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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEAR CENTRO DE HUMANIDADES
DEPARTAMENTO DE PSICOLOGIA PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM
PSICOLOGIA
ANA MARIA MELO DE PINHO
PINTANDO JANELAS EM MUROS:
A ARTE COMO MTODO VIVENCIAL DE FACILITAO DE GRUPOS POPULARES
Fortaleza
2010
1
ANA MARIA MELO DE PINHO
PINTANDO JANELAS EM MUROS: A ARTE COMO MTODO VIVENCIAL DE FACILITAO DE
GRUPOS POPULARES
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Psicologia da Universidade Federal do Cear como requisito parcial para obteno do grau de Mestre em Psicologia.
rea de concentrao: Psicologia Social Orientadora: Profa. Dra. Vernica M. Ximenes
Fortaleza
2010
Lecturis salutem
Ficha Catalogrfica elaborada por Telma Regina Abreu Camboim Bibliotecria CRB-3/593 [email protected] Biblioteca de Cincias Humanas UFC
P723p Pinho, Ana Maria Melo de.
Pintando janelas em muros: [manuscrito] : a arte como mtodo
vivencial de facilitao de grupos populares / por Ana Maria Melo de
Pinho. 2010. 229f. ; 31 cm.
Cpia de computador (printout(s)).
Dissertao(Mestrado) Universidade Federal do Cear,Centro de Humanidades,Programa de Ps-Graduao em Psicologia,
Fortaleza(CE),22/03/2010.
Orientao: Prof. Dr.Vernica Morais Ximenes.
Inclui bibliografia.
1.PSICOLOGIA COMUNITRIA BOM JARDIM(FORTALEZA-CE). 2-BIODANA ASPECTOS SOCIAIS BOM JARDIM(FORTALEZA-CE). 3-ARTE PSICOLOGIA.4-MULHERES POBRES BOM JARDIM(FORTALEZA-CE) PSICOLOGIA.I- Ximenes,Vernica Morais, orientador.II-Universidade Federal do Cear. Programa de Ps-Graduao em Psicologia. III-Ttulo.
CDD(22 ed.) 305.489624098131 51/10
2
ANA MARIA MELO DE PINHO
PINTANDO JANELAS EM MUROS: A ARTE COMO MTODO VIVENCIAL DE FACILITAO DE
GRUPOS POPULARES
Texto apresentado ao Programa de Ps-Graduao em Psicologia da Universidade Federal do Cear como requisito parcial para obteno do ttulo de Mestre em Psicologia, rea de concentrao em Psicologia Social.
Aprovada em: 22/ 04/2010
BANCA EXAMINADORA
_________________________________________________ Prof. Dr. Vernica Morais Ximenes (Orientadora)
Universidade Federal do Cear - UFC
_________________________________________________
Prof. Dr. Cezar Wagner de Lima Gis Universidade Federal do Cear - UFC
_________________________________________________ Prof. Dr. Ana Luisa Teixeira de Menezes
Universidade de Santa Cruz do Sul
3
s mulheres da comunidade do Marrocos, que tanto me ensinaram a ser guerreira, forte lutadora e me revelaram novos e misteriosos caminhos de amor, ressurreio e libertao;
.
Ao meu marido Carlos, meu amado companheiro de vida;
minha filha Clara, fonte de alegria, inspirao e amor.
4
AGRADECIMENTOS
No h como escapar nesse momento da lembrana e da gratido tantas pessoas que me apoiaram e participaram, de forma direta e indireta, da construo dessa pesquisa.
Agradeo, primeiro, Deus, pela oportunidade de estar viva e poder realizar
coisas no viver e para o viver. Ao meu pai e minha me, a quem devo minha existncia e o apoio para tudo o
que pude construir at hoje. Agradeo pelo amor, pela dedicao, pelos ensinamentos que me deram, por todos os momentos nos quais precisei e pude contar com seu auxlio. Agradeo-lhes simplesmente por serem eles meu pai e minha me.
minha orientadora e amiga Vernica Ximenes, por ter acreditado e confiado
em mim, na minha vontade e no meu potencial para a realizao dessa pesquisa, me incentivando e me cuidando em muitos momentos. Percebo-a como uma mulher forte, determinada, cuidadosa, amorosa e responsvel, capaz de levar grandes obras realizao.
minha amiga Ana Luisa Menezes, companheira de tantos mares bravios.
Junto ela descobri a arte, a Biodana e muitas outras possibilidades de viver criativamente. Amiga eterna, pois ainda que geograficamente distante, me apia, me acalenta, me cuida, me inspira e orienta. Sinto saudades dos tempos em que vivemos tantas aventuras e descobertas juntas.
Ao professor e amigo Cezar Wagner de L. Gis, pelas inmeras e originais
contribuies sobre a Psicologia Comunitria da Libertao, sobre a Biodana e a Arte-Identidade. Considero-o um verdadeiro autor dos nossos tempos. Sinto-me privilegiada por ter convivido com ele em momentos histricos de construo e afirmao da prxis da Psicologia Comunitria e da Biodana, por conviver e ouvir suas geniais e profundas compreenses sobre a vida, a pessoa humana, a arte, a prxis de libertao...
s duas profissionais dos CAPSs da SER V, Gesa Sombra e Ana Kariny. Elas
foram minhas companheiras de trabalho e de sonhos. Admiro a disposio, a garra e a autenticidade que tiveram para implantar novos modelos de atuao em Sade Mental;
. Ao NUCOM, por permanecer na Histria da Psicologia Comunitria como um
lugar de construo de uma prxis de libertao;
minha amiga Danitza, que me apoiou em momentos de dvidas e angstia, me dando muita fora para realizar o projeto e a seleo do mestrado. Uma pessoa muito especial e querida.
minha amiga e colega de trabalho em Sade Mental, Eveline Bastos, por
compartilhar e me apoiar quando precisei. A todas as pessoas que formam o Movimento de Sade Mental Comunitrio do
Bom Jardim, Cludia, Reni, Ana Paula, Pe. Rino Bonvini, Gabriela, pelo carinho com o qual fui tratada durante o tempo em que atuei na rea de Sade Mental.
5
O meu olhar ntido como um girassol.
Tenho o costume de andar pelas estradas Olhando para a direita e para a esquerda,
E de vez em quando olhando para trs... E o que vejo a cada momento
aquilo que nunca antes eu tinha visto,
E eu sei dar por isso muito bem... Sei ter o pasmo essencial
Que tem uma criana se, ao nascer, Reparasse que nascera deveras...
Sinto-me nascido a cada momento Para a eterna novidade do Mundo...
Creio no mundo como num malmequer,
Porque o vejo. Mas no penso nele Porque pensar no compreender...
O mundo no se fez para pensarmos nele (Pensar estar doente dos olhos)
Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo...
Eu no tenho filosofia: tenho sentidos... Se falo na Natureza no porque saiba o que ela ,
Mas porque a amo, e amo-a por isso, Porque quem ama nunca sabe o que ama
Nem sabe por que ama, nem o que amar...
Amar a eterna inocncia, E a nica inocncia no pensar...
(Fernando Pessoa)
6
RESUMO
A presente pesquisa buscou investigar o significado da arte como mtodo vivencial de facilitao de grupos populares, contextualizada no mbito de uma atuao pautada na Psicologia Comunitria da Libertao (GIS, 2008). O campo de investigao configurou-se a partir de uma interveno na comunidade do Marrocos, localidade situada no Bairro do Grande Bom Jardim, bairro da periferia de Fortaleza, desde a qual foi implantado um grupo de autoestima. A formao desse grupo surgiu diante da necessidade de buscar realizar aes em sade mental nos moldes da Psicologia Comunitria (GIS, 2008), no sentido de adentrar e incidir sob as condies concretas e psicossociais de opresso e sofrimento. O grupo utilizava uma metodologia de facilitao dialgica- vivencial, de modo que integrava atividades artsticas tais como msica, dana, pintura, calagens, dentre outras, como modo de deflagrar vivncias positivas e integradoras que facilitassem os processo de desenvolvimento humano e libertao. A arte foi aqui concebida como um sistema simblico, capaz de possibilitar um retorno origem da conscincia, a dimenses pr-reflexivas, emocionais e vitais da identidade. Esta metodologia tambm foi referenciada no modelo terico-metodolgico da Biodana. Os objetivos especficos dessa investigao foram compreender os sentidos dados pelos participantes s atividades artsticas, relacionar esses sentidos construdos com o contexto sociocultural, assim como, analisar as repercusses das atividades artsticas nos modos de vida dos participantes do grupo. A metodologia elegida foi a etnografia e a fenomenologia, consideradas como possibilidade de adentrar tanto nas experincias subjetivas dos participantes quanto da sua cultura. Os instrumentos de coleta de dados foram a observao participante e a entrevista qualitativa coletiva. A anlise dos dados foi realizada de forma a articular continuamente teoria e realidade vivida, tendo tomado por referncia as etapas de tratamento e organizao dos dados postulados na anlise de contedo (MINAYO, 2008). Conclu que a arte, realizada como atividade comunitria, dentro de um contexto vivencial e grupal, pode revelar-se como uma possibilidade de desenvolvimento humano e comunitrio. Neste sentido, ela se mostra tanto como uma forma de conexo profunda com ncleo vital da identidade, a partir do sentimento de si, como uma possibilidade de conexo com a vida e suas infinitas possibilidades de realizao, revestindo-se de sentidos emocionais, simblicos, rituais e mitolgicos, religando os indivduos a uma dimenso transcendental da realidade. Desse modo, a atividade artstica pde ser afirmada no arcabouo terico-metodolgico da Psicologia Social e Comunitria, a partir de um marco epistemolgico desde o qual se pode construir uma prxis de libertao fundamentada na conexo com uma dimenso afetiva, emocional, instintiva e intuitiva da identidade: na vivncia. Palavras-chave: arte, vivncia, Biodana, Psicologia Comunitria, Libertao, grupo popular.
