entre os iurdianos.
A participação no corpo e sangue de Cristo sempre se dá após a leitura do versículo 23
ao versículo 29 do livro de I Coríntios capítulo 1129
. Os evangélico-pentecostais usam tal
29
“Porque eu recebi do Senhor o que também vos ensinei: que o Senhor Jesus, na noite em que foi traído, tomou
o pão; e, tendo dado graças, o partiu e disse: Tomai, comei; isto é o meu corpo que é partido por vós; fazei
isso em memória de mim. Semelhantemente também, depois de cear, tomou o cálice, dizendo: Este cálice é o
Novo Testamento no meu sangue; fazei isso, todas as vezes que beberdes, em memória de mim. Porque, todas
as vezes que comerdes este pão e beberdes este cálice, anunciais a morte do Senhor, até que ele venha.
Portanto, qualquer que comer este pão ou beber o cálice do Senhor, indignamente, será culpado do corpo e do
sangue do Senhor. Examine-se, pois, o homem a si mesmo, e assim coma deste pão, e beba deste cálice.
123
passagem para, além de fundamentar seu ritual, desmerecer a celebração da Ceia entre outros
segmentos cristãos, marcadamente a celebração entre os católicos, conhecida como eucaristia.
Para os crentes, a ingestão apenas da hóstia, simbolizando o corpo de Cristo, não é suficiente
para realizar a ordenança de Jesus. É necessário beber do suco de uva também. No caso dos
católicos, apenas os representantes do clero cumpririam totalmente a Ceia do Senhor,
“roubando” de seus seguidores católicos a chance de “consertarem-se” de forma apropriada
com o Salvador. Esta é uma das discrepâncias doutrinárias derivadas das distintas liturgias
que auxiliam aos crentes marcarem suas diferenças identitárias – afirmarem sua superioridade
teológica e ritualística – em relação ao segmento cristão católico.
Como dizíamos, o sentido da participação na Santa Ceia não se realiza pontualmente
apenas no ato de comer o pão e beber do suco de uvas. Antes, ela marca o compasso da espera
pelo retorno do salvador, dilata o tempo futuro propiciando um horizonte de expectativas.
Além disso, a Ceia é realizada nas Assembléias e na IURD para fazer coabitar a identidade
evangélico-pentecostal nas dimensões temporais passadas e presentes, trazendo toda uma
pretensa memória coletiva da cristandade perseguida e morta em cumprimento das ordens de
Jesus que remontaria à igreja primitiva. Assim, o crente se entende investido da
responsabilidade de manter viva a tradição bimilenar da Santa Ceia, participando, deste modo,
de uma comunidade de “santos” que unem vivos e mortos, todos esperando a segunda
manifestação de Jesus. Esta pátina de tradição catalisa a construção da ideia de uma
identidade essencial e imóvel do que seja “ser verdadeiro cristão”. Tal identidade é repassada
entre as distintas gerações de crentes surgidas durante o século XX, alimentando a ideia de
que são depositários diretos do cristianismo primitivo.
O peso da responsabilidade de conceber-se como um herdeiro torna ainda mais solene
para o crente a manutenção da identidade evangélico-pentecostal. Ainda porque, e agora nos
voltamos para a dimensão futura evocada na celebração da Santa Ceia, participar do corpo e
sangue de Cristo é sinônimo de anunciar a Volta do salvador. As três primeiras estrofes do
hino 53 enfatizam esse ponto; “Até que volte o Salvador...”.
As estrofes finais do hino (4 e 5), mesmo sem abrir mão do tema da Santa Ceia,
voltam-se para os desdobramentos em termos de práticas que a crença na parousia acarretam
na vivência do verdadeiro fiel. A quarta estrofe está centrada na ideia da resistência paciente
que o crente deve cultivar frente às intempéries do dia-a-dia. Vimos que a postura da
resistência é uma característica decorrente da ênfase na “santidade próspera” rastreáveis nas
Porque o que come e bebe indignamente come e bebe para sua própria condenação, não discernindo o corpo
do Senhor.” (I Co 11:23-29, Bíblia de Estudos Plenitude, 2001)
124
mensagens assembleianas, como propusemos no segundo capítulo. Há bênçãos prometidas e
maravilhas a serem cumpridas na vida do fiel. Estas, contudo, só estarão ao alcance pleno do
crente quando Jesus cumprir sua promessa e retornar.
Além da resistência, o hino ecoa em sua última estrofe os versículos de Marcos 16:15,
o “ide e pregai”, mensagem que inescapavelmente aponta para a Grande Comissão: “Pois
trabalhemos, com fervor, / Até que volte o Salvador”. Realizar o trabalho demanda tornar-se
instrumento do deus cristão em sua obra salvífica: levar a mensagem de salvação adiante em
busca de converter o maior número de adeptos ao cristianismo evangélico-pentecostal. Fazê-
lo é contribuir para a parousia ao mesmo tempo em que se realiza o processo de identificação
com o imaginário social.
Analisemos mais uma canção composta por Sergio Lopes (músico ligado à IURD).
Esta canção, em específico, foi escrita para celebração da Santa Ceia. O título repete o nome
do ritual.
A Santa Ceia Este é o Meu corpo que por vós é dado/ Comei em memória de Mim/ Novo
Testamento foi firmado por vós/ Comei dele todos que Me amam/ Antes que
padeça as dores/ Que por vós na cruz Me entregue/ Desejei convosco
repartir/ Secreta comunhão/ Até que se cumpra o Reino de Deus/ Deste pão
não comeremos juntos outra vez/ Este é Meu sangue por vós é derramado/
Bebei em memória de Mim/ Novo Testamento foi firmado por vós/ Bebei
dele todos que Me amam/ Antes que padeça as dores/ Que por vós na cruz
Me entregue/ Desejei convosco repartir/ Secreta comunhão/ Até que se
cumpra no Reino de Deus/ Este sangue não teremos juntos outra vez
(LOPES, Sérgio. A Santa Ceia. Intérprete: Sérgio Lopes. In: LOPES, Sérgio.
A Fé. Rio de Janeiro: Line Records, 1999. CD).
Nessa canção, Sergio Lopes utiliza-se da passagem bíblica de Coríntios, na qual a
ordenança da Ceia foi estabelecida, para apresentar o ritual. A canção é, assim, uma repetição
poetizada do ritual. Podemos entendê-la como ode à realização do mesmo. Como a celebração
da Ceia faz parte de uma ritualística presente em todas as denominações evangélico-
pentecostais (não apenas as estudadas nesta dissertação), esta não se configura como uma
temática, digamos, polêmica. A Santa Ceia não é uma prática que necessite de reforços em
termos de afirmação de sua vivência. O ritual é necessariamente realizado na congregação e
presidido por pastores capacitados para tanto. Não há espaços para querelas ou
questionamentos no cumprimento da Santa Ceia como parte inescapável no processo de
interiorização das demais representações coletivas do arcabouço identitário evangélico-
pentecostal. Julgamos ser esta a razão para o número relativamente pequeno de hinos e
canções que tratam sobre tal temática entre as canções produzidas nos últimos anos. A
125
continuidade da celebração da Santa Ceia não entrou em questão em nenhum momento
durante as transformações sofridas no pentecostalismo no século XX.
Passemos a análise das representações coletivas dos Batismos.
3.2. Batismo (águas e Espírito)
A questão dos batismos é outra fonte de polêmicas teológico-doutrinárias entre os
distintos segmentos cristãos. Como vimos no capítulo segundo, os evangélico-pentecostais
acusam os católicos de não efetivarem, assim como no caso da Santa Ceia, a ordenança do
batismo para a plenitude da vida cristã. A incompletude se daria pelo fato de os católicos
realizarem o ritual de batismo mediante aspersão em lugar de imersão. Como vimos, também,
os batismos, no caso dos evangélico-pentecostais, são dois: aquele efetivado nas águas, que
marca a conversão pública do novo crente, e o batismo pelo Espírito Santo, que indica o
revestimento de poder pentecostal para batalhar pelo Reino de Deus – seja aguardando-o
pacientemente, seja afirmando-o em detrimento do “mundo”.
O hino 389 da Harpa Cristã, Lava-me ó Deus, sob a sigla de Paulo Leivas Macalão
(com autoria atribuída a M. D’Angelo), discorre sobre a doutrina do Batismo pelas águas.
Lava-me ó Deus – 389 [íntegra]
Tua justiça eu quero cumprir,/ Alegremente me vou batizar/ Por imersão,
para Cristo seguir/ E meus pecados, assim sepultar.
(coro)
Lava-me, lava-me, ó Deus de amor,/ No sangue puro de Cristo Jesus;/ Torna
minh’alma mais alva que a luz,/ No sangue puro de Cristo Jesus.
Quando das águas eu ressuscitar,/ Já criação nova sou em Jesus;/ Posso e Ele
servir e honrar,/ Por crer na obra sublime da cruz.
Com toda força, meu bom Salvador,/ Teu santo nome eu invocarei,/ Para que
eu vá de valor em valor,/ Ao céu de luz, onde descansarei (HARPA
CRISTÃ, 1998: s/p).
Paulo Leivas Macalão fez questão de apresentar a informação “por imersão” no hino.
Como aos olhos dos evangélico-pentecostais o batismo por aspersão é insuficiente e anti-
bíblico, cultivaram o costume de batizar novamente os conversos provenientes do
cristianismo católico. O momento da imersão presta-se como símbolo da participação na
morte de Cristo. Pretendendo simular a morte de Cristo, a imersão nas águas representa o
período em que Jesus esteve entre os mortos. Ao ser emerso, o fiel “ressuscita” de sua vida
pregressa, entendida como um período de “morte no pecado”.
Como apresentado na segunda estrofe, os evangélico-pentecostais julgam passar por
um processo de nova criação durante a celebração do batismo nas águas. Creem estar aptos
126
para “servir e honrar” após a realização do ritual, apesar de ainda estarem vulneráveis a
incorrerem em pecados. Isto se dá pelo fato de que as mesmas águas que durante o banho
envolvem o corpo, lavando-o, também representarem algo mais. Representam o sangue de
Cristo derramado durante sua crucificação. Ao sangue de Jesus é atribuído o poder de “lavar”
o homem de seus pecados. A lavagem dos pecados é pontual, única na trajetória do converso.
Não há necessidade de batismos seguidos para afastar as nódoas dos pecados cometidos após
o batismo nas águas. Para isso, há concertos e confissões de pecados cometidos. Estes
concertos têm lugar, primordialmente, junto ao ritual de celebração da Santa Ceia.
A última menção que a letra do hino faz é ao destino futuro do crente, no céu. Desta
forma afirma, assim como fizeram os outros hinos estudados por seus elementos constituintes
da identidade evangélico pentecostal – em especial os hinos provenientes do primeiro grupo
de canções (Harpa Cristã da AD) –, a realização última de todos os esforços do crente neste
mundo, a qual seja: subir aos céus com o cumprimento da Parousia.
Um segundo hino, pertencente ao primeiro grupo de canções e que trabalha a questão
dos Batismos, é o de número 87 da Harpa Cristã, Meu Testemunho, sob a sigla de Samuel
Nyström. O batismo mencionado no hino em questão é o Batismo pelo Espírito Santo,
confirmado pelo falar em línguas estranhas (glossolalia).
Meu Testemunho – 87 [íntegra]
Justificado estou;/ Cristo Jesus me livrou;/ Ele é meu Mediador,/ Também,
meu bom Salvador.
(coro)
Jesus, sou Teu, e Tu és meu;/ Me guiarás para o céu;/ Com graça e paz me
satisfaz/ Cristo, meu Mestre veraz.
Santificado fiquei,/ Quando a Ele roguei;/ Ele me disse: tomai;/ De minha
graça usai.
Fui redimido, também,/ Obra do meu Sumo Bem;/ Tudo de graça ganhei;/
Nada por obras da lei.
Ele a promessa me deu,/ Do Guia santo do céu;/ Também me disse: ficai,/ E
o batismo esperai.
Quando a Ele busquei,/ E batizado fiquei,/ Línguas estranhas falei,/ E meu
Senhor exaltei.
Agora, vou trabalhar,/ E muitas almas ganhar;/ Essas que Ele salvou/
Quando na cruz expirou (HARPA CRISTÃ, 1998: s/p).
A última estrofe é o corolário de todo o processo de conversão e busca pelo batismo
pelo Espírito Santo. Nela está expressa a ação decorrente do processo de identificação no
arcabouço representacional evangélico-pentecostal, o qual efetivamente é o ir “(...) trabalhar,
e muitas almas ganhar”. Para cumprirem o trabalho de converter os gentios, os crentes
precisam de preparo e compreensão espiritual, como indicam as primeiras cinco estrofes.
127
O coro, todavia, repetido ao fim de cada estrofe explicita a mensagem: “Jesus, sou Teu
e Tu és meu”. Tal mensagem salienta que, ainda antes de receberem o Batismo com o Espírito
– capacitando-os como verdadeiros discípulos aos olhos dos evangélico-pentecostais –, os
fieis precisam cumprir a Grande Comissão por meio de seu exemplo de vida. A execução de
cada etapa de santificação e preparação, por nós entendidas como momentos inescapáveis da
identificação, expressas na segunda, terceira, quarta e quinta estrofes – ser liberto, rogar,
esperar e receber a graça – são também formas de apregoar a palavra de Deus. Não se prega
apenas por palavras diretas, mas também pelo testemunho, ou seja, a irrepreensível luta por
fazer equalizar práticas cotidianas “mundanas” com as práticas moralmente consideradas
santas.
Os batismos, como mencionamos acima, desdobram-se em duas temáticas quase que
distintas. Na Harpa Cristã, editada em 1923, percebemos que os dois batismos são
tematizados por diferentes canções com o fito de sedimentar nos fieis a importância teológica
e doutrinal de ambos. Havia, no contexto histórico de formação e difusão inicial do
pentecostalismo da AD, durante a primeira metade do século XX, a necessidade de fazer
frente ao batismo como ritual na ótica do cristianismo dominante, a aspersão católica. Daí a
presença de canções, mesmo num número reduzido, trabalhando tal temática. Já o
pentecostalismo redimensionado em função da “prosperidade santa”, iniciado por volta de
fins da década de 1970, não precisou engajar-se nesta batalha doutrinária.
Como a tradição dos batismos por imersão já estava resguardada pela prática de mais
de meio século, tornou-se uma prática que, semelhantemente à Santa Ceia, não demandou
nenhuma intrincada argumentação para sustentar-se nos desdobramentos e releituras dentro da
matriz interpretativa da “Prosperidade Santa”.
Entretanto, pelo fato de o batismo com o Espírito Santo ainda ser considerado uma
característica polêmica dentro das próprias igrejas evangélico-pentecostais, ele ainda é
largamente tematizado pelos cantores e grupos de louvor, ao menos os que foram analisados
para a composição do segundo grupo de canções, as mais recentes. Creditamos este esforço de
afirmação identitária ao contexto “mundano” no qual entendem estar inseridos os fieis de
então. A “mundanidade”, além de marcada pelo que entendem ser práticas sociais malignas e
pervertidas, pode ser lida também na proeminência que o discurso científico conquistou em
nossa sociedade.
A objetividade científica foi tomada, desde a origem do pentecostalismo, como
inimiga da vivência cristã genuína. A intimidade com Deus, segundo aquele que a
experimenta, não pode ser prevista, controlada, postulada, explicada. As fortes cargas
128
emotivas que acompanham as manifestações do falar em línguas estranhas desafiam, no
entender dos fieis, a opacidade da vida pautada na lógica argumentativa científica. Esta,
contudo, permeia a constituição burocrática de nossa sociedade e medeia boa parte das
conversações necessárias ao funcionamento mínimo da rotina cotidiana.
Ou seja, mesmo uma tradição secular fundada na experimentação identitária da
manifestação da glossolalia não é suficiente para firmar, de um só golpe, a certeza da validade
desta experiência espiritual. O falar em línguas estranhas será sempre uma questão em aberto
na medida em que se encontra como experiência de caráter pessoal na fronteira entre vida
“mundana” e vida “em Jesus”. Aquela, regida pela objetividade científica desdobrada numa
hipertrofia burocrática, está marcada pela intimidade sobrenatural com Deus.
A glossolalia é, assim, uma questão polêmica e demanda constante esforço para a
afirmação de sua validade como indício contemporâneo da ação do Espírito Santo por parte
dos crentes. Decorre daí a grande quantidade de canções de louvor que tematizam o batismo
com o Espírito Santo entre aquelas analisadas no segundo grupo. Além do que, o falar em
línguas – indício do batismo com o Espírito Santo – é, entre as experiências distintivas que
marcam o segmento pentecostal, a mais buscada. Citamos, na íntegra, algumas letras
significativas produzidas nos últimos anos do século XX (segundo grupo de canções), cuja
temática central é o batismo com o Espírito Santo e a decorrente experiência de contato
íntimo com o deus cristão.
Fogueira Santa
Sempre quando eu estou cantando/ Eu sinto alguém me acompanhando/ São
os anjos de Cristo que junto comigo/ Entoam louvores e a igreja se alegra/ E
fala em mistério Santo com Deus/ E o poder é derramado/ E Deus
glorificado/ Pelo povo seu/ É o poder divino/ Deus está mandando/ E com
fogo Santo está batizando/ Eu contemplo agora/ Como sobe e desce/ Anjos
lá do céu/ A fogueira santa/ Já está formada/ E toda doença/ Aqui será
queimada/ A igreja se alegra/ Vibra chora e canta/ Com o poder de Deus/ Eu
estou sentindo/ Que Deus esta presente/ Em nosso meio/ Ele esta ao seu
lado/ E quer te encher de poder e fervor/ Abra o seu coração/ Porque Deus
quer colocar/ Uma brasa viva e o poder vai cair/ E o louvor vai subir/ E as
bênçãos vão descer (CASSIANE. Fogueira Santa. Intérprete: Cassiane. In:
CASSIANE. Atualidades. São Cristovão: MK Music, 1992. CD).
Fogo Santo
(coro)
Fogo santo, santo fogo/ Fogo consolador/ é o que está descendo agora/ Fogo
santo do Senhor.
Este fogo é poderoso, é fogo pentecostal/ Vai queimando o pecado,/
desfazendo todo o mal/ Igreja fique ligada, muito fogo vai descer/ Até o
crente gelado vai ser cheio de poder.
Este fogo purifica, santifica e faz o bem/ Quem esta sentindo agora,/ levante
as maos e diga amém/ Quando o povo de Deus ora, põe diabo pra correr/
129
Abre a boca, então dê glória, Deus tem vitória pra você (AFONSO, Flávia.
Fogo Santo. Intérprete: Cassiane. In: CASSIANE. Com Muito Louvor. São
Cristovão: MK Music, 1999. CD).
500 Graus
Uma chuva diferente agora está se formando no céu/ Temporal de benção e
poder/ Um calor tão glorioso invade toda igreja/ 500 de puro fogo santo e
poder./ Pra fazer enfermidade desaparecer/ Pra fazer o inimigo fugir de você/
Uma nuvem de vitória está sobre a igreja/ A previsão de Deus diz que vai
chover/ Vai chover línguas estranhas por todos os lados/ E desse temporal
quero sair molhado/ Molhado e revestido por esse poder/ Agora o impossível
vai acontecer/ É a promessa de Deus, o fogo vai descer, por esse poder!/ Já
começa acontecer, debaixo dessa chuva posso contemplar/ Aleluia daqui,
Gloria e aleluia de lá/ Inundando os irmãos com a benção nas mãos/ Vejo
milhares de anjos vindo num imenso trovão/ Desse lado tem poder, desse
lado tem vitória/ Aqui na frente tem irmãos/ Sendo batizados, dando glória/
Ali no meio o fogo cai, toda enfermidade não resiste e sai/ Pelo Santo nome
de Jesus/ Uma chuva diferente agora está inundando esta igreja/ Temporal de
benção e poder/ Um calor tão glorioso está queimando o pecado destruindo/
Tudo que aflige você/ 500 de puro fogo santo e poder/ E já fez enfermidade
desaparecer/ E já fez o inimigo fugir de você/ Uma nuvem de vitória
continua na igreja/ A previsão nos diz que ainda vai chover (CASSIANE.
500 Graus. Intérprete: Cassiane. In: CASSIANE. Recompensa. São
Cristovão: MK Music, 2001. CD).
