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UNIV CENT PROGRA Histórias e Memórias VERSIDADE FEDERAL DO MARANHÃO TRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E LETRA DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA RAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓ CLÁUDIO RODRIGUES DE MELO de Migrantes da Comunidade Negra R Queimada Nova – PI SÃO LUÍS 2013 O AS ÓRIA Rural de Tapuio

DISSERTAÇÃO FINAL 1corrigida - CLAUDIO _Salvo

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO MARANHÃO

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E LETRAS

PROGRAMA DE PÓS

Histórias e Memórias de Migrantes da Comunidade Neg ra Rural de Tapuio

UNIVERSIDADE FEDERAL DO MARANHÃOCENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E LETRAS

DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA

CLÁUDIO RODRIGUES DE MELO

Histórias e Memórias de Migrantes da Comunidade Neg ra Rural de Tapuio

Queimada Nova – PI

SÃO LUÍS 2013

UNIVERSIDADE FEDERAL DO MARANHÃO CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E LETRAS

GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA

Histórias e Memórias de Migrantes da Comunidade Neg ra Rural de Tapuio

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO MARANHÃOCENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E LETRAS

PROGRAMA DE PÓS

Histórias e Memórias de Migrantes da Comunidade Neg ra Rural

UNIVERSIDADE FEDERAL DO MARANHÃOCENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E LETRAS

DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA

CLÁUDIO RODRIGUES DE MELO

Histórias e Memórias de Migrantes da Comunidade Neg ra Rural

Queimada Nova – PI

SÃO LUÍS 2013

UNIVERSIDADE FEDERAL DO MARANHÃO CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E LETRAS

GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA

Histórias e Memórias de Migrantes da Comunidade Neg ra Rural de Tapuio

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CLÁUDIO RODRIGUES DE MELO

Histórias e Memórias de Migrantes da Comunidade Negra Rural de Tapuio

Queimada Nova – PI

Dissertação apresentada ao curso de Mestrado em História Social do Departamento de História da Universidade Federal do Maranhão como parte dos requisitos para obtenção do título de Mestre em História. Área de Concentração: História.

Orientadora: Profa. Doutora. Isabel Ibarra Cabrera

SÃO LUÍS 2013

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M5281h Melo, Cláudio Rodrigues de.

Histórias e memórias de migrantes da comunidade negra rural de Tapuio Queimada Nova - PI / Cláudio Rodrigues de Melo. – 2013.

147f. Dissertação (mestrado) – Curso de Mestrado em História da

Universidade Federal do Maranhão – UFMA, 2013. “Orientadora: Prof.ª Dra. Isabel Ibarra Cabrera”.

1. Quilombo. 2. Memória. 3. Migração. I. Título.

CDD: 306.812 2

Ficha elaborada pelo Serviço de Catalogação da Biblioteca Central da UESPI Nayla Kedma de Carvalho Santos (Bibliotecária) CRB 3ª/1188

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CLÁUDIO RODRIGUES DE MELO

Histórias e Memórias de Migrantes da Comunidade Neg ra Rural de Tapuio

Queimada Nova – PI

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História – Curso de Mestrado – da Universidade Federal do Maranhão (UFMA), como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em História.

Orientadora: Profa. Doutora Isabel Ibarra Cabrera

Aprovada em:____/____/____

BANCA EXAMINADORA

_____________________________________________ Profa. Dra. Isabel Ibarra Cabrera (Orientadora)

Universidade Federal do Maranhão (UFMA)

____________________________________________ Profa. Dra. Antonia da Silva Mota (Membro) Universidade Federal do Maranhão (UFMA)

_____________________________________________ Prof. Dr. Carlos Benedito Rodrigues da Silva (Membro)

Universidade Federal do Maranhão (UFMA)

_____________________________________________ Prof. Dr. Solimar de Oliveira Lima (Suplente)

Universidade Federal do Piauí (UFPI)

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DEDICATÓRIA

Dedico este trabalho a toda minha família, com especial gratidão a meus pais Francisca Rodrigues Alves Melo e José Pereira de Melo pelos ensinamentos de uma

vida inteira.

A minha esposa Iraneide Soares da Silva pelo incentivo e apoio incondicionais e por fazer parte de tudo isso dividindo reflexões no campo da história e demais coisas da

vida.

Por fim, dedico também a nossa filha Kizzy Soares Melo, de quem tenho tentado ser um aplicado aluno na arte de ser pai.

Sem o acolhimento e a generosidade dos moradores do Quilombo Tapuio não teria chegado até aqui, a eles também dedico esta pesquisa.

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AGRADECIMENTOS

Agradecer é necessário quando se percorre caminhos tortuosos para chegar ao destino e se obtém êxito. É preciso por que muitas mãos foram estendidas, palavras de incentivo foram ditas e gestos nos levaram a captar mensagens de otimismo. Agradecimentos são muitos e devemos fazê-los como sinal de reverência.

Institucionalmente, agradeço a Secretaria Estadual de Educação e Cultura - SEDUC por meio da GEFAPE – (Gerência de Formação e Aperfeiçoamento dos Profissionais da Educação) por oportunizar o tempo de afastamento necessário ao cumprimento das obrigações estabelecidas pelo curso de pós-graduação.

Da mesma forma agradeço a Universidade Estadual do Piauí – UESPI por meio dos companheiros de trabalho nesta instituição, por terem aprovado em assembleia do colegiado de curso o meu afastamento para as atividades do curso de pós-graduação.

À Fundação de Amparo a Pesquisa do Estado do Piauí – FAPEPI por ter concedido bolsa de auxílio à pesquisa pelo período de 01 ano, o que muito contribuiu para o desenvolvimento deste trabalho.

Por fim agradeço a Universidade Federal do Maranhão – UFMA, especialmente ao programa de Pós Graduação em História Social – PPGHIS e a todos os professores por terem me recebido de braços abertos durante o curso.

Pessoalmente, quero agradecer a minha orientadora Professora Doutora Isabel Ibarra Cabrera pela confiança depositada em mim na capacidade de realização deste trabalho.

Agradeço a todos os meus colegas de curso pelos momentos de intenso debate que serviram de alguma forma para reflexões sobre o trabalho, além é claro da amizade fraterna. Sintam-se todos abraçados, especialmente Débora Gonsalves, Iramir Araújo, Mirian Ribeiro, Marivânia Moura, Gonçalo Mendes, Daylana Cristina, Claunísio Amorim.

Agradeço em especial ao Professor Carlos Benedito pela amizade e o apoio durante tantos momentos em São Luís. Da mesma forma, não posso esquecer os amigos Maria da Guia e Raimundo Nonato Viana, pois eles também estiveram comigo nesta caminhada.

Pelos desejos semelhantes de conquista, agradeço o incentivo, a ajuda e a amizade de Lucélia Nárjera, a quem parabenizo também pela conquista do título de mestre junto a Universidade Federal de Campina Grande. Também gostaria de agradecer imensamente a Cristiana Costa da Rocha, colega de trabalho na UESPI e amiga querida no cotidiano pelos momentos de interlocução sobre algumas questões relativas a este trabalho, à história e também a vida.

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Finalmente, agradecimentos especiais a toda minha família, meus pais José Pereira de Melo pelo exemplo de garra e luta durante toda a vida e Francisca Rodrigues Alves Melo pela coragem e os valores a mim repassados e que agora procuro ensinar, na medida do possível, a minha filha. Aos meus irmãos pelo apoio em todos os momentos.

A minha esposa Iraneide Soares da Silva com quem tenho dividido a vida, os sonhos e os bons momentos ao lado nossa filha, Kizzy Soares Melo, que mesmo na inocência dos seus 03 aninhos, aos poucos foi compreendendo a seu modo, as minhas ausências. Juntos, temos compartilhado belas histórias sempre apoiando e incentivando a conquista de novos sonhos e desafios.

Por último, agradeço aos moradores do Quilombo Tapuio, por terem compartilhado comigo fragmentos da sua rica história de vida.

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EPÍGRAFE

Lamento de um nordestino Francis Lopes * Só Deus sabe o quanto sofre um nordestino Que vê seu sonho de menino Se acabando pelo ar Ele sofre quando tem que ir embora A família toda chora Mas não pode mais ficar Entra no ônibus de coração partido Sabe que vai ser sofrido O mundo da desilusão Ele reza e pede pra nossa Senhora Guiar sua sorte agora Entrega a vida em suas mãos Refrão: Eu sei que vou, vou pra São Paulo Mas vou deixando a minha fonte de alegria Deus por favor, me dê trabalho E a esperança de poder voltar um dia Ele chega na cidade grande e vê O quanto é duro pra vencer Começa logo a lembrar Lembra da mãe e do pai que lá deixou Dos amigos que ficou Esperando ele voltar Feliz daquele que arranja um bom emprego Que sobra um pouco de dinheiro Para o norte ele mandar Triste do outro que a vida é só sofrimento Ele tenta, tenta, tenta, Mas não consegue trabalhar Refrão:

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Eu sei que tou, tou em São Paulo Mas lá deixei a minha fonte de alegria Deus por favor, me dê trabalho E a esperança de poder voltar um dia Tou em São Paulo, mas vim pra cá obrigado Sei que é um bom estado E muita gente se dar bem Tou trabalhando e vou ficando por aqui Mas não troco o meu Piauí Pela terra de ninguém Alô mamãe, alô papai aqui vou bem Dê lembranças pra meu bem E pra quem perguntar por mim Vou enviando uma caixinha com um presente Vai pelo seu Zé Vicente Da empresa Itapemirim Tou com saudade, com vontade de ir embora Mas não posso ir agora Pois tenho que trabalhar No mês de junho, eu de férias vou sair Me aguarde por aí Porque vou lhe visitar Eu sei que tou, tou em São Paulo Mas lá deixei a minha fonte de alegria Deus por favor, eu só te peço A liberdade de poder voltar um dia

*cantor piauiense radicado na cidade de São Paulo

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RESUMO

A pesquisa sobre a qual trata esta dissertação tem como inspiração um estudo anteriormente realizado na comunidade quilombola do Tapuio, situada no município de Queimada Nova - PI. A nossa abordagem aqui é diferente, pois investigamos acerca das trajetórias de vida de alguns moradores da comunidade que assumiram a condição de migrantes nos anos de 1970 e 1980, deslocando-se repetidas vezes para o Estado de São Paulo em migrações temporárias, até empreenderem uma migração de retorno fixando-se definitivamente no quilombo Tapuio. Por meio da história oral e da memória desses moradores, procuramos compreender os diferentes percursos realizados, analisando as motivações que os levaram a deixar o quilombo, e também, aquelas que contribuíram para o seu regresso definitivo à comunidade. Esta investigação aponta além da seca, comumente tido como elemento determinante para a migração, outras motivações. Há também as motivações que os fazem retornar ao quilombo, oportunizando novas vivências e experiências quecontribuem para a obtenção de uma nova visão de mundo e também sobre si mesmos e sua condição enquanto migrante e quilombola.

PALAVRAS–CHAVE : Quilombo. Memória. Migração

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ABSTRACT

The research on which this dissertation addresses is inspired by a study conducted earlier in the Tapuio maroon community, located in the city of Queimada Nova - PI. Our approach here is different because we investigated about the life trajectories of some community residents assumed the condition of migrants in the 1970s and 1980s, moving repeatedly to the State of São Paulo in temporary migration, to undertake a migration return settling permanently in quilomboTapuio. Through oral history and memory of these residents, we understand the different journeys made by analyzing the motivations that led them to leave the Quilombo, and also those who contributed to its final return to the community. We realize that in addition to drought, commonly regarded as a determinant factor for migration, there are other reasons that contribute to the output of these residents from their place of origin. There is also the motivations that make them return to the Quilombo, providing opportunities for new experiences and experiences that contribute to the achievement of a new world view and also about themselves and their condition as a migrant and maroon.

KEY - WORDS: Quilombo.Memory.Migration

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LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1 – Mapa do município de Queimada Nova/PI .......................................... 05

Figura 2 – Município de Queimada Nova no mapa do Piauí ................................ 06

Figura 3 – Território do Vale Guaribas... ............................................................... 07

LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

ADCT: Ato das Disposições Constitucionais Transitórias

CECOQ: Coordenação Estadual das Comunidades Negras Rurais Quilombolas

CA: Centro Acadêmico

CCHL: Centro de Ciências Humanas e Letras

DCE: Diretório Central dos Estudantes

FCP: Fundação Cultural Palmares

FM: Frequência Modulada

FNB: Frente Negra Brasileira

INCRA: Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária

MDA: Ministério do Desenvolvimento Agrário

MINC: Ministério da Cultura

MNUCDR: Movimento Negro Unificado Contra a Discriminação Racial

MNU: Movimento Negro Unificado

NEAB: Núcleo de Estudos Afro-brasileiros

ONG: Organização Não Governamental

PNAD: Pesquisa Nacional Por Amostra de Domicílio

TEN: Teatro Experimental do Negro

UFPI: Universidade Federal do Piauí

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 16

CAPÍTULO 1

1. APROXIMAÇÃO DO QUILOMBO TAPUIO: CONTRIBUIÇÕES DA HISTÓRIA ORAL

1.1 E por falar em quilombos ................................................................................ 25

1.2 No quilombo do Tapuio, ouvi e contei histórias .............................................. 35

1.3 Oralidade, memória e fios de história ............................................................ 37

1.4 Dialogando na atualidade sobre quilombos....................................................46

1.5 Espaços, memória e a construção da territorialidade......................................56

CAPÍTULO 2

2(DES)CAMINHOS MIGRATÓRIOS: SAÍDAS, CHEGADAS E PERCU RSOS DOS MORADORES DA COMUNIDADE QUILOMBOLA TAPUIO

2.1 O migrante e o ato de migrar ......................................................................... 80

2.2 O retorno para o Tapuio e seus desdobramentos .......................................... 97

CAPÍTULO 3

3 MEMÓRIAS DE TEMPOS VIVIDOS

3.1 Vivendo e vivenciando a cidade ................................................................... 107

3.2 Quilombolas: somos ou queremos ser? ........................................................ 119

3.3 Famílias: entre a solidariedade e as contradições ........................................ 126

CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................. ...................................................... 137

REFERÊNCIAS ....................................................................................................... 141

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16

INTRODUÇÃO

Conhecemos a comunidade Tapuio em 1999 quando, ao longo de 02 (dois)

anos desenvolvemos uma pesquisa e por cerca de 01 (um) ano visitamos a

comunidade com frequência. Estivemos no quilombo Tapuio ao menos 06 (seis)

vezes. Isso nos permitiu grande interação com o espaço/lugar e seus moradores,

que sempre nos receberam muito bem, após serem informados do que se

tratava,quais os objetivos da pesquisa e o porquê da nossa presença ali.

Nossas curtas visitas de três ou quatro dias eram aproveitadas com passeios

em todas as áreas da comunidade. À noite, as informações eram coletadas

informalmente, às vezes, em meio as conversas dos moradores em suas reuniões

de organização realizadas no “salão” comunitário, ocasião em que discutiam os

problemas e tentavam elencar soluções a partir da distribuição de tarefas a serem

cumpridas entre eles. Em outros momentos, as conversas noturnas após o jantar, na

casa dos nossos anfitriões rendiam boas informações e suscitavam mais

questionamentos.

E foi em uma dessas conversas com o morador Sebastião Vicente, que

tomamos conhecimento da sua rotina nos últimos anos. Ele nos contou ter retornado

recentemente à comunidade, após passar alguns períodos em trânsito entre o

quilombo Tapuio e o Estado de São Paulo.

Alguns anos se passaram e pude refletir melhor sobre estes momentos e a

própria conversa em si. Considerando que outros moradores fizeram o mesmo

caminho nas décadas de 1970 e 1980, esse “está de volta” definitivamente na

comunidade é que nos chamou atenção. Porque voltaram? O que os levou a sair do

quilombo Tapuio? Como foram as experiências de migrante na cidade grande? De

que maneira avaliam estas experiências nestes diferentes espaços? Estas foram

algumas indagações que surgiram ao constatar que, fora desse momento histórico,

sair do quilombo parece ser algo corriqueiro e que vai se repetindo ao longo do

tempo. Pensamos então em como chegar ao objetivo de tentar responder algumas

dessas questões.

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Uma possibilidade me pareceu óbvia e a mais adequada. Utilizar a história

oral como instrumento para acessar a memória dos moradores migrantes que se

estabeleceram na comunidade de forma definitiva nas décadas de 1970 e 1980.

Buscar e aprofundar informações que possibilitassem entender as motivações para

que estes moradores deixassem o quilombo e empreendessem o deslocamento,

quais as expectativas que cada um tinha em relação à busca de melhores condições

de vida para a família e para si mesmo.

Assim foi feito. Deslocamos-nos ao quilombo do Tapuio e entrevistamos um

grupo de 06 (seis) moradores, todos os homens e que estavam dentro do recorte

temporal estabelecido, com exceção de 01 (um) que já havia saído do quilombo nos

anos de 1990, todos os demais deixaram a comunidade nas décadas de 1970 e

1980. Foi a partir da memória desses moradores e os diálogos travados com eles

que nos oportunizaram ir aos poucos esboçando algumas das respostas que

estávamos à procura.

Tomamos o quilombo Tapuio como reflexo do que acontece em outras

comunidades quilombolas do Estado do Piauí e possivelmente de outras regiões do

país. Sair, migrar para a Região Sudeste é uma prática muito difundida, tendo em

certos períodos da história, inclusive apoio oficial para isso. Algo perfeitamente

visível quando analisamos os fluxos migratórios internos entre os anos que vão

desde a década de 1950 até mais ou menos a década de 1980. É nesse período

que haverá um grande deslocamento de pessoas da Região Nordeste, onde o meio

rural vai aos poucos perdendo seu contingente populacional e invertendo a relação

de habitantes com o urbano.

Os motivos dessa saída ou deslocamento para outras regiões são de várias

naturezas. Vão desde fatores mais gerais como mudanças que ocorreram na

economia, onde a Região Sudeste passa a atrair mais investimentos que a Região

Nordeste, há também a questão fundiária com a concentração de terra, passando

por outros aspectos mais específicos como o excedente de população no campo

(PATARRA)1, e o fenômeno da seca periodicamente ocorrendo na Região do

Semiárido Nordestino. Constatamos a partir das falas que no caso do Tapuio estão

1 Ver referências.

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presentes alguns destes fatores, no entanto, vamos encontrar outras motivações que

fogem as explicações mais presentes nas pesquisas sobre migrações no nordeste.

A partir dos anos de 1980, as pesquisas sobre o tema vão constatar

mudanças significativas nos fluxos migratórios, nos volumes apresentados e de

modo geral, nas características dessas migrações no Brasil. Uma das mudanças é a

maior ocorrência da chamada “migração de retorno”. Tal fato constitui-se como uma

mudança significativa no paradigma migratório que vigorava até o final da década de

1970, pois até então, os deslocamentos para fora do nordeste eram uma prática

amplamente disseminada em toda região.

No caso do Tapuio, as migrações temporárias, já eram intensas antes mesmo

dos anos de 1970, e os nossos entrevistados empreenderam essa ação de migrar,

que ocorreram durante toda a década e que permanecem atualmente. A fixação

definitiva desses moradores no quilombo Tapuio foi acontecendo aos poucos nesse

intervalo de duas décadas. Hoje em dia, a migração de retorno já é algo mensurado

no censo demográfico realizado pelo IBGE, devido à frequência cada vez maior com

que tem ocorrido e a sua importância para a compreensão da reorganização do

espaço urbano tanto dos grandes centros, quanto das pequenas cidades e também

do campo.

O fenômeno do retorno, no geral está relacionado também com o aspecto

econômico, as mudanças no sistema produtivo que repercutem na vida das pessoas.

O ciclo de crescimento na Região Sudeste entrou em um processo de estagnação.

Contrastando com o período entre o fim dos anos 1960 e começo dos 1970, de

amplo crescimento em que a referência mais forte foi e continua sendo, a cidade de

São Paulo, que atraiu uma gigantesca quantidade de pessoas do nordeste e de

outras regiões em busca da realização pessoal.

Quanto à memória, ela é aqui uma ferramenta preciosa que nos proporcionou

fazer esse mergulho nos fragmentos de vida desses migrantes e ir compreendendo

um pouco mais sobre as relações que se estabelecem no cotidiano do quilombo,

tanto no passado quanto no presente. A seletividade dessa memória é aqui objeto

de indagação, uma vez que as narrativas são filtros dessas experiências todas que

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são desfiadas diante de nós consonante aquilo que para o migrante ganha

relevância.

Elas mesclam também os diversos sentimentos que perpassam cada um que

ali vive. Seja o pertencimento identitário que advém da autoafirmação como

quilombola, nordestina ou piauiense seja daqueles que os mantém ligados ao

território e as pessoas que ali estão, ainda que passem muito tempo fora da

comunidade. O exercício de lembrar estará sempre ligado à necessidade que o ser

humano tem de buscar e manter referenciais que o auxiliem na construção da

identidade coletiva, que mesmo em movimento é o fundamento que oportuniza ao

sujeito se perceber como ser histórico, como alguém que protagoniza seu caminho

no desenrolar do tempo.

A relação da memória com o espaço é algo que acontece guardando uma

ampla série de relações que remetem também a uma percepção de si mesmo, uma

vez que é no espaço, onde estão guardadas lembranças do desenrolar dos tempos

vividos. O passado e suas experiências de um modo geral são atualizados pela

memória no presente porque se tornam parte da realização desse presente. Ainda

que as perdas sejam inerentes ao ato de lembrar, nele também está o esquecimento

e ambos vivem essa relação dicotômica. Assim vamos ter narrativas de migrantes

que comportam vários “não ditos”, as zonas de sombra e de silêncio (POLLAK,

1989).

As narrativas se ligam a lugares e pessoas, no caso, os quilombolas. O

quilombo é um lugar de memória onde os moradores se reconhecem como parte

dessa coletividade, onde de certa forma se constrói e se percebe a diferença para

com os elementos exteriores a essa comunidade. Esta compreensão é importante

porque nos remete as mudanças pelas quais vêm passando estas comunidades nos

últimos anos.

Com a promulgação da Constituição de 1988, os quilombos, até então

esquecidos pelo discurso oficial e também pela sociedade, adquiriram um novo

status a partir do momento em que a lei passa a defini-los como sujeitos de direitos.

De acordo com artigo nº 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias –

ADCT: “Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando

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20

suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os

títulos respectivos”.

Diante dessa conjuntura, a necessidade de reconhecimento dessas

comunidades tornou-se algo urgente. Isso leva a aprofundar uma discussão em

torno de o que ou quem é realmente quilombo e quilombola no país. As raízes

históricas dessas comunidades foram invocadas de variadas formas para esse

debate, levando a embates de compreensão acerca da questão. O saldo foi o

aprofundamento da polêmica em torno deste tema, pois ele está diretamente ligado

a outra questão chave no Brasil que é a posse da terra.

Dada a ênfase no aprofundamento das políticas públicas de estado e a

própria organização social das comunidades, a pressão intensificou arrastando-se

para o campo acadêmico, demandando aos antropólogos e demais profissionais da

área, uma solução para o problema. É nesse cenário, de disputa no campo político e

social que as comunidades quilombolas conseguem avançar e ir cada vez mais se

reafirmando não só como população que tem exigido uma melhor atenção por parte

do governo. Mas que reivindica a partir da sua própria história uma nova escrita.

Os capítulos que compõem este trabalho estão aqui estruturados da seguinte

maneira: No capítulo primeiro pondero sobre alguns caminhos trilhados pela

historiografia atual, especificamente sobre a história social e a sua grande

contribuição para o descortinamento de personagens antes invisibilizados. Os

quilombos no Brasil carecem de uma melhor abordagem científica, pois embora não

estejam totalmente invisíveis, eles ainda não têm uma atenção mais específica no

campo da história. As referências de produção sobre o tema não são muito

numerosas na historiografia, havendo bem mais títulos na antropologia e sociologia,

por exemplo. A existência dessas comunidades não só está registrada no tempo

histórico, mas também no espaço, uma vez que elas se disseminaram por

praticamente todas as regiões do Brasil, de Norte a Sul.

Discutimos a categoria quilombo historicamente, seu processo de

ressignificação que tem se dado nos últimos anos, a partir da necessidade

demandada pela Constituição Federal de 1988, e também pela própria organização

das comunidades quilombolas em todo o país por meio de entidades

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representativas, que politicamente tem pautado suas reivindicações, sobretudo em

relação à posse da terra, junto ao governo central. A organização dessas

comunidades no Piauí materializada na criação da coordenação estadual de

comunidades negras rurais quilombolas. O contexto atual nos leva a pensar nos

quilombos sob outro prisma que não somente o da resistência, difundido por alguns

autores, mas como locais onde as relações construídas no passado e também nos

dias atuais expressam um nível de contradições existentes, por exemplo, na forma

como as relações internas vão sendo construídas e também na inserção dessas

comunidades no meio onde estão localizadas.

Assinalamos que na dinâmica em que existem hoje, os quilombos precisam

ser entendidos dentro do contexto presente e não do passado. Lá estão presentes

seus costumes, valores e sentimentos de identificação coletiva entre si e com seu

lugar. São estes elementos que demandam pesquisas para que possamos

compreender melhor seu cotidiano, mas também parte da nossa própria história.

O encontro ou reencontro com o quilombo Tapuio é apresentado na sua

relação com as questões que vão sendo desfiadas e dão sentido ao que se discute

aqui. Talvez não seja propriamente um reencontro, tendo em vista que este Tapuio é

bem diferente daquele onde estivemos no fim dos anos 1990. Novas conquistas e

melhor organização política e comunitária foram elementos que nos chamaram a

atenção nessa nova visita. Passamos dias colhendo histórias e revisitando memórias

que se mostraram valiosas para os nossos propósitos e também para o encontro

com os protagonistas dessas histórias. Metodologicamente, discutiremos aspectos

teóricos e metodológicos ligados ao estudo da memória a partir do recurso da

história oral.

No capítulo segundo analisamos a migração, enquanto categoria de análise,

que se configura de uma forma no passado recente e vai nos trazendo novas

inquietações, quando vamos nos reportar à prática da migração de retorno, difundida

na comunidade quilombola do Tapuio, realizada por nossos entrevistados. Migrar em

busca de trabalho e melhores condições de vida tem uma relação próxima com o

lugar de origem, a expectativa de voltar se a migração tiver um caráter temporário, o

que é o caso aqui. O retorno então torna-se algo intrínseco à partida.

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22

O encontro com a cidade de São Paulo é um momento especial, em que as

expectativas positivas se confirmam ou não, acarretando grande frustração e outros

sentimentos que descaracterizam o sonho de voltar para casa em uma situação bem

melhor do que a da chegada. Salientamos também as relações familiares como de

fundamental importância para a realização da ação de migrar, ainda que estejam

marcadas também por contradições que põem em xeque o sentimento de

afetividade e solidariedade familiar.

Por fim no capítulo terceiro, a partir das narrativas dos nossos interlocutores,

passamos a descrever as experiências vivenciadas no processo da migração na

cidade, nas relações cotidianas que incluem também as familiares. O vivido torna-se

rico de significados quando acessado pela memória, pois o que é recordado desses

momentos expressa também um aprendizado, acúmulo de experiências que são

levadas para a vida toda.

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23

CAPÍTULO 1

APROXIMAÇÃO DO QUILOMBO TAPUIO: CONTRIBUIÇÕES DA HI STÓRIA

ORAL

Me rebelei, matei o senhor, a sinhá, o sinhozinho, a sinhazinha,

o feitor, o capitão-do-mato e me refugiei nos quilombos. Elio Ferreira2

Estamos em permanente movimento no tempo histórico, ora como

testemunhas, ora como expectadores dos acontecimentos. Mas também, como

sujeitos que protagonizam e escrevem sobre esses caminhos procurando respostas,

na maioria dos casos, inconclusas, para a insaciável curiosidade que nos traz o

presente. O historiador é um desses expectadores que, entre conflitos e dilemas que

se expressam por meio do seu ofício, procura desesperadamente trilhas para as

“respostas”, inconclusas é certo, encontradas quando da análise do seu objeto.

Ainda como nos diz Certeau: “[...] o gesto que liga as ideias aos lugares é

precisamente, um gesto de historiador” (CERTEAU, 1982, p. 65).

Assim, é próprio da dinâmica do lugar em que se situa o historiador, perceber

que por mais respostas que venha a obter durante um trabalho de pesquisa, novas

indagações surgirão perpetuando então o desejo incomensurável por mais trilhas de

saberes sobre testemunhas, protagonistas, a própria história em si, enfim, sobre a

vida. Esse desejo por “respostas” é o que nos inquieta e nos move rumo ao caminho

da pesquisa. Buscamos uma inspiração localizada nos ecos da chamada “nova

história” (BURKE, 1992) em que definimos como campo de investigação um objeto

que se encontra situado no interior de uma “história social” hodierna. Do tempo

presente porque remete a uma memória recente, sem um recuo alongado no tempo,

ou ainda de acordo com Ferreira3 por ter:

Em primeiro lugar, a emergência da história do século XX com um novo estatuto, definido por alguns como a história do tempo presente, portanto portadora da singularidade de conviver com testemunhos vivos que sob

2 Poeta e pesquisador piauiense autor da tese Poesia Negra das Américas – Solano Trindade e Langston Hughes. 3 FERREIRA, Marieta de Morais. História, tempo presente e história oral. Revista Topoi , Rio de Janeiro, dezembro 2002, p. 314-332. Disponível em: http://pt.scribd.com/doc/110648692/Historia-tempo-presente-e-Historia-Oral-Marieta-Ferreira. Acesso em: 16/05/2012.

Page 23: DISSERTAÇÃO FINAL 1corrigida - CLAUDIO _Salvo

24

certo aspecto condicionam o trabalho do historiador, coloca obrigatoriamente em foco os depoimentos orais (FERREIRA, 2002).

Quanto ao Social, frisamos que apesar de toda problemática que se

estabelece em termos de teoria e metodologia da pesquisa histórica relativa ao

termo “social”, como afirma Castro (1997) “Ainda hoje, a expressão “historia social” é

frequentemente utilizada como forma de demarcar o espaço desta outra postura

historiográfica frente à historiografia tradicional”.

O campo aberto pela expressão social no meio historiográfico, de certa forma,

estabelece tal espaço como confluência da ação do sujeito histórico em termos de

abordagem. E esta por sua vez considera os grupos sociais como dignos de um

olhar mais atento que possa quebrar certo obscurantismo peculiar a suas formas de

ser, viver e interagir entre si.

Partimos de um seguinte questionamento para reflexão do nosso objeto:

quem são os sujeitos históricos? Questão impertinente em termos de historiografia

tradicional, visto que podem ser definidos nessa abordagem, mas tal questão hoje é

imprescindível dada à profusão de estudos e pesquisas sobre temas que se

apresentam de forma diversa. Para Delgado (2006) a resposta se apresenta da

seguinte forma:

Os sujeitos construtores da História são líderes comunitários, empresários, militares, trabalhadores anônimos, jovens que cultivam utopias, mulheres que labutam no cotidiano da maternidade e, simultaneamente, em profissões variadas, são líderes e militantes de movimentos étnicos, são educadores que participam da formação das novas gerações, são intelectuais que pensam e escrevem sobre os problemas da vida e do mundo, são artistas que, através do seu ímpeto criativo, representam realidades e sentimentos nas artes plásticas, nos projetos arquitetônicos, nos versos e nas composições musicais, são cientistas que plantam o progresso e a inovação tecnológica, são políticos que se integram à vida pública, adotando ou uma prática de estatura maior ou fazendo do espaço público local de práticas patrimonialistas. Os sujeitos construtores da História são, enfim, todos que anonimamente ou publicamente deixam sua marca, visível ou invisível no tempo em que vivem, no cotidiano de seus países e também na história da humanidade (DELGADO 2006, p. 55-56).

Diríamos até mais, que o esquecimento imposto por certa maneira de contar a

história nos faz ignorar uma massa de anônimos que também se encontram

protagonizando o movimento que faz girar o tempo histórico, porém imperceptíveis

dentro dos vários discursos que se tornam hegemônicos no processo de escrita

dessa história.

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25

A ampliação do campo de interesse da historiografia tem sido importante fator

na quebra dos discursos hegemônicos protagonizados pela historiografia tradicional

do século XIX (com objetos e metodologias bem estabelecidos). Os sujeitos

históricos são múltiplos, diversificados e caracterizados pela alteridade que lhes é

peculiar e agora temos uma percepção mais aguçada onde, constatamos isso de

forma mais presente.

Todavia, isso não quer dizer que a produção histórica esteja direcionada para,

a partir desses nuances, abrir espaço para alguns objetos silenciados ao longo do

tempo. Caso, por exemplo, da história dos quilombos no Brasil. Por mais que já se

tenha pesquisado e escrito, ainda observamos a existência de um vasto campo

aberto para a pesquisa nas diferentes regiões do país. Muito embora seja

perceptível, o que nos alertam Reis e Gomes acerca da pesquisa:

[...] para a maioria dos quilombos nas Américas, e no Brasil em particular, dependemos exclusivamente de relatos escritos por pessoas de fora, amiúde pela pena de membros das forças repressoras (REIS; GOMES 1996, p.10).

1.1 E por falar em quilombos... O Estado do Piauí tem uma população de 3.118.360 (três milhões, cento e

dezoito mil e trezentos e sessenta habitantes), uma área de 251.577,738 (duzentos

e cinquenta e um mil, quinhentos e setenta e sete quilômetros e setecentos e trinta e

oito metros), distribuídos em 224 (duzentos e vinte e quatro) municípios e dentre

estes destacamos aqui, o município de Queimada Nova com a população de 8.553

(oito mil e quinhentos e cinquenta e três habitantes) distribuída em uma área de

1.352,398 (hum mil trezentos e cinquenta e dois quilômetros e trezentos e noventa e

oito metros)4.

Informações cruciais, dada a relação com outra importante, para o percurso

nesta investigação que propomos. Qual seja? Informação que obtivemos a partir do

que foi divulgado pela PNAD (2005), em que a população negra existente no Estado

era de 75,3% (setenta e cinco ponto três por cento), um número expressivo tendo

em vista que em nível de Brasil tínhamos 49,4% (quarenta e nove ponto quatro por

4Dados do Censo 2010. Disponível em: <http://www.ibge.gov.br/estadosat/perfil.php?sigla=pi#> e <http://www.ibge.gov.br/cidadesat/link.php?uf=pi>. Acesso em: 05 de outubro de 2012.

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26

cento)5. O município de Queimada Nova, na região sudeste do Piauí tem na sua

circunscrição municipal a existência de comunidades negras rurais quilombolas,

assim como outras comunidades rurais que não têm como estas, uma população

majoritariamente negra. O município apresenta três (03) comunidades certificadas

pela Fundação Palmares: Tapuio, Sumidouro e Pitombeira. Além destas existem

outras quarenta (40)6 com a certificação emitida pela Fundação Palmares no Estado

do Piauí.

Mapa 1. O Quilombo Tapuio no território do município de Queimada Nova7

Figura 1

5Disponível em: <http://www.seade.gov.br/produtos/idr/download/populacao.pdf>. Acesso em: 05 de outubro de 2012. 6Disponível em: <http://www.palmares.gov.br/quilombola/?estado=PI>. Acesso em: 05 de outubro de 2012. 7 Este mapa possui como fonte de origem a pesquisa de dissertação de mestrado de Carlos Alexandre Barboza Plínio dos Santos, UnB/2006.

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27

A posse desse documento é o primeiro passo em direção aos trâmites que

envolvem a titularização definitiva de posse da terra, processo trabalhoso e

demorado.