7
ABSTRACT
The present research tried to investigate the meaning of art as a life experience method of facilitation of popular groups, contextualized in the field of an acting based on the communitarian psychology of freedom (GOIS, 2008). The field of investigation took place in an intervention in the Marrocos community, at the Grande Bom Jardim neighborhood, in the outskirts of Fortaleza, where a group of self esteem was implanted. The formation of this group arose from the need of actions in mental health in the shapes of communitarian psychology (GOIS, 2008), in a way to enter and take place under the psycho social and concrete conditions of oppression and suffering. The group used a dialogue and life experience facilitation methodology, integrating artistic activities, such as: music, dance, painting, collage, among others, as a way to deflagrate positive and integrating life experience, which could facilitate the process of human development and freedom. The art was here conceived as a symbolic system, capable of returning to the origin of conscience, the identity`s emotional and vital pre-reflexive dimensions. This methodology was also referred in the theoretical methodological model of Biodance. The specific goals of this investigation were to understand the meanings given by the participants to the artistic activities, relate these meanings built with the social cultural context, and also analyze the effect of the artistic activities in the ways of life of the group`s participants. The elected methodology was the ethnography and the phenomenology, considered as possibilities to enter the subjective experiences of the participants and their culture. The instruments of data collection were the participating observation and the qualitative collective interview. The analysis of data was made in a way to continually articulate the theory and reality lived, taking as reference the stages of treating and organization of the data postulated in the analysis of content (MYNAYO, 2008). I concluded that art, realized as a communitarian activity, inside a life experience and group context, can be revealed as a possibility of human and communitarian development. In this sense, it shows itself as a form of deep connection with the vital nucleus of identity, from the self feeling, and also as a possibility of connection and its infinite possibilities of realization, clothing with mythological, ritual, symbolic and emotional meanings, reuniting individuals in a transcendental dimension of reality. This way, the artistic activity could be affirmed in the communitarian and social psychology theoretical and methodological framework, from an epistemological mark, from which one can build a praxis of freedom based in the connection with an affective, emotional, instinctive and intuitive dimension of the identity: in the life experience. KEY WORDS: art, life experience, Biodance, communitarian psychology, freedom, popular group.
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SUMRIO
1. INTRODUO.........................................................................................................................................................10
2. UM PERCURSO METODOLGICO...................................................................................................................21 2.1. O processo de construo da pesquisa.....................................................................................................................23
2.2. O contexto do grupo de autoestima do Marrocos...................................................................................................28
2.2.1. O grupo.................................................................................................................................................................29
2.2.2. As participantes da pesquisa.................................................................................................................................31
2.3. A escolha de uma abordagem qualitativa................................................................................................................35
2.4. Coleta de dados........................................................................................................................................................41
2.4.1. Observao participante.......................................................................................................................................41
2.4.2. Entrevista qualitativa grupal.................................................................................................................................43
2. 5. Compreendendo o fenmeno investigado..............................................................................................................45
2.6. A devoluo dos resultados da pesquisa comunidade...........................................................................................46
3. CONSTRUINDO UMA PRXIS EM PSICOLOGIA COMUNITRIA NO MARROCOS: POR UMA PSICOLOGIA QUE LIBERTE DEVERAS!.............................................................................................................48 3.1. Antigos e atuais desafios da psicologia..................................................................................................................49
3.2. Chegando a comunidade do Marrocos: descobrindo a convivncia ......................................................................53
3.3. A vida em comunidade no Marrocos......................................................................................................................61
3.3.1. Modos de conviver: a dialtica indivduo/comunidade.......................................................................................66
3.4. Desvelando uma realidade de opresso/libertao..................................................................................................69
3.4.1. A dialtica do processo de libertao nas participantes do grupo: o binmio opresso/libertao.....................74
3.4.2. Avanando na libertao: superando amarras internas/ externas da opresso....................................................81
3.4.3. A Libertao desde um prisma sociocultural.....................................................................................................88
3.5. Tecendo possibilidades de uma prxis libertadora em Psicologia Comunitria....................................................94
3.5. 1. A atividade comunitria como modo de interveno.........................................................................................99
3. 6. Em busca de novas alternativas para uma prxis libertadora...............................................................................102
4.DA AFETIVIDADE A CATEGORIA VIVNCIA: INTEGRANDO NOVAS POSSIBILIDADES
METODOLGICAS NA INTERVENO COMUNITRIA DO MARROCOS.........................................105
4.1. Integrando a afetividade a prxis de libertao.....................................................................................................106
4.2. Da afetividade ao horizonte da vivncia como categoria na Psicologia Comunitria..........................................113
4.3. O campo sociocultural do surgimento da concepo de vivncia.........................................................................118
4.4. O campo epistemolgico da concepo de vivncia.............................................................................................120
4.5. A vivncia: ontolgica, epistemolgica ou pode ser um mtodo?......................................................................124
4.5.1. A concepo de vivencia enquanto corporeidade vivida....................................................................................129
4.6. A vivncia como mtodo......................................................................................................................131
5. A ARTE COMO UM MTODO VIVENCIA: O SIGNIFICADO CONSTRUDO NA COMUNIDADE DO
MARROCOS.............................................................................................................................................133
5.1. Arte : um caminho de regresso a vivncia............................................................................................................135
5.1.1. Sentidos da arte...................................................................................................................................................137
5.1.2. Re-significando os sentidos da arte....................................................................................................................147
9
5.2. Arte e corporeidade vivida: um olhar focado no referencial terico-metodolgico da Biodana........................152
5.3. A arte como mtodo vivencial: uma resposta ao desafio de libertao.................................................................160
6.O GRUPO POPULAR DA COMUNIDADE DO MARROCOS: O SIGNIFICADO DA ARTE NUM
CONTEXTO GRUPAL ............................................................................................................................................166
6.1 O sujeito social: um pressuposto fundamental da Psicologia Social e Comunitria.............................................169
6.1.1. A dialtica singularidade/coletividade...............................................................................................................173
6.2. O conceito de libertao sobre um prisma tico-poltico: a afirmao da alteridade...........................................176
6.2.1. O reconhecimento do Eu/Outro no grupo de autoestima do Marrocos............................................................181
6.3. O espao grupal e o desenvolvimento do indivduo.............................................................................................183
6.4. Grupo popular e atividade comunitria................................................................................................................189
6.5. A arte como mtodo vivencial de facilitao de grupos populares: a experincia na comunidade do
Marrocos.......................................................................................................................................................................194
6.5.1. Compreendendo o grupo vivencial como um espao ritualstico......................................................................199
7. CONCLUSO.........................................................................................................................................................206
8. REFERNCIAS.....................................................................................................................................................214
9. APNDICES...........................................................................................................................................................224
10. ANEXOS...............................................................................................................................................................226
10
1. INTRODUO
O interesse pelo tema dessa pesquisa vem sendo gestado desde anos atrs, no
incio da dcada de 90, quando eu ainda era estudante do Departamento de Psicologia
da U.F.C.- Universidade Federal do Cear. Experincias, reflexes, inquietaes,
prticas, estudos, sentimentos e descobertas foram emergindo concomitantemente
naquele momento a partir do trabalho em psicologia comunitria, da participao em
grupos de Biodana1, da experincia pessoal e profissional com arte. Neste contexto,
algumas questes centrais que surgiram em cada um desses mbitos foram se
entrecruzando, articulando-se, formulando interrogantes, direcionando caminhos
trilhados em mbitos e experincias diversas que me possibilitaram chegar hoje at
aqui: propondo investigar a arte como mtodo vivencial de facilitao de grupos
populares. Parto, ento, para introduzir a temtica proposta, de uma sucinta
reconstruo do fio condutor - no to linear como se pode supor a partir desta sinttica
e sistematizada apresentao - desde o qual o trabalho comunitrio, a arte e a vivncia
puderam construir nexos significativos e dar sentido a essa pesquisa.
O marco histrico desse percurso surgiu mediante inquietaes situadas no
mbito acadmico, fruto de uma tenso entre reflexes epistemolgicas e a realidade
que me circundava. Questionava-me profundamente sobre o valor do conhecimento
cientfico, especificamente no que se refere a sua tarefa de formao e desenvolvimento
humano, de sua capacidade de dar subsdio e orientao para o viver. A despeito do
reconhecimento de todas as vantagens tecnolgicas e materiais que o progresso
cientfico nos havia possibilitado, percebia uma contradio fundamental entre o saber
terico metodolgico pautado em uma razo instrumental - e a sua possibilidade real de
aplicao tica. que o saber terico parecia no coincidir com a prtica cotidiana
daqueles que o professavam, revelando uma incoerncia entre conhecimento,
sentimentos, aes e modos de relacionamento. Afinal, pensava eu, acordando como a
concepo de Dilthey (1994): toda filosofia autntica deve deduzir de seus
conhecimentos tericos os princpios da conduta de vida do indivduo e da orientao da
sociedade (p13), deve enfatizar a coeso da dimenso tica implicada em todo saber e 1 Segundo Rolando Toro (2005), criador dessa abordagem, a Biodana um sistema voltado para o desenvolvimento humano, a integrao da identidade, a reeducao afetiva, a renovao orgnica e a reaprendizagem das funes originrias da vida. Pode ainda ser compreendida como um sistema terico, mas, sobretudo, como um mtodo vivencial que visa o estudo e o fortalecimento da expresso dos potenciais humanos atravs da estimulao de vivencias integradas por meio da msica, do canto, do movimento corporal e de situaes de encontro em grupo (Gis, 2002).
11
a orientao para os princpios do que tem importncia e valor na vida e para a vida.
(DILTHEY, 1994, p.14)
Fruto dessa inquietao fundamental, busquei respostas para alm do substrato
terico e metodolgico da psicologia em sua forma acadmica mais tradicional. Fui
caminhando para um exame epistemolgico mais apurado de suas bases, descobrindo
novos paradigmas e prticas da cincia psicolgica que pudessem superar uma viso
positivista, explicativa, reducionista e mesmo elitista dos fenmenos humanos: que
fossem eficazes, afinal, para mudar a ns mesmos e a sociedade. Dentre estas, me
encontrei simultaneamente com a Psicologia Comunitria, a arte e a Biodana.
