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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO
CENTRO DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE CINCIAS SOCIAIS
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM ANTROPOLOGIA
ANNA BEATRIZ ZANINE KOSLINSKI
A minha nao nag, a vocs eu vou apresentar
Mito, Simbolismo e Identidade na Nao do Maracatu Porto Rico
ORIENTADORA: Profa. Dra. Maria Aparecida Lopes Nogueira
RECIFE
2011
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ANNA BEATRIZ ZANINE KOSLINSKI
A minha nao nag, a vocs eu vou apresentar
Mito, Simbolismo e Identidade na Nao do Maracatu Porto Rico
RECIFE
2011
Dissertao orientada pelaProfa. Dra. Maria Aparecida
Lopes Nogueira, apresentadaao Programa de Ps-Graduao em Antropologia daUniversidade Federal dePernambuco, como requisito
parcial para a obteno de graude mestre.
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Agradecimentos
Agradeo primeiramente minha orientadora Maria Aparecida Lopes Nogueira, por
todo o aprendizado, pela pacincia, por ter me orientado de modo a permitir que eu obtivesse
minha autonomia, por todo o carinho e afetividade e, principalmente, por me apresentar a uma
racionalidade aberta e, acima de tudo, encantada. Ao meu co-orientador, Roberto Motta pela
gentileza, pacincia e aprendizado. professora Lady Selma Albernaz, pelas conversas
enriquecedoras, pelo carinho e pelo amparo. Aos membros da banca examinadora Jos Jorge
de Carvalho, Isabel Guillen, Roberto Motta e Carlos Sandroni por terem aceitado o convite. A
Regina, funcionria da secretaria do PPGA, por todo o carinho, pacincia e ajuda.
Aos professores do Departamento de Antropologia da Universidade Federal do Paran,
Luis Cludio Symanski, Marcos Silva da Silveira e Ricardo Cid Fernandes por todo apoio,
estmulo e aprendizagem ao longo do curso de Cincias Sociais da UFPR. meu orientador
no estgio que fiz na Fundao Cultural de Curitiba, Ozanam Aparecido de Souza, pela
formao e convivncia enriquecedora.
Aos meus pais Dionsio e Rita, aos meus irmos Victor e Paula pelo apoio e respeito sminhas escolhas. A Gabi e Dothy pelo carinho e companheirismo. minha madrinha,
D.Maria, por tudo.
Aos meus inesquecveis colegas de batucada em Curitiba, Fefi, Renata Sousa, Ana
Ahoy, Bruna, Gusto, Carco, Genevive, Anne, Janis, Cau, Carlito, Hel, Lucas, Cludia,
Rudy, Murilo, Nadine, Michele, Nelson, Dilma, Brenda, Pri Dias e Julia. famlia Fagundes,
especialmente a Mariana, pela infinita pacincia e generosidade, para mim voc foi uma
mestra, em todos os sentidos, a Fernando e Andr, pelas piadas, risadas, bobeiras, afeto,
leveza e alegria. Ao quarteto simptico, Pati, Re e Dani pelo companheirismo, confiana,
palhaadas e afeto.
Especialmente a Mema, minha companheira de aventuras terrestres e antropolgicas,
pela amizade, afeto, apoio e risadas.
A Thaci, pelo carinho e apoio incondicional nos momentos difceis no meu primeiro
ano em Recife.
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minha famlia em Recife, Me Andra, Pop, Marlia e Guilherme, pelo carinho, colo
e acolhida. Aos amigos Antonio Lagartixa, Carol Gonalves.
A Jamesson pela amizade, apoio, parceria, conversas, bobeiras e construo. Obrigadapor ter sido um interlocutor ao longo de minha pesquisa e por me fazer crescer.
A Isabel Guillen, pelas oportunidades de pesquisa, conversas e pacincia. A Ivaldo,
pelas tensas discusses; devo a voc grande parte do que aprendi sobre os maracatus.
Aos colegas da equipe de pesquisa do Inventrio Sonoro dos Maracatus-Nao de
Pernambuco, Dani, Roberta, Jamila (negras gatas), Walter, Rasta, Alis, Adriano e Alfredo
Bello pela amizade, convvio e aprendizado.
Aos colegas de turma do PPGA, especialmente a Martn, Jailma, Tati, Nbia, Edi,
Izidro e Orlando. Aos colegas dos Seminrios de Orientao, pela contribuio intelectual e
reflexes.
A Chacon e Elda Viana e demais maracatuzeiros da Nao Porto Rico, especialmente
Cau, Rico, Wendson, Ivan e Ruminig, pela pacincia, boa vontade e colaborao. Aos demais
maracatuzeiros das outras naes de maracatu, com quem tive oportunidade de conversar e
aprender ao longo desses dois anos em Recife.
Ao CnpqConselho Nacional de Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgicoque financiou
essa pesquisa.
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...El camino se hace al andar...
Antonio Machado, poeta sevilhano
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RESUMO
Nas ultimas dcadas e, principalmente, nesse incio de sculo, observamos uma conquista de
espaos e visibilidade dos maracatus-nao pernambucanos no s em Pernambuco como em
diversos estados brasileiros. Nesse contexto, onde a manifestao se tornou, dentre outras
coisas, atrao turstica percebemos que, categorias como religiosidade, tradio e mesmo
africanidade se tornaram valores presentes nos grupos, valores que, de certa forma lhes
conferem autenticidade. Apesar da recorrncia desses valores, o modo como cada grupo
articula com eles muito diverso, criando uma srie de particularidades e contribuindo para a
construo de suas identidades. A presente pesquisa tem como objetivo compreender oprocesso de construo de identidade dos maracatuzeiros da Nao do Maracatu Porto Rico,
uma das naes com maior visibilidade na cidade do Recife e arredores. Deste modo,
buscaremos tal compreenso atravs do estudo dos rituais e simbolismo articulados dentro do
grupo, que tem como caracterstica marcante a forte vivncia religiosa, que muitas vezes d
sustentao as suas escolhas e atitudes, como tambm do estudo da narrativa de origem do
grupo, que pode ser compreendida como sendo um mito, sendo concretizado por meio de
celebraes, loas e discursos proferidos pelas lideranas e pelos demais maracatuzeiros danao.
Palavras Chaves: maracatu-nao Porto Rico; religiosidade afro-indo-brasileira; simbolismo,
mito; tradio; mercado cultural; Recife.
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ABSTRACT
My nation is nag andI wil l introduce it to you:
Myth, Symboli sm and I denti ty atNao do Maracatu Porto Rico
In the last decade, especially in the beginning of the 21st century, it has been observed a raiseof spaces and visibility of the maracatus-nao from Pernambuco, not only in such state,but also in other parts of Brazil. In this context, where the manifestation has become, among
several things, a tourist attraction, we have noticed that, categories such as religion, traditionand even africanity have become recurrent values in the groups, values that, in a way, givesthem authenticity. Despite the recurrence of such values, the way each group operates withthem is diverse, creating a series of particular aspects, and contributing to the construction oftheir identities. The present research has as an objective, the comprehension of the identityconstruction process of the members from Nao do Maracatu Porto Rico, one of the most
famous maracatus-nao in Recife. In order to reach this objective, we intend to analyze therituals and their symbolism operated by the group, which has the religiosity as a strong
feature that most times holds its choices and attitudes. The research will also analyze thegroups origin narrative, which can also be understood as a myth, been reaffirmed on
celebrations, songs and discourses made by the liderances and other members of the Naodo Maracatu Porto Rico.
Keywords: maracatu-nao Porto Rico; Afro-Indian-Brazilian religion, symbolism, myth,tradition, cultural market, Recife.
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SUMRIO
Introduo 10
1. Insero no campo: trajetria de uma batuqueira paranaense de classe mdia. 112. A dupla insero como pesquisadora
e batuqueira: riscos e facilidades. 16
3. Identidade, religiosidade, mito e tradio. 19Captulo 1
Contextualizando o objeto de pesquisa
1. Os maracatus-nao pernambucanos: do quase desaparecimento ascenso. 22
2. A Nao do Maracatu Porto Rico. 33
2.1. Rainha Elda e Mestre Jaime: dinamicidade e vitrias. 33
2.2. A Era Chacon. 38
2.3. O Porto Rico de hoje. 43
Captulo 2
Religiosidade e articulao simblica na Nao Porto Rico 48
1. Religio com enfoque nas categorias de sagrado e profano: o modelodurkheiminiano. 48
2. Uma classificao para as religies afro-indo-brasileiras. 513. Maracatus-nao e religio: uma relao construda e ressignificada ao longo dos
anos. 53
4. A religiosidade na Nao Porto Rico. 605. O carnaval como ritual: da obrigao contagem de pontos. 66
5.1. O dia da obrigao 675.2. A semana pr-carnaval. 735.3. Descrio do desfile. 745.4. Anlise do ritual obrigao-desfile. 79
Captulo 3
A Nao Porto Rico entre mito, tradio e mercado cultural 85
1. Nao Porto Rico: uma origem, diversas verses. 87
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2. Narrativa de origem da Nao Porto Rico: nas fronteiras entre mito e histria. 1013. Tradio: o alicerce que sustenta a Nao Porto Rico. 1084. A Nao Porto Rico e o Mercado Cultural. 116
Consideraes Finais 130
Referncias 140
Anexos 145
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INTRODUO
Maracatu-Nao ou maracatu de baque virado uma manifestao popular afro-
brasileira com forte presena no estado de Pernambuco. Encontrar uma descrio exata do
que o maracatu-nao se torna tarefa difcil, tamanha a complexidade do termo, mas em
linhas bem gerais pode-se descrever o maracatu-nao como sendo uma manifestao que,
denomina um ritmo que produzido por uma bateria ou batuque, composto apenas de
instrumentos de percusso, e tambm a dana executada ao som desse batuque. A descrio
um tanto reducionista, no entanto, ao longo da dissertao outras dimenses dos maracatus-
nao sero abordadas com mais profundidade. Geralmente as naes de maracatu formamblocos de apresentao compostos pelos batuqueiros (percussionistas) e pelos danarinos
que encenam uma corte com rei, rainha, princesas, duques, vassalos, representando tambm
personagens da cultura popular e religiosidade afro-indo-brasileira1 como caboclos arream,
baianas e divindades do xang e jurema.
