Upload
webert-guiduci-de-melo
View
241
Download
0
Embed Size (px)
Citation preview
7/26/2019 Dissertao Max Scheler
1/140
PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DE SO PAULO
PUC-SP
Emerson Ginetti
A crise dos valores ticos segundo Max Scheler
Dissertao apresentada Banca Examinadora,como requisito parcial obteno do grau deMestre em Filosofia, pelo programa de Ps-
Graduao emMESTRADO EM FILOSOFIA
Dissertao apresentada Banca Examinadora,como requisito parcial obteno do grau deMestre em Filosofia, pelo programa de Ps-Graduao em Filosofia e Cincias Humanas,da Pontifcia Universidade Catlica de SoPaulo, sob a orientao do Prof. Dr. MrioAriel Gonzlez Porta.
SO PAULO
7/26/2019 Dissertao Max Scheler
2/140
Livros Grtis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grtis para download.
7/26/2019 Dissertao Max Scheler
3/140
PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DE SO PAULO
PUC-SP
Emerson Ginetti
A crise dos valores ticos segundo Max Scheler
Dissertao apresentada Banca Examinadora,como requisito parcial obteno do grau deMestre em Filosofia, pelo programa de Ps-
Graduao emMESTRADO EM FILOSOFIA
Dissertao apresentada Banca Examinadora,como requisito parcial obteno do grau deMestre em Filosofia, pelo programa de Ps-Graduao em Filosofia e Cincias Humanas,da Pontifcia Universidade Catlica de SoPaulo, sob a orientao do Prof. Dr. MrioAriel Gonzlez Porta.
SO PAULO
7/26/2019 Dissertao Max Scheler
4/140
BANCA EXAMINADORA
_______________________________Prof. Dr. Mrio Ariel Gonzlez Porta
PUC-SO PAULO
_______________________________Profa. Dra. Constana Terezinha Marcondes Csar
PUC-CAMPINAS
_______________________________
Profa. Dra. Silvia Saviano Sampaio
PUC-SO PAULO
7/26/2019 Dissertao Max Scheler
5/140
AGRADECIMENTOS
Primeiramente a Deus pela sade e sabedoria na realizao deste trabalho.
Ao meu orientador, Prof. Mrio Ariel Gonzles Porta, pelo apoio,
dedicao e pacincia durante o trabalho. Sua ajuda incansvel e o
acompanhamento crtico do trabalho deixaram em mim a imagem da seriedade da
pesquisa filosfica e incentivam-me a continuar pelo universo da pesquisa
acadmica.
Ao CNPq e PUC-SP, pelos auxlios concedidos, sem os quais este trabalho no
poderia ter sido realizado.
Profa. Constana Marcondes Csar, que alm do profissionalismo e sabedoria sempre
demonstrou interesse e zelo por este trabalho.
Profa. Silvia Saviano Sampaio, que me acompanhou na
estada de pesquisa nessa universidade, minha admirao e respeito.
Aos professores que participaram da comisso examinadora.
A todos os professores e funcionrios do departamento de Filosofia da PUC-SP
pelos ensinamentos e pela ajuda.
A meus pais, pela educao, incentivo e carinho e minha famlia por estar
sempre presente.
Aos amigos que me acompanharam neste percurso acadmico, em especial
Sandra Lcia, Pe. Altair Soares, Simia (secretria acadmica), Maria Jos (Zez), Arnold
Cabrelli, Jos Roberto pelo apoio e incentivo.
A meus colegas da PUC-SP
7/26/2019 Dissertao Max Scheler
6/140
Em poca alguma foram as opinies sobre a essncia
e a origem do homem to incertas, to indeterminadas como a nossa...
Dentro de uma histria de aproximadamente dez mil anos, somos a primeira poca em que o
homem se tornou completamente problemtico para si mesmo; na qual ele no sabe mais
o que , mas ao mesmo tempo sabe que no sabe.