Vento Impetuoso
Como Vento Impetuoso, vem Espírito!/ Como Vento Impetuoso, vem
Espírito de Deus/ Sopra sobre o fogo, fogo do Espírito/ Incendeia, espalha
sobre tudo e sobre todos/ O fogo do Espírito, fôlego de Deus/ Sopro do
Espírito, Sopra... Aviva... Aviva/ Avivamento, avivamento, avivamento/ Às
portas esta o avivamento/ Aviva, aviva... Avivamento/ Sobre o que esta
morto/ Sobre o que esta frio/ Sobre o que esta morno/ Sobre tudo, Sobre
todos/ Sobre morros, Sobre os vales/ Sobre os desertos, Sobre os montes/
Sobre os lares, sobre as multidões, sobre as cidades/ Sobre as nações, sopra,/
Sopra sobre nós/ Sobre os nossos corações/ Sopra sem limites, ressuscita
sonhos, ressuscita ministérios/ Ressuscita vidas, Ressuscita vidas,
Ressuscita.../ Converte o coração dos pais aos filhos/ Converte o coração dos
filhos aos pais/ Para Tua honra, Tua glória/ Como vento Impetuoso, vem
(FERBER, Ludmila. Vento Impetuoso. Intérprete: Ludmila Ferber. In:
FERBER, Ludmila. Orar e Adorar 3 – Ouço Deus me Chamar. Osasco:
Kairós Music, 2003. CD).
Meu Amigo, Espírito Santo
Meu amigo, Espírito Santo/ Meu amigo, Espírito Santo/ Meu amigo... Meu
Amigo/ Eu te amo, Espírito Santo/ Eu te amo, Espírito Santo/ Meu amigo...
Meu amigo/ Tua Presença me completa tanto/ Tua Presença é o meu
descanso/ Tua Presença me dá asas pra ser livre/ Não há palavras que eu
tenha pra falar/ Tua Unção é o meu maior tesouro/ Tua Unção é o meu
cobertor, meu manto/ Tua Unção engrandece o meu chamado/ Me faz
indesistível, nobre, incansável/ Eu chamo por Você/ E permaneço adorando/
Atento para ouvir Você chegar/ O ar que eu respiro se transforma Fica
denso/ Sou todo ouvidos para Te ouvir/ Por dentro e por fora me envolvo em
Tua glória/ Parece que tudo ao redor parou para Você/ Prossigo adorando e
ouvindo Tua voz/ É onde eu me curo pra valer (FERBER, Ludmila. Meu
130
Amigo, Espírito Santo. Intérprete: Ludmila Ferber. In: FERBER, Ludmila.
Orar e Adorar 5 – Ainda é Tempo. Osasco: Kairós Music, 2006. CD).
Como podemos acompanhar na leitura das canções do segundo grupo, alinhadas em
grande medida com matrizes interpretativas de “prosperidade santa”, o batismo com o
Espírito Santo ainda é um tema recorrente. No bojo desta representação coletiva, encontram
realização e sentido vivências como a glossolalia e o cultivo de uma vida de intimidade com
Deus. Orações, súplicas e jejuns ajudam a completar o quadro de total entrega por parte do
fiel à sobrenatural presença do Espírito Santo. Por fim, tanto batismo nas águas quanto o
batismo no Espírito Santo são etapas necessárias para a capacitação do evangélico na Batalha
Espiritual.
3.3. Biblicismo
O biblicismo é outro dos elementos inescapáveis para a identificação com o
imaginário estudado neste trabalho. De fato, o indivíduo começa sua vida para Cristo, mesmo
antes da conversão e batismo nas águas, ao abrir-se às interpretações específicas do texto
bíblico desenvolvidas nas práticas evangélico-pentecostais. Elegemos dois hinos pertencentes
à Harpa Cristã de 1923 para analisarmos. São eles, Creio eu na Bíblia, hino 259, e A Palavra
de Deus é um Tesouro, hino 306. Os hinos estão, respectivamente, sob as iniciais de Paulo
Leivas Macalão e Emílio Conde.
Creio eu na Bíblia – 259 [íntegra]
Creio eu na Bíblia, o Livro do Senhor,/ Pois de Jesus Cristo mostra o doce
amor;/ todos meus pecados apagados estão,/ Paz e gozo tenho em meu
coração./
(coro)
Creio eu na Bíblia, livro de meu Deus;/ Para mim a Bíblia é o maná dos
céus!/ Mostra-me o caminho para o lar celestial;/ Acho eu na bíblia, graça
divinal!/
Creio eu na Bíblia, ensina-me a cantar/ Cantos de vitória, e de amor sem
par;/ Lindas melodias, eu cantando vou,/ Porque redimido pelo Sangue
estou!/
Só a santa Bíblia a santidade dá,/ Este dom de Cristo, prometido já;/ Todos
os que buscam plena salvação,/ Estas bênçãos, só em Cristo, acharão./
Lemos hoje a bíblia p’ra todo pecador,/ Para que encontre Cristo, o
Salvador;/ Sendo sua vida, livre de pecar,/ O divino Livro, ele vai honrar!
(HARPA CRISTÃ, 1998: s/p).
O Livro do Senhor, a Bíblia, é comparado ao maná dos céus no coro do hino 259. O
maná foi o alimento que, segundo o Velho Testamento, Deus enviava diariamente aos
131
israelitas durante sua marcha de quarenta anos pelo deserto, guiados por Moisés30
. O hino
constrói uma equivalência entre o período de vida do crente no mundo e o período de
peregrinação dos israelitas no deserto. O “mundo” é o deserto. E o maná, o alimento garantido
por Deus para sustentar seu povo durante a marcha, seria correspondente a Bíblia, a Palavra
de Deus.
Assim, entende-se que a única fonte de sustento espiritual que o crente encontra neste
mundo é a leitura da Bíblia. Ela garante coesão à comunidade dos salvos e reafirma as
mesmas representações coletivas efetivando a identidade evangélico-pentecostal em cada
leitura que o fiel realiza. A leitura da Bíblia se configura como um espelho no qual o crente vê
a si mesmo como imagem construída socialmente. A chave de interpretação, contudo, está nas
mãos dos líderes espirituais. O fiel tem certa liberdade de interpretação do texto na medida em
que busca conexões entre a mensagem de determinadas passagens e suas próprias
experiências de vida. Contudo, não pode ultrapassar alguns limites interpretativos
estabelecidos tradicionalmente dentro da prática evangélico-pentecostal e mantidas
majoritariamente por meio da tradição oral.
A última estrofe explicita uma das facetas da pregação para cumprimento da Grande
Comissão: ler a Bíblia para o pecador para que ele encontre a salvação. “Ler”: o crente deve
ler para o pecador, não deve admoestar ao pecador ler somente, em sua individualidade. É
necessária a mediação durante a leitura por parte de um evangélico-pentecostal para que as
interpretações cristalizadas que compõem o discurso identitário sejam internalizadas por
aquele que ouve. Daí a necessidade do acompanhamento de um leitor que narra ao ouvinte
gentio. O conteúdo do texto não é suficiente. A ele os crentes acrescem sua interpretação
particular. Esta interpretação se encontra difundida entre os mesmos de maneira
primordialmente oral entre os assembleianos e, no que tange as variações teológico-
doutrinárias que regem a “prosperidade santa”, registradas em escrito na vasta produção
literária de Edir Macedo e asseclas. Só por meio da mediação interpretativa, os crentes podem
garantir o que entendem ser a real libertação do pecado por parte de seu interlocutor/ouvinte.
Não basta a mensagem cristã contida no texto sagrado, apenas a mensagem cristã polarizada
pela interpretação evangélico-pentecostal pode cumprir a salvação de fato.
A Palavra de Deus é um Tesouro – 306 [íntegra]
A Palavra de Deus é para mim/ Um tesouro sem igual em valor!/ Fala do
amor de Deus, do amor que não tem fim;/ Mais precioso do que ouro é este
amor!
30
Cf. livro de Êxodo no Velho Testamento bíblico, capítulo 16.
132
(coro)
A Palavra de Deus é doce, mais que o mel,/ O que a toma pela fé há de ser
fiel,/ Porque Deus nos concedeu o Emanuel,/ Rocha viva donde mana leite e
mel.
Luz que guia pela senda da paz,/ E alumia os que em trevas estão;/ Lâmpada
que nos faz ver os ardis de Satanás,/ E que brilha mesmo na escuridão.
É um farol que sempre resplandeceu./ E que mostra o porto da salvação;/
Quem na arca já entrou e do mundo se esqueceu,/ Chegará por certo à eternal
mansão (HARPA CRISTÃ, 1998: s/p).
A admoestação à realização de uma mediação interpretativa presente na segunda
estrofe do hino 259, também pode ser rastreada no coro do hino 306, A Palavra de Deus é um
Tesouro. Ao descrever a Bíblia como sendo mais doce que o mel, fazendo menção ao agrado
que a leitura do texto sagrado proporciona ao crente, o autor acrescenta, no segundo verso, “o
que a toma pela fé há de ser fiel”. A condição para tornar-se um fiel e gozar das bem
aventuranças provenientes da leitura do Livro Sagrado é tomá-la “pela fé”. Já vimos no
segundo capítulo que o termo “pela fé” nomeia o modo de santificação que passa pela
identificação com a comunidade evangélico-pentecostal. Tomar “pela fé”, nesse sentido, seria
menos uma leitura original e fervorosa, ainda que tais circunstâncias estejam bem presentes
na vida cotidiana do fiel, e mais uma leitura que respeite os discursos sustentados na
manutenção da comunidade identitária. Daí a questão da fidelidade ser premente: um crente
só é fiel a Cristo se se mantém fiel ao seu Corpo, à igreja. O biblicismo resiste como temática
para a produção de canções ainda em fins do século XX.
Passemos à análise de uma canção do segundo grupo de músicas de louvor e adoração.
Lançada em 1999, no álbum Com Muito Louvor, de Cassiane, a letra da canção que se segue
nos apresenta como temática o biblicismo. Chamada Oferta Agradável a Ti, a letra foi
musicada e gravada por Cassiane, é, porém, de autoria dos pastores Ana e Edson Feitosa.
Oferta Agradável [íntegra]
(coro)
A tua palavra escondi,/ Guardada no meu coração,/ Pra eu não pecar contra
ti, Senhor,/ A tua palavra escondi;
Minhas vestes no sangue lavei/ E das tuas águas bebi,/ Pra ser uma oferta
agradável a ti,/ Minha vida a ti consagrei.
Meus dons e talentos são pra te servir,/ Meus dons preciosos são seus,/ Não
vejo razão na minha vida sem Ti,/ Tu és meu Senhor e meu Deus;
Assim como o fogo refina o ouro,/ Vem tua obra em mim completar,/ Até
que o mundo possa ver/ Tua glória em meu rosto, brilhar (FEITOSA, Ana;
FEITOSA, Edson. Oferta Agradável. Intérprete: Cassiane. In: CASSIANE.
Com Muito Louvor. São Cristovão: MK Music, 1999. CD).
A Palavra de Deus, a Bíblia, foi “escondida” no coração pelo cantor. Ou seja, o sujeito
que entoa a canção – um fiel qualquer que, ao realizar o processo de identificação
133
internalizando as representações coletivas do imaginário em questão, coloca-se,
necessariamente, no lugar de protagonista que realiza as ações previstas na letra da música –
buscou realizar uma leitura que gravasse as ordenanças de Deus na memória. O método é
simples. Leitura repetitiva de uma mesma passagem redundando num conhecimento
decorado. Tal leitura é enlevada de emotividade, pois se tem o contato com mensagens cuja
origem é creditada à mente do próprio Deus.
As duas primeiras estrofes versam sobre os momentos iniciais da identificação com a
vida cristã segundo a concepção evangélico-pentecostal. Na primeira estrofe, desenvolve-se
diretamente a temática da leitura e estudo bíblico que comumentemente acompanham o
processo de conversão dos novos fiéis: guardar a Palavra para não pecar contra o Senhor,
conhecer minimamente a Bíblia. Certo é que, apesar dos métodos simplistas de leitura, o
conhecimento que se depreende do estudo bíblico não é um conhecimento puramente baseado
na memorização fotográfica do texto, ele também é marcado pela memorização de um modo
específico de interpretação.
Este modo específico de interpretação é o que marca a enorme diferença entre a leitura
de uma mesma passagem do livro sagrado, ora por um evangélico-pentecostal ora por um
católico, ou mesmo por um kardecista. Ato contínuo, das particularidades ou características
identitárias do segmento cristão estudado nesta dissertação (traduzidas em suas representações
coletivas) derivam os modos específicos de consagração da vida ao deus cristão. Consagração
esta que passa pela senda da Batalha Espiritual. Daí todos os “preciosos dons e talentos”
daqueles que se identificam com tal imaginário social serem devotados ao cumprimento da
obra de Deus.
Outra canção do segundo grupo de amostragem que analisamos foi composta e
musicada pela pastora Ludmila Ferber, Ouça e Tome Posse. A canção data de 2001 e foi
lançada no álbum Adoração Profética 1 – Os Sonhos de Deus. Apresentamos a letra:
Ouça e Tome Posse [íntegra]
Ouça e tome posse/ Da Palavra do Deus Vivo/ Ele está aqui/ Assim diz o
senhor: (x2)/ “Abrirei rios no deserto/ Romperei fontes no meio dos vales/ E
a terra seca se transformará/Em mananciais de águas vivas.../ Passarás firme
pelas águas,/ Passarás firme no meio do fogo/ Nem as águas poderão te
destruir,/ Nem mesmo o fogo te afligir...”/ Deus fará tudo por você!/ Moverá
céus e Terra com Seu poder/ E o impossível vai acontecer/ Vitória e honra
Ele trará sobre você. (FERBER, Ludmila. Ouça e Tome Posse. Intérprete:
Ludmila Ferber. In: FERBER, Ludmila. Adoração Profética 1 – Os Sonhos
de Deus. Osasco: Kairós Music, 2001. CD).
134
A pastora Ludmila Ferber escreveu uma canção historicamente contextualizada com o
movimento evangélico-pentecostal de ênfase na “prosperidade santa”. Ouça e Tome Posse
reflete anseios considerados pós-milenaristas (SIEPIERSKI, 2008). A pastora lista diversas
promessas de bem aventurança àquele que crê. Essas promessas não possuiriam seu
cumprimento necessariamente no céu. O primeiro verso da canção é claro nesse ponto: “ouça
e tome posse”.
Ouvir a Palavra de Deus, internalizá-la juntamente com as cristalizações
interpretativas características do segmento em estudo, nos são itinerários naturalmente
depreendidos no processo de identificação evangélico-pentecostal. “Tomar posse”, contudo, é
um novo impulso em matéria de formatação interpretativa constituinte do imaginário social
dos fiéis. Decorre, como já discutimos, da sutil mudança de ênfase que aponta para o cultivo
da “Prosperidade Santa” como matriz interpretativa desdobrada em posturas práticas
esperadas de um fiel coerente, inserido em concepções teológicas pós-milenaristas.
Sem prejudicar o sentido, a mensagem poderia ser assim traduzida: escute quais
são as promessas de Deus para sua vida neste mundo – agora –, e se aposse delas. A tomada
de posse das bênçãos elencadas se dá no viver “em Jesus”, na identificação com a
comunidade dos “santos” na manutenção da Batalha Espiritual, forçando a realização da
vontade divina na cotidianidade. É interessante notar que entre as promessas de bênçãos
elencadas não encontramos menção à salvação e a vida após o arrebatamento (parousia), na
Jerusalém Celestial. As garantias apresentadas na letra da canção de Ludmila Ferber são todas
efetiváveis em vida, no “mundo”. Ao crente não está colocado o propósito de “esperar” pelo
Reino de Deus vindouro no céu; antes, sim, efetivá-lo por meio de uma ação direta – tomada
de “posse” – que sobreponha o Reino de Deus ao “mundo”. Aquele obliterando este. As
relações humanas existentes no “mundo” deverão dar lugar às práticas preconcebidas como
“santas” à medida que o Reino de Deus assume cada vez mais realidade por meio da ação
conjunta dos fiéis. Passa-se, assim, um rolo-compressor sobre a diversidade das práticas
sociais que não coadunam com a visão evangélico-pentecostal.
3.4. Visão de mundo dualista
O dualismo é, minimamente, um elemento fundante de qualquer identidade (“nós” em
relação a um “eles”) e pode ser facilmente percebido permeando grande parte do material
pesquisado. Por meio do dualismo, os evangélico-pentecostais leem os eventos que compõem
sua cotidianidade como uma concatenação de circunstâncias para o cumprimento do Plano
135
divino de salvação, o Bem versus o Mal. No hino de número 162 da Harpa Cristã de 1923, O
Estandarte da Verdade, temos acesso explícito a alguns versos nos quais fica claro o tema do
dualismo.
O Estandarte da Verdade” – 162 [íntegra]
Da verdade, levantemos o estandarte,/ Arvoremos o estandarte de Jesus./
Proclamemos, com valor, por toda parte,/ A mensagem soleníssima da cruz.
(coro)
O mundo está sem luz, sem paz;/ Levemos paz, consolação,/ A quem, na
dor, no luto jaz,/ Sem luz, sem paz, sem salvação.
Da verdade, levantemos o estandarte;/ Proclamaremos o Senhor, que é luz e
paz;/ Pecador, ouve! Jesus tem para dar-te/ Salvação que nEle só,
encontrarás.
Do Evangelho, levantemos o estandarte,/ Vem, desperta do teu sono,
pecador;/ Que o teu Deus, que o teu Senhor tem para dar-te/ Copiosas
bênçãos do Seu grande amor (HARPA CRISTÃ, 1998: s/p).
A letra da canção admoesta o crente a levantar a bandeira, ou seja, tornar explícita e
sem rodeios sua postura religiosa. A postura religiosa evangélico-pentecostal, como
discutimos no segundo capítulo, canibaliza todos as outras identificações do indivíduo. Os
que na cotidianidade ou esporadicamente tiverem contato com o “crente” precisam perceber,
na vivência com o fiel, que a “verdade” da mensagem da cruz é proclamada por meio de suas
ações. Nos versos que compõem o coro, percebemos a enunciação do dualismo. O “mundo” é
caracterizado como “sem luz”, “sem paz”, “na dor”, “no luto jaz”, “sem salvação”. Quanto
aos evangélico-pentecostais, cabe a eles o papel de portadores da mensagem de salvação,
pacificação e iluminação. Também são descritos, os “crentes”, como despertos em contraste
com os pecadores que são chamados a “despertar do sono”.
A IURD, assim como a AD, também organizou um cancioneiro oficial para dinamizar
seus cultos, o hinário Louvores do Reino. Publicado pela primeira vez em 2004, o hinário traz
em suas páginas 274 canções. Estas são uma mescla de antigos e novos cânticos de louvor ao
deus cristão, sendo que alguns deles foram retirados da Harpa Cristã da AD. Os cânticos mais
recentes são, em sua maioria, da autoria dos cantores procedentes da gravadora de
propriedade da IURD, Line Records. Alguns hinos retirados do Louvores do Reino – os que
datam de não mais que 20 anos – nos serviram, também, como componentes de nosso
segundo grupo de canções analisadas. Reforçamos: escolhemos as canções de autoria de
artistas contemporâneos para demonstrar a continuidade das representações coletivas
analisadas no capítulo segundo.
136
No hino Libertação, número 113 dos Louvores do Reino – de autoria do músico
Sergio Lopes31
–, percebemos o recurso à representação do dualismo como temática central.
Libertação – 113 [íntegra]
Quando tudo parecia ter chegado ao fim/ E eu não tinha a maior esperança
de ser feliz/ Tempestades de dor e tristeza que eu enfrentei/ Destruíram os
sonhos e planos que eu construí/ Quantas noites me ajoelhava sem poder
falar/ Eu não tinha coragem, nem forças pra falar com Deus/ Mas um dia
ouvi Sua voz me falando: “Não temas,/ Não há dor que na cruz Eu não tenha
vencido por ti!”/ O sangue de Cristo liberta de todo pecado/ A cruz do
Calvário é o começo da nossa vitória/ A Palavra de Deus é a nossa arma de
guerra/ E o poder de Deus me garante a vitória final (LOUVORES DO
REINO, 2004: s/p).
A letra da canção, tomada em seu conteúdo, pode ser dividida em duas partes,
tendo como ponto de inflexão os versos sétimo e oitavo. Na primeira parte, que vai dos versos
primeiro ao sétimo, Sergio Lopes caracteriza a vida anterior ao conhecimento do sacrifício
redentor de Jesus ao morrer na cruz. Os elementos que aparecem aí são totalmente negativos e
vinculam-se à existência “mundana” sem Cristo. A falta de expectativas para com o futuro, a
total perda de esperanças, as dores e tristezas fazem o cantor rememorar as representações
depreciativas das práticas de vida não alinhadas com a participação nas comunidades cristãs
evangélico-pentecostais. Nos versos sétimo e oitavo há uma variação no conteúdo da
mensagem que condiciona a inversão de toda a negatividade: a voz de Cristo fala ao cantor. E,
ao fazer Cristo falar, Sergio Lopes introduz a ideia da vida “em Jesus”.