Nos dias de hoje, a manifestao tem ganhado cada vez mais visibilidade na cidade de
Recife e arredores, graas ao investimento dos rgos pblicos e privados, que vem nas
manifestaes da cultura popular um chamariz para o turismo e mais um produto a ser
consumido. De fato, observa-se uma valorizao da cultura popular no s a nvel nacional,
como tambm mundial (Carvalho,2004; Eriksen, 2005). Junto dessa visibilidade, surge
tambm a emergncia de algumas categorias que passam a ser extremamente valorizadas e
reafirmadas dentro dos maracatus nao, como a religiosidade e tradio. No entanto, o modo
como cada grupo articula com tais categorias diverso, sendo que cada nao possui suas
particularidades. As particularidades de cada grupo auxiliam na construo de sua imagem e
identidade, pois a identidade se constri dentro de um jogo de espelhos (Barth, 1969;
Oliveira, 1978), ou seja, no confronto das diferenas que um grupo se reconhece como o que
(Bauman, 2005; Hall, 2006; Eriksen, 2005).
A presente pesquisa pretende compreender o processo de construo de identidade dos
maracatuzeiros de uma das naes com maior visibilidade na cidade do Recife e arredores: a
1Ao longo dessa dissertao utilizo o termo religies-afro-indo-brasileiras adotado pelo antroplogo Roberto
Motta, para me referir as religies de culto aos orixs e s entidades da jurema, por considerar ser o termo menosexcludente, pois aborda as contribuies de origem africana, amerndia e brasileira presentes nessas religies.
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Nao do Maracatu Porto Rico, que tem como caracterstica marcante a forte vivncia
religiosa dos participantes e uma histria permeada por polmicas.
1. Insero no campo: trajetria de uma batuqueira paranaense de classe mdiaA insero em campo se deu de forma relativamente tranqila devido vivncia prvia
que tive com os maracatus-nao. O relato do modo como descobri a existncia dos
maracatus-nao, permeado de idealizaes e romantismo, como deve ser o caso do relato
da maioria dos jovens de classe mdia como eu. Atravs do sucesso alcanado por Chico
Science, eu j havia ouvido falar desse tal maracatu e na minha cabea, ele era associado a
tambores e a um personagem que usava um traje com longas e extravagantes franjas
coloridas2.
No entanto, meu primeiro contato com aquilo que eu acreditava ser um maracatu
autntico foi em Antonina no ano de 2003, num arrasto de um grupo percussivo curitibano
chamado Boizinho Faceiro que ocorreu durante o 13 Festival de Inverno da Universidade
Federal do Paran. Quando ouvi aquela batucada de longe, eu logo fui atrs para ver o que
era e, ao encontrar aquele aglomerado de pessoas tocando tambores, fiquei hipnotizada,emocionada e dancei muito junto dos outros jovens que participavam do evento. Quando o
batuque se encerrou, fui procurar um dos percussionistas e imediatamente perguntei o que era
aquela batucada; disseram-me simplesmente que era maracatu e que era afro-brasileiro. Na
poca acreditei que aquilo, que aquela simples batucada era o maracatu, sem saber da
complexidade da manifestao e do termo que a designava.
Trs anos se passaram at que eu voltasse a ter contato com algum grupo percussivo
(que na minha concepo era maracatu). No incio de 2006, fiquei sabendo da existncia de
uma oficina de maracatu, da qual muitos jovens interessados em cultura popular participavam.
A oficina era ministrada por Mariana Fagundes, sobrinha do musicista Antnio Nbrega e
percussionista do Boizinho Faceiro. Para a minha decepo, quando cheguei oficina havia
apenas cerca de seis pessoas, que me contaram que o restante dos alunos haviam se juntado
com outro percussionista Leandro Teixeira para formar o grupo percussivo chamado
2
Na poca eu no sabia da existncia de mais de um tipo de maracatu, portanto acreditava que alfaias e caboclosde lana faziam parte da mesma manifestao.
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Maracaet. Este grupo ganhou grande visibilidade no cenrio cultural da cidade,
principalmente no meio universitrio, conseguindo obter mais fama que o prprio Boizinho
Faceiro que j estava consolidado.
Foi assim, em 2006, que se iniciou uma febre de maracatu em Curitiba. Nesse
contexto, os alunos da oficina de maracatu que, apesar de ser apenas uma oficina, possua um
nome, Estrela do Sul, decidiram transformar a oficina em grupo de maracatu, que hoje,
2010, um dos grupos percussivos de maior visibilidade no Paran. Nesse mesmo ano, outros
jovens que participaram de uma oficina de maracatu, no 16 Festival de Inverno da UFPR,
ministrada tambm por um percussionista do grupo Boizinho Faceiro, Pedro Solak, decidiram
fundar seu prprio grupo, o Voa Voa; ou seja, se no incio de 2006 existia apenas um grupo
que tocava a parte percussiva do maracatu, no fim j existiam quatro grupos que disputavam
espaos e visibilidade na cidade.
O interesse pela manifestao se tornava cada vez maior entre os jovens batuqueiros,
que passaram a buscar mais informaes sobre a manifestao, sobre como ela era realizada
em Pernambuco, passando a organizar e financiar oficinas de maracatu (concentradas na parte
percussiva e s vezes tambm na dana), que eram realizadas pelos prprios mestres dos
maracatus-nao pernambucanos. Atravs dessas oficinas, tive a oportunidade de conhecer econversar com mestres como Afonso Aguiar (Leo Coroado), Walter Frana (Estrela
Brilhante do Recife), Gilmar Santana (Estrela Brilhante de Igarassu), Chacon Viana (Porto
Rico), bailarinos como Maurcio (Estrela Brilhante do Recife), Beto D Oxum (Porto Rico),
alm de batuqueiros como Pitoco e Cuca (Estrela Brilhante do Recife) e Rogrio Santana
(Estrela Brilhante de Igarassu).
O contato com esses mestres, danarinos e batuqueiros, me fez compreender que os
maracatus-nao provinham de comunidades afro-descendentes de baixa renda, que tinham
forte presena na cidade do Recife e arredores e que tambm possuam uma dimenso
religiosa, deste modo, aquilo que eu praticava com o Estrela do Sul no era exatamente
maracatu-nao.
A percepo que tive foi compartilhada por outros colegas, o que gerou uma verdadeira
crise diante da apropriao que fazamos de uma cultura popular que, na nossa viso, no nos
pertencia. A crise, no entanto, surgiu muito mais por uma questo religiosa do que por
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qualquer outra coisa. Isso ocorreu porque aps o breve convvio com os maracatuzeiros
autnticos, os jovens de Curitiba criaram em seu imaginrio a idia de que o verdadeiro
maracatu era algo sagrado, permeado por interdies comportamentais e que deveria ser
respeitado.
A partir dessa concepo, tocar embriagado ou sob efeito de qualquer entorpecente,
fazer piadas com alguma nao, mestre ou loa, sentar, pisar ou mesmo elevar as alfaias acima
da cabea, se tornou algo mal visto por todos. Utilizar o tambor de apoio para alguma coisa
como, copos de cerveja, por exemplo, prtica que at ento no era aconselhada por umedecer
e danificar a pele do tambor, posteriormente foi considerada um desrespeito s religies afro.
Ainda assim a crise no estava, e nem chegou a ser ,resolvida, os jovens no entraram num
acordo majoritrio do que poderia ou no ser feito com o maracatu.
Na poca eu acreditava que no deveria haver crise nenhuma em relao dimenso
sagrada dos maracatus-nao, pois, como no ramos maracatus autnticos, mas sim um
grupo de jovens brancos de classe mdia do sul do Brasil, em sua maioria catlicos,
protestantes ou ateus e que, faziam uma releitura de alguns aspectos da manifestao, no
deveramos nos preocupar com interdies de carter religioso. Toda essa preocupao que se
instaurou surgiu a partir do discurso de dois mestres que particularmente atribuam muitovalor a religiosidade nos maracatus-nao: Afonso Aguiar e Chacon Viana.
Mestre Afonso, foi muito reservado nas oficinas que ministrou, mas quando discursava
acerca de sua nao, lembrava sempre do fundamento religioso que havia sido passado, de
acordo com ele, pelo falecido Mestre Lus de Frana, ou seja, seu discurso possua mais um
carter de compartilhamento de uma experincia e ponto de vista acerca da manifestao, sem
que houvesse uma preocupao por parte dele para que estivssemos de acordo com suas
opinies.
J Chacon discursava de modo diferente; ele se mostrou uma pessoa muito
extrovertida, inteligente, estudiosa, conservadora e tambm prxima de todos ns. Ele sabia
falar a nossa lngua, e, apesar de vir de uma classe mais humilde, conseguia dialogar muito
bem com a classe mdia. Sendo assim, nos sentamos muito a vontade de conversar com ele,
sem aquele distanciamento e sentimento de medo do desconhecido que sentamos por parte
dos outros mestres. Do mesmo modo que nos sentamos a vontade para perguntar o que
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quisssemos para Chacon, ele tambm se sentia a vontade para responder as nossas questes
com muita riqueza de detalhes, e com sua opinio, j formada sobre os diferentes assuntos
relacionados aos maracatus-nao. No entanto, sua opinio j estava to bem fundamentada
em sua mente que ele adotava um discurso que parecia ter a inteno de nos doutrinar, de nos
instruir nos princpios de suas idias.
Ocorreu ento que, dentre os mestres que conhecemos, Chacon foi aquele que
conquistou um nmero significativo de batuqueiros, ele nos revelou diversas coisas acerca de
sua viso da histria, religio, tradio, msica, enfim, aspectos do fundamento do maracatu
no qual ansivamos para descobrir. Seu carisma foi to grande que, entre os anos de 2007 e
2008, ele foi convidado a ministrar trs oficinas de maracatu no sul, sendo duas em Curitiba,
todas atraindo muitos batuqueiros3. O carisma de Chacon fez tambm com que muitos de
meus colegas tomassem seu modelo de maracatu-nao como o modelo de maracatu-nao.
Da toda a preocupao de carter religioso que surgia acerca de nossa apropriao dos
maracatus-nao. Aquilo que antes era enxergado como brinquedo, passa a ser visto como
parte das religies afro-indo-brasileiras.
No incio de 2008, cerca de 15 jovens participantes dos grupos percussivos de Curitiba,
dentre eles eu, resolvem passar o carnaval no Recife, para conhecer os maracatus-naoautnticos de perto. Na hora de escolher onde ficaramos ou, qual nao acompanharamos
com mais ateno, todos foram unnimes em optar pela Nao do Maracatu Porto Rico.
Entramos em contato com Chacon e ele logo nos avisou que seria possivelmente perigoso nos
hospedarmos fora da comunidade, tendo que realizar diversos deslocamentos ao longo da
semana, portanto, ele conseguiu uma casa para alugarmos ao lado da sua na comunidade do
Bode. Para que nossa vivncia fosse a mais completa possvel decidimos chegar cidade um
ms antes do incio do carnaval, assim acompanharamos os ensaios da nao, e talvezconsegussemos desfilar como batuqueiros no desfile oficial4.