Com efeito, a Psicologia Social na Amrica Latina, contexto maior na qual se
insere o ramo comunitrio, partia de uma profunda problematizao dos seus
pressupostos como cincia humana, delimitando uma possibilidade concreta de
reformulao da viso de ser humano, de mundo, da inter-relao entre subjetividade e
objetividade e, inclusive, problematizando o prprio papel e propsito da psicologia
(LANE, 1996). Esta vertente voltava-se primordialmente para a construo da
cidadania, optava pela construo de um corpo terico-metodolgico que apontasse para
uma prxis de libertao dos excludos (SAWAIA, 1996), da grande maioria do povo
latino-americano.
Segundo Lane (1996), desde a dcada de 70, a atuao de psiclogos e de outras
categorias profissionais norteadas por estes objetivos se voltava para o desenvolvimento
de atividades de preveno da sade mental e para a educao popular. Atividades como
dinmicas de grupo, encontros, assembleias, mutires, reunies de quarteires, dentre
outras, eram realizadas como modos de deflagrar uma prxis comunitria de
organizao e participao popular que redundasse, por sua vez, em um processo
pedaggico reflexivo e dialgico de conscientizao (FREIRE, 2005), crescimento
humano (GIS, 1993) e transformao social.
J naquela poca, o grupo popular era o espao bsico onde estas atividades se
realizavam. Segundo Gis (2008), este se caracteriza primordialmente por ser formado
por moradores da prpria comunidade, atuando no prprio local de moradia onde h
interao cotidiana e direta, afirmando o meio comunitrio como a raiz que nutre a
vida dos moradores e dos grupos (p.186), deflagrando um processo de identificao e
pertena, de construo de novos sentidos, de expresso de sentimentos, de construo
de conhecimento crtico, resgatando a identidade de lugar. Enfim, unindo e integrando
os moradores para a superao conjunta de suas problemticas.
12
Entretanto, desde minha experincia em Psicologia Comunitria como aluna
extensionista do NUCOM2, ocorrida no perodo de 1991 1993, o mesmo interrogante
tico-epistemolgico primordial emergiu em minha prtica, embora envolvido nesse
novo contexto em outras roupagens e diante de novos desafios. Para mim, era intrigante
perceber como moradores participantes de grupos populares do Bairro do Pirambu3
apresentavam certas contradies e ambiguidades entre seus modos de pensar, sentir e
agir. Era certo que algumas lideranas comunitrias, por exemplo, apresentavam um
discurso bastante crtico e consciente das contradies sociais nas quais sua comunidade
estava imersa (excluso, violncia, pobreza, fome, etc.). Assim como apresentavam um
engajamento e uma participao comunitria efetiva, um compromisso sincero com a
resoluo das problemticas locais.
Porm, o desafio de facilitar um processo de conscientizao e libertao
(FREIRE, 1980) parecia tornar-se mais profundo e complexo diante da proximidade das
relaes, da autenticidade das expresses emocionais, da intimidade dos afetos pessoais,
do ntimo relacionamento cotidiano com a experincia existencial daquelas pessoas.
Particularmente, ressalto os espaos diferenciados nos quais buscvamos criar
condies especiais de expresso e vivncia atravs da proposio de atividades
artsticas realizadas em grupo, que focavam a expresso criativa, afetiva e corporal. A
tambm outras facetas da realidade pessoal dos moradores se desvelavam, evidenciando
que havia um grande desafio a ser superado pela prxis de libertao em relao
dimenso afetiva: a possibilidade de expresso de sentimentos e emoes, de
movimentos espontneos e criativos, de gestos e palavras de afeto, de valorizao e
credibilidade em si e nos outros; a capacidade de expresso esttica, de construo de
relaes de no dominao e opresso.
Nesse momento a prtica em Psicologia Comunitria no NUCOM j vinha
avanando em direo a intervenes que transpunham o poder da palavra e da reflexo,
numa tentativa de penetrar mais profundamente na subjetividade, como um desafio para
a construo do sujeito comunitrio (GIS, 1993). Atividades artsticas (colagens,
escultura em argila, dramatizaes, exerccios de Biodana e mesmo grupos de
Biodana) eram fortemente incorporadas s prticas de interveno, concebendo estas,
em sua configurao global, integradas aos espaos de reflexo e dilogo, como um 2 Ncleo de Psicologia Comunitria (NUCOM) um projeto de extenso da UFC vinculado ao Departamento de Psicologia desde 1992. Abrange atividades de ensino, pesquisa e extenso em psicologia comunitria. 3 Bairro do Municpio de Fortaleza no qual desenvolvamos uma interveno em Psicologia Comunitria
13
modelo reflexivo-vivencial que se aplicava aos modos de facilitao do
desenvolvimento da vida comunitria e de construo da identidade pessoal a partir dos
grupos populares (BRANDO; BONFIM, 1999; GIS, 1993).
Concomitante a esta experincia comunitria, iniciei pessoalmente a realizao
de produes artsticas, descobrindo que a arte podia fazer parte do meu cotidiano, do
meu viver. E ela passou deveras a fazer. Comecei a pintar, a esculpir, a escrever poesias
e na arte, como uma sbia companheira, fui aos poucos me descobrindo, como aqui
ilustro:
Poesia, tanto queria que tu me inundasses e com teu estranho vento
em mim retornasse e me fizesse mais uma vez viva e inteira. Busco, no
labirinto dos teus versos, o meu nexo. Busco, no esplendor dos teus
murmrios, o meu grito. Procuro em ti o que de mim est perdido!
(Escritos, PINHO, 1994)
Precisamente, meu primeiro contato com a arte e com a Biodana se deu em uma
disciplina titulada Teoria da vivncia ditada pelo professor Cezar Wagner de Lima
Gis4. Nesta matria, as expresses artsticas e corporais eram deflagradas como um
tipo de metodologia, como um tipo de experincia regressiva e meditativa, como uma
possibilidade de entrar em contato intuitivamente com nossa mais ntima experincia
interior (PINHO, 2003).
Gis (2002) fundamentava a proposta dessa disciplina na concepo de vivncia
de Wilhelm Dilthey, na concepo de corporeidade vivida, proposta pela
fenomenologia de Merleau-Ponty, mas, sobretudo, na Biodana. A partir destes
conceitos, a vivncia era considerada o solo primordial e fundamental da conscincia,
do conhecimento e do contato com o ncleo vital da identidade. Especialmente nesta
disciplina, o corpo no era uma expresso mecnica. Tampouco a dana, a expresso
esttica plstica e potica uma pura execuo tcnica. Mas todas estas manifestaes
representavam uma possibilidade expressiva, um modo espontneo e autntico de
manifestar a emoo, de vivenciar, de perceber a realidade, de tornar presente e viva a
prpria identidade.
Assim, a partir de ambas as circunstncias (grupo popular e experincia pessoal)
nas quais a arte se afirmou como uma metodologia vivencial se evidenciou para mim a
enorme dissociao que nosso modo moderno pedaggico - e mesmo teraputico -
4 Professor do Departamento de Psicologia da Universidade Federal do Cear- UFC, fundador do NUCOM e facilitador/didata da Escola de Biodana do Cear.
14
provoca entre o desenvolvimento intelectual e o desenvolvimento afetivo. Tornou-se
claro o enorme desacordo que esse modo de conhecimento moderno promove entre
mente e corpo; a grande discordncia que criava entre saber e atuar, entre expressar-se
verbalmente e racionalmente ou esttico-corporalmente; o enorme abismo que abre
entre o que um indivduo pode chegar a ser e a sentir como pessoa e a elaborar
racionalmente ou manipular tecnicamente. Estas me pareceram ser vrias das graves
implicaes e consequncias de uma cultura fundamentada num saber cientfico,
construdo unicamente sobre as bases de um conhecimento racional, positivo e
emprico, distanciado do afeto, da experincia vivencial (PINHO, 2003).
Esta temtica vem, desde ento, permeando todo o meu percurso profissional e
pessoal, fundamentando minhas atuaes em diversos mbitos da psicologia, motivando
a realizao de formaes e especializaes em Arte-Terapia e em Biodana, norteando
meus interesses de investigao para realizao dessa pesquisa.
Especificamente no mbito da Psicologia Social, Sawaia (1995) vem postulando
que para facilitar a superao do sofrimento psicossocial dos indivduos e alcanar uma
potncia de ao para a mudana social necessrio que esse campo da cincia busque
a construo de estratgias de ao que possam alimentar bons encontros e transpor a
ditadura imposta s emoes. Esta uma base epistemolgica que busca superar uma
viso puramente racionalista dos processos subjetivos, dos modos de facilitao do
desenvolvimento humano e das mudanas sociais (SAWAIA, 2004).
Gis (2008) vem postulando que, para alm de uma imerso no cotidiano dos
moradores atravs das atividades de interao social e reflexo, imprescindvel propor
espaos onde os indivduos vivenciem sua corporeidade e sua afetividade. Mais
precisamente, essa proposta traz em seu cerne um fundamento epistemolgico
diferenciado, original, pois postula a vivncia como uma categoria chave e, sobre tudo,
como um novo marco epistemolgico que permeia a totalidade de sua compreenso de
mundo, de ser humano e de prxis libertadora (PINHO, SOMBRA, XIMENES et al.,
2009). Gis (2005a) acredita que na vivncia da cooperao e na reflexo dialgica
dessa experincia que dialeticamente as conscincias podem se aprofundar, que os
sujeitos podem se inserir de forma mais crtica no mundo, que a identidade pessoal pode
superar a opresso e fortalecer o seu valor pessoal e seu poder pessoal, redundando na
transformao coletiva dos valores anti vida que permeiam suas prprias condies
sociais.
15
Diante desse desafio que formulei para essa investigao a seguinte pergunta
de partida: qual o significado da atividade artstica realizada como mtodo vivencial de
facilitao de grupos populares? O objetivo da pesquisa , portanto, compreender o
significado das atividades artsticas realizadas como mtodo vivencial de facilitao de
um grupo popular. Tem ainda como objetivos especficos: 1) Compreender os sentidos
dados pelos participantes s atividades artsticas vivenciadas no grupo; 2) Relacionar os
sentidos construdos pelos participantes sobre as vivncias artsticas e o contexto
sociocultural no qual esto inseridos; 3) Analisar as repercusses das atividades
artsticas vivenciadas no grupo nos modos de vida dos participantes.