Os versos nono ao décimo segundo pautam-se no processo de identificação com a
identidade evangélico-pentecostal. A dualidade realiza-se na quádrupla afirmativa da
passagem, fundada na positividade total: libertação do pecado, vitória em vida (espiritual e
física), preparo para enfrentar a Batalha Espiritual, vitória final (salvação – arrebatamento).
Como ponto assente na constituição do imaginário social evangélico-pentecostais, a dualidade
do mundo refletir-se-á permeando, ora explicitamente ora implicitamente, o discurso de todos
os cânticos de louvor, novos ou antigos.
Um segundo hino retirado da Harpa Cristã da AD de 1923, Pelejar por Jesus
(número 108), pauta-se explicitamente em elementos característicos da visão de mundo
dualista.
Pelejar por Jesus – 108 [íntegra]
Por Jesus vamos pelejar,/ Prosseguindo o nosso andar;/ E com Ele, então, no
céu,/ Nós iremos a paz gozar.
31
Cantor e escritor, Sergio Lopes produz pela Line Records, gravadora de propriedade da IURD.
137
Coro
Lutemos todos contra o mal,/ E vamos a Jesus seguir;/ Ele é o nosso
General/ E a glória do porvir!
Em Jesus temos nós poder;/Avancemos, já sem temer;/ Confiando no Seu
amor./ Vamos lutar, até vencer.
Crentes, para Jesus olhai,/ Pela fé, sempre, sim, lutai;/ Ao inimigo, ó
combatei;/ O Evangelho anunciai.
A Escritura nos diz assim:/ Que Jesus é p’ra ti e mim,/ O caminho, a luz
veraz,/ Que nos leva ao céu, enfim (HARPA CRISTÃ, 1998: s/p).
Na primeira estrofe, está lançada a mensagem central da canção: prosseguir o “andar”
aqui nesta terra – ou seja, viver – é sinônimo de “pelejar”; àquele que assim mantiver-se em
vida, garantida terá a estadia no céu onde gozará a “paz”. O mundo, e as relações que se
estabelecem aqui, realizam-se todas sobre a égide do conflito, da peleja. Tranquilidade,
harmonia, serenidade, enfim, todas as circunstâncias necessárias para o gozo da paz, só serão
possíveis, de fato, no céu. O mundo não é um lugar de descanso para o cristão pentecostal
pré-milenarista. Veremos, mais adiante, que nas letras de músicas produzidas em contextos
pós-pentecostais o mundo adquire uma conotação de lugar de luta, porém, esta luta não
inviabiliza a fruição e gozo da graça de deus desdobrada em bênçãos materiais. Esta fruição e
gozo, contudo, só é garantida ao fiel que se mantiver firme na Batalha Espiritual.
As construções dicotômicas seguem dando a tônica do hino 108 da Harpa Cristã. O
primeiro verso do coro, “lutemos todos contra o mal”, só reforça o cenário construído na
primeira estrofe. Por mais que não esteja explicitado qual seja a matéria do “mal”, não seja
nomeado algum inimigo em específico, é a evocação da luta, da participação de “todos” nesta
mesma luta, que nos garante a impossibilidade de evadir-se do conflito se se quiser
efetivamente participar da identidade evangélico-pentecostal.
Como a vida do crente dentro mundo está relacionada à batalha, não é estranho
encontramos termos militares impregnando seu discurso identitário. “O Senhor dos
Exércitos”, um dos títulos de Jeová no Antigo Testamento, se manifesta ainda como o
“General” Jesus que guia suas tropas de santos à guerra. Encontraremos mais termos
provenientes dos vocabulários milicianos nas próximas canções analisadas.
Os dois últimos versos da terceira estrofe são reveladores: “Ao inimigo, ó combatei; o
Evangelho anunciai”. Nestes dois versos percebemos o estabelecimento de uma relação de
equivalência entre os respectivos conteúdos. Combater o inimigo e anunciar o Evangelho não
138
podem ser entendidos como duas práticas distintas. Anunciar a Palavra de Deus – as “boas
novas” da salvação – é, de fato, a efetivação do combate ao inimigo32
.
O repertório de canções provenientes do trabalho da pastora Cassiane, ligada à
gravadora MK e com mais de quinze álbuns já lançados, serviu-nos, também, como base de
análise. Exposta à identidade evangélico-pentecostal (AD) desde o berço – nascida em lar
cristão evangélico-pentecostal –, Cassiane começou sua carreira como cantora em idade tenra.
Aos três anos de idade, com o apoio da família, já cantava nos cultos. Gravou seu primeiro
disco aos oito anos de idade.
A escolha do repertório da pastora Cassiane para a análise, assim como da pastora
Ludmila Ferber e do grupo Diante do Trono, deve-se à sua representatividade no meio
evangélico-pentecostal. Tal representatividade desdobra-se nos altos índices de vendagem dos
álbuns, além da utilização das músicas dos respectivos repertórios para mais do que apenas
um uso “profano” – a realização profana seria a fruição das músicas no espaço doméstico,
esfera do privado, como um bem cultural adquirido comercialmente. Muitas das músicas
produzidas por Cassiane, Ludmila Ferber e pelo grupo Diante do Trono são utilizadas como
músicas sacras – cumprindo, assim, um uso público –, na medida em que são adotadas nos
momentos de louvor, pelos grupos musicais oficiais das igrejas ou pelos irmãos que recebem
a “oportunidade” nos cultos da AD e IURD. Como pudemos presenciar nos cultos nos quais
tomamos parte, os momentos que precedem a ministração da palavra pelo pastor são os mais
propícios à utilização do repertório de canções evangélico-pentecostais.
Assim, da pastora Cassiane, analisamos com vistas ao dualismo a canção Vencedores
do álbum Puro Amor (1994).
Vencedores [íntegra]
Sempre quando lutas/ Querem me assolar/ Querendo com furor/ Me fazer
tropeçar/ Sinto quando/ A mão do Senhor/ Vem prá me livrar
Se o mesmo acontece/ Com você meu irmão/ Te digo com certeza Cristo/ É
a solução/ Nos livra sempre do perigo/ Com sua forte mão
Lutaremos.../ juntos contra o mal/ Venceremos.../ Com nosso general/
Unidos somos/ Mais que vencedores/ Unidos pois agora/ Sim vamos cantar/
Seguindo sempre/ Em frente prontos a lutar/ Nenhum inimigo/ Vai nos
derrotar
Mostrando para o mundo/ Quem é o salvador/ Que salva e liberta/ Todo
pecador/ Amigo te convido/ Agora pra ser vencedor (CASSIANE;
JAIRINHO. Vencedores. Intérprete: Cassiane. In: CASSIANE. Puro Amor.
São Cristovão: MK Music, 1994. CD).
32
Discutiremos mais detidamente sobre esta equivalência, quando tratarmos da representação coletiva da Grande
Comissão.
139
A terceira estrofe da canção não poderia ser mais literal, “lutaremos juntos contra o
mal”. Nas estrofes anteriores, o mal é relacionado às “lutas”, “assolações”, “tropeços” aos
quais está submetido aquele que está “no mundo” sem Jesus. De fato, a primeira estrofe nos
dá a entender que os evangélico-pentecostais, como pessoas inseridas no “mundo”, são
também suscetíveis de sofrerem os ataques do Inimigo. Porém, como contam estar vivendo
“em Jesus”, eles são livrados do mal pela ação divina. Tal livramento não é automático e
garantido aos “mundanos”, como percebemos na leitura da segunda estrofe. Estes só poderão
receber o livramento se reconhecerem a Jesus como Salvador, como está exposto no quarto
verso da segunda estrofe (“É a solução”).
Retornando à terceira estrofe, entendemos, assim, qual grupo de pessoas está
subsumido no uso que a cantora faz ao conjugar o verbo “lutar” na primeira pessoa do plural.
“Lutaremos”, os crentes – de longa data – e os recém convertidos. Aqui não há uma distinção
pautada na “senioridade”, na antiguidade na fé. Tanto pastores quanto recém convertidos
precisam assumir a postura de guerreiros lutando contra o mal. Não contam com a derrota
frente às hostes do maligno, em qualquer âmbito da vida em que estas possam se manifestar,
pois engrossam as fileiras dos exércitos celestiais. Bem e Mal, Céu e Inferno, estar “em Jesus”
e estar “no mundo”, são dualidades presentes na canção Vencedores, de Cassiane, que
reafirmam as bases imaginárias da identidade evangélico-pentecostal.
Outra canção que nos fala do dualismo é o hino 422 da Harpa Cristã de 1923, No Céu
não Entra Pecado. Este hino nos traz uma mensagem extremamente sugestiva.
No Céu Não Entra Pecado – 422 [íntegra]
No céu não entra pecado/ Fadiga, tristeza, nem dor;/ Não há coração
quebrantado,/ Pois todos são cheios de amor,/ As nuvens da vida terrestre/
Não podem a glória ofuscar/ Do reino de gozo celeste,/ Que Deus quis pra
mim preparar!
(coro)
Irei eu p’ra linda cidade,/ Jesus me dará um lugar,/ Co’os crentes de todas
Idades,/ A Deus hei de sempre louvar./ Do céu tenho muitas saudades,/ Das
glórias que lá hei de ver;/ Oh! Que gozo vou ter,/ Quando eu vir meu
Senhor,/ Rodeado de grande esplendor!
Pagar não é necessário/ A casa, que lá hei de ter;/ E meu eternal vestuário,/
No céu, nunca vai se romper./ Jamais viverei em pobreza,/ Aflito no meu
santo lar,/Ali há bastante riqueza,/ Da qual podarei desfrutar.
No céu o luto é banido,/ Enterros não hão de passar;/ Sepulcros jamais são
erguidos,/ Lá mortos não vou encontrar./ Os velhos serão transformados;/
Mudados nós vamos ficar./ Quais astros por Deus espalhados/ No céu, para
sempre brilhar (HARPA CRISTÃ, 1998: s/p).
Podemos elencar claramente os elementos que no imaginário social evangélico-
pentecostal não compõem o céu: pecado, fadiga, tristeza, dor, coração quebrantado, pobreza,
140
aflição, luto, velhice, morte. Todas estas vivências, entendidas como reveses diabólicos, são
inerentes à vida no mundo entendida como campo de combate por excelência. A realização da
plenitude na identidade evangélico-pentecostal só poderá efetivar-se no céu, lugar da
inexistência de pecado. Enquanto permanecem no mundo, os crentes precisam lutar contra o
pecado, elemento a um só tempo desestabilizador e afirmador de sua identidade.
3.5. Grande Comissão e parousia
Trataremos as duas últimas representações coletivas de nosso arcabouço identitário
conjuntamente. O faremos pelas razões discutidas logo no início deste terceiro capítulo, a
saber, o fato de ambas as representações coletivas in-formarem, especialmente, a concepção
de tempo futuro do proposto arcabouço identitário evangélico-pentecostal.
Exemplificando a noção da necessidade do cumprimento da grande comissão para a
efetivação da parousia, observemos os hinos abaixo, ambos retirados da Harpa Cristã editada
em 1923.
Quem irá? – 65 [íntegra]
Eis os milhões, que em trevas tão medonhas/ Jazem perdidos, sem o
Salvador!/ Quem, quem irá as novas proclamando,/ Que Deus, em Cristo,
salva o pecador?
(coro)
“Todo o poder o Pai me deu,/ Na terra, como lá no céu!/ Ide, pois, anunciar o
Evangelho,/ E eis-me convosco Sempre!”
Portas abertas, eis por todo o mundo!/ Cristãos, erguei-vos! Já avante andai!/
Crentes em Cristo! Uni as vossas forças./ Da escravidão os povos libertai!
“Ó vinde a mim! A voz divina clama,/ “Vinde!” Clamai em nome de Jesus:/
P’ra nos salvar da maldição eterna,/ Seu sangue derramou por nós na cruz.
Ó Deus apressa o dia glorioso,/ Em que os remidos todos se unirão,/ E, em
coro excelso, santo, jubiloso,/ P’ra todo o sempre, glória a Ti darão (HARPA
CRISTÃ, 1998: s/p).
E ainda:
Avante, Ó Crentes – 253 [íntegra]
Avante, ó crentes, o mal desfazendo,/ O inimigo com a luz combateremos;/
A peleja, pois, todos, não temendo,/ A vitória por Jesus receberemos.
(Coro)
Com a graça de Jesus nos firmaremos,/ Com a graça de Jesus,
combateremos,/ Com a graça de Jesus nos venceremos,/ Com a graça de
Jesus vitória temos.
Avante, ó crentes, marchai sem tardança,/ Jamais do bom Jesus nós nos
afastaremos,/ Porque nEle nós temos esperança/ E vitória nós assim
alcançaremos.
Avante, ó crentes, fiéis corajosos,/ Vitória por Jesus, a nós é concedida;/ No
combate, ó sede valorosos,/ Para alcançar o galardão da vida.
141
Avante, ó crentes, dum só pensamento;/ “O vil pecado sempre nós
combateremos”./ Pois Jesus vem, não tarda um momento,/ Crendo em Jesus,
vitória nós já temos (HARPA CRISTÃ, 1998: s/p).
A ideia de que Jesus só se manifestará uma segunda vez depois do trabalho intensivo
de pregação de sua mensagem está presente nas duas canções, numa estrutura homóloga de
construção das estrofes. Os dois hinos são uma evocação à ação do crente como guerreiro
espiritual fundado no poder concedido por Jesus. As duas últimas estrofes de ambos os hinos
podem ser entendidas como o coroamento, a recompensa concedida àquele que de bom grado
cumpre a ordenança.
Na última estrofe da segunda canção, podemos ler: “a vitória nós já temos”. Esta
“vitória” a que o hino faz menção é a salvação da alma que só foi possibilitada por meio do
sacrifício de Jesus ao morrer na cruz pelos pecados da humanidade. Aqui se explicita o
entendimento que os evangélico-pentecostais fazem da salvação, ela não depende de esforço
pessoal por meio de obras. A salvação já foi garantida pelo sacrifício do Cristo no passado.
Mas há certo espaço para a realização das “boas obras” que não são de forma alguma tomadas
como desprezíveis; ao contrário, é aprazível e esperado do crente que, por amor ao seu
testemunho, as cumpra de bom grado. O que está em jogo nesta questão varia segundo a
ênfase teológico-doutrinária a qual o crente se insere: “Santidade Próspera” ou “Prosperidade
Santa”.
Se considerarmos os fiéis provenientes das matrizes interpretativas da “Santidade
Próspera” – marcadamente assembleianos –, será o galardão, a recompensa concedida no céu
quando ocorrer o encontro com Deus nas mansões celestiais, o fator que evocará no crente o
desejo de trabalhar exaustivamente na Obra de Deus. Esta recompensa, por sua vez, é
diretamente proporcional, dentro dos quadros representacionais depreendidos da leitura da
Harpa Cristã, do esforço pessoal. No que concerne à salvação da alma, esta já está garantida
pelo sacrifício de Jesus. O crente está salvo ao aceitar Cristo. Só perderá a certeza de sua
salvação se se afastar da igreja, do convívio com os irmãos.
Agora, quanto à retribuição pessoal – certo plus individual em matéria de recompensa
por ter sido um crente fiel durante sua estada no “mundo”33
–, o sujeito possui alguma
liberdade para resolver consigo mesmo, a partir de seus interesses quanto ao reconhecimento
que visa ter para com Deus no dia do Juízo. Quanto maior o esforço de sua parte, quanto mais
almas forem alcançadas para Cristo – desdobradas nas conversões que ele, o evangélico-
33
Quanto mais almas um crente alinhado com as matrizes interpretativas da “santidade próspera” alcançar,
conseguindo converter, mais pedras preciosas ele possuirá incrustadas na coroa que receberá das mãos do
próprio Cristo no céu.
142
pentecostal, conseguiu realizar através de sua agência missionária em obediência ao
cumprimento da Grande Comissão –, maior será seu galardão no céu. Podemos observar essa
concepção nos trechos dos seguintes hinos retirados da Harpa Cristã:
Despertar Para o Trabalho – 16 [íntegra]
Posso tendo as mãos vazias,/ Com Jesus eu me encontrar?/ Nada fiz, e vão-
se os dias,/ Que Lhe posso apresentar?
(coro)
Posso tendo as mãos vazias,/ Com Jesus, eu me encontrar?/ Quantas almas
poderia/ Ao Senhor apresentar?
Não mais temerei a morte;/ Vencerei por salvo estar;/ Qual será a minha
sorte,/ Se no céu vazio entrar?
No celeste lar entrando,/ Como irei ao Salvador?/ Quantas almas irei
levando,/ Para meu fiel Senhor?
Do pecado, preso em elos,/ Passei anos em vão labor;/ Quem me dera reavê-
los,/ P’ra servir ao meu Senhor.
Despertemos, Já é dia;/ Trabalhemos, com fervor;/ E levemos, com alegria,/
Muitas almas ao Senhor (HARPA CRISTÃ, 1998: s/p).
Soldados de Cristo – 153 [íntegra]
Soldados de Cristo que entrastes na lida./ Lutai sem desmaio, lutai com
valor;/ E o inimigo levai de vencida,/ Dizendo que Cristo é nosso Senhor.
(coro)
Soldados de Cristo, marchai sempre avante,/ Levando à destra as armas da
luz;/ As almas perdidas buscai triunfantes/ E prestes, levai-as a Cristo Jesus.
Peleja, ó crente, a santa peleja,/ Prossegue avante por Cristo Jesus;/ E sê mui
valente; na frente estejas,/ Dizendo que Cristo morreu numa cruz.
A aurora se acerca do dia faustoso,/ Em que prêmio terão a fé e o valor;/ E
nele, Jesus, galardão grandioso,/ Dará a qualquer que sair vencedor (HARPA
CRISTÃ, 1998: s/p).
Ide Segar – 220 [íntegra]
Para os campos a segar,/ Eis o trigo a lourejar,/ Ide ceifar, ide segar;/ Todo
dia trabalhai/ E só de Jesus falai;/ Ide ceifar, ide pregar!
(coro)
Ide segar, ide ceifar!/ Sim, trabalhai, e proclamai!/ Eis que o amor do
Salvador/ Vos impele ao Seu labor/ Sem demorar, ide segar.
Para o vale, monte ou mar,/ O Senhor vos quer mandar/ A proclamar,
anunciar;/ Os perdidos procurar,/ Pois Jesus os quer salvar;/ Ide falar, e
proclamar!
Falaremos com fervor,/ Do poder do Salvador,/ Ao pecador, ao sofredor;/
Pronto chegará o fim,/ Soará do céu o clarim,/ Tereis, então, o galardão
(HARPA CRISTÃ, 1998: s/p).
Campeões da Luz – 305 [trecho]
[…] Breve vamos terminar a batalha aqui,/ E p ‘ra sempre descansar com
Jesus ali;/ Todos os que são fiéis ao bom Capitão,/ Hão de receber lauréis
como galardão […] (HARPA CRISTÃ, 1998: s/p).
Esta recompensa pessoal, concedida por Jesus pelo número de almas alcançadas nos
trabalhos de evangelização, parece não ter ecoado na produção dos cantos estudados no
segundo grupo. Cremos que o discurso da “Prosperidade Santa” das igrejas de terceira onda
143
(FRESTON, 1992) redimensionou a interpretação da representação coletiva da Grande
Comissão no que tange ao galardão celestial.
A recompensa celestial (galardão) reservada aos sujeitos em seus processos de
identificação34
foi repensada em função da substituição da expectativa obsedante do retorno
iminente de Cristo pela perspectiva de fazer avançar o Reino de Deus, contemporaneamente,
aqui na terra. Os frutos do trabalho do sujeito no cumprimento da identidade evangélico-
pentecostal, em seu esforço de pregação, oração ou doações em dinheiro para ajudar no
trabalho missionário-evangelístico, são entendidos, segundo a interpretação que fizemos do
segundo grupo de cantos, como gozados imediatamente em vida. O galardão, aos olhos dos
crentes alinhados com a “Prosperidade Santa”, é recebido, também, em vida.