Cheguei ao Recife pela primeira vez na vida, com idias pr-concebidas e romantizadas
acerca do que era o maracatu-nao e como era realizada a cultura popular. Vindo de uma
cidade segregada e elitizada como Curitiba, onde nunca tive convvio com comunidades de
3 O Grupo Estrela Do Sul esteve presente na organizao de duas das trs oficinas.4
O desfile oficial refere-se ao desfile que ocorre no domingo de carnaval, parte do Concurso das AgremiaesCarnavalescas promovido pela Prefeitura da Cidade do Recife.
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baixa renda ou mesmo com pessoas afro-descendentes, razovel imaginar que eu tivesse
essa viso um tanto idealizada da cultura popular, ou mesmo da pobreza. Por isso, minha
estadia no Maracatu Porto Rico em 2008 me revelou uma srie de coisas.
A primeira coisa que me chamou a ateno na cidade, foi a quantidade de maracatus-
nao. Existiam mais de vinte enquanto que no sul aprendamos o baque de apenas cinco
naes. Isso me fez perceber que havia algum tipo de disputa por espaos e visibilidade entre
as naes, sendo assim, quis entender a princpio, o que fazia com que algumas naes fossem
conhecidas em diversas partes do Brasil e outras no. Mais tarde, quis entender tambm
porque meus colegas paranaenses, aps terem visto a diversidade de naes continuaram
chamando as mesmas quatro naes para ministrarem oficinas no sul em 2008, 2009 e 2010.
A segunda coisa que me chamou a ateno foi a humanidade presente nos
maracatuzeiros da Nao Porto Rico. Quando utilizo a palavra humanidade, quero dizer que
essas pessoas eram reais, e no esteretipos de seres humildes que vivem outra lgica, que se
isolam da sociedade mais ampla para preservar uma cultura ancestral unicamente por amor
causa. A Nao Porto Rico um grupo social como qualquer outro, com festas, amizades,
solidariedade e tambm brigas, discusses, disputas internas e externas e articulao constante
com as demandas e valores da sociedade mais ampla. Ainda assim, apesar das tensespresentes dentro do grupo, a devoo que os maracatuzeiros tinham pela Nao Porto Rico foi
o que mais me marcou. Percebi que o maracatu tinha uma importncia central na vida
daquelas pessoas, e que, por meio das atividades da nao, tais como festas, ensaios,
confeco de instrumentos e adereos e eventos religiosos, as pessoas se mantinham unidas
em torno de um mesmo ideal. Foi ento que surgiu o interesse de compreender o que era
determinante para que aquelas pessoas se reconhecessem como parte de um mesmo grupo, o
que gerava aquela coeso, aquela identidade comum.Minha ida e a de meus colegas para Recife foi com fins, principalmente, de
entretenimento e aprendizagem da parte percussiva da Nao Porto Rico. Porm, eu, que j
havia cursado um ano de Cincias Sociais na Universidade Federal do Paran, no pude
deixar de observar outras questes que ao fim me auxiliariam a construir um projeto de
pesquisa acadmica. Em janeiro de 2009, retornei comunidade do Bode para passar mais um
carnaval como batuqueira da Nao Porto Rico, com a diferena que, alm de batuqueira,
naquele momento eu j era tambm pesquisadora, mestranda em Antropologia.
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2. A dupla insero como pesquisadora e batuqueira: riscos e facilidadesAps o perodo do carnaval, continuei residindo no Bode durante o ano de 2009, apesar
dos riscos que tal escolha representava. A escolha foi realizada, primeiramente por um receio
que tive de, no ser capaz de compreender, ou mesmo de ter subsdios ou argumentos o
suficiente para abordar o problema de pesquisa que eu mesma havia proposto. Diante da
subjetividade do tema a ser estudado, acreditei que morar dentro do campo seria uma garantia
a mais de que nada escaparia a meus olhos. Hoje entendo que essa vivncia em campo, no
garante necessariamente uma compreenso maior do universo a ser estudado. Como
mencionei, estar dentro do campo, participando das atividades do grupo como se fosse uma
nativa, apresenta tambm alguns riscos.
O risco maior seria o de me envolver emocionalmente com o objeto de estudo e osmaracatuzeiros de tal maneira, que no conseguisse manter o distanciamento suficiente para
levantar as questes e observar os problemas de pesquisa, com a neutralidade e objetividade
almejadas na construo de um conhecimento cientfico (Malinowski, 1978). De fato, alguns
antroplogos clssicos, acreditavam que o antroplogo deveria apresentar-se como um
autntico observador cientfico que cruzava barreiras culturais ao mesmo tempo em que
conservava um afastamento herico, e que reportava os fatos numa linguagem objetiva
(Kuper, 2002, p. 266). Na contramo desse movimento de uma incessante busca pelaobjetividade na construo do conhecimento cientfico, observa-se uma srie de intelectuais
que encaram a objetividade total como uma utopia.
Em seus estudos, o antroplogo Bruno Latour (1994; 1997) defende a idia de que a
ruptura entre categorias como natureza e cultura, que teriam marcado o incio da
modernidade, nunca existiu. Desde modo, ele afirma que jamais fomos modernos, porque
jamais fomos capazes de operar a ruptura dessas categorias, assim como no existe ruptura
total entre sujeito e objeto, passado e presente, observador e observado, cincia e mito, dentreoutras possibilidades5. Deste modo, os objetos de estudo das diversas cincias so hbridos de
diferentes categorias, e no puros. Sendo assim, ele argumenta que a cincia que se entende
como objetiva e neutra, purifica seus objetos, escondendo todas as controvrsias que podem
surgir ao longo da pesquisa, no intuito de obter legitimidade para as descobertas e resultados
5
Agradeo a minha orientadora, Maria Aparecida Lopes Nogueira que, durante suas aulas no PPGA/UFPE ,apresentou um leque das diversas possibilidades de interpretao da obra de Bruno Latour.
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obtidos. Portanto compreende-se que, a objetividade e neutralidade cientfica so meras
iluses.
O real no puro ou mesmo esttico, ele contaminado por uma srie de elementos que
se relacionam e se modificam ininterruptamente, deste modo, sempre haver algo que no
conseguiremos apreender, por isso a cincia um conhecimento aproximado e no uma
apreenso total do real; o conhecimento ser sempre parcial e inacabado, nunca completo
(Bachelard, 2004). Por esta razo, o conhecimento est sujeito, e se compe, de um processo
sucessivo de refinamentos e retificaes. Isso explica a limitao com que os trabalhos
cientficos, inclusive no campo da Antropologia precisam lidar. A presente pesquisa no foi
capaz de lidar com todas as possibilidades de questes a serem abordadas, sendo um trabalho
aberto, logo sujeito a questionamentos e retificaes.Dentro de sua teoria, Gaston Bachelard defende a objetividade e racionalidade, mas
no nega a existncia da subjetividade; a objetividade aquela que incorpora a subjetividade.
Assim como Latour, Bachelard tambm no nega a presena das incertezas, do acaso e das
controvrsias nos dados empricos; eles fazem parte do real e tem muito a revelar sobre o
problema pesquisado. Latour se debrua sobre as controvrsias por acreditar que elas
envolvem a busca de uma simetria no campo de pesquisa, no caso deste estudo, uma simetria
entre pesquisador e pesquisado. O antroplogo reconhece que a concretizao dessa simetria,assim como a concretizao de uma objetividade, uma utopia, que, no entanto, jamais deve
ser desconsiderada ao longo do processo de pesquisa. Latour critica as relaes, geralmente
desiguais, existentes em campo quando o outro geralmente visto como inferior. A
problemtica da postura do cientista social, mais especificamente do etngrafo, j foi
abordada por outros tericos como, por exemplo, James Clifford.
Em sua obra A Experincia Etnogrfica: Antropologia e Literatura no sculo XX
(1998), Clifford traa a formao e desintegrao da autoridade etnogrfica na AntropologiaSocial do sculo XX, historicizando a legitimao da etnografia como cincia. Aps
estabelecer algumas crticas a modelos defendidos por Bronislaw Malinowski, Evans
Pritchard, Clifford Geertz dentre outros, que considera como modelos que utilizam diferentes
estratgias para compor uma autoridade etnogrfica e legitimar o conhecimento produzido,
Clifford sugere que, a etnografia, deveria representar uma variedade de vozes discordantes,
sem jamais essencializar um povo ou modo de vida. Deste modo, ele zela por uma etnografia
que de conta de incluir no s a voz do etngrafo, como tambm a voz das pessoas do grupo
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estudado em sua variedade de pontos de vista. Por trs desse pensamento est enraizada
tambm, a idia de que a realidade no esttica e de que existem controvrsias dentro do
campo de estudo. Portanto, mais uma vez a objetividade absoluta posta em cheque.
Por esta razo, entrei em campo sabendo que minha pesquisa estava irremediavelmente
intermediada pela minha subjetividade, o que no significaria que eu deveria deixar a
objetividade de lado; a estratgia seria a de pesquisar buscando o equilbrio entre essas duas
dimenses. Ao longo do processo de pesquisa, aprendi tambm que, por mais que eu estivesse
infiltrada na Nao Porto Rico, eu jamais me tornaria uma nativa, algum de dentro. Nada
jamais poderia operar uma ruptura entre minha condio de mulher branca6 da classe mdia,
nascida e criada no sul do Brasil, num contexto individualista, da condio, um tanto
provisria de batuqueira da Nao Porto Rico. Por mais que eu tomasse parte no batuque eresidisse na comunidade, eu sempre seria de fora; as diferenas culturais existentes entre
mim e os maracatuzeiros da nao so em sua maioria irreparveis.
Essas questes, de fato impediram que eu me tornasse de dentro, mas no impediam
que meu grau de envolvimento com o grupo pudesse trazer problemas de ordem emocional e
tica no meu trajeto de pesquisadora, o que realmente, por vezes ocorreu. Ainda assim, minha
dupla insero de batuqueira e pesquisadora em campo, trouxe uma srie de facilidades para o
andamento da pesquisa.A vivncia que obtive junto da nao no carnaval de 2008, fez com que eu tivesse
familiaridade com o objeto da pesquisa e que conquistasse a simpatia e confiana de alguns
maracatuzeiros. Em 2008, eu participei das atividades do maracatu, tirei fotos, conversei com
diversas pessoas do grupo e me diverti como pude. Entre os carnavais de 2009 e 2010, adotei
a mesma postura. Continuei participando das atividades do maracatu, como apresentaes,
ensaios, oficinas e cerimnias religiosas, ajudei na confeco de fantasias e adereos para o
carnaval de 2010 e continuei conversando bastante com todos. No entanto, j no estava lapenas como batuqueira, eu era tambm pesquisadora, portanto, meu olhar j estava mais
atento e apurado, direcionado as questes de interesse da pesquisa.