Ferdinand Max Scheler
7/26/2019 Dissertao Max Scheler
7/140
RESUMO
O presente trabalho tem como objetivo tecer uma anlise da crise dos valores ticos,
considerando-a como uma crise de valores histricos, segundo o pensamento de Ferdinand
Max Scheler. H uma explicao da crise que tambm poder ser ainda uma possvel soluo:
o resgate de uma tica material dos valores objetivos, que no se molda nas configuraes
predominantes no seio do homem moderno, carente de referenciais capazes de sustentar uma
tica que o conduza perfeio moral e sua prpria realizao. Nota-se que a crise marcada pelo secularismo, relativismo e subjetivismo, no campo axiolgico. Na crise atual
d-se uma inverso na hierarquia dos valores. Tal tendncia a subordinao dos valores mais
altos aos mais baixos, passando, estes, a serem considerados superiores. Esta inverso na
hierarquia dos valores, segundo Scheler, motivada pela moral daqueles que se encontram
acometidos pelo ressentimento e pelo humanitarismo. Nota-se a necessidade de uma
moral sustentada por valores que sejam mais estveis, duradouros, no impregnados de
interesses ou elaboraes subjetivas onde o ato moral, que deve orientar a conduta humana,
sustentado nos paradigmas apresentados pela modernidade. Os valores mais altos esto
submetidos aos que esto ligados sensibilidade, matria. Desse modo, Scheler prope sua
tica objetivista como possvel substituto para o subjetivismo predominante na tica da
sociedade moderna, aspirando-se a algo que sustente o ser e o agir humanos e d razo aos
mesmos.
PALAVRAS-CHAVE: Axiologia; tica; Relativismo; Subjetivismo; Secularismo
7/26/2019 Dissertao Max Scheler
8/140
ABSTRACT
This work aims to make an analysis of the crisis of ethical values while considering it
to be a crisis of historical values, according to Ferdinand Max Scheler. There exists an
explanation to the crisis, as well as a possible solution: the rescue of material ethics of
objective values, which are shaped in configurations prevalent within modern man, lacking
references capable of sustaining an ethic that will lead to perfect morality and its own
achievement. Note that the crisis is marked by secularism, relativism and subjectivism in theaxiological field. The current crisis gives a reversal in the hierarchy of values. This trend is
the subordination of the highest to the lowest. This reversal in the hierarchy of values,
according to Scheler, is motivated by the morale of those who are affected by "resentment"
and "humanitarianism". Note that the need for sustained moral values is more stable and
durable. Non-impregnated interests or subjective elaborations where the moral act is sustained
by the paradigms presented by modernity. The highest values are subject to those associated
with sensitivity to the matter. Thus, Scheler proposes his objectivist ethics as a possible
replacement for subjectivism predominant in modern society, aspiring to something that
sustains human life and work.
KEYWORDS: Axiology Ethics Relativism Subjectivism; Secularism
7/26/2019 Dissertao Max Scheler
9/140
SUMRIO
INTRODUO.......................................................................................................... 007
01 CAPTULO I: OS FUNDAMENTOS DOS VALORES TICOS........................ 014
1.1 Diviso do esprito com a razo e a ordem hierrquica dos valores...................... 017
1.2 O ressentimento..................................................................................................... 0201.3 O juzo dos valores................................................................................................ 024
1.4 A relatividade dos valores...................................................................................... 025
1.5 Personalismo tico................................................................................................. 025
02 CAPTULO II: O CONCEITO DE VALOR E O PROBLEMA DA
HISTORICIDADE.....................................................................................................
027
2.1 Historicidade e Universalidade.............................................................................. 0332.2 Absolutismo e relativismo ticos........................................................................... 036
2.3 O ethos e sua historicidade................................................................................. 042
2.4 Variaes do ethos e captao de valores.......................................................... 046
03 CAPTULO III PRINCPIOS DE UMA UNIVERSALIDADE TICA NA
HISTRIA.................................................................................................................
054
3.1 Racionalidade da vida histrica e historicidade da vida moral.............................. 054
3.2 Os limites do relativo na moral e na histria......................................................... 058
3.3 O apriorismo material dos valores ou uma hierarquia vivencial na histria......... 067
3.4 A realizao dos valores na histria...................................................................... 082
04 CAPTULO IV PROLEGMENOS DE UMA TICA NA AXIOLGIA
HISTRICA...............................................................................................................