Na configuração atualmente apresentada pela política de desenvolvimento

econômico estabelecido pelo Estado temos o seguinte: a lei complementar nº 87 de

22 de agosto do ano de dois mil e sete (2007) “estabelece o planejamento

participativo territorial e para o desenvolvimento sustentável do Estado do Piauí e dá

outras providências”8. Destacamos aqui as deliberações que definem em seu artigo

primeiro que o planejamento governamental passa a ser feito de acordo com a

divisão do Estado em vinte e oito (28) aglomerados e onze (11) territórios de

desenvolvimento em quatro (04) macrorregiões. Sendo assim, verificamos que o

município de Queimada Nova, dada a sua localização geográfica9 encontra-se

dentro da chamada “macrorregião 03”, o semiárido, e pertence ao território de

desenvolvimento denominado de Vale do Rio Guaribas. Aqui temos uma

representação do município no mapa do Piauí. Mapa 2 – Representação do

município de Queimada Nova no mapa do Piauí.

10

8Disponível em: <http://legislacao.pi.gov.br/scan/o/jsp/scan/consultaDeAtoNormativo.jsp?idAtoNormativo=5423>. Acesso em 05 de outubro de 2012. 9O município está localizado na microrregião do Alto Médio Canindé (figura 2), compreendendo uma área de 1438,39 km², tendo como limites os municípios de Paulistana e Acauã ao norte, ao sul com Lagoa do Barro do Piauí e o estado de Pernambuco, a leste com o estado de Pernambuco e, a oeste com Lagoa do Barro do Piauí. “A sede municipal tem as coordenadas geográficas de 08º 34’ 46” de latitude sul e Mapa 2. Município “de Queimada Nova no Território do Vale do Rio Guaribas 41º 25’ 10” de longitude oeste de Greenwich e dista cerca de 522 km de Teresina. Disponível em: <http://www.cprm.gov.br/rehi/atlas/piaui/relatorios/165.pdf>. Acesso em 05 de outubro de 2012. 10Fonte: http://www.cprm.gov.br/rehi/atlas/piaui/relatorios/165.pdf

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Mapa 3. Município de Queimada Nova no Território do Vale do Rio Guaribas

Figura 2

QUEIMADA NOVA

Fonte: http://www.codevasf.gov.br/principal/publicacoes/publicacoes-atuais/planap/

O que inicialmente denominamos de comunidade negra rural quilombola é

uma nomenclatura dentre tantas outras existentes e que posteriormente nos levou a

refletir sobre o seu uso, onde concluímos que esta categoria quilombo se revela

mais adequada para o contexto desta pesquisa, dada uma série de ponderações

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29

realizadas, incluindo a própria noção de autodefinição11 utilizada por moradores de

algumas dessas comunidades e os desdobramentos que daí decorrem.

Assim vamos nos referir aqui sempre ao Quilombo do Tapuio. Por isso faz

necessário discutir a relevância dessa categoria conceitual para que possamos

avançar, não apenas dada a historicidade que se expressa na existência dos

quilombos e todas as pesquisas e interpretações já realizadas acerca do mesmo,

bem como, por existir a necessidade de analisar as transformações pelas quais

essas discussões, sobretudo, no campo da antropologia, vêm passando nos últimos

anos. A esse respeito, Funes (1996, p. 468) considera que “a constituição dos

quilombos como contraponto à sociedade escravista, e a sua permanência nas

atuais comunidades negras são temáticas pouco estudadas pelos historiadores”.

Após esta breve incursão geográfica da comunidade do Tapuio, ressaltamos

a existência de uma historicidade manifestada muito particularmente por uma

“tradição oral” em que os seus moradores narram a história da comunidade através

das sucessivas gerações. Apresentamos um trecho resumido:

O relato dos moradores nos revela que a comunidade de remanescente de quilombo Tapuio foi fundada há aproximadamente 150 anos, pelo negro Dionísio Alexandre Pereira da Silva, que havia casado com Brígida Felipa da Conceição (Brígida Maria de Jesus), originando toda descendência dos atuais habitantes de Tapuio, Brígida tinha descendência indígena, havia sido criada e trabalhava para um fazendeiro de nome Raimundo Nonato, que como paga pelo trabalho do casal, adquiriu e entregou-lhes uma área na denominada Fazenda Data Brejo, pedindo-lhes que dessem o nome de Alegria. Dionísio resolveu dar o nome de Vista Alegre, mas o local naquela época apesar de ser habitado por negros era ponto de passagem e acampamento dos indígenas denominados Tapuios, como todos naquela região chamavam aquela área de passagem dos Tapuios, o nome Tapuio ficou sendo o mais usado e até hoje esta comunidade é conhecida como terra dos negros do Tapuio (Fonte: Relatório de Identificação e Delimitação do Quilombo Tapuio, MINC/FCP/FUNB, Brasília-DF, 2004).

Existem atualmente 146 (cento e quarenta e seis) comunidades quilombolas

espalhadas no Estado do Piauí de acordo com dados da Coordenação Estadual de

Comunidades Negras Rurais Quilombolas - CECOQ12. Número este que precisa de

uma atualização, visto que representa as comunidades em geral (as certificadas pela

11Inclusive juridicamente em princípio pelo Decreto nº 3.572, de 22 de julho de 1999, sendo depois estabelecido na legislação federal em novembro de 2003, através do Decreto nº 4.887. 12Trata-se de uma coordenação estadual que cuida de todos os assuntos ligados às comunidades negras rurais quilombolas, que por sua vez está ligada à Coordenação Nacional de Comunidades Negras Rurais Quilombolas - CONAQ.

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30

Fundação Palmares/Ministério da Cultura, aquelas que estão com regularização

fundiária assegurada pelo INCRA, as que estão com processos de regularização

tramitando e as que não estão em nenhuma dessas categorias).

Os quilombos representaram uma das formas de resistência e combate ao

escravismo criminoso contra os africanos e seus descendentes na diáspora negra.

Sua formação tinha como objetivo a rejeição contra a condição de escravização

imposta aos africanos. Sobre o tema, Nascimento informa que:

Quilombo é um movimento amplo e permanente que se caracteriza pelas seguintes dimensões: vivência de povos africanos que se recusavam à submissão, à exploração, à violência do sistema colonial e do escravismo; formas associativas que se criavam em florestas de difícil acesso, com defesa e organização sócio-econômico-política própria; sustentação da continuidade africana através de genuínos grupos de resistência política e cultural (NASCIMENTO, 1980, p. 32).

Uma abordagem sobre o termo quilombo na tentativa de conceituá-lo nos dias

atuais não é tarefa das mais fáceis, pois os conceitos estão em permanente

reelaboração, e até mesmo ressignificação ao longo do tempo histórico. Percebemos

o conceito como algo em movimento que advém da ação política e social do homem

ao longo da história combinando concretamente seu presente, a dimensão de sua

experiência passada com suas expectativas de futuro.

Particularmente, temos buscado analisar conceitos na perspectiva de

compreender não só o que vem a ser quilombo, e também os conceitos relacionados

como: povo quilombola e comunidades negras rurais quilombolas do passado.

Porém, no presente, entendendo que na conjuntura atual podem expressar

diferentes significados como afirmar Moura (1987) e Anjos (2007). Frente a estas

questões nos deparamos com uma bibliografia que expressa diferentes sentidos

para o termo quilombo, inclusive aqueles imaginados por este pesquisador, qual

seja, a imagem criada e propagada pelos ideais atribuídos ao quilombo dos

Palmares, onde o sentimento de coletividade foi o símbolo maior da resistência e da

luta ao longo de mais de 100 anos.

Outrora, quando era ainda um estudante do secundário, aprendemos que a

população brasileira possuía uma singularidade expressa na sua formação, aliás, no

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31

seu processo de formação. Fomos sendo levado a entender que as relações

estabelecidas entre tantos grupos humanos diferentes (povos indígenas, negros e

brancos) originaram um “povo novo” 13 diferente de todos os outros cuja maior

benção, entre outras, era partilhar de uma convivência harmônica. Aos poucos, com

o passar do tempo, fomos obtendo outros entendimentos quando nos debruçamos

sobre o estudo da História.

Entendemos que essa história sob outro prisma nos leva a conclusão de que

as relações entre esses indivíduos não eram e, ainda não são, assim tão

harmônicas, mas guardam idiossincrasias profundas quanto à sua forma de ser. Que

a riqueza cultural desse encontro entre as três raças acabou de certo modo, sendo

obscurecida dada a forma como ela foi sendo apropriada, enfatizando sobremaneira

a participação dos europeus nesse processo, nos impedindo assim de vislumbrar

com maior ênfase quem eram os indígenas locais e o negro africano dentro desse

encontro.

O “espaço” historiográfico que delegado a estes dois outros participantes

sempre enfocou com maior destaque uma ideia de resistência à opressão, ao qual

foram sendo submetidos, tanto os indígenas, quanto os africanos escravizados por

mais de três séculos. Reconhecemos que nos últimos tempos ocorreram mudanças

na própria configuração da escrita da história e, consequentemente, no ofício do

historiador. E isso tem levado a uma necessidade de estudar melhor estes sujeitos a

fim de compreender uma parte da nossa história, a qual possa nos ajudar a pensar

sobre eles e, sobre nós mesmos, de outra forma.

Enfocar a resistência de indígenas e negros escravizados é legítimo e

assegura que ambos não foram apenas coadjuvantes, mas escreveram também as

páginas da sua própria história, embora tradicionalmente nos escritos ainda seja

mais comum encontrá-los em estado de submissão frente ao europeu. Por outro

13No sentido estabelecido pelo antropólogo Darcy Ribeiro: “Novo porque surge como uma etnia nacional, diferenciada culturalmente de suas matrizes formadoras, fortemente mestiçada, dinamizada por uma cultura sincrética e singularizada pela redefinição de traços culturais delas oriundos. Também novo porque se vê a si mesmo e é visto como uma gente nova, um novo gênero humano diferente de quantos existam. Povo novo, ainda, porque é um novo modelo de estruturação societária, que inaugura uma forma singular de organização socio‐econômica, fundada num tipo renovado de escravismo e numa servidão continuada ao mercado mundial. Novo, inclusive, pela inverossímil alegria e espantosa vontade de felicidade, num povo tão sacrificado, que alenta e comove a todos os brasileiros” (RIBEIRO, 1995, p.19).

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lado, o viés da resistência por si só não é suficiente para uma razoável compreensão

dos processos que levaram índios e negros a uma posição relegada a determinado

esquecimento dentro da escrita dessa história, bem como, também pode obscurecer

outros pontos importantes na caminhada do historiador que busca no diálogo com as

fontes repensar uma história dos acontecimentos relativos a esses sujeitos.

Quando nos reportamos à existência dos quilombos enquanto realidade

histórica brasileira - reconhecendo similaridades em outros lugares14 - estamos no

embate com a sombra de Palmares dentro de uma “historiografia da resistência” que

acentua dentre outros elementos, esse status como sendo uma característica

primordial, embora não deva ser a única.

Na historiografia recente, Funes, por exemplo, dialoga em sua pesquisa sobre

as comunidades de quilombos e mocambos da Amazônia e nos informa que:

Ao se apropriarem dos meios de resistência disponíveis pelos índios, os mocambeiros renovaram a sua capacidade de superar novos desafios. Com os nativos aprenderam os segredos das matas, conheceram os caminhos por terra e mantiveram contato com os quilombolas do Suriname (FUNES, 1996, p.483).

Ainda que retome o tema da resistência, o que temos aqui é outro tipo bem

característico ao contexto amazônico em que os quilombolas estreitaram laços com

os indígenas e criaram outros tipos de relações que incluíam os brancos moradores

das cidades próximas por meio de relações comerciais que foram se estabelecendo.

Aparecem outras possibilidades de investigação na medida em que se extrapola o

limite do tema resistência, tão difundido. Nas palavras de Funes:

Os quilombos representaram uma ameaça constante à sociedade escravista. Eram vistos como uma “praga”, uma “chaga de longa data” e acarretavam prejuízos aos bolsos dos senhores, pois parte de seus bens se evadia para as matas, diminuindo a força de trabalho e afetando uma economia visivelmente arruinada. Cabia ao Estado acabar com esses

14 Os ex-escravos formavam agrupamentos que recebiam nomes variados, conforme as específicas regiões do Novo Mundo: quilombos ou mocambos no Brasil; palenques na Colômbia e em Cuba; cumbes, na Venezuela; marrons no Haiti e nas demais ilhas do Caribe francês; grupos ou comunidades de cimarrones, em diversas partes da América Espanhola; maroons, na Jamaica, no Suriname e no sul dos Estados Unidos (JUCÉLIA, 2010 apud MIRADOR, 1980; p. 156).

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refúgios de escravos, restabelecendo a ordem e a tranqüilidade (FUNES, 1996, p.485).

Além disso, é notória a existência de poucas referências a estas comunidades

nos primeiros escritos sobre a história do Brasil. Os pesquisadores Rocha Pita e

Perdigão Malheiro, dentre outros, despendem pouco esforço na abordagem do tema

ainda nos séculos XVIII e XIX. Uma mudança significativa ocorrerá com a publicação

da obra de Gottfried Heinrich Handelmann e, posteriormente na de Oliveira Viana,

respectivamente História do Brasil (1860) e Populações Meridionais do Brasil (1920),

visto que, “referem-se pioneiramente ao quilombo como uma categoria histórica de

importância para o passado brasileiro” (MAESTRI, 1988, p. 123).

Handelmann, nas suas bem informadas páginas sobre o escravismo nacional, não só enquadrou o quilombo no contexto de outras formas de resistência ao cativeiro – o suicídio, a fuga, o justiçamento – como, após historiar o “Estado negro” de Palmares, considerou a sua destruição necessária à própria sobrevivência da colonização “branca” (MAESTRI, 1988, p. 123).

Hoje, no entanto, temos um rol de novos escritos que nos trazem para análise

outras possibilidades de investigação, onde podemos nos ater às questões relativas

à cultura, à sociedade, à política, à economia, enfim, de forma geral às relações

estabelecidas no interior dessa formação social. Se durante boa parte do século XX

houve o predomínio da influência do pensamento marxista15 e também do

culturalismo nos estudos sobre quilombos, os anos de 1990 trazem para a discussão

novos campos de possibilidades que não esgotam essas influências, mas

incorporam inclusive as transformações apresentadas pelo próprio marxismo,

quando este aponta novas questões para análise, tais como as identidades.

É preciso entender seu caráter para avançar na sua compreensão dentro dos

moldes que nos interessa abordar aqui, que vai além do aspecto já mencionado da

“resistência”. A denominação quilombo é apenas uma dentre outras mais como:

coitos, ladeiras e, sobretudo, mocambos. Há ainda outras denominações mais

15Referimos-nos aqui ao pensamento de autores que foram influenciados pelas ideias de K. Marx como Aderbal Jurema, Edison Carneiro e Clóvis Moura. Estes pesquisadores expressam ideias que se relacionam com categorias conceituais marxistas a exemplo da luta e a consciência de classe.

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recentes que são: terras de preto, lugar de preto, território negro, comunidades de

quilombos (SANTOS, 2010). Reconhecemos que cada uma delas acontece dentro

de historicidades específicas, evoluindo posteriormente, para categorias conceituais

importantes na compreensão do processo histórico.

Acreditamos que sua permanência tem relação direta com a instituição de

Palmares, cuja simbologia ainda está bastante presente. Desta forma, constata-se

nas palavras de Sodré, certa compreensão das multifaces do quilombo quando este

nos diz que: “Ao longo da vida brasileira, os quilombos representavam recursos

radicais de sobrevivência grupal, com uma forma comunal de vida e modos próprios

de organização” (SODRÉ, 2002, p. 68).

A existência de pesquisas no campo da historiografia, apesar de ainda não

alcançarem expressividade quantitativa, deu uma contribuição significativa para o

estudo das comunidades quilombolas ao longo da história brasileira, no entanto, o

que se tem hoje é um novo cenário em que o enfoque dado no passado, precisa ser

revisto. Algumas mudanças se esboçaram em tempo recente como nos apresenta

Santos:

Uma nova perspectiva da historiografia dos quilombos ganhou ênfase, no Brasil, em meados dos anos 70, especialmente através das contribuições de Artur Ramos (1953) e Edison Carneiro (1958). Esses autores atribuíam, excepcionalmente, a origem dos quilombos a um histórico passado, cristalizando sua essência, no período em que vigorou a escravidão, no Brasil. Dessa forma, os quilombos eram exclusivamente caracterizados como expressão da negação do sistema escravista. Ou seja, a formação de quilombos era vista como um fato estabelecido no passado, bem distante do tempo distante (SANTOS, 2010, p. 225).

As definições para o termo quilombo do ponto de vista da sua etimologia e

também do seu significado são bastante diversas. Para Coelho Neto o termo é um

“derivado da língua Kimbundu da África Austral, significa comunidade, em

convivência e comunhão existencial” (apud LEANDRO, 2003, p. 83). Reis por sua

vez assegura que:

O próprio termo quilombo derivaria de kilombo, uma sociedade iniciática de jovens guerreiros mbundu adotada pelos invasores jaga (ou imbangala),

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estes formados por gente de vários grupos étnicos desenraizada de suas comunidades (REIS, 1996, p.16).

Clóvis Moura nos faz entender de que forma a definição de quilombo para os

portugueses sedimentou uma imagem comum associada a esta instituição: “era toda

habitação de negros fugidos que passem de cinco, em parte despovoada, ainda que

não tenham ranchos levantados nem se achem pilões neles” (MOURA, 1994, p. 16).

Assim definia a coroa portuguesa por meio do Conselho Ultramarino em 1740.

Estes são exemplos, dentre muitos outros, de denominações criadas que

procuram referenciar o termo e também apontam para o seu significado. Sobre esse

último nos chama a atenção à ideia de associar quilombo à figura do negro e definir

que o local sempre é de negros que fugiram de fazendas e dos engenhos (“negros

fujões”).

1.2 No quilombo do Tapuio, ouvi e contei histórias

No quilombo Tapuio readentramos16 em busca da história de alguns dos seus

moradores, procurando investigar o processo das migrações empreendidas para fora

da comunidade e da Região Nordeste e, consequentemente, dos retornos ao

quilombo, almejando entender a dinâmica de como se deu todo esse movimento e

como isso repercutiu na vida dessas pessoas e da própria coletividade, pois essas

trajetórias estão em constante entrecruzamento: o quilombo existe enquanto grupo e

a partir dele.

As migrações proporcionaram aos moradores inúmeras situações em que

estes tiveram que lidar com constantes questionamentos acerca da sua situação de

migrante na cidade grande17. Partimos de algumas questões centrais, as quais

continuam pertinentes para a investigação que empreendemos sobre a narrativa das

16 Falar em readentramento na comunidade é fazer uma referência ao trabalho de pesquisa anteriormente realizado. 17 Migração aqui será uma categoria abordada em texto próprio.

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pessoas que entrevistamos na primeira fase da pesquisa de campo já realizada. São

elas:

a) Como as vivências da prática comum de migração e migração de retorno no

quilombo Tapuio, sobretudo para o estado de São Paulo que se mantêm ao longo

das últimas três décadas do século XX repercutiram e repercutem na vida dessas

pessoas.

b) Dada à migração de retorno, o que ocasiona a volta desses migrantes para a

sua comunidade de origem?

c) Qual percepção tem esses moradores dos diferentes lugares, ou seja, o

campo, o grande centro urbano e a própria comunidade por onde transitam?

d) Como os migrantes do quilombo Tapuio se veem (se como quilombola, como

nordestino, como negro) sob a ótica dos moradores da cidade de São Paulo com

os quais tiveram contato e se esses migrantes conseguem estabelecer um juízo

de valor sobre isso?

Questões que ora foram respondidas, trouxeram outras e outras. Obtivemos

algumas respostas que nos levaram a tantos outros questionamentos quando da

análise das narrativas que estes devem ser alvo de respostas de outros

pesquisadores. Nosso intento é a construção de uma escrita reflexiva sobre as

vivências e experiências da vida de migrantes do quilombo Tapuio. Interessa-nos,

sobretudo, as narrativas desses migrantes para essa construção textual. Sempre

dialogando com a literatura relativa e outras fontes.

O quilombo do Tapuio tem uma trajetória histórica “conhecida” e já objeto de

interesse científico18. Relatos locais dão conta de que ela originou-se em 1892 a

partir de um casal de ex-escravizados que trabalhavam em uma fazenda próxima.

Atualmente no quilombo Tapuio se encontra uma população residente que oscila em

razão das constantes mudanças provocadas pelo deslocamento (em abordagem

posteriormente) de moradores que ainda persiste nos dias atuais. Santos em seus

estudos, nos fala em 2006 que “a população da comunidade está assim

representada: 55 mulheres e 53 homens perfazendo um total de 108 pessoas,

constituindo 22 famílias,...” (SANTOS, 2006, p. 35). 18 SANTOS, Carlos Alexandre Pinho Barboza dos. 2006. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) Instituto de Ciências Sociais, Universidade de Brasília, Brasília, 2006.

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37

Estivemos no interior da comunidade durante o mês de fevereiro de 2012 e lá

permanecemos por 13 (treze) dias. Este foi um momento bastante rico, percorremos

as ruas da cidade de Queimada Nova e observarmos um pouco do cotidiano dos

moradores, em especial, o dia de realização da feira livre semanal para onde

convergem inúmeras pessoas da zona rural, dentre estes, moradores do quilombo

Tapuio e de outras comunidades vizinhas, tornando-se um verdadeiro acontecimento

social que altera fortemente a rotina do município. Também visitamos a sede do

sindicato dos trabalhadores rurais do município e a sede da rádio Esperança FM.

1.3 Oralidade, memória e fios de histórias

O que vislumbramos para desenvolvimento dessa proposta de estudo foi a

realização de uma incursão pelos espaços recônditos da memória desses

personagens sem muita visibilidade do ponto de vista de um interesse acadêmico

mais disseminado, mas que como qualquer outro, devem ser reconhecidos como

agentes do processo histórico. É a memória dessas pessoas que ancora e é o fio

condutor das histórias narradas que compartilha os momentos de saída para o

estado de São Paulo e também os momentos de chegada daqueles que acabaram

retornando posteriormente para os seus, para seu local de origem: a comunidade

quilombola do Tapuio.

O nosso interesse de pesquisar sobre o quilombo do Tapuio, enfatizando as

vivências e experiências advindas da migração e migração de retorno de alguns de

seus moradores começou ainda em 1997, quando recém-saídos da graduação em

história e já integrando o Núcleo de Pesquisas em Africanidadese Afrodescendência

(IFARADÀ), ligado ao Centro de Ciências Humanas e Letras (CCHL) da

Universidade Federal do Piauí (UFPI), fomos inseridos na equipe de pesquisa onde

iríamos desenvolver um projeto de mapeamento sociocultural de algumas

comunidades remanescentes de quilombo do Estado do Piauí.

Tem-se aqui a trilha primeira ao travarmos contato com o Tapuio. Portanto, o

caminho que segue agora é resíduo do nosso passado e remete a experiências,

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38

vivências, memórias anteriores de pesquisa realizada19 sobre o tema, em contato

direto por meio de trabalho de campo com os moradores da comunidade quilombola

do Tapuio.

É preciso frisar que as duas experiências de pesquisa possuem naturezas

diferentes. Antes a preocupação era recolher o máximo de informações possíveis

acerca de vários aspectos relacionados à comunidade e aos seus moradores, dados

sobre saúde, educação, cultura, trabalho renda e obviamente a história da

comunidade. Agora centramos a investigação em um aspecto específico relacionado

à população do quilombo. Por isso mesmo, nessa experiência percebemos um maior

grau de complexidade no desenvolvimento de uma pesquisa com as características,

as quais, esta se apresenta.

A história oral torna-se aqui de grande valia enquanto “técnica” que considero

ser nesse caso a mais adequada para empreender um diálogo revelador com a

memória, dada a especificidade do estudo. Para a além das discussões acerca da

legitimidade dessa modalidade de história que estiveram bastante em voga com

diferentes proposições até pouco tempo, entendo que ela vai além de uma mera

interpretação das narrativas dos sujeitos da pesquisa, demandando compreensão do

que de fato seja realmente e exigindo conhecimentos mínimos acerca do que

consiste o método e seus aportes teóricos. Sobre história oral, Lozano afirma:

Diria que é antes um espaço de contato e influência interdisciplinares; sociais, em escalas e níveis locais e regionais; com ênfase nos fenômenos e eventos que permitam, através da oralidade, oferecer interpretações qualitativas de processos histórico-sociais. Para isso, conta com métodos e técnicas precisas, em que a constituição de fontes e arquivos orais desempenha um papel importante. Dessa forma, a história oral, ao se interessar pela oralidade, procura destacar e centrar sua análise na visão e versão que dimanam do interior e do mais profundo da experiência dos atores sociais (LOZANO, 2005, p.16).

Compreendemos que ao utilizar a oralidade significa que temos que lhe dar

com um trabalho semelhante ao do artesão que vai manuseando a sua matéria

prima para aos poucos ir construindo o seu objeto até chegar à forma final. Assim

19 BOAKARI, Francis Musa e GOMES, Ana Beatriz Sousa (Org.). Comunidades Negras Rurais do Piauí: mapeamento e caracterização sociocultural. EDUFPI: Teresina, PI, 2005.

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também vamos construindo essa “fonte” oral, partindo da sua própria compreensão,

trajetória histórica de consolidação no campo da pesquisa e da necessidade de

dominar os referenciais teóricos que formam a base de sua compreensão, atento

aos limites e as possibilidades que dela possa extrair. Khoury (2001) ressalta que as

“fontes orais são únicas e significativas por causa do seu enredo, ou seja, do

caminho no qual os materiais da história são organizados pelos narradores para

contá-la”. A entrevista é um momento único, mas até chegar a esse momento é

conveniente se apropriar dessas noções a percorrer para a realização de um

trabalho que venha a dar resultados satisfatórios.

É fundamental a compreensão da especificidade desse “método”, pois

mesmo bastante utilizado na atualidade, ainda suscita inúmeros questionamentos

como podemos observar quando me refiro às palavras técnica, fonte e método.

Alberti propõe que:

Se podemos arriscar uma rápida definição, diríamos que a história oral é um método de pesquisa(histórica, antropológica, sociológica etc.) que privilegia a realização de entrevistas com pessoas que participaram de, ou testemunharam, acontecimentos, conjunturas, visões de mundo, como forma de se aproximar do objeto de estudo. Como consequência, o método da história oral produz fontes de consulta (as entrevistas) para outros estudos, podendo ser reunidas em um acervo aberto a pesquisadores (ALBERTI, 2004, p. 18).

O debate já se estendeu por vezes, bastante acalorado e acreditamos que a

defesa das diversas posições depende também da especificidade do objeto, das

correlações de força dos pesquisadores em busca de reconhecimento e audiência,

entre outros aspectos a serem considerados. Longe de um consenso quando

“entendida como metodologia, a história oral remete a uma técnica e a uma

dimensão teórica. Esta última evidentemente a transcende e concerne disciplina

histórica como um todo” (AMADO; FERREIRA, 2005, p. 08).

Nessa perspectiva, tampouco a entrevista se resume meramente ao uso do

gravador em uma conversa “informal” com o entrevistado, é preciso estabelecer um

vínculo que esse encontro requer, pois se trata de uma experiência única como já

frisado anteriormente. É mais que um simples encontro informal, entre outras coisas

porque, dele de certa forma, depende o “sucesso” de todo o processo. Entrevistado

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40

e entrevistador para além de serem pessoas diferentes, estabelecem uma relação:

“em que se deparam sujeitos distintos, muitas vezes de gerações diferentes, e, por

isso mesmo, com linguagem, cultura e saberes diferentes, que interagem e dialogam

sobre o mesmo assunto” (ALBERTI, 2004, p.101).

Ocorre nos perguntar: mas de que maneira dois sujeitos com interesses

diferentes e de mundos distintos podem travar um diálogo revelador sobre algo?. No

caso aqui em questão, destacamos três aspectos que consideramos muito

importantes e que de certa forma facilitaram o trabalho que foi desenvolvido. O

primeiro é que já havíamos estado na comunidade antes e conhecíamos boa parte

de seus moradores. O segundo, é que fomos levados e apresentados aos

moradores por pessoas de lá mesmo e por fim, vale registrar que essa

intermediação feita por essas pessoas possui uma característica peculiar que é o

fato de que elas tinham e tem grande respaldo junto a eles, são pessoas conhecidas

e de sua extrema confiança. Lideranças incontestes.

Essa ajuda foi salutar, mas por outro lado é inegável que para nós, adquirir a

confiança dos moradores não foi algo automático. Em algumas situações, ainda que

conheçam você, as pessoas se mostram bastante simples e calorosas, mas ao

mesmo tempo bem desconfiadas quanto a algumas intenções que desconhecem.

Não lhes tiramos as razões, afinal isso acaba sendo uma estratégia de autodefesa.

Assim o terceiro aspecto remete a ideia de “um experimento em igualdade”

(PORTELLI, 1997), onde reconhecemos que a diversidade é o marcador mais visível

da relação entre entrevistado e entrevistador, que os dois assumem posições no

diálogo e que embora estejam afastadas é necessário que ocorra uma troca para

que a comunicação possa fluir. Resumo da seguinte forma:

A entrevista de campo, por conseguinte, não pode criar uma igualdade que não existe, mas ela pede por isto. A entrevista levanta em ambas as partes uma consciência da necessidade por mais igualdade a fim de alcançar maior abertura nas comunicações. Do mesmo modo que a hierarquia desigual de poder na sociedade cria barreiras entre pesquisadores e o conhecimento que buscam, o poder será uma questão central levantada, implícita ou explicitamente, em cada encontro entre o pesquisador e o informante. Acabar com o poder abertamente transforma uma entrevista de campo em um experimento em igualdade (PORTELLI, 1997, p. 10).

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41

Acreditamos realmente que todos esses fatores têm sua importância e foram

cruciais para conseguirmos essa reaproximação de forma tranquila; e que as

conversas fluíssem sem maiores atropelos. Recordamo-nos, porém, que um dos

nomes da lista de entrevistas, a princípio não falou sobre essas questões. Fomos

pessoalmente à sua casa e durante a conversa para explicar o que fazia ali,

notamos que não era uma boa ocasião para entrevistá-lo porque havia outras

pessoas na casa e todos estavam em um momento de descontração e diversão,

mas observamos também certo desconforto por parte do entrevistado em relatar

algo sobre o que queríamos saber e ao indagá-lo sobre isso – ou seja,sobre a sua

saída da comunidade - ele nos respondeu que não tinha muito o que contar.

Para além do que possa significar tal atitude é bom lembrar que há uma coisa

importante a considerar nesse encontro: a presença do gravador, pois ele é quem

registra a fala do entrevistado, tornando-se assim uma espécie de intermediário do

diálogo travado entre entrevistado e entrevistador evocando outras pessoas, uma

ideia de público e a noção de posteridade.

Para Alberti (2004, p. 112), “seja como for, é indubitável que a presença do

gravador na entrevista exerce influência sobre o que e como se fala”. O gravador

sem dúvida alguma é um fator de intimidação, mas cabe ao pesquisador saber lidar

com essa questão e criar estratégias para que isso tenha um efeito reduzido e não

se torne um entrave à realização do trabalho. Sem falar da demanda que o aparelho

exige por conhecimento técnico. O ideal é que a entrevista fosse realizada de modo

a ter alguém apenas para operacionalizar essa parte técnica, como isso nem sempre

é possível, é bom que se esteja apto à resolução de pequenos probleminhas que

possam surgir. São muitas as questões que se apresentam quando do uso da

oralidade, o fundamental é não perder de vista esses aspectos, que muitas vezes

podem passar despercebidos ou não serem suficientemente bem explorados.

Foi essa experiência anterior (o mapeamento sociocultural desenvolvido) que

contribuiu sobremaneira para que ocorresse um interesse maior para com o tema e

que também norteou as reflexões que levaram a construção desse trabalho. Nesse

primeiro contato com os moradores da comunidade que se deu com o início do

trabalho de campo tomamos conhecimento da partida de alguns deles para fora, isto

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é, deixavam a comunidade em direção a outros estados, predominantemente o

estado e a cidade de São Paulo, pudemos então constatar posteriormente, que

buscavam trabalho e melhores condições materiais de vida, dentre outras coisas.

Durante a pesquisa constatamos que as décadas de 1970 e 1980 no Brasil,

foram marcadas pela saída intensa de levas migratórias da Região Nordeste para

outras regiões do País, devido a uma série de questões, entre elas a conjuntura

econômica favorável, marcada por um surto de crescimento que atraiu muitas

pessoas para os grandes centros do país.

Tal realidade também ficou evidenciada no quilombo do Tapuio, algo

observado nos depoimentos de alguns moradores, com os quais mantivemos

interlocução durante esse trabalho. É importante frisar que mesmo de posse dessas

informações, elas passaram despercebidas porque não era o foco da pesquisa

naquele momento. Só muito tempo depois, refletindo sobre isso nos ocorreu a ideia

de pensá-las como um objeto de investigação. Porém, a formulação do projeto ainda

levou um tempo razoável para acontecer.

Falar da Região Nordeste neste período nos leva a constatação de que ela

vivenciou de forma muito profunda a realidade da migração tornando-se um grande

exportador de mão de obra para outras regiões, pois o contingente populacional que

migrou foi bastante elevado. Estatísticas20 apontam para um movimento migratório

que modificou a configuração populacional da região, marcando desta forma a

existência de um grande êxodo rural, algo coincidente com o panorama histórico do

momento em que o país passava por transformações no campo político e,

sobretudo, econômico. Este período que remete ao intervalo entre a década de 60 e

80 vai caracterizar o processo de urbanização do país de forma irreversível. Sobre

este assunto, Durval Muniz enfoca que:

O nordeste [...] é também o espaço da saudade para milhares de homens pobres, do campo, que foram obrigados a deixar seu local de nascimento, suas terras, para migrar em direção ao sul, notadamente, São Paulo e Rio de Janeiro, para onde iam em busca de empregos, na pujante agricultura comercial, mas, sobretudo o parque industrial que, a partir da Primeira

20 CAMARANO, A. A. & ABRAMOVAY, R. (1991), Êxodo rural, envelhecimento e masculinização no Brasil; panorama dos últimos 50 anos. Rio de Janeiro. IPEA. 1997.

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Guerra, se desenvolve aceleradamente (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2006, p. 151).

É partindo desse cenário tão presente na historiografia brasileira que

apresenta a migração e mais recentemente o retorno, que buscamos aqui nos

debruçar sobre as vivências e experiências destas pessoas nesse processo. O que

entendemos ser o elemento central a nortear o desenvolvimento desta pesquisa.

Acrescento mais, a pergunta que consideramos aquela que nos levou a formular as

demais, que é justamente indagar “porque voltar ao quilombo?”. Essa pergunta

expressava uma ausência de sentido para esse retorno. O que levava pessoas que

estavam em um grande centro, uma metrópole cosmopolita retornar para a região do

semiárido nordestino piauiense, região historicamente considerada como um lugar

de atraso? Tal questão pode parecer de um simplismo exagerado, mas foi crucial

para a investigação. Porque é a partir dela que um leque de possibilidades se

apresenta.

Ao abordar esta temática, não tínhamos uma ideia de quanto seríamos

envolvidos por ela. Assim, aos poucos fomos nos encontrando ao conviver com a

simplicidade das pessoas e as dificuldades de seu meio a ponto de haver uma

identificação com elas em uma coisa, a qual, não poderíamos afirmar neste

momento que é compartilhada por todos os moradores do quilombo Tapuio: um

sentimento de pertencimento à cultura afro-brasileira. Um segundo aspecto diz

respeito à realização de uma investigação sobre este tema procurando responder

questões que surgiram a partir de pesquisa realizada anteriormente. Isso se tornou

uma grata surpresa, mas que ao mesmo tempo se revela digna de atenção, dado o

caráter da relação entre sujeito que pesquisa e os sujeitos que nesse momento

assumem a posição de objetos.

O contato com os moradores do quilombo Tapuio, antes e agora tende a

reafirmar todas as inquietações que sempre tivemos diante da vida e perante o

próprio mundo, sentimento esse, de inconformação. Como a nossa é uma realidade

de exclusão social, marcada, sobretudo, por preconceitos de toda ordem, lidar com

essas questões é questionar os parâmetros do que seria justo, do que é a justiça no

nosso país. O reflexo disso tudo se resume em uma questão: é justo que pessoas

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44

tenham que abandonar seus lares e suas famílias em busca de melhores condições

de sobrevivência em terras distantes da sua? Como é o caso dos moradores do

Tapuio. Buscar respostas para inquietações como estas e outras questões é o que

acabou nos impelindo a uma inserção nos movimentos sociais.