Deixei claro para os maracatuzeiros da nao que, ao mesmo tempo em que participava
das atividades do grupo, eu realizava uma pesquisa de carter acadmico, mas a maioria deles,
6Utilizo constantemente o adjetivo branco para definir as pessoas de classe mdia ao longo dessa dissertaopor acreditar que a questo da cor da pele, por ser carregada de carga simblica, no deve ser ignorada para
contrapor os batuqueiros da classe mdia com aqueles em sua imensa maioria afro-descendentes pertencentes scomunidades onde se localizam as naes.
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inclusive Chacon por um bom tempo, simplesmente ignoraram minha condio de
pesquisadora e continuaram me tratando e agindo, com a mesma espontaneidade do ano
anterior. Isso para mim foi um ganho, pois eu poderia realizar meu estudo a vontade,
observando o comportamento dos maracatuzeiros sem ter a preocupao de que ele estaria
sendo influenciado pela minha presena de pesquisadora. Eu era vista como apenas mais uma
batuqueira da classe mdia.
Essa longa vivncia que tive em campo, foi crucial tambm para que eu pudesse
perceber atitudes e sentidos que nem sempre so expressos pela comunicao oral. O silncio
ou mesmo o no dito tem muito a revelar sobre os valores de um grupo social. Acredito que,
se tivesse optado por realizar visitas a campo ao invs dessa vivncia mais intensa, eu no
conseguiria visualizar e possuir, o grau de compreenso que tive de uma srie de questes; aomesmo tempo teria enfrentado mais resistncia ao realizar as entrevistas semi-estruturadas
com os maracatuzeiros.
No terceiro semestre de minha pesquisa (primeiro semestre de 2010), comecei a realizar
as entrevistas semi estruturadas com as pessoas do grupo. At ento, eu havia apenas
participado das atividades, realizando registros em vdeo e foto, alm de estabelecer uma srie
de conversas informais e escrever minhas impresses no dirio de campo. Foi somente aps
um ano de estudo e de convvio com a nao, que tive mais clareza a respeito do que deveriaser perguntado. Foi neste momento, que alguns maracatuzeiros perceberam a concretude de
minha pesquisa. Mesmo assim fui recebida em suas casas com boa vontade, muitos
demonstraram confiana em mim a ponto de, revelarem suas mgoas e discordncias em
relao a alguns aspectos da Nao Porto Rico. Sou eternamente grata pela gentileza e
confiana que recebi desses maracatuzeiros. Nos seis meses que reservei s entrevistas semi-
estruturadas, gravei depoimento de cinqenta maracatuzeiros sendo 75% pertencentes ao
batuque e 25% a corte e apoio. Por estas razes, acredito que minha dupla insero em campotrouxe mais aspectos positivos que negativos para o andamento da pesquisa.
3. Identidade, religiosidade, mito e tradio.Como j esclareci, o objetivo principal de minha pesquisa era o de compreender o que
era determinante para que os maracatuzeiros da Nao Porto Rico se sentissem parte de um
mesmo grupo. Para compreender de que modo se construa a identidade do grupo, procurei
observar, como o grupo se organizava, os valores que mais eram afirmados, e, por fim, as
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particularidades que a Nao Porto Rico possua se comparada as outras naes. Optei por
aprofundar na questo da religiosidade, dos mitos e da tradio dentro do grupo. Como ser
observado ao longo da dissertao, a tradio na referida nao de extrema importncia,
articulando com a religiosidade e os mitos para se afirmar e sustentar os valores do grupo.
Deste modo a dissertao est dividida da seguinte maneira:
No primeiro captulo procuro contextualizar o objeto de pesquisa. Para isso, fao um
pequeno esboo de como os maracatus-nao eram realizados no passado, sob a tica de
alguns intelectuais do incio do sculo XX como Csar Guerra-Peixe e Katarina Real. Dentro
disso, discorro sobre como os maracatus estiveram sob uma suposta ameaa de
desaparecimento em meados do sculo XX, at sua ascenso e visibilidade conquistada no
fim dos anos 1990. Procuro compreender as causas dessa possvel ameaa de extino at oque favoreceu o seu ressurgimento e fortalecimento, apresentado alguns indcios que possam
ter contribudo para a atual visibilidade dos maracatus-nao.
Aps a breve explanao da atual situao dos maracatus-nao em Pernambuco,
adentro no contexto da Nao Porto Rico. Sendo assim, apresento como se deu a formao da
nao desde a poca em que se concentra nas mos de D. Elda, ou seja, desde 1980. Procurei
descrever sua organizao e principais caractersticas na dcada de 1980 e 1990, quando o
batuque tinha como responsvel o Mestre Jaime, at o momento em que passou para as mosdo Mestre Chacon, at os dias de hoje. Deste modo, com um panorama geral de como se
organiza a Nao Porto Rico atualmente, fica mais fcil adentrar nas suas particularidades
como, por exemplo, a religiosidade.
O segundo captulo, foi reservado a essa questo e tambm, a anlise dos smbolos
articulados dentro da nao. Primeiramente, realizo um resumo de algumas teorias defendidas
por mile Durkheim em As Formas Elementares da Vida Religiosa (1996), e destaco entre
elas o conceito de sagrado definido pelo autor, por acreditar que ele adequado para secompreender a dimenso religiosa nos maracatus-nao, e, mais especificamente, na Nao
Porto Rico. Em seguida, descrevo de que modo, ou seja, em quais comportamentos e
celebraes, a dimenso sagrada expressa na nao estudada. Dentro disso, observo como
alguns eventos como a obrigao religiosa, realizada antes do carnaval, e o desfile oficial,
organizado pela Prefeitura da Cidade do Recife, so situaes onde o sagrado se revela e onde
uma srie de smbolos, que colaboram para a construo e afirmao dessa dimenso sagrada,
so articulados. Por esta razo, analiso esses eventos sob a tica das teorias de rituais e
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simbolismos apresentadas por Victor Turner em O Processo Ritual (1974) e Florestas de
Smbolos (2005).
No terceiro captulo, me concentro nas questes de mito e tradio na Nao Porto
Rico. Primeiramente, exploro a histria da nao desde sua suposta fundao em 1916, at os
dias de hoje. Apresento a histria relatada por pessoas diferentes, e as controvrsias que ela
apresenta. Problematizo a questo da continuidade dentro dessa narrativa, sendo que, a
referida nao, com o nome de Porto Rico j existiu em diferentes bairros e pertenceu a
diferentes grupos sociais, j tendo possudo inclusive uma srie de grupos homnimos. Deste
modo, questiono at que ponto a atual Nao Porto Rico, consegue reinvidicar uma
continuidade com as naes homnimas anteriores a ela.
A partir disso, analiso como a verso da narrativa de origem da nao, contribui para aconstruo da identidade do grupo, situando seus indivduos no mundo e contribuindo para
sua organizao. Sendo assim, acredito que a narrativa do grupo, pode ser compreendida
como sendo um mito de origem para os maracatuzeiros da nao. Em seguida, explico a
maneira como esse mito pode ser inserido numa tradio e quais as conseqncias disso. Ao
fim do captulo, concluo que tanto a religiosidade quanto a histria, ou mitos fundadores da
nao, contribuem para sustentar a questo da tradio no grupo e a justificar e amparar certas
escolhas; escolhas que se refletem na organizao social do grupo, como hierarquia e papisatribudos aos indivduos.
Por fim, analiso como a tradio, expressa pela religiosidade e mitos, articula com as
demandas da sociedade mais ampla, que passou a enxergar, as culturas populares como um
chamariz para o turismo e como mais um produto a ser consumido por outras classes sociais.
Concluo o captulo, tentado compreender, como a articulao com a sociedade mais ampla
interfere na organizao social do grupo e que tipo de tenses e controvrsias surgem a partir
disso.Mais do que respostas, essa dissertao levanta questes, deixando o caminho aberto
para refinamentos, interpretaes e retificaes.
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Captulo 1CONTEXTUALIZANDO O OBJETO DE PESQUISA
1. Os Maracatus-Nao Pernambucanos: do quase desaparecimento ascensoO maracatu de baque virado, atualmente uma manifestao cultural com forte
presena no estado de Pernambuco, principalmente nas cidades de Recife, Olinda e regio
metropolitana. No entanto, houve poca em que a maioria dos estudiosos da cultura popular,
acreditaram que a manifestao estaria fadada ao desaparecimento (Costa, 1974; Guerra-
Peixe,1980; Real, 1990) 7. Essa afirmao se baseava no fato desses estudiosos acreditarem
que tal prtica cultural, estivesse destituda de seu sentido original, logo se trataria de uma
sobrevivncia cultural nos moldes elaborados pelo antroplogo evolucionista Tylor (Lima;
Guillen, 2007). Muitos folcloristas e intelectuais interessados nesse assunto, entendiam que os
maracatus-nao tiveram sua origem nas festas de coroao dos reis do Congo (Costa, 1974;
Guerra-Peixe, 1980; Real, 1990; Estevez, 2008, p.25). A coroao desses reis ocorria em
diversas partes do Brasil escravista, onde os escravos se reuniam em irmandades e coroavam
um rei negro, que servia de liderana para os escravos, intermediando as negociaes deles
com os senhores. Em Pernambuco, essas coroaes, seriam seguidas de um cortejo com
msica, que se aproximava do cortejo dos maracatus que so conhecidos hoje; com a abolio
da escravido, a coroao dos Reis do Congo teria perdido seu sentido, o que no haveria
impedido que os negros continuassem com a parte festiva da cerimnia, que seria o maracatu
(Costa, 1974; Guerra-Peixe, 1980; Real, 1990).
A verso apresentada por esses renomados intelectuais foi aceita pela academia por
muito tempo, at ser contestada por alguns estudiosos, como o historiador e maracatuzeiro
Ivaldo Marciano de Frana Lima (2005), que em sua pesquisa, descobriu evidncias de que os
maracatus ao longo do sculo XIX tiveram uma existncia contempornea e independente das
coroaes8. preciso levar em considerao tambm que, a descrio encontrada sobre os
maracatus nos jornais e documentos do sculo XIX muito precria, portanto, no se pode ter
a certeza de que o que era descrito como maracatu na poca, a mesma coisa que se observa
7 A referncias dessas obras contidas nessa dissertao so de edies mais recentes, as datas de publicao dasprimeiras edies so Costa, 1908; Guerra-Peixe, 1955; Real, 1966.8
Para maiores informaes sobre as Coroaes dos Reis do Congo ver: SOUZA, Marina de Mello e. ReisNegros no Brasil Escravista. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002.