O Grupo investigado era facilitado a partir de uma metodologia dialgica-
vivencial (reflexes, dilogos, expresso corporal e esttica da identidade),
configurado dentro de um contexto de interveno comunitria, tendo sido denominado
de grupo de autoestima. Foi implantado no Bairro do Grande Bom Jardim, na localidade
do Marrocos, bairro da periferia de Fortaleza. Seu surgimento foi fruto de um trabalho
comunitrio em parceria entre a ONG Movimento de Sade Mental Comunitrio do
Bom Jardim (MSMCBJ)5, Rede de Sade Mental da SER V (Secretaria Executiva
Regional V) e o NUCOM.
A relevncia desse estudo se refere possibilidade de aprofundar, teorizar e
sistematizar sobre instrumentais vivenciais, que vm cada vez mais sendo incorporados
s prticas da psicologia e, particularmente, s prticas comunitrias. Certamente, o
compromisso com uma prxis de libertao vem afirmando cada vez mais o desafio
dessa rea de construir-se mediante um dilogo epistemolgico (BRANDO, 1999),
buscando uma interlocuo com novos paradigmas capazes de oferecer novas
possibilidades para lidar com a subjetividade da realidade humana, ampliando os
recursos em Psicologia Comunitria capazes de alcanar dimenses afetivas da
identidade pessoal (SAWAIA, 1995; 2004).
A perspectiva de enfocar a arte como mtodo vivencial de facilitao de grupos
populares no mbito da psicologia comunitria surge neste referencial, por um lado,
desde uma compreenso abrangente do fenmeno da esttica no campo das cincias
5 O MSMCBJ uma ONG atuante no Bairro do Grande Bom Jardim, fundada a partir do trabalho de missionrios combonianos, que realizavam escuta e acompanhamento teraputico de famlias em situao de risco, a partir da metodologia da Terapia Comunitria. Fundada institucionalmente em 1998, esta ONG vem trabalhando com a clientela de adultos, adolescentes e crianas, atravs de diversas atividades teraputicas e pedaggicas: grupos de terapia comunitria; grupos de autoestima; atendimentos de massoterapia; atendimentos psicolgicos e psiquitricos; acompanhamento de crianas e adolescentes; trabalhos de formao profissional; grupos de Biodana, horta comunitria, dentre outras.
16
humanas, em relao as suas funes antropolgicas, sociolgicas e psicolgicas.
Especificamente no mbito da psicologia, toma como fundamento ideolgico,
epistemolgico e prtico, o enfoque da experincia esttica como uma experincia
psicossocial de ordem vivencial, imediata, pr-reflexiva, pr-verbal, fundada na
intersubjetividade de uma corporeidade vivida, relacionada com uma experincia
original e fundante de estar vivo. Estes fundamentos esto pautados em aportes
filosficos fenomenolgicos, existencialistas e humanistas (RUSSO, 1993).
Ao mesmo tempo e de forma especial, desdobrando-se e recriando-se a partir
destes aportes, o marco terico-metodolgico da Biodana afirma-se como referencial
fundamental para este estudo. Toro (2005), ao construir o Sistema Biodana,
fundamentou-se nas manifestaes antropolgicas originrias da arte, onde
principalmente a dana e o canto cumpriam um papel fundamental para a realizao dos
ritos religiosos e para o acesso s experincias mitolgicas e transcendentais da
realidade, colocando esta atividade em um lugar sociocultural privilegiado para o
processo evolutivo dos indivduos e das sociedades. A prerrogativa de qualificar,
denominar ou conceber a arte como mtodo vivencial nessa investigao ir se
referenciar, ento, na compreenso de que a arte pode funcionar como um caminho para
retornar vivncia.
Toro (2005) embasa suas elaboraes terico-metodolgicas na concepo de
vivncia proposta por Wilhelm Dilthey (AMARAL, 1987). Porm, construiu um
conceito de vivncia prprio com o qual a Psicologia Comunitria vem trabalhando
(GIS, 1993, 2005, 2008). Segundo o autor:
A vivncia a percepo intensa e apaixonada de estar vivo aqui e
agora. a intuio do instante de vida capaz de estremecer
harmonicamente o sistema vivente humano. O ponto de partida em
Biodana a vivncia e no a conscincia (...). (TORO, 1991, p. 11).
Nesse sentido, sero consideradas aqui todas as proposies metodolgicas que
utilizam a arte em suas mais variadas modalidades (dana, msica, expresso plstica,
poesia, teatro, etc.), como linguagem vivencial, como modalidade expressiva, como
contato ntimo com a vida, como modo de aprendizagem, crescimento e transformao
que transponham a lgica da racionalidade instrumental, a coerncia analtica da
linguagem verbal e o contato puramente intelectual com a realidade (PINHO, 2003).
No mbito da psicologia clnica grande o nmero de estudos que vm se
desenvolvendo desde o incio do sculo XX sobre a psicologia da arte, sobre seus
17
efeitos psicoteraputicos, sobre seu valor para a educao e para formao humana. A
Arte-terapia, por exemplo, abordagem que emergiu destes estudos, considera a
produo artstica como um valioso instrumento no processo de recuperao da sade
mental, pois possibilita uma comunicao simblica, viabilizando o acesso as
representaes inconscientes dos indivduos e a articulao verbal de emoes
reprimidas (PAIN, 1996; KRAMER, 1982). No campo da educao, os movimentos da
arte-educao e educao pela arte vm resignificando e afirmando o valor da arte para
a formao integral e saudvel da personalidade (BARBOSA, 1999). Lowenfeld e
Brittan (1977) ressaltaram a importncia da expresso criadora para a autoexpresso, a
autoidentificao e para o desenvolvimento de sensibilidades criadoras (p.26),
pressupostos para a construo de uma sociedade democrtica.
Entretanto, como aprofundarei ao longo desse trabalho, especificamente o
enfoque dessa temtica inserida no mbito da Psicologia Comunitria relativamente
recente e encontra-se profundamente vinculada a estas referidas prticas pioneiras
desenvolvidas pelo NUCOM na dcada de 90, nas quais as atividades artsticas, os
exerccios e os grupos de Biodana eram fortemente incorporados na construo de um
modelo de facilitao comunitrio reflexivo-vivencial (BRANDO, 1999), como j
referido.
Nestas intervenes se encontravam os primrdios das oficinas de Arte-
Identidade que, segundo Gis (2005b), foram criadas a partir dos trabalhos da Biodana
que davam nfase a linha da criatividade. Atualmente, ressalto a dissertao de Gesa
Sombra (2009), titulada Dilogos e vivncias com Arte(e)Identidade , que busca fazer
um resgate histrico e aprofundar essa temtica, realizando articulaes e contribuindo
valiosamente para uma sistematizao terica dessa proposta de facilitao de grupos a
partir da anlise dos seus efeitos no desenvolvimento da identidade pessoal de um grupo
de adolescentes. Nessa linha, ainda encontrei trabalhos como os de Kelen Gomes
Ribeiro (2008), que enfoca a Biodana no campo da sade a partir de um olhar
biocntrico e o de Pablo Huascar A. Pinheiro (2008), que enfoca a dramatizao como
mediao simblica no mbito da Psicologia Comunitria.
Sombra (2009) destaca os poucos registros, sistematizaes e prticas atuais
vinculadas a essa temtica no mbito especfico da Psicologia Comunitria. Resgata,
entretanto, textos como os de Ana Luza Teixeira de Menezes e Altamir Aguiar (1993),
que representaram um dos primeiros esforos de sistematizao dessas oficinas. Ainda
assim, ressalta as elaboraes de Gis (1993, 2005a, 2005b, 2002, 2008), que vm
18
concebendo as oficinas de Arte-Identidade como uma tcnica de facilitao em Sade
Comunitria e em Psicologia Comunitria.
Particularmente Gis, ao longo de sua trajetria docente, vem incentivando
prticas, pesquisas, realizando proposies e sistematizaes sobre essa temtica. Suas
contribuies sobre o tema vm se dando tanto de forma especfica, a partir de algumas
construes conceituais sobre a Biodana e a Arte-identidade, como tambm, de modo
abrangente, em suas construes terico-metodolgicas sobre a Psicologia Comunitria.
Sobretudo, a partir da proposio de um mtodo dialgico-vivencial como metodologia
de interveno comunitria (Gis, 2005a, 2008), o autor vem postulando a vivncia
como uma categoria chave, como um novo marco conceitual que permeia a totalidade
de sua compreenso de mundo, de ser humano e de prxis libertadora (PINHO et al. ,
2009).
Dentre reformulaes conceituais e avanos metodolgicos, a Psicologia Social
vem dirigindo seu olhar para a categoria da afetividade. Considero que este substrato
corrobora tambm de forma importante para esta construo. que pesquisas e estudos
nesse campo apontam para a importncia das emoes e dos sentimentos para a
mediao dos processos de transformao da conscincia e humanizao, ressaltando a
importncia da arte para a expresso dessas dimenses que dificilmente podem ser
verbalizados (LANE, 1994).
Sabe-se que na Psicologia Comunitria ainda predominam intervenes pautadas
na palavra e na racionalidade, limitando as possibilidades de realizao do desafio de
libertao e de desenvolvimento humano. Compreendo que esta pesquisa, ao objetivar
um aprofundamento na compreenso da arte como mtodo vivencial de facilitao em
grupos populares, pode revelar-se como uma contribuio significativa para construo
dos arcabouos terico-metodolgicos da Psicologia Social e da Psicologia
Comunitria. Esta contribuio visa abrir caminhos para a construo de novas
alternativas metodolgicas de facilitao do processo humano de desenvolvimento e
libertao, concebidas a partir da integrao da dimenso afetiva.