Começamos no movimento estudantil secundarista em Teresina/PI, depois

veio o movimento estudantil universitário com atuações no CA (centro acadêmico de

história) e DCE (diretório central dos estudantes) da Universidade Federal do Piauí e

por último o movimento social negro, no qual, contribuímos como membro do núcleo

de estudos afro-brasileiro – IFARADÁ/UFPI. Essa participação no núcleo tem sido de

grande valia por ter nos dado a oportunidade de exercer o papel de formador em

cursos oferecidos a professores da rede pública de educação, abordando temas

voltados à questão etnicorracial, onde se incluem os quilombos.

Os últimos cinco anos foram tempos de reflexões e amadurecimento sobre a

realidade dos quilombos. Entender as razões que levam à migração e o retorno no

quilombo Tapuio não é somente uma questão social que remete a uma ideia de

exclusão dessa população negra, mas é também procurar compreender uma

dinâmica sócio-histórica que possa indagar em que medida conceitos como

cidadania, protagonismo social e identidade étnica e racial adquire ou não,

significado para essas pessoas que vivenciaram e ainda vivenciam essa

necessidade de partir. Estudar esse tema é descortinar temas correlatos, como o

preconceito racial, a questão da terra, o acesso ou não às políticas públicas, enfim,

só para citar alguns.

Por isso mesmo, situamos essa pesquisa metodologicamente como um

estudo de caso exploratório. Dentre outras possibilidades, este foi um dos caminhos

promissores à viabilidade metodológica desta pesquisa, tendo em vista a

possibilidade de explorar o universo investigado de diferentes formas como:

descrever e também analisar os dados colhidos no trabalho de campo, a aplicação

de questionários, a realização de entrevistas (uso da história oral, utilizada aqui), a

observação (etnografia), a pesquisa bibliográfica (análise) e documental. Assim,

entendemos que fazer opção pelo estudo de caso tende a possibilitar uma maior

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45

amplitude de ação, uma vez que a investigação se norteia tendo o apoio de diversos

instrumentos de coleta dos dados.

Para Bell (1993), “um estudo de caso bem sucedido fornecerá ao leitor uma

ideia tridimensional e ilustrará relações, questões micro-políticas e padrões de

influências num contexto particular”. Mais:

O estudo de caso é uma análise profunda de um sujeito considerado individualmente. Às vezes pode-se estudar um grupo reduzido de sujeitos considerado globalmente. Em todo caso observam-se as características de uma unidade individual, como por exemplo, um sujeito, uma classe, uma escola, uma comunidade, etc. O objetivo consiste em estudar profundamente e analisar intensivamente os fenômenos que constituem o ciclo vital da unidade, em vista a estabelecer generalizações sobre a população á qual pertence (BISQUERA, 1989, p. 94).

Ao procurar estabelecer parâmetros a serem posteriormente aplicados a outra

pesquisa, o estudo de caso, enquanto metodologia, não é uma unanimidade.

Acreditamos, no entanto, que se a metodologia traz resultados satisfatórios,

atingindo seus objetivos, isso por si só já é bastante significativo.

Quando partimos da constatação relatada acerca das políticas públicas,

entendemos que o discurso científico, dentre muitos outros, é o que legitima

argumentos que confrontam a realidade para além meramente do discurso político.

Se reconhecer que o discurso científico tem seus limites, reconhecemos que a

pesquisa tem nos levado a não ser mais o mesmo, mas uma porção de outros.

Nosso ponto de partida em termos de objetivos passou obviamente por

reflexões importantes, para pensar as questões que almejamos minimamente

responder, enfocando essas vivências e experiências advindas da migração e do

retorno dos quilombolas Tapuios, durante as décadas de 1970 e 1980, e o que nos

apontam as memórias despertadas, compreender entre outras coisas, que tipo de

relação se estabelece entre campo e cidade e entre os sujeitos e as memórias

construídas em torno do espaço/território de origem.

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46

1.4 Dialogando na atualidade sobre quilombos

A construção do conhecimento histórico é um trabalho que exige do

historiador/pesquisador uma postura de rigor científico, pois a validação do que é

produzido só se realiza quando é possível aferir a existência desta “cientificidade”. A

história é processo e também conhecimento que se busca acerca daquilo que

definimos como “real” nas diferentes temporalidades, mas para isso acontecer ela se

vale de elementos fundantes e estabelece uma relação singular: a interdependência

entre prática, metodologia e teoria produz o conhecimento histórico21. A partir daí

temos uma questão acerca de quem produz a história e para quem ela é produzida.

O historiador é alguém que encara esse desafio, não necessariamente um iluminado

ou corajoso ao extremo, porque tal empreitada exige muito mais que coragem, mas

também sensibilidade e certo domínio dos “fazeres” que englobam a prática da

produção historiográfica. Para Certeau trata-se de uma operação:

Encarar a história como será tentar, de maneira necessariamente limitada, compreendê-la como a relação entre um lugar (um recrutamento, um meio, uma profissão, etc.), procedimentos de análise(uma disciplina) e a construção de um texto (uma literatura). É admitir que ela faz parte da “realidade” da qual trata, e que essa realidade pode ser apropriada “enquanto atividade humana”, “enquanto prática”. Nessa perspectiva, gostaria de mostrar que a operação histórica se refere à combinação de um lugar social, de práticas “científicas” e de uma escrita (CERTEAU, 2002, p. 66).

A partir desta constatação é que percebemos que todo trabalho de pesquisa

nasce de uma especificidade, mas exige parâmetros que sejam comuns, assim

estabelecer os referenciais teóricos e metodológicos que julgamos mais adequados.

Os referenciais teóricos e metodológicos utilizados nesta pesquisa são: a história

dos quilombos no Brasil e no Piauí; os estudos sobre memória e migração, tendo a

história oral como aporte metodológico.

Para o diálogo com essas categorias recorremos aos trabalhos de inúmeros

estudiosos destacando: Clóvis Moura, Flávio Gomes, Kabenguele Munanga, Milton

21 Cf. OLIVEIRA & FERREIRA, 2005, p. 27.

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Santos, Rafael Sânzio. Também comparecem Maurice Halbwachs, Michael Pollak,

Ecléa Bosi, dentre outros.

A literatura a respeito do elemento negro22 no Brasil do período pós-abolição,

nos remete imediatamente às reflexões sobre quilombo como um conceito

ressignificado pela historiografia contemporânea, ampliando assim a compreensão

da sua complexidade em contraposição ao que estabelecia de acordo com Moura,

(1987, p.11) o conselho ultramarino português já mencionado anteriormente. Hoje

tem se percebido, no campo historiográfico, a importância dos quilombos para a

compreensão da sociedade colonial e pós-colonial brasileira. Mais que isso, os

quilombos escreveram e têm voltado a escrever importante capítulo da nossa

história. Para alguns, ficaram restrito ao nosso passado colonial, embora, estejam

mais vivos do que antes.

Retomamos aqui para ilustrar o desafio de compreensão, autores que

contribuíram enormemente para as reflexões que venho desenvolvendo como, por

exemplo, Moura, na medida em que pensava o quilombo como “unidade básica de

resistência do escravo”, pois para o mesmo, o “quilombo aparecia onde quer que a

escravidão surgisse”23. Dentro da etimologia da palavra não podemos esquecer de

Munanga (1996, p. 58) quando diz que Kilombo.

[...] é originária da língua banto umbundu falada pelo povo ovimbundo, a qual, diz respeito a um tipo de instituição sóciopolítica militar conhecida na África Central, mais especificamente na área formada pela atual República Democrática do Congo (Zaire) e Angola.

Da mesma forma Gomes, por sua vez, ao pensar a realidade quilombola, o

faz partindo das análises de outros pesquisadores: Moura, Goulart, Luna e Freitas.

Consideram que dentre as pesquisas realizadas, tem maior relevância aquelas que

visualizam a existência dos quilombos para além de simples fenômeno cultural,

enfatizando outros tipos de relações existentes. Entende que concepções

22 Utilizo aqui o termo negro no sentido contemporâneo, ou seja, como afirmação política de um povo cuja descendência é africana. 23 Cf. MOURA, Clóvis. Quilombos: resistência ao escravismo. Ed. Ática, São Paulo, 1987, p. 14; Os quilombos e a rebelião negra. Ed. Brasiliense, 8ª ed. São Paulo, 1994, p.16-17; Rebeliões da Senzala, Ed. Mercado Aberto, 4ª ed. Porto Alegre, 1988, p. 103.

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culturalistas e materialistas não respondem a contento o que de fato é o quilombo,

ressalta certo desconhecimento sobre o mesmo e aponta para alguns caminhos:

O protesto social dos escravos sobre a forma de aquilombamento teve vários significados. Coexistiram diversas formas de quilombos: havia aqueles que procuravam constituir comunidades independentes com atividades camponesas integradas à economia local, existia o aquilombamento caracterizado pelo protesto reivindicatório dos escravos em relação aos seus senhores e havia os pequenos grupos de fugitivos que se dedicavam a razias e assaltos às fazendas e povoados próximos (GOMES, 2005, p. 34).

A ampliação do olhar em torno das questões conceituais acerca dos

quilombos é algo permanente, tendo em vista as variadas interpretações que se

apresentam e também em razão da necessidade de reescrita permanente da história

(REIS, 2007, p. 07).

A pesquisa realizada no quilombo Tapuio com alguns de seus moradores se

vale de questões do tempo presente, não somente restrita a discussão conceitual

em si, mas, sobretudo, pensando em termos de processo histórico, ou seja, essa

discussão tem um embasamento que se revela através do tempo, mais fortemente

no século XX. E se nesse atual momento nos debruçamos no debate em torno do

tema da migração, consideramos que isso nada mais é do que reflexo do já

mencionado processo histórico que emerge mais uma vez, partindo de demandas

que se apresentam, colocadas pelos diferentes sujeitos: pesquisadores, gestores

públicos, militantes negros organizados e os próprios habitantes do quilombo.

Não se trata de um “novo” debate, mas de algo que periodicamente aparece

dada as questões que representam ao ter relação direta com essa população rural

negra. Não é possível falar de quilombo sem se ater a presença do negro na história

do Brasil e o que isso significa em termos culturais e historiográficos para a

formação social brasileira. Em seu texto “A gênese do debate e do conceito de

quilombo”, Vera Regina Rodrigues da Silva (2008) destaca com muita clareza o

percurso estabelecido por esse debate em termos gerais ao definir marcos

temporais que situam a existência dos vários discursos que se apresentaram nos

diferentes momentos históricos e que, de certa forma, contribuíram

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49

significativamente para o estágio em que nos encontramos atualmente. Assim a

historiografia, a antropologia e o movimento social negro tem cada um importante

papel ao estabelecer visões diferenciadas nos seus discursos e possibilitarem

diferentes entendimentos sobre a questão quilombola. Vera situa cronologicamente

quais seriam esses momentos mais importantes:

Os anos 30 e 60 do século XX, em que é ressaltada a perspectiva histórica do quilombo em oposição ao regime escravocrata do século XIX; os anos 70, em que quilombo emerge como resistência cultural e potencial de ação política contra a ordem vigente no país. A terceira e última sessão evidencia as últimas décadas do século XX, em que quilombo se redefine via processos identitários e pleitos reivindicativos de direitos sociais (SILVA, 2008, p. 204).

Ainda próximos a essa afirmação, estão importantes momentos da história

brasileira como a criação da Frente Negra Brasileira (FNB), nos anos 30, importante

canal de mobilização. Também mais a frente, o Teatro Experimental do Negro (TEN)

por fim o Movimento Negro Unificado Contra a Discriminação Racial (MNUCDR),

depois somente Movimento Negro Unificado (MNU) em fins dos anos de 1970. Cada

um em seu momento histórico contribui sobremaneira para os desdobramentos que

a organização e a luta contra a discriminação racial e depois pela igualdade

chegassem à configuração atual.

E que configuração é essa? Vivemos um momento de debate acerca da

importância das comunidades quilombolas e suas populações cujo marco

contemporâneo sem dúvida alguma é a constituição de 1988. Ao ter uma aspiração

mais social, a carta avançou bastante em relação aos direitos da população. E isso

incluiu os quilombos também ao se tornarem objeto do já conhecido artigo 68 dos

Atos das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT)24, onde o mesmo procura

assegurar do ponto de vista legal à posse da terra a essas populações.

Obviamente, não podemos deixar de ressaltar que o debate é fruto também

de um processo de luta que tem como base a organização das comunidades em 24 O texto sinaliza para a ampliação de direitos quando volta-se para a inclusão dos remanescentes de quilombo. Art. 68. Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos. . Disponível em:˂ http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm ˃. Acesso em 28 abril. 2012.

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associações, organizações quilombolas e grupos nacionais que reivindicam a posse

legal das terras que ocupam e onde sobrevivem, bem como o reconhecimento das

suas especificidades enquanto população.

Porém ao empregar a palavra remanescente o texto da lei corrobora para a

permanência de uma visão equivocada sobre essas populações ao intrinsecamente

associá-las a um passado colonial particularmente estático. Observamos assim que

a noção de remanescência presente no texto constitucional é o que tem embasado

essa discussão na atualidade, mas entendida desta forma destitui os sujeitos de seu

papel social não só enquanto protagonistas de um processo de afirmação identitária,

e também, consequentemente, da legitimidade de sua luta pela efetivação da

cidadania e principalmente da sua autonomia enquanto grupo que possui uma

singularidade.

Algum tempo atrás em diálogo com uma pessoa, esta mostrava certo

desapontamento através de um comentário em que mencionava ter ido à

comunidade negra quilombola do Mimbó (mencionada anteriormente), uma das mais

conhecidas do estado do Piauí e pertencente ao município de Amarante, Região Sul

do Estado. A pessoa dizia ter ficado decepcionada ao chegar à comunidade e

perceber que havia energia elétrica em todas as casas e que as mesmas eram

razoavelmente construídas de tijolos e coberta de telhas.

Esse é aparentemente um comentário sem importância, mas nos mostra dois

fatos: primeiro que há sim uma visão construída sobre os quilombos e segundo que

essa visão revela um imaginário ainda preso ao passado do Brasil colônia. Não

sabemos ao certo o quê a pessoa esperava encontrar, mas obviamente não foi o

que viu por lá.

O que queremos afirmar é que a caminhada traçada pelas comunidades

negras quilombolas nestes últimos anos avançou muito mais que o entendimento

que se tem sobre elas. É sem dúvida, o artigo 68 da Constituição que irá nos colocar

em uma encruzilhada: como pensar em uma definição para essas comunidades que

possa assegurar o cumprimento do texto jurídico, visto que tal definição não é

consensual e cria para outros segmentos da ciência a “tarefa” de operacionalizar o

debate conceitual.

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O debate do momento anterior à Constituição Federal de 1988 estava

relacionado ao status que possuíam essas comunidades: elas eram comunidades

camponesas com a particularidade de serem formadas por negros ou eram

comunidades negras camponesas? Qual o impacto de aparente contradição? Parte

do cenário pós-Constituição a intensidade do debate que tem se travado agora em

torno dessa questão, na medida em que essas comunidades passam por

intervenções de organizações não governamentais, do próprio movimento negro e

que também fortalecem a sua articulação em nível nacional.

As categorias “campo negro” ou ainda coletividade camponesa ganharam

bastante força nos últimos anos em virtude de estarem relacionadas à identidade

comum a uma coletividade estabelecida em espaço/território. Se levarmos em conta

as teses que defendem a autonomia das comunidades com base em uma dinâmica

comercial bastante desenvolvida, as práticas de fuga, o enfrentamento à condição

de escravo, temos o cenário mais presente no fim do século XIX, que define a

experiência de muitas dessas comunidades quilombolas.

Arruti (2006) situa essa discussão em plano mais amplo que passa pela

América Latina e repercute no Brasil, ou seja, os chamados “direitos étnicos”

expressados pelo artigo 68 representam um novo ordenamento jurídico já presente

em outros países latino americanos. É isso que embasa, de forma a garantir um

novo olhar, as políticas públicas em geral.

Há obviamente toda uma discussão em torno da operacionalidade do conceito

de remanescente trazido pelo texto constitucional, porque aparentemente do ponto

de vista antropológico ele pode inspirar diferentes interpretações e não assegurar de

fato o objetivo ao qual se propõe, especificamente no caso da população quilombola.

Esse debate ganhou contornos diferenciados quando da emergência de conceitos

distintos que passaram pela ideia mais geral de quilombo contemporâneo, de

lugares com registro arqueológico próprio, de expressões de uma identidade

singular, até chegar à ideia de ressemantização do termo, tão debatida hoje e já

mencionada anteriormente. O que vem a ser isso de fato? Arruti nos ajuda a

compreender melhor:

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52

Em meio a uma série de negativas (não se referem a resíduos, não são isolados, não tem origem em movimentos de rebeldia, não se definem pelo número de membros, não fazem apropriação individual da terra...), essa “ressemantização” definia os remanescentes de quilombos como “grupos que desenvolveram práticas de resistência na manutenção e reprodução de seus modos de vida característicos num determinado lugar”, cuja identidade se define por “uma referência histórica comum, construída a partir de vivências e valores partilhados”. Nesse sentido, eles constituiriam “grupos étnicos”, isto é, “um tipo organizacional que confere pertencimento por meio de normas e meios empregados para indicar afiliação ou exclusão”, segundo a definição de Fredrik Barth (ARRUTI, 2006, p. 92).

Diria que a comunidade negra quilombola do Tapuio é emblemática nesse

sentido por encontrar-se neste estágio, ou seja, ela ultrapassou a simples noção de

remanescente (no sentido tradicional) para outra posição condizente com esse

cenário atual onde o “ser quilombola” tem se tornado muito mais uma questão

interna, um sentido de “criação”, do que externa à comunidade (que se refere à

forma como se dá essa construção não somente a partir do ponto de vista histórico),

tendo em vista a realidade que está se sobrepondo ao discurso legal expresso na

Constituição de 1988. Os debates prosseguem como um imperativo prático à

existência, à garantia e à efetivação dos direitos já conquistados.

Falar do quilombo Tapuio, dos seus moradores, da sua região é trazer à tona

todas essas questões, é incluir no debate o desejo que move esses sentimentos de

luta pela liberdade, traço comum a praticamente todas as formações desse tipo ao

longo da nossa história. Temos hoje a fala do Estado, enquanto instância de poder

constituído, a fala da historiografia que constrói significados a partir de um olhar do

historiador ao longo da história brasileira, a antropologia discutindo o que são e

como se apresentam os quilombos e o mais importante que é a fala dos próprios

sujeitos, que ainda estão em fase de construção de uma interlocução em que

geralmente estão mais acostumados a ouvir, mas que precisa lhes assegurar,

sobretudo o direito de falar.

Acerca dessa instituição das falas dos sujeitos sobre o quilombo, elas

precisam ser ouvidas, pois descortinam significados que desconhecemos, mas que

podem fazer com que possamos compreender o que pensam e que importância

atribuem ao lugar onde vivem e que deixam,retornando depois após período de

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ausência carregando na bagagem vivências e experiências que tornam-se

marcantes na vida de cada um dos moradores.

Portanto, o Tapuio não é só uma comunidade quilombola situada nos confins

do semiárido piauiense, ela é percurso contínuo da história de luta de um povo que

permanece reafirmando o seu ideal. Personifica as ações de homens e mulheres

que um dia simplesmente resolveram externar a sua visão de liberdade, ainda que

para isso tenham tido de colocar à prova sua coragem e ousadia.

O enfoque que existe hoje em torno dos quilombos não é necessariamente no

intuito de discutir a sua existência ou não, mas é tentar perceber como eles existem

do ponto de vista da sua organização, da sua cultura, das condições materiais em

que se encontram e que dificuldades enfrentam para continuar existindo. Que

relações constroem com outros grupos rurais e que laços mantêm ou não com a

herança cultural do passado.

É Evidente que tais questões passam pela forma como são reconhecidos pelo

poder público e por si mesmos, instância política. Para a história, eles estão por aí

praticamente desde a chegada dos africanos escravizados nas futuras terras

brasileiras, mas se questiona alguns estereótipos criados e que reforçam uma

imagem idealizada dos quilombos.

Outro fator que impulsionou a discussão em torno dessas questões foi a

assinatura do Decreto Presidencial 4887 de 20 de novembro de 2003. A mobilização

do movimento quilombola em busca dos direitos sociais básicos redundou na

aprovação desse importante documento que almeja a regulamentação do artigo 68.

Nos últimos cinco anos ocorreram grandes ações tanto por parte do governo quanto

por parte do próprio movimento quilombola em que uma das questões centrais

sempre foi a luta pelo reconhecimento das comunidades e a efetivação de políticas

sociais, onde nunca se perdeu o foco em torno da questão da terra, elemento central

nesse processo.

Em contraponto à indefinição do governo, em certo momento, de dar

celeridade a esse reconhecimento e definir o papel de cada órgão governamental

frente às demandas apresentadas, o Decreto 4887 vem para dar uma perspectiva de

que os processos dali em diante não teriam solução de continuidade. Diríamos

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que os pontos principais são aqueles que dizem respeito à questão conceitual em

torno do que sejam remanescentes de quilombo, a atribuição dos órgãos e de seus

papéis na titulação das terras das comunidades e também a definição de um comitê

gestor.

O decreto representou um avanço quando assegurou que o INCRA faria a

identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras

ocupadas pelos remanescentes das comunidades dos quilombos, sem prejuízo da

competência concorrente dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios. Antes

da assinatura do decreto pela Presidência da República, havia certo choque de

competência entre MDA/INCRA e Fundação Cultural Palmares sobre de quem seria

a atribuição do trabalho de demarcação e titulação das terras do quilombo em todo o

Brasil.

Talvez a coisa mais importante que o decreto estabelece é o significado da

nomenclatura remanescentes de quilombos enquanto conceito que passa a

embasar, pelo menos no âmbito do Estado, as políticas públicas específicas

voltadas para esse segmento da população. Em termos conceituais tem-se o

seguinte:

Art. 2o Consideram-se remanescentes das comunidades dos quilombos, para os fins deste Decreto, os grupos étnico-raciais, segundo critérios de auto-atribuição, com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida25.

A assinatura do decreto criou novas perspectivas para as comunidades

quilombolas na medida em que significava um comprometimento maior do poder

público e da justiça em reconhecer que essas populações deveriam ter um

tratamento diferenciado em relação às demandas que estavam apresentando já

algum tempo, ocorrendo uma inversão na medida em o foco deixa de ser

simplesmente a atuação do estado para uma nova compreensão em torno da ideia

de compartilhamento e “parceria” entre os atores principais: governo e a sociedade.

25 Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2003/d4887.htm>. Acesso em: 2 abr. 2012.

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É uma nova relação que aos poucos vai se consolidando em meio a problemas e

tensões que são normais dada a posição de cada um dos atores nesse processo.

É importante observar que para além de uma necessidade de definição

conceitual, há de se reconhecer que ainda sabemos muito pouco sobre essas

comunidades, mesmo com um aumento das pesquisas nos últimos anos,

desconhecemos a sua real participação na construção sócio-histórica do Brasil. Não

devemos perder de vista que a partir destas conquistas já elencadas, a cada dia

novas comunidades passam a reivindicar para si o reconhecimento de que são de

fato, comunidades quilombolas.

Quanto à participação histórica, são significativos os conhecimentos

disseminados nas diversas áreas como a medicina, arquitetura, culinária, religião,

construção, mineração, artesanato e agricultura, para citar algumas. Com exceção

de Palmares, cuja história ainda apresenta alguns pontos obscuros, as demais

comunidades se ressentem de uma extrema invisibilidade.

Aos poucos algumas coisas começam a dar sinais de mudança e as

comunidades negras quilombolas se encontram hoje em um processo de “ocupação

de espaço” interessante, o que se deve ao processo de articulação política e

organização das mesmas. Isso não quer dizer que elas têm simpatia de todos, pois

falar de discriminação racial no Brasil sempre foi muito complicado por ferir brios e

causar certos constrangimentos.

1.5 Espaço, memória e a construção da territoriali dade

Não podemos nos esquecer de um agravante cuja lembrança deve ser

permanente que é a questão da terra. Quando “emergem” do passado, os quilombos

acabam de certa forma, por desafiar a estrutura agrária desse país quando

reivindicam a propriedade das suas terras, cuja definição é dada pelo artigo 68.

Desta forma é essencial a organização e as estratégias de luta onde se torna

fundamental conquistar aliados para o fortalecimento das aspirações de cada

morador dos quilombos em torno da efetivação daquilo que reivindicam: justiça

social e existência enquanto sujeitos de direitos ainda que a percepção desses

instrumentos não estejam no pleno domínio de todas as comunidades.

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Mas isso não se consegue sem uma percepção de si mesmo, da sua história

e o que ela representa enquanto instrumento de afirmação. Portanto, nossa

investigação objetiva visualizar as percepções desses sujeitos por meio de um

instrumento complexo que é a memória. Ao situar uma ideia de migração e retorno,

das vivências e experiências (ênfase maior nesse aspecto) dos moradores da

comunidade, bem distante do grande centro urbano onde estiveram, acreditamos

que o fazem mediados por um conjunto de lembranças que vão com o tempo

estabelecendo um vínculo, ainda que subjetivo, com todo o seu grupo, a sua

comunidade. Quando estabelecemos dessa forma, assinalamos que a memória que

permite acesso e a compreensão do fenômeno é a memória coletiva. É aquilo que

estabelece o pensamento de Halbwachs:

[...] nossas lembranças permanecem coletivas, e elas nos são lembranças pelos outros, mesmo que se trate de acontecimentos nos quais só nós estivemos envolvidos e com objetos que só nós vimos. É porque em realidade, nunca estamos sós (HALBWACHS, 1990, p. 30).

Falamos de um coletivo que é a comunidade negra quilombola do Tapuio,

mas ao mesmo tempo estamos nos reportando a sujeitos individuais, os moradores

que migraram e retornaram à comunidade. Pollak assinala que:

A priori, a memória parece ser um fenômeno individual, algo relativamente íntimo, próprio da pessoa. Mas Maurice Halbwachs, nos anos 20-30, já havia sublinhado que a memória deve ser entendida também, ou, sobretudo, como um fenômeno coletivo e social, ou seja, como um fenômeno construído coletivamente e submetido a flutuações, transformações, mudanças constantes (POLLAK, 1992, p. 02).

Esse debate demanda questionamentos à própria forma como se entende o

fenômeno da memória. Interessa-nos falar enquanto construção coletiva, mas ainda

sim, sem ignorar que existe o caráter individual, “cada indivíduo, particularmente nos

tempos e sociedades modernos, extrai memórias de uma variedade de grupos e as

organiza de forma idiossincrática” (PORTELLI, 2005, p. 127). Para Portelli, a

memória só é “coletiva quando é abstraída e separada da individual: no mito e no

folclore [...], na delegação [...], nas instituições [...]”. Essa memória pode adquirir

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inúmeros significados, relacionando-se com uma noção de identidade, de coesão do

grupo e ainda da consolidação dos laços afetivos existentes entre os sujeitos deste

grupo social. A memória também se caracteriza por “não ditos” que vez ou outra, se

impõem circunstancialmente ao processo histórico e que podem se definir ou não

necessariamente como esquecimento. Pollak (1989) nos lembra que as fronteiras

desses silêncios e “não ditos” com o esquecimento definitivo e o reprimido

inconsciente não são evidentemente estanques.

Dado o caráter seletivo da memória, vislumbra-se a existência de “lugares da

memória”, aqueles relacionados a uma lembrança pessoal que não necessariamente

se processa em uma cronologia (POLLAK, 1992, p. 03). Percebemos algo inerente

ao trabalho com a memória e que é importante para a análise que se possa fazer

sobre as narrativas dos entrevistados. Essas narrativas são as expressões daquilo

que foi vivenciado e a respeito desse complexo diálogo entre memória e história

Burke nos lembra que:

Essa explicação tradicional da relação entre a memória e a história escrita, na qual a memória reflete o que aconteceu na verdade e a história reflete a memória, parece hoje demasiado simples. Tanto a história quanto a memória passaram a revelar-se cada vez mais problemáticas. Lembrar o passado e escrever sobre ele não mais parecem as atividades inocentes que outrora se julgava que fossem (BURKE, 2000, p.69-70).

Um dos aspectos a serem considerados é que o tempo inteiro, estamos

lidando não com uma, mas com diferentes temporalidades. O tempo da pergunta

demanda uma resposta inserida em outro tempo, mesmo estando no tempo

presente ao fazer questionamentos apelo à capacidade do entrevistado de lembrar

vivências ocorridas em um tempo passado, o que exige uma atenção maior ao que

se quer saber, mas também ao que se diz sobre. Aliás, sobre isso refletimos na

perspectiva de que tempo, memória, espaço e história caminham juntos. Inúmeras

vezes, através de uma relação tensa de busca de apropriação e reconstrução da

memória pela história (DELGADO, 2003).

No caso de Tapuio devemos ponderar também que a memória não somente

diz respeito aos sujeitos da pesquisa em si, mas também é importante pensar a

partir das nossas próprias memórias. Como visualizamos e também analisamos a

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distância temporal entre o ter estado lá há dez anos e o próprio “retorno” agora?

Essa é uma questão a ser refletida, pois é natural nestes casos traçar padrões

comparativos que podem fazer juízo de valor da situação dos moradores como

sendo extremamente positiva, ou seja, em que hoje aparentemente estejam em uma

condição bem melhor que anteriormente, algo que deve ser relativizado.

Como nos debruçamos sobre o aspecto da migração, outro aspecto

importante são os aspectos subjetivos do ato de migrar e de retornar, porém existem

outros elementos que dizem respeito à materialidade do ato em si. Porque sair e

porque retornar são questões referentes também ao próprio movimento de saída e

de chegada e porque isso acontece. Assim, a análise do fenômeno da migração

torna-se ponto crucial.

Abrimos um parêntese aqui para ponderar algumas questões que

consideramos pertinentes ao debate em torno do ato de migrar. Inicialmente,

percebemos que essa ação é carregada de significações em torno de si, ou seja,

sair de um lugar para outro, não é só uma decisão do sujeito individualmente, há por

trás dela aspectos também exteriores que podem até ter um peso maior em termos

de influência sobre a decisão do sujeito de deixar o lugar de origem.

Também guardam especificidades se esse deslocamento é interno ou externo

a uma região ou país. Existe inclusive, uma gama de teorias que tentam explicar as

migrações a partir de categorias econômicas, históricas e também sociais.

Destacamos duas dessas correntes teóricas: o denominado neoclássico-

funcionalista e o estruturalista26. A fundamentação apresentada por E. S. Lee e Paul

Singer, dois grandes expoentes destes pensamentos são por assim dizer

“incompletas”, ao centrarem uma análise que embora esboce a influência de alguns

outros aspectos, acabam de certa forma por privilegiar o aspecto econômico.

Verificar o que motiva a saída de moradores do quilombo Tapuio para a

região sudeste do país, pode contribuir para uma compreensão da questão da terra

26Entre aqueles que se filiam à primeira abordagem, encontra-se o clássico artigo de Lee (1980), que foi elaborado na perspectiva da teoria da modernização. Do outro lado, encontra-se como uma das mais importantes contribuições, sobretudo a respeito das migrações internas nos países em desenvolvimento, o artigo de Singer (1980), que segue a linha histórico-estruturalista. Fonte: OLIVEIRA, Luiz Antonio Pinto de.OLIVEIRA,Antonio Tadeu Ribeiro de (orgs).Reflexões sobre os deslocamentos populacionais no Brasil. IBGE, Rio de Janeiro,2011.

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nas comunidades, das distorções regionais existentes que se refletem na questão da

migração, da configuração populacional e os problemas que surgem por causa do

desequilíbrio entre as regiões e também como pensar isso dentro de uma

historicidade. Enfim, são muitas as possibilidades.

Destacamos também em relação ao tema da migração algo importante: a

riqueza que compõe o uso da história oral nesse processo, constituindo em estudos

mais aprofundados e direcionados, uma história oral da migração. Um maior

interesse sobre isso pode estar na capacidade que esse tipo de história traz quando

possibilita uma análise diferenciada da fonte oral em relação à fonte escrita. Pois

para Thompson:

Neste aspecto, a história oral da migração exemplifica o interesse de muitos historiadores nas histórias não documentadas de grupos sociais marginalizados ou oprimidos. Tal evidência documental sobre a experiência do migrante, como ela existe, pode ser parcial e até enganosa (THOMSON, 2002, p. 343)

A migração tem aspectos bem complexos, em algumas situações, tornam-se

mais evidenciados por meio do depoimento oral daqueles que vivenciam esse

processo. As motivações, expectativas, frustrações, relações solidárias ou não,

aparecem nas falas e marcam essa complexidade. Mas a constatação disso deve vir

imbuída de uma ação analítica que busque a compreensão nada simplista dos atos

migratórios, afinal Thomson nos esclarece que:

Embora as pressões econômicas frequentemente influenciem as decisões de migração, o testemunho pessoal revela o complexo entrelaçamento de fatores e influências que contribuem para a migração e para os processos de troca de informações e negociação no interior das famílias e das redes sociais. Por exemplo, as narrativas dos migrantes evocam os “imaginários culturais” sobre os futuros locais de destino e explicam como estes imaginários são produzidos, disseminados, recebidos e usados (THOMPSON 2002, p. 345).

Ao migrar o indivíduo, não é regra, defronta-se com o desconhecido levando

consigo parte de seu lugar, tem motivações que comportam diversas possibilidades

de respostas que não só o econômico, esses migrantes também criam e fortalecem

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novos e velhos laços de amizade, bem como uma “certa” solidariedade. Também

podem reproduzir seu estilo de vida e incorporar novas práticas que transformam a

identidade cultural ao longo do tempo, mas que também, ao contrário, tendem a

reforçá-la.

Assim é que visualizamos o quilombo do Tapuio: como uma multiplicidade

que se apresenta aberta a imensas possibilidades de questionamentos acerca desse

tema da migração. Isso se deve porque a própria explicação do que é esse processo

ainda vem tentando se construir do ponto de vista de uma teoria que possa

fundamentar e explicar a contento o fenômeno. Além dessa tarefa, há a necessidade

de compreender melhor a natureza dos fluxos migratórios no Brasil, visto as

mudanças que se iniciaram no último meio século e tem se mantido, alterando de

sobremaneira a dinâmica populacional das diferentes regiões. Como o quilombo

Tapuio tem vivenciado isso? O padrão de deslocamento de seus moradores

permanece?

O espaço, como já evidenciado é parte importante para o estudo de uma

comunidade quilombola, bem como, também o território. Desta forma, o território de

acordo com Haesbaert27 desde a origem nasce com uma dupla conotação, material

e simbólica, pois etimologicamente aparece tão próximo de terra-territorium quanto

de terreo-territor (terror, aterrorizar), ou seja, tem a ver com dominação (jurídico-

política) da terra e com a inspiração do terror, do medo – especialmente para

aqueles que, com esta dominação, ficam alijados da terra, ou no “territorium” são

impedidos de entrar.

Nossa discussão tende a compreender a ideia de território e também a

territorialidade numa perspectiva histórico-cultural. Trata-se de pensar no espaço de

uma comunidade negra rural de ex-escravizados (ou não necessariamente) como

território étnico, que de acordo com Anjos:

[...] seria o espaço do quilombo construído, materializado a partir de referências de identidade e pertencimento territorial e geralmente a sua população tem um traço comum. As demandas históricas e os conflitos com o sistema vigente têm imprimido a esse tipo de estrutura espacial exigências

27 HAESBAERT, Rogério. Da descentralização à multiterritorialidade. Anais do X Encontro de Geógrafos da América Latina – 20 a 26 de março de 2005 – Universidade de São Paulo.

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de organização e a instituição de uma autoafirmação política, social, econômica e territorial (ANJOS, 2007, p. 115-116).