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hoje. Em sua pesquisa, Frana Lima encontrou semelhanas do maracatu-nao de hoje com
outras manifestaes populares, como a j extinta Aruenda e tambm com o Auto das
Pretinhas do Congo de Carne de Vaca, de Goiana. Por se tratar de uma manifestao cultural
em constante mutao e ressignificao, a identificao das origens dos maracatus-nao
problemtica. Mais do que um problema de pesquisa, a discusso sobre a origem dos
maracatus-nao tema central do discurso dos mestres e praticantes; isto ocorre, porque a
tradio uma categoria extremamente valorizada, no s pelos maracatuzeiros, como
tambm pelas autoridades responsveis pelas polticas culturais em Recife, Olinda e regio
metropolitana. Quanto mais tradicional for o grupo, maior legitimidade e prestgio ele ter
perante os outros grupos e a sociedade mais ampla.
A precariedade das descries dos maracatus-nao no s nos jornais e documentos do
sculo XVIII e XIX, como tambm nas obras de alguns folcloristas do sculo XX, tem muito
a nos revelar. A princpio, a pesquisa da cultura elaborada pelas classes subalternas no
necessitava do mesmo rigor metodolgico que as da cultura tida como erudita (Lima, 2005;
Carvalho, 2007), as referidas culturas a princpio no tinham o mesmo valor. Nesse sentido,
em muitas dessas obras, a descrio das manifestaes realizada sem mencionar o nome do
grupo observado, seu local ou o nome das pessoas com quem os autores conversaram. Isso
dava a impresso de que os grupos de maracatus eram homogneos, que no existiam
particularidades em cada um deles e ainda revelava a crena de que, a cultura popular se
tratava de algo espontneo, o que retirava dos praticantes toda a capacidade de elaborao
esttica e artstica. Nesse sentido, os populares estariam repetindo uma tradio por uma
fora de costume e hbito sem que houvesse interao da tradio com os significados de
quem exerce tal prtica (Lima, 2005, p56). Como ser observado nos captulos adiante, a
tradio no mera repetio de hbitos por fora de costume, mas ela permite o movimento,
dialoga com as mudanas e constantemente ressignificada pelos atores sociais, de acordo
com suas necessidades e interesses (Balandier, 1997).
Se hoje a cultura popular vista como assunto relevante para a academia e caiu no
gosto das classes mais abastadas, no s como objeto de estudo, como tambm de lazer e
consumo, no passado ela no era to prestigiada assim. Estudiosos como Pereira da Costa
(1974), a antroploga Katarina Real (1990) e o maestro Guerra-Peixe (1980) se
demonstravam preocupados com a diminuio do nmero de naes de maracatu, do incio
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at meados do sculo XX. De fato, comparado ao nmero de grupos que obtiveram licena
para desfilar nas ruas, no perodo do carnaval no fim do sculo XIX e incio do XX, a
quantidade de grupos, considerados autnticos maracatus-nao, existentes em meados da
dcada de 60 era mnimo, no passando de cinco (Lima, 2005; Real, 1990). preciso
compreender, quais fatores contriburam para a diminuio dos grupos para, posteriormente,
compreender o que fez com que eles ressurgissem com tanta fora, a partir da dcada de 80 e
estivessem j consolidados nesse incio de sculo XXI.
Em suas obras, Pereira da Costa (1974) e Katarina Real (1990), demonstravam a idia
de que existiria um modelo autntico de maracatu-nao, aquele modelo proveniente dos
escravos africanos que participavam da manifestao desde seus primrdios. Para eles, esse
modelo dialogava com o contexto social da poca, no caso a escravido e as coroaes dos
reis do Congo e, portanto, num pas onde o contexto j no era mais o mesmo, onde os negros
j estavam libertos, a prtica do maracatu perdera o seu sentido original, no havendo mais
razo de existir da maneira como era praticada e logo seria deturpada, perdendo seus
moldes originais e, por fim, se extinguindo. Eles acreditavam tambm que, nesse novo
contexto social de Brasil repblica no escravocrata, os negros acabariam imitando os
costumes dos brancos e se esqueceriam de suas manifestaes culturais.
Nesse discurso possvel observar duas idias interessantes; a primeira delas a de um
congelamento das prticas culturais, uma vez que esses autores definem um certo modelo de
maracatu como sendo autntico e encaram qualquer tipo de inovao ou mudana nesse
modelo como sendo uma descaracterizao da manifestao cultural. H muito tempo que a
Antropologia e mesmo a Histria, entendem que a cultura algo dinmico, construda por
homens, sendo ressignificada ao longo do tempo. Outra idia interessante a ser percebida no
discurso desses intelectuais, a crena de que os maracatus-nao desapareceriam, porque osnegros cada vez mais, passariam a imitar os costumes dos brancos; preciso salientar que, por
trs disso, est a ideologia da supremacia racial branca, to presente no Brasil do fim do
sculo XIX e incio do XX (Rodrigues, 1977; Schwarcz, 1993; Skidmore, 1976; Ventura,
1991).
No fim do sculo XIX, com a abolio da escravido, a proclamao da repblica,
enfim, com o corte que ligava o Brasil com sua ex-metrpole Portugal, surge a necessidade da
construo de uma identidade nacional, identidade essa que se espelhava nos modelos de
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civilizao europeus. Nesse contexto, surgiu uma srie de teorias que dessem conta de
explicar o suposto atraso em que o Brasil se encontrava se comparado com as potncias
europias, sendo que a maioria dessas teorias atribua composio racial do pas a culpa pelo
atraso (Schwarcz, 1993). Essas teorias, tiveram influncia do pensamento positivista, que via
o progresso como uma meta a ser alcanada, e do pensamento evolucionista, que acreditava
na superioridade de algumas raas sobre outras e que via na civilizao europia, o pice da
escala de evoluo humana.
Dentro dessas teorias, existia a concepo de que a raa branca, logo seus costumes e
prticas culturais, eram superiores e que deveria haver um esforo para que os costumes
brbaros e selvagens dos negros e ndios, fossem abolidos. Alguns estudiosos que
debateram o tema, acreditavam que atravs da miscigenao a raa branca acabaria
prevalecendo por uma questo de seleo natural, ou seja, viam a miscigenao como algo a
ser estimulado para se alcanar o branqueamento da nao. Outros encaravam a miscigenao
como uma degenerao que deveria ser evitada, devendo o pas, assim buscar o
branqueamento, por outros meios. O que interessa nessa histria, perceber que nesse
contexto, tudo o que era pertencente cultura negra e indgena era mal visto, era encarado
como atraso e como uma ameaa ao projeto civilizatrio nacional. Os maracatus-nao com
certeza no escaparam a essa lgica, basta ver nas notcias dos jornais pernambucanos do
sculo XIX e incio do XX durante o perodo do carnaval, onde o enfoque eram os bailes que
aconteciam nos clubes, voltados para as elites, enquanto que aos maracatus, restava apenas a
divulgao da lista dos grupos que haviam obtido licena para desfilarem nas ruas naquele
perodo (Lima, 2005).
Deste modo, o que haveria contribudo para a diminuio do nmero das naes de
maracatu, no seria a suposta superioridade da raa branca ou a perda de sentido da existnciada manifestao, uma vez que novos sentidos so atribudos s prticas culturais no cotidiano,
mas sim, toda uma ideologia que buscava inferiorizar e extinguir tais prticas que no
condiziam com a imagem de civilizao desejada na poca. Guerra-Peixe (1980) enfatiza que
no perodo de sua pesquisa, as agremiaes passavam por srias dificuldades para a obteno
de recursos para confeco de instrumentos, fantasias dentre outras coisas, o que tambm
indica uma desvalorizao das culturas populares por parte da sociedade mais ampla.
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Ainda assim, preciso alertar para outros fatores que possam ter contribudo para a
diminuio dos grupos. No se pode esquecer, por exemplo, da perseguio que as religies
afro-indo-brasileiras sofreram no Brasil imprio e tambm no perodo republicano, onde
foram oficialmente criminalizadas por serem entendidas como exerccio ilegal da medicina,
curandeirismo e prtica de magia (Lima, 2005, p. 102). possvel encontrar em jornais da
poca, notcias sobre terreiros que foram fechados por fora policial, como o caso do
famoso terreiro da Baiana do Pina, que teve seus artefatos confiscados em 1927 (Lima, 2005;
Pereira, 1990). Na dcada de 30, a perseguio se intensificou com a criao do Servio de
Higiene Mental, que perseguia os terreiros ligados ao catimb ou jurema sendo mais tolerante
com os terreiros que s faziam culto aos orixs, que eram vistos como puros e legtimos.
Como a maioria dos terreiros tinha algum tipo de ligao, mais ou menos estreita, com ajurema, acabou que eram poucos os terreiros que escapavam ao confisco. Era muito comum
que pais e mes de santo convidassem as autoridades para conhecerem seus toques, no intuito
de mostrar que se tratavam unicamente de culto aos orixs, assim como era comum a
denncia de um terreiro sobre outro com acusaes de prtica de catimb (Lima, 2005; 2008).
Com o incio do Estado Novo e a chegada de Agamenon Magalhes ao governo de
Pernambuco, a perseguio se tornou mais intensa ainda proibindo qualquer tipo de
religiosidade afro-indo-brasileira. Como estratgia para continuarem com suas prticas
religiosas, muitos filhos de santo passaram a realizar seus cultos nas sedes das naes de
maracatu. Deste modo, durante os ensaios eram realizadas consultas, giras e oferendas s
entidades cultuadas. No entanto, o misto de brincadeira e religio que existia (e ainda existe)
dentro dos maracatus, despertou desconfiana e fez com que muitas sedes fossem
surpreendidas com visitas dos representantes dos rgos repressores, o que dificultava a
existncia no s dos cultos como tambm pode-se imaginar, dos prprios maracatus.
Todos esses fatos revelam que at ento na sociedade recifense havia uma viso
negativa em relao cultura negra (Lima; Guillen, 2007). No entanto, do mesmo modo que
houve diversos fatores que criaram um clima desfavorvel existncia dos grupos de cultura
popular, ainda na dcada de 30, observou-se os primrdios do surgimento de um clima que
mais alm seria favorvel a existncia desses mesmos grupos. Nessa dcada, mais
especificamente em 1933, foi publicado o livro Casa Grande e Senzala do socilogo
pernambucano Gilberto Freyre. Apesar das inmeras criticas direcionadas a obra do referido
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autor, dentre elas a que diz respeito propagao da falsa idia de uma democracia racial no
Brasil, no se pode negar que Freyre foi um dos primeiros intelectuais a ver a composio
tnica do Brasil por uma perspectiva mais positiva, fazendo um elogio a idia de
miscigenao e valorizando os aspectos populares da cultura nacional.
Essa valorizao apareceu tambm no discurso dos modernistas, que passaram a
colocar a cultura popular e a identidade nacional como assuntos relevantes para a academia
(Lima; Guillen, 2007, p32). Mrio de Andrade, que realizou sua misso folclrica em 1938,
havia dito que o verdadeiro Brasil s seria encontrado junto dos brasileiros. interessante
salientar que uma das manifestaes estudadas pelo escritor foram os maracatus
pernambucanos.