No captulo denominado O percurso metodolgico, explicito primeiramente o
processo de construo da pesquisa para, ento, trazer discusses e reflexes sobre a
metodologia de pesquisa elegida, apontando para uma abordagem de carter qualitativo,
utilizando o mtodo etnogrfico e fenomenolgico. A opo foi trabalhar com a
observao participante e a entrevista qualitativa coletiva como formas de obteno de
dados no campo. A anlise dos dados foi construda como uma compreenso do
19
fenmeno investigado, atravs de uma articulao terica- reflexiva, de modo a permear
e integrar todos os captulos, criando um corpo terico-metodolgico desde o qual os
referenciais tericos esto constantemente articulados com as captaes e compreenses
da realidade pesquisada.
No captulo Construindo uma prxis em Psicologia Comunitria no Marrocos:
por uma psicologia que liberte deveras!, abordo primeiramente as problematizaes
profissionais no mbito da sade mental que me levaram a retornar a uma atuao
comunitria. Passo a abordar as caractersticas da comunidade do Marrocos e o modo de
vida de seus moradores. Posteriormente, abordo a questo da condio de oprimido
daquela populao e os desafios implicados no processo de libertao das participantes
do grupo. Finalmente, lano antigos e atuais desafios terico-metodolgicos da
Psicologia Social e Comunitria em funo do desafio de libertao.
No captulo Da afetividade a categoria vivncia: integrando novas
possibilidades metodolgicas na interveno comunitria no Marrocos, proponho, a
partir da integrao da categoria da afetividade na Psicologia Social, a integrao da
categoria vivncia no mbito da Psicologia Comunitria. Passo a enfocar o contexto
sociocultural do surgimento do conceito de vivncia, assim como o contexto
epistemolgico no campo das cincias humanas. Por fim, parto para a reflexo dos
fundamentos que justificam a importncia da integrao da categoria vivncia para a
construo de metodologias vivenciais de facilitao em Psicologia Comunitria, como
uma nova possibilidade para a facilitao do desenvolvimento humano, do processo de
libertao e de transformao social.
No captulo A arte como um mtodo vivencial: o significado construdo na
Comunidade do Marrocos, me debruo sobre as possibilidades de compreenso da arte
como um mtodo vivencial de facilitao do desenvolvimento humano e do processo de
libertao, a partir da articulao de concepes no mbito da esttica e de diversas
concepes sobre a funo da arte, em suas dimenses antropolgicas, culturais, sociais
e psicolgicas. Enfatizo, especialmente, o referencial da Biodana como um marco
terico- metodolgico relevante para a compreenso da concepo de arte abordada
nessa investigao. Articuladamente, aproximo-me dos sentidos dados pelos moradores
da comunidade do Marrocos e pelas participantes do grupo de autoestima investigado.
Assim mesmo, abordo todos os sentidos que emergiram da convivncia e da observao
participante realizada nos diversos espao e situaes da comunidade e na entrevista
qualitativa em grupo que foi realizada. Ao final, trago reflexes sobre a compreenso da
20
arte, enquanto mtodo vivencial de facilitao, em funo da busca de uma resposta ao
desafio de libertao.
No captulo O grupo popular da comunidade do Marrocos: o significado da
arte num contexto grupal, busco considerar a validade da proposio da metodologia
da arte a partir de um espao grupal de interao humana. Trabalho a concepo de
sujeito a partir de sua constituio social, assim como o pressuposto da libertao em
seu aspecto tico-poltico como o reconhecimento da alteridade. Posteriormente, abordo
o espao grupal como possibilidade de desenvolvimento do indivduo, assim como o
grupo popular, como espao legtimo de realizao da atividade comunitria. Por fim,
coloco em evidncia reflexes sobre a experincia vivida a partir da vivncia da arte no
grupo popular do Marrocos, compreendendo-o tambm como um espao ritualstico e
transcendente.
Na concluso, denominada O significado da arte no viver e conviver humano:
caminhos de libertao e humanizao, realizo uma articulao entre os aspectos
relevantes encontrados e analisados em cada captulo. Trago reflexes sobre a
importncia da arte como uma atividade fundamental para o desenvolvimento das
potencialidades humanas e para o viver humano. Ao mesmo tempo, ressalto sua funo
vital para a constituio das culturas. Considero ainda que a arte, como mtodo
vivencial de facilitao de grupos populares no mbito da Psicologia Comunitria,
representa um marco epistemolgico desde o qual se pode construir uma prxis de
libertao, fundamentada em metodologias capazes de acessar as dimenses afetivas,
instintivas, estticas, intuitivas e pr-reflexivas da identidade humana.
21
2. UM PERCURSO METODOLGICO
Este captulo est dedicado a evidenciar os caminhos metodolgicos percorridos
nesta pesquisa, nos quais continuamente surgiram indagaes sobre qual a melhor
maneira de enfrentar meu objeto? (BAUER; GASKELL, 2004, p.7-8). Estas
indagaes perpassaram todo o processo de reflexo terica, de insero comunitria e
de contato com a realidade vivida durante a investigao. Por isso, concentra-se aqui o
esforo implicado no processo histrico de delimitao do campo de pesquisa, de
minhas escolhas terico- metodolgicas, de afirmao de interesses, de desvelamentos
da realidade, de reconhecimento de limites e possibilidades de realizao desta
investigao.
Dedico-me, tambm, a uma reflexo terica das questes mais fundamentais
envolvidas nos caminhos metodolgicos propostos, debruando-me sistematicamente
sobre as vantagens e problemas de cada mtodo elegido, sobre a abertura que cada um
possibilitou para a aproximao do fenmeno que busquei pesquisar. Ressalto o carter
de inacabamento das escolhas aqui explicitadas, j que no se configuram em uma
estrutura aberta pelas problematizaes, princpios e diretrizes que num determinado
momento e sobre determinadas circunstncias puderam orientar-me para encontrar
formas possveis de empreender e tornar vivel minha tarefa investigativa.
Bauer e Gaskell (2004) ressaltam que de acordo com os interesses do
conhecimento surgem aspectos da qualidade e da quantidade, embora advertindo que
em ambas as dimenses se deve preservar o no envolvimento e implicao pessoal do
pesquisador, para que de fato possa ser realizado o campo da observao sistemtica.
Para estes autores, a observao, diante dos diferentes graus de imparcialidade, a
problemtica central da pesquisa social. Entretanto, como adverte Becker (1999),
quando estudamos as pessoas e organizaes envolvidas em tais atividades
desviantes, temos que conceber mtodos novos apropriados para o segredo que nos
confronta (p.13), podendo desenvolver teorias e mtodos prprios medida que as
circunstncias da pesquisa o exigem. Oponho-me a exigncia de imparcialidade de
Bauer e Gaskell (2004), para apoiar-me na prerrogativa de Becker (1999), pois a partir
dos referenciais tericos nos quais me fundamentei (materialismo histrico dialtico,
fenomenologia existencial e princpio Biocntrico), a compreenso do objeto desta
pesquisa exigiu-me olhar para a complexidade que o constitui.
22
Como j exposto, a delimitao do objetivo geral desta pesquisa foi
compreender o significado das atividades artsticas realizadas como mtodo vivencial de
facilitao de um grupo popular, tendo como objetivos especficos: 1) Compreender os
sentidos dados pelos participantes s atividades artsticas vivenciadas no grupo; 2)
Relacionar os sentidos construdos pelos participantes sobre as vivncias artsticas e o
contexto sociocultural no qual esto inseridos; 3) Analisar as repercusses das
atividades artsticas vivenciadas no grupo nos modos de vida dos participantes.
Parti, ento, do princpio: da prpria problemtica original e fundante da
construo das cincias humanas (FIGUEIREDO, 1996), posto que considerei que o
objeto pesquisado no era um objeto, mas um fenmeno. Este se referia a manifestao
de uma realidade humana complexa, constituda por mltiplas dimenses em interao,
j sejam biolgicas, psquicas, sociais e cosmolgicas (MORIN, 2003b). O fenmeno a
ser investigado apontava, portanto, para a considerao de aspectos estticos,
emocionais, corporais, relacionais e culturais da experincia humana. Implicava,
tambm, na considerao de minha prpria experincia vivida ao buscar captar e
compreender estes fenmenos, constituindo um dilogo intersubjetivo entre eu -
pesquisadora - e os sujeitos da pesquisa.
O desafio principal que se apresentou foi o seguinte: as experincias vividas
pelos sujeitos nos espaos do grupo vivencial estudado no deveriam ser consideradas
como experincias fechadas em si mesmas, mas interligadas a um contexto social e
cultural ao qual cada indivduo estava inserido e era construdo. Quer dizer, como
contextualizar as experincias singulares no processo mais amplo do modo de vida
comunitrio daquelas pessoas? Busquei, ento, a partir dessa problematizao, propor
algo que viabilizasse aceder a ambos os aspectos simultaneamente.
Desse modo, esta investigao se fundamentou em bases epistemolgicas da
pesquisa em Psicologia Social e Comunitria, assumindo um carter qualitativo. Minha
opo foi trabalhar desde os fundamentos dos mtodos etnogrfico e fenomenolgico.
Com ambos, busquei aproximar-me da singularidade das experincias dos sujeitos
investigados, contextualizando-as na cultura e nos modos de vida da comunidade, aos
quais estes estavam inseridos.
A principal tcnica utilizada foi a observao participante (DA MATTA, 1991),
tomada como forma de aceder aos sentidos dados as experincias, as expresses e
manifestaes estticas, aos modos de relacionamento interpessoal, assim como a
realidade sociocultural da comunidade, emergidas dentro e fora do espao do grupo
23
pesquisado. A entrevista coletiva (BAUER; GASKELL, 2004) foi utilizada como modo
de complementar e aprofundar os sentidos atribudos as experincias vividas no grupo
vivencial pelos seus participantes. A anlise dos dados foi construda ao longo de todos
os captulos, de modo a ir criando um corpo terico-metodolgico desde o qual os
referenciais tericos pudessem ir sendo constantemente articulados com as captaes e
compreenses da realidade pesquisada. Foi tomando como referncia para o tratamento
e organizao dos dados a anlise de contedo, na modalidade de anlise temtica
(MINAYO, 2008).