Outra relação que também se estabelece entre esses elementos tem a ver,

como ressaltado anteriormente, com a questão de identidade coletiva seja ela qual

for, é algo que se impõe como de fundamental importância nas sociedades

modernas. Nesse sentido, a ideia de território aqui defendida enfoca o território como

construído e desconstruído para além do poder do estado. Lefebvre distingue

apropriação de dominação (“possessão”, “propriedade”), o primeiro sendo um

processo muito mais simbólico, carregado das marcas do “vivido”, do valor de uso, o

segundo mais concreto, funcional e vinculado ao valor de troca (LEFEBVRE, 1986,

p. 411- 412).

Para Haesbaert, é interessante observar que, enquanto “espaço-tempo

vivido”, o território é sempre múltiplo, “diverso e complexo”, ao contrário do território

“unifuncional” proposto pela lógica capitalista hegemônica como um território étnico

tendo-o como um espaço histórico e de identidade coletiva.

Já a territorialidade, segundo Haesbaert, para além de incorporar uma

dimensão estritamente política, diz respeito também às relações econômicas e

culturais, pois está “intimamente ligada ao modo como as pessoas utilizam a terra,

como elas próprias se organizam no espaço e como elas dão significado ao lugar”.

Para o geógrafo, “todo território é obrigatoriamente funcional e simbólico”, pois é

fundamental perceber a historicidade do território e sua variação conforme o

contexto histórico e geográfico. Para Haesbaert e Anjos, as comunidades

tradicionais (onde também estão categorizados os quilombos) consideram a

construção material do território como base de identificação dos espaços simbólicos

e manutenção da cultura.

O Quilombo do Tapuio e seus moradores são protagonistas da história e “das

suas histórias” enquanto lugar onde a vida acontece. A realidade na qual se

encontram imersos hoje pode ser comparada a uma infinidade de outras

comunidades rurais quilombolas pelo Nordeste e pelo Brasil afora, mas ao mesmo

tempo suas vivências e experiências são singulares, é isso que move a investigação

em torno do problema que se apresenta: a sua condição de quilombolas sertanejos

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que ultrapassam os limites da região e motivados por inúmeros fatores, ousam

desbravar o horizonte que se descortina em direção à cidade grande em processo

de migração cuja peculiaridade está no retorno que acabam por fazer à

comunidade.As suas expectativas, esperanças, frustrações e desejos materializados

nas experiências vividas se constituem em matéria prima estrutural para a expressão

do vivido em toda a sua intensidade.

A narrativa que emerge trazida por cada um daqueles entrevistados por nós

perpassa não somente as suas histórias, mas também a história da comunidade,

estabelecendo assim um diálogo entre o indivíduo e a sua coletividade. Vem à tona

uma noção de território presente nas falas e discutida em suas múltiplas faces pelas

ciências sociais e também pela historiografia. O sentido, na qual observamos nas

narrativas pode divergir daquele expresso pela historiografia quando nos lembramos

dos portugueses e sua acepção para o que vinha a ser quilombo em uma definição

clássica28, uma imagem que se cristalizou ao longo do tempo como expressão de

pensar puramente eurocêntrica. É “natural” pensar o território como parte

significativa da materialidade do estado nacional, o qual delimita suas fronteiras e de

certo modo arbitra as relações sociais e suas repercussões, além das relações de

poder internas e externas.

A “naturalidade” dessa afirmação parece solenemente ignorar os sujeitos e

suas idiossincrasias. Dessa forma, a sua revisão é oportuna e necessária. Quem nos

chama atenção para um olhar mais aguçado sobre a relação sociedade e seu

território é Porto-Gonçalves quando afirma que:

Sociedade e território vê-se, são indissociáveis. Toda sociedade ao se constituir o faz constituindo o seu espaço, seu habitat, seu território. Ao contrário do pensamento disjuntivo que opera por dicotomias, como quer fazer crer o ainda hegemônico pensamento eurocêntrico moderno, não temos primeiro a sociedade (ou o espaço) e depois o espaço (ou a so-ciedade) – sociedade e espaço. Na verdade, sociedade é espaço, antes de tudo, porque é constituída por homens e mulheres de carne e osso que na sua materialidade corporal não podem prescindir da água, da terra, do ar e do fogo (PORTO-GONÇALVES, 2006, p.163).

O território é uma categoria amplamente discutida por um dos maiores

geógrafos do Brasil: Milton Santos. Para ele “o território são formas, mas o território

usado são objetos e ações, sinônimo de espaço humano, espaço habitado

28 Aquela promulgada pelo Conselho Ultramarino Português em 1740

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(SANTOS, 2005)”. Consideramos assim não haver divergências se

imaginamos que esse espaço é habitado por pessoas que vão construindo e

vivenciando o seu cotidiano e assim o fazem, os moradores do quilombo do

Tapuio. Esse “habitar o espaço” nada mais é que intrinsecamente vivenciar os

processos de construção do “estar no mundo”, a história em todas as suas

intensidades.

Atrelado à categoria território constitui-se o conceito de territorialidade

que Paul Little29 define como esforço coletivo de grupo para ocupar, usar,

controlar e se identificar com uma parcela específica de seu ambiente

biofísico, convertendo-a em seu “território”. Às palavras de Little acrescento

ainda o pensamento de Wagner quando diz que “a territorialidade funciona como

fator de identificação, defesa e força” (WAGNER, 2009).

O território é assim, carregado de simbolismo para os que nele habitam e

essas referências que se materializam nos usos do espaço implicam em uma

profundidade caracterizada por um elemento importante e que define o nosso “estar

no mundo” que é a identidade dos sujeitos. A esse respeito não objetivamos

aprofundar tal discussão, no entanto, é mais que oportuno tecer algumas

considerações. Primeiro, o estudo da identidade ou das identidades é algo bastante

complexo ao situarmos uma “identidade social” que sempre vai implicar as relações

entre três eixos fundamentais que são o indivíduo, a coletividade e a própria cultura.

Segundo, trata-se de pensar os sujeitos e grupos em contextos sociais específicos,

mas que se transformam constantemente e ainda assim, [...] a definição da noção de

identidade é dada por algo “irredutível”, que apesar de mudanças e transformações

em termos de conteúdo, persiste na consciência de todo grupo humano (VIERTLER,

2005).

Uma noção de identidade é o reconhecimento das diferenças existentes entre

grupos e pessoas dentro de uma sociedade e que a mesma se dá por meio de

construção de diferenciação que tanto pode ser externa ou ainda internamente. A

respeito da diferenciação externa, Viertler nos fala em “marcas ou atributos”

referentes a um ou mais grupos sociais criados por um discurso organizado pelos de

fora,que por outro lado tem o seu inverso:a criação de outros discursos pelo próprio

29Disponível em: <http://www.direito.caop.mp.pr.gov.br/arquivos/File/PaulLittle.pdf>. Acesso em: 20 outubro,2012.

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grupo em si. Assim, observa-se que cada grupo, ao escolher a sua marca étnica,

escolhe, por meio dela, um certo sentido para a construção das suas condições de

vida social em um cenário de sobrevivência humana mais amplo (VIERTLER, 2006,

p. 46).

A etnicidade tem um papel fundamental nesta discussão por estar no centro

das questões que legitimam o direito das populações quilombolas à terra. Quanto à

existência dessas “marcas” que ajudam na construção identitária, é lícito questionar

como elas passam a existir, ou seja, como aparecem e são criadas. Mais uma vez,

as inúmeras interpretações influem nas respostas diversificadas existentes para a

explicação deste fenômeno. Barth aponta uma relação com o ambiente físico em

seus escritos acerca desse tema; o que nos leva a refletir sobre a importância das

terras do quilombo nessa construção.

Pensamos assim que a memória pode nos mostrar até que ponto as relações

se aprofundam entre o lugar e seus moradores. No caso, entre aqueles que

deixaram a comunidade nos anos de 1970 e 1980 em direção a Região Sudeste e

acabaram por retornar ao lugar algum tempo depois, em alguns casos, após

sucessivas idas e vindas. Tuan discute essa relação com propriedade:

”Espaço” e “lugar” são termos familiares que indicam experiências comuns. Vivemos no espaço. Não há lugar para outro edifício no lote. As Grandes Planícies dão a sensação de espaciosidade. O lugar é segurança e o espaço é liberdade. Estamos ligados ao primeiro e desejamos o outro. Não há lugar como o lar. O que é lar? É a velha casa, o velho bairro, a velha cidade ou a pátria (TUAN, 1983, p. 3).

Esta concepção de lugar remete ao quilombo enquanto ambiente em que as

pessoas convivem e se harmonizam em torno das suas vivências cotidianas e

também de tudo que advém dessa vida em comunidade e ainda que venham a

deixá-lo um dia, continuam mantendo relações de vínculo que de certa forma

almejam essa busca da tranquilidade perdida ou ainda, do próprio sentimento de

liberdade. É o que observamos nesse estudo sobre os migrantes do quilombo

Tapuio. Ainda podemos pensar em uma gama de outros sentimentos que estejam

para além daquilo que se expressa nessa conclusão, ou do que ousamos imaginar

previamente. Senão, vejamos o que diz um dos moradores do quilombo do Tapuio

quando indagado acerca da importância da comunidade para si:

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65

Você se encontra respeitado, eu me encontro respeitado principalmente pelas pessoas que tem um conhecimento maior...quando se fala em quilombo...”Há você é do quilombo Tapuio? “É”...cê vê que as pessoas já te olham com outro é...com uma outra... já que...é como se você tivesse sabe?...tem pessoas que as vezes te vê ali e ali só passa por ti não acha que você não é nada ...quando você ...“Há conheci”...quando vê...reconhece você sabe quem você é, as pessoas: “Ô xente, há você é desse local!”,”você é assim”...então eu me sinto assim,importante,assim uma importância que...eu já passei por outro local que eu...que nunca tive (JOSÉ SEBASTIÃO, 2010).

Essa narrativa aponta para algumas informações inquietantes. Há uma

expressão de orgulho em pertencer ao quilombo que não está propriamente

relacionado a um aspecto identitário de perspectiva étnica, mas ao que outros

moradores da circunvizinhança expressam em termos de representação sobre a

comunidade. Essa representação que estes criam, é o que passa a ser incorporada

por este morador enquanto elemento de identificação. O que não é uma regra geral

em noutra narrativas aqui analisadas.

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66

CAPÍTULO 2

(DES)CAMINHOS MIGRATÓRIOS: SAÍDAS, CHEGADAS E PERCU RSOS DOS MORADORES DA COMUNIDADE QUILOMBOLA TAPUIO

A literatura tem sido o meio pelo qual a dramaticidade da vida no sertão do

nordeste expressa-se em toda a sua intensidade, cores e formas. Fenômenos como

a seca, a fome, o desemprego e a falta de perspectivas sempre empurraram

milhares de pessoas para fora da região, em direção a outros lugares. Mas são as

palavras que revelam melhor essa agonia em que mergulham os migrantes.

Inicialmente, no clássico de Josué de Castro “Geografia da Fome”:

Embora com os conhecimentos incompletos que se têm dos alimentos brabos não seja possível determinar com rigor o valor nutritivo da dieta dos retirantes da seca, não resta nenhuma dúvida de que se trata de um regime extremamente carenciado, não sendo possível ao organismo manter-se por muito tempo com tal alimentação. Ademais, esses recursos silvestres são limitados e, em pouco tempo, com um exército de raizeiros à sua cata, rareiam e se esgotam por completo. Baseado em testemunhas locais, conta Ildefonso Albano como na famosa seca de 1915 quase se acabou a macambira em certas regiões do sertão nordestino. Assim, esgotadas as suas esperanças e reservas alimentares de toda ordem, iniciam os sertanejos a retirada, despejados do sertão pelo flagelo implacável. Sem água e sem alimentos, começa o terrível êxodo. Pelas estradas poeirentas e pedregosas ondulam as intermináveis filas dos retirantes “como se fossem uma centopeia humana”. Homens, mulheres e crianças, todos esqueléticos, “deformados pelas perturbações tróficas, com a pele enegrecida colada às longas ossaturas, desfibrados e fétidos pelo efeito da autofagia” (CASTRO, 1984, p. 217).

Ainda nessa linha narrativa, Graciliano Ramos toca fundo na alma do leitor

com seus personagens, que errantes em meio às adversidades em que viviam no

sertão do nordeste, tentam driblar a severidade da seca procurando sobreviver à

fome que os ameaça. Eles também empreendem fuga desesperada e seu destino é

onde puderem se manter vivos. É assim em Vidas Secas quando o personagem

Fabiano, em fuga, expressa o desejo de chegar, ainda que não soubesse

exatamente onde30.

30RAMOS, Graciliano. Vidas secas. Disponível em:<http://ebookbrowse.com/graciliano-ramos-vidas-secas-livro-completo-pdf-d295847530>. Acesso em: 04/05/2013.

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Neste momento um imenso contingente de populações e pessoas está

deixando algum lugar ao redor do mundo e rumando em direção a outros lugares

levando na bagagem muita esperança e sonhos a realizar. Nem todos conseguirão,

é certo. Ainda assim, deixam para trás fragmentos de vida, de suas próprias

histórias, guardando outra parte na memória que os acompanha e que continua a

ser o único vínculo importante que os ligue ao seu lugar de origem.

Estes deslocamentos migratórios acontecem dentro de uma tipologia que

abrange regiões, estados, países e continentes. Dada à especificidade do objeto em

estudo, tratamos aqui propriamente das migrações que acontecem dentro do Brasil,

as migrações internas do tipo interestadual e interregional, mais propriamente as que

se dão entre o campo e a cidade e acabam por estabelecer relações singulares

entre estes dois polos.

Migrar é a possibilidade de percorrer uma estrada por onde circulam

diferentes sujeitos que vão aos poucos, construindo pontes entre diferentes lugares,

diferentes temporalidades que confluem entre si a partir de diferentes memórias. Ao

falar aqui dos moradores que migraram do quilombo Tapuio e depois retornaram ao

seu lugar de origem, configurando assim uma migração temporária em grande parte

dos casos, não podemos deixar de perceber que intrinsecamente também há certa

confluência com a nossa própria memória.

Nossos personagens, tal qual os da ficção mencionados, também deixam o

seu lugar, e embora a ação de migrar seja a mesma, as motivações e

circunstâncias, de uma forma geral, expressam um caráter específico, diferenciado.

Em termos de processo, há uma heterogeneidade presente nestes atos migratórios

e a princípio podemos dizer que a conjuntura histórico-social é reflexo disso,

impactando diretamente sobre a coletividade que vivencia a ação.

É certo que alguns fatores continuam presentes, como é o caso da seca. Mas

mesmo nessa região pesquisada - o semiárido piauiense, apesar das dificuldades

impostas pelo meio ambiente, as populações locais têm conseguido viver e conviver

com elas até certo ponto, na atualidade de maneira satisfatória. A seca tem razoável

influência, mas ela não se torna o elemento determinante para a saída dos

moradores do quilombo Tapuio, por exemplo. Indagamos então: existe um fator ou

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fatores preponderantes à migração para fora do quilombo? Se existe, quais seriam

esses fatores?

Refletir sobre isso implica pensar sobre o campo de estudo das migrações,

que, por sinal, avançaram bastante nas últimas décadas do século XX, sobretudo,

devido ao reconhecimento desse campo como algo digno de um maior rigor

científico e também devido às mudanças profundas ocorridas nesses fluxos de

deslocamentos ao redor do mundo, a partir principalmente do final da década de

1970 e início dos anos 1980. Assim, a compreensão desse fenômeno tornou-se

importante para as diversas áreas do conhecimento, dada a realidade atual, onde é

extremamente difícil estabelecer um modelo explicativo universal.

Outro aspecto importante é que esses estudos subsidiam o campo da

demografia e também outros como a sociologia, buscando perceber de que maneira

isso afeta os processos de urbanização das cidades e que características estruturais

podem ser identificadas na realização desses processos de migrações.

No caso do Brasil, as estatísticas dos censos populacionais realizados

passaram por mudanças significativas nas suas metodologias nos últimos 20 anos e,

assim foram colhendo um maior número de informações acerca dos deslocamentos

da população, demonstrando, dessa forma, os importantes progressos que vão

aparecendo nessa área. No campo teórico os trabalhos nas áreas de economia e

sociologia tiveram grande repercussão, dada a sua influência. Mas existem

categorizações teóricas que ampliam as possibilidades de interpretação e análise

sobre as migrações. A pesquisadora Ana Lia Farias Vale31 assinala que:

Para enquadrar a maior parte da produção teórica sobre migrações, as escolas, correntes teóricas e variantes de comum substrato num mesmo tronco, Salim (1992, p.121) e Póvoa-Neto (1997, p.12) usam a expressão "tronco teórico", propondo criar uma classificação em três troncos principais. O primeiro, um conjunto de autores que faz uso de uma concepção neoclássica do espaço e das migrações, que se preocupa com a economia do espaço e a gestão capitalista da mão-de-obra — nesse caso, as migrações não têm apenas concepção demográfica, mas principalmente econômica de inspiração walrasiana de valor utilidade e a sua interdependência dos fenômenos de mercado; o segundo, chamado de perspectiva histórico-estrutural, vinculada à tradição dialética do marxismo e

31VALE, Ana Lia Farias.Imigração de nordestinos para Roraima.Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0103-40142006000200019&script=sci_arttext>. Acesso em 21/02/2013.

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responsável por vasta produção crítica sobre a migração, analisa grupos e classes sociais a sofrer as forças das estruturas sociais que explicam a maior ou menor propensão a migrar; o terceiro, a mobilidade da força de trabalho, na qual os economistas clássicos procuram fazer uma nova análise da migração no processo de acumulação capitalista, em que a migração, afirmam, não pode ser encarada fora da realidade do trabalho social, e sim como pressupostos econômicos desse.

Podemos constatar que cada um dos troncos teóricos procura explicar o

fenômeno da migração dentro de uma lógica que lhes é peculiar. Tanto uma quanto

a outra concepção, apresentam limites no que se refere à explicação que propõem

para o entendimento das migrações. Assim refletimos acerca do tipo de relação que

possa vir a se estabelecer com a pesquisa no tempo presente, sob o pano de fundo

da teoria, naquilo que de fato pode ser uma forma de explicação para o contexto

pesquisado e em discussão aqui.

Importante ressaltar que há diferentes categorizações em torno dos estudos

sobre migração e essa diversidade implica em discussões que dizem respeito até

mesmo ao próprio conceito, ao tipo de deslocamento, a sua duração, aos aspectos

metodológicos que por sua vez tendem a estabelecer um enfoque sobre questões

micro ou macro, bem como sobre indivíduos isolados e ou grupos. Há tentativas de

unificar os aspectos que poderiam categorizar este movimento como, por exemplo:

distância que foi percorrida, tempo que se permaneceu e se instalou e por último,

local ao qual se chegou. Ainda sim, se estes forem os elementos centrais a estarem

em uma análise sobre migração, não dão conta de uma explicação por completo.

Obviamente que, em comum, estas construções teóricas têm relação direta

com a realidade manifesta em outros países, cujo nível de desenvolvimento

econômico é superior ao do Brasil. Indagamos até que ponto há alguma relação

entre essas teorias, seu campo de formulação e a nossa realidade?. Como

relacionar?. Acreditamos que uma relação direta não acontece. Por outro lado, é

possível que se apresentem características discutidas nestas concepções.

A partir da década de 1990 no Brasil, a abundância de dados à disposição,

constitui-se como campo fértil para estudos relativos à demografia, muito embora a

questão da migração possa impor dificuldades para seu estudo justamente pela

grande quantidade de dados, uma vez que mensurá-los torna-se desafiador pelo

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fato de que as migrações se constituem em tempos e espaços variados. Aprofundar

estes estudos torna-se oportuno por que:

É inegável que o conhecimento adequado dos tipos e etapas da migração, suas características, significados e condicionantes são requisitos fundamentais para entender não apenas a dinâmica demográfica atual, mas também para prever suas tendências futuras (CUNHA, 2005, p.03).

Algumas tendências podem permanecer por curto espaço de tempo ou ainda

a longo prazo, oportunizando uma radiografia das regiões no que diz respeito a esse

campo. Uma dessas tendências é a migração de retorno, a qualnos reportaremos

mais à frente e que por ser fenômeno recente ainda demanda uma maior e melhor

compreensão.

Diante do exposto, refletimos com Amorim32 na perspectiva de considerar a

migração como um fenômeno social do ser humano. As circunstâncias sob as quais

isso acontece expressam sempre intensa curiosidade para quem observa esse

movimento. Os motivos elencados pelos migrantes são diversos, vão desde o

desemprego no seu local de origem, passando por outras questões de maior

complexidade. A pobreza seria uma dessas questões, ressaltando obviamente, que

as migrações não são necessariamente fruto dessa condição e nem a pobreza em

si, leva necessariamente a processos migratórios. No entanto não podemos

desconsiderar o peso que este aspecto impõe, visto que para Gonçalves:

A miséria que se espalha pelas cidades e o esvaziamento do campo têm, como se sabe, causas bem mais complexas. Fatores como a crise econômica e o desemprego crescente, as transformações no mundo do trabalho e a precarização de suas relações - entre outros - contribuem decisivamente tanto para o quadro de indigência que se amplia, quanto para os deslocamentos compulsórios da população pobre (GONÇALVES, 2001, p.174).

Já em uma abordagem geográfica, por exemplo, Paviani nos lembra que:

Migrações ocorrem por motivos de guerras mundiais ou regionais, pela ocorrência de epidemias, por perseguições políticas e étnico-religiosas, surgimento de avassaladores fenômenos climáticos ou geológicos, que

32A migração, fenômeno complexo essencialmente social e com determinações múltiplas, apresenta interações peculiares com as heterogeneidades de uma formação histórico-social concreta. Assim, diante da pluralidade das relações sociais ou dos diversos contextos sociais se verificam processos de mudanças, a migração tende a assumir feições próprias, diferenciadas e com implicações distintas para os indivíduos ou grupos sociais que a compõe e a caracterizam. Disponível em: http://www.abep.nepo.unicamp.br/docs/anais/pdf/1992/T92V03A07.pdf - Acesso em 22/09/2013.

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sempre ocasionam períodos de fome e desespero, como demarcam registros da história dos povos. Devemos também considerar que crises econômicas ocasionam impactos de diversas naturezas na indústria e no comércio, acarretando desemprego nas cidades e êxodo de trabalhadores do ambiente rural. Há migrações originadas pelas aspirações de indivíduos ou de grupos de pessoas sem que haja fato adverso (PAVIANI, 2007, p.14).

Em outra direção, Queiroz33 busca relacionar elementos mais próximos do

cotidiano dos nossos interlocutores quando afirma que:

A migração da força de trabalho de uma região para outra ocorre devido à necessidade que os indivíduos têm de melhorar o padrão de vida em decorrência da falta de emprego e não absorção da mão-de-obra disponível de naturalidade (QUEIROZ, 2011, p.17).

Também é importante perceber que o crescimento desse fenômeno levou a

formulação de tipologias que podem ocorrer, caracterizando dessa forma os diversos

movimentos empreendidos pelas pessoas que se lançam nessa empreitada. Assim,

ocorrem migrações do tipo inter-regional, as intra-regional, as internacionais, a

mobilidade pendular e a do tipo sazonal. É bom lembrar que são categorias

conceituais e trazem, em si, o peso da discussão que muitas vezes não se esgota

em um modelo fechado, podendo haver outros. Porque, ainda em relação a essa

discussão conceitual, Ramalho34 aponta algo importante quando reafirma que: “[...]

Devido à complexidade do próprio movimento migratório, não existe uma definição

do conceito de migração que dê conta de todos os processos que estão por trás da

migração em si”.

Ainda que se observe uma natureza complexa em termos de explicação dos

movimentos migratórios é permanente o exercício de buscar uma compreensão

mínima da dinâmica que os cercam. Assim, para nos fazer refletir um pouco mais

sobre o tema, Bacellar e Lima assinalam que:

O conceito de migração é tido, geralmente como um processo de transferência de indivíduos, grupos ou comunidades de um contexto espacial e sócio-econômico para outro. Essa transferência quase sempre resulta no abandono de um contexto sociocultural com características historicamente já definidas, em substituição por um novo espaço geralmente diferente. Os deslocamentos de indivíduos, grupos ou comunidades de um espaço geoeconômico para outro, ou seja, os fluxos migratórios, estão

33 QUEIROZ, Vivian dos Santos. Migração de Retorno, Diferenciais de Salários e Autos seleção: evidências para o Brasil. Fortaleza, BNB, 2011. 34 RAMALHO, H. M. Migração rural-urbana no Brasil: determinantes, retorno econômico e inserção produtiva. Tese. UFPE/PIMES, 2008.

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envolvidos numa série de componentes básicos tanto de natureza sócio-psicológica, quanto estrutural e conjuntural (BACELLAR; LIMA, 1990, p.27).

Qualquer que seja a tendência ou linha de explicação que se queira discutir

sobre o tema, uma coisa é certa: elas se expressam como parte desse processo e

tem sua importância estabelecida porque o debruçar-se sobre essas práticas nos

leva à constatação de que elas acontecem “em função das modificações ocorridas

nas dimensões econômica, social e política em nível nacional e internacional”

(CUNHA, 2005, p. 01).

Como estamos nos referindo a um acontecimento situado nos anos de 1970 e

1980 é preciso salientar que o fenômeno (da migração) nesse período tem relação

também com uma conjuntura histórica que remete aos anos de 1950. É nesse

instante que a industrialização, juntamente com os processos de urbanização em

curso no Brasil, ganham impulso e pressionam as realidades das regiões menos

desenvolvidas. Isso acontece na medida em que “os fluxos de população estiveram

interligados à concentração da atividade econômica, aliada a produção de

excedente populacional no campo” (PATARRA, 2004, p. 2).

O desenvolvimento econômico de grandes centros industriais como o estado

de São Paulo deu-se em detrimento do que acontecia em outras regiões como o

Nordeste, onde a conjuntura após esse processo de transformações que se deram

mediante o fim da concentração e acúmulo de capital que ocorreram durante o

período colonial, acabou por colocá-lo em desvantagem durante o século XX,

gerando imensa desigualdade econômica e social que vem se perpetuando ao longo

do tempo, bem como consequências mais imediatas ao momento histórico.

Esse cenário está relacionado diretamente com as mudanças ocorridas no

campo e que proporcionaram um surto de desenvolvimento da força produtiva,

dados os investimentos que foram realizados e, que trouxeram bons resultados, para

alguns, diga-se de passagem. Para a grande maioria significou enormes perdas, não

só de renda, como também de terras e até da própria dignidade. Essa

“modernização”, mais intensa, ocorreu no final dos anos de 1960 e início dos anos

de 1970.

As características desse processo tornaram-se marcantes no que trouxe de

consequências positivas e aquelas consideradas nem tanto assim. Essa dualidade

ficou evidente para os estudiosos desse período que simplesmente passaram a

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denominá-lo como uma “modernização conservadora”35. Embora tenha ocorrido a

modernização das técnicas de produção, o que elevou a produtividade de alimentos

e matérias-primas, inclusive para a exportação, passando a caracterizar assim uma

maior profissionalização do setor e elevando essa produção a uma escala industrial.

No entanto, nem tudo foi recebido sem uma análise mais apurada que detectou os

limites do processo. Palmeira tece críticas contundentes quando afirma que:

Essa modernização, que se fez sem que a estrutura da propriedade rural fosse alterada, teve, no dizer dos economistas, “efeitos perversos”: a propriedade tornou-se mais concentrada, as disparidade de renda aumentaram, o êxodo rural acentuou-se, aumentou a taxa de exploração da força de trabalho nas atividades agrícolas, cresceu a taxa de auto exploração das propriedades menores, piorou a qualidade de vida da população trabalhadora do campo (PALMEIRA, 198936).

Toda essa discussão levanta questionamentos acerca das condições

estabelecidas no quilombo Tapuio nesse período. Estas condições materiais em que

estavam os moradores parecem não diferir muito do restante das zonas rurais do

país, onde o modelo de propriedade baseada no latifúndio tornava-se um agravante,

por concentrar a posse da terra37. Também deve se considerar as condições geo-

climáticas da região como um possível fator que obstaculariza a permanência do

homem no campo. O Nordeste do Brasil sempre teve suas peculiaridades e continua

mantendo na atualidade, quando se percebe o nível de disparidade econômica que

persiste. Entre as razões para esta permanência está é claro, os níveis de pobreza

que no entender de Sezyshta possui raízes bem definidas quando afirma que:

[...] a origem histórica da miséria na região, verdadeira expulsora de gente, remonta ao latifúndio e ao escravismo e passa pela monocultura da cana de açúcar e pelo poderio dos usineiros que, ao impedirem a reforma agrária e forjarem uma “cultura da dádiva”, pautada no mando e na subserviência, obstaculizam o desenvolvimento da região e a possibilidade de uma maior distribuição da riqueza. Desta forma, impedem a construção de uma cidadania ativa que garanta a realização dos direitos básicos, substituídos pelos favores e pelo clientelismo, fechando o círculo vicioso e secular da ordem e da obediência (SEZYSHTA, 2004, p.360).

35A rigor, tem-se como marco quando o setor da agricultura absorveu quantidades crescentes de crédito agrícola, incorporou os chamados “insumos modernos” ao seu processo produtivo tecnificando e mecanizando a produção, e integrou-se aos modernos circuitos de comercialização. 36 PALMEIRA, Moacir.Modernização, Estado e questão agrária. Estudos Avançados. vol. 3 no.7 São Paulo Sept./Dec. 1989. Disponível em:<http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0103-40141989000300006&script=sci_arttext>. Acesso em 21/06/2013. 37 Esse modelo concentrador remonta oficialmente ainda ao século XIX quando da aprovação da lei de terras de 1850 que entre outras coisas estabelece que a aquisição de terras – excetuando-se alguns casos – só poderia ser realizada por meio de compra.

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Referimos-nos não apenas ao aspecto econômico nessa constatação, porque

isso está explícito, ou seja, o Nordeste recebe investimentos na atualidade, mas não

em quantidade que possibilite a manutenção de um desenvolvimento auto suficiente

e que seja duradouro e consistente, porque obviamente se o recebesse, esta

discussão se daria em outros termos. Deve-se levar em conta também a

possibilidade de que boa parte dos recursos destinados à região é desviado ou mal

aplicado e, às vezes, nem aplicados de forma alguma. Por isso mesmo, volta e meia

se discute o cumprimento do pacto federativo, no qual é cobrado o estabelecimento

de direitos, senão em termos de igualdade, mas que possam minimamente equilibrar

os desníveis socioeconômicos entre os entes federados.

Ainda assim, isso por si só não é suficiente para explicar essa questão, pois

existem outros aspectos de natureza subjetiva que também influenciam. Um

exemplo disso foi a eleição de vários presidentes da república dessa região nos

últimos 25 anos. Como olharam, o que fizeram ou deixaram de fazer pelo Nordeste é

uma questão recorrente, mas pouco discutida. Por fim, não se pode deixar de

mencionar que existe um sentimento bem estabelecido sobre a região por parte das

outras regiões que a associa a uma imagem de fragilidade natural.

Existe como dissemos outros aspectos a serem observados e que se revelam

de uma importância considerável. A subjetividade que rodeia o Nordeste não está

apenas no campo de uma criação discursiva sobre a região, mas também sobre as

pessoas, a cultura e seus desdobramentos, como o imaginário. As disparidades

regionais existentes a séculos é uma fonte de reflexão: porque elas não foram

resolvidas até hoje,ou pelo menos minimizadas dentro das expectativas que se

espera da ação governamental? Verifica-se mudanças nos últimos anos, com muitos

investimentos e programas sociais estabelecidos no âmbito local38. Para a demanda

que se tem de décadas, estes se revelam ainda insuficientes para alavancar o

crescimento da região. O Nordeste, ao que parece, ainda exerce papel de

desimportância no jogo de poder entre as demais regiões e o governo central. Essa

38 Cf. BARBOSA, Geraldo Magela Lima; VIANA, Fernando Luiz Emerenciano. In: Informe Técnico do ETENE. Ano VII, nº 1, abril de 2013, p. 02. Previsão de Investimento no Nordeste em 2013. “[...] os recursos do Orçamento Federal destinados a investimentos na Região Nordeste representam 14,1% do total, totalizando R$ 10,7 bilhões”. Disponível em:<http://www.bnb.gov.br/content/aplicacao/etene/etene/docs/iis_ano7_n1_previsao_investimentos_publicos_nordeste_novo.pdf>. Acesso em: 21/09/2013.

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não é uma situação dada eternamente, se deve entre outras coisas, a uma

articulação política ineficiente quando diz respeito à região como um todo, mas ao

mesmo bastante eficaz, quando tem por fim e leva em conta apenas os interesses

pessoais de alguns grupos políticos.

Exploração de recursos naturais e humanos, sempre foi a tônica defendida

pelas ações de representantes do poder e também por grande parte dos grupos

políticos e familiares locais. O resultado disso se expressa nas práticas que tendem

a reproduzir o nível de exploração que existia no Brasil colônia, até com mais

intensidade.

O Nordeste, em tempos distintos, foi o grande “exportador” de mão de obra

para outras regiões. Algo que se expressa pelos números das estatísticas referentes

a esse período, marcadamente entre as décadas de 1950 a 1980. Estamos nos

reportando a um movimento de deslocamento entre o meio rural e o meio urbano, o

que para alguns estudiosos se configurou como uma desruralização do campo39.

Ainda sobre esse tema Patarra, partindo dos estudos de Camarano e Abramovay,

enfoca esse grande deslocamento como um ciclo regional, onde o movimento rural-

urbano levou a um enorme êxodo de nordestinos para a cidade grande. Quanto as

estimativas que apresentam, a socióloga ressalta que do total de dez milhões e

oitocentas mil pessoas que migraram no período, cerca de 47,6% eram de

nordestinos que deixaram a região. Como fatores de motivação para esta saída são

apontados a construção da nova capital federal, a própria rodovia Belém-Brasília, as

migrações para os grandes centros de um modo geral, as migrações sazonais para

colher café em São Paulo e no Paraná, bem como, não se pode esquecer, das

secas que ocorreram na região.

As décadas seguintes a 1950 se apresentam em cenários diferentes, onde

nos anos de 1960 há uma redução dessa saída de pessoas do Nordeste, voltando a

tomar novo impulso nos anos de 1970, tendo agora a participação da Região

39 Esse movimento de desruralização praticamente inverteu o percentual de moradores do campo e da cidade. Patarra acentua que: A intensidade da desruralização da população brasileira no período compreendido entre os anos 1950 até os anos 1980 pode ser apreendida pelo fato de aproximadamente 36% da população residir no meio urbano, em 1950, e aproximadamente 70% nele residir em 1980. Disponível em:<http://www.fgf.org.br/centrodedocumentacao/publicacoes/qsqsne/05_NeidePatarra.pdf>. Acesso em: 20/Nov/2012.

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Sudeste nesse aumento de fluxo. Nos anos de 1980, constata-se uma redução da

população do Nordeste ocasionada pelo intenso movimento migratório rural-urbano

e também pela redução do índice das taxas de fecundidade.

Observamos, então, que a própria condição da Região Nordeste em

apresentar um quadro de migração acentuada, aponta vários fatores que estão

relacionados tanto a questão climática, quanto a outras questões de natureza

distinta, tais quais: concentração de terras nas mãos de poucos, deficiência das

políticas públicas de assistências aos moradores do semiárido que levaram a um

agravamento das condições de vida da população, ocasionando a sua redução ao

longo de duas décadas pelos efeitos da saída do mundo rural para o mundo urbano.

Assim, é possível constatar também entre os moradores do quilombo Tapuio,

que saíram da comunidade, razões diversas para esta ação. Há a imposição da

natureza como fator de pressão e que teve um peso significativo, mas existe

também o foro individual que se manifesta, inclusive, na decisão de retornar à terra

natal, antes abandonada. Há de se questionar influências externas nessa decisão.

De modo geral, o Nordeste também sofre muita influência da conjuntura

socioeconômica que ocorre na Região Sudeste, que quando em fase de

crescimento, tende a atrair grande contingente de migrantes, como foi o que ocorreu

de fato.