J na dcada de 50 o maestro Guerra-Peixe publica Maracatus do Recife (1955), obra
dedicada aos maracatus de baque solto e baque virado, descrevendo seus aspectos culturais e
musicais e realizando a transcrio da msica dos maracatus para a msica erudita. O livro O
Folclore no Carnaval do Recife (1966) 9da antroploga Katarina Real, foi mais uma obra a
contemplar os maracatus-nao, tentando dar conta de discutir suas origens e tradio. Apesar
de ambas as obras terem surgido no perodo em que as naes de maracatu estavam
desaparecendo, e de inclusive apresentarem uma preocupao com a possvel extino damanifestao, elas sem dvida abriram caminho para que os maracatus obtivessem uma
imagem mais positiva perante a sociedade mais ampla. A importncia dessas obras muito
grande sendo que ainda hoje muitos grupos consultam-nas na tentativa de compreender sua
histria e na busca de legitimao para sua nao.
Outro fato que no pode ser desconsiderado para se entender o processo de valorizao
dos maracatus-nao a criao no incio da dcada de 60 da famosa Noite dos Tambores
Silenciosos, realizada no Ptio do Tero. O principal articulador desse evento foi o jornalista
Paulo Viana, um dos mediadores culturais da poca que se esforavam para impedir que as
manifestaes culturais afro fossem extintas. Na poca a abertura do evento foi realizada com
o encontro da legendria Dona Santa, rainha do no menos famoso Maracatu Elefante com as
tias Sinh e Iai, importantes carnavalescas daquele perodo; as trs senhoras eram
consideradas pelo jornalista como sendo as ltimas remanescentes africanas da cidade. O
9As datas das obras de Guerra-Peixe e Real aqui referidas so de sua primeira edio.
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evento existe at hoje e uma das atraes mais concorridas do carnaval recifense. Ao longo
dos anos a Noite dos Tambores Silenciosos foi sendo ressignificada pelos maracatuzeiros e
transformada em uma cerimnia de forte conotao religiosa voltada para a celebrao dos
eguns (esprito dos ancestrais) (Lima; Guillen, 2007).
Outros fatores mais abrangentes a nvel mundial tambm contriburam para o
surgimento de um clima favorvel a consolidao dos maracatus-nao; o caso da ascenso
da indstria cultural, ocorrida na dcada de 70. A partir desse momento a cultura passou a ser
compreendida como algo vendvel, ou seja, como mais um produto a ser consumido
(Carvalho, 2004). Nesse contexto que surge o termo cultura de massa que seria aquele
tipo de cultura feita para ser consumida, produzida para fins de mercado. Alguns estudiosos
chegaram a prever que a cultura de massa acabaria com o espao da cultura popular. O caso
dos maracatus-nao no segue a previso, pois, mesmo hoje, eles no atingiram um
contingente to grande de consumidores a ponto de serem considerados como cultura de
massa mas, como ser visto mais adiante, eles no ignoraram essa lgica da indstria cultural,
e tentam conquistar seu espao no mercado tambm.
Nos anos 80 observou-se na cidade do Recife o ressurgimento de algumas naes de
maracatu que haviam sido extintas. Um desses ressurgimentos diz respeito Nao Elefanteque havia encerrado suas atividades em 1962 com a morte de sua rainha, Dona Santa, e que
ressurgiu em 1986 nas mos de D. Madalena que se tornara rainha da nao na nova
formao. A restaurao do referido grupo teve o apoio de diversas autoridades locais e de
intelectuais como Gilberto Freyre. O apoio a diversos grupos de cultura afro, tambm foi dado
pelos militantes do Movimento Negro Unificado, que tomaram parte nos maracatus Elefante e
Leo Coroado. A militncia do MNU foi muito importante no sentido de repensar e valorizar
a cultura afro-brasileira (Lima; Guillen, 2007)
10
.
J no fim da dcada e incio dos anos 90 surgem movimentos culturais que buscaram
valorizar os smbolos pernambucanos dentre eles os maracatus.
Em 1989 um grupo de jovens provenientes da classe mdia funda o Maracatu Nao
Pernambuco, grupo que trabalha com elementos percussivos e performticos dos maracatus-
10 A participao do MNU no Maracatu Leo Coroado de Lus de Frana tambm est registrado em
documentrio realizado entre janeiro e maro de 1987 com roteiro de Raul Lody e direo de Wagner Simes.Disponvel em: http://video.google.com/videoplay?docid=-8142121220796768253#
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nao tradicionais e que conseguiu divulgar a manifestao para outras classes sociais que
antes no lhes dava ateno. O grupo obteve relativo sucesso chegando a realizar viagens
Europa. preciso tambm salientar a contribuio do movimento Mangue Beat, j na dcada
de 90, e seu mais famoso representante Chico Science e a Nao Zumbi que ao misturarem
elementos de manifestaes populares como o coco, a ciranda e o maracatu ao som do rock
ficaram conhecidos no Brasil inteiro, contribuindo para que pessoas de outras regies
ouvissem falar desse tal de maracatu11. Os dois grupos contriburam efetivamente para a
aceitao, insero e principalmente apropriao dos maracatus-nao por parte da classe
mdia. (Lima; Guillen, 2007)
Ainda nos anos 90 houve um surgimento de diversas naes de maracatu novas como
as naes Encanto do Dend, Leo da Campina e Nao de Luanda (1997) assim como as
naes Encanto da Alegria e Ax da Lua (1998), (Lima, 2005).
Nesse processo surgiram tambm alguns grupos percussivos ou maracatus estilizados
que, como j foi abordado na introduo deste trabalho, so grupos que tocam a parte
percussiva do maracatu e executam sua dana sem possuir o vnculo com as religies afro-
indo-brasileiras, vnculo esse que atualmente caracterstico dos maracatus-nao. Esses
grupos so constitudos majoritariamente por pessoas brancas de classe mdia que se renemem locais centrais de Recife ou Olinda para ensaiarem, ou seja, eles se diferenciam tambm
dos maracatus-nao por no possurem vnculos especficos com alguma comunidade.
Por fim, no possvel deixar de abordar o ltimo fator importante que contribuiu para
o atual cenrio em que se encontram a cultura popular e os maracatus-nao do Recife: a
criao do Carnaval Multicultural do Recife. O referido modelo de carnaval teve incio em
2001, primeiro ano do mandato do prefeito Joo Paulo do PT, e fez com que os maracatus-
nao disputassem, de igual para igual, espaos com o frevo, que at ento era o carro-chefe
do carnaval pernambucano. Como j mencionado anteriormente o frevo, apesar de sua
hegemonia como ritmo smbolo de Pernambuco, j disputou espao no perodo do carnaval
11
Para mais informaes acerca do movimento manguebeat ver: VARGAS, Herom. Hibridismos Musicais deChico Science e Nao Zumbi. Rio de Janeiro: Ateli Editorial, 2007.
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com as escolas de samba nas dcadas de 70 e 80 e com a ax music nos anos 90 (Lima, 2009,
p. 110). 12
O maracatu-nao at ento jamais representara ameaa. Deste modo, salienta-se queat o ano de 2001 o foco do carnaval eram os bailes realizados nos clubes onde o ritmo
principal era o frevo, as orquestras de frevo nas ruas e os trios eltricos com enfoque na ax
music. As agremiaes carnavalescas tais como, caboclinhos, ursos, bois, maracatus de
orquestra e maracatus-nao realizavam seus desfiles nas ruas e competiam pelos ttulos de
campees, mas no tinham a mesma visibilidade que o frevo e os outros ritmos mencionados.
Alm disso, o carnaval anterior ao modelo instaurado pelo mandato de Joo Paulo era mais
centralizado, no sendo assim estimuladas as festas no mbito das comunidades, ou seja,
quem quisesse usufruir do carnaval oficial da cidade deveria se deslocar para as regies
centrais ou pagar para participar dos bailes nos clubes13.
O release do Carnaval Multicultural 2010, disponvel no site oficial do carnaval do
Recife 14, diz que o objetivo da festa :
oferecer a populao do Recife e visitantes de todo pas e do mundo uma programao artstica que
envolve uma grande diversidade de ritmos calcada na transversalidade e multiculturalidade
O carnaval ainda descrito como sendo:
democrtico, popular e diversificado; totalmente descentralizado com plos de animao espalhados
por toda a cidade, a festa leva possibilidades iguais de diverso e lazer para todos, com conforto,
segurana e comodidade. So espetculos gratuitos e de alta qualidade, seja nas apresentaes de
agremiaes carnavalescas, seja nos shows de palco com artistas e orquestras.
Percebe-se com essa citao, que a inteno que esse modelo de carnaval tem de
proporcionar espao a diversos ritmos e dar acesso a diverso a todos, visto que os eventos
12 Para um estudo mais aprofundado e detalhado da histria do carnaval recifense ver: LIMA, Ivaldo Marcianode Frana. Entre Pernambuco e a frica. Histria dos maracatus-nao do Recife e a espetacularizao dacultura popular (1960 - 2000). Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Ps Graduao em Histria daUFF, 2010.13 Agradeo a Jamesson Florentino dos Santos, ex-mestre da Nao Leo da Campina e atual batuqueiro da
Nao Cambinda Estrela, pela riqueza de detalhes de seu relato sobre como era o carnaval no Recife antes do
modelo do Carnaval Multicultural.14 http://www.carnavaldorecife.com.br/downloads/Release_Programacao_Carnaval_2010.pdf
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no se concentram numa regio nica da cidade. No quesito de dar espao a diversos ritmos,
est implcito um esforo em valorizar a cultura popular pernambucana em suas diferentes
vertentes. O Carnaval Multicultural descrito no referido stio como sendo uma das maiores e
mais democrticas festas do mundo. Alm dos festejos nos dias oficiais do carnaval o evento
conta com uma srie de atraes gratuitas na semana pr-carnavalesca com shows de artistas
locais nacionais e internacionais alm de apresentaes das agremiaes carnavalescas em
diferentes partes da cidade. Deste modo observa-se que o Carnaval Multicultural tem grandes
pretenses.
Em pesquisa realizada pela prpria Prefeitura da Cidade do Recife foi constatado que
no carnaval de 2009, 76% dos moradores entrevistados se mostraram satisfeitos com o
modelo do carnaval, que 136 mil pessoas se beneficiaram com gerao de renda direta ematividades relacionadas ao evento e que o fluxo global de visitantes foi de 665mil pessoas.