Neste captulo irei abordar o processo de construo da pesquisa, assim como
princpios conceituais sobre a abordagem qualitativa em metodologia cientfica,
explicitando as concepes do mtodo etnogrfico e fenomenolgico. Posteriormente,
irei expor os instrumentos de coleta de dados e o modo buscado para a anlise dos
dados, aqui concebido como uma compreenso do fenmeno investigado, atravs de um
relato reflexivo-conceitual do vivido.
2.1. O processo de construo da pesquisa
Opto neste tpico, como pressuposto de rigor cientfico, por dar visibilidade
(SPINK, 1999) ao percurso mais recente do delineamento dessa investigao, sendo este
um pressuposto metodolgico que me possibilitou no falsear ou idealizar a realidade.
Considero importante evidenciar os desdobramentos dessa trajetria: por um lado, que
reafirmou temas existenciais antigos e interesses profundos da minha experincia
profissional; por outro, possibilitou uma reformulao de minhas percepes e
compreenses, representando a construo de novas tramas e sentidos. Desse modo, a
escolha, definio e delimitao do fenmeno a ser investigado e do campo de
investigao foram se dando a partir da relao dialtica e dialgica entre teoria e
prxis, do constante contato com as possibilidades e limites de realizao desta
pesquisa.
J no incio do mestrado, em maro de 2008, eu vinha buscando reformular e
construir meu projeto, em funo da realidade que se apresentou e da viabilidade da
investigao. A princpio meus interesses e inquietaes estavam mais vinculados a um
passado fecundo e rico, situado em minhas primeiras atuaes em Psicologia
Comunitria realizadas no Bairro do Piramb que, como explicitado na introduo,
estavam vinculadas a experincias com arte e Biodana. Ou seja, no primeiro projeto
24
que elaborei, busquei pautar-me nas prticas em Psicologia Comunitria que estavam
vinculadas com as oficinas de Arte-identidade e Biodana, realizadas na dcada de 90.
Acreditava que esta prtica era ainda um modelo valioso e atual de interveno, que
merecia uma investigao mais aprofundada.
Entretanto, a partir do contato com o NUCOM, descobri que nas prticas atuais da
Psicologia Comunitria realizadas por esse ncleo de extenso e pesquisa, os grupos
populares pautados em modos de interveno atravs da arte estavam sendo pouco
utilizados, ainda que permanecesse um olhar atento a estes modelos de facilitao. Ao
mesmo tempo detectei que a Biodana vinha se reapresentando como um campo de
interesse para investigao e pesquisa pelo Mestrado de Psicologia da UFC, j que
vinha sendo considerada um dos marcos terico-metodolgicos da Psicologia
Comunitria6, principalmente a partir das obras de Cezar Wagner de L Gis (1993,
2005, 2008) e das prticas de Educao Popular pautadas na Educao Biocntrica,
postuladas pela educadora Ruth Cavalcante (1999).
Encontrei, ento, trabalhos recentes tais como o de Kelen Gomes Ribeiro (2008),
que enfoca a Biodana no campo da sade a partir de um olhar biocntrico e o de Pablo
Huascar A. Pinheiro (2008), que enfoca a dramatizao como mediao simblica no
mbito da Psicologia Comunitria. Ainda assim, Gesa Sombra vinha realizando sua
pesquisa de mestrado, a partir de 2007, sobre o tema da Arte- Identidade. Estes
trabalhos enfocavam a implantao tanto de grupos de Biodana e como a aplicao de
atividades artsticas de cunho teraputico e pedaggico em comunidades populares,
vinculados a um propsito de ao social.
Desse modo, a primeira proposio de projeto de pesquisa com o qual concorri em
2007 seleo do Mestrado em Psicologia da UFC foi A arte na facilitao da
identidade pessoal em um grupo popular, para depois, em 2008, mudar para a A
Biodana na facilitao do desenvolvimento da identidade pessoal em um grupo
popular. A escolha do tema no segundo projeto foi investigar um grupo de Biodana
que acontecia no bairro do Grande Bom Jardim (territrio da Secretaria Executiva
Regional V do Municpio de Fortaleza), do qual faziam parte lideranas e educadores
comunitrios, alm de moradores dessa comunidade. que a partir do trabalho do
6 Compartilhando ainda com os marcos terico-metodolgicos da Psicologia da Libertao (Martin-Bar), da Educao Libertadora (Paulo Freire), da Teoria Histrico-Cultural da Mente (Vygotsky) e da Teoria Rogeriana (Carl
Rogers).
25
MSMCBJ (Movimento de Sade Mental Comunitrio do Bom Jardim), os grupos de
Biodana puderam ser mais popularizados e acessibilizados populao carente, ainda
que no estivessem inseridos em uma atuao ampla em Psicologia Comunitria
propriamente dita.
Ocorreu que, no exerccio da funo de Coordenadora Regional de Sade Mental da
SER V (Secretaria Executiva Regional V do Municpio de Fortaleza), cargo que assumi
de outubro de 2006 julho de 2009, novas tramas e realidades foram emergindo a partir
da tarefa de direcionar a implantao da poltica de sade mental, pautada nos princpios
do SUS (Sistema nico de Sade), da reforma psiquitrica e da luta anti manicomial,
concepes que fundamentavam a Poltica Municipal de Sade Mental. Nesse novo
contexto foi que surgiu o desafio de implantar estes inovadores princpios de promoo
e preveno sade, de modo a reverter os graves problemas de sade mental sofridos
pela populao em direo a construo da qualidade de vida dos indivduos e
comunidades.
Movida por esta compreenso, em novembro de 2007 entrei em contato com o
NUCOM, buscando dialogar com este projeto de extenso e refletir, diante das suas
atuais propostas e campos de atuao, sobre possibilidades de parceria e colaborao
para esse campo da sade. A princpio no havia uma proposta clara, havia sim uma
necessidade de atuao dentro dos moldes acima evidenciados, j que os profissionais
da sade ainda tinham uma experincia mais distante dessa perspectiva. A hiptese era
de que os extensionistas de psicologia pudessem contribuir tanto na formao dos
profissionais da sade como em intervenes no mbito comunitrio, nos moldes da
Psicologia Comunitria.
A partir de agosto de 2007, ento, formalizou-se uma parceria entre NUCOM,
MSMCBJ (Movimento de Sade Mental Comunitrio do Bom Jardim) e CAPS (Centro
de Ateno Psicossocial), desde a qual foram implantadas trs frentes de trabalho, cujo
objetivo maior seria realizar uma interveno comunitria conjunta e intersetorial no
mbito da sade mental, voltada para a formao de grupos populares.
A partir da entrada do NUCOM nesse territrio, do meu envolvimento e
participao profissional direta na construo desse trabalho, a despeito do meu projeto
de mestrado j em andamento, ao trmino de 2008 optei por investigar os grupos
populares que do referido trabalho em parceira foram implantados. Particularmente
optei pelo grupo constitudo na comunidade do Marrocos. que vislumbrei nesta
proposio uma estratgia de atuao mais ampla, fundamentada, por um lado, nos
26
moldes da Psicologia Comunitria e, por outro, nos modos de facilitao vivencial
atravs das diversas linguagens artsticas. Esse me pareceu um campo mais aproximado
das minhas inquietaes e interesses de investigao.
O grupo popular em questo teve incio em setembro de 2008, aberto a
comunidade e dirigido a adultos homens e mulheres, com a proposta de acontecer
semanalmente. Sua divulgao foi feita atravs de visitas domiciliares e de algumas
lideranas comunitrias informais que convidaram os moradores. A proposta do grupo
(de acordo com relatos dos profissionais responsveis) foi que este pudesse funcionar
como um espao de mobilizao e participao comunitria, enfocando o cuidado
individual e a construo de vnculos comunitrios.
A metodologia de facilitao elegida pelos profissionais foi de carter dialgico-
vivencial, em coerncia com o referencial terico-metodolgico da Psicologia
Comunitria (GIS,1993, 2005, 2008). Como j explicitado na introduo ( o que ainda
ser aprofundado posteriormente), a abordagem da Biodana (desdobrada tambm na
construo das oficinas de Arte- Identidade) um referencial relevante para a
construo de uma concepo de arte como mtodo vivencial. Desse modo, atravs do
dilogo, pretendia-se estimular problematizaes reflexivas sobre as condies de vida
em geral, individuais e sociais. Por sua vez, atravs da utilizao das diversas
modalidades de expresso artstica, tais como msica, dana e produes plsticas,
buscou-se deflagrar vivncias criativas, afetivas e transcendentais, capazes de facilitar o
processo de desenvolvimento e de libertao dos indivduos.
Ressalto, entretanto, que o grupo popular em questo foi nomeado de grupo de
autoestima, deciso justificada pelas facilitadoras e consensuada com os parceiros
institucionais pela facilidade com que a comunidade tinha em aceitar e compreender os
objetivos dessa abordagem. Na verdade, os grupos de autoestima eram baseados numa
abordagem j instituda e divulgada pela prtica do MSMCBJ. O conceito dessa
terminologia para os trabalhos em grupo relaciona-se seguinte concepo, como
explica Sombra (2009, p. 82):
Em dilogo com os coordenadores da instituio- MSMCBJ-, estes
nos esclareceram que o termo autoestima visto na comunidade
como o mais popular, sendo, portanto mais bem aceito pelos
participantes do que outros, tais como Biodana, Psicologia
Transpessoal, Arte-terapia ou Arte-identidade. Ou seja, o trabalho
desenvolvido na perspectiva da autoestima no MSMCBJ integra vrias
27
abordagens de facilitao de grupos, a depender do facilitador, o que
faz com que alguns foquem mais no corpo, outros na arte, outros na
dana, enfim.
Assim, fruto de um amadurecimento reflexivo-terico prprio do processo de
elaborao do projeto de pesquisa e da minha realidade prtica atual, considerei que
nestes tipos de abordagem a vivncia emergia como categoria bsica dos modos de
facilitao dos grupos populares (PINHO et al., 2009), apresentando-se para mim como
uma dimenso abrangente, fundamento principal tanto da Biodana como das mltiplas
intervenes teraputicas pautadas na dimenso corporal, na expresso esttica e no-
verbal que vinham se afirmando no mbito de intervenes na comunidade.