Não deixa de ser curiosa, a constatação de que os processos migratórios

persistem historicamente, enquanto também há um discurso institucional que advoga

a fixação do homem no campo. A existência de políticas públicas de estado com

essa finalidade, podem não ter alcançado os resultados esperados. Paula40 assinala

que:

A grande porcentagem de jovens e mulheres migrantes caracteriza a necessidade de construir, no campo, alternativas de condições de vida básicas em relação à saúde, educação, lazer e, principalmente, integração econômica, através de atividades agrícolas e não agrícolas. A busca de trabalho provoca a mobilidade espacial de milhares de famílias que sem muitas esperanças no campo seguem para a cidade em busca de algo que não sabem aonde encontrar, mas sabendo que não podem aguardar no meio rural. Incessantemente, permanecem chegando e partindo na procura

40 JÚNIOR, João Cleps; PAULA, Andréia Maria Narciso Rocha de. As migrações campo-cidade: os diferentes enfoques interpretativos. Disponível em: <http://www2.fct.unesp.br/grupos/nera/publicacoes/singa2005/Trabalhos/Artigos/Andrea%20Maria%20Narciso%20Rocha%20de%20Paula.pdf>. Acesso em: 25/Fevereiro/2013.

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de trabalho, de bico, de alguma forma de sobreviver. Não escolhem ocupações, aceitam qualquer tipo de serviço.

Ao nos reportamos à ideia de uma decisão tomada em relação a sair ou não

do seu local de origem, torna-se um exercício de análise interessante verificar quais

condicionantes influenciam essa decisão e qual de fato é a intensidade em que isso

é determinante. Mais que isso: podemos realmente falar em uma decisão? O certo é

que fatores internos e externos têm uma influência, em que se torna difícil

estabelecer o que é definitivo.

Dentre os fatores internos está a ocorrência, já mencionada da seca, que

periodicamente assola a Região Nordeste, inviabilizando assim outras questões

como o acesso ao crédito bancário, e, além disso, existem outras dificuldades de

toda ordem, como a falta de uma infraestrutura adequada à convivência com o

semiárido, que, aliás, sinaliza para uma mudança de mentalidade, visto que

anteriormente não se pensava que fosse possível conviver com e na região.

Os esforços nesse sentido tiveram início já há algum tempo, mas ainda são

considerados bastante recentes, sobretudo, em termos de resultado. Hoje, pode-se

dizer que já existe toda uma tecnologia social desenvolvida para este fim, o de

contribuir para a fixação do homem do campo, na sua região de origem.

Externamente à região, assinalamos a desigualdade regional, onde

historicamente foram sempre definidos os elevados níveis de investimento no

desenvolvimento econômico das regiões do país com privilégios ou maior atenção

ao Sudeste e ao Centro Oeste, mediante também as articulações políticas, que

foram possibilitando um maior desenvolvimento econômico dessas regiões.

Funcionando, desta forma, como importante atrativo à vinda de contingentes

populacionais do Nordeste do Brasil.

Uma questão que se apresenta e já mencionada anteriormente é que se

formos pensar do ponto de vista da existência de uma racionalidade, decidir migrar

pressupõe coerência, esclarecimento, autonomia e consciência sobre o ato da

decisão. Será que os nossos migrantes aliam tais características com relação a esse

ato em si?. Ou a decisão encontra-se em uma esfera mais subjetiva do que aquilo

que comumente se possa imaginar acerca do que é noticiado nos meios de

comunicação?. As respostas para essas questões não são unânimes e nem tão

diretas, portanto, optamos por não respondê-las neste momento e sim, deixá-las

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para reflexões e estudos posteriores, tendo em vista que esse tema não se esgota

aqui.

A aparência de ato livre, muitas vezes, esconde a luta inglória pela

sobrevivência em sua forma mais dramática. O direito de ir deve facultar o direito de

vir, mas nas condições em que isso (ir) tem ocorrido voltar acaba se tornando um

expediente muitas vezes dificultado pela falta de condições financeiras.

E ficar?. É possível pensar nessa possibilidade como um direito?. Quem deve

assegurar?. Estas questões parecem bastante complexas para alguém que a sua

frente depara-se com uma realidade mais hostil que aquela em que costuma estar

imerso. A princípio percebe-se que os moradores do quilombo Tapuio de ontem, não

realizaram suas partidas, pensando na ideia de que era (ou é) possível ficar na terra.

Em termos de possibilidade, hoje esse pensamento talvez não esteja tão distante

assim. Isso, no entanto, são questões para um maior aprofundamento que não faço

aqui. Tocamos nas questões mais estruturais que norteiam os estudos sobre

migração, mas elas, embora nos apontem inúmeros elementos de avaliação, temos

muitos outros para análise.

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79

2.1. O MIGRANTE E O ATO DE MIGRAR

O ato de migrar é individual e social. Individual porque é o indivíduo que

empreende a ação. Social na medida em que este mesmo indivíduo não representa

a si mesmo, mas é parte de um grupo muito maior. Para Brito41:

As migrações não são fenômeno estritamente demográfico. Em perspectiva mais abrangente, as migrações constituem processo social. Elas não são o mero resultado do somatório de decisões individuais. Não é um indivíduo isolado que migra, mas são milhões de pessoas, conjuntos sociais com seus valores e normas, que se transferem do espaço rural para o urbano, de uma cidade para outra, de um estado para outro, de uma região para outra, ou mesmo, de um país para outro.

Essa noção de grupo pode inclusive ensejar alguma relação ou ainda uma

origem comum. Pode ser de classe, de origem étnica, ou outra situação. Tal

concepção se utiliza essencialmente da noção de grupo e também de estrutura.

Assim, nordestinos, excluídos e desvalidos constituem grupos. A realidade onde

estão imersos e, portanto, sujeitos a todas as suas inúmeras variáveis sociais,

culturais e simbólicas, que podem assinalar possíveis determinações sobre o sujeito,

constitui a estrutura. Este enfoque se dá dentro de uma explicação de caráter

histórico-estrutural.

Com relação ao quilombo do Tapuio, se levarmos em conta esta concepção,

partimos da premissa, segundo a qual, as condições socioeconômicas são o

elemento que determina a saída dos seus moradores para outros lugares. Esta

conclusão encontra-se em consonância com a maioria das teorias que buscam

explicar processos migratórios, afinal, à noção de desigualdade econômica

engendra outros tipos de desigualdade, como a social, a regional e demais outras.

Portanto, ainda que o fator econômico esteja na raiz destes processos, há

outros aspectos que precisam ser melhor analisados e compreendidos. Até mesmo

ser conhecidos, enquanto motivação que se expressa nas narrativas dos migrantes

desse estudo.

41BRITO, Fausto. Brasil, final de século: a transição para um novo padrão migratório. Disponível em:<http://www.abep.nepo.unicamp.br/docs/anais/pdf/2000/Todos/Brasil,%20Final%20de%20S%C3%A9culo%20-%20A%20Transi%C3%A7%C3%A3o%20Para%20Um....pdf>. Acesso em 20/Janeiro/2013.

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80

No caso do quilombo Tapuio, a leitura realizada em outro trabalho de

pesquisa42 acerca da história recente da comunidade, traz a informação de que

parte dos seus moradores já empreendia um movimento de saída do quilombo em

direção a outros estados e regiões. Esse movimento começa a ser empreendido

pelos homens da comunidade na década de 1950. Já as mulheres que migram da

comunidade, o fazem por volta dos anos de 1970.

Mas isso mostra que, em momentos diferentes, migrar do quilombo foi uma

ação que, envolveu homens, mulheres e também a juventude. Esta se apresenta

enquanto uma categoria de análise, lembrando afinal, que os senhores que narram

suas histórias aqui, eram bastante jovens na época, embora já assumissem grandes

responsabilidades. Compreender essa jornada empreendida pelos moradores do

quilombo Tapuio nos leva novamente aos escritos de Santos (2006, p. 25), em que o

mesmo aponta que as migrações de pais e filhos causadas por questões financeiras

é comum na comunidade, o centro mais procurado é a cidade de São Paulo.

Desta forma, migrar é parte também de uma situação que se apresenta,

muitas vezes, impondo limites à permanência do indivíduo no lugar, e as possíveis

escolhas acabam por refletir a expectativa que se tem na busca de uma melhoria

para si mesmo e para a família.

Da mesma forma, devemos entender São Paulo como algo que tem um

significado nestas narrativas, se apresentando como lugar comum de destino,

embora para Santos, o termo São Paulo, “utilizado por muitas pessoas para apontar

o destino de muitas famílias da comunidade, é uma categoria da migração e não

necessariamente o local de destino dessas famílias” (Idem, p.118). Essa é uma

referência muito forte dentro da comunidade, estando presente nas falas de forma

bem definida. Mas o ABC é São Paulo e desta forma quem residiu ou foi trabalhar

por um tempo curto ou mais extenso em Diadema, São Bernardo, Santo André, São

Caetano ou ainda outra localidade qualquer, dentro da região metropolitana da

capital, costuma dizer que foi ou esteve em “São Paulo”.

Em relação à questão financeira enquanto fator de motivação para a saída

dos moradores do quilombo Tapuio sem dúvida se apresenta como algo

inquestionável, e nos leva a refletir sobre os aportes teóricos discutidos

anteriormente. Uma grande parte das teorizações sobre as migrações foram

42 Ver nas referências, SANTOS, Carlos Alexandre Pinho Barboza dos.

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81

elaboradas em um momento peculiar, especificamente nas décadas de 1960 e 1970,

onde o mundo e o Brasil passavam por significativas mudanças em todos os

campos: social, cultural, político e, sobretudo, o econômico, em face do extremo

crescimento que acontecia naquele momento.

Vem daí, o enfoque maior nesse aspecto, que sem dúvida, foi importante para

se entender melhor a dinâmica das migrações que ocorreram entre o campo e a

cidade, acelerando ainda mais o processo de urbanização dos grandes centros. Por

outro lado, outros fatores acabaram sendo, de certa forma, ignorados. Pois eles

poderiam ser igualmente relevantes para um melhor entendimento destes

movimentos.

Vive-se hoje outro momento e, quando voltamos nosso olhar para o passado,

questionamentos surgem sobre estas pessoas, nos instigando a tentar respondê-los.

Não se trata apenas de buscar prevalências, sejam locais ou exteriores ao ambiente

da comunidade, mas conhecer possíveis variantes que intervieram nestes processos

migratórios de forma marcante e, porque não dizer, até certo ponto decisiva.

Nos anos de 1960 e 1970, assim como nos dias de hoje também, a decisão e

a ação de sair da terra natal para outra região é algo difícil. Mas ocorrem notáveis

diferenças, diria até que se antes havia a dificuldade de sobreviver em meio à

adversidade, hoje já se percebe certo pragmatismo no momento de decidir, porque

aparentemente uma hesitação inicial que pudesse haver dificilmente se apresenta

como obstáculo na atualidade. Dada à existência de certa “facilidade” para a

realização da ação de migrar. Hoje, ir ao estado de São Paulo, mesmo de regiões

mais afastadas das capitais, em especial do nordeste, em momento algum

representa fator de desestímulo devido a grande distância ou ainda por causa da

dificuldade em arranjar transporte.

No passado os obstáculos eram imensamente maiores, porque o

deslocamento era realizado em etapas demoradas. Nesse caso específico, os

moradores do Tapuio tinham que ir até o município de Paulistana, para de lá iniciar a

jornada rumo a São Paulo. Também era possível ir diretamente até Petrolina-PE e

de lá partir. Nos anos de 1950, fazer essa viagem significava gastar até mais de uma

semana para chegar ao destino, submetendo-se a condições precárias de

alimentação, dadas as dificuldades de ordem financeira bastante desfavorável.

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Ravenstein, pesquisador inglês no século XIX, ao estudar sobre o tema das

migrações, estabeleceu alguns pressupostos procurando formular uma explicação

que pudesse ter caráter universalizante. Um desses pressupostos diz respeito à

relação de proximidade entre o crescimento das forças capitalistas e os movimentos

migratórios. Na sua análise predomina ainda uma visão eminentemente

economicista. Esses pressupostos foram criticados, discutidos, rediscutidos e

contribuíram para a elaboração de outros aportes teóricos.

Uma valiosa contribuição ao debate realizado em torno dessas questões foi

dada por Lee, pois segundo Santos43et al (2010, p.11):

Ao definir a migração, Lee assinala que tal fenômeno sempre implicará a existência de um lugar de origem, um lugar de destino e uma série de obstáculos intervenientes. Qualquer lugar, na perspectiva do migrante, apresentaria fatores positivos (ou de pull), capazes de atrair os migrantes; negativos (ou de push), responsáveis pela expulsão de migrantes; e neutros.

Por um lado, há o apelo da grande metrópole atuando como chamariz, a partir

das perspectivas que cria ao atrair uma grande leva de migrantes para si, de certa

forma, seduzidos pela promessa de mudança radical quanto à melhoria das

condições de vida. Do outro lado, encontra-se a realidade dura e penosa do

Semiárido44 piauiense onde persistem condições históricas de pobreza e exclusão,

motivadas em parte pela ocorrência da seca, dentre outros fatores. É o que

contatamos, quando do registro das narrativas. O senhor Antonio Miguel dos Santos

nos fala sobre este momento da sua vida de forma bastante vívida:

43 SANTOS, Mauro Augusto dos et al. Migração:uma revisão sobre algumas das principais teorias.Disponível em:www.cedeplar.ufmg.br/pesquisas/td/TD%20398.pdf . Acesso em: 23/abril/2013. 44O conceito técnico de Semi-Árido é decorrente de uma norma da Constituição Brasileira de 1988, mais precisamente do seu Artigo 159, que institui o Fundo Constitucional de Financiamento do Nordeste (FNE). A norma constitucional manda aplicar no Semi-Árido, 50% dos recursos destinados ao Fundo. A Lei 7.827, de 27 de setembro de 1989, regulamentando a Constituição Federal, define como Semi-Árido a região inserida na área de atuação da Sudene, com precipitação pluviométrica média anual igual ou inferior a 800 mm. Segundo a última delimitação feita pelo Ministério da Integração Nacional, conforme Portaria Ministerial n. 89, de março de 2005, o Semi-Árido abrange 1.133municípios em uma área de 969.589,4 km2, correspondendo a quase 90% da área total do Nordeste mais a região setentrional de Minas Gerais. SILVA, Roberto Marinho Alves da.Entre o Combate a Seca e a Convivência com o Semi-Árido: políticas públicas e transição paradigmática. Disponível em: <http://www.bnb.gov.br/projwebren/exec/artigoRenPDF.aspx?cd_artigo_ren=1042>. Acesso em: 20/04/2013.

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Quando eu era adolescente, nesse tempo aí teve uma seca muito braba, passei muita fome, meu pai fazia feirinha e só dava pra nós comer até na quinta feira meio dia. Na quinta feira meio dia encerrava aquela comida, nós passava o resto da semana todinha, no bago da favela e no Embu...nós ia comer outra coisinha na segunda feira a noite quando ele chegava da feira,entendeu? (ANTONIO, 2011)

Esta imagem presente na memória de forma indelével mostra bem o grau de

dificuldades enfrentadas pelos moradores do Tapuio em períodos de secas muito

forte que acometeram e ainda acometem a região. A fome que aflige é algo vivo e

invocado pelas lembranças por assumir um caráter dramático, que beira aos limites

da sobrevivência. Isso está explícito quando o narrador faz referência ao consumo

da favela45, vegetal bastante disseminado no Nordeste brasileiro e também na

Região Sudeste do país. Embora, originalmente não seja a sua função, esta planta

se apresenta como alternativa de alimento nesse momento de escassez criado pela

seca. Pensar que o nordestino ao ser expulso do seu lugar de origem por uma

circunstância da natureza, o transforme em uma pessoa destemida não é um

pensamento incomum, a realidade é que em boa parte do tempo as condições já se

encontram no limite máximo, pois no dia a dia a as adversidades já são desafiadoras

e lhe dar com elas da melhor maneira possível, no intuito de superá-las, é parte

desse cotidiano.

Por outro lado, a fala de Senhor Antonio também expressa uma

autovalorização extrema quando ao falar destas adversidades todas faz questão de

ressaltar que não é invencionice quando diz: [...] tá meu irmão caçula aqui que não

me deixa de mentiroso, tá entendendo? (ANTONIO, 2011). Essa autovalorização

demonstra a superação das dificuldades extremas vivenciadas, trazendo à tona uma

constatação até certo ponto vitoriosa de que foi possível sobreviver a todo esse

processo. Para além do sentimento de vitória simplesmente, esta fala procura

demonstrar, acima de tudo, um sentimento de superação, a qual entra no imaginário

que constrói a ideia do nordestino como antes de tudo uma fortaleza inabalável. No

45 Planta espinhenta e extremamente resistente a seca. É uma planta arbórea, xerófila, lactescente, que possui pelos urticantes. Ocorre em todo o semiárido em regiões de caatinga que envolve áreas dos Estados do Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco, Alagoas, Sergipe, sudoeste do Piauí, partes do interior da Bahia e do norte de Minas Gerais. (vide): http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0100-736X2008000100006&script=sci_arttext – acesso em: 12/07/2013

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entanto, essa história contada não deixa de expressar profunda dramaticidade

quando se desce ao nível de detalhamento dos acontecimentos.

Ainda discutindo o tema da seca, no entanto, Gonçalves46 vai afirmar que:

A estiagem periódica no semi-árido brasileiro e a indústria da seca constituem outro nó que está na raiz das migrações. Porém, não podemos cair na ingenuidade de que a seca é fator predominante da saída em massa do Nordeste e de Minas Gerais. A seca apenas agrava uma situação fundiária já extremamente desigual. Mais que a seca, o que expulsa o nordestino é a cerca. Cerca que, como hoje sabemos, concentra não somente a terra, mas também a água. Podemos afirmar que a estiagem marca a hora da partida, mas a causa profunda do êxodo reside na estrutura fundiária já assinalada.

A despeito do que se fala da seca, ela é um fenômeno da natureza que ocorre

regularmente variando de intensidade. Para Duarte:

O problema das secas tem sido uma das grandes preocupações dos administradores e técnicos do país. Desde o império, o governo central vem procurando pôr em prática medidas políticas com o objetivo de reduzir os efeitos das secas na renda e no emprego regionais e, assim, dar estabilidade econômica à região. Criaram-se órgãos especializados para combater os efeitos do flagelo e promover o desenvolvimento econômico regional. A própria constituição de 1946 atribuiu à União o encargo de organizar a defesa permanente contra os efeitos das secas, destinando para esse fim 3% de renda tributária (DUARTE, 2002, p.33).

Os efeitos da seca contribuem para a dispersão de populações da Região

Nordeste para outras regiões devido a escassez de alimentos, a impossibilidade de

dar continuidade à atividade agrícola e de criação de animais e, por fim, a falta de

trabalho. E também, obviamente, a exaustão das reservas de água da superfície.

As suas causas são diversas e seus registros estão na literatura, na

historiografia e nos estudos sociais de uma maneira geral. Barr47 assinala que “o

nordeste está sujeito a secas periódicas [...] e que em vista dos conhecimentos

atuais sobre condições pluviométricas na região, essas secas periódicas podem ser

consideradas inevitáveis”. É interessante perceber que existe todo um arcabouço de

discussão teórica sobre a seca, que busca fundamentar inclusive as políticas

públicas de enfrentamento ao problema quando este acontece em anos de maior 46GONÇALVES, Alfredo José. Migrações internas: evoluções e desafios. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0103-40142001000300014&script=sci_arttext>. Acesso em: 05/6/2013. 47 BARR, George W. In. DUARTE, Renato. (org). A seca de 1958: uma avaliação pelo ETENE. Fortaleza: Banco do Nordeste; Recife:Fundação Joaquim Nabuco. 2002. (Série Estudos sobre as Secas no Nordeste; vol.01).

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gravidade. A face da seca mais perceptível para estes migrantes do Tapuio é

mesmo a fome quando esta seca vai se agravando cada vez mais.

Da exploração desse fenômeno natural pelo viés político e econômico decorre

a noção que ele se configura como um grande problema, quando na realidade, o

nordeste tem muitas outras problemáticas que requerem um olhar mais atento por

parte das autoridades estatais. A própria fome é uma dessas problemáticas, pois se

constata que, por mais escassa que seja a água, é a fome que atua de forma

perversa minando a permanência do indivíduo na sua comunidade e na região,

agravando uma situação já bastante disseminada e também conhecida como algo

endêmico a alguns estados nordestinos que é a desnutrição da população. Nesse

momento a persistência e a esperança de que o cenário possa mudar são postas à

prova. Eles, os moradores que migram, talvez não tenham uma noção exata, ainda

nesse período, de que nem mesmo a falta de água que é apontada como um

obstáculo à permanência na região representa os níveis de dificuldade que se

imagina existir, dada a ênfase que os meios de comunicação colocam nessa “falta”

do líquido.

A informação de que a água deixa de existir na região é correta quando se

processa uma estiagem muito profunda e de longa duração. Verdadeiramente, o

semiárido é um lugar em que a natureza dispõe de poucos recursos e soma-se a

isso o baixo índice de precipitações pluviométricas, bem como a sua variação

constante e a má distribuição ou distribuição irregular destes recursos hídricos. Além

disso, tem-se também uma taxa de evaporação elevada e altíssimas temperaturas.

Mas mesmo nesse cenário que se apresenta de natureza grave, sabe-se que não há

exatamente falta de água no semiárido, existe sim a baixa pluviosidade, mas

também e, sobretudo, o mau aproveitamento da pouca quantidade de água

existente, quando ela é própria para o consumo humano.

Há uma grande quantidade de água no subsolo e em alguns pontos desta

região, a água existente não é de boa qualidade porque contém alta quantidade de

minerais, tornando-a salobra e, desta forma, imprópria para o consumo diário das

pessoas. Em outros casos, poços semi artesianos e artesianos também, foram

cavados, mas tornaram-se sem utilidade quando não houve manutenção adequada,

incluindo a instalação e funcionamento correto das bombas de extração da água.

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Outro aspecto é que nesses períodos de seca prolongada, existem políticas

de assistência aos moradores e, em que pese seu caráter, para alguns,

assistencialista, imediatista e emergencial, as famílias recebem água por meio de

carros-pipa, mas ficam susceptíveis a escassez de alimentos, que também é

distribuído, mas não consegue beneficiar a todos.

Diante deste quadro que se apresenta, constatamos a necessidade de uma

reflexão acerca da construção de um imaginário sobre o semiárido e também sobre

a seca. Dizendo de outra forma, a questão é bem mais complexa do que parece e

Matos nos ajuda a entender melhor quando afirma que:

O fenômeno sócio-político da seca é construído a partir do fenômeno natural da estiagem, cuja ocorrência é periódica e cujos primeiros registros remontam ao início do desbravamento do sertão pelos portugueses. Assim, padres jesuítas como Antônio Pires, Serafim Leite e Fernão Cardim relataram secas nos anos de 1559, 1564, 1587 e 1592 (Menezes; Morais, 2002, p. 30). Contudo, Manuel Correia de Andrade (1986 apud Fischer; Albuquerque, 2002, p. 1) afirma ser de 1534 o primeiro relato de seca no Nordeste. Consoante Menezes e Morais (2002, pp. 30-49), a periodicidade da estiagem/seca é de 8 a 10 ocorrências por século, e pode prolongar-se por até 5 anos, atingindo toda a região do Polígono das Secas ou parte dela, e provocando uma escassez branda (seca relativa – distribuição inadequada das chuvas durante o ano) ou grave (seca absoluta – a precipitação pluviométrica não é suficiente para atender às necessidades mínimas da população, das lavouras e dos animais) de água (MATOS, 2012).

Assim, não basta ver estiagem e seca apenas como fenômenos da natureza,

mas também, como discursos que se constroem e reconstroem permanentemente,

definindo também as implicações sociais que recaem sobre a população da região.

As imagens construídas sobre o semiárido têm como base definições as mais

diversas, como por exemplo, terra de ninguém, de pobreza, de fome e miséria, e por

fim, de atraso. Estas servem para manter o status quo de certos grupos de pessoas

que exercem influência na política local e, consequentemente, na vida das pessoas

mais pobres.

Considerando todos esses aspectos, a partida com destino a cidade e ao

estado de São Paulo nos faz percebê-lo eminentemente como um lugar de atração

de pessoas. Uma evidente prosperidade econômica na época, em franco

crescimento, tornou-se um atrativo para uma leva significativa de migrantes que para

lá se deslocaram. Em contrapartida, a seca já mencionada, e parte recorrente nas

narrativas aqui presentes, sem dúvida alguma age como um fator de expulsão.

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Mas,é preciso ponderar que quando se fala de seca e de seus efeitos nesse

processo, devemos atentar para alguns detalhes que são importantes;há uma

discussão permanente sobre esse tema que redunda em grande quantidade de

escritos com abordagens diversificadas.

Nas variadas interpretações dadas aos estudos sobre a seca no Nordeste,

uma coisa deve ficar clara: não se devem atribuir somente a ela as mazelas pela

quais passam a população da região. Tendo em vista que como frisamos, essa

situação tem relação direta com a forma de ocupação do espaço;à subordinação da

população, na maioria dos casos, aos poderes locais; o aproveitamento dos recursos

naturais que sempre foi feito de forma incorreta, dando sinais de mudança só

recentemente. Para Silva,

[...] não se trata de, mais uma vez, atribuir à seca toda a culpa pelos baixos índices de desenvolvimento humano no Semi-Árido. As análises realizadas identificam a persistência das desigualdades sociais que está na base da reprodução secular das condições de miséria que fragilizam as famílias sertanejas, impedindo-as de resistir aos efeitos das estiagens prolongadas (SILVA, 2007, p. 471)48. .

Temos então a constatação de que a estiagem e a seca propriamente dita,

acabam tornando-se eventos complementares e influem diretamente na vida do

cidadão que mora na região do semiárido. Enquanto fenômeno da natureza é

perfeitamente previsível, demandando uma preparação para a sua ocorrência.

Mesmo na vigência da estiagem por determinado período no ano, é possível

assegurar, de forma mínima, a sobrevivência dos moradores da região,

administrando corretamente os recursos naturais existentes.

A estiagem torna-se problemática quando há o seu prolongamento

inesperado e por tempo maior que o previsto. Nesta situação ela vai exigir uma ação

emergencial, que geralmente deixa a desejar em termos de resolutividade, dada a

incapacidade de prever não o evento em si, mas por quanto tempo ele irá durar.

Nesse ínterim, arma-se o jogo de interesses entre as autoridades dos diferentes

níveis de governo; seja municipal, estadual e/ou mesmo federal.

48 SILVA. Roberto Marinho Alves da.Entre o Combate à Seca e a Convivência com o Semi-Árido: políticas públicas e transição paradigmática. Revista Econômica do Nordeste, Fortaleza, v. 38, nº 3, jul-set. 2007, p. 471. Disponível em: <http://www.bnb.gov.br/projwebren/exec/artigoRenPDF.aspx?cd_artigo_ren=1042>. Acesso em: 12/06/2013.

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Desta forma, ela passa a configurar-se como seca, numa acepção não

propriamente ao fenômeno climático, mas enquanto acontecimento histórico de

longa duração. Por isso mesmo, dizemos ser parte de um jogo que, por sua vez,

compõe a conjuntura secular que acomete a região em termos de permanência das

estruturas que sujeitam ao homem local a uma condição de miséria e abandono. E

que, assim também, vão perpetuando e aprofundando as desigualdades sociais. A

situação torna-se de certa maneira insustentável porque esse habitante do semiárido

já vive um estágio de pobreza dentro da estrutura existente e que se agrava ainda

mais quando os efeitos da seca refletem essa estrutura que passa pelos limites

climáticos da própria região; a baixa produtividade agrícola, a incapacidade de

desenvolver a atividade agropecuária de alto rendimento e a concentração de terras

nas mãos de grupos políticos locais.

Por tudo isso, a fala em particular de um dos entrevistados, me chamou

atenção, quando ao discorrer sobre o motivo da partida, atribuindo-a também de

certa forma à vigência da seca, teceu comentário sobre a que ocorreu nos

momentos que antecederam a sua partida, no ano de 1970. Senhor Inácio Gomes

dos Santos nos contou que:

É, aqui nessa época aqui a seca tava meio “braba” mesmo em sessenta e oito. Que aqui a gente fala numa seca de setenta, mas ela não chegou em janeiro de setenta, ela já vinha de sessenta e oito. Em setenta ela só deu continuidade né? Eu saí daqui na pior mesmo.Saí porque quando deu no mês de maio de setenta...de sessenta e oito, a gente não viu nada em que se escapasse aqui nessa época (INÁCIO, 2012).

Nos chama atenção esse comentário porque se refere a um evento específico

e demonstra convicção na afirmativa sobre o fato. Nos leva a questionar se a

vivência do acontecimento permite tecer comentário tão elaborado quanto à

cronologia que estabelece ou ainda, em que medida essa fala expressa um nível

mais profundo de apropriação das representações criadas sobre esse fato em si, a

seca de 1970, uma vez que nosso interlocutor ressalta que deixou a região no ano

de 1968. Obviamente, é perceptível que houve um acesso a informações sobre o

evento, posteriormente a ocorrência do mesmo. Ao mesmo tempo, se reconhece a

existência de uma vivência do nosso entrevistado, como alguém que é testemunha

do fato e sobre ele guarda lembranças que permitem tecer detalhes sobre o

ocorrido.

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Nesta circunstância, o fio condutor que nos ajuda a compreender o

comentário realizado, é a memória. Essa memória individual, que também vai sendo

forjada pelo coletivo, por todos aqueles que estão lá no quilombo Tapuio e que ajuda

nas construções identitárias e no sentimento de fazer “parte” daquela comunidade.

Mas, ela é também conflituosa porque representa um jogo de disputas. Tende a se

colocar, dependendo das questões em debate, como algo também contraditório,

porque envolve uma seletividade e tem relação estrita com a imaginação.

A memória apresenta-se como intrinsecamente ligada a uma multiplicidade de

tempos que se relacionam e se entrecruzam, onde passado e presente dialogam

com o intuito de atualizar uma experiência do vivido no tempo passado.

Dialeticamente, comporta estrita relação entre o agora e o antes.

As narrativas realizadas pelos nossos entrevistados expressam sua visão

particular de mundo, sua experiência vivida e também a representação que

constroem em torno desse vivido, oportunizando assim que seja possível

estabelecer um nexo explicativo para o conhecimento dessa realidade peculiar, onde

acontece a ação do sujeito em si.

A seca está presente nos relatos como fator que desencadeia a ação de sair

do quilombo, mas, dos nossos entrevistados, cada um conta acerca dessa

motivação de forma diferente, dando sua própria versão, ora com menos ou mais

dramaticidade, evidenciando traços comuns da narrativa, ainda que seja possível

perceber que a forma de contar a experiência tem um sentido bem definido. É o que

fica evidente na fala do Senhor Antonio, já reproduzida anteriormente. A

dramaticidade contida, de certa forma reproduz um imaginário em torno da figura do

homem nordestino, baseada na prevalência da masculinidade e para ele ali está

uma expressão de verdade. A sua fala destoa um pouco da que foi manifestada pelo

Senhor Inácio, embora o mesmo também tenha apontado a existência da seca como

razão para a sua saída do quilombo.

Em outra situação, conversamos com o senhor Sebastião Simplício dos

Santos, também um dos moradores que se aventurou a fazer o caminho para São

Paulo, indo e voltando diversas vezes, depois se fixando de vez no quilombo. A

explicação que ele nos dá para o fato de ter partido está na seguinte afirmação:

Uma das coisas foi pelas condições. Era bem mais difícil pra aquela “eras” de setenta, de oitenta porque hoje você vê que quem tá campo...é muito

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bom aqui no campo.A pessoa aqui no campo, você vê que é difícil ter uma família pra não ter ajuda do governo federal (SEBASTIÂO, 2011).

A fala de Sebastião revela alguns aspectos interessantes: o primeiro é que ele

faz uso da variável tempo para traçar padrão de comparação acerca da sua própria

situação de vida, enquanto morador do Tapuio. No tempo de antes, as “condições”

não eram favoráveis, ao passo que no tempo de agora, vive-se melhor, uma vez que

praticamente todas as famílias recebem um auxílio do governo. Esse “auxílio” é o

repasse do Programa Bolsa Família para as famílias da comunidade que estão

dentro dos critérios estabelecidos por esse programa e que por isso recebem valor

em dinheiro.

Curiosamente, para o Senhor Sebastião a sua aposentadoria e a dos demais

moradores também é caracterizada desta forma, como um “auxílio”. Chamo atenção

para esse fato porque, ele faz parte da diretoria do Sindicato dos Trabalhadores

Rurais de Queimada Nova, entidade que desenvolve um papel fundamental na

defesa dos interesses dos trabalhadores rurais da região e que, por isso mesmo

pauta essa sua ação na defesa do discurso da lei, de acordo com a legislação

trabalhista vigente. O comentário revela uma contradição entre quem defende o

direito para si e o direito para os outros trabalhadores, onde este se transforma em

“auxílio”.

Verdadeiramente, estes programas vêm se consolidando como política

pública, assegurando, assim, um direito que essa população possui de ter acesso ao

mínimo do básico para garantir a sua sobrevivência. Além do Programa Bolsa

Família há também outro, mais específico, que é o Programa Brasil Quilombola49.

Este programa envolve 11 ministérios do governo e destina investimentos em mais

de 14 programas temáticos que perpassam as ações desses ministérios. São

avanços consideráveis para quem, ao longo da história, vivencia cotidianamente um

processo de exclusão social. Uma relação direta com a realidade nordestina já

esboçada anteriormente.

Uma terceira razão que aparece relacionada à ação de migrar, presente nas

falas de alguns dos entrevistados nos leva a pensar sobre o grau de subjetividade

49 O Programa Brasil Quilombola foi lançado em 12 de março de 2004, com o objetivo de consolidar os marcos da política de Estado para as áreas quilombolas. Como seu desdobramento foi instituída a Agenda Social Quilombola (Decreto 6261/2007), que agrupa as ações voltadas às comunidades em várias áreas.Disponível em: http://www.seppir.gov.br/.arquivos/relatorio-pbq-2012. Acesso em: 05/04/2013.

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presente neste tipo de fonte – a oral. A princípio estas histórias, a que nos referimos

aqui, não fazem a alusão ao motivo da seca em particular e nem a questão da

pobreza, intrínseca a “falta de condições” já colocada. Vejamos o que diz o Senhor

Inácio Gomes dos Santos quando ele fala em influência:

[...] Influência de São Paulo. São Paulo era ou é uma terra muito boa, uma terra que tem muito trabalho, um lugar muito cheio de fantasia e aí aqui nesse meio mesmo é seguinte: a pessoa que intera dezoito anos e não conhece São Paulo não tá feliz né? (INÁCIO, 2012)

Da mesma forma essa fala vai ao encontro do que nos disse outro morador

do quilombo Tapuio, o Senhor Abrão Miguel dos Santos, que foi ainda mais enfático

quanto à sua decisão de sair do quilombo. Ele disse o seguinte:

[...] É, o que me levou a sair da comunidade é porque a gente tinha a influência de conhecer São Paulo né? A gente tinha aquela influência né, todos que iam:”Não.Lá é bom”. Até nessa época que eu fui, nessa era aí era bom de emprego né? Foi em 76,1976, né? Lá, você chegava, não tinha a exigência que tem hoje né? Você chegava e já era trabalhando né? (ABRAÃO MIGUEL, 2012)

Passo a reproduzir então outro depoimento que é emblemático a esse tipo de

explicação e tece detalhes acerca também da motivação que o influenciou a partir.

Dos nossos entrevistados, este foi o que passou mais tempo nesse tipo de

deslocamento. Foram, segundo ele 23 anos. É o Senhor Abraão Vicente dos

Santos. Ele nos contou o seguinte:

Eu fui pra lá assim... Primeiro porque na realidade é um sonho do...dos jovens daqui da região quando vai se aproximando dos dezoito anos, a querer ir pra São Paulo ganhar dinheiro. Né? Nem tanto pela...uns é pra conhecer a realidade, assim...a o lado bom, o lado bonito...que na verdade eles sonham,mas na verdade por trás da fantasia tem muitas coisas que não agradam (ABRAÃO VICENTE,2012).