As letras das canções trabalhadas neste estudo dividem mais do que apenas
representações coletivas constitutivas da identidade evangélico-pentecostal; dividem também
um vocabulário específico. Tomemos uma palavra, em específico, presente nos trechos dos
hinos da Harpa Cristã transcritos acima: “avante!”. Tal palavra se configura como uma ordem,
uma conclamação para que o crente assuma sua postura como guerreiro que pode libertar os
povos da “escravidão”. A escravidão a que se refere o hino 65, em específico (no quarto verso
da segunda estrofe), é aquela sob a qual estão submetidos todos os que não conhecem ou
rejeitaram a Palavra de Deus, os chamados gentios. Claramente, o conhecimento, ou aceitação
de tal Palavra, redunda num novo seguidor da fé por meio da conversão, um novo membro da
igreja.
As constelações de representações coletivas contidas no imaginário social evangélico-
pentecostal fazem produzir sentido à vida daquele que busca identificar-se com tal grupo. Ao
tomar parte nesse sentido constituído e mantido socialmente, o sujeito faz com que a
efetivação de sua identificação passe, necessariamente, por alguma forma de cumprimento do
“levar a Palavra” ao realizar em si mesmo a Grande Comissão.
Soma-se, assim, o desejo de “testemunhar” aos pecadores do poder concedido por
Jesus àqueles que o seguem – e das “maravilhas” que decorrem deste mesmo poder como
curas, realizações no campo financeiro ou mesmo “reabilitações de caráter” mediante a
formatação dos hábitos tidos como “pregressos” ao gosto da comunidade de fiéis – à
necessidade de evangelização derivada da introjeção da representação coletiva da Grande
Comissão. Juntos, testemunho pessoal e ímpeto evangelístico direcionam o fiel a engrossar os
batalhões de santos comprometidos com a Batalha Espiritual. A identificação com as
34
Identificação, neste caso, se dá por meio das vivências cotidianas pautadas na expectativa da parousia e da
atitude evangelística – provenientes do esforço pessoal em converter o maior número de gentios possível.
144
representações coletivas dá-se por meio da inserção do sujeito no “mundo”, entendido como
campo de combate. A experiência de combate deriva dos novos comprometimentos
assumidos pelo recém convertido. As letras dos hinos acima apresentados indicam isso, tanto
do segundo quanto do primeiro grupo. Vários termos e passagens nesses hinos coadunam com
discursos militaristas, como, por exemplo: “marchai”, “erguei-vos”, “uni as vossas forças!”,
“os povos libertai!”, “o inimigo com a luz combateremos”, “peleja”, “Capitão”, etc.
O mandamento “ide e pregai”, como pudemos observar no primeiro capítulo, ao
apresentar as conclusões de Siepierski (2008) e Mariano (1999), sofreu algumas mudanças em
sua prática desde a escrita dos hinos da Harpa Cristã editada em 1923. Como afirmou
Siepierski, a ordem hoje em dia é converter não só indivíduos, mas a cultura também. Daí a
apropriação e ressignificação de práticas culturais antes tomadas como ímpias ou
anatemizadas pela rígida tradição de usos e costumes provenientes do contexto da “Santidade
Próspera”. Citemos como exemplo as festas de São João realizadas no mês de junho, de
matriz religiosa tradicionalmente católica35
.
Apesar da relativização no que concerne ao advento da parousia, realizada pelos
crentes alinhados com a “Prosperidade Santa” – ela certamente terá seu cumprimento, este,
porém, não é tomado como iminente –, ainda assim os termos do cumprimento da Grande
Comissão são pensados como um avanço das “tropas de Jesus”, agora, talvez, para fazerem
estabelecer, se possível, o Reino de Deus neste “mundo”. Acompanhemos alguns trechos das
canções do segundo grupo que testemunham a continuidade tanto do vocabulário bélico
quanto da expectativa de experienciar cotidianamente o combate contra o mal.
Senhor dos Exércitos, Rei [trecho]
[…] Guerreia por mim, glorioso Senhor/ Poderoso nas batalhas/ Tu és o meu
escudo e arma de guerra/ Envia teus anjos pra pelejar/ Em meu favor nesta
batalha/ Tu és o Senhor dos exércitos, Rei […] (VALADÃO, Ana Paula.
Senhor dos Exércitos, Rei. Intérprete: Diante do Trono. In: DIANTE DO
TRONO. Ainda Existe uma Cruz. Brasil: Diante do Trono, 2005).
Por amor de ti, Oh Brasil! [trecho]
Por amor de ti, oh Brasil/ Não me calarei nem me aquietarei/ Sobre os teus
muros, oh Brasil, pus guardas/ Que todo dia e toda noite/ Jamais se calarão
[…] (VALADÃO, Ana Paula. Por amor de ti, Oh Brasil! Intérprete: Diante
do Trono. In: DIANTE DO TRONO. Por amor de ti, Oh Brasil! Brasil:
Diante do Trono, 2006).
Mais que vencedor [trecho]
35
Um exemplo foi o “Xote Santo” realizado em fins de julho de 2009 pela igreja Luz Para os Povos localizada
na Av. Planície, setor Itatiaia, Goiânia. Esta festividade imitou em sua decoração, estilo musical e quitutes a
festa de São João católica. Entretanto, foi “santa”, pois se afastava do embasamento teológico “claramente
herético” que lhe dá a igreja Católica.
145
[…] Você pensa que vai me fazer parar?/ Você pensa que vai me fazer
desistir?/ Você não se cansa de me afrontar/ Mas eu não me canso de te
resistir/ Quem vai retroceder, é você/ Mas eu vou avançar e chegar ao fim/
Coroa de vitória é o que vou receber/ E no lago de fogo você vai arder
(VALADÃO, Ana Paula. Mais que vencedor. Intérprete: Diante do Trono.
In: DIANTE DO TRONO. Príncipe da Paz. Brasil: Diante do Trono, 2007).
O Exército de Deus [íntegra]
Deus está liberando os seus anjos para guerrear/ Liberando uma palavra para
avançar/ E debaixo dessa ordem vamos avançar/ E vencer/ Nossa luta não é
contra carne ou sangue/ Nossa luta não é contra todos os homens/ Nossa luta
é contra principados, potestades/ Nas regiões celestes/ Somos o exército de
deus/ Igreja viva do senhor (FERBER, Ludmila. O Exército de Deus.
Intérprete: Ludmila Ferber. In: FERBER, Ludmila. Adoração Profética 1 –
Os Sonhos de Deus. Osasco: Kairós Music, 2001. CD).
Coragem [íntegra]
Prepare-se que o cerco está se fechando/ A coisa ta ficando feia para o mal/
Por mais que se levantem contra nós/ Nunca esqueça tua identidade em
Deus/ Pois o poder da Cruz está em ti/ Teu nome é coragem/ Valente de
Deus/ Teu nome é coragem/ Não pare de crer/ Teu nome é coragem/
Guerreiro da fé/ Prepare-se para vencer (FERBER, Ludmila. Coragem.
Intérprete: Ludmila Ferber. In: FERBER, Ludmila. Coragem. Osasco:
Kairós Music, 2007. CD).
Sobrenatural [íntegra]
Somos o exército de Deus,/ Chamados pra vencer e conquistar/ Somos
valentes! Somos guerreiros!/ Somos da fé, e não vamos recuar/ O chamado é
radical, é divino, é tremendo/ O respaldo vem de Deus,/ Ele mesmo está
movendo/ Sua unção é poderosa,/ Sem limites, sem fronteiras/ Debaixo dela,
romperemos as barreiras/ Buscando sem parar no sobrenatural/ sonhando
sem parar no sobrenatural/ Adentrando a dimensão do sobrenatural/
Adestrando o coração no sobrenatural/ Ampliando a visão no sobrenatural/
Aguçando a audição no sobrenatural/ Mergulhando na unção do
sobrenatural/ Conquistando e consolidando/ Aqui, no sobrenatural!
(FERBER, Ludmila. Sobrenatural. Intérprete: Ludmila Ferber. In: FERBER,
Ludmila. Adoração Profética 3 – Tempo de Cura. Osasco: Kairós Music,
2003. CD).
Força Imensa [trecho]
[…] O inimigo não gosta do crente/ E nem pode gostar/ Arma astutas ciladas
pra nos derrubar/ Neste momento a luz vem trazendo o bem/ Cortando o
laço/ E quebrando a lança também/ Para obtermos poder temos que clamar/
Pelo Senhor da terra, da água e do ar/ E o Seu nome é Maravilhoso,
Conselheiro/ Deus Forte, Pai da Eternidade e Príncipe da Paz/ Ele é... Varão
de Guerra/ Ele é... Leão de Judá/ Ele é... Pai Amoroso/ E em nosso meio está
(CASSIANE. Força Imensa. Intérprete: Cassiane. In: CASSIANE. Força
Imensa. São Cristovão: KM Music, 1993. CD).
O problema que decorre da manutenção do patrimônio vocabular de caráter
beligerante entre os evangélico-pentecostais pode ser rastreado nas interpretações relativas à
representação coletiva da Grande Comissão. Mesmo que estas interpretações se baseiem –
como o fez Ludmila Ferber em sua canção “Exército de Deus” – na passagem bíblica de
146
Efésios 6:1236
, a experiência de conflito carregará consigo os termos que gravitam, por
afinidade semântica, juntamente a outros termos referentes às batalhas terrenas, mesmo que
não nomeados nas canções. Termos como: “violência”, “destruição”, “aniquilamento”,
“oponente”, etc. E, por mais que os fiéis se esforcem em remeter seus discursos (e práticas de
potencial violência por parte do sujeito que o sustém) à esfera espiritual, isto não ameniza a
situação.
O mundo da vida em que se insere a comunidade e/ou o indivíduo que sustenta o
discurso da Batalha Espiritual será, necessariamente, o local de efetivação das práticas de
combate traduzidas na negação do outro, demonização, perseguição. Por mais que creiam
num mundo espiritual independente que perpassa e determina este material, o fiel deverá
saber enxergar no mundo de suas experiências cotidianas os sinais que marcam a presença do
espiritual. De fato, o mundo espiritual se insinua no material.
O mundo físico, para o evangélico-pentecostal, existe como palco da Batalha
Espiritual milenar entre as forças do bem e do mal. O processo de identificação que marca
uma conversão é uma necessária inserção do sujeito, com todos os seus demais processos
identitários inconclusos, no imaginário social que sustenta a Grande Comissão e a parousia.
As experiências cotidianas no trabalho, na escola, na família e noutras instituições e espaços
sociais que predicam certo processo identitário são canibalizados pelo imaginário evangélico-
pentecostal e transformam-se, paulatinamente, em possíveis palcos para a vivência da/na
Batalha Espiritual. O sujeito não pode ficar impassível a esta realidade, sob pena de ver
colapsar todo arcabouço identitário evangélico-pentecostal. Reforçamos, este arcabouço é
totalizante no sentido em que impõem, como qualquer visão dogmática e/ou doutrinária,
pontos não passíveis de serem dialogados.
Existem muitos hinos na Harpa Cristã editada em 1923 que tematizam diretamente a
parousia. De fato, a maioria das músicas do cancioneiro oficial da AD é concernente à vida
futura nas “Mansões Celestiais” – uma das representações coletivas do imaginário evangélico-
pentecostal pertencentes mais aos modos interpretativos da “Santidade Próspera”. Analisamos
alguns hinos e passagens com foco explícito na representação coletiva da segunda vinda de
Cristo. Pudemos rastrear as reincidências do tema nas canções de Batalha no segundo grupo
de canções analisadas. Mesmo essas sendo provenientes de uma concepção mais próxima ao
pós-milenarismo (SIEPIERSKI, 2008), elas não se mostraram menos preocupadas com a
36
“Porque não temos que lutar contra carne e sangue, mas, sim, contra os principados, contra as potestades,
contra os príncipes das trevas deste século, contra as hostes espirituais da maldade, nos lugares celestiais.”
(Bíblia de Estudos Plenitude, 2001)
147
parousia. Vejamos alguns cantos de Batalha fundados na parousia e provenientes da Harpa
Cristã de 1923.
Saudosa Lembrança – 2 [íntegra]
Oh! que saudosa lembrança/ Tenho de ti, ó Sião,/ Terra que eu tanto amo,/
Pois és do meu coração./ Eu para ti voarei,/ Quando o Senhor meu voltar;/
Pois Ele foi para o céu,/ E breve vem me buscar.
(Coro)
Sim, eu porfiarei por essa terra de além;/ E lá terminarei as muitas lutas de
aquém;/ Lá está meu bom Senhor, ao qual eu desejo ver;/ Ele é tudo p’ra
mim, e sem Ele não posso viver.
Bela, mui bela, é a esperança,/ Dos que vigiam por ti,/ Pois eles recebem
força,/ Que só se encontra ali;/ Os que procuram chegar/ Ao teu regaço, ó
Sião,/ Livres serão de pecar/ E de toda a tentação.
Diz a Sagrada Escritura,/ Que são formosos os pés/ Daqueles que boas
novas/ Levam para os infiéis;/ E, se tão belo é talar/ Dessas grandezas, aqui,/
Que não será o gozar/ A graça que existe ali! (HARPA CRISTÃ, 1998: s/p).
A Esperança da Igreja – 53 [trecho]
[…] Bem prontos para O receber,/ Devemos sempre aqui viver;/ O tempo
foge, o dia vem,/ A glória esperamos além,/ Pois trabalhemos, com fervor,/
Até que volte o Salvador (HARPA CRISTÃ, 1998: s/p).
Não Tarda Vir Jesus! – 286 [íntegra]
Ó Jesus, nesta terra,/ Há só tristeza e dor;/ Os Ímpios fazem guerra/ Aos
santos do Senhor.
(Coro)
Cristo volta/ Em fulgurante luz;/ O mar já se revolta,/ Não tarda vir Jesus!
Do mundo nós não somos,/ Mas do Senhor Jesus;/ Remidos todos fomos/
Com sangue, lá na cruz!
No mundo tenebroso/ Não vamos descansar,/ Mas para o céu, de gozo,/
Queremos já voar!
Olhamos para cima/ Donde virá Jesus;/ Pois isto nos anima/ Para viver na
luz (HARPA CRISTÃ, 1998: s/p).
O Clarim nos Alerta – 206 [íntegra]
O clarim já nos alerta,/ Nosso coração desperta,/ Pois a vinda é bem certa de
Jesus;/ De mil anjos rodeado,/ Para o crente preparado,/ Cristo volta
coroado. Aleluia!
(Coro)
Ó irmão por Deus liberto,/ Pelo sangue estás coberto;/ Tens o teu perdão
bem certo, salvo estás;/ Voz de júbilo ouviremos/ E no céu nós cantaremos,/
Cristo breve nós veremos. Aleluia!
Lá nas bodas do Cordeiro,/ Sentaremos prazenteiros;/ Oh! Que gozo
verdadeiro com Jesus!/ Pois no céu não há mais pranto,/ Eis que tudo será
canto;/ Cristo vem buscar os santos. Aleluia!
Sim à mesa sentaremos,/ E com Cristo cearemos;/ Quão felizes nós seremos
com Jesus!/ Para sempre gozaremos,/ E com Cristo reinaremos,/ Sua glória
fruiremos. Aleluia! (HARPA CRISTÃ, 1998: s/p).
A problemática da Batalha Espiritual, apesar de presente, fica velada quando o tema
central é a volta de Cristo. Como pudemos observar, outras representações coletivas, como a
148
“mansão celestial”, “Sião”, “o Livro da Vida”37
, e, mais uma vez, o “galardão”, são evocadas.
Mas elas o são mais como um reforço na fruição-contemplação do processo de identificação
do que como complexos estruturantes da prática de vida. Estas representações coletivas,
menos “pesadas” dentro do imaginário social, são tributárias da parousia. Dizemos menos
“pesadas” porque elas configuram-se como representações coletivas que se perpetuaram
fracamente no imaginário dentro dos quadros interpretativos da “Prosperidade Santa”. Assim,
perderam muito de seu apelo na constituição identitária. Elas entram numa categoria de
aspirações complementares ao arrebatamento e às características de como poderá ser a “vida”
no céu. No primeiro hino apresentado, Saudosa lembrança, a mensagem é uma ode a Sião,
referência à Jerusalém – não a Jerusalém terrestre; antes a cidade divina que Jesus foi preparar
no Céu38
.
Após a morte de qualquer ser humano e o posterior juízo de Deus, só há dois destinos
possíveis para a alma humana segundo a visão dos evangélico-pentecostais: ou ir morar nas
mansões celestiais ou, então, ir sofrer dor intensa no lago de fogo eterno. Aos gentios, a
segunda localidade está indiscutivelmente reservada. Aos evangélico-pentecostais a primeira.
Isto é, se forem fiéis aos processos de identificação com as representações coletivas,
realizando a internalização do imaginário social, processos que tomados em sua globalidade
são denominados viver “em Jesus”. Se viverem “em Jesus”, seus nomes estarão escritos no
Livro da Vida. Se se esforçarem para cumprir a vontade de seu deus aqui na terra – seja
resistindo resignadamente enquanto levam a Palavra (“Santidade Próspera”), seja criando as
condições para a realização do Reino de Deus neste “mundo” (“Prosperidade Santa”) –,
garantirão um bom galardão para ser usufruído nesta vida ou na próxima. Daí podermos
perceber, mais uma vez, a menção ao galardão – recompensa – que é recebido agora, na
medida em que se realiza a vontade do deus cristão, ou será dado segundo os esforços de cada
um quando da vinda do Salvador.
37
Sobre as Mansões Celestiais: “Não se turbe o vosso coração; credes em Deus, crede também em mim. Na casa
de meu Pai há muitas moradas; se não fosse assim, eu vo-lo teria dito, pois vou preparar-vos lugar. E, se eu
for e vos preparar lugar, virei outra vez e vos levarei para mim mesmo, para que, onde eu estiver, estejais vós
também.” (João capítulo 14, versículos 1 a 3; Bíblia de Estudos Plenitude, 2001); sobre o Livro da Vida: “E
peço-te também a ti, meu verdadeiro companheiro, que ajudes essas mulheres que trabalharam comigo no
evangelho, e com Clemente, e com os outros cooperadores, cujos nomes estão escritos no livro da vida.”
(Filipenses capítulo 4, versículo 3; Bíblia de Estudos Plenitude, 2001), também, “E veio um dos sete anjos que
tinham as sete taças cheias das últimas sete pragas e falou comigo, dizendo: Vem, mostrar-te-ei a esposa, a
mulher do Cordeiro. E levou-me em espírito a um grande e alto monte e mostrou-me a grande cidade, a santa
Jerusalém, que de Deus descia do céu. (...) E não entrará nela coisa alguma que contamine e cometa
abominação e mentira, mas só os que estão inscritos no livro da vida do Cordeiro” (Apocalipse capítulo 21,
versículos 9-10 e 27; Bíblia de Estudos Plenitude, 2001). 38
“Mas a Jerusalém que é de cima é livre, a qual é mãe de todos nós;” (Gálatas capítulo 4, versículo 26; Bíblia
de Estudos Plenitude, 2001); “Mas chegastes ao monte Sião, e à cidade do Deus vivo, à Jerusalém celestial, e
aos muitos milhares de anjos” (Hebreus capítulo 12, versículo 22; Bíblia de Estudos Plenitude, 2001).
149
A projeção de outra vida ao lado de Deus, muito mais excelente do que esta, servia,
aos pré-milenaristas, como um forte argumento para fechar os olhos ao “mundo” e às
demandas atuais, como a discussão concernente à preservação ambiental. Durante as
pesquisas de campo, entramos em contato com fiéis que, compartilhando uma visão derivada
dos quadros interpretativos da “Santidade Próspera” (pré-milenarista), não se afligiam em
dilapidar a natureza em seu ambiente de vida. Seus argumentos eram de que “este não era seu
país”. Aos olhos dos pós-milenaristas alinhados com a “Prosperidade Santa” as questões
ecológicas são muito mais preocupantes. Mesmo porque Jesus pode levar um milênio para
efetivar a Parousia. Ou seja, este mundo, ainda um “mundo” de horror tomado de decadência,
se tornou mais um desafio a ser encarado e transformado, isto é, na ótica dos evangélico-
pentecostais que se guiam por matrizes interpretativas de “Prosperidade Santa”. Aos olhos
daqueles que estão esperando a volta iminente do Cristo, o “mundo” configura-se como um
insulto à “Santidade Próspera” da comunidade dos “salvos”. Entendem eles que este deveria
ser deixado à sua própria sorte. Mas, como vimos, até os pré-milenaristas alinhados com a
“Santidade Próspera” têm, no cumprimento da Grande Comissão, uma representação coletiva
que provê ao fiel um leque de práticas sociais que o inserem no “mundo” com vistas a salvar
os pecadores por meio da pregação da “Palavra de Deus” – mesmo que tudo se arruíne no
final. Essa inserção no “mundo” realizada pelos pré-milenaristas, diferentemente dos pós-
milenaristas, é basicamente dirigido a negá-lo por meio da mensagem de perdição, face oculta
das mensagens de salvação.