091
4.1 Scheler e o problema da Axiologia........................................................................ 091
4.2 Historicidade e existncia pessoal......................................................................... 094
7/26/2019 Dissertao Max Scheler
10/140
4.3 O a priori material como recuperao da historicidade dos valores...................... 096
4.4 Variaes axiolgicas e revelao dos valores na histria.................................... 099
4.5 A infinitude do valor e a histria 102
05 CAPTULO V - HISTRIA E A TEORIA DOS VALORES.............................. 104
5.1 Razes do pensamento histrico de Scheler........................................................... 105
5.2 Descobrir e realizar valores................................................................................... 110
06 CAPTULO VI A CRISE HISTRICO AXIOLGICA................................... 112
6.1 Subjetivismo e relativismo ticos.......................................................................... 112
6.2 O valor e o seu sentido moderno........................................................................... 1166.3 Decadncia do ethos........................................................................................... 119
6.4 Manifestaes modernas no pensamento de Scheler ............................................ 121
6.5 A crise de valores no juzo da moral...................................................................... 122
CONCLUSO............................................................................................................ 125
BIBLIOGRAFIA....................................................................................................... 131
7/26/2019 Dissertao Max Scheler
11/140
INTRODUO
Um dos assuntos mais importantes na atualidade o problema tico. Fala-se em uma
crise tica, prpria do modo de ser da sociedade contempornea, profundamente marcada pelo
subjetivismo, no campo dos valores, especialmente no que concerne moral .
Etimologicamente, o termo tica deriva do vocabulrio Grego ethos, que significa
costume da ter sido a tica definida freqentemente como a doutrina dos costumes. A
evoluo sofrida por esse termo fez com que, atravs do tempo, a tica fosse identificada com
a moral, considerando-se como filosofia moral a cincia que se ocupa dos atos morais em
todas as formas. possvel elaborar, margem das ideias morais, uma histria da tica comocincia filosfica. Esta abrange somente o estudo das teorias morais filosoficamente
justificadas, ou seja, examinadas em seus fundamentos, com uma explicao racional das
ideias ou normas adotadas. Embora com Aristteles se tenha elaborado uma tica como
disciplina filosfica, h precedentes nas reflexes de carter tico dos pr-socrticos, quando
estes procuravam encontrar as razes pelas quais os homens tinham de comporta-se de uma
determinada maneira. J nas escolas filosficas posteriores a Aristteles houve um
fundamento de caractersticas comuns a todas elas, tais como tendncias de encontrarem umabase da tica na prpria natureza. Uma tentativa de estabelecer uma hierarquia entre os bens a
que o homem deve aspirar (tica dos bens) e enfim o predomnio da busca da tranquilidade,
do nimo e a primazia da existncia prtica sobre a terica. As teorias de Plato foram
adotadas pelos neoplatnicos, embora estes tenham misturado a elas algumas ideias de
Aristteles e, sobretudo, dos esticos. Com o neoplatonismo foram introduzidas considerveis
modificaes no campo da tica e com o aparecimento do Cristianismo efetuaram profundas
modificaes nas teorias precedentes. A principal caracterstica da tica crist foi a absorodo tico no religioso, fundamentaram-se em Deus os princpios da moral - tica tenoma.
Adaptaram-se princpios e normas dos platnicos e esticos (como a classificao das
virtudes) e, em geral, esta classificao foi acolhendo paulatinamente o pensamento moral da
tica grega, suprimindo o que era incompatvel com a doutrina crist. Em ambos os
pensamentos, grego e cristo, logo se evidenciaram vrios pontos de contato, dos quais um
dos mais importantes foi a equiparao do bom ao verdadeiro, questo que o cristianismo
desenvolveu amplamente, com a elaborao da teoria dos transcendentais.
Partindo da distino platnica entre um mundo do a priori e um mundo de
7/26/2019 Dissertao Max Scheler
12/140
bsica, com sua doutrina do a priori relativo1. Os contedos de essncia material
encontram-se numa ordem de fundao hierarquicamente organizada, na qual os contedos
so sempre a priori, relativamente aos contedos fundados.