A subjetividade contida nessas falas se verifica na atribuição de uma decisão

importante na vontade, desejo, curiosidade e também no sentimento de liberdade.

Assim, percebemos a liberdade nesse contexto, como algo também simbólico, que

assume diferentes significados. Pode ser um libertar-se da região, do lugar, de uma

condição de vida desfavorável e até mesmo libertar-se da autoridade familiar. Pode

vir a ser também uma libertação do espírito expressa no desejo de poder ver coisas

novas e diferentes, sobretudo os “encantos” da cidade grande que personifica

radicalmente essa ideia do “novo”. Desta forma, Lucena assinala que:

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A cidade desconhecida conduz o novo morador a enfrentar as lutas do cotidiano por moradia e por empregos. A migração, entendida como aventura, expectativa onde mesclam-se desejos e medos, exige do trabalhador muita coragem para enfrentar o desafio (LUCENA, 1999, p. 56).

Por outro lado, estas falas evidenciam com extrema profundidade a

importância da coletividade: a família, a comunidade e a rede familiar que amparam

o migrante ao chegar à grande cidade. Diríamos que a família se constitui como

base das ações porque, embora o indivíduo empreenda a migração sozinho, ele o

faz também motivado pelo sentimento em relação à família. Alguns dos nossos

entrevistados deixaram a comunidade sozinhos, mas, logo em seguida, casaram e

passaram a constituir a sua própria família, o que elevou a necessidade também de

ir em busca da melhoria de vida.

Essa dimensão do coletivo presente, além dos depoimentos de pessoas

diferentes que expressam semelhanças nas suas falas, nos trouxe um entendimento

que se materializa da seguinte forma: primeiro, o sujeito já nasce dentro de uma

realidade que é exterior a si, onde todo o aparato cultural que o grupo ao qual

pertence, vai sendo construído e reconstruído permanentemente de geração para

geração. Assim, todo o grupo vai reelaborando a sua memória.

A pesquisa que se fundamenta na oralidade dá origem segundo Lucena a,

Narrativas em que se mesclam relatos da vida individual e do grupo. Desse modo, pode-se dizer que “a verdade pessoal possa coincidir com a “imaginação compartilhada”. As fontes orais contam não apenas o que o migrante fez, “mas o que queria fazer, o que acredita estar fazendo e o que agora pensa que fez”. A memória social dos eventos do passado não é mais do que a “imaginação compartilhada” do acontecido (LUCENA, 1999, p. 26).

Temos, então, uma experiência de memória compartilhada que vai sendo

difundida ao longo das variadas temporalidades que compõem o transcurso da vida

das pessoas da comunidade. A memória está presente desde antes, no tempo

anterior ao nascimento e passa a fazer parte da vida do sujeito nos diferentes

estágios que ela irá percorrer. Continuando a ser transmitida ao longo das gerações

que virão, isso fica patente quando analisamos um depoimento que nos foi dado por

um dos moradores que esteve em São Paulo em um tempo mais recente,

diferentemente dos demais, nos anos de 1990.

Outra particularidade em relação a esse morador é que ele também é o mais

jovem dos nossos entrevistados com 36 anos de idade e seu nome é José

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Sebastião dos Santos. As suas experiências encontram-se no mesmo nível das

demais, só que em outro tempo e é claro, refletem não só sua decisão, mas também

uma escolha que se apresenta de forma contraditória. Ele nos respondeu que foi

para São Paulo da seguinte forma:

A minha motivação foi na época...em 95,eu ainda muito jovem tava com uns 18 anos...sempre a conversa aqui tudo...todos...o sonho era ir pra São Paulo né? A gente achava que naquela época a gente não podia conseguir arrumar um meio de construir a vida por aqui...tinha que ser São Paulo e como aqueles outros “ia”, a gente naquela influência teria que ir também. Mas o que me influenciou mais foi que nessa época com 18 anos eu arrumei família né? (JOSÉ, 2012)

Em seguida, emendou que o fato de morar com o sogro foi também fator de

motivação em busca de melhoria, pois segundo ele, a forma como as relações

aconteciam dentro da casa da família lhe desagradavam, sobretudo, por sentir certa

influência das regras desta casa sobre a sua filha. Alega que pensou no nível de

educação que teria que prover e não gostava do choque de autoridade que havia

entre ele e “outras pessoas” no trato com a sua filha.

Essa explicação destoa bastante das demais, mas o lapso de tempo entre os

dois momentos também é considerável. José vive hoje em um Tapuio bem diferente

daquele dos anos de 1970. Um Tapuio que reivindica o status de quilombo a partir

da construção de uma identidade; onde as coisas avançaram bastante e a

organização da comunidade se manifesta no discurso político e na articulação

construída nacionalmente com as entidades de defesa de direito das populações

quilombolas e também com outras comunidades.

A contradição expressa na fala de José reside no fato de que ele nos revelou

que o quilombo Tapuio não estava passando por dificuldades tão grandes nesse

período. Ele, inclusive, se quisesse ter ficado, receberia pleno apoio do avô para

construir uma casa, por exemplo. Por fim, revela que agiu mais por impulso, pois não

avaliou e nem ponderou nada sobre a viagem, apenas decidiu ir e foi.

A despeito de tudo que foi dito, não podemos esquecer que a narrativa

histórica se apresenta em uma intrínseca relação com memória e por extensão com

a imaginação. Assim, emergem as subjetividades que se tornam elementos

importantes na análise, por se constituírem partindo não só do que revela a

expressão da oralidade, mas também das ausências, das palavras caladas, daquilo

que não foi dito. A fala de José personifica todas essas nuances que estão

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presentes no discurso oral e que por isso mesmo exigem sensibilidade aguçada no

seu trato interpretativo.

Migrar, como vimos, adquire inúmeros significados, representando para

alguns, a busca de uma vida melhor, a curiosidade em conhecer determinado lugar,

a materialização de um desejo incontido de liberdade ou reprodução de um

imaginário coletivo. Se tomarmos como base explicativa a necessidade material

imediata, certamente ficaremos presosà dicotomia expulsão/atração que se

apresenta na relação campo e cidade, tornando o migrante refém dessa dicotomia,

sendo incapaz, portanto, de decidir sobre seu destino ou agindo de forma passiva

frente a uma espécie de processo determinista da realidade onde se insere.

Há uma linha de estudos que estabelece as migrações não somente como

ação que procura modificar um estágio de pobreza a partir da busca de melhores

condições de vida por meio do empreendimento da ação de abandonar uma

realidade, por outra, bem diferente como é caso da rural e a do mundo do urbano da

cidade. Compreende estes estudos que a migração é, antes de tudo, uma estratégia

de reprodução familiar. Ainda bastante voltados à figura do camponês, onde se

apresentam diversas pesquisas sobre o tema, este tipo de explicação, na medida em

que proporciona uma característica específica, pode ser também objeto de análise

do processo migratório dos quilombolas do Tapuio.

Apoia-se na ideia de que a saída do indivíduo do meio em que vive assegura

a reprodução social desse grupo, na medida em que parte dos recursos financeiros

adquiridos por força do trabalho na cidade grande passa a ser remetido para os

familiares e parentes em geral que permanecem no local de origem. Foi possível

verificar um pouco isso na fala de alguns dos nossos entrevistados, quando nos

contaram terem conseguido construir uma casa, mobiliar e outras coisas contidas na

expressão [...] “o que eu tenho hoje, graças a Deus, foi arrumado tudo aqui mesmo”.

(ABRAÃO VICENTE, 2012). Porém, não houve referência a compra de terras ou

algo mais valioso e, nem tampouco, essas falas são a regra em termos de

conquistas materiais. Na verdade, outro entrevistado, nos revelou que de fato

ganhou muito dinheiro trabalhando em São Paulo, mas que esse dinheiro

permaneceu lá, numa alusão aos gastos efetuados com festas, bebidas e outros

tipos de diversão:

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Da primeira vez que eu fui pra São Paulo que muito dinheiro eu peguei...peguei, mas não soube aproveitar o dinheiro que eu ganhei lá... não soube aproveitar.Esse dinheiro eu deixei todinho sabe onde? No salão. Trabalhava diretamente e quando recebia o dinheiro todo final de semana eu tava no salão...gastando na vaidade entendeu? (ANTONIO, 2012)

O Senhor Antonio confirmou que nessa primeira vez que foi a São Paulo ainda

era solteiro, tendo depois retornado à comunidade e se casado. Assegura que às

vezes que posteriormente retornou a cidade, não ganhou metade do que teria ganho

nesse primeiro momento e que, segundo ele,jogou todo fora. Com relação à

expressão “muito dinheiro” é preciso que seja relativizado, uma vez que o trabalho

realizado por ele era na construção civil como operário. Cremos que a ênfase está

na ideia de que a média salarial que ganhava em São Paulo estava muito acima dos

seus ganhos quando, segundo nos informou, chegou a prestar serviço nas

chamadas frentes de emergência criadas pelo governo federal para amenizar os

efeitos da seca no nordeste.

Desta forma, pensamos que no caso do Tapuio a estratégia de reprodução

social da família e dos migrantes se estabelece com a perspectiva do envio de

recursos financeiros para os familiares subsistirem e até mesmo investirem em

alguma melhoria na pequena propriedade, bem como na construção da rede

familiar. É ela que ajuda na consolidação de um maior fortalecimento do grupo. Essa

é mais uma face da importância do grupo e da família, pois são eles, que estão na

retaguarda dando suporte aos que chegam à grande metrópole. Sobre rede,

Menezes assinala que:

A noção de redes sociais envolvendo formas de ajuda mútua, solidariedade, amizade, reciprocidade entre familiares, amigos e vizinhos, tem-se revelado uma ferramenta metodológica importante para compreender o fluxo de pessoas, objetos, informações e símbolos entre diversos espaços sociais em tempos diferenciados, bem como formas de organização de determinados grupos sociais (MENEZES, 2009, p. 284)50.

Percebemos a família como elemento balizador das ações de cada sujeito

migrante, ora de maneira menos enfática talvez, mas ainda assim permanente. Na

saída, no retorno, no apoio, no processo, enfim, em todos os momentos a família

50C.f. MENEZES, Marilda Aparecida de. Migrações: uma Experiência Histórica do Campesinato do Nordeste. cap. 10, p. 284 in: Diversidade do campesinato: expressões e categorias, v.2: estratégias de reprodução social/ EmiliaPietrafesa de Godoi, Marilda Aparecida de Menezes, Rosa Acevedo Marin (orgs.) – São Paulo: Era UNESP; Brasília, DF: Núcleo de Estudos Agrários e Desenvolvimento Rural, 2009.

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está presente. Até mesmo nas distensões que acontecem e que também fazem

parte dessas relações, afinal, ela também não se exime das contradições que

permeiam todas as relações sociais.

2.2. O retorno para o Tapuio e seus desdobramentos

Desde o início, essa questão do retorno de migrantes ao lugar de origem se

apresenta como elemento norteador da pesquisa, algo que nos instiga a um

exercício de análise mais apurada e que diz respeito à trajetória de vida dos

moradores do quilombo Tapuio que foram assumindo uma condição de migrante. Eis

a questão então: partir do quilombo implica necessariamente um percurso contrário?

Existem deslocamentos que se configuram como saída permanente, sem volta, mas

nesse caso do Tapuio, e no geral, sair engloba sempre uma perspectiva de voltar.

Os nossos entrevistados que voltaram ao quilombo, fixando-se

definitivamente, são unânimes ao responder essa questão. Já dentro da realidade

atual e por mais que tenham passado um tempo longo, ou se deslocado várias

vezes, afirmam que voltaram quando tinham que voltar, no tempo certo e que sendo

possível teriam retornado até antes. Acontece que retornar ao lugar de origem

envolve uma série de questões que objetivamos conhecer e evidenciar nesse caso

específico. A complexidade dessa ação é manifestada de várias maneiras. Uma

delas é trazida à tona por Rocha quando nos diz que:

A categoria de migração de retorno fundamenta-se na ideia de um ponto de origem e um de retorno. Porém, o próprio migrante não identifica sua volta como retorno. O migrante não abandona a origem para se integrar no destino, ao contrário, a migração representa um ponto de contato permanente entre os dois locais (ROCHA, 2012).

Isso foi o que aconteceu no Tapuio entre idas e voltas vão sendo mantidos os

vínculos com o lugar e a gente desse lugar. Quanto ao retorno propriamente dito,

manifestam-se as questões materiais, enquanto motivação, mas também questões

de outras naturezas. Inclusive a segurança da própria decisão de retornar é algo

importante. Desta forma, quando propomos aqui tratar das trajetórias e experiências

de vida relacionadas ao retorno dos moradores migrantes do quilombo Tapuio,

compreendemos o quanto se faz necessário ainda mais ouvir suas vozes

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atentamente. Uma rápida caracterização nos mostra que a migração que

empreenderam foi do tipo inter-regional e de caráter temporário, tendo como base o

próprio retorno empreendido por estes moradores. Porém, devemos considerar que

essa tipologia não é definitiva, engloba outras. Afinal, quando alguns estiveram indo

e voltando, a migração era do tipo circular.

Dos nossos entrevistados, praticamente todos foram mais de uma vez à

capital paulista. A motivação financeira está presente quando se verifica no

imaginário local a ideia de partir para trabalhar, juntar algum dinheiro e retornar para

o local de origem. Essa característica é verificada nas migrações do tipo temporária.

Mas, o desejo de voltar vai além desse aspecto porque traz consigo outros

elementos que tocam fundo a alma dos migrantes. Segundo Garcia e Miranda-

Ribeiro:

O retorno ao local de nascimento é um sonho do migrante. Ligado a uma noção de espaço, grupo e tempo, o migrante refugia-se na nostalgia, na saudade da terra, das pessoas, ou dele próprio, tal qual existiam – de fato ou no imaginário – antes do momento da partida. [...] o retorno do migrante ao local de nascimento remete, necessariamente, à sua saída, em um momento anterior. Falar de retorno é falar de ida e volta, origem e destino, fluxo e contrafluxo (GARCIA; MIRANDA-RIBEIRO, 2005).

É preciso ressaltar que se as migrações, no geral, ainda carecem de estudos

mais sistemáticos, a migração de retorno exige isso mais ainda, dada a realidade

histórica em que estas ações têm acontecido, se manifestando como status de

fenômeno recente. Algumas pesquisas mostram que se houve um grande

deslocamento de populações da Região Nordeste nos anos de 1960 e 1970 para o

Sudeste e demais regiões do país, num grande deslocamento de natureza rural/

urbano que transformou a região em “exportadora” de mão de obra, este cenário

passa a mudar a partir dos anos de 1980, se estendendo pelos anos de 1990.

Nesse período, os fluxos de deslocamentos do Nordeste para o Sudeste

passam a diminuir bastante e a explicação para isso está também na motivação e na

própria mudança da realidade: o que antes se colocava como possibilidade de

melhoria da situação de vida, passa a não mais exercer esse papel. A outrora

riqueza que existia no Sudeste, vai se esvaindo na medida em que crises na

economia passam a ocorrer de forma sucessiva, reduzindo, assim, a oferta de

postos de trabalho. Por sua vez, ao contrário, o Nordeste começa apresentar sinais

visíveis de crescimento econômico, que acenam para uma nova perspectiva de

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desenvolvimento para a economia da região. Alguns números ajudam a

compreender melhor esse cenário do retorno. Para Garcia; Miranda-Ribeiro:

Baeninger (1999) aponta que, no período 1981-1991, cerca de 45% dos movimentos emigratórios do Estado de São Paulo foram constituídos por migrantes que estavam retornando à Unidade da Federação de nascimento. Para a região Nordeste, 62,7% dos emigrantes de São Paulo eram retornados; [...] (GARCIA; MIRANDA-RIBEIRO, 2005, p. 159-175)51.

Ainda que o retorno de migrantes para o Nordeste tenha se intensificado na

década de 1980, acreditamos que na década anterior já ocorresse uma tendência

para essa volta. Isso porque as falas de alguns entrevistados demonstram

justamente essa mudança na situação econômica da região Sudeste, ou seja, se

houve um período de pleno emprego, com o tempo foi aumentando o grau de

dificuldade para arrumar trabalho em São Paulo. Nas palavras de Senhor Inácio:

É muita dificuldade. Lá naquela não era muito bom. A gente é que saia daqui pensando que chegando lá ia encontrar muita facilidade mas não era muito fácil não.A chegada lá...já deu dificuldade pra você chegar.E arrumar emprego também não foi fácil não (INÁCIO, 2012).

Voltar para o quilombo Tapuio definitivamente nos leva a pensar que a

motivação tenha sido bastante forte, uma vez que significa abandonar sonhos e

possibilidades de mudança social. Percebemos que as razões que levam o indivíduo

a voltar, nesse caso específico, não podem ser atribuídas apenas à perda do

emprego, a incapacidade de se manter no grande centro. Nem tampouco pode ser

expressa na ideia geral de sucesso ou fracasso, enquanto sentimento absoluto.

Diríamos que há uma conjunção de fatores, que vão desde a dificuldade em arrumar

emprego, passando pela saudade da família e a percepção de se sentir

discriminado.

Isso foi o que aconteceu com o Senhor José nos anos de 1990. Ele relata que

“nunca acostumou com São Paulo”. Essa expressão significa em suas palavras, que

havia uma restrição quanto ao fato de ser nordestino:

51 GARCIA; MIRANDA-RIBEIRO,Ricardo Alexandrino e Adriana de. Movimentos migratórios em Minas Gerais: efeitos diretos e indiretos da migração de retorno -1970-1980, 1981-1991 e 1990 - 2000. R. bras. Est. Pop., São Paulo, v. 22, n. 1, p. 159-175, jan./jun. 2005. Disponível em: http://www.abep.nepo.unicamp.br/docs/rev_inf/vol22_n1_2005/vol22_n1_2005_10artigo_p159a176.pdf> Acesso em: 02/05/2013.

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Eu nunca acostumei com São Paulo, principalmente que o nordestino em São Paulo ele não é...não é...valorizado né?.Eu nunca fui aquele tipo de pessoa de achar que alguém é mais do que eu por mais conhecimento de vida que ele tenha, mas que alguém é melhor, era mais do que eu, mais importante...sempre eu tava vendo aquilo (JOSÉ, 2012).

Ao acessar a memória e trazer à tona esta informação, José está fazendo um

mergulho rumo a este passado que o desagrada e que lhe traz estranheza e, até

mesmo, uma ponta de ressentimento, uma vez que o sentimento dos outros para

consigo, e o tratamento que recebeu em certos momentos, o fizeram refletir sobre o

ser nordestino em São Paulo, concluindo que quando algumas pessoas

perguntavam sobre seu local de origem e após informar, estas passavam a tratá-lo

com desdém, no seu íntimo acabava sentir-se “menos gente”.

Tal questão passa a ser uma discussão no campo da identidade ou das

múltiplas identidades que nós assumimos em diferentes momentos da vida. Mesmo

que o migrante não expresse uma identidade de migrante, ainda que o seja, ao

deixar seu lugar de origem e vivenciar novas experiências, esse migrante passa a

reconstruir sua identidade, inclusive como estratégia de adaptação ao novo

ambiente e a nova comunidade. José é nordestino, mas só percebe o quanto isso o

identifica no momento em que entende, a partir da realidade onde passa a se inserir,

que nordestino é considerado uma pessoa inferior. Sujeito, nesse caso específico, a

práticas discriminatórias de origem. Algo que para ele torna-se inaceitável.

Isso nos leva a uma segunda questão a esse respeito. Falamos aqui de um

quilombo, o do Tapuio. Tradicionalmente, pelas suas origens, os quilombolas se

reconhecem como tal ao compartilhar uma identidade comum de quilombolas. Este

sentimento de pertença a um grupo e/ou a um agrupamento familiar comum, a uma

terra, é também uma forma de expressão da identidade étnica e da territorialidade,

construídas sempre em relação aos outros grupos com os quais os quilombolas se

confrontam e se relacionam. Como asseveram: Schmitt, Manzoli; Turatti e

Carvalho52:

[...] parentesco e território, juntos, constituem identidade, na medida em que os indivíduos estão estruturalmente localizados a partir de sua pertença a grupos familiares que se relacionam a lugares dentro de um território maior. Se, por um lado, temos território constituindo identidade de uma forma

52 SCHMITT, Alessandra; TURATTI, Maria Cecília Manzoli; CARVALHO, Maria Celina Pereira de. A atualização do conceito de quilombo: identidade e território nas definições Teóricas. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/asoc/n10/16889.pdf>. Acesso em: 22/09/2013.

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bastante estrutural, apoiando-se em estruturas de parentesco, podemos ver que território também constitui identidade de uma forma bastante fluída, levando em conta a concepção de F. Barth (1976) de flexibilidade dos grupos étnicos e, sobretudo, a ideia de que um grupo, confrontado por uma situação histórica peculiar, realça determinados traços culturais que julga relevantes em tal ocasião. É o caso da identidade quilombola, construída a partir da necessidade de lutar pela terra ao longo das últimas duas décadas.

Nossos entrevistados se expressam de maneira um tanto difusa quanto a

isso. Nem todos têm uma opinião que permita afirmar a consciência de uma

identidade quilombola e nem tampouco, que se apoie em um status de negritude

que se manifesta. Entretanto, suas falas demonstram que estando em São Paulo

foram confrontados com uma identidade de nordestinos. Verifiquei que dos

entrevistados, o senhor Abraão Miguel dos Santos, foi o único a articular um

discurso mais direto sobre o ser quilombola com base na ideia de origem negra

quando disse que:

Ser quilombola eu vejo que é uma parte muito boa, porque é nossa origem né?E depois do governo do presidente Lula, que vários presidente entrou que a gente a já tinha essa origem, mas eles nunca resgatava essa história e depois dele né? nós tivemos acesso a ser resgatado né?...a comunidade quilombola né? E hoje a gente ver muitas pessoas que tem vontade de ser do quilombo né? (ABRAÃO MIGUEL, 2012).

Essa é uma clara alusão às políticas voltadas para a população quilombola

implementadas no governo de Luís Inácio Lula da Silva, (2003 a 2010) mas também

a esse momento de “transição” colocado pela emergência do decreto 4887/200353

em que a comunidade se vê diante da oportunidade de reafirmar uma identidade

que aos poucos já estava em processo de construção. Essa é uma transição que vai

se processando, ou seja, de comunidade rural o Tapuio vai aos poucos construindo

uma identidade de território de remanescente de quilombo. E, o citado decreto

corrobora com isso, na medida em que prevê que uma comunidade pode ser

reconhecida como quilombola a partir da sua própria autodefinição enquanto tal.

Não queremos necessariamente atrelar uma coisa à outra, afinal, não há uma

relação tão mecanicista. Os quilombos são realidades históricas e o que ocorre

agora é o seu reconhecimento como sujeito de uma política pública, por meio de

53 Decreto nº 4887 de 20 de novembro de 2003. Regulamenta o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos de que trata o art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2003/d4887.htm>. Acesso em: 30/05/2013

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outra perspectiva de reconhecimento que não meramente a histórica, contida em um

tempo passado. Dos nossos 06 (seis) entrevistados para essa pesquisa, embora não

expressem claramente uma identificação com o ser quilombola nas suas falas, eles

entendem a importância de ser quilombola e especificamente do território e

agrupamento familiar que forma o quilombo Tapuio. Reconhecem o quanto isso

agrega em termos de valor para a comunidade e para o reconhecimento por parte

do poder público.

As muitas questões que se apresentam nesta análise apontam para caminhos

diversos, no entanto, também podemos estabelecer relações estreitas entre alguns

desses caminhos. A migração é uma ação que, acontecendo, desencadeia

possibilidades de investigação, ainda que as fontes de estudo sobre o tema nos

apresentem dúvidas em profusão.

Os quilombolas do Tapuio protagonizam histórias de sonho e esperança e

ainda que se afastem da sua morada é lá que ao retornarem se reencontram com

suas origens, suas histórias e suas memórias.

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CAPÍTULO 3

MEMÓRIAS DE TEMPOS VIVIDOS

Alguns dos moradores do quilombo Tapuio assumiram a condição de

migrantes e um dia saíram de seu lugar, sua comunidade, motivados por inúmeras

razões. Apesar dos inúmeros obstáculos mencionados em seus depoimentos, os

participantes desta pesquisa, também perceberam que sair do quilombo e trilhar

novos caminhos, de certa forma os ajudou a construir histórias de coragem e

superação. Ao final, constataram que nem todos os seus variados desejos e

esperanças foram alcançados. Ainda assim, viram algo se materializar à sua frente:

a experiência vivida que ora podem contar a quem quiser saber, sobretudo, a seus

filhos e netos, definindo um registro de vida.

Abrimos um parêntese para pensar a noção de experiência no sentido do

vivido, a partir do pensamento de Bondía (2002, p. 21), pois para este autor o termo

se define adquirindo significado próprio expresso na ideia de que:

[...] a experiência é o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca. Não o que se passa, não o que acontece, ou o que toca. A cada dia se passam muitas coisas, porém, ao mesmo tempo, quase nada nos acontece.

Podemos afirmar que tão somente a definição de experiência apontada por

Bondía é bastante reducionista para dar conta de tão ricas vivências experimentadas

pelos sujeitos em questão, pois as experiências vividas a partir dos deslocamentos

da migração é também parte importante deles e, os acompanha no lugar de origem.

Essas idas e vindas deixaram marcas, que se constitui em aprendizados

importantes, assim como os percursos realizados e a própria volta ao lugar, ou a

cidade grande. Isto reflete nas relações construídas durante as vivências nos

diferentes lugares.

Porque eu vi Cláudio que a gente passou...olhe o sofrimento da terceira vez que eu voltei pra São Paulo que eu passei até fome lá..isso..olha pra sofrer a gente sofre na sua terra entendeu...aí sair daqui pra ir passar fome na terra dos outros que nem digo....aí Cláudio eu disse:”O que? Eu vou voltar pra casa porque eu não sei como vai ser daqui pra frente.Quando eu arrumei o dinheiro da passagem eu voltei pra cá e digo com certeza..deus...deus é quem sabe,mas eu pretendo ir a São Paulo assim a passeio ...se um ida eu tiver condições,mas sair daqui pra ir derramar

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suor...não. [...] é verdade...é....é...é que nem diz o ditado deus fez o mundo e o mundo é grande,e o mundo ensina a gente. Ensina, mas a gente também tem que fazer por onde também né? (ANTONIO MIGUEL DOS SANTOS, 2012)

Chamamos aqui de experiências, o que foi experimentado pelo migrante de

bom e de ruim também. Como afirma Antonio Miguel, isso que o mundo ensinou,

quer seja por meio dos sofrimentos ou dos sorrisos. “o mundo é grande, e o mundo

ensina a gente. Ensina, mas a gente também tem que fazer por onde também né?”

Esses ensinamentos dizem respeito, portanto, aos lugares, pessoas e

situações diversas presentes dentro do cotidiano e das circunstâncias que se

apresentaram na vida de cada um dos migrantes. Estão impressas em suas

memórias e aos saltos se anunciam para compor a linha que costura suas histórias.

O que nos foi revelado é aquilo que cada um viveu e foi marcante, que consta

no seu percurso de vida, e ainda que exponha tristezas, alegrias, decepções e

frustrações, estão lá registradas, tornando-se importante ao possibilitarem que sejam

rememoradas quando necessárias. São acionadas pela memória e podem até

obedecer a uma escala, visto que a memória, já frisado anteriormente, é seletiva.

Reveladas a nós, passam a fazer parte também das nossas memórias uma

vez que dialogam com momentos de presença e de encontro realizado no passado

com a comunidade e seus moradores, onde pudemos confrontar as nossas

expectativas e imagens criadas sobre as pessoas e o lugar, elaborando assim, uma

forma particular de ver essas pessoas que nos é peculiar e que não

necessariamente encontrou correspondência na realidade estudada. Como

Assevera Thompson54:

A história oral é uma história construída em torno de pessoas. Ela lança a vida para dentro da própria história e isso alarga seu campo de ação. Admite heróis não só dentre os líderes, mas dentre a maioria desconhecida do povo. Estimula professores e alunos a serem companheiros de trabalho. Traz a história para dentro da comunidade e extrai a história de dentro da comunidade (THOMPSON, 1992, p. 44).

O que para nós é motivo de certa satisfação, dadas às possibilidades que se

apresentam quando nos propomos tentar compreender a atitude de cada uma 54 THOMPSON, Paul. A Voz do Passado: história oral. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.

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104

dessas pessoas, procurando obter uma explicação que seja coerente com o cenário

que se apresenta e sem pretensões de expressar a verdade em caráter absoluto.

As viagens foram o começo de tudo, agindo como ponto de conexão,

passando a ser também o caminho por onde foi acontecendo as experiências vividas

pelos moradores do Tapuio, trazendo desta forma um rico repertório de informações

que demandam uma análise criteriosa para a captação do sentido que vão

adquirindo ao longo da travessia entre os espaços do rural e do urbano, bem como

das relações que se estabelecem entre migrantes, suas famílias e demais pessoas.

Verdadeiramente, todas as ações e vivências encontram-se interligadas de

alguma forma. Sair e voltar, as relações entre o rural e o urbano, as variadas

dimensões que a família adquire “aqui” e “lá” e as descobertas realizadas em torno

de si mesma ocorridas em situações limites que terminam por colocar frente a frente

à percepção da diferença ancorada em diversas ocasiões que fazem emergir o “eu”

e o “outro”.

A interligação entre lugares e situações acontece por intermédio do próprio

sujeito, ao ser confrontado pelas experiências que protagoniza. Em alguns

momentos ele adquire sensibilidade para compreender o que acontece de fato ao

seu redor, onde está, em algumas outras situações, porém permanece alheio ao que

se desenrola. Isso não quer dizer necessariamente ingenuidade. Estes homens do

Tapuio demonstraram rápida capacidade de adaptação ao novo cenário, porém, é

natural que à medida que o tempo vai passando, esta capacidade pode ser

demonstrada em maior ou menor intensidade.

Um fator descrito para essa dificuldade passa por algo até certo ponto

singelo, ignorado em certa medida, mas que tem repercussão quando se está na

Região Sudeste. A mudança de temperatura, especificamente quando da chegada

do frio intenso. Em São Paulo o inverno se configura como uma estação que ocorre

entre os meses de junho, julho e agosto onde na capital as temperaturas oscilam em

média entre 11ºC e 12 ºC, chegando a temperaturas bem mais baixas em regiões de

serra. Essa é uma mudança bem acentuada, uma vez que na região do semiárido

piauiense, as temperaturas são bastante elevadas em um clima quente e seco.

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105

A temperatura, portanto, é mais um desses encontros que aconteceram e que

registraram sua marca na memória dos migrantes. Assim como também ocorre com

a cidade evidentemente de maneira mais profunda, visto que a cidade não é só seu

clima, representa o lugar, não só diferente do deles, mas radicalmente o oposto

porque traz em si todas as promessas de mudanças e conquistas almejadas para

uma transformação de vida individual e coletiva. Chegar à cidade para o migrante o

leva a acreditar que metade dos seus problemas já está resolvido, especialmente

para quem vai pela primeira vez.

A atração e o fascínio que ela exerce sobre o sujeito que para lá se desloca,

implica às vezes em nem pensar e fazer um juízo de valor sobre a real necessidade

desse deslocamento. Embora, por outro lado, os nossos entrevistados contem com

um auxílio no local de destino. Ou seja, por mais que haja um impulso, existe uma

retaguarda que garante minimamente uma estadia ainda que por pouco tempo, até

que a pessoa possa ir criando uma autonomia que aos poucos vá levando à

superação das dificuldades iniciais, garantindo principalmente o seu sustento e

depois conseguir um lugar para morar.

Há um fio que vai conectando estas experiências e registrando nas memórias

de cada um ao seu modo e originando uma forma de contar cada episódio do vivido.

Mas transitar entre diversos espaços e diferentes convívios é parte da jornada que

os migrantes empreendem. Essa percepção nos leva a uma indagação referente a

estas experiências: como se expressam estes registros? Eles se constituem como

aprendizado? Como estão registradas estas experiências na memória dos

entrevistados?

É este nosso caminho, observando desdobramentos que estão imersos em

memórias que se encontram fragmentadas, mas que compõem o todo vivido por

cada um entrevistado do quilombo Tapuio.

3.1 Vivendo e vivenciando a cidade

Houve constantes fluxos migratórios e em diferentes momentos que levaram

muitos nordestinos para os grandes centros urbanos das Regiões Sul e Sudeste,

possibilitando um encontro inesquecível com a cidade dando início à construção de

representações sobre esse lugar. Observamos, porém, que esta já é uma segunda

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106

forma de representar, uma vez que a primeira se dá ainda no seu local de origem. É

isso que acontece no quilombo Tapuio, pois antes de partir, aqueles que o fazem

pela primeira vez, tem na memória uma imagem que foi sendo construída a partir

dos relatos de outros moradores que anteriormente migraram para o centro urbano.

Via de regra, os relatos apontam para uma visão positiva, o que é de se esperar,

uma vez que esta, sempre vem imbuída de grandes expectativas e ajuda nas

motivações de partida.

Acerca dessa questão, Lucena aprofunda a reflexão quando diz que:

O “mito da metrópole”, criado a respeito da cidade de São Paulo, ofereceu aos trabalhadores de diferentes regiões do Brasil estímulos para mudar. Deixar o rural tradicional em busca do urbano significava ascensão social e sobrevivência. Entre os migrantes permaneciam as imagens do campo como lugar de atraso e da cidade como lugar moderno. A cidade é sinônimo de trabalho leve, de civilização, de conforto, de facilidades e a roça significava trabalho pesado, obrigando a grandes caminhadas sob o sol ou chuva, carregar peso e fazer força. Nas décadas de 50 e 60, a representação de modernização da sociedade compreendia o trânsito do rural para o urbano. A mudança para o urbano tinha, portanto, um significado de progresso para os migrantes (LUCENA, 1999, p. 41).

A cidade, portanto, é um lugar de profundo simbolismo que se dissemina ao

longo da história de várias maneiras, aonde vão sendo criadas essas imagens que

contribuem para uma forma de pensar sobre essa cidade. Historicamente, campo e

cidade mantêm relações de muita proximidade ao longo do tempo. Não devem ser

vistos como elementos que se excluem mutuamente, embora alguns momentos

possam exprimir discursos que difundam esse tipo de visão. Acontece que cada um

tem sua especificidade e no diálogo que possam estabelecer entre si, repercutem

formas diferentes de serem percebidas. O que se dá por meio das imagens pelas

quais passam a ser representadas.

O campo, em alguns períodos da história foi onde se concentrou a vida

humana, criando assim valores que foram sendo repassados às gerações

posteriores, que definiam a sua permanência e não necessariamente se opunham a

cidade. Mas esse cenário muda e a cidade passa a ser o lugar da “felicidade”. Ela

representa o novo e radicalmente tudo aquilo que o campo não pode prover. No

entanto, essas relações não se rompem por uma série de fatores. Acerca disso

Williams nos esclarece melhor:

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Na longa história das comunidades humanas, sempre esteve bem evidente essa ligação entre a terra da qual todos nós, direta ou indiretamente, extraímos nossa subsistência, e as realizações da sociedade humana. E uma dessas realizações é a cidade: a capital, a cidade grande, uma forma distinta de civilização. Em torno das comunidades existentes, historicamente bastante variadas, cristalizaram-se e generalizaram-se atitudes emocionais poderosas. O campo passou a ser associado a forma natural de vida – de paz, inocência e virtude simples. À cidade associou-se a ideia de centro de realizações – de saber, comunicações, luz (WILIAMS, 2011, p.11).

Embora tal comentário seja revelador da posição que cada um dos elementos

ocupa no discurso histórico, ainda que confirmando uma dicotomia que se expressa

mesmo na oposição de valores que se caracterizam como atraso e progresso, o

mundano e o casto, observa-se que ambos compartilham também de imagens

negativas.