Passemos aos exemplos de cantos de Batalha provenientes do segundo grupo de
canções e que tematizam a parousia como mensagem principal.
Por amor de ti, Oh Brasil! [trecho]
[…] Por amor de ti, oh Brasil/ Não me calarei nem me aquietarei/ Vós que
fareis lembrado o Senhor/ Não descanseis/ Nem deis a Ele descanso até que
nos ponha/ Por objeto de louvor na Terra/ Chamados por um novo nome/
Que a boca do Senhor dirá/ E a nossa justiça brilhará/ Até que nos faça ser/
Coroa de glória/ Nas mãos do nosso Deus/ Por amor de ti, oh Brasil/ Não me
calarei (VALADÃO, Ana Paula. Por amor de ti, Oh Brasil! Intérprete:
Diante do Trono. In: DIANTE DO TRONO. Por amor de ti, Oh Brasil!
Brasil: Diante do Trono, 2006. CD).
A vitória da cruz [trecho]
Como um leão que ruge o diabo quer nos devorar/ Está buscando brechas
para destruir, roubar e matar/ Não é na nossa força que podemos vencer/
Maior é Jesus em nós. Vem nos defender!/ O sangue derramado lá na cruz
foi para me salvar/ O meu pecado e dor Jesus levou. Sofreu em meu lugar/ A
minha dívida pagou para eu livre ser/ Cristo morreu por mim. Posso viver!/
Hoje eu sou livre para amar a Deus/ Viver vitorioso como um filho Seu/
Hoje eu sou livre para celebrar/ O pecado não pode mais me dominar/ […]
150
No terceiro dia a pedra do sepulcro rolou/ Lá chegou Maria mas o corpo não
encontrou/ O anjo lhe falou que ele não estava lá/ Entre os mortos não devia
procurar/ Viu o jardineiro e perguntou: ‘Onde está o meu Senhor?/ Olhou
nos seus olhos, pelo nome ele a chamou/ Ela reconheceu a voz do Mestre/
Raboni! Meu Jesus ressuscitou! […](VALADÃO, Ana Paula. A vitória da
cruz. Intérprete: Diante do Trono. In: DIANTE DO TRONO. Diante do
Trono 3 – Águas Purificadoras. Brasil: Diante do Trono, 2001. CD).
Os meus olhos verão o Rei [íntegra]
Os meus olhos verão o Rei Jesus,/ o Leão da Tribo de Judá,/ verão o Rei
Jesus/ Pois sou do meu Amado,/ a Fonte dos Jardins,/ Poço das Águas
Vivas,/ sou do meu Amado/ fonte selada/ Sou do meu Amado,/ a Fonte dos
Jardins,/ Poço das Águas Vivas/ Eu sou do meu Amado, fonte selada
(FERBER, Ludmila. Os meus olhos verão o Rei. Intérprete: Ludmila Ferber.
In: FERBER, Ludmila. Cantarei Para Sempre. Osasco: Kairós Music,
2008. CD).
Glória Pra Sempre [íntegra]
Cumpre à promessa – Jesus já vem!/ Vem pra julgar as nações/ Triunfo fiel,
de um povo no céu/ Valeu à pena esperar/ Vem colorindo a imensidão/ Traz
à justiça nas mãos/ Leva os seus, para junto de Deus/ Todos felizes nos céus/
Glória pra sempre/ Vem O Juiz, para fazer o seu povo feliz/ Vem colorindo o
espaço sideral/ É a vitória do bem sobre o mal (CASSIANE. Glória Pra
Sempre. Intérprete: Cassiane. In: CASSIANE. Força Imensa. São
Cristovão: KM Music, 1993. CD).
Festa no Céu [íntegra]
Vai haver festa no céu e vai ter anjos voando/ E a igreja de Jesus vai entrar
glorificando/ Naquele grande banquete, o Noivo vou abraçar/ Se prepare
meu irmão pra com Jesus se encontrar/ Muitos crentes vão sumir, sem deixar
explicação/ Carros vão desgovernar e perder a direção/ A igreja de Jesus
ninguém mais vai encontrar/ Foi arrancada daqui já está com Jeová/ Igreja
fique ligada Jesus Cristo vem aí/ Fique como as prudentes, preparadas pra
subir/ As provações deste mundo não se dá pra comparar/ Com aquelas
maravilhas e a glória que tem lá/ Fogo Santo/ Fogo santo, santo fogo, fogo
consolador/ É o que está descendo agora, fogo santo do Senhor/ Este fogo é
poderoso, é fogo pentecostal/ Vai queimando o pecado, desfazendo todo
mal/ Igreja fique ligada, muito fogo vai descer/ Até o crente gelado vai ser
cheio de poder/ Este fogo purifica, santifica e faz o bem/ Quem está sentindo
agora levante as mãos e diga amém/ Quando o povo de Deus ora põe o diabo
pra correr/ Abre a boca então dê glória, Deus tem vitória pra você
(CASSIANE. Festa no Céu. Intérprete: Cassiane. In: CASSIANE. Com
Muito Louvor. São Cristovão: KM Music, 1999. CD).
No Céu [íntegra]
Quando chegar lá no céu/ Vou ver os apóstolos/ Pedro, Tiago e João/ Vou
ver os profetas/ Que um dia partiram/ Pra celeste mansão/ Verei lá Elias,/
também Isaías,/ Verei Daniel/ Vou ver meu Jesus.../ Quando chegar lá no
céu/ No céu...lá tem ruas de ouro/ No céu...está o meu tesouro/ No céu...não
haverá mais choro/ Lá é meu lugar/ No céu...grande coral de santos/ No
céu...não há mais desencantos/ O meu lindo lar...Jesus foi preparar.../ É prá
lá que eu vou/ Quando chegar lá no céu/ Verei meu Jesus como Ele é/ Verei
o Seu rosto/ E as marcas dos cravos em Suas mãos/ Vou ver os Arcanjos,/
Voar como os anjos verei Salomão/ Verei os irmãos.../ Quando chegar lá no
151
céu (CASSIANE. No Céu. Intérprete: Cassiane. In: CASSIANE. Puro
Amor. São Cristovão: KM Music, 1994. CD).
Alerta [íntegra]
O céu vai se abrir/ Vai, vai, vai, vai/ Os anjos vão tocar/ Anunciando a
chegada/ Do Senhor Jeová/ Você amigo que está fora disso/ Está correndo
perigo/ Se a Jesus não aceitar/ Porque ele deixou uma promessa/ Vou subir
para o meu Pai/ Mas em breve vou voltar/ Os anjos lá no céu estão em fila/
Esperando a partida/ Pra com Jesus vim buscar/ E arrebatar a sua noiva
amada/ Que pra derrota do inimigo lá no céu irá morar/ Alerta porque pode
ser agora/ Ninguém sabe qual a hora/ Que Jesus irá voltar/ Por isso meu
amigo vem agora/ Vem correndo não demora/ Pra com ele ir morar
(CASSIANE. Alerta. Intérprete: Cassiane. In: CASSIANE. Para Sempre.
São Cristovão: KM Music, 1998. CD).
As músicas da banda Diante do Trono só indiretamente fazem menção à Parousia. O
formato e proposta da banda foram pensados para manutenção de longas execuções melódicas
– durando em média dez minutos ou mais – que possibilitem momentos de adoração no ofício
do culto. São letras voltadas para as experiências e expectativas que podem ser, em maior
medida, satisfeitas mediante a integração eminentemente emocional do sujeito em sua
comunidade de fé ao compartilhar dos surtos carismáticos que acompanham os momentos de
adoração. Chorar, bater palmas, abraçar uns aos outros, pular, dançar, orar em voz alta, falar
em línguas estranhas, todas são manifestações muito frequentes de comoção nas comunidades
evangélico-pentecostais que cultivam estas práticas. As letras produzidas pela banda Diante
do Trono remetem-nos, se não à expectativa obsedante da volta do Cristo, ao menos à
iminência do “derramamento” de seu poder para satisfação, não menos obsedante, da igreja.
Esta expectativa se constrói semelhantemente aos modos de fruição da possibilidade
da Parousia. Obedece, porém, em termos de respostas práticas, vetores de experiências
sociais totalmente diversos. O “poder” que as experiências de comoção emocional coletivas
na comunidade oferecem, redunda no reforço positivo da vivência “em Jesus” e na decorrente
agência dos sujeitos sobre seu meio, tanto nos espaços sagrados quanto nos espaços profanos.
Diferentemente dos pré-milenaristas que tanto menos gostariam de tomar parte neste “mundo”
iníquo, o pós-milenarista – tributário da “Prosperidade Santa” enquanto matriz interpretativa
das representações coletivas comuns ao imaginário social evangélico-pentecostal – se sentirá
“vitorioso e livre para celebrar” enquanto empreende as mudanças necessárias para apressar a
vinda do Reino de Deus, quiçá efetivando-o na contemporaneidade deste “mundo”.
O quadro apresenta-se totalmente diferente no que concerne às letras dos cantos
produzidas ou musicadas pela pastora Ludmila Ferber e, em maior medida, os gravados pela
pastora Cassiane. Ludmila Ferber, em carreira solo, utiliza-se da enorme aceitação que os
cantos recebem atualmente nas igrejas evangélico-pentecostais – dado o espaço e a
152
importância que estes assumiram nos cultos em detrimento da Palavra – para tratar de
diversos temas recorrentes à vida cristã. A Parousia aparece com mais ênfase em seus
trabalhos do que nos trabalhos da banda Diante do Trono. Mesmo assim, seja, talvez, por suas
filiações denominacionais e formação cristã mais tributária da “Prosperidade Santa”, a pastora
Ferber ainda não tematiza a Parousia tanto quanto o faz a cantora Cassiane, cuja formação na
fé se deu em contextos polarizados pela “Santidade Próspera”.
Nas canções musicadas pela pastora Cassiane, encontramos menções diretas ao
“arrebatamento”, a Parousia. Num abrir e fechar de olhos, os salvos serão simplesmente
transladados, ou seja, levados corporalmente ao céu. Os pré-milenaristas nutrem a certeza de
que tal evento produzirá um assombro sem medida aos que permanecerem no “mundo”.
Também podemos perceber a perpetuação de outras representações coletivas nos cantos da
pastora Cassiane. Além da referência à mansão celestial discutida acima, outra representação
coletiva tributária da Parousia é mencionada: as “Bodas do Cordeiro”. Os pré-milenaristas
entendem que, durante os sete anos de tribulação pelo qual passará a terra logo após a
efetivação da parousia e imediatamente antes do milênio, eles estarão junto a Jesus, numa
celebração que durará os sete anos de tribulação e que marcará o encontro da “Noiva” – a
igreja cristã verdadeira – com seu “Noivo” – o Cordeiro de Deus. Estas são as “Bodas do
Cordeiro”.
Como pudemos observar existem inquestionáveis permanências entre os dois grupos de
canções no que diz respeito às representações coletivas elencadas no arcabouço identitário
evangélico-pentecostal. Estas permanências nos discursos fomentam a perpetuação do
imaginário social em questão. A partir de suas características altamente aguerridas e voltadas a
aquisições de recompensas – em caráter futuro (no céu) para os pré-milenaristas ou, de forma
mais imediata para os pós-milenaristas (ainda no “mundo”) –, esses cantos de batalha
alimentam as continuidades das práticas da Batalha Espiritual. Certamente que ocorreram
mudanças nas interpretações e experiências que tais representações ensejam, como vimos no
decorrer do capítulo segundo, além de ainda podermos perceber essas mesmas transformações
na leitura e comparação realizada dos dois grupos de cantos de batalha. Porém, estas variações,
na medida em que afirmam a agência do crente em seu esforço de converter indivíduos e
culturas, só serviram para atualizar a necessidade de combatividade no cumprimento das
expectativas do horizonte futuro evangélico-pentecostal. Assim, a reafirmação das múltiplas
constelações representacionais possíveis dentro do arcabouço identitário evangélico-pentecostal
é, ao mesmo tempo, a reafirmação da própria Batalha Espiritual.
153
4. No front da Batalha Espiritual: considerações acerca do episódio Vaca
Brava
A partir do que foi discutido nos capítulos primeiro e segundo, e seguindo ainda no
esforço demonstrativo do terceiro capítulo, apresentaremos e teceremos alguns comentários
neste quarto capítulo sobre um determinado evento histórico de enfrentamento no qual esteve
ativo o imaginário da Batalha Espiritual: o episódio Vaca Brava. A igreja que encabeçou o
episódio Vaca Brava não foi nem a Assembléia de Deus (AD), nem a Universal do Reino de
Deus (IURD), apesar de contar com seu irrestrito apoio. A igreja goianiense Ministério
Comunidade Cristã, por intermédio de seus líderes, foi a protagonista nas ações que
passaremos a apresentar. Entendemos que este quarto capítulo é válido para nossa análise da
Batalha Espiritual na medida em que abre espaço para vislumbrar a possibilidade da presença
do arcabouço identitário evangélico-pentecostal noutras denominações que não apenas a AD e
IURD. Queremos deixar claro, antes de qualquer coisa, que as análises que se seguem partem
mais de um esforço de construção de hipóteses do que de corroboração de uma ideia. Cremos
que o arcabouço identitário pode ser rastreado em outras denominações pentecostais, contudo,
foge ao escopo deste trabalho dissertativo a proposta e a possibilidade de verificar com
detalhamento se assim o é. Mais uma vez, este quarto capítulo se configura como um
exercício de curiosidade – trazendo à baila uma discussão sobre um célebre momento de
Batalha Espiritual transcorrido em solo goianiense –, não pretendendo ser conclusivo na
validação da aplicabilidade do arcabouço identitário ao Ministério Comunidade Cristã.
O dia dezenove de novembro de 2003 começava a declinar na cidade de Goiânia,
capital do Estado de Goiás. Enquanto a cidade recebia a noite, no parque lacustre Vaca Brava,
localizado em área nobre da cidade, os ânimos estavam alterados. Pessoas ali se reuniam sob a
égide da intolerância.
Segundo o jornal Diário da Manhã do dia 20 de novembro,
O Parque Vaca Brava foi palco de manifestações e brigas entre evangélicos,
católicos e representantes da cultura negra ontem à tarde. As discussões
tiveram início com religiosos de várias igrejas que se reuniram no local para
manifestar contra as estátuas de orixás colocadas no lago do parque. As
manifestações dos cristãos contaram com o apoio de carro de som e estavam
previstas para durar uma hora e meia, mas foram interrompidas meia hora
depois, por volta das 18h30, devido aos protestos dos representantes da
cultura negra (cerca de 30 pessoas), insatisfeitas com o ato. Ao todo, 500
154
pessoas estiveram no local (BARROS, Renata. Religiosos à beira de
confronto. Jornal Diário da Manhã, Goiânia, 20 nov. 2003. Política, p. 05).
Era véspera do dia da “Consciência Negra” e as escuras águas do lago recebiam
hóspedes estranhos ao imaginário social goiano dominante. Oito estátuas de sete metros de
altura que representavam Iansã, Oxalá, Iemanjá, Ogum, Oxum, Nanã, Xangô e Logum Edé.
Orixás que compõem o panteão Nagô.
As estátuas pertenciam à exposição Orixás da Bahia, que seria oficialmente
inaugurada no dia 20 (Dia da Consciência Negra), às 20 horas. A exposição itinerante já havia
percorrido São Paulo (Lago do Ibirapuera), Rio de Janeiro (Lagoa Rodrigo de Freitas) e
Brasília (Parque da Cidade). De autoria do escultor baiano Tatti Moreno, as tais estátuas
vieram acompanhadas não com algum poder mágico, antes sim, possuíam o poder sócio-
histórico de evocar forças fundamentais na composição da identidade evangélico-pentecostal.
Forças que permanecem veladas, dissimuladas em palavras e ações cotidianas. Forças que,
vez por outra, quando questionadas e postas à prova, revolvem o “lodo” dos preconceitos
identitários fazendo vir à superfície das ações sociais virulentas práticas norteadas pelo
imaginário da Batalha Espiritual.
A movimentação no lago Vaca Brava era intensa durante a semana que antecedeu o
dia 19 de novembro de 2003. Os homens e máquinas que trabalhavam na montagem das
estátuas trouxeram o lodo à superfície. Além de turvar a superfície do já escuro lago, o lodo
também agiu nas superfícies das práticas sociais daqueles que resistiam à montagem das
estátuas, tentando negar, desumanizar, demonizar a matriz africana que compõe – juntamente
com o cristianismo – a riqueza religiosa goianiense.
As estátuas já haviam suscitado muita polêmica antes mesmo de sua inauguração. Em
artigos publicados no jornal Diário da Manhã (DM) podemos acompanhar o embate ocorrido
desde meados do mês de novembro de 2003 até o dia oito de janeiro de 2004, quando as
mesmas foram retiradas. Como veremos no decorrer deste capítulo, as conseqüências do não
cancelamento da exposição por parte do prefeito Pedro Wilson (PT) ainda iriam reverberar,
muito tempo depois, no resultado das eleições para prefeito no fim de 2004. Referimo-nos,
assim, a todo o processo de enfrentamento e contestação calcada na Batalha Espiritual como
“Episódio Vaca Brava”.
Voltemos às margens do lago no dia dezenove. Segundo o DM, em artigo de Ludmila
Viana, publicado pela manhã,
Cresce a polêmica em torno dos orixás expostos no Parque Vaca Brava. O
pastor Fábio Sousa, líder dos jovens do Ministério Comunidade Cristã,
155
organizou para hoje, às 18 horas, uma passeata no local, segundo ele, contra
suposta discriminação em relação às demais religiões. “A convocação é para
todos que estão sendo discriminados, independente da religião”, observa. O
pastor disse que os evangélicos estão insatisfeitos com as esculturas por elas
representarem deuses do candomblé. “Foi algo imposto. É uma idéia absurda
fazer esta exposição perto do Natal”. Por ser o Natal uma festa cristã, Fábio
Sousa acredita que deveriam ser expostos presépios e enfeites natalinos
(VIANA, Ludmila. Evangélicos não querem orixás. Diário da Manhã,
Goiânia, 19 nov. 2003. Cidades, p. 01).
Enquanto isso, no mesmo jornal, em outra seção:
O secretário municipal de Cultura, Sandro di Lima, disse que a exposição
dos orixás – do escultor baiano Tatti Moreno – é recebida com orgulho pela
Prefeitura de Goiânia pela qualidade das obras e para mostrar que a cidade é
multicultural. “Estamos mostrando a cultura e a história brasileira ao povo
goianiense. Esta exposição tem caráter artístico-cultural, e não religioso”,
ressalta. Segundo ele, em momento algum a prefeitura teve intenção de criar
polêmica entre as religiões. “O que queremos é receber com respeito uma
exposição de cunho internacional. Não temos de polemizar” (VIANA,
Ludmila. Secretário pede tolerância religiosa. Diário da Manhã, Goiânia,
19 nov. 2003. Cidades, p. 01).
Duas vozes se opõem. Duas identidades que, apesar de ligadas intersubjetivamente por
meio dos símbolos culturalmente compartilhados, se chocam em sua argumentação –
contrária ou a favor à exposição. O pastor e o secretário são ambos representantes de maneiras
distintas e não excludentes de ver o mundo. Não excludentes na medida em que percebemos
que suas concepções da “Verdade”, religiosa ou política, sagrada ou profana, pertencentes ao
evangélico ou ao cidadão, respectivamente, não podem subsistir independentes uma da outra.
Neste caso seus distintos universos lingüísticos interagem numa relação antitética – onde um
termo é tomado como oposição de contrariedade de outro –, ou seja, se realizam como
estruturalmente acoplados. Como uma sizígia re-conhecida num mesmo lance de olhos sobre
a realidade. Poderíamos vislumbrar os pontos onde um discurso predica o outro ao focalizar
nossa atenção em seus interstícios.
Pastor e secretário pronunciam-se, realizam-se ao se distanciarem, mas as idéias
expostas nos textos acima apresentados não pertencem necessariamente a eles somente. Eles
são membros das distintas comunidades que compõem o caleidoscópio identitário goiano, que
se re-encontram e se re-afirmam nas posições opostas: no “Sim” cidadão à exposição como
evento cultural ou no “Não” religioso que a entende como um acontecimento sagrado (ou
profano). “Pastor” e “Secretário”, assim, mais que indivíduos falando a partir de sua
consciência pessoal, se configuram como dois loci específicos de enunciação.