Isso mostra a importncia que o evento tem para a economia da cidade. Ou seja, por trs do
Carnaval Multicultural existe um grande interesse econmico, focado na arrecadao de
recursos e gerao de renda. Com capitais como Salvador e Rio de Janeiro j fornecendo uma
identidade, um jeito prprio de celebrar o carnaval, percebe-se que as autoridades do Recife
sentiram a necessidade de criar uma identidade particular para seu modelo de carnaval para
entrar nessa disputa pelos turistas e folies do Brasil e do exterior. Os maracatus-nao setornaram ento um dos carros chefes para a construo de uma identidade pernambucana para
o Carnaval Multicultural.
Desde sua implantao, a abertura oficial do Carnaval Multicultural realizada no
Marco Zero num evento que rene diversas naes de maracatu que so comandadas sob a
regncia do renomado percussionista Nan Vasconcelos. No ano de 2010 ele regeu 17 naes
(o maior nmero de naes que j participaram do evento), sendo que o evento contoutambm com a participao de artistas locais de outras linguagens e tambm de artistas
nacionalmente famosos como Elba Ramalho, Luiz Melodia e Zeca Pagodinho. O fato de um
ritmo como o do maracatu-nao ser o carro-chefe da abertura do evento festivo mais
importante da cidade do Recife, por si s justifica o grau de visibilidade que a manifestao
vem ganhando ao longo desses ltimos anos15.
15 Apesar da contribuio do evento de abertura do Carnaval Multicultural para a visibilidade do maracatus-
nao, so muitos os grupos que reclamam de seu formato. Nan Vasconcelos rege todas as naes participantespor um modelo de baque que se assemelha muito com o de umas das naes mais famosas da cidade,
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De acordo com o stio, o evento conta ainda com 16 plos de animao sendo 8 no
centro da cidade e com diferentes temas, para dar espao ao maior nmero de ritmos
possveis, e 8 em diferentes comunidades. Alm disso, ainda de acordo com o release do
evento, a Prefeitura da Cidade do Recife patrocina 43 carnavais comunitrios,
disponibilizando a estrutura bsica para a realizao da festa como palco, som, iluminao,
decorao e banheiros qumicos, dando ainda autonomia para que as comunidades escolham
suas atraes, mas orientando que a maioria delas seja composta por artistas locais.
O release enfatiza que outras atraes que ocorrem dentro do Carnaval Multicultural
so festivais como oRec-Beat, de msica alternativa proveniente de diversas partes do mundo
e o Concurso das Agremiaes Carnavalescas.
O referido concurso ocorre durante trs dias do carnaval em quatro locais diferentes,onde so instaladas passarelas com arquibancadas, camarote e palanques para atender ao jri e
ao pblico. De acordo com o stio virtual do evento, no total, 323 agremiaes de 11
modalidades diferentes, dentre elas a de maracatus-nao, participam do concurso. O
concurso se divide ainda em quatro grupos, o de aspirantes, o segundo, o primeiro e o especial
sendo que esses trs ltimos oferecem prmios em dinheiro para as agremiaes campes de
cada modalidade. A prefeitura ainda fornece subsdios para todas as agremiaes para que
elas possam preparar seus desfiles com qualidade. O jri, composto por pesquisadores,acadmicos e artistas populares, assiste aos desfiles e avalia fantasias, adereos, alegorias,
tema e enredo, msica, coreografia e evoluo das personagens. O resultado do concurso com
os vencedores de cada modalidade em cada grupo anunciado na quinta-feira posterior a
Quarta-Feira de Cinzas geralmente no Ptio So Pedro no bairro de So Jos.
Como j foi observado, por trs de todo o espao que o Carnaval Multicultural do
Recife abriu para os grupos de cultura popular percebe-se a inteno de criar uma identidade
pernambucana para o evento. Ele multicultural, abarca diferentes ritmos e linguagens, comatraes para todo tipo de pblico, mas acima de tudo pernambucano, com identidade
prpria sendo diferente dos carnavais de outras capitais brasileiras. Como pode se perceber, o
modelo adotado tem forte conotao poltica e tambm econmica, ele serve para fortalecer a
desconsiderando a heterogeneidade dos baques das diversas naes de maracatu. Os maracatuzeiros afirmam quepor conta disso o baque da abertura fica feio, embolado. Outra reclamao diz respeito aos cachs dos artistas, deacordo com diversos maracatuzeiros, os cachs de Nan e dos artistas de fama nacional que participam do evento muito superior somatria dos cachs das naes que, ainda de acordo com eles, so a atrao principal do
evento. Essa informao foi obtida em conversas informais com diversos maracatuzeiros de diferentes naes aolongo de 2009 e 2010.
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gesto da prefeitura que o mantm e tambm para atrair mais turistas e desenvolvimento para
a cidade.
Nesse contexto os maracatus-nao tm seu espao garantido na abertura do carnaval,
no desfile das agremiaes, na concorrida Noite dos Tambores Silenciosos e nas
apresentaes em diferentes plos e comunidades durante o carnaval e na semana pr. Aps
tudo o que foi dito sobre o Carnaval Multicultural do Recife impossvel no perceber o
quanto ele foi importante para a conquista de visibilidade dos maracatus-nao.
Atualmente existem mais de 25 naes de maracatu filiadas a Federao Carnavalesca sendo
que 19 delas se articularam e organizaram a Associao dos Maracatus-Nao
Pernambucanos (AMANPE), rgo que visa defender o interesse das naes perante os
rgos que regem as polticas pblicas de cultura da cidade16.Ao longo desse processo de revalorizao dos maracatus-nao surgiu tambm um
grande nmero de grupos percussivos17, to grande ou maior que as naes consideradas
tradicionais o que mostra que cada vez mais, a cultura popular se consolida como um valor e
tambm como objeto de consumo.
A nao de maracatu que ser objeto desse estudo se insere dentro desse contexto,
sendo assim, impossvel entender sua organizao social, valores e sistemas simblicos sem
relacion-la com o contexto da sociedade que a rodeia.
2. A Nao do Maracatu Porto Rico
2.1.Rainha Elda e Mestre Jaime: dinamicidade e vitriasA Nao do Maracatu Porto Rico com fundao, segundo seus lderes, em 07 de
setembro de 1916 encontra-se, desde 1980, nas mos da famlia da Yalorix Elda Viana,
nascida em 02 de maro de 1939 no estado do Rio de Janeiro, me de seis filhos. D. Eldamigrou para o Recife nos anos 1970 fixando residncia inicialmente no bairro da Mangabeira,
zona norte e mais tarde mudando-se para o Pina, zona sul na comunidade de baixa renda
conhecida localmente como Bode. Na poca ela j era me-de-santo, tendo sido feita na
16 Naes de maracatu filiadas a AMANPE: Encanto da Alegria, Gato Preto, Almirante do Forte, CambindaEstrela, Oxum Mirim, Estrela Dalva, Ax da Lua, Porto Rico, Estrela Brilhante do Recife, Razes de Pai Ado,Aurora Africana, Leo da Campina, Encanto do Dend, Leo de Jud, Encanto do Pina, Sol Nascente, Nao deLuanda, Tupinamb e Linda Flor.17
muito difcil saber ao certo a quantidade de grupos percussivos tendo em vista que a maioria deles nopossui nenhum tipo de registro.
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umbanda e no candombl de nao angola. Em Recife foi feita ainda na dcada de 1970, na
nao nag e mais tarde na dcada de 1980, na nao jeje pelo renomado Babalorix Raminho
de Oxssi, sendo que hoje ela afirma que seu terreiro traado jeje-nag18.
Quando D. Elda assumiu o maracatu, ela ficou conhecida por ter trazido uma srie de
inovaes na corte real. As fantasias ganharam novos contornos, com a implementao de
novos tipos de tecidos, mais finos, que no eram usados no vesturio de outras naes alm da
aplicao de miangas, lantejoulas e paets nos bordados, plumas em adereos de cabea,
golas, mangas e barras e armaes por baixo das saias, o que conferiu mais brilho e luxo ao
desfile, numa esttica que lembrava muito as escolas de samba. Antes de D.Elda, as saias
eram apenas engomadas e quando chovia elas murchavam, fazendo com que o desfile
perdesse seu glamour19.A jovem e dinmica rainha (Lima, 2009, p. 69) tambm colocounovos personagens na corte, ela afirma ter sido quem implantou os casais de duques,
marqueses, embaixadores j que antes s haviam reis, rainhas, prncipes e princesas, alm de
ter colocado na passarela toda uma corte mirim e as vassalas, que so as odaliscas que
acompanham o casal real20. Muitos intelectuais, autoridades e maracatuzeiros mais
conservadores acreditavam que as inovaes de D. Elda eram uma ameaa de
descaracterizao dos maracatus e no a viam com bons olhos. No entanto a rainha que na
poca era jovem e vinda de outro estado acabou conquistando novos espaos apresentando ummaracatu mais jovem e mais amplo j que o aumento do nmero de personagens fez com que
mais pessoas tivessem a oportunidade de desfilar no maracatu21 (Lima, 2009).
No bairro o terreiro de Elda, que j servia de sede do Maracatu Porto Rico, era muito
conhecido e a maioria de seus filhos-de-santo que residiam na comunidade aproveitavam
tambm para desfilar no maracatu. De acordo com Osvaldo Pereira, maracatuzeiro da nao
h 14 anos e educador social, a comunidade era muito integrada ao maracatu e ao terreirosendo que D. Elda era tida como uma liderana na comunidade. No entanto a infra-estrutura
do local era mais simples, o cho era de barro ea residncia possua, menos cmodos e menos
conforto.
18 Informaes obtidas em entrevista com D. Elda Viana em 09/03/10.19 Essa informao foi concedida por D. Elda durante trabalho de campo realizado em janeiro de 2010.20 Apesar de D. Elda considerar-se a introdutora dessas personagens na corte, as obras de Katarina Real (1990) eGuerra-Peixe (1950) mencionam o casal de duques, embaixadores, condes e vassalos como figuras pertencentesao cortejo real.21
Alm de estar contida na obra de Lima (2009) essa informao tambm foi concedida por Osvaldo Pereira,batuqueiro da nao, em entrevista realizada em 22/07/10.