Por fim, a dicotomia opõe, mas não afasta definitivamente campo e cidade,

uma vez que ambos detêm características que são desejadas por todos os sujeitos e

que pertencem a cada um dos espaços individualmente. Por outro lado é preciso

dizer que o migrante transita por essa dicotomia de forma não exacerbada, uma vez

que ele é capaz de unificar as experiências de um e outro lugar, constituindo dessa

forma, a sua experiência de vida.

A cidade e o campo proporcionam experiências que se opõem, visto que hoje

se uma tem progresso e barulho, o outro acena com o sossego e o comedimento e a

frugalidade. De certa forma, são pontos que não conciliam e levam o sujeito a querer

sempre o melhor que cada um dos dois mundos tem para oferecer. E assim vão se

perpetuando ao longo do tempo as representações sobre campo e cidade e ainda

sobre este último, chegamos a nossa contextualização exemplificando a cidade

como:

Lugar pródigo de delícias e riquezas é o significado da palavra eldorado. Na história, terra sagrada prometida perseguida pelos hebreus em sua longa caminhada pelo deserto. Miragem que milhares de migrantes têm buscado em diversos e lugares e circunstâncias ao longo da história e que impulsionou centenas de nordestinos [...] (SILVA, 2006, p.173).

Não deixa de ser curioso que a cidade, antes um lugar de atração, possa

também passar a ser um lugar de expulsão, mais intimamente de desencanto,

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108

invertendo desta forma o seu papel inicial. É a este fato que se reporta Sezyshta,

quando ao falar sobre o retorno de migrantes salienta os motivos da volta:

Assim, assustados com o alto índice de desemprego e com a violência das grandes cidades do eixo Centro-Sul e sem condições de preencher as novas exigências do mercado de trabalho, os migrantes, especialmente os que já saíram da idade jovem, estão retornando a seu estado natal, aumentando o desafio para os poderes locais, a partir dos quais as elites historicamente tem se apropriado das políticas públicas destinadas aos empobrecidos, perpetuando a miséria e a fome (SEZYSHTA, 2004, p.40).

A cidade então se transmuta deixando de ser uma expectativa para se

transformar em desoladora realidade. Neste momento emerge a percepção de

quantas e muitas podem ser as diferenças que se estabelecem entre campo e

cidade, entre origem e destino, entre o conhecido e o imponderável. O aconchego

do lar e do lugar é lembrado com reverência, uma vez que entre outras coisas

trazem a sensação de controle da situação ou pelo menos da sensação de

segurança em estar no meio dos seus. Não é exatamente o sentimento que se tem

em relação à cidade, pois ainda que se possa contar com a ajuda dos parentes que

lá se encontram o ambiente pode se tornar bastante hostil.

Ainda sim, assinalamos que há a construção de uma relação com a cidade

que vai aos poucos levando a uma percepção de em que moldes ou condição essa

relação pode se estabelecer. Nesse caso específico, a cidade aparece para os

migrantes basicamente de duas formas: a primeira como sinal de esperança na

melhoria das condições de vida e a segunda, já como um lugar aonde estas

esperanças aos poucos vão se perdendo, levando a um sentimento de decepção.

É preciso ressaltar que esse sentimento de decepção aparece nas narrativas

de agora, nos levando a concluir que nem sempre ele esteve aflorado mesmo após

as primeiras viagens para São Paulo. Chama-nos a atenção, também que considerar

o trabalho na cidade mais “leve” não deve ser visto como uma regra geral, uma vez

que no caso dos migrantes do Tapuio, a principal atividade desenvolvida foi o

trabalho na construção civil, que não é assim tão menos sofrido que realizado no

campo. A comparação entre uma atividade e outra é que vai estabelecendo esse

nível de entendimento. Mas, ambos a seu modo expõem a pessoa a condições de

insalubridade extrema.

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Outro aspecto, é que referimos à ambientes e espaços diferenciados e desta

maneira, também a variável tempo. No campo, ele está definido de certa forma pela

natureza, pelas atividades desenvolvidas ao longo do dia e que obedecem a uma

divisão de horários próprios que vão se estabelecendo e configurando a rotina

cotidiana. Seja o trabalho na roça, a lida com os animais ou ainda outras atividades

que envolvam esse universo.

Lembramos um dado: apesar de reconhecer o nível de dificuldades em que

vivem no quilombo Tapuio, os entrevistados em nenhum momento tecem

comentários que de alguma forma desqualifique o lugar de maneira enfática como

sinônimo de pobreza ou ainda de atraso. A não expressão desse tipo de comentário

nos faz pensar que a percepção de mudanças gerais na comunidade possa estar

sobressaindo em relação a uma forma de ver o passado mais distante dos anos

1970, quando as dificuldades eram de fato bem maiores.

Com relação ao tempo na cidade, seguramente está mais definido em um

ritmo ditado pelo relógio e pela velocidade das ações e exigências de cumprimento

que vão sendo cada vez mais colocadas e centradas na atividade laboral.

Ilustrando um pouco do que foi disposto, as memórias confluem para

similaridades em algumas experiências vividas, denotando assim, seu caráter

eminentemente social, considerando que as experiências e pessoas sejam

singulares e os tempos vividos também. Por outro lado, o tempo não é só medido

nos moldes formais do calendário, mas é onde também estão depositadas as

esperanças e aspirações de cada um no momento em que migram e que

posteriormente passam a viver na cidade. Para José Sebastião dos Santos a cidade

representa expectativas não confirmadas:

[...] quando eu cheguei em São Paulo foi totalmente diferente daquilo que passava na minha cabeça né? [...] que passava e eu via os outros comentar, mais que eu tinha uma ideia assim um pouco por alto quando eu era bem mais jovem, que eu morava com meu avô,ele falava:”Zé, às vezes o pessoal fala que São Paulo é isso e eu nunca fui lá”.Ele falava:”eu nunca fui lá,você tome cuidado que São Paulo não é tudo que o pessoal fala não,muita gente vai e termina se arrependendo que foi” (JOSÉ, 2012).

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110

A esse sentimento de frustração se complementa a ideia de não adaptação à

cidade cujo um dos fatores, segundo nos contou José, foi a desvalorização que

sofreu por ser nordestino, que para ele se manifestava em forma de discriminação

de origem. Mesmo não tendo uma visão das mais positivas, ele reconhece alguns

ganhos. De modo geral, conseguiu juntar algum dinheiro que investiu na construção

da sua habitação no quilombo. A sua fala é marcada pela contradição, que como já

constatamos, se manifesta praticamente em todos os aspectos reportados pelos

migrantes do Tapuio.

Para outro morador, o Senhor Antonio Miguel dos Santos, lembrar-se dessa

fase da vida em que foi para São Paulo traz orgulho pelas relações que conquistou,

mas também traz angústia por fazê-lo lembrar de algo doloroso: a fome.Ele relatou

que na última vez que foi a São Paulo, por causa do atraso no pagamento, chegou a

passar três dias de fome isolado,uma alusão ao fato de estar alojado na própria

obra, fato relativamente comum e que possivelmente ainda permaneça no tempo

presente.Ao enfatizar esse aspecto da fome em trechos diferentes da entrevista,

Senhor Antonio termina por apontar uma supervalorização que o eleva diante de

outras pessoas, ao ter passado por dificuldade tão “grande”.

Seu depoimento nos lembra as reflexões de Alessandro Portelli, pois não se

trata tão somente de discutir a existência ou não de uma verossimilhança em seu

discurso, uma vez que não podemos esquecer que a memória mantém diálogo

profícuo com a imaginação.

Mas não é só isso, ao falar da fome, ele a associa a um nível elevado de

sofrimento e seu tom de voz se altera, como que demonstrando uma postura de

ressentimento, pela situação que passou. Esta ênfase nas dificuldades, traz como

nível máximo de sacrifício, passar a noite em frente a um posto de alistamento militar

para tirar documentos, pois quando viajou só dispunha de certidão de nascimento e

nada mais. Essa noite o expôs ao risco que era enfrentar tal provação mal

alimentado e agasalhado, além de outros perigos iminentes para quem está de

madrugada na rua.

Portelli, ao analisar narrativas de operários italianos que tiveram intensa

participação sindical, identifica nos discursos destes ex-operários, características

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111

próprias que o permitiram, ao confrontar informações recolhidas, observar a

existência de discursos sobre o mesmo fato que trazem versões diferentes.

Inclusive, quando se investiga a partir da história oficial relacionando ao fato

narrado.

A esse expediente ele define com o conceito de ucronia:

ucronia é “aquele perturbador tema, no qual autor imagina o que poderia ter sucedido se um determinado evento histórico não tivesse acontecido”; a representação de “um presente alternativo, uma espécie de universo paralelo no qual se cogita sobre um desdobramento de um evento histórico que não se efetuou”(PORTELLI, 1993, p. 50)55.

Obviamente que para Senhor Antonio a lembrança de momentos em que

esteve com fome é que o adquire um significado pleno em sua narrativa, ficando

marcado firmemente em sua memória, mas nesse caso, a forma como a narrativa

acontece nos leva a ponderar que o uso da imaginação está bastante acentuado e a

explicação para isso é justamente o fato de está narrando o episódio vivido para um

de “fora”, no caso nós mesmos. Ele também manifesta, contraditoriamente, o desejo

de voltar a São Paulo, mas ressalta que somente a passeio e em viagem de lazer e

não para derramar suor. O desejo é visitar familiares, uma vez que alguns dos seus

filhos permanecem morando na capital paulista.

Quanto ao tratamento recebido, Senhor Antonio afirma sempre ter sido bem

tratado e valorizado por parte das pessoas que conheceu, sobretudo, nas relações

de trabalho cotidianas e em outros poucos espaços. Acreditamos que o seu círculo

de amizades e de pessoas com quem se relacionava no dia a dia era limitado,

devido à extensa jornada de trabalho que o impedia de sair muito para transitar ou

também explorar a cidade e possivelmente também pelas condições econômicas

que terminavam por sacrificar as atividades de lazer cotidianas. Essa ideia de ser

bem tratado evidenciado por ele tem um significado próprio.

Apesar do depoente afirmar que era respeitado nas relações cotidianas, nos

deparamos com a questão de que na Região Sudeste, sempre existiu uma forma de

55Trata-se do texto traduzido por Maria Therezinha Janine Ribeiro.

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112

tratar os nordestinos com certa discriminação, isso tem raízes históricas. Silva em

sua pesquisa sobre segregação urbana e racial na cidade de São Paulo afirma que:

Na cidade de São Paulo, durante a escravidão, o negro morava próximo aos senhores para servi-los. Com a abolição e as transformações urbanas da cidade, os negros tornaram-se indesejados e, aos poucos, foram seno expulsos da região central da cidade, que passa a ser ocupada pelos detentores do poder econômico, social e cultural. Outros territórios, os territórios negros, vão-se constituindo e acolhendo os negros (SILVA, 2006, p.18).

Senhor Antonio não vê problemas em ser chamado de “ô piauiense!” pelos

colegas de trabalho da obra. E muitos que o tratam assim, também são nordestinos.

O que acontece é que concomitante às relações cotidianas nesse novo espaço vão

ocorrendo transformações que implicam inclusive, na formação de um novo olhar

identitário. Senhor Antonio deixa de ser ele e passa a ser mais um nordestino do

estado do Piauí na cidade grande, com todas as particularidades que isso acarreta,

inclusive as de ordem negativa, que estabelecem preconceito de origem e também

étnico racial, muitas vezes não reconhecido como tal.

Outro morador, Senhor Sebastião Simplício dos Santos guarda na memória

uma experiência que se caracteriza pela dubiedade. Ele assinala que tinha uma

expectativa em relação à cidade e lá chegando, aos poucos foi sendo confrontado

com uma realidade que não conhecia. Esperava poupar algum dinheiro, e até

reconhece que ganhou, mas não conseguiu trazer muita coisa para o quilombo.

Disse que não estranhou a cidade quando foi a primeira vez, pelo contrário, nos idos

de fins da década de 1960, exaltou o fato de que podia se locomover livremente nos

mais diversos horários, inclusive durante a noite e nada acontecia. Só que essa

aparente tranquilidade se quebrou em um dia comum de ida para o trabalho.

Sebastião foi assaltado. Um dia ao voltar do trabalho, saltou do ônibus e

sozinho deu início à subida no morro onde morava. Já começava a escurecer

quando então foi surpreendido por dois homens armados que anunciaram o assalto

e pediram sua carteira e os pertences que levava em uma sacola: a marmita de

comida de todo dia.

Ele tinha um canivete que usava para descascar laranja e a descoberta do

objeto irritou os assaltantes que então lhes deram três coronhadas na cabeça. Ele

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conta que viu a arma, mas pela escuridão não tinha certeza se era de verdade e isso

só se confirmou quando o atingiram na cabeça e após a fuga dos ladrões, ele

percebeu que havia sangue proveniente do corte feito pelo cabo do revólver. Esse

episódio ele narra com riqueza de detalhes:

“Fica quieto que é um assalto”. Já foi aqui, a carteira tava aqui, tirou quatrocentos e cinquenta e um cruzeiros nesse tempo.Eu tinha pegado “vale” nesse dia.Tirou um relógio “orient” que tava com três meses de uso e aí pegou a minha marmita que tava dentro da bolsa,sacudiu aqui,não tinha nada, jogou pra lá, olhou na bolsa,achou um canivete “pra mode” eu descascar laranja,pegou.Aí ele disse:”É,ele anda armado,olha aqui”.Aí ele disse:”Fica quieto aí que a gente vai puxar o carro”.Fiquei olhando assim pro “cabra” meio perdido, quase sem saber o que tava acontecendo.Aí o “cabra” disse:´”Tá pensando que aqui é brinquedo? É revólver mesmo”.Aí “pá”,uma pancada aqui uma pancada aqui(SEBASTIÃO,2012).

Para Sebastião, mais que o prejuízo material do dinheiro perdido e claro a

violência sofrida, maior foi o prejuízo emocional, pois foi só após o episódio que ele

teve a dimensão do acontecido e percebeu que poderia ter morrido naquele

momento. Isso o deixou com muito medo, a ponto de fazê-lo desistir de um terreno

que havia comprado em sociedade com um cunhado no intuito de construir casa.

Simplesmente abandonou essa sociedade e nem exigiu restituição do dinheiro que

investiu na transação. A violência sofrida foi um dos motivos que acabou fazendo

com que retornasse definitivamente ao quilombo Tapuio.

Ainda para Sebastião, a cidade vai deixando aos poucos de ser um lugar

aprazível para se tornar um lugar de medo. Desta forma a imagem mais presente na

sua fala é a de quem expressa pequenas porções de desencanto que aos poucos

vai tomando uma dimensão maior em relação à imagem anterior de cidade

relativamente calma e segura para se locomover e trabalhar.

Dos entrevistados, Senhor Sebastião é o único que tem uma história cujo

encontro com a cidade leva a situação de risco em que o medo é evidenciado de

maneira profunda. Este sentimento permeia o cotidiano de todos, mas está nas

entrelinhas e pouco aparece com tanta veemência como nesse depoimento.

Acreditamos que tirando esse episódio, a presença de familiares pode contribuir

para uma sensação de falsa segurança, uma vez que essas relações têm alguns

limites.

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114

O saldo da experiência para o senhor Abraão Vicente dos Santos com relação

à cidade de São Paulo expressa igualmente o desejo de alcançar melhoria no

padrão de vida que tinha e ele também percebeu que a realidade era bem diferente

do que imaginava:

[...] eu saí daqui tentando conseguir uma coisa, uma situação financeira melhor não é?.Cheguei lá, a realidade foi totalmente diferente. Aí fiquei naquela, passando de ano a ano pra ver se melhorava as coisas, pra poder ir embora mais assim, tranquilo.”. Não, agora vou”. E nessa brincadeira fechou 23 anos e assim não sei pros outros, mas pra mim São Paulo quanto mais tempo você fica lá, mais difícil fica de você vir embora (ABRAÃO VICENTE, 2012).

Abraão é o morador do quilombo Tapuio desse nosso grupo de entrevistados

que passou mais tempo fora. A sua experiência de vida se traduz nas palavras que

foram se desfiando ao longo da entrevista e se mostraram bastante reveladoras.

Esse tempo longe o fez conversar de forma articulada sem titubear nas afirmações

que faz e sem tropeçar nas palavras que vão expressando seu pensamento e suas

ideias. Um exemplo disso é quando ele articula uma opinião que revela seu juízo de

valor acerca da sua própria experiência de migrante. Para ele “tem muito jovem [...]

que tá saindo sem precisar”. “Acho que eles ficam aqui pé no chão, porque a

primeira coisa que o mundo lá fora cobra de você é um grau de estudo”.

Para Abraão a experiência que teve no seu passado permite que ele olhe

para trás, para esse passado e conclua que houve muito mais perdas do que

ganhos. Um ganho destacado é o que ele chama de experiência do mundo, uma

alusão ao encontro com os lugares e pessoas por onde andou, não somente em São

Paulo e região metropolitana, mas outro estado. Ele revelou ter trabalhado um tempo

curto na cidade de Araxá – MG.

Para nós, o que foi revelador em relação ao depoimento de Abraão e o que se

destaca com maior ênfase são os sentimentos de perda. Isso não diz respeito ao

aspecto financeiro, a dinheiro ganho que acabou sendo gasto sem um melhor

aproveitamento, mas a algo que se demonstrou ser, e de fato é, muito mais valioso

para ele: o tempo. Mas não qualquer tempo. O tempo que não volta mais, esse

tempo que é implacável e que não espera; que se mostra valioso a partir do

momento em que se considera tê-lo perdido. Na vida de Abraão, dentre a sucessão

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de tempos que viveu a maior perda, o que faz falta é o tempo afastado da família, o

tempo não vivido junto aos pais nos últimos anos de vida deles.

Assim a variável tempo ganha significado também quando se compreende

que existe sim, um tempo de sair e de ficar, seja na comunidade, seja na cidade,

pois essa não compreensão termina por trazer alegrias talvez, mas no caso de

Abraão muito mais dor. A fala desse entrevistado nos mostra que os valores que

norteiam a vida em família permanecem vivos, ainda que a partida seja, às vezes,

inevitável. Muita coisa é posta em jogo com resultados na maioria das vezes,

negativos. Talvez, para Abraão a permanência da juventude no quilombo seja algo

que ele defenda, tendo por argumento a sua experiência de migrante.

Sem meias palavras, ele diz que o marcante no contato com a cidade se

traduz em três aspectos dignos de nota. Sua estadia no grande centro foi marcada

pelo medo, o arrependimento e a discriminação sofrida por ser nordestino. O medo

não aparece na fala de todos, mas acredito que se faz presente na ausência

registrada nestas falas, revelando um não dito. O encontro com o desconhecido

sempre provoca esse sentimento, que por sua vez é comum a qualquer pessoa,

nesse caso específico ele se origina pela incerteza, pelo gigantismo da cidade, pelo

que se vai ou não encontrar e até de forma mais extrema, o medo da morte em

alguns casos.

Dos nossos entrevistados, três fazem referência a isso, sendo que um deles

de forma mais indireta. Acredito que esse não revelar presente nas falas, pode está

relacionado ao sentimento de demonstrar ser capaz de enfrentar as adversidades,

que porventura apareçam, sem precisar de ajuda de outras pessoas. Em alguns

momentos essa ajuda é imprescindível, como nos conta Senhor Abraão Miguel dos

Santos:

eu tomei um choque, tomei um choque grande porque pela primeira vez né? ...barriga verde né? Ali eu me trancava...vamo supor..na obra e ficava lá.Se uma pessoa não fosse me buscar lá eu não sabia ir pra lugar nenhum né? (ABRAÃO MIGUEL, 2011).

Essa admissão não é a regra e foi feita em meio a um comentário sobre as

dificuldades enfrentadas na cidade. A rotina de Senhor Abraão incluía visita aos

parentes no fim de semana, mas isso só acontecia se alguém viesse buscá-lo e o

acompanhasse na volta ao alojamento que ficava na obra onde trabalhava. Essa

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116

dificuldade em transitar pela cidade inspira outro comentário em que ele conta que

certa vez decidiu ir por conta própria visitar os parentes e para isso tomou um táxi.

Conta que o motorista o enganou, pois ele se lembra de ter passado por um mesmo

lugar mais de uma vez.

Atribui à cobrança exagerada no valor da corrida ao fato do motorista ter

percebido que ele era de fora da cidade, possivelmente nordestino que de nada

sabia sobre como se localizar na cidade, na avaliação subjetiva deste. Senhor

Abraão usa a expressão “barrida verde” para exprimir o fato de ser julgado

inexperiente em relação à cidade.

Assim, vão se construindo as narrativas que atribuem diferentes significados

ao encontro e a estadia na cidade. Eles traduzem as aspirações dos migrantes, por

vezes revelando um mundo de sonhos que não tem final tão feliz. Todos os

depoimentos soam unânimes em avaliar os aspectos positivos e negativos desses

deslocamentos, e salta a nossa compreensão que os tempos de partida representam

talvez a impossibilidade de escolha, ainda que pudesse haver condições de

permanecer no local de origem.

Para além das contradições que se apresentam nessa avaliação da dicotomia

ficar/sair, entendo que sair demarca um compromisso consigo mesmo, à luz do

imaginário criado em relação ao que a cidade teria a oferecer. Não esquecemos que

toda problemática em torno da relação cidade/campo diz respeito também à

atribuição de valores que são veiculados a um e a outro. Exemplo: cidade como

oportunidade e campo como tranquilidade, ambos positivos. Ainda que certas

experiências não tenham sido positivamente avaliadas, bem ou mal a cidade

permanece na memória de alguns dos migrantes como algo que não rompe as

ligações com esse campo quilombola, cujo desejo ainda é poder visitá-la vez ou

outra para rever os parentes que lá já estão fixados há tempos.

É importante ressaltar que a permanência definitiva no semiárido, por parte

dos nossos entrevistados se faz a partir da sua própria experiência na cidade, ou

seja, essa foi uma vivência que lhes permitiu avaliar os cenários vividos, levando-os

a tomar uma decisão com mais convicção em relação as vantagens e desvantagens

desse deslocamento. O positivo dessa ação é não decidir sob a influência de outras

pessoas, mas utilizando sua própria trajetória de migrantes estabelecidos nos

diferentes cenários.

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117

Ainda sobre essa relação campo/cidade é preciso considerar alguns outros

aspectos que tornam permanente esse “diálogo” entre os dois mundos. Assim,

Mancuso e Ramiro consideram que:

A migração, independentemente do sentido em que ocorra, põe em pauta o conflito das vontades humanas, na qual valores repulsivos e atrativos são avaliados e definidos pelos atores sociais para decidirem (quando possível) o destino mais favorável para sua vida e de sua família. Cidade e campo apresentam, cada qual de acordo com a história de vida de cada um, qualidades e deficiências. Permanecer em ou deixar um ambiente em prol do outro é resultado da avaliação que fazem dessa balança que ora repele, ora atrai com maior ênfase. Optar por um dos dois caminhos não elimina essa dualidade de forças opostas, pelo contrário, renova-a num movimento constante de reflexão e reafirmação ou negação dos valores adotados, afinal, a dialética faz parte da natureza humana (RAMIRO; MANCUSO 2009, p.17).

Devemos pensar então que a relação campo/cidade na questão da migração

é algo que não se esgota em si mesmo, mas que se torna algo permanentemente a

ser reescrito na medida em que o fluxo também permanece, seja por qual motivo for,

as pessoas são levadas a buscar melhores condições de vida ou somente dar vazão

a curiosidade inerente a natureza humana, que nos leva a estar em permanente

movimento.

3.2 Quilombolas: somos ou queremos ser?

Quando falamos em quilombos ou comunidades quilombolas, não se pode

deixar de fazer referência a terra, ainda que a vivência nessa terra seja marcada por

momentos de ausência. Isso não deixa de ser curioso, quando ao olharmos para a

história do Brasil perceber que o discurso sempre se refere à população negra

enquanto força de trabalho e não necessariamente ligada à posse ou propriedade da

terra.

A ressalva é importante porque estamos falando de um grupo que manifesta

uma identidade, sendo a sua construção algo diretamente ligada a terra quando esta

passa a ter por base a configuração de um território. É a territorialidade que fundindo

os aspectos simbólicos e material referentes ao lugar vai definindo a identidade da

comunidade que ali existe.

Nesse sentido, a discussão em torno dessa questão se faz levando em conta

que o deslocamento do campo para cidade coloca em contato, universos distintos

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118

que operam segundo regras próprias e acabam influenciando de alguma maneira na

conformação dessa identidade. Se considerarmos a origem quilombola dos nossos

entrevistados, há de se supor naturalmente que a referência a uma identidade

quilombola esteja presente nas falas quando do momento das entrevistas. Isso não

é uma regra, afinal estamos falando de tempos diferentes que vão se sobrepondo à

medida que a memória desfia os fragmentos da história de migrante de cada um.

Ao mesmo tempo, estar em São Paulo, também leva a emergir nesses

migrantes outras identidades (o nordestino, o paraíba, o baiano, o negão...), que,

mesmo sendo parte constituinte de sua identidade primeira, essas múltiplas

identidades vão sendo absorvidas por esses indivíduos ao mesmo tempo em que

vai se estabelecendo nas relações cotidianas de tratamentos da cidade grande.

Sobre isso, o senhor Antonio Miguel dos Santos (2012) fala:

[...] em São Paulo nas construções de serviço, muito respeitado a gente é, e as pessoas chama a gente como nordestinos ou se for do Piauí é piauiense tal e bem....as pessoas tem uma delicadeza assim pra tratar a gente lá entendeu na...no setor de serviço,se é nordestino eles chama “ô nordestino”....aí se você é do Piauí...se for pernambucano é pernambucano,se for do Piauí é piauiense né..

Quando indagamos aos nossos entrevistados qual a importância do quilombo

e, sobretudo, em ser do quilombo Tapuio, obtivemos respostas tais quais:

É, eu vejo que é importante, não sei muito da história do quilombo não,mas...porque as vezes...antes, as vezes os brancos, outras pessoas olhava pra gente com outro olhar e aí depois que a comunidade foi reconhecida eu vejo...as vezes muitos brancos mesmo dizer:”como é que a gente pode fazer pra entrar no quilombo?”.Aí as vezes um até brincava:”é só tu passar tinta na pele pra fica preto”. Mas eu vejo que a pessoa olha pra gente com outro olhar, acho quegente....acho não,que a gente...eles dão mais um respeito pra gente.Tem mais respeito pela gente. É positivo(SEBASTIÃO SIMPLÍCIO DOS SANTOS, 2012).

É ...eu entendo hoje é...ser do quilombo Tapuio pra mim eu sempre aqui as vezes tô conversando com minha esposa, minha filha eu sempre coloco:aqui nesse...nessas áreas que eu rodei eu nunca encontrei um local melhor pra mim sobreviver..se tivesse que viver em qualquer um local por aqui não encontraria um local melhor de que aqui é... por onde eu já passei, já demorei umas horas, um pouco não encontrei um local melhor do que o quilombo Tapuio certo...nunca encontrei um local melhor pra mim sobreviver do que aqui...é ...e ser assim é do quilombo Tapuio pra mim representa uma confiança, uma importância muito grande que eu nunca encontrei por onde eu passei...certo. [...] você se encontra respeitado, eu me encontro respeitado principalmente pelas pessoas que tem um conhecimento maior...quando se fala em quilombo...”Há você é do quilombo Tapuio? “É”...cê vê que as pessoas já te olham com outro é...com uma outra... já que...é como se você tivesse sabe?...tem pessoas que as vezes te vê ali e ali só passa por ti não acha que você não é nada ...quando você ...“Há

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conheci”..quando vê...reconhece você sabe quem você as pessoas “Ôxente, há você é desse local”,” você é assim”...então eu me sinto assim,importante, assim uma importância que...eu já passei por outro local que eu...que nunca tive(JOSÉ SEBASTIÃO DOS SANTOS, 2012). É ser quilombola eu vejo que é uma parte muito bom, porque é a origem nossa né? E depois do governo do presidente Lula, que vários presidentes entrou, que a gente já tinha essa origem mas eles nunca se resgatava essa história e depois dele né, nós tivemos acesso a ser resgatado né, a comunidade quilombola né, e hoje a gente ver muitas pessoas que tem vontade de ser do quilombo né, mas pra ser do quilombo tem que, tem muitas tarefas de... Tem muitas tarefas de ser realizada. Não é só você dizer que é do quilombo né? Porque a nossa origem é outra né? (ABRAÃO MIGUEL DOS SANTOS, 2012)

O ser do quilombo Tapuio nas falas dos sujeitos não está tão somente ligado

à questão da identidade, mas do território, da região, da memória e da história. Ao

mesmo tempo em que suas falas são difusas na elaboração de um discurso que

possa expressar uma identidade quilombola, elas também são afirmativas no sentido

de ver o quilombo como um lugar de pertencimento. É importante verificarmos a

experiência de um processo de construção identitária contínuo que nos remete a

atualidade ou a uma história recente (Constituição Federal de 1988; organização

política das comunidades; Decreto Federal 4887/2003).

Se nos reportamos a uma fala difusa, convém caracterizá-la também como

algo dentro de uma multiplicidade, assinalar que o entendimento do ser quilombola é

mediado pelo tempo quando falamos especialmente do quilombo Tapuio, não que

isso se torne uma exclusividade, é parte mesmo do momento atual dessa discussão.

Uma questão de definição histórica tem de levar em conta hoje outros aspectos,

como o sociológico e antropológico.

A diferença é o que caracteriza a identidade cultural de um indivíduo. O que

lhe define é o que é instituindo-se por oposição ao que justamente não é. Eis como

emerge esse sentimento presente nas coletividades sociais. O quilombo é um tipo

de organização primeiramente identificado com o meio rural, mas que guarda a sua

especificidade e a reivindica de forma própria no tempo presente, inclusive também

como comunidade urbana.

Questionado sobre o que significa ser do quilombo Tapuio, José Sebastião

dos Santos, morador do quilombo mais jovem do grupo de entrevistados e que

migrou na década de 1990, respondeu que significa um bom lugar para viver,

confiança e respeito. São características importantes que contribuem para uma

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autovalorização, e consequentemente para uma maior autoestima. Fazendo um

contraponto, já estando em São Paulo José confessa que era visto como nordestino

e não como quilombola, uma percepção que para ele é muito recente e ele diz só

notar uma diferença já na última vez que foi a São Paulo, quando percebe que os

parentes moradores de lá já fazem uma referência a isso.

Para ele isso demonstrou o quanto ser quilombola inspira confiança, e passa

também a ter suas compensações, tendo em vista que para José “é uma coisa que o

governo deu essa prioridade”. Embora não se refira a questão étnico/histórica, para

ele ser do quilombo é estar em um lugar bem representado e se fazer respeitar por

isso, sem falar na atenção dada pelo governo.

Para Senhor Antonio Miguel dos Santos, ser do quilombo Tapuio também

está associado a essa atenção dada pelo governo federal às comunidades

quilombolas. Segundo ele:

Antes da comunidade ser quilombola entendeu, tinha uns aspectos que a gente via que era...que não tava aquele alcance, mas depois que a comunidade é registrada como quilombola né? [...] eu vou te falar uma coisa, como essa comunidade foi muito adiantada através da época do governo Lula, digo com certeza porque ele deu prioridade para as comunidades quilombolas (ANTONIO MIGUEL, 2012).

Estes dois entrevistados não fazem referência e nem tampouco juízo de valor

em relação às políticas públicas governamentais implementadas em comunidades

quilombolas, ou seja, o porquê disso está acontecendo e qual a relação com a

origem da comunidade e de seus moradores.

Um entrevistado, Sebastião Simplício dos Santos nos aponta outros

elementos para discussão. Confessa que não sabe muito da história do quilombo,

mas:

Porque às vezes, antes,as vezes, os brancos, outras pessoas, olhava pra gente com outro olhar e aí depois que a comunidade foi reconhecida, eu vejo, as vezes, muitos brancos mesmo dizer:” Como é que a gente pode fazer pra entrar no quilombo?”.Aí,as vezes um até brincava:”É só tu passar tinta na pele pra ficar preto”.Mas eu vejo que pessoa olha pra gente com outro olhar, acho que a gente [...] eles dão mais um respeito pra gente.Tem mais respeito pela gente(SEBASTIÃO SIMPLÍCIO, 2012).

Embora faça a alusão ao respeito, Sebastião já inclui na sua fala o elemento

fenotípico. O que ele chama de brancos, tinham uma visão e passam a ter outra, a

partir do registro oficial que reconhece o Tapuio como um quilombo. Ainda que não

mencione a palavra “negro”, ao falar em branco, ele se coloca em patamar de não

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branco. A identidade já assume um sentido mais complexo. O que está nítido na sua

fala relacionada à visão que tinham os outros trabalhadores que conviviam com ele

em São Paulo:

É... o ser negro, é ser moreno, aonde eu trabalhei não vi essa exclusão porque sempre nas firmas que eu trabalhei só trabalhava mais negro mesmo;mineiro,baiano...é nordestino.Agora ser nordestino também é ter...é porque os patrões sempre as vezes preferia trabalhar mais com nordestino:baiano,mineiro e assim o pessoal do norte,porque a construção mesmo não gostava de vir sulista pra trabalhar não (SEBASTIÃO SIMPLÍCIO, 2012).

Uma fala contraditória, pois ainda, que revele não perceber exclusão social

quanto à cor da pele, Senhor Sebastião não tem idéia porque há uma preferência do

setor da construção civil pela força de trabalho nordestino, em tese, de fenótipo mais

miscigenado ou mesmo mais escuro. Sua fala termina por acentuar uma percepção

identitária vinculada ao ser nordestino quando estava em São Paulo. Já estando no

quilombo Tapuio, esta identidade guarda maior proximidade com o ser negro,

quando referencia a existência de vizinhos brancos, revelando consequentemente

por meio de um não dito, ser um não branco.

Dos outros três entrevistados, dois expressam uma vivência da questão

identitária muito vinculada à discriminação vivida em São Paulo. Um pelo viés do ser

nordestino nas palavras dele, e o outro pelo fato de ser negro, e de certa forma

compreender isso de maneira clara. Abraão Vicente aponta a razão de ser

nordestino como o motivo principal para ser discriminado e não o fato de ser negro.

Já o Senhor Abraão Miguel nos disse que era tratado como retirante, mas que o

chamavam sempre de “negão”, expressão que ele não gostava,dizendo preferir ser

chamado de negro:

Ó, se é de me chamar de negão,chama negro.Sempre eu digo né?”Ah, é negão mesmo porque em Minas Gerais nós chama é de negão mesmo”.Eu digo:”essa palavra negão né? Chama logo negro!”.E aí depois a gente foi tomando conhecimento né? Muitas vezes que se o cara que ali já tá é tirando sarro, ele pode tomar processo né? Não é verdade [...] (ABRAÃO MIGUEL, 2012).

Percebemos diferenças significativas na fala de ambos quando indagamos

acerca da importância de ser quilombola. O primeiro, Abraão Vicente, relaciona isso

à noção de respeito, algo que praticamente não havia antes, pois segundo ele “hoje

a gente tá sendo mais respeitado em todos os sentidos”. Embora no seu discurso

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não haja a expressão de identidade negra relacionada ao fato de também ser

quilombola, ele reconhece que ser quilombola é positivo e infelizmente não

acompanhou essa luta, esse processo de organização que redundou em ganhos

expressivos sintetizados na sua fala quando ele diz que “feliz hoje quem é de uma

comunidade quilombola, porque de forma ou de outra tem um olhar mais específico,

mais especial com ele [...]”.

Já o outro, Abraão Miguel, assinala que ser do quilombo tem relação direta com a origem étnica:

Ser quilombola eu vejo que é uma parte muito bom, porque é a origem nossa né? E depois do governo do presidente Lula, que vários presidentes entrou, que a gente já tinha essa origem, mas eles nunca resgatava essa história e depois dele né? Nós tivemos acesso a ser resgatado né? A comunidade quilombola né? E hoje a gente ver muitas pessoas que tem vontade de ser do quilombo né? [...] Já tem muitas coisas que vem mesmo pra quilombo. É bom você ser negro, porque tem gente que “diga” que não é negro (ABRAÃO MIGUEL, 2012).