156
Estas duas posturas polarizaram o Episódio Vaca Brava. Elas seriam, entretanto,
nuançadas pela metamorfose que sofreria o discurso do “Não” religioso à exposição, derivado
do locus enunciativo do Pastor. Voltaremos mais adiante a ele.
Poderíamos nos referir, ainda, a outro posicionamento quanto às estátuas que melhor
seria definido como um “desposicionamento”. Boa parte da população que, não entendendo
muito bem o significado das reivindicações de “Pastores” e “Secretários”, ficaram à deriva ao
experimentar uma perplexidade ante a visão dos Orixás. Exemplificamos este
desposicionamento com a passagem que se segue, uma reportagem no DM do dia 18 de
novembro de 2003, também de Ludmila Viana.
O fato é que muitos freqüentadores do Vaca Brava desconhecem o
significado das imagens dos orixás expostos. Evaldo Simão, 23, autônomo,
pensou que seria algo relacionado a Roma, devido às lanças que as
esculturas carregam nas mãos. “Nunca vi nada parecido em toda minha
vida”, revela (VIANA, Ludmila. Orixás polêmicos no Vaca Brava. Diário
da Manhã, Goiânia, 18 nov. 2003. Cidades, p. 01).
O desposicionamento alimentado pela desinformação historicamente tributária do
descaso com a matriz cultural africana de nosso país, concorreu para que houvesse uma
grande parcela da população goianiense que, ou ignorava completamente o que se passava, ou
não detinha elementos suficientes para efetuar uma análise crítica da situação.
Organizados cronologicamente, passamos a apresentação e análise de alguns excertos
dos artigos que constam no DM do dia 18 ao dia 21 de novembro do ano de 2003.
Acompanharemos, em específico, a argumentação do “Não” religioso – que acreditamos
poder derivar do arcabouço identitário evangélico-pentecostal. Acompanharemos os esforços
das lideranças do Ministério Comunidade Cristã que objetivavam o fim da exposição dos
Orixás. Nos primeiros textos, ficam claros os esforços de forjar um pretenso espírito de
unidade entre os segmentos cristãos, em específico com a igreja Católica, dada sua histórica
relação política e seu decorrente prestígio social. Através deste artifício, desviavam a atenção
de seus detratores de suas reais motivações de evitar, a todo custo, a exposição. Estas
motivações, decorrentes diretamente do imaginário da Batalha Espiritual, ficariam explícitas
no artigo publicado pela pastora Sandra Cardoso, que pode ser entendido como um desabafo à
comunidade goianiense. Apresentaremos e teceremos alguns comentários sobre o artigo da
pastora no final deste capítulo.
Antes da inauguração da exposição, mediante a simples observação da montagem das
estátuas e ao ouvirem os boatos que começavam a fervilhar nos púlpitos das igrejas, os
goianienses, que praticavam Cooper ou footing no calçadão que rodeia o parque Vaca Brava,
157
já iniciavam uma resistência diluída nos murmúrios dos transeuntes. Conforme publicado no
DM do dia 18 de novembro de 2003,
O bancário Gilmar César, 45, não gostou do que viu ao fazer sua corrida
ontem à tarde. Ele disse que a exposição o incomoda muito, pois confronta
com sua religião (ele é evangélico). “A data não é apropriada para este tipo
de crendice; estamos perto do Natal”, justifica. Helyenai de Castro, 18,
atendente, disse que a exposição seria um tipo de imposição da cultura
negra, e que isso aumenta mais ainda a diferença entre raças. “Isso é
assustador. É nítido que estas imagens representam a religião do candomblé,
e não a cultura africana”, acredita ela, que também é evangélica (VIANA,
Ludmila. Orixás polêmicos no Vaca Brava. Diário da Manhã, Goiânia, 18
nov. 2003. Cidades, p. 01).
Temos aqui as primeiras manifestações contrárias à exposição, defendidas por
evangélico-pentecostais. Nelas já estão contidos os protótipos dos dois argumentos que iriam
encobrir as suas motivações identitárias (Batalha Espiritual) para oporem-se às representações
dos Orixás: a proximidade do Natal – festa de cunho cristão, o que delimitaria qualquer
manifestação festiva aos símbolos cristãos somente – e a confusão conceitual – decorrente das
lentes identitárias – que dotaram os evangélico-pentecostais de uma visão que igualava
completamente manifestações culturais e manifestações religiosas.
Se esses evangélicos postaram-se contrários à exposição por iniciativa própria ou
foram instruídos por seus líderes acerca do perigo espiritual que se escondia naquelas
imagens, não saberíamos precisar. Entretanto, cremos ser importante reconhecer nesta postura
de unanimidade ao combater a exposição os indícios da ação dos mecanismos simbólicos do
arcabouço identitário evangélico-pentecostal. Não podemos precisar quais seriam as
denominações as quais pertenciam o senhor Gilmar César ou a senhorita Helyenai de Castro,
mas, sua prontidão em oporem-se à exposição coaduna com a rapidez com a qual foram
levadas a cabo todas as providências midiáticas e políticas da comunidade evangélico-
pentecostal goianiense para suspender o “absurdo” da exposição.
Na mesma publicação do DM, em uma página seguinte, tem-se a postura da igreja
católica revelada no argumento do monge beneditino Marcelo Barros, o artigo é de Nilo
Bueno.
“No mundo de hoje, repleto de violências, é fundamental que as religiões
respeitem umas às outras e permitam que cada uma tenha o direito de existir
e ser diferente”, com essa declaração, o monge beneditino Marcelo Barros
defendeu, como forma de expressão religiosa e cultural, a exposição Orixás
da Bahia, do artista plástico Tatti Moreno, e que será inaugurada quinta-
feira, no Parque Vaca Brava. Desde domingo, quem passa pelo parque já
pode ver algumas das esculturas, que já estão sendo montadas (VIANA,
158
Ludmila. “Crenças têm que ser respeitadas”. Diário da Manhã, Goiânia, 18
nov. 2003. Cidades, p. 01).
Ao menos publicamente, a igreja Católica não tomou parte nas ações de contestação à
exposição. No Episódio Vaca Brava, sua voz seria ouvida apenas a certa distância segura,
num tom de gravidade respeitosa às religiões de matriz africana. Salvaguardava assim seus
interesses ao mesmo tempo em que desaprovava os evangélicos indiretamente através de seu
exemplo e sua postura ‘ecumênica’.
Transcrevemos adiante uma passagem da pesquisa de Carneiro (2004), na qual
resume, em alguns pontos, a posição católica perante as doutrinas “afro-brasileiras”
encontradas no livro do Frei Kloppenburg (1981). Nosso objetivo é colocar em perspectiva a
argumentação do monge.
1. “Não fomentar relações de amizade e de freqüente contato com adeptos de
seitas espiritualistas. O proselitismo que os anima é perigoso de contágio”.
2. “Não ajudar Centros ou Terreiros na manutenção material, financeira ou
moral de suas obras: Seria pecado de aprovação e cooperação com o mal”.
3. “Jamais e sob pretexto algum, mesmo em caso de doença, praticar magia,
evocação de espíritos ou consultar curandeiros, cartomantes ou pessoas
semelhantes: Seria sempre pecado grave de desobediência e revolta contra
Deus”.
4. “Rejeitar sempre a tentação de recorrer a despachos, passes, defumações ou
outros exóticos ‘remédios’: Seria pecado de Demonolatria”.
5. “Não pactuar, sob pretexto nenhum, nem para ‘fazer a caridade’, com o
demônio ou qualquer outro exu: Seria sempre grave pecado de
demonolatria”.
6. “Não fazer uso de meios supersticiosos, como figas, ferraduras, amuletos e
etc: Seria também dissimulado culto a Satanás” (KLOPPENBURG Apud
CARNEIRO, 2004).
Diante desses argumentos e sabendo que o livro de Kloppenburg recebeu o aval da
igreja Católica para ser publicado, perguntamo-nos sobre quais seriam as inclinações veladas
da igreja católica para não se opor à exposição. Como o presente estudo, todavia, não visa
perscrutar o íntimo das ações de católicos pautadas em sua identidade, deixamos os pontos
acima apresentados para que não se incorra no equívoco de se supor uma igreja que detivesse
uma visão mais “civilizada” em relação às evangélico-pentecostais, “bárbaras” em suas ações.
No caso, se ficarmos apenas com as palavras do monge Marcelo Barros, poderíamos pensar
daquela forma, acreditando que a igreja Católica seja essencialmente “melhor” do que as
evangélicas. O fato é que, no Episódio Vaca Brava, a igreja Católica desempenhou um papel
de espectadora, vez por outra se manifestando contra os evangélicos.
Em 19 de novembro foi publicado o artigo que se segue, de autoria de Ludmila Viana:
159
Cresce a polêmica em torno dos orixás expostos no Parque Vaca Brava. O
pastor Fábio Sousa, líder dos jovens do Ministério Comunidade Cristã,
organizou para hoje, às 18 horas, uma passeata no local, segundo ele, contra
suposta discriminação em relação às demais religiões. “A convocação é para
todos que estão sendo discriminados, independente da religião”, observa. O
pastor disse que os evangélicos estão insatisfeitos com as esculturas por elas
representarem deuses do candomblé. “Foi algo imposto. É uma idéia absurda
fazer esta exposição perto do Natal”. Por ser o Natal uma festa cristã, Fábio
Sousa acredita que deveriam ser expostos presépios e enfeites natalinos. Os
católicos já não assumem posição tão radical. De acordo com o padre Luiz
Lobo, da Catedral Metropolitana de Goiânia, o cristão tem de saber conviver
com outras realidades religiosas. “Não podemos condenar que outras
religiões ou expressões culturais tenham espaço. A cultura africana tem de
ser respeitada”, afirma (VIANA, Ludmila. Evangélicos não querem orixás.
Diário da Manhã, Goiânia, 19 nov. 2003. Cidades, p. 01).
Aqui, pode-se observar os dois argumentos chave utilizados na contestação da
exposição aparecendo simultaneamente. Esses simulam uma postura cidadã, posto que lançam
mão de um discurso pretensamente fundado em direitos, se não constitucionais, ao menos
consuetudinários, ou seja, fundados no consenso da tradição. É interessante notar que o pastor
Fábio Souza chega a defender a idéia de serem expostos presépios como enfeites. Uma das
características dos evangélico-pentecostais é sua aversão às imagens, sua teologia iconoclasta.
Sustentam tal postura baseados em várias passagens bíblicas e em sua tradição protestante
pentecostal. Citamos uma passagem bíblica para facilitar a compreensão sobre a literalidade
com a qual os evangélico-pentecostais interpretam o texto sagrado, versículo um do capítulo
vinte e seis do livro de Levítico, no Velho Testamento: “Não fareis para vós outros ídolos,
nem vos levantareis imagem de escultura, nem coluna, nem poreis pedras com figuras na
vossa terra, para vos inclinardes à ela; porque eu sou o Senhor, vosso Deus” (BÍBLIA de
Estudos Plenitude, 2001: 137). É muito revelador o desejo do pastor Fábio Souza de se
instalar presépios no lugar de estátuas de Orixás, pois vai de encontro a sua crença basilar de
repúdio às imagens.
Por que, então, trocar imagens de Orixá por imagens católicas? Porque os evangélicos
definem certo tipo de gradação de periculosidade espiritual a ser aplicada àqueles que não
compartilham com sua visão de mundo. Deste modo, um católico seria menos herético que
um espírita kardecista o qual, por sua vez, representa menor perigo ante a presença de um
reconhecido “macumbeiro”, seja umbandista ou candomblecista. Os símbolos litúrgicos do
catolicismo, por seu parentesco simbólico com os dos cultos evangélicos, são tidos como
menos malignos dentro de seu imaginário social. Podemos dizer que o pastor Fábio Souza
seguia a lógica do adágio popular “dos males, o menor”.
160
Para exemplificar esta gradação de periculosidade espiritual, analisemos rapidamente
o sentimento de familiaridade em relação ao catolicismo em escritos produzidos por
evangélicos. Segundo Elben M. Lenz César, em sua obra História da Evangelização do Brasil
(2000),
Grosso modo, é possível dividir a história da evangelização do Brasil em três
períodos distintos e naturais: nos séculos XVI, XVII e XVIII, os
missionários católicos cristianizaram o país; no século XIX, os missionários
protestantes evangelizaram o país; e, no século XX, os missionários
pentecostais pentecostalizaram o país (com o auxílio dos carismáticos
católicos). No início ocorreu a pré-evangelização, no século seguinte, a
evangelização propriamente dita e no último século, a pós-evangelização.
Em todo o mundo, o século XVI foi o grande século missionário católico, o
século XIX, o grande século missionário protestante e o século XX, o grande
século pentecostal (CÉSAR, 2000: 14-15. Grifos do autor).
O livro de César não possui caráter acadêmico, como o próprio autor nos faz saber no
início da obra. Deste modo, realizemos a leitura do trecho apresentado mediante o
conhecimento que se trata de um livro escrito por um evangélico, para evangélicos. Sua
mensagem é clara: os católicos tiveram um papel importante na cristianização do Brasil,
foram eles que prepararam o terreno para a chegada da “verdadeira” mensagem da salvação, a
mensagem evangélico-pentecostal. A primeira mensagem católica seria insuficiente para
formar um verdadeiro cristão, pois, como nos relata César (2000), entre os católicos,
Não havia vocação, não havia preparo e não havia moral. O clérigo era um
funcionário eclesiástico, sem preocupação com a evangelização, catequese e
conversão do povo. O sacerdócio era um meio de vida. Não podendo se
casar por causa da lei do celibato obrigatório, o sacerdote simplesmente se
juntava com uma escrava. Às vezes não havia falta de padres – o que faltava
era a santidade do ministro (CÉSAR, 2000: 56).
Na ótica de César, esse quadro iria mudar com a chegada de missionários protestantes
no século XIX: cristãos genuínos. O Brasil só poderia chegar à maturidade da fé com a
chegada dos primeiros pentecostais no início do século XX, estes sim cristãos completos.
Novamente, voltando nossa atenção ao artigo do DM, o discurso católico aparece
como apaziguador na figura do padre Luiz Lobo, da Catedral Metropolitana de Goiânia.
Reconhecendo o caráter cultural das manifestações artísticas inspiradas nos Orixás, o padre
não vê impedimento legal ou religioso à exposição. Cientes da fragilidade de sua
argumentação anterior e do comprometimento político que agora se instaurava – com uma
manifestação pública de repúdio convocada pelo pastor Fábio Souza –, a chamada “bancada
evangélica” se manifestou abertamente contrária aos Orixás, porém, usando de outros
161
argumentos, como foi publicado no DM do dia 20 de novembro, com artigo de autoria de
Fernanda Pulcineli.
[…] Também evangélicos, Bispo Walter Inácio (PL) e Lívio Luciano (PTN)
criticam a exposição, mas têm outro argumento: de que houve impedimentos
da Prefeitura de Goiânia a atos de suas igrejas no parque. “A liberdade de
culto deve ser garantida, mas nos sentimos discriminados porque não nos
deram o mesmo espaço”, diz o bispo. Membro da Igreja Universal do Reino
de Deus, ele conta que a Videira tentou realizar o “Batismo dos 3 mil” no
local e foi proibida pela Secretaria Municipal de Meio Ambiente (Semma)
(PULCINELI, Fabiana. Polêmica na Assembléia: evangélicos protestam
contra exposição no Parque Vaca Brava. Diário da Manhã, Goiânia, 20
nov. 2003. Política, p. 05).
A tese defendida pelos políticos evangélicos era a manutenção equitativa da liberdade
de culto, liberdade esta que não havia sido respeitada na medida em que se liberava o espaço
público do parque para uma religião e não para outra. Este argumento é um desdobramento
daquele anterior, que via nas estátuas, não um artefato artístico, mas, antes, uma manifestação
religiosa. É pertinente, neste momento, apresentar um breve histórico destas estátuas.
Partindo da dissertação de Bruno M. N. Reinhardt, Espelho Ante Espelho: A Troca e a
Guerra Entre o Neopentecostalismo e os Cultos Afro-Brasileiros em Salvador (2006), que
trabalha o embate da IURD contra o Candomblé em Salvador, encontramos uma primorosa
análise da questão do Tororó, um parque lacustre análogo ao Vaca Brava goianiense, primeira
morada das estátuas.
Relatando a história do Dique do Tororó, Reinhardt conclui que, em 1998, além de ser
recuperado pela prefeitura da cidade, nele foram instaladas as estátuas de doze Orixás,
No entanto, junto com os Orixás, também se instala uma polêmica, que se vê
ampliada com a organização, por parte de setores do segmento evangélico,
de uma série de manifestações contrárias à sua permanência naquele lugar.
Esse debate, rapidamente disseminado pela opinião pública, realizou-se
através de dois argumentos centrais. Por um lado, ocorre uma série de
passeatas, críticas publicadas em jornais e medidas políticas, como a
mobilização de vereadores evangélicos, que se colocam contra as imagens
por verem nelas um acinte à “liberdade de crença”. Por outro lado, e dando
um tom mais mágico e jurídico ao debate, começam uma série de rumores
referentes aos poderes diabólicos daquelas representações, cuja presença
teria transformado o dique em um lugar dominado pelo mal (REINHARDT,
2006).
As imagens dos Orixás já traziam consigo toda uma vivência de perseguição desde seu
berço, em Salvador. A postura dos políticos goianienses foi análoga àquela assumida pelos
políticos soteropolitanos. Um posicionamento que parte de uma cabal confusão entre cultura e
religião. Segundo Scaramal (2007), no panteão nagô não se adoram imagens, posto que os
162
Orixás sejam forças da natureza. Tais forças estão materializadas em elementos que
representam cada Orixá e são recolhidas em um recipiente denominado igbá. Assim, se o
orixá a ser “assentado” é, por exemplo, Iemanjá, os elementos que comporão o igbá serão
conchas marinhas, pedras transparentes, seixos e sangue dos animais oferendados ao Orixá.
Este igbá não é uma representação, é uma materialização de Iemanjá. É a ele que o adepto do
candomblé prestará homenagens, reverências, preces e obrigações, e não à imagem em
quadros ou estátuas.
Para Scaramal (2007), a imagem popularizada de Iemanjá como mulher alta, magra,
branca, pairando sobre as águas do mar, não corresponde absolutamente à Iemanjá do
Candomblé. A referida imagem pode até ser encontrada para adoração em altares da
Umbanda, mas nunca no Candomblé, posto que, conforme afirmado anteriormente, no
candomblé não há o culto de adoração a imagens. Portanto, as estátuas dos orixás eram
compreendidas pelos candomblecistas e umbandistas como nada mais do que representações
artísticas, despossuídas de axé – a força primordial que move o mundo mágico dos nagôs.
Ou seja, se fossem realmente conhecidos os fundamentos das religiões de matriz
africana e os fundamentos das religiões afro-brasileiras, não teriam, os evangélico-
pentecostais, confundido estátuas de puro valor artístico, inspiradas no panteão nagô, com
objetos de culto do Candomblé. Cremos que este tipo de confusão tenderá a deixar de existir à
medida que a disciplina história da África avance nas escolas brasileiras com a
implementação da lei 10.639/2003 modificada pela lei 11.645/2008.
O equívoco conceitual que reduziu o conceito de cultura ao de religião, equívoco este
incorrido pelos fieis seguidores do crucificado, decorre do fato de julgarem a remanescente
cultura imaterial africana filtrada por meio de suas representações coletivas. Tal filtro faz com
que a cataloguem dentro de seu imaginário próprio como efetivamente diabólicas. Temos,
ainda no DM do dia 20, a publicação das seguintes palavras do pastor Fábio Sousa que ainda
ecoam o equívoco conceitual, por Renata Barros.
Segundo o representante do movimento, pastor Fábio Sousa, do Ministério
Comunidade Cristã, os orixás estão ofendendo e discriminando os cristãos.
“Essas peças incitam à violência. O espaço aqui nunca foi liberado para
nós”, reclamou. Com o fim do manifesto, o pastor César Augusto, também
do Ministério Comunidade Cristã, disse que as igrejas voltarão a se
manifestar na segunda-feira. “Acho que cada religião deveria poder
manifestar sua liberdade já que estamos em um País democrático”
(BARROS, Renata. Religiosos à beira de confronto. Diário da Manhã,
Goiânia, 20 nov. 2003. Política, p. 05).