Scheler entende a doutrina do ethos em diversas culturas e pocas histricas, como a
concepo mais radical do perspectivismo dos valores. Ela no se relaciona mudana das
valoraes particulares, que foram assumidas por determinados indivduos, classes sociais ou
povos. Tambm no atinge a adaptao de concepes de valores a condies histrico-
sociais modificadas, porm procura descobrir a mudana na estrutura vivencial dos valores e
das regras de preferncia a ela imanentes2, a qual mudana ocorre por trs da moral praticada
ou da tica formulada. Scheler acredita reconhecer, na esfera terica, uma funcionalizao da
razo, ele reconhece, na esfera dos valores, uma histrica funcionalizao do sentir3.* * * *
A escolha da tica como objeto de investigao e da contribuio de Scheler
decorreu de dois fatores. Em primeiro lugar, a tica constitui, segundo reconhecem todos
os estudiosos de Scheler, a sua Obra mais completa. Em segundo lugar, porque a tica
constitui o ponto central de entroncamento de todo o seu pensamento: tudo quanto escreveu
antes ou escreveria depois do perodo 1913-1916 est de algum modo relacionado tica.
Alm disto, cabe mencionar que Scheler jamais condenou ou retirou da tica qualquerpalavra ou ideia, em revises posteriores, tendo sempre afirmado, at a poca da publicao
de suas ltimas obras em vida, que a tica refletia fielmente seu pensamento, cujas linhas
centrais, extremamente densas, procurou ramificar e desenvolver nas obras que elaborou entre
1916 e 1928, quando veio a falecer.
Metodologicamente, no foi possvel elaborar um resumo das principais ideias da
tica pelo simples fato de que se trata de uma obra to abrangente e ampla que seu
contedo poderia ser encarado sob dezenas de aspectos.Poderia ser dito mesmo que a tica constituda de vrios livros ou, pelo menos, de
vrias camadas de pensamento que se superpem e se completam, de forma excntrica, como
as sucessivas camadas de um tronco de rvore.
1Scheler mencionou a distino entre o a priori relativo e o absoluto no Livro do Formalismo da tica e ticamaterial dos valores, mas no desenvolveu sistematicamente; tambm no o fez em seus outros escritos. Noartigo de publicao pstuma, Phnomenologie und Erkenntnistheorie (Fenomenologia e teoria do
conhecimento), de 1914, Scheler estabelece o a priori relativo, relacionando-o com a ordem rgida, na qualessncias a priori se nos tornam reais.2 SCHELER Max Formalismo da tica e tica material dos valores p 30
7/26/2019 Dissertao Max Scheler
13/140
Partindo de uma ideia central, de que o a priori tico no necessariamente formal,
como em Kant, podendo ser material, em um sentido tambm diverso daquele atribudo por
Kant, Scheler construiu uma tica que trata desde o problema da imperatividade e do
eudemonismo, temas tradicionalmente ticos, at o problema do valor e da pessoa, temas que
ganharam grande originalidade em seu pensamento.
Scheler, filsofo de origem alem, escreveu a tica tendo como um de seus
propsitos fundamentais a preocupao de enfrentar o problema do relativismo tico
decorrente da introduo da histria como novo elemento explicativo da vida prtica
universal.
Estes so, pois, os principais motivos pelos quais a tica foi escolhida para este
exame do pensamento axiolgico de Scheler. Embora Scheler tenha elaborado outrostrabalhos posteriormente, em que trata do tema da histria, como Die Stellung des Menschen
in Kosmos, Wissensformrn und die Gesellschaft e El gnio de la guerra4, e outras5, a
tica a obra que rene todo o ncleo de seu pensamento, cujo ponto de partida j se
encontra em sua tese de doutoramento de 1899 e cujos prolongamentos alcanaram at
mesmo as ltimas obras escritas entre 1926 e 1927.
Procurei efetuar um exame de contribuies do problema da crise da tica pela obra
intitulada O Formalismo em tica e a tica Material dos Valores, publicada originalmentesob o ttulo Der Formalismus in der Ethik und die materiale Werthik6.
Esta obra de Scheler foi lida e analisada em sua edio francesa de 1955, atravs da
traduo de Maurice de Gallimard7 sob o ttulo Le Formalisme em thique et lthique
materiale des valerus Essai pour fonder un personalisme thique, confrontada com a edio
alem de 19668
Tratando-se de ttulo extenso e apenas para efeito de referncia obra mencionada,
todas as citaes ou menes a O Formalismo em tica e a tica Material dos Valoresdoravante sero feitas apenas atravs de meno palavra tica, que indica simbolicamente
o contedo da obra, tal como j consta do prprio ttulo do presente trabalho.