Ambos, nas suas falas se referem ao pertencimento quilombola como algo

positivo e tem como referência também a chegada das políticas públicas específicas

voltadas para estas populações. A partir disso, se sentem mais valorizados e

também de certa forma mais visibilizados. O que não deixa de ser positivo, pois é a

demarcação de uma concepção antiga, para outra mais adequada ao momento

presente. Sua experiência com relação à discussão de identidade revela-nos o grau

de construção em que ela se encontra. Para alguns, mais centrada nas referências

da cidade e para outros, na própria comunidade quilombola. Identificamos essa

diferença de expressão identitária entre cidade e campo e que nem sempre assumir

uma identidade quilombola, quer dizer necessariamente a expressão de uma

identidade negra.

Nosso último entrevistado associa o tratamento recebido em São Paulo com a

identidade de nordestino, visto que o incomodava bastante ser chamado de “baiano,

baiano burro”. Senhor Inácio Gomes dos Santos nos disse que esse tratamento

comum dispensado a ele, o levou a ficar desgostoso com a situação e acabou sendo

um dos fatores que o fez voltar ao quilombo.

Quanto a ser quilombola, ele não considera algo para se “estranhar” e se

refere a isso porque observa que algumas pessoas estranham até mesmo da

comunidade, que não entendiam muito bem isso e consideravam não haver

diferença para outras comunidades rurais do entorno. Ainda assim considera que

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“hoje acho que demos um passo para frente ao ser quilombo”. Sua referência de

quilombola está manifestada nesse entendimento, que nos remete ao

reconhecimento das políticas públicas destinadas a esse público.

O que percebemos é que nossos entrevistados migrantes do quilombo Tapuio

se deparam com duas realidades distintas que os levaram a pensar em uma

perspectiva de construção identitária relacionada a tempo e lugar. No quilombo

Tapuio e em São Paulo, no passado e no tempo presente.

Desta forma, não há propriamente uma expressão identitária comum a todos

nesses tempos e lugares. Podemos dizer que a identidade quilombola é algo que se

encontra em construção e sua fundamentação está para além da questão histórica e

étnica. Embora esses dois aspectos estejam presentes nas falas, eles não se

definem em relação a todo o conjunto de moradores.

Assim, constatamos que isso está em consonância com a realidade presente,

aonde a atualização do conceito de quilombo vem se processando já há algum

tempo. Abrimos um parêntese para lembrar que a luta da população negra por

direitos civis e contra a discriminação racial no Brasil, tem uma trajetória bastante

recente se considerarmos essa luta enquanto forma de organização social com viés

político. Ela data do fim dos anos de 1970 e vai se estendendo até a atualidade.

Sob influência da conjuntura histórica e política dos Estados Unidos da

América, vamos presenciar aqui o surgimento do Movimento Negro organizado,

através da criação de inúmeras entidades ligadas a essa questão, como por

exemplo, o Movimento Negro Unificado – MNU – em São Paulo. Portanto, embora

estivessem em processo de deslocamentos corriqueiros entre o Tapuio e São Paulo,

nossos entrevistados aparentemente não tomaram conhecimento desse processo.

Ele tem repercutido na história da comunidade há pouco tempo, com o processo de

autoreconhecimento enquanto comunidade quilombola e na organização política que

fez surgir lideranças na comunidade que deram grande visibilidade a essa luta.

O que eles narram enquanto experiência nesse trajeto rural/urbano

representam as contradições na forma como se veem e são vistos na cidade e

também na própria comunidade, onde ser quilombola adquire significados diferentes,

estando, portanto no nível de reelaboração dessa identidade. E isso é influenciado

pela conjuntura atual no que se refere à discussão em torno da regulamentação do

artigo constitucional nº 68:

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A promulgação da constituição e a necessidade de regulamentação do Artigo 68 provocaram discussões de cunho técnico e acadêmico que levaram a esta revisão dos conceitos clássicos que dominavam a historiografia sobre a escravidão, instaurando a relativização e adequação dos critérios para se conceituar quilombo, de modo que a maioria dos grupos que hoje, efetivamente, reivindicam a titulação de suas terras, pudesse ser contemplada por esta categoria, uma vez demonstrada, por meio de estudos científicos, a existência de uma identidade social e étnica por eles compartilhada, bem como a antiguidade da ocupação de suas terras e, ainda, suas práticas de resistência na manutenção e reprodução de seus modos de vida característicos num determinado lugar (SCHMITT; TURATTI; CARVALHO, 2002, p. 3-4).

Ambas as experiências vividas, na cidade e no campo são lembradas e

compõem o repertório da memória coletiva da comunidade que vai sendo

compartilhada ao longo do tempo influenciando assim as gerações futuras. No

entanto, devemos observar alguns aspectos: primeiro, há sim uma reelaboração

conceitual em curso acerca do que vem a ser quilombo, mas não é correto afirmar

que ela se dá apenas por causa da legislação vigente no tocante à implementação

das políticas públicas para essas comunidades. Segundo, a identidade quilombola

embora historicamente esteja ligada à questão étnica, não está na atualidade sendo

discutida somente a partir desse prisma. Terceiro, o que fundamenta essa identidade

quilombola está nas raízes fincadas no tempo passado, o que não exclui a

etnicidade dessa temática. Por isso mesmo observamos discursos diferentes entre

os nossos entrevistados. Mas ainda que seja um momento de construção, podemos

dizer que esses componentes (etnicidade, história e território) estão na base da

reivindicação de uma história e de uma identidade quilombola.

3.3 Famílias: entre a solidariedade e as contradiçõ es

A condição de migrantes assumida por esses moradores do quilombo Tapuio

o colocou diante de grandes desafios, como por exemplo, deixar a terra natal e o

seu próprio espaço geográfico, a vizinhança, os aparentados e a própria família.

Enfrentando o desconhecido munido apenas de coragem e expectativas positivas de

mudança para melhor, procurando romper com as adversidades da dureza imposta

pela vida rural. O fundamento que sempre é levado em conta pelos migrantes,

passa também pela necessidade de prover o sustento da família.

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Pensar em família significa reconhecer o status importante e a referência

cada vez maior que ela adquire quando da realização da ação de migrar. Se a

família influencia de várias formas nessa decisão de sair, terá uma posição

estratégica no processo como um todo. A pesquisadora Ana Elizabeth P. do

Amaral56 assinala que:

Não é possível [...] isolar da análise do processo de migração a influência ou importância vital que os grupos familiares exercem, a qual tanto mais forte é, mais evidente se torna nos momentos de dificuldades, quando as expectativas dos migrantes são aniquiladas pelo trabalho que não equilibra às decepções e ao desgaste um poder de compra e ganho equivalente; pelas doenças provocadas pela ausência de adaptação climática ou tipo de vida imposto; pelo ambiente de moradia; pela vida ameaçada pela violência ou intranquilidade; pela saudade; pelos apelos da cultura etc...

Assim sendo, a família exerce múltiplos papéis nesse momento de transição

de um local para outro, ora como fator de motivação, ora como elemento de suporte

no destino que se escolhe para migrar. No caso do quilombo Tapuio, podemos

afirmar que ninguém sai de lá sem ter minimamente um local onde possa ficar por

alguns dias e depois, à medida que o tempo vai passando e as oportunidades de

trabalho possam aparecer, o migrante busque um novo local para morar em caráter

mais definitivo.

Esse apoio se dá mesmo quando não necessariamente, o migrante vai para

casa de algum parente, mas também quando ele fica alojado no canteiro de obras,

algo comum, onde alguém, um parente, vem buscá-lo para visitas aos demais

parentes, algum passeio ou coisa do tipo. Tal expediente nos leva a pensar na

relação que se constrói, enfatizando a existência de algo vital nessa empreitada que

é a “rede” social ou de solidariedade. Essa rede é a materialização das relações

familiares ou de amizade que vai se interligando. Para Abud57:

os migrantes não são indivíduos que agem desconectados de relações sociais, diante da imprescindibilidade das relações, as redes sociais se apresentam, enquanto sustentáculo dessas migrações, em função de fornecer apoio psicológico e material necessário aos migrantes.

56 AMARAL, Ana Elizabeth P. do; NOGUEIRA, Ronidalva A. de Melo. A volta da Asa Branca e as primeiras impressões do retorno. Disponível em: <http://www.abep.nepo.unicamp.br/docs/anais/pdf/1992/T92V03A11.pdf>.Acesso em: 24/06/2013. 57 ABUD, Daniel Lamela. Migração de retorno: entre significados e materialidades. Disponível em:<http://www.abep.nepo.unicamp.br/encontro2008/docspdf/ABEP2008_965.pdf>. Acesso em: 20/06/2013.

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126

Quando nos reportamos à ideia de família, estamos indiretamente falando do

que essa instituição representa do ponto de vista simbólico para a sociedade, seja

em relação a sua organização, seja quanto ao que expressa em termos de valores e

demais relações cotidianas. A simbologia da família é tão forte que alguns apregoam

a instabilidade da sociedade ao que acontece no centro da família, manifestando

profundamente a sua sacralidade. E o campo reproduz essa simbologia tornando a

hierarquia, o respeito aos pais e aos mais velhos de maneira geral, algo

inquestionável e que deve ser praticado cotidianamente.

Assim é com nossos migrantes quando ressaltam a importância da família

enquanto suporte de apoio quando se está distante de casa. Questionando sobre

isso, o que significou esse apoio familiar, obtivemos respostas surpreendentes

quanto à forma como essas relações vão sendo estabelecidas e o que de fato se

configura como sentimento de solidariedade entre os moradores do Tapuio. A

família, resguardada a sua importância, se apresenta sob outra perspectiva,

revelando as suas contradições. Nada é o que parece ser à medida que se olha

superficialmente.

Portanto, quando olhamos para a família que está presente nas falas dos

nossos entrevistados, procuramos observar esses diversos nuances. Para esse tipo

de deslocamento que fazem, a família é fundamental, mas encontramos certos

limites e algumas tensões nas relações manifestas entre as pessoas, que mesmo

com um grau de parentesco, em determinado momento, isso era ignorado.

Todos os nossos entrevistados são unânimes em reconhecer essa relação de

parentesco como fundamental para a prática da migração. Afirmam até que sem

esse apoio é impossível sair do quilombo para se aventurar na cidade grande. Foi o

que nos disse José Sebastião dos Santos: “São Paulo, sempre quando vou, vou

para casa de parente”. Já o Senhor Sebastião Simplício dos Santos nos informa

como se dava esse apoio:

Eu tive o apoio do Inácio mesmo que tava lá, porque hoje a pessoa... muitos parentes da gente já têm residência lá em São Paulo.E outros mesmo que não tem residência de oitenta pra cá, as vezes, a pessoa já alugou uma lá.As vezes, a pessoa chega,,na hora que chega, as vezes já tem apoio (JOSÉ SEBASTIÃO, 2012).

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Esses parentes podem ser de primeiro grau, segundo grau ou de grau mais

distantes. São irmãos, irmãs, tios, tias, primos e primas ou alguém que tinha laço de

amizade familiar na comunidade. Esses parentes acolhiam os visitantes que

chegavam à sua moradia e os ajudavam por alguns dias. O senhor Inácio Gomes

dos Santos, nos informou que já saiu do quilombo levando o endereço do parente,

ao qual, deveria procurar em São Paulo. Tal medida ajudava na localização e

poderia evitar que se perdesse ao sair da rodoviária ou pudesse ser alvo da ação de

pessoas mal intencionadas. Essa era uma medida de segurança importante, visto

que dificilmente poderia contar com a presença de alguém que estivesse à espera

na rodoviária, quando chegasse.

Passado esse momento inicial, em que mais pessoas da comunidade se

instalam na cidade, começam as tensões. Primeiro porque há sim uma forte pressão

para aquele que veio sem emprego certo, arrumá-lo o mais rápido possível, uma vez

que cada dia na casa é sinal de aumento de despesa. Portanto, alguns falaram que

tinham até uma semana no máximo para estar empregado, pois após esse tempo,

começava a haver um desgaste na relação familiar. Até por isso, assim que o novo

morador arrumava um emprego na construção civil, a atividade mais comum para se

trabalhar, em se tratando desses migrantes; eles deixavam a casa do seu parente e

iam morar na própria obra. Praticamente não havia alojamentos apropriados

fornecidos pelas empresas da construção civil. Portanto, há de se imaginar, que

embora não tenham entrado em detalhes sobre isso, que as condições de

habitação, fossem bastante precárias.

Mas o que está presente nestes depoimentos de maneira contundente é essa

mudança nas relações, que acontece de maneira a ficar evidente que ela se torna

problemática e até mesmo, podemos dizer insustentável. Mas isso não está

relacionado apenas à tensão promovida pela questão econômica, mas a outros

aspectos de conotação um tanto mais subjetiva.

Parece que a teia que sustenta a relação de amizade construída no interior da

comunidade do quilombo Tapuio, em algum momento se rompe e o que antes

demonstrava ser uma relação de respeito, solidariedade e fraternidade, vai

adquirindo e expressando outros sentimentos. A fala de José Sebastião vem a

corroborar com essa afirmação quando ele diz que:

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128

Você chega hoje o pessoal te recebe, só que amanhã se você não tiver um trabalho, as pessoas já não te vê mais como na hora que te receberam né? Apenas a pessoa passa por você e já te conhece mais, mesmo a pessoa sendo teus parentes. Eles falam o que quer de você, não tá nem aí, não escolhe o local, nem quer saber se você ta ouvindo, se você ta achando bom ou que nada. O que eles querem dizer eles dizer de você eles..pouco importa, eles dizem mesmo[...] tanto fazia ser parente, como aqueles amigos que você arrumava lá, o pessoal que devia te acudir,mas quando você ia pedir uma posição,nessa assim:”Tô precisando de emprego, tal”...os cara nem te olhava mais.Dali a pouco eles botava uma banca, fazia que não tava te vendo,passava enquanto você não conseguisse arrumar um trabalho(JOSÉ SEBASTIÃO,2012).

Esse depoimento nos mostra que o tratamento dispensado ao familiar que

veio do quilombo e está alojado provisoriamente na casa do parente em São Paulo,

vai aos poucos estabelecendo uma fronteira, deixando bem claro o limite onde estas

relações cotidianas podem ir. Há uma mudança significativa no tratamento

dispensado e inclusive alegações sobre a questão de manutenção dos gastos

financeiros, algo que não é dito abertamente, mas que está subentendido nas

entrelinhas das falas proferidas. Sebastião vai mais longe.

Para ele não é só a questão de se estar gastando dinheiro do amigo ou

parente por meio do aumento da despesa doméstica, mas ocorre mesmo uma

mudança mais profunda que os leva a agir com grande indiferença em relação à

pessoa. Sebastião avalia que a mudança compreende a personalidade, uma vez

que esta pessoa passou pelo mesmo nível de dificuldade e agora age como se

tivesse esquecido isso totalmente. É como se na comunidade ela fosse uma pessoa

e na cidade se transformasse em outra completamente diferente.

Essa fala resume bem o sentimento dos nossos entrevistados, demonstrando

alguma surpresa com certo nível de frustração. Entendemos que mesmo

compartilhando um sentimento comum de afetividade mediado pela relação de

parentesco existente, e que se mantém apesar da distância entre os lugares e os

tempos vividos, há uma perda que diz respeito às vivências que o migrante traz da

comunidade, uma vez que já fixado na cidade há algum tempo, vai incorporando

outro modo de agir e pensar. Sobretudo quando as suas condições de sobrevivência

não são das melhores.

Isso o leva a agir de modo pragmático, sob a ótica da cidade capitalista em

que a tudo vai se atribuindo valores. O tempo representa valor financeiro e não pode

ser desperdiçado, não se pode parar no auxílio a alguém que esteja precisando

arrumar emprego, pois vai imperando o sentimento de individualidade característico

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129

dessa realidade social. Isso vai de encontro ao que na comunidade era algo

sagrado, o sentimento de coletividade que fortalecia a cada um dos moradores. Essa

mudança é algo notado em outros estudos sobre migrantes. Lucena constata em

suas observações sobre migrantes mineiros em São Paulo que ocorre mesmo

transformações visíveis, pois:

Os laços de sociabilidade e de solidariedade foram adquirindo um ritmo disciplinado. Os laços de compadrio foram afrouxando, diminuindo também o hábito de visitar parentes e compadres. Os padrinhos já não possuem com a mesma ênfase os compromissos que tinham com seus afilhados (LUCENA, 1999, p.165).

As falas sempre se ressentem dessa mudança que para alguns é algo difícil

de entender. Mas não há como não admitir que essas transformações que

acontecem são inerentes ao processo de migração e não poderia ser diferente em

relação ao quilombo Tapuio. Talvez essa parte mais visível, nas relações de

parentesco seja perceptível por causa dos intervalos entre as idas e vindas que

aconteciam em tempos bastante curtos, ou seja, foi possível verificar essas

mudanças de forma mais nítida.

Contudo, salta aos olhos a diferença existente quando do trato corriqueiro em

que as relações vão se tornando fluidas até chegar ao ponto de alguém dispensar a

estadia na casa do seu parente para evitar passar por algum tipo de

constrangimento ou sentimento de humilhação. Um depoimento emblemático desse

tipo de atitude é o que foi dado por Abraão Vicente dos Santos:

Rapaz não é bom. Você sair daqui, eu Abraão não me sinto bem. [...] Eu sempre costumo dizer que, é o que eu vejo lá, que parente em São Paulo só é bom duas vezes no ano: natal e ano novo. Porque se é um dia, é só aquele dia de festa acabou você desocupa, porque se você passar três,quatro dias assim não dá (ABRAÃO VICENTE, 2012).

Abraão já aponta na sua fala que é problemático chegar à residência do

parente e se estabelecer por um tempo mais extenso, ou seja, quanto mais tempo

ficar na casa, mais as relações tendem a ficar tensas. A cordialidade não

desaparece por completo, mas a ironia torna-se parte das relações, como podemos

perceber na fala de Abraão:

É o seguinte, o apoio do parente é que você chegou hoje guardou sua bolsa aqui, vai procurar seu emprego. Quando você vier ele já quer saber: “Arrumou emprego?”. ”Vai começar a trabalhar que dia?”.”Tal dia”. Então já

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tá sabendo que você já vai desocupar. Se você arrumou emprego. ”Não”. Então fica (ABRAÃO VICENTE, 2012).

Para ele chega a ser preferível não estender a permanência por mais tempo

que o necessário. Percebemos algum ressentimento na sua fala quando nos contou

que em determinado momento da sua permanência em São Paulo, entre um

emprego e outro teve que ficar por algum tempo na casa de uma tia. Uma

experiência que deixou fortes lembranças impressas em suas palavras:

Algum parente que me deu apoio, apoio assim, uma tia minha que arrumou um quartinho pra mim ficar morando. Quando saí do emprego e entrei em outro tinha que pagar aluguel, então ela arrumou um quarto pra mim.Mas de graça, “só minha risada” mas nada, tudo tinha...água,luz...tudo tinha...roupa lavada...tinha de pagar lavadeira...então tava ocupando o espaço do parente mas não tava usufruindo nada dele.[..]eu ficava pagando como se eu tivesse na casa de um desconhecido, então pra você sair daqui com ajuda de parente,eu mesmo não (ABRAÃO VICENTE, 2012).

Obviamente que a expectativa de quem vem do sertão nordestino para o

grande centro sempre é superestimada. Neste caso específico, dos migrantes do

quilombo Tapuio que já contam com uma “rede” familiar na cidade torna-se ainda

maior, pois em tese o laço de parentesco por si só vai garantir uma boa recepção na

chegada. No decorrer da permanência, o que parecia certo, torna-se duvidoso. E

aos poucos, é como se fosse surgindo um entendimento não registrado de que o

apoio da rede familiar existe, mas é limitado.

Essa espécie de “consenso” não explícito passa a existir e a tornar-se de

amplo domínio na comunidade. Isso, no entanto, não quer dizer que seja

amplamente compreendido. O que nos leva a concluir que o sentimento de

solidariedade que se espera da rede familiar que se forma na cidade é o mesmo que

existia na comunidade do quilombo. Como observado, não é isso o que acontece.

Os dois mundos, o rural e o urbano, têm rotinas diferentes que vão se pautar

também por interesses diferentes. É isso que, de certa forma, vai definindo estas

novas relações.

Outro depoimento de um morador do Tapuio trouxe uma informação que nos

chamou atenção. E ao mesmo tempo vai mostrando exemplarmente como as

tensões se estabelecem e crescem. Senhor Antonio Miguel dos Santos contou fatos

da sua vida, para além das questões relativas ao seu processo de

migração,reveladoras acerca do mundo dos migrantes do quilombo Tapuio. Ele

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narra a sua experiência do primeiro deslocamento para São Paulo com extrema

precisão, detalhando momentos, ações e as agruras pelas quais passou. Assim, nos

contou, que sua primeira viagem foi influenciada pela figura de um primo que já

estava trabalhando em São Paulo. Senhor Antonio disse que “a firma mandou vir

aqui, a firma que ele trabalhava lá, que era para juntar um monte de gente aqui e

levar para [...] para trabalhar”.

Essa fala destoa um pouco das demais pela forma como acontece a ida para

São Paulo. Um primo de Senhor Antonio veio de lá instruído pela empresa em que

trabalhava para fazer uma espécie de “recrutamento” de trabalhadores para os seus

quadros. E foi dessa forma que ele acabou indo para a capital paulista. Lá

chegando, não tinha todos os documentos e teve que providenciar. Isso foi um

complicador, pois Senhor Antonio só havia levado a certidão de nascimento e para

ser empregado tinha que ter outros documentos. Segundo ele, a preocupação era

fazer o alistamento militar, pois era com esse documento que ele faria o registro nas

firmas para trabalhar.

Pela dificuldade encontrada nos primeiros dias, devido a grande quantidade

de pessoas existentes na fila do posto de alistamento e pelo fato do atendimento ir

somente até meio dia, o primo de Senhor Antonio, o convenceu a passar a noite no

local e esperar abrir no dia seguinte, a fim de serem os primeiros da fila. Essa

decisão um tanto corajosa de passar a noite na rua se deu depois que o primo de

Senhor Antonio, cansado de sair de madrugada, chegar ao posto de alistamento e

não conseguir ser atendido na pretensão de tirar o documento de alistamento,

começou a manifestar certa irritação e descontentamento com essa situação.

Senhor Antonio conta assim:

Rapaz, nós saía três horas da manhã,quando nós chegava nos pontos de alistamento lá, a fila tava como daqui naquela casa, e só atendia até meio dia. Quando eu tava pertinho de encostar no balcão para fazer meu alistamento: ”Epa, encerrou?”.Eu disse. “Agora, fazer o que?”. E eu vendo o negócio, e o meu primo começou a ficar agitado, irritado. ”Fazer o que rapaz?”Você me trouxe,você aguente, é...você me trouxe, você aguente” (ANTONIO MIGUEL, 2012).

Esse diálogo entre os primos nos faz observar que há um esgarçamento da

relação entre os dois na medida em que de certa forma, dá-se um confronto não de

forma direta, mas por meio de um tensionamento percebido nos gestos e atitudes.

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Um detalhe desse depoimento despertou a nossa curiosidade em relação ao papel

desempenhado pelo primo nessa empreitada.

É que Senhor Antonio, sempre falou em seus depoimentos que passou por

um sofrimento grande, não só durante esse processo de migração, mas durante toda

a vida. Como isso é recorrente na fala dele, acaba sendo um dado a ponderar. Mas

dentro da ideia de sofrimento está à falta de alimentação, em que ele disse ter

passado fome em uma das vezes que esteve em São Paulo. A razão disso está no

atraso de pagamento do salário. Nesse período, ele cita a figura do “gato”, como

sendo o responsável pelo atraso.

No seu trabalho de pesquisa sobre a escravidão contemporânea em fazendas

de produção agrícola, Rocha nos revela quem é o “gato” e qual a sua função no

processo:

Os trabalhadores passam a residir, em alojamentos da região para onde são deslocados. São levados por um “gato”, que é geralmente contratado por uma empresa agropecuária ou por um fazendeiro no sentido de aliciar trabalhadores. O “gato” serve de fachada para que os fazendeiros sejam responsabilizados pelo crime (ROCHA, 2010, p. 59).

Na investigação de Rocha (2010), os gatos têm importante papel na

arregimentação de trabalhadores para as fazendas de produção agrícola em outros

estados, fora do Piauí. Eles podem ser ex-moradores da região com informações

privilegiadas sobre o lugar e a sua rotina, ou agem tendo a representação local de

alguém de confiança. Isso ajuda muito no “recrutamento” dos trabalhadores que

acabam sendo alçados à condição de trabalhadores cujo status de trabalho é

análogo ao trabalho escravo. Há um “roteiro” para que se chegue a essa condição, o

qual, passa pelo endividamento prévio quando do estabelecimento do regime de

trabalho,onde uma ajuda inicial para custear passagem e alimentação transforma-se

em uma dívida que só vai crescendo,obrigando o trabalhador a permanecer no seu

local de trabalho, inclusive contra a sua vontade, até saldar a dívida.

Não tenho elementos para afirmar que o primo do Senhor Antonio tenha tido

essa função de “gato”, mas ele fez o “recrutamento” para levar pessoas para São

Paulo. O fato é que levar Senhor Antonio para trabalhar em São Paulo teve um

custo para o primo dele, que estava perdendo tempo de trabalho ao ter que

providenciar a sua documentação e isso gerou certo atrito entre ambos. Como

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estratégia de sobrevivência, Senhor Antonio colocou a responsabilidade pela sua

estadia em São Paulo, sobre a pessoa do seu primo, que em determinado momento

disse chamar-se Anastácio. Após algum tempo as coisas se resolveram e os ânimos

serenaram.

Isso tende a nos mostrar que mesmo com todos os problemas inerentes as

relações que se impõe quando se referem ao âmbito familiar, ainda é esta família

que na migração, tem um papel estratégico.

São estas mesmas relações conflituosas em alguns momentos, que vão

permitir também um equilíbrio para que cada um que chega à cidade grande possa ir

aos poucos, adquirindo algum espaço e certo nível de independência. Este mesmo,

futuramente poderá prestar auxílio a outro, e assim de forma sucessiva.

Portanto, ainda que possamos perceber que nem todas as relações possam

não ser tão tranquilas o quanto parecem, elas se articulam de um jeito a não permitir

que um conflito se aprofunde a ponto de inviabilizar deslocamentos e acolhidas da

rede de parentesco em São Paulo. Mesmo situando este trabalho de pesquisa nos

anos de 1970 e 1980, podemos afirmar que esse é um traço de permanência nos

dias atuais. Objeto para outros estudos.

Assim, o que estes depoimentos sobre as vivências e experiências destes

homens nos mostram, é quão significativo foi o caminho da memória que nos trouxe

até aqui, as vivências expressas nestas narrativas são a concretude do tempo

histórico. Um pouco da história de cada um valiosamente compartilhada e ainda que

possamos pensar em uma lógica imperfeita para tudo que foi dito, é assim que o

processo se encaminha e vai seguindo. Pensamos na ideia de historicidade

enquanto aquilo a que Delgado se refere:

Assim sendo, o olhar do homem no tempo e através do tempo, traz em si a marca da historicidade. São os homens que constroem suas visões e representações das diferentes temporalidades e acontecimentos que marcaram a sua própria história (DELGADO, 2003, p.10).

Por mais que existam problemas familiares mal resolvidos, conflitos entre

parentes e dificuldades de relacionamentos, estes homens que estão hoje na

comunidade, registram de maneira firme e corajosa, todas as dificuldades pelas

quais tiveram que passar para construir, nos dias atuais, uma visão de mundo bem

diferente da que tinha ao partir da sua terra.

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O que permanece na memória são estas vivências e experiências mais

profundas e que sem dúvida nenhuma os levaram a construir novos valores, a

reconhecer que a partida pode ter sido algo que acrescentou pouco a sua vida, onde

o trabalho, a responsabilidade, a convivência com pessoas que nem sempre lhe

deram tanto valor, foram etapas sofridas, mas talvez necessárias para que houvesse

um compartilhamento de aprendizagens que reforçam as relações familiares e

atuam de certa forma, como um mecanismo contrário a desintegração completa da

família e da comunidade.

As vivências passadas são um encontro consigo mesmo, mas também com a

própria comunidade, onde cada coisa passar a adquirir significados importantes,

embora nem sempre valorizados como devessem ser. Assim, são as lembranças da

infância, muitas vezes desprezadas e que terminam em alguns casos sendo a

expressão da verdadeira felicidade, a qual se imaginava está fora, mas que ao

contrário sempre esteve mais perto do que se pensava.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este trabalho de pesquisa teve por finalidade investigar a prática da migração

de retorno de moradores do quilombo Tapuio, município de Queimada Nova – PI.

Para isso analisamos inicialmente as motivações da saída do quilombo, para em

seguida buscar as motivações da volta à comunidade e posteriormente historicizar

as experiências desses moradores, entendidas aqui como vivências ocorridas no

espaço urbano, mas também no campo e em diferentes tempos.

A condição de migrante assumida por alguns moradores do quilombo, aqui

especificamente estabelecida entre os anos 1970 e 1980, é algo que tem

sistematicamente se repetido ao longo dos anos, acentuando-se em períodos de

seca prolongada. Muito embora, não possamos fazer uma desvinculação da busca

por trabalho e melhores condições de vida por parte dessas pessoas. Os estudos

sobre processos e fluxos migratórios têm se ampliado nos últimos anos, mas ainda

precisam incorporar novas possibilidades de explicação do fenômeno para diferentes

sujeitos, como é o caso aqui dos quilombolas.

No quilombo Tapuio, verificamos essa permanência da migração;

independente do que motivava as pessoas a saírem ou a voltarem para o convívio

na comunidade. Constatamos que a migração e o retorno foram experiências

marcantes na vida daqueles moradores por serem práticas constantes e assim

passarem a constituir memória comum ao grupo, influenciando desta forma as

gerações atuais.

Deslocamentos para fora do Nordeste são comumente ocasionados por três

fatores, evidenciados na pesquisa: a seca, a atração exercida pela cidade grande

com toda a carga de expectativa (bonita, cheia de luzes, barulhenta, civilizada..., em

detrimento a vidinha pacata da zona rural, do interior...)58 e, por último a questão

58 WILLIAMS, Raymond. O campo e a cidade: na história e na literatura. Tradução Paulo Henriques Britto. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

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fundiária, centrada na concentração da posse da terra. A seca no Nordeste continua

sendo um grave fator de expulsão de pessoas para fora da região, isso acontecia

em 1970 no Tapuio, tem continuidade e agrava-se em períodos de estiagens mais

longas.

Evidenciam-se outros fatores para a partida dos moradores do quilombo como

a busca por melhores condições de vida, correlacionada à existência e agravamento

da seca, que desta forma nos leva a ver a migração como estratégia de reprodução

social do quilombo, através da manutenção das famílias pela ajuda financeira

enviada por aqueles que estão trabalhando na cidade de São Paulo, principal

destino dos que migram do quilombo. Ou ainda pela própria volta do morador ao

quilombo com alguma quantia em dinheiro.

As narrativas são o meio pelo qual há o acesso às memórias dos migrantes, a

fim de entender as questões propostas por esta pesquisa. No Tapuio há uma

memória compartilhada pelo grupo que expressa o motivo pelo qual os moradores

buscam a cidade, uma vez que o desejo de ir para o centro urbano é algo que existe

como um discurso que está presente no meio da coletividade e nas narrativas dos

nossos entrevistados. Esse desejo manifesto é algo com o qual, os moradores têm

contato desde cedo. A maioridade seria o ponto em que o desejo torna-se incontido

e juntamente com os outros fatores leva à saída do quilombo.

Falamos da prática de um grupo específico, de comunidade quilombola. Os

homens entrevistados, todos hoje com seus 50 ou 60 anos, que saíram e retornaram

ao quilombo em outro tempo. Ir para o grande centro e lá permanecer por alguns

meses, trabalhando e almejando voltar acontece também porque há um suporte,

uma retaguarda, uma logística que é proporcionada e se materializa pela ação

familiar, que vai formando ao longo dos anos uma rede de apoio na cidade,

composta por aqueles parentes que já fixaram residência definitiva em São Paulo.

A relação entre migrantes e seus familiares na cidade, não esconde as

contradições advindas dessa circunstância de alguém estar em um lugar e ter

“obrigatoriamente” que ajudar o parente próximo que vai chegar. O sentimento de

solidariedade inicial, aos poucos muda, interferindo nas relações e afetando a

convivência, que deixa de ser tão amistosa. Alguns até evitam um contato mais

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demorado com os parentes da cidade, preferindo se alojar no trabalho, quando na

construção civil (geralmente), ou rapidamente alugando algum tipo de imóvel para

morar. Ainda sim, a presença e o apoio de parentes e familiares é algo

imprescindível para se chegar e permanecer em São Paulo até arrumar trabalho,

pois sem eles tudo seria bem mais difícil.

Quanto à migração para retornar ao lugar de origem, esta pesquisa já

demonstra que tem se tornado uma tendência nos últimos anos, mas que ainda

carece de um aprofundamento, enquanto campo de pesquisa, o que deixarei para o

doutoramento. Aqui, o retorno para o quilombo Tapuio, já nas décadas de 1970 e

1980, reflete essa tendência. Voltar para “casa” tem algumas motivações e elas não

têm só como pano de fundo o fator econômico, muito importante, sem dúvida.

Permanecer na cidade grande sem uma fonte de renda definida não é possível. O

trabalho sempre foi e continua sendo fator de valorização no interior do nordeste e

não exercê-lo causa constrangimento, bem como a dependência financeira de outra

pessoa é algo inadmissível.

A perda do emprego e a dificuldade em arranjar outro, aos poucos leva o

migrante a decidir voltar para o quilombo, por uma questão mesmo de sobrevivência.

Afinal, estando em casa não há tanta dependência assim do dinheiro. A

discriminação por origem também aparece neste estudo como algo muito presente.

O ser nordestino aparece no trato das relações cotidianas e, se transfigura e se

mescla nas identidades (do nordestino, baiano, piauiense, paraíba). A identidade

quilombola está em processo de construção, ou seja, busca se consolidar interna e

externamente.

Sair do quilombo não faz com que os laços familiares sejam rompidos e,

portanto, a saudade dos parentes e do lugar é um sentimento que aflora e tem

influência nesse retorno. Ainda que os tempos de permanência possam ser grandes,

por mais de ano, por exemplo, a comunicação não deixa de acontecer. O sentimento

de perda, comumente aparece nas falas, adquirindo sentidos diversos, como a

perda de tempo ou de vivências junto a familiares e amigos. Perdas estas

irreversíveis, sobretudo no que tange ao convívio familiar.

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Destarte, chegamos fortalecidos ao final desse processo de investigação e

reflexão, sobretudo por entendermos agora que as imagens que criamos sobre o

lugar e as pessoas nos levaram a perceber ao longo do trabalho, que se fazia

necessário revê-las e reelaborá-las dentro de uma nova perspectiva. Possivelmente,

esse era um caminho natural ao fim desta jornada. Para, além disso, constatarmos o

descortinamento de uma questão interessante ao estudar os migrantes do Tapuio.

Pudemos compreender muito mais o que estas viagens representaram e

quais resultados trouxeram as idas e vindas daqueles migrantes, até o seu retorno

definitivo para a comunidade. Visualizamos, inicialmente, o lado prático desse

processo que se apresenta como uma estratégia quer seja para a sobrevivência, ou

ainda para a reprodução social, ou senão para muitas outras ações realizadas e

para outras que não foram. Mas na perspectiva de um olhar mais atento,

observamos que toda essa ação realizada mexeu com a vida destas pessoas e

influenciou nas suas relações cotidianas de maneira profunda, nos levando a uma

reflexão acerca do status de cada um na relação com a família e com a própria

comunidade.

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