163
Exemplificando o profundo desconhecimento da cosmogonia das religiões de matriz
africana e os fundamentos das religiões afro-brasileiras, o pastor César Augusto, como
articulista do DM às quintas-feiras, teve espaço para fazer publicar suas seguintes palavras:
Estamos vivendo em um País livre. Alcançamos um nível satisfatório de
liberdade de opinião e de expressão. Mas vale lembrar o alto preço que foi
pago para que pudéssemos desfrutar disso hoje. Expressamos livremente
nosso pensamento e nossos valores pessoais por causa das lágrimas
derramadas por nossos pais e pela luta que as gerações passadas tiveram que
travar para alcançar tal posição de liberdade. A luta contra a ditadura não se
deu só no âmbito político. Nossos valentes irmãos brasileiros lutaram
também para que seus filhos pudessem ser livres para professarem sua fé
religiosa e para poderem livremente emitir suas opiniões. Mas o preço pago
teve suas conquistas. A democracia foi consolidada e o Brasil, com isso,
alcançou a legitimação de sua multidiversidade cultural e religiosa. O Brasil
é o país dos católicos, dos evangélicos, dos afro-religiosos, dos espíritas, dos
esotéricos. Acredito não existir um país com tanta diversidade cultural
religiosa. Vejo também que não existe outra nação onde a população conviva
tão harmoniosamente com as diferenças. O brasileiro convive bem com seus
irmãos de qualquer religião. Podem haver algumas críticas de um sistema
religioso contra o outro, mas o cidadão brasileiro coloca essas diferenças
sempre em segundo plano. Basta ser brasileiro. Por causa desse sentimento
de igualdade democrática que sabemos existir no Brasil, em Goiás e em
Goiânia, é que ficamos indignados com a exposição dos monumentos aos
orixás no Parque Vaca Brava. Não criticamos de forma alguma as religiões
afro-brasileiras que professam culto a estas entidades. O nosso repúdio é
contra a discriminação que os católicos, espíritas kardecistas, evangélicos,
budistas e islâmicos estão sofrendo de forma indireta com a colocação das
estátuas no parque. Um local público não deve ser palco de uma
representação cultural que expresse a identidade religiosa de apenas uma
parcela de nossa sociedade. Até porque a época é de comemoração da festa
mais importante do mundo cristão: o Natal. Não estamos aqui para
polemizar a questão, mas para aproveitar o momento para discutir nossos
conceitos culturais. A cultura afro-religiosa sempre foi bem vista pelos
intelectuais como uma das maiores representantes da cultura brasileira. Mas
o que os intelectuais esquecem de considerar é que a cultura é feita, em
primeiro lugar, de manifestações que nascem na alma popular. Ora, a cultura
nasce no coração do povo; o que será que nossa cidade queria ver exposto no
Parque Vaca Brava neste fim de ano? O que está no coração dos
goianienses? Culturalmente, os orixás não são manifestações genuinamente
goianas. Nossa goianidade está nas cavalgadas, nas folias de reis, na festa
do divino pai eterno, na procissão do fogaréu, nas catiras. Nossa história
cultural não recebeu grande influência da cultura afro-religiosa, como, de
forma clara e evidente, podemos notar em outros Estados como a Bahia, por
exemplo. Também é preciso lembrar aos intelectuais da cultura que do ponto
de vista religioso, Goiânia é uma cidade radicalmente cristã. A maioria é
católica e expressivos 30% da população, segundo o último censo do IBGE,
professam religiões evangélicas. Nosso povo não foi consultado se queria ou
não receber a exposição a que estamos nos referindo. Que atitudes como esta
não venham a manchar nossos padrões de liberdade de expressão e opinião,
que, como já citamos, foi conquistado com lágrimas e muita luta. Fica aqui a
pergunta: o que será que o coração do povo goiano gostaria que estivesse no
lugar daqueles orixás? (MACHADO, César Augusto. Diga não à
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discriminação cultural. Diário da Manhã, Goiânia, 20 nov. 2003. Política,
p. 05).
O conteúdo desta carta é rico em elementos interessantes para análise, ainda mais por
se tratar de uma comunicação redigida pelo líder máximo do Ministério Fonte da Vida,
segmento evangélico que conta com uma das maiores membresias de Goiânia.
Acompanhando as passagens por nós marcadas em itálico, podemos depreender do texto
elementos que demonstram que o pastor se inscreve nos efetivos da Batalha Espiritual.
O pastor César Augusto, eufemisticamente, designa a Batalha Espiritual empreendida
contra as religiões de matriz africana como sendo, de fato, algumas críticas de um sistema
religioso contra o outro. Estas “críticas”, no entanto, possibilitaram a reunião, no dia 19, de
cerca de quinhentas pessoas, segundo o DM, que não davam mostras de vivenciarem o tal
“sentimento de igualdade democrática”, tão caro ao pastor. Em segundo lugar, o pastor julga
amenizar a situação produzida pela perseguição ao fazer menção a uma suposta “brasilidade”,
evocada na referência à designação “cidadão brasileiro” como um ponto chave por meio do
qual as tensões produzidas pela perseguição àqueles que não são evangélicos seriam reduzidas
a pequenas querelas entre irmãos que dividem o mesmo teto. A linha argumentativa do pastor
pretende urdir as motivações espirituais para resistir à exposição dos Orixás.
Adiante em seu texto, César Augusto continua por sustentar uma postura conceitual-
teológica que mescla cultura e religião ao defender que “um local público não deve ser palco
de uma representação cultural que expresse a identidade religiosa de apenas uma parcela de
nossa sociedade”. Uma coisa é o sistema teológico das religiões de matriz africana, outra
completamente diversa é a metafísica desenvolvida pelas sociedades africanas que levavam
em consideração elementos valorativos que se fundavam, em muitos casos, em características
e virtudes vinculadas a imagem conceitual de um Orixá, Vodum ou Inquice: deuses e
divindades arquetípicas presentes no dia-a-dia dos indivíduos.
Como estudar a antiga política dos gregos clássicos sem entender quais eram as leis e
relações que fundamentavam o trato entre Zeus e os outros deuses do panteão grego? Não
eram estas relações, pois, metáforas possíveis, pontes e chaves para compreensão do mundo
dos próprios homens gregos de outrora? Da mesma forma, o conhecimento dos Orixás não se
reduz a um estudo fracionado dos homens africanos. Pelo contrário, o Orixá configura-se num
canal discursivo que dá acesso a distintas dimensionalidades da vida antes da diáspora negra.
Como compreendiam as relações com seu meio ambiente e com os outros homens nos níveis
econômico, territorial, religioso, são apenas alguns exemplos da versatilidade do Orixá como
chave de compreensão do mundo africano (iorubá) anterior e posterior a diáspora. Ou seja,
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reduzir a idéia de um Orixá a uma realização apenas religiosa é cometer um erro crasso, fruto
da incompreensão histórica que sofreram as populações africanas e afro-descendentes no
Brasil.
As estátuas dos Orixás expostas em Goiânia, assim, indicavam uma realidade muito
superior à apenas uma dimensão religiosa. Elas assinalavam o mais alto grau de abstração
lógica, como, também, mito-poética, alcançada por impérios e reinos africanos pré-diáspora.
César Augusto aparentemente não compreendia isso, pois, seu julgamento, limitado e guiado
pelas arestas do arcabouço identitário evangélico-pentecostal, não poderia aceitar
passivamente o avanço do “Reino das Trevas” em território público. A Batalha Espiritual,
mesmo que dissimulada em argumentos terrenos, não deixa de prover sentido à vida do
verdadeiro cristão.
Um último ponto no texto de César Augusto,
Culturalmente, os orixás não são manifestações genuinamente goianas.
Nossa goianidade está nas cavalgadas, nas folias de reis, na festa do divino
pai eterno, na procissão do fogaréu, nas catiras. Nossa história cultural não
recebeu grande influência da cultura afro-religiosa, como, de forma clara e
evidente, podemos notar em outros Estados como a Bahia, por exemplo
(MACHADO, César Augusto. Diga não à discriminação cultural. Diário
da Manhã, Goiânia, 20 nov. 2003. Política, p. 05).
O que podemos então dizer do fato de, historicamente, só existirem apenas três
irmandades de negros no Brasil, uma em Salvador, outra em Paracatu e outra em Goiás: a
irmandade de Nossa Senhora dos Pretos? Ou então, o que dizer da ancestralidade de nossa
Congada? E quanto às comunidades quilombolas goianas, remanescentes do tempo dos
grilhões e da chibata? Podemos fazer menção, ainda, à Cidade de Goiás, erigida por músculos
e inventividade negra. O que dizer ante tais elementos elencados? Nossa “goianidade” não
possui elementos derivados da “cultura afro-religiosa”? Definitivamente a resposta será
negativa se escolhermos quais elementos culturais iremos utilizar para defender uma idéia
preconceituosa. Não, se realizarmos uma “eugenia histórica” com o intuito de menosprezar a
presença dos segmentos negros. Mas se com probidade e respeito nos voltamos para a história
do Estado de Goiás, vemos claramente quão presentes estiveram e estão os homens e
mulheres negros na constituição do modo de ser, rezar, comer e falar do povo goiano.
Em continuidade, apresentamos e discutimos dois textos publicados no dia vinte e um
de novembro de 2003.
Pastores vão ao prefeito, de autoria de Ludmila Viana.
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A exposição Orixás da Bahia, do escultor baiano Tatti Moreno, que foi
inaugurada ontem, dia da Consciência Negra, no Parque Vaca Brava,
continua a gerar polêmica. Vinte pastores evangélicos marcaram para
segunda-feira, às 17 horas, uma reunião com o prefeito Pedro Wilson. O
objetivo, segundo o pastor Fábio Sousa, do Ministério Comunidade Cristã, é
que as obras de arte sejam retiradas do local: “Queremos que as retirem de
lá, ou que haja representação de todas as religiões.” Fábio foi o organizador
da manifestação contra as esculturas, ocorrida anteontem, e que levou cerca
de 500 pessoas ao parque. Para ele, as esculturas representam o candomblé e
afirma que nem todos os negros são desta religião, pois há pastores negros
também. “Estão querendo impor uma religião aos afro-brasileiros e a todos
os goianienses, e isto não pode existir.” O pastor Jocíder Corrêa Batista, da
Igreja Presbiteriana da Vila Nova, não acredita que os evangélicos estejam
sendo racistas, por se tratar de uma discussão claramente religiosa. “Sou
contra a utilização de terreno público para privilegiar o candomblé”, afirma.
(...) Jocíder pensa que a cultura afro poderia ser divulgada de outra forma,
como por meio de museus. Ele reforça que está havendo propaganda da
religião, o que abre precedente para as demais se manifestarem. “Não
rejeitamos a cultura negra, mas a proposta religiosa do culto afro.” Exagero
– O monsenhor João Daiber, vigário-geral da Arquidiocese de Goiânia, diz
que é preciso viver o respeito entre as religiões. Ele não vê necessidade de as
esculturas serem retiradas do Vaca Brava. “Há exagero, pois os orixás
representam uma cultura.” Daiber questiona o motivo dos evangélicos
estarem tão incomodados com as esculturas: “E os presépios? Todo Natal há
esse tipo de imagem no parque e eles nunca se manifestaram contra.” O
presidente da Federação Espírita do Estado de Goiás, Weimar Muniz,
também não acha que os orixás devam ser retirados do local. “Temos que
respeitar nossos semelhantes, sobretudo no campo religioso, embora
pensemos de formas diferentes”, afirma. E acrescenta: “Não se pode
esquecer que a liberdade religiosa é garantida pela Constituição federal.
Cada um deverá responder pelos atos ilícitos que praticar.” O sacerdote da
Casa Alan Buru (do candomblé), Elmo Rocha, se diz assustado com o
retrocesso histórico em questão. “É alienação racista, com elementos
preconceituosos. É uma forma de instigar uma guerra santa.” Ele ressalta o
caráter cultural da exposição e a importância de se valorizar a etnia negra. “É
muita falta de informação e de cultura por parte dos evangélicos que querem
a retirada dos orixás”, revolta-se (VIANA, Ludmila. Pastores vão ao
prefeito. Diário da Manhã, Goiânia, 21 nov. 2003. Cidades, p. 06).
Inauguração de orixás sem a presença de Pedro Wilson, de autoria de Ivair Lima.
O prefeito Pedro Wilson não compareceu ao Parque Vaca Brava na noite de
ontem para a esperada inauguração formal da exposição das estátuas de oito
orixás criadas pelo artista plástico baiano Tatti Moreno. O autor das
esculturas, assessores de Pedro Wilson, artistas e representantes de entidades
que integram o movimento negro em Goiás lotaram o mirante do Parque
Vaca Brava. As luzes que iluminam os orixás foram acesas, sob aplausos, às
20h30. A colocação das estátuas dos deuses africanos no lago do Parque
Vaca Brava continua gerando discussões. O casal de comerciantes João
Pedro, 49, e Luzia de Fátima, 44, criticaram duramente a exposição. “Para
mim, isso não significa nada. Ouvi no rádio que custou 60 mil reais. Seria
muito melhor comprar comida para as crianças”, afirmou João Pedro. Luzia,
que é católica, disse que a exposição “não combina com a decoracão de
Natal e não tem nada a ver.” A artista plástica Luciane Ucella, 29, achou as
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estátuas “lindas demais” e foi de máquina fotográfica em punho registrar as
imagens iluminadas. “Vi durante o dia e gostei demais”, disse. Para Luciane
Ucella, “quem critica a exposição não entende que, mais do que representar
uma religião, elas são símbolos da cultura de um povo” (LIMA, Ivair.
Inauguração de Orixás sem a presença de Pedro Wilson. Diário da
Manhã, Goiânia, 21 nov. 2003. Última Hora, p. 02).
O primeiro texto nos informa uma reordenação do “campo de batalha”. Percebe-se que
os evangélicos instavam com os mesmos argumentos pretensamente cidadãos já apresentados
anteriormente, argumentos cuja força retórica não se mostrou muito convincente, dada a não
suspensão da exposição. Os católicos continuavam em sua posição de afastamento respeitoso.
Nota-se que monsenhor João Daiber, vigário-geral da Arquidiocese de Goiânia, levanta a
razão da não contestação, por parte dos evangélicos, contra os presépios que todos os anos
eram expostos no parque. Sua tendência iconoclasta foi posta à prova por um dos mais
clássicos instrumentos do Inimigo Espiritual, os católicos, que, não sem certa ironia, jogava
com as contradições do discurso evangélico-pentecostal.
O presidente da Federação Espírita do Estado de Goiás, Weimar Muniz, também
sustentava uma postura contrária à dos evangélicos, enquanto o sacerdote da Casa Alan Buru
(de Candomblé), Elmo Rocha, estava pasmo diante de tamanha incompreensão e perseguição.
O segundo texto é especialmente significativo. Nele estão contidos os
posicionamentos de duas pessoas que partilhavam da postura de boa parte da membresia
católica. Apresento novamente seus depoimentos:
O casal de comerciantes João Pedro, 49, e Luzia de Fátima, 44, criticaram
duramente a exposição. “Para mim, isso não significa nada. Ouvi no rádio
que custou 60 mil reais. Seria muito melhor comprar comida para as
crianças”, afirmou João Pedro. Luzia, que é católica, disse que a exposição
“não combina com a decoração de Natal e não tem nada a ver” (LIMA, Ivair.
Inauguração de Orixás sem a presença de Pedro Wilson. Diário da
Manhã, Goiânia, 21 nov. 2003. Última Hora, p. 02).
Destoando de seus líderes, boa parte dos católicos, ou não se interessava pelos
assuntos entre “crentes” e “macumbeiros”, ou não levava em consideração os valores artístico
e humano embutidos nas estátuas. Não compreendiam que tal exposição objetivava a
valorização de um segmento historicamente subalternizado na sociedade brasileira. Seus
comentários são indicativos deste descaso. Conforme escreveu Renato Russo, “é o descaso
que condena”. O poeta entendeu que uma das características do “homem cordial brasileiro”,
nos termos como o concebe Sérgio Buarque de Holanda (1995), é sê-lo – atuar cordialmente –
apenas na aparência, tratando com leviandade seu outro.
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Agora, quanto à questão política que esteve fortemente presente durante todo o
decurso do Episódio Vaca Brava, não teremos meios para empreender um aprofundamento
mais comprometido. Deixaremos este trabalho para uma obra posterior. Aqui, nos
contentaremos em apresentar as conseqüências políticas para Pedro Wilson (PT).
“O prefeito Pedro Wilson não compareceu ao Parque Vaca Brava na noite de ontem
para a esperada inauguração formal da exposição das estátuas de oito orixás criadas pelo
artista plástico baiano Tatti Moreno” (LIMA, Ivair. Inauguração de Orixás sem a presença
de Pedro Wilson. Diário da Manhã, Goiânia, 21 nov. 2003. Última Hora, p. 02). Pressionado
pela postura marcial dos evangélicos, o então prefeito de Goiânia, Pedro Wilson, preferiu não
comparecer à inauguração da exposição. No DM do dia seis de janeiro de 2004 foi publicado
um artigo de Neilton Gomes Carneiro contendo as seguintes palavras:
Veja só o leitor como a política nos surpreende. O prefeito Pedro Wilson
continua candidato forte à reeleição, mas perdeu pontos com a cúpula dos
partidos porque algumas pesquisas apontam rejeição alta, aprovação baixa e
conceito ruim. Deixou, por enquanto, de ser a noiva da vez. Os caciques
ficaram de orelha em pé com os últimos levantamentos e querem sondar
melhor o inconsciente popular para saber a extensão dos estragos
provocados na imagem do prefeito pela crise no transporte, pela lentidão do
governo e pela exposição dos orixás no Parque Vaca Brava. Pesquisa
encomendada por petistas revela que Pedro perde intenção de votos desde
que resolveu peitar os evangélicos e manter a exposição, sob o argumento de
que os orixás eram uma manifestação cultural, não religiosa (CARNEIRO,
Neilton Gomes. Veja só como é a política. Diário da Manhã, Goiânia, 06
jan. 2003. Política, p. 04).
Tempos mais tarde, lutando para elevar sua imagem durante a campanha à reeleição,
Pedro Wilson tentou uma aproximação estratégica dos evangélicos. É importante ressaltar que
seu concorrente para o segundo turno foi o evangélico Íris Rezende (PMDB). Como nos relata
o DM do dia dezenove de outubro de 2004, não pudemos precisar o autor do artigo:
O diálogo a que Pedro se propõe envolve até mesmo o segmento evangélico,
que deve receber pedido de desculpas no próximo sábado, em um showmício
a ser realizado em local ainda não definido. O comando da campanha do
petista traz a Goiânia o grupo musical Diante do Trono, cujo talento é
reconhecido nacionalmente. No palanque, o prefeito pretende se desculpar
por ter permitido a exposição de esculturas de orixás – símbolos do
candomblé – no Parque Vaca Brava em novembro do ano passado. O fato
gerou polêmica e no seu discurso, Pedro deve dizer que em sua próxima
gestão, caso eleito, episódios semelhantes não irão ocorrer, visto que haverá
consulta prévias à diversas entidades. A estratégia também visa buscar votos
dos fiéis, que simpatizam com Iris Rezende, também evangélico
(MARQUES, Thiago. Diálogo aberto. Diário da Manhã, Goiânia, 19 out.
2004. Política, p. 05).
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Não podemos afirmar com exatidão a extensão dos “estragos” causados pelo Episódio
Vaca Brava sobre a imagem do prefeito, porém, é fato que ele não saiu vitorioso no embate
eleitoral. O evangélico Íris Rezende venceu nas urnas. No dia 26 de outubro, dias antes da
eleição, quando o segundo turno seria decidido, o pastor César Augusto teve, como articulista
do DM, espaço para publicar um artigo intitulado: “Deus não vota, mas...”. Como podemos
perceber apenas pelo título, o texto é bem significativo. O pastor interpretava a ascensão de
Íris Rezende em detrimento de Pedro Wilson como diretamente ligada à sua postura
permissiva acerca da exposição.
Voltemos nossa atenção para o texto da pastora Sandra Cardoso Miranda, publicado
no jornal Diário da Manhã no dia 22 de novembro de 2003, cujo título é O Sentido da Cultura
e o Fundamento Espiritual. A pastora da Igreja da Paz da Serrinha, em seu artigo, realizou
plenamente a identidade evangélico-pentecostal ao expor as motivações espirituais para barrar
a exposição dos Orixás: a Batalha Espiritual. Acompanhando sua argumentação podemos
pontuar os momentos onde o imaginário social evangélico-pentecostal irrompe, obliterando o
discurso da cidadã Sandra Cardoso. O texto que se segue foi produzido como uma resposta à
comunidade goianiense que não aprovava a ação de perseguição empreendida pelos
evangélicos à exposição dos Orixás no lago Vaca Brava.