Entretanto, aos poucos fui compreendendo que a vivncia em si, como categoria
ontolgica e epistemolgica, no se configurava diretamente como mtodo, mas sim
como uma experincia psquica. Ela necessitava, ento, de um sistema simblico capaz
de mediar e realizar essa vinculao metodolgica, de objetiv-la: afirmou-se a a
compreenso da arte como mtodo vivencial, concepo que ser posteriormente
amplamente explorada em um dos captulos dessa pesquisa.
A nfase desta problematizao aqui em questo foi um dos pontos chaves
questionados pela comisso julgadora do Exame Geral de Conhecimento que prestei,
ocorrido no ms de junho de 2009: o que eu buscava investigar era a Biodana, a Arte-
Identidade, a vivncia ou a arte? Enfim, era a arte, em seus mltiplos usos e funes, a
partir de suas originais formas de manifestao na vida humana. Este percurso foi
interessante, por que eu j havia iniciado o projeto pela arte, mas somente depois de
tantas voltas, pude novamente afirm-la como campo vlido e vivel de investigao:
por fim pude retornar aos meus interesses mais profundos de pesquisa.
Cheguei, ento, a considerao de que a expresso artstica, em suas diversas
manifestaes antropolgicas e psicolgicas mais originais, era o aspecto mais global e
sinttico que fundamentava os diversos modos de facilitao vivencial atravs da
linguagem esttico-expressiva, inclusive que fundamentavam a prpria construo do
modelo terico-metodolgico da Biodana e as concepes sobre a Arte- Identidade,
assim como outras abordagens no campo da psicologia. Foi diante dessa trajetria que
fui chegando a proposio de investigar sobre a arte como mtodo vivencial de
facilitao em grupos populares, afirmando o grupo de autoestima do Marrocos como
um campo propcio para esta pesquisa.
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2.2. O contexto do grupo de autoestima do Marrocos
O grupo popular enfocado nessa pesquisa situa-se territorialmente no Bairro do
Grande Bom Jardim, por sua vez, inserido no territrio da Secretaria Executiva
Regional V do Municpio de Fortaleza. Segundo dados da CDVHS- Centro de Defesa
da Vida Herbert de Souza (2005), esta uma das reas mais populosas deste municpio,
contento uma populao de 205.090 habitantes, distribuda em uma rea geogrfica de
aproximadamente 18.700ha no total. Nesta populao predomina um contingente
feminino e uma faixa etria de 0 a 15 e 25 a 59 anos (predominncia da populao
adulta produtiva e de crianas). A grande maioria de seus habitantes provm do interior
do Estado do Cear e de outros bairros perifricos e metropolitanos de Fortaleza.
As classes socioeconmicas predominantes desse bairro so a classe mdia baixa
e classe baixa, configuradas a partir de condies socioeconmicas de pobreza. Esta
populao conta com pouco investimento das Polticas Pblicas de Sade, Educao,
Assistncia Social, Habitao e Meio Ambiente, apresentando altos nveis de
desemprego, baixo desenvolvimento local e problemas sociais de violncia, alcoolismo
e drogadio. As condies de moradia que predominam so domiclios feitos de
alvenaria, tendo, a maioria, at dois quartos. Aproximadamente nos 50% desses
domiclios convivem cinco ou mais residentes. H uma infraestrutura de esgoto e
abastecimento de gua em geral, mas nas reas de assentamento os moradores possuem
apenas ligaes clandestinas, improvisando muitas vezes torneiras coletivas para seu
consumo (NUNES; BRITO; MENDONA et al., 2006), sem contar tampouco com
saneamento bsico.
Segundo Nunes et al. (2006), historicamente, o Grande Bom Jardim foi, no
incio do sculo XX, uma regio de grandes propriedades rurais privadas, caracterstica
do modo de ocupao Cearense. Estas propriedades foram posteriormente loteadas na
dcada de 60 e vendidas por preos acessveis, acolhendo retirantes sertanejos que neste
momento migraram para Fortaleza. Aos poucos, novos grupos populacionais provindos
do interior do Estado foram fazendo crescer o nmero de moradores do bairro, que
terminou assim por desmembrar-se (devido a sua grande proporo) em cinco bairros:
Bom Jardim, Siqueira, Granja Portugal, Granja Lisboa e Canidezinho. Ainda assim,
cada um desses bairros por sua vez formado por vrias localidades.
dentro do Grande Bom Jardim que se encontra a comunidade do Marrocos,
onde foi realizada a pesquisa, estando esta inserida oficialmente na localidade Santa
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Ceclia que pertence ao bairro da Granja Portugal, mas considerada pela comunidade
inserida no bairro do Bom Jardim. Esta comunidade surgiu h aproximadamente 8 anos,
a partir da ocupao de um grande terreno, que era considerado espao de desova de
corpos assassinados (relato dos moradores, D.C.9. 05/11/2008)7. A origem do nome
provm de uma associao com a cidade do Marrocos, focada pela novela exibida
pela Globo O Clone, em 2001, poca em que se deu a ocupao do referido terreno.
Tal como o bairro do Bom Jardim, essa localidade possui alto ndice de violncia,
alcoolismo e drogadio. A populao constituda predominantemente por mulheres e
crianas, poucos tm emprego de carteira assinada: a maioria vive de bicos ou
servios autnomos. Sendo esta uma rea de ocupao, quase que absolutamente
desprovida de assistncia educacional, sade, saneamento bsico, segurana pblica e
equipamentos de lazer (CDVHS, 2005), no possibilitando aos seus moradores o acesso
ao trabalho e a oportunidades de desenvolvimento local.
2.2.1. O grupo
O grupo de autoestima do Marrocos iniciou-se no quintal da casa de uma das
moradoras, permanecendo a por um perodo de aproximadamente seis meses.
Posteriormente, foi se deslocando por outros espaos improvisados nas casas de outras
moradoras, devido a inexistncia de um espao especfico na comunidade para a
realizao desse tipo de atividade. Em junho de 2009 foi inaugurada uma telhosa
construda pelos moradores a partir de recursos da Prefeitura Municipal de Fortaleza,
repassados atravs do MSMCBJ, espao que serviu em alguns momentos para a
realizao das sesses, embora tambm de forma instvel, pois sua estrutura fsica total
ainda permaneceu em processo de construo pelos meses seguintes.
Era um grupo aberto, destinado a trabalhar com homens e mulheres adultos,
embora tenha sido formado exclusivamente por mulheres. Iniciou-se com um nmero
de quinze participantes, embora, durante todo o perodo de um ano, manteve uma matriz
estvel de apenas seis mulheres. Acontecia semanalmente, todas as quartas-feiras, no
horrio das 15:00 h s 17:00 h. Inicialmente, era facilitado de forma rotativa por quatro
profissionais, sendo dois dos CAPS e dois extensionistas do NUCOM. Posteriormente,
passou a ser facilitado pelas duas profissionais do CAPS, de modo que no decorrer do
7 D. C. uma sigla que ser utilizada nesta pesquisa para designar Dirio de Campo, como mais adiante, ainda neste captulo, ser explicado detalhadamente.
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trabalho os outros dois extensionistas do NUCOM passaram a dedicar-se a realizao de
outras atividades naquela comunidade. Como profissional da sade mental, minha
participao no grupo deu-se inicialmente como apoiadora, mediando e articulando a
implantao daquela ao comunitria no territrio da SER V. Posteriormente, a partir
da definio desse campo de pesquisa, assumi o papel de pesquisadora.
Havia um planejamento prvio bsico das sesses, que acontecia logo no incio
da tarde no espao do CAPS, onde se reuniam as facilitadoras e os extensionistas,
momento no qual tambm eu participava. Estes momentos eram bastante ricos, repletos
de reflexes e discusses sobre as possibilidades de atuao, sobre a temtica que se iria
abordar, sobre os resultados e dificuldades do trabalho. J em campo, no tempo prvio
ao incio das sesses, visitvamos as casas e caminhvamos pela comunidade,
momentos que possibilitaram conversas informais, interao com os moradores,
conhecimento de seus modos de vida e o estabelecimento de vnculos.
As dinmicas das sesses eram organizadas a partir de uma proposio
metodolgica dialgico-vivencial, como j explicitado. No incio, havia uma conversa
na qual eram enfocados os relatos das participantes sobre fatos do seu cotidiano, ideias e
sentimentos despertados, reflexes e mesmo impresses sobre a sesso anterior. Nas
falas, muitas mulheres traziam problemticas pessoais e da comunidade, tais como: a
questo do alcoolismo e da drogadio, os conflitos relacionais e conjugais, a relao
com os filhos, com o trabalho, dentre outros. Tambm nesta ocasio, os profissionais
expunham algumas ideias sobre os objetivos do grupo, as temticas a serem abordadas e
as compreenses sobre as questes levantadas pelas mulheres.
O momento vivencial era dedicado atividade artstica, no qual eram utilizados
exerccios de Biodana (dana, msica), expresso esttica plstica (colagens, pinturas,
massinha, costura, etc.). Nos seis primeiros meses, prevaleceu a utilizao de exerccios
corporais, mesclados com a construo de produes artsticas onde a msica era um
elemento de fundo constante. No segundo semestre de 2009, devido a dificuldade do
espao, prevaleceu na dinmica grupal a utilizao de produes plsticas sem a
utilizao da msica ou de trabalhos corporais. Em outras ocasies, as sesses focavam
apenas o dilogo. Ressalto tambm que as sesses foram intercaladas com momentos de
organizao e planejamento para outras aes na comunidade.