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O mestre da nao no perodo de 1980 a 2000 foi Jaime, residente de outra comunidade,
que j havia tocado no batuque do Maracatu-Nao Cambinda Estrela (Carvalho, 2007) e que
assumia a regncia de um batuque pela primeira vez. Sob o comando do referido mestre
tocavam 24 batuqueiros divididos em 14 alfaias, 1 gongu, 3 taris e 4 mineiros, instrumentos
considerados tradicionais nos maracatus-nao22. Apenas homens tocavam no batuque,
mulheres e crianas eram proibidas23 e participavam s da dana na corte. Os batuqueiros
eram todos residentes da comunidade e sua faixa etria era de 25 a 35 anos. De acordo com os
maracatuzeiros entrevistados, eram tudo nego vio. A transmisso do conhecimento do
batuque se dava da forma popular, ou seja, o conhecimento era adquirido na vivncia, o
mestre no parava para ensinar como um professor de escola, por exemplo 24. A fala do
batuqueiro Wagner25, 23 anos, h 12 no batuque, ilustra essa situao:
Naquela poca no tinha essas facilidades de hoje no, oficina, essas coisas, t ligado? Ningum parava pra
ensinar igual hoje, igual hoje que a pessoa pode chegar no ensaio, tirar dvida com os batuquero mais antigo,
no tinha isso no...Tinha que chegar sabendo, aprender olhando, e se errasse tomava lapada dos nego vio...
(Wagner, 23 anos, batuqueiro, 07/06/10)
Alm da forma popular da transmisso do conhecimento observa-se tambm que o
batuque da nao Porto Rico sob a regncia de Jaime tinha a sonoridade antiga. Em suadissertao de mestrado o antroplogo Ernesto Igncio de Carvalho (2007) diferencia a
sonoridade antiga dos baques das naes de maracatu de uma sonoridade mais recente
caracterizada por uma organizao modernizada, altamente tipificada, racionalmente
orquestrada, do baque virado... (Carvalho, 2007 p. 115)
22 Informao concedida pelo mestre Jaime em conversa informal no carnaval de 2009.23 interessante perceber que at o fim do sculo XX apenas homens tocavam nos batuques dos maracatus-nao, pois acreditava-se que assim regia a tradio (isso de acordo com relatos da oralidade). A entrada demulheres ocorreu primeiramente nas naes que adotaram os agbs em seu batuque, instrumento considerado pormuitos como feminino no maracatu, e tambm em naes que deram abertura para a participao de pessoas daclasse mdia; nesse caso as mulheres de classe mdia foram as primeiras a se interessarem a tocar alfaias e tarise ainda hoje elas esto em maior nmero nesses instrumentos se comparando com as mulheres das comunidades,que continuam preferindo os agbs. Ainda assim obtive a informao de que D. Rosinete, filha da RainhaMadalena do Elefante na dcada de 1990, j tocava os tambores alm de ajudar em sua confeco (comunicaooral).24 Para um estudo mais aprofundado acerca da transmisso do conhecimento em contextos de cultura popularver: SANDRONI, Carlos, BARBOSA, Cristina e VILAR, Gustavo. A transmisso de patrimnios musicais detradio oral em Pernambuco:um relato de experincia. In GUILLEN, Isabel Cristina Martins (org).
Tradies e Tradues: a cultura imaterial em Pernambuco.Recife: Editora Universitria, UFPE, 2008.25 Optei por ocultar os verdadeiros nomes de alguns maracatuzerios para preservar sua identidade.
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O responsvel por essa nova composio do baque dos maracatus foi Walter Frana,
mestre do Maracatu Estrela Brilhante desde 1993, que buscava facilitar a transmisso do
conhecimento para batuqueiros novatos criando ento novos conceitos didticos de ensino do
baque. Ao separar o baque de seu maracatu em clulas e dar nome aos bois (Carvalho,
2007, p. 116) Walter viu surgir a possibilidade de inserir uma srie de convenes dentro do
baque, convenes essas que davam um aspecto menos repetitivo e com mais variaes que
os baques antigos26. Com isso no se afirma que os baques de antigamente no diferenciavam
de nao para nao, cada um deles possua sua particularidade, mas o estilo seguia um lgica
parecida.
Walter trouxe no s um novo modo de transmitir o conhecimento como tambm uma
nova configurao de baque, inserindo instrumentos que tradicionalmente no faziam partedos maracatus-nao, como os agbs, e fazendo o baque do Estrela Brilhante por vezes
lembrar uma levada de bateria de escola de samba. A influncia dessa levada explicada pelo
fato de Walter ter sido, alm de batuqueiro do antigo Leo Coroado de Lus de Frana,
percussionista da Escola Gigantes do Samba por muitos anos tambm. Esse novo jeito de se
fazer maracatu acabaria por atrair nos anos que estavam por vir, muitos jovens percussionistas
de classe mdia para o batuque do Estrela Brilhante.
Jaime, no entanto, se considerava seguidor da tradio sendo avesso a alguns tipos de
inovaes no batuque. Foi com muita insistncia, por exemplo, que ele permitiu que crianas
e adolescentes desfilassem com o batuque adulto. Tal empreitada s ocorreu em 2000 aps
um teste que ocorreu em frente sede da nao onde os meninos apresentaram sua batucada
sob a regncia de dois oficineiros adultos, batuqueiros da nao. As oficinas para crianas e
adolescentes foram parte de um projeto social proposto pelo batuqueiro Osvaldo Pereira para
tirar as crianas da comunidade das ruas e afast-las da drogas; foi assim que surgiu aEscolinha de Batuque.
No incio os meninos dispunham de uma apostila com a letra das principais loas27 da
nao, de baquetas improvisadas e de pedaos de borracha onde tocavam os baques do Porto
26 Quando utilizo os termos menos repetitivoe com mais variaes me refiro a sonoridade do baque para osouvidos de leigos, por isso anteriormente utilizo o termo aspecto. Sabemos que os baques das naes comsonoridade antiga tambm so repletos de variaes, mas aos ouvidos de leigos soam mais homogneos.27 Loas so hinos de louvor ao maracatu, a corte real, frica mtica, aos negros, aos orixs e ao Brasil que so
cantados durante o batuque. Cada nao de maracatu possui suas prprias loas, alm de tambm utilizarem loasde domnio pblico.
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Rico. Alguns anos depois foram construdos tambores adequados com a participao dos
prprios meninos. Esse fato demonstra o quanto era difcil se tornar batuqueiro do Porto Rico
na poca. No era qualquer pessoa que era aceita e at 1996 no havia ningum que se
dispusesse a ensinar o baque a um novato. No bastava ser adulto, tinha que se adequar ao
modo de aprendizado estabelecido pelo grupo. Jaime era visto como um regente muito
exigente e por vezes rude com seus batuqueiros; o mesmo foi dito a respeito dos nego vio
que davam com a baqueta em quem cometesse algum erro no baque. A maioria das crianas
que participaram da escolinha, continuaram no maracatu, e foram de 2001 a 2009 os
principais batuqueiros da nao28.
A temtica das loas do Porto Rico dos anos 1980 e 1990 tambm seguiam a linha
tradicional, ou seja, falavam dos instrumentos e smbolos do maracatu, da corte real, dacompetio com outros grupos e por vezes da frica. Abaixo segue um exemplo de loa da
poca do mestre Jaime:
O nosso barco o Santa Maria
Que vem navegando nas ondas do mar
Vem c vem ver Porto Rico nao pra valer!
A grande maioria das naes de hoje em dia ainda segue com essa temtica.
Ao longo das dcadas de 1980 e 1990 sob o comando da Rainha Elda e do Mestre Jaime
a Nao Porto Rico foi campe de inmeros carnavais perdendo somente duas29 vezes para
seu rival Maracatu Elefante da Rainha Madalena. D. Elda havia definitivamente conquistado
seu espao como maracatuzeira e colocado seu grupo em posio de prestgio entre as naes
de maracatu da cidade. At os anos 2000 a rainha era a principal articuladora do grupo,
responsvel pela organizao da corte, das fantasias, pelo contato com as autoridades e
responsveis pelas polticas culturais, pelos contratos de apresentaes nas esferas pblicas e
28 De 2008 para 2011 uma quantidade razovel de batuqueiros da comunidade se afastou e as possveis razespara esse distanciamento sero discutidas nos captulos seguintes.29 Informao concedida pelo mestre Jaime em fevereiro de 2009, comunicao pessoal. No entanto, a listaoficial dos campees dos concursos carnavalescos do grupo especial na categoria de maracatu-nao, mostra quea Nao Porto Rico, sob o comando de D. Elda, obteve sua primeira vitria no carnaval de 1983, sendo campeat o ano de 1986 j que em 1987 a Nao Elefante conquistava o primeiro lugar. A Nao Elefante viria a sercampe dos carnavais de 1991, 1992 e 1995. No restante dos anos, at o ano de 1999 a Nao Porto Rico haviasido campe. Isso mostra que o grupo realmente obtinha prestgio no contexto das competies, mas ainda assim,
perdera quatro vezes para o Maracatu Elefante. A lista oficial das agremiaes campes est apresentada nosanexos da tese de doutorado de Ivaldo Marciano de Frana Lima (LIMA, Ivaldo Marciano de Frana. Entre
Pernambuco e a frica. Histria dos maracatus-nao do Recife e a espetacularizao da cultura popular
(1960 - 2000).Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Ps Graduao em Histria da UFF, 2010.)
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privadas, enfim era a principal responsvel pela administrao do grupo. Alm de administrar
o maracatu e o terreiro D. Elda era vista tambm como forte liderana comunitria se
envolvendo com questes referentes aos interesses do bairro como um todo. Jaime era apenas
responsvel pela regncia do batuque, de acordo com os maracatuzeiros entrevistados ele
chegava para o ensaio pontualmente s 16 horas de domingo, realizava o ensaio e ia embora,
ou seja, no se envolvia com a comunidade ou com outras questes de interesse do maracatu.
Neste ponto seu sucessor Chacon Viana se mostraria totalmente oposto.
Com Chacon veio a evoluo, antes era tudo nas costas da Me Elda, ele (Jaime) chegava, tocava e ia embora,
a ficava tudo na mo da Me Elda, mas a ela ficou mais velha da precisou vir Chacon.(Incio, 21 anos,
batuqueiro, 22/06/10)
2.2. A Era Chacon
No ano 2000 Mestre Jaime acabou passando por alguns problemas de sade e outros de
ordem pessoal e acabou se afastando da nao. O cargo ficou vago e precisava ser substitudo.
A histria da transio do Mestre Jaime para o Mestre Chacon possui diferentes verses.
Sabe-se que a memria algo varivel, construda no s individual como coletivamente
(Halbwachs, 1999), ou seja, no possvel alcanar verdades absolutas nos relatos de
memria, mas possvel perceber a riqueza e diversidade de interpretaes de um mesmo
evento e tentar compreender as razes e motivaes dessas interpretaes. Como j afirma
lclea Bosi lembrar no reviver, reconstruir, repensar com imagens e idias de hoje as
experincias do passado (Bosi, 1987, p.57).
De acordo com alguns entrevistados, alguns nomes surgiram como possveis substitutos
para o Mestre Jaime como o dos oficineiros da Escolinha de Batuque, ou de batuqueiros que
se destacavam como o jovem Dimas, neto adotivo de D.Elda. Dimas havia sido criado dentro
do terreiro de D. Elda e tambm hav