A oposição dos evangélicos quanto à exposição dos “Orixás da Bahia”, do
escultor baiano Tatti Moreno, no Parque Vaca Brava, tem um fundamento
espiritual que merece ser explicado à população e principalmente ao
secretário Municipal de Cultura e Turismo, Sandro di Lima. Segundo o
secretário, “a amostra dos mitos da cultura africana tem caráter puramente
artístico e cultural e a tolerância é uma virtude de paz que deve ser
cultivada”. Pois bem, como cidadãos, compreendemos perfeitamente o
direito à liberdade de culto, mas como evangélicos, entendemos que esta
exposição, além do seu significado natural (artístico e cultural), tem também
uma influência espiritual por trás. A palavra cultura tem como significado
básico a formação do homem: práticas, teorias, valores espirituais e
materiais. O produto dessa formação constitui o conjunto dos modos de
viver e de pensar cultivados. Podemos dizer então que toda cultura tem como
pano de fundo a religião e os costumes espirituais cultivados pelos diferentes
povos. O candomblé significa um culto africano pagão trazido para a Bahia.
Cerimônias em que se homenageiam os orixás que, para a cultura africana,
são deuses, seres espirituais que interferem na vida dos homens aqui na
Terra. No Salmo 96:5 há uma declaração definida a respeito dos deuses
pagãos: “Porque todos os deuses dos povos não passam de ídolos”, ou seja,
demônios na roupagem de um deus. Então, os espíritos vivem na “esfera
espiritual”, através da qual tentam influenciar o mundo visível. Nesta esfera
espiritual está o trono de Deus e os seus anjos no mais alto nível e as forças
hostis ocupando o baixo nível. Todo candomblista ou umbandista sabe que
os orixás são seres espirituais que possuem personalidade e inteligência; em
seus cultos, objetos são consagrados a eles em rituais especiais como, por
exemplo, as roupas e as ferramentas (coroa, cajado, espelho, machadinha,
170
punhal...) usadas pelos filhos-de-santo nos cultos, bem como as comidas
oferecidas a eles nos assentamentos. Então, os espíritos passam a tomar
posse desses objetos, fazendo deles sua propriedade ou, dependendo do
objeto, como amuletos e talismãs, estes são transformados em habitações de
espíritos “protetores”. Esses tipos de crenças vêm cooperar para dar abertura
a influências demoníacas nas vidas das pessoas. Os devotos geralmente
desenvolvem um relacionamento orgânico (corporal) com os espíritos que
tomam posse desses objetos. E as pessoas que nada têm a ver com esses
objetos, que os demônios tomaram posse por direito, também podem ser
atingidas pela presença maligna deles. As esculturas expostas no Parque
Vaca Brava estão em oposição à vontade de Deus claramente descrita nas
Sagradas Escrituras: “Não fareis para vós outros ídolos, nem vos levantareis
imagem de escultura, nem coluna, nem poreis pedras com figuras na vossa
terra, para vos inclinardes à ela; porque eu sou o Senhor, vosso Deus.”
(Levítico 26:1). E “voltarão para ali (para a cidade) e tirarão dela todos os
seus ídolos detestáveis e todas as suas abominações” (Ezequiel11: 18). Ao
contrário do que afirmam alguns intelectuais, não é por sermos medíocres,
preconceituosos ou ignorantes que nos opomos à exposição e culto dessas
estátuas. Assim procedemos por termos conhecimento espiritual com bases
bíblicas. Protestamos porque temos a responsabilidade de defender nossa
cidade das forças do mal. Como está escrito em Mateus 22:29: “Errais, não
conhecendo as escrituras, nem o poder de Deus”. Nossa Capital é formada
por uma população com várias crenças religiosas, cada qual com a sua
liberdade de culto e vivemos em harmonia. Porém, uma exposição como esta
é agressiva. É como se o candomblé estivesse sendo imposto sobre a cidade
na figura de gigantescos ídolos. A questão para nós não é meramente cultural
ou artística, mas espiritual, pela influência que essas imagens exercem
negativamente sobre Goiânia, um espaço que lutamos, sempre, para ser
expressão da morada da paz, do amor, da vida e da santa presença de Deus
(MIRANDA, Sandra Cardoso. O sentido da cultura e o fundamento
espiritual. Diário da Manhã, Goiânia, 22 nov. 2003. Cidades, p. 03. Grifos
nossos).
Logo no início do artigo, Sandra escreve que a exposição tem um fundamento
espiritual que merece ser explicado à população. Observa-se que no discurso da pastora, a
identidade evangélico-pentecostal se sobrepõe à identidade da cidadã. Vimos como o
evangélico-pentecostal se refere a esta realidade física – o “mundo” – que, em verdade, não
passa de uma projeção do mundo espiritual: o mundo físico está inserido em seu contraponto
espiritual que o contém e que se insinua sutilmente em objetos – estátuas, por exemplo –,
eventos ou seres. Os fieis têm por certo que o mundo físico possui valor secundário em
relação ao espiritual por ser aquele definidor deste. Uma das passagens bíblicas preferidas
para sustentar esta concepção está na epístola de Paulo aos Efésios, capítulo 6, versículo 12:
“porque não temos que lutar contra carne e sangue, mas, sim, contra os principados, contra as
potestades, contra os príncipes das trevas deste século, contra as hostes espirituais da
maldade, nos lugares celestiais”.
Deste modo, a pastora compreende possuir um conhecimento necessário à vida que vai
além do repertório de saberes utilizados no dia-a-dia pelos cidadãos comuns. Exatamente por
171
ter acesso a um pretenso “conhecimento espiritual com bases bíblicas” estariam os
evangélico-pentecostais munidos com o aval, senão legal, ao menos espiritual, que lhes
confere autoridade, ou, antes, a obrigação de explicar à população o que realmente se passava.
Já demonstramos que uma das bases nas quais se assenta a identidade evangélico-
pentecostal é o cumprimento da “Grande Comissão”, ou seja, a pregação do evangelho.
Disseminar este conhecimento espiritual revelado é uma forma de levar a “boa-nova”, pois, se
o Mundo está repleto de forças malignas preparadas para liquidar a alma humana, há, em
contrapartida, a força dos evangélicos, única capaz de fazer frente ao Mal.
Prosseguindo em sua argumentação, a pastora, preparando o terreno para apresentar-se
espiritualmente, sustenta: “Pois bem, como cidadãos, compreendemos perfeitamente o direito
à liberdade de culto, mas como evangélicos, entendemos que esta exposição além do seu
significado natural (artístico e cultural), tem também uma influência espiritual por trás”.
A pastora deixa claro que existe a distinção identitária, e mais, está ciente dela ao
optar por deixar de lado a opinião da cidadã. Na economia das identidades, pesando os
interesses que movimentam sua vontade e dirigem sua ação, vemos o papel de evangélica
subsumir o de cidadã. A identidade evangélico-pentecostal canibaliza as demais. Sandra
Cardoso enfatiza a questão espiritual que gira em torno do está “por trás” da exposição.
Percebe-se que ela incorre de forma clara na errônea equiparação conceitual-teológica entre
cultura e religião no trecho no qual sustenta que “podemos dizer então que toda cultura tem
como pano de fundo a religião e os costumes espirituais cultivados pelos diferentes povos”.
Sobre tal imprecisão epistemológica, tomamos por base a análise do “Dicionário Básico de
Filosofia” de Hilton Japiassú e Danilo Marcondes (1996).
[…] a cultura praticamente se identifica com o modo de vida de uma
população determinada, vale dizer, com todo o conjunto de regras e
comportamentos pelos quais as instituições adquirem um significado para os
agentes sociais e através dos quais se encarnam em condutas mais ou menos
codificadas. Num sentido mais filosófico, a cultura pode ser considerada
como um feixe de representações, de símbolos, de imaginário, de atitudes e
referências suscetível de irrigar, de modo bastante desigual, mas
globalmente, o corpo social (JAPIASSÚ & MARCONDES, 1996: 61).
Para o termo religião, o mesmo dicionário nos dá a definição abaixo:
Em seu sentido geral e sociocultural, a religião é um conjunto cultural
suscetível de articular todo um sistema de crenças em Deus ou num
sobrenatural e um código de gestos, de práticas e de celebrações rituais;
admite uma dissociação entre a “ordem natural” e a “ordem sacral” ou
sobrenatural. Toda a religião acredita possuir a verdade sobre as questões
172
fundamentais do homem, mas apoiando-se sempre numa fé ou crença
(JAPIASSÚ & MARCONDES, 1996: 234).
Ou seja, nos termos de Japiassú e Marcondes (1996), o que a pastora realizou,
acompanhada de seus “irmãos” de fé, foi uma inversão funcional dos conceitos. Enquanto os
autores do dicionário nos mostram que a religião está contida na cultura, a pastora concebe a
cultura como reduzida à religião. Cremos que a discussão acerca da natureza dos Orixás feita
acima seja suficiente, ao que se propõe este capítulo, para desconstruir este falso argumento.
Continuando na análise do texto da pastora, observamos uma tentativa de conceituação
do que viria a ser o Candomblé. Ao utilizar a construção “culto africano pagão trazido para a
Bahia”, a pastora acredita ter sanado seus problemas primários com seu interlocutor.
Porém, é explícita a imprecisão e a falta de profundidade com as quais aborda esta
religião de matriz africana. O uso do termo “pagão” em seu texto decorre mais do valor
pejorativo que este assumiu, com o passar dos séculos, entre os fiéis cristãos, do que pelo seu
designativo “não cristão”. Pagão vem do latim paganus que significa camponês, ou seja, faz
menção a religiosidade, extremamente ligada à natureza, que era praticada pelos cidadãos das
zonas rurais do império romano quando da imposição do cristianismo como religião oficial.
Na tentativa de conceituar o que viria a ser este “culto pagão”, o Candomblé, a pastora acaba
lançando mão de um artifício que, como apresentamos no capítulo segundo, consta entre os
elementos constitutivos do arcabouço identitário evangélico-pentecostal: o Biblicismo. Ela
nos remete ao texto bíblico para fundamentar sua visão. Este movimento de busca de apoio
nos textos do Velho ou do Novo Testamento deriva de sua crença – ponto comum entre todos
os evangélico-pentecostais – de que a Bíblia é um livro infalível na explicação de tudo
concernente aos humanos.
Baseando-se no texto bíblico e ecoando a tradição de perseguição à cultura de matriz
africana, a autora do artigo comete outra inversão preconceituosa, enxerga nos Orixás
“demônios na roupagem de um deus”. Em suas elucubrações fantasiosas, lemos que “então,
os espíritos vivem na 'esfera espiritual' [nada mais justo!], através da qual tentam influenciar o
mundo visível”. Novamente, encontramos a dicotomia mundo físico/mundo espiritual.
Contudo, agora ela aparece guarnecida de uma explicação que a justifica plenamente dentro
da lógica evangélica: o mundo físico é influenciado pelos demônios do mundo espiritual que
tentam levar os homens a incorrer no pecado. Nesse sentido, julgamos que se este trabalho
dissertativo cair nas mãos de um evangélico-pentecostal que se dê ao trabalho de lê-lo, nosso
texto será sumariamente interpretado como mais um dos artifícios do Inimigo para arrebatar
as almas de Deus.
173
A pastora prossegue numa descrição cosmogônica que, na verdade, não tem relação
nenhuma com as concepções do Candomblé. Ela finda sua descrição com uma observação
acerca dos objetos de culto. Realmente um atabaque só poderá ser utilizado numa cerimônia,
após ser “consagrado”. Agora, quanto a ele ser tomado por espíritos “protetores” que “vêm
cooperar para dar abertura a influências demoníacas nas vidas das pessoas”, fica por conta das
interpretações derivadas dos quadros de representações evangélico-pentecostais.
Finalizando seu texto, a pastora acrescenta a seguinte afirmação “protestamos porque
temos a responsabilidade de defender nossa cidade das forças do mal”. Cremos que, com tudo
o que já foi exposto, não seria estranho perceber que diante deste “mundo maravilhoso” no
qual se insere o crente – povoado de criaturas espirituais malignas –, o evangélico-
pentecostal, como o último detentor da verdade espiritual, se vê imbuído da nobre missão de
salvar seus semelhantes dos enganos do Inimigo. A estatura de sua missão, o valor contido no
enredo da narrativa que constroem para si mesmos, é suficientemente forte para fazê-los
acreditar piamente que aos “salvos” cumpre “salvar”. Assim, os evangélico-pentecostais se
atribuem a responsabilidade de “defender” qualquer localidade – sagrada ou profana – “das
forças do mal”.
Como pudemos observar neste quarto capítulo, os diversos sujeitos envolvidos no
Episódio Vaca Brava que se identificavam com a mensagem evangélico-pentecostal de fé
apresentaram posturas e ações marcadamente beligerantes. Os fieis, zelosos por manter
afastada a ameaça do avanço do reino do mal – ameaça essa traduzida em específico nas
estátuas inspiradas no panteão nagô –, não pouparam esforços ao lançar mão de várias
argumentações de cunho secular. Tentavam mascarar suas motivações espirituais sob a égide
de discursos pautados em funções legais. Além disso, buscavam apoio até no segmento
católico do cristianismo. Isso nos mostra que também estava em ação, dentro da lógica da
Batalha Espiritual, a gradação de periculosidade espiritual. Fundamentados nessa gradação, os
evangélico-pentecostais apresentaram temer sobremaneira os participantes e seguidores de
religiões de matriz africana. Esse medo surge de uma tão vasta quanto complexa gama de
razões que não podemos abarcar no escopo dessa dissertação. Podemos, entretanto, esboçar
que pelo fato de não haver necessariamente uma fundamentação cristã nas religiões de matriz
africana e por fatores culturais que determinam preconceitos de longa duração internalizados
na sociedade brasileira voltados às práticas, filosofias, modos de vida e rituais desenvolvidos
em África, essas são religiões tomadas como absolutamente diabólicas. A análise sumária que
realizamos do texto da pastora Sandra Cardoso nos demonstra que o ódio ao outro identitário
do evangélico-pentecostal nasce dos próprios arranjos representacionais que estes perpetuam
174
em seu imaginário social. O desconhecimento para com os fundamentos básicos do
candomblé – e a aparente não inclinação em buscar conhecê-los – não serviu à pastora, tanto
quanto aos demais fieis comprometidos com a Batalha Espiritual, como um momento
oportuno para o crescimento fundado no diálogo e na aceitação da alteridade. Serviu, antes,
como uma infeliz demonstração de como a ideia da Batalha Espiritual é uma temática
importantíssima nos processos de identificação dos fieis. De fato, como pudemos perceber, a
participação na Batalha Espiritual é indispensável para a coesão da identidade do fiel. Ainda
que este sutilmente tente esconder as suas motivações espirituais fundamentais daqueles que o
cercam. Somente os que participam do mesmo imaginário social, compartilhando o arcabouço
identitário evangélico-pentecostal, podem entender o perigo que se oculta por trás das
aparências desse “mundo”. Somente aos verdadeiros seguidores de cristo compete o poder de
discernir entre o verdadeiro e o falso. Assim, enquanto a parousia não se efetivar ou o “Reino
de Deus” não se materializar neste “mundo”, a Batalha Espiritual será zelosamente mantida
pelos fieis evangélico-pentecostais.
175
Conclusão
No decorrer desse trabalho pudemos entender e demonstrar como, a partir das
relações estabelecidas entre certas representações coletivas, os evangélico-pentecostais
produzem e mantêm sentido às experiências de conflito vivenciadas em nome da fé.
Percebemos em que medida a Batalha Espiritual entranha-se na constitutividade da própria
identidade do fiel. Para tanto, analisamos as origens do pentecostalismo. Passamos em revista
as principais tipologias desenvolvidas por estudiosos brasileiros para objetivar o estudo dos
segmentos pentecostais que surgiram no correr do século XX. E, ao realizar nossa análise das
tipologias, observamos que uma das bases para sustentação das diferenciações entre
pentecostais do início do século XX e fins do mesmo século seria uma pretensa exacerbação
da Batalha Espiritual levada a cabo pelas denominações surgidas a partir da terceira onda
pentecostal (FRESTON, 1992), denominações conhecidas como neopentecostais
(MARIANO, 1999) ou pós-pentecostais (SIEPIERSKI, 2008). Pelo estudo de continuidades
históricas de cunho teológico-doutrinário, pudemos demonstrar que há um arcabouço
identitário composto por sete representações coletivas – Santa Ceia, Batismo nas Águas,
Batismo no Espírito Santo, Biblicismo, Dualismo, Grande Comissão e Parousia –
compartilhadas tanto por fieis assembleianos de 1911 quanto por iurdianos de fins do século
XX. Vimos como essas mesmas representações coletivas, ao trançar múltiplas relações entre
si, fomentam sentido à Batalha Espiritual. Percebemos, assim, que a Batalha Espiritual não
poderia ser tomada como um elemento fundamental apenas dos neopentecostais ou pós-
pentecostais, pois sua fundamentação imaginária já estava em ação desde os primórdios do
pentecostalismo no Brasil. Fundamentar as distinções tipológicas entre pentecostais sobre
uma pretensa exacerbação da Batalha Espiritual se mostrou uma imprecisão histórica, um
equívoco.
Propusemos que, se tomados em função do que têm em comum em matéria de
imaginário social, assembleianos e iurdianos podem ser unificados sob o conceito tipológico
de evangélico-pentecostais. As distinções teológicas e doutrinárias entre as duas
denominações, constatamos, podem ser pensadas a partir da variação da matriz interpretativa
da Santidade Próspera (pré-milenarista) para a matriz interpretativa da Prosperidade Santa
(pós-milenarista). Apesar de necessitarmos restringir nossas análises aos assembleianos e aos
176
iurdianos, cremos não ser de todo temerário estender a aplicabilidade do recorte tipológico
evangélico-pentecostal às demais denominações pentecostais. Seria necessário, contudo, um
estudo mais abrangente para determinar as limitações à aplicabilidade do conceito aqui
proposto em termos de práticas e discursos.
Desse modo, falar numa exacerbação da Batalha Espiritual como elemento
fundante do neopentecostalismo (ou pós-pentecostalismo) é incorrer em uma imprecisão
histórica. A Batalha Espiritual, evocada, mantida e esperada como projeto futuro a partir da
constelação específica das representações coletivas que compõem o arcabouço identitário
evangélico-pentecostal, foi, desde antes da formação da Assembléia de Deus, um dos
elementos fundantes no imaginário social do pentecostalismo clássico. Não negamos que o
discurso da Batalha Espiritual tenha sofrido variações durante o correr do século XX – tanto
quanto as interpretações de uma ou outra das representações coletivas que compõem o
arcabouço identitário. Propusemos que estas variações podem ser entendidas se
contextualizadas no bojo das transformações predicadas pelas matrizes interpretativas da
Santidade Próspera e da Prosperidade Santa. Sugerimos, também, que a Batalha Espiritual se
tornou socialmente mais visível a partir das novas políticas e abordagens que os
neopentecostais ou pós-pentecostais cultivaram quanto à mídia, decorrendo daí a equivocada
conexão entre terceira onda do pentecostalismo e exacerbação da Batalha Espiritual.
A partir da incursão que realizamos ao imaginário social evangélico-pentecostal,
lançamos luz sobre a constitutividade da Batalha Espiritual na efetivação da identidade
evangélico-pentecostal. Do fato de ser necessário vivenciar a Batalha Espiritual – diríamos
mesmo do caráter visceral desta experiência na identificação do sujeito com a mensagem
evangélico-pentecostal –, advém a problemática da relação com o outro.
O outro que, somente percebido a posteriori – após passar pelo filtro de
percepções sociais tributárias dos arranjos representacionais que conformam a identidade
evangélico-pentecostal –, acaba sendo enquadrado num dos diferentes graus de periculosidade
espiritual. Quadro este que varia desde os menos ameaçadores, os católicos devotos
considerados cristãos incompletos iludidos pelo inimigo, até os detestáveis seguidores das
religiões de matriz africana, consumadamente diabólicas.
Assim, mesmo que seja forçado falar de uma impossibilidade no que tange à
tentativa da construção do diálogo e da convivência entre evangélico-pentecostais e gentios
(qualquer um que não compartilhe do mesmo imaginário social), ao menos sentimo-nos
seguros ao afirmar que existe, a partir de dentro da própria identidade, uma profunda
dificuldade na aceitação duma postura dialógica. Os crentes possuem todo um cabedal de pré-
177
conceitos derivados de sua identificação com a mensagem da Batalha Espiritual. Esses pré-
conceitos tornam o trabalho da aceitação do outro junto de si – como prática unificadora entre
religiões ou como meio de solucionar conflitos – uma tarefa infelizmente irrealizável para
eles, se pensada somente nos termos de seu próprio imaginário social.
178
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