De janeiro junho de 2009 houve uma quebra no funcionamento do grupo, tanto
devido as frias dos profissionais, como a posterior dificuldade de encontrar um espao
mais apropriado para sua efetivao. Foi nesse perodo que houve uma maior dedicao
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a organizao de outras atividades comunitrias, tais como visitas a rea e mutires. De
fato, desde sua concepo original a formao desse grupo buscou objetivos mais
amplos, tais como articular-se com outras instituies e grupos atuantes nessa
comunidade e ao mesmo tempo ser um espao chave de organizao comunitria. A
tambm se podia conhecer necessidades e mobilizar aes comunitrias capazes de
influir na transformao da realidade. Assim, a partir da matriz do trabalho nesse grupo,
foram se desdobrando inmeras outras aes, como mutires de sade (atendimento
mdico e mediao com as unidades bsicas de sade de referncia), interlocuo com a
Poltica de Assistncia Social, formao de um grupo de criana, atividade de escuta
teraputica, visitas domiciliares, mutiro para construo da telhoa, dentre outras.
O grupo voltou a funcionar em seu modo inicial a partir de junho de 2009,
acontecendo, entretanto, a partir da, de forma pouco sistemtica e instvel, devido a j
citada dificuldade de espao. Considero que o trabalho de campo desta pesquisa foi
realizado integralmente desde o incio do grupo at novembro de 2009, momento no
qual se deu novamente uma interrupo em seu funcionamento, devido a uma
desmobilizao das participantes e a aproximao das festas de final de ano. Neste
momento ainda pude participar de reunies com as facilitadoras que tiveram o objetivo
de avaliar o trabalho comunitrio e, inclusive, buscar novas estratgias para mobilizar a
comunidade e redirecionar as aes no campo.
Devido a estas caractersticas e a sua acessibilidade, elegi este grupo para a
realizao da minha pesquisa, por considerar que ele rene as condies importantes
relacionadas com o tema que busquei investigar. Como j explicitado, o grupo foi
formado exclusivamente por mulheres, mas este fato no determinou que a configurao
dessa pesquisa focasse especificamente uma questo de gnero. Minha proposta foi
assim acompanhar sistematicamente as sesses do grupo, ao mesmo tempo em que
busquei inserir-me na vida comunitria de seus participantes, a partir de uma insero
etnogrfica.
2.2.2. As participantes da pesquisa
Dentre as oscilaes do funcionamento do grupo de autoestima, muitas mulheres
passaram por este espao, algumas vinham uma vez, curiosas; outras se mudaram da
comunidade; outras desistiram; outras tiveram que voltar a trabalhar; algumas
simplesmente no se interessaram mais em estar ali. Muitos moradores e moradoras
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foram convidados a participar, mas somente seis permanecero persistentemente.
Considerei estas seis mulheres, que afirmaram uma matriz grupal, as elegidas como
participantes da pesquisa. Estas vieram ao longo do trabalho mostrando compromisso e
envolvimento tanto com o grupo, atravs de sua participao assdua, como com as
inmeras aes comunitrias que a partir desde se desdobraram, sendo estes critrios
para essa escolha.
O nome de cada uma delas soa em mim com fora, garra e admirao, afirmando
a identidade e a lembrana afetuosa dos rostos em minha memria e em meu corao.
Entretanto, seus nomes sero aqui fictcios, sendo este um modo de resguardar e cuidar
da intimidade da vida dessas pessoas, mas sobre tudo, podendo ser a possibilidade de
ressaltar o respeito e a admirao que desenvolvi por elas, por suas histrias de vida, por
seus processos de superao e por suas lutas para conquistar a felicidade. A eleio dos
nomes fictcios foi feita a partir da vinculao que cada nome em mim suscitou,
aparentemente de forma aleatria, mas guardando uma relao subjetiva e intuitiva com
a personalidade de cada uma. Outras moradoras da comunidade tambm sero citadas, e
faro parte dessa trajetria de insero comunitria, sem, entretanto, terem uma
nomeao especfica.
Gardnia
Era a mais alta do grupo, tinha um cabelo longo e loiro, olhos verdes e pele
clara, tinha vinte e poucos anos de idade. Era bonita e cheia de garra, naturalmente
alegre, afetiva e vivaz. Costurava tapetes coloridos com pedaos de retalhos para vender
na feira, da tirava seu sustento. Essa atividade era realizada por suas outras duas irms,
pois elas haviam aprendido esse ofcio com a me. Tinha dois filhos, um menino de dez
anos e uma menina de treze. Estes em muitos momentos participaram das sesses. Fez
parte do grupo desde o incio, tendo sido uma das mais assduas, alm de se
disponibilizar para mobilizar e articular a comunidade: foi uma das participantes que
divulgou e convidou muitas pessoas para o grupo de autoestima, realizou as inscries e
organizou em conjunto conosco o mutiro da sade, dentre outras aes comunitrias.
Sua casa estava sempre aberta, lugar onde na maioria das ocasies preparvamos o
lanche, um cafezinho, nos encontrvamos antes das sesses. Em vrias ocasies, o
grupo foi realizado em sua casa. Sua dificuldade maior era a relao conflituosa com o
marido, que era usurio de drogas, passando por diversos momentos nos quais tentou se
separar.
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Maria
Era uma senhora de meia-idade. Tinha trs filhos, dois ainda crianas e um deles
tinha uma deficincia contrada no parto, talvez uma paralisia cerebral leve, o que o
impedia de andar. Maria era uma mulher sofrida que constantemente expressava sua
experincia de sofrimento nas sesses. Suas queixas se relacionavam principalmente
com o conflito que tinha com o marido, com sua dependncia da bebida alcolica e com
a condio de deficincia do seu filho mais novo. A dependncia do lcool vivida por
ela e por seu marido gerava uma srie de situaes de violncia e agresses, que
permeava sua vida e seus relacionamentos. Ao mesmo tempo, mostrava-se uma mulher
de fibra, pois vivia nessa situao h muitos anos, buscando manter sua estrutura
familiar. Vivia em uma casa feita de tbuas de madeira, bastante precria, que havia
sido construda pelo marido com material que ele juntava como catador. Entretanto, o
terreno que morava era grande e bastante arborizado, lembrava a estrutura de um stio
da zona rural. Maria tambm participou do grupo de forma assdua, embora tenha
faltado algumas sesses.
Ftima
Era uma mulher forte, de estrutura fsica encorpada, muito afetiva, alegre e
decidida. Morava na esquina da rua principal, onde funcionava um pequeno
bar/mercearia no qual ela e o marido vendiam bombos e bebidas, alm de fazerem um
churrasquinho de espeto no final da tarde. Esta moradora se destacou como uma
liderana informal. Na verdade, ela j tinha um histrico de realizao de trabalhos
comunitrios naquela localidade, tendo participado de vrias mobilizaes de uma
antiga associao comunitria, da organizao do grupo de orao e mesmo da
organizao e mobilizao do grupo de autoestima. Atualmente seu marido realiza um
grupo de futebol com as crianas. Este casal foi um dos pioneiros da ocupao daquele
territrio. Foi no quintal da sua casa que iniciamos as sesses do grupo, espao onde
tambm eram concentradas muitas atividades da igreja e com as crianas. Ela era o pilar
da sua famlia, pois sustentava financeiramente e emocionalmente a todos: uma das
filhas e sua neta; a me com cegueira j avanada e uma irm acamada que havia
sofrido de um derrame cerebral. Cuidava ainda dos dois filhos gmeos dessa irm, que
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tinham apenas um ano de idade. Estes familiares no moravam em sua casa, mas em
casas que compartilhavam o quintal com o seu. No grupo, Ftima era bastante
participativa, sempre se colocando com sinceridade, trazendo reflexes importantes
sobre a vida e as pessoas, buscando aprofundar e compreender a realidade. Era muito
cuidadosa conosco e com as demais participantes.
Lcia
Era uma baiana jovem, que havia chegado ao Marrocos por haver casado com
um cearense. No trabalhava fora, dedicando-se ao cuidado da casa e do filho de dois
anos. Sempre trazia o filho para as sesses, pois no tinha com quem deix-lo. Era
muito cuidadosa com este, preocupada com sua aparncia, com sua higiene, atenta para
que ele no se machucasse nem se sujasse. Esta preocupao constante lhe dificultava
concentrar-se nas atividades do grupo. Era doce e carinhosa, afetiva com as outras
mulheres. s vezes ficava mais calada e observando, outras, conseguia interagir e se
expressar mais fluentemente. Lcia tinha hbitos diferentes daquela comunidade e
constantemente relatava sentir saudade da sua terra natal e da sua famlia, tinha vontade
de voltar. Tambm participou assiduamente do grupo e de outras atividades realizadas.
Milagro
Era a mais jovem do grupo, no tendo ainda completado dezoito anos. Ela ainda
estudava e trabalhava cuidando de crianas da comunidade. Participava tambm de
atividades da igreja. No incio, era muito calada, quase no se expressava, tinha um ar
de mistrio, pois ns pouco sabamos o que se passava com ela ou sobre sua vida.
Interagia pouco, tinha um aspecto triste e fechado, embora sua participao nas sesses
fosse bastante assdua. Posteriormente, comeou a participar e a falar mais, interagindo
e criando vnculos com as outras mulheres do grupo, realizando produes artsticas
muito criativas. Num determinado momento, passou a cuidar da casa da Gardnia, pois
precisava trabalhar para ganhar algum dinheiro, j que dividia as despesas da casa com
a me, com quem morava.
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Francisca
Era uma mulher forte e sria, aparentava um semblante de calma, mas ao mesmo
tempo, de tristeza. Ela havia projetado e construdo sua prpria casa, que era conhecida
como a manso do Marrocos, devido as suas propores (bem ampla e arejada, maior
que as demais) e por seu estilo arquitetnico (tinha sala de visita, de jantar, trs quartos,
varanda e at cozinha americana). Cuidava de um neto de trs anos e vivia com uma
filha adolescente e o marido. Trabalhava como faxineira diarista, mas atualmente estava
com pouco servio. Nas horas vagas, dedicava-se a fazer redes, de uma forma bastante
original e criativa. Ela havia desenvolvido uma tcnica de fazer os fios da rede com
pedaos de sacos plsticos: muito criativa. Trazia tambm muitas reflexes importantes
para o grupo, demonstrando muita maturidade e sensatez. No tinha um bom
relacionament