4Publicado em 1915.5 "O transcendental e o mtodo psicolgico" (1901); "O ressentimento e o juzo moral dos valores" (1912);"Escritos e esboos" (2 volumes, 1915 e Segunda edio com o ttulo: "Crise dos valores", 1919); "Guerra eConstruo" (1916); "O eterno no homem"(1921); "Essncia e formas de simpatia" (1923); "Escritos desociologia e da doutrina da Weltanschauung" (4 volumes - 1923/24); "As formas do saber e a sociedade" (1926);"Intuio filosfica do mundo" (1928); "A ideia da paz e o pacifismo" (1931); Escritos pstumos (1933).6Berlim, 19167 SCHELER, M. Le formalisme em thique et l'thique materiale ds valeurs: essai noveau pour fonder umpersonnalisme thique Paris: Gallimard 1955
7/26/2019 Dissertao Max Scheler
14/140
As citaes da tica so feitas em funo da edio francesa de 1955, seguidas da
numerao da edio original, tal como aparece margem esquerda da edio francesa de
1955.
Deve ser dito, por fim, que este trabalho constitui apenas uma tentativa de salientar um
aspecto da obra de Scheler que, apesar de sua extrema atualidade, vem sendo esquecido tanto
por aqueles que procuram examinar filosoficamente o problema da implicao dos valores
ticos, quanto pelos prprios comentrios de Scheler. So inmeros os prolongamentos
possveis dos resultados da reflexo histrica e axiolgica de Scheler. Entre estes
prolongamentos, parece ser possvel entrever inclusive os lineamentos para uma nova
interpretao filosfica, tarefa to extensa quanto fascinante que, sem caber no mbito das
dimenses atuais, abre a esperana de vir a constituir um futuro desdobramento.Quanto ao mtodo adotado para a elaborao do presente trabalho, deve ser dito que a
obra de certos filsofos, para ser melhor compreendida, solicita a elaborao de um mtodo
que se ajuste natureza de sua filosofia. Sem excluir qualquer possibilidade de adoo de
mtodos no-procedentes de um determinado filsofo para a anlise de sua obra, convm
esclarecer que o pensamento de Scheler inclui-se entre aqueles que resistem aplicao de
mtodos que no procedam pelos mesmos instrumentos de reflexo.
Assim sendo, no seria possvel adotar, para a anlise do pensamento de Scheler, omtodo lgico-educativo de inspirao aristotlica, nem o mtodo dubitativo-dedutivo, de
inspirao cartesiana, nem o mtodo emprico-indutivo, de inspirao baconiana e nem ainda
o mtodo crtico, de inspirao kantiana.
O mtodo adotado tem inspirao dialtica, acrescido da inspirao intuitivista de
procedncia fenomenolgica. O mtodo adotado, portanto, poderia ser identificado como
dialtico-intuitivo, que pode ser assim explicado quanto natureza de seus procedimentos:
partindo da intuio imediata da essncia de uma ideia, procura-se encontrar, atravs deelementos opostos que permitam dialeticamente o desenvolvimento de snteses sucessivas, o
resultado pressentido na prpria intuio inicial, que desencadeou a procura filosfica.
No caso presente, a intuio inicial pode ser assim definida: a histria torna-se
novamente inteligvel, filosoficamente, a partir de Scheler, como autocompreenso do homem
a respeito do carter absoluto de sua ao de realizar valores, ao esta que relativiza o
passado e se constitui em uma sntese entre um a priori axiolgico que intui e uma realidade
histrico-material que a condiciona.
A partir desta intuio inicial, foi iniciada uma pesquisa destinada a efetuar uma
7/26/2019 Dissertao Max Scheler
15/140
7/26/2019 Dissertao Max Scheler
16/140
numa maneira de suprir ou fugir da prpria impotncia diante das realidades valorativamente
superiores e que no se pode alcanar.
No Captulo II, partindo do valor que surgiu como ponto terminal da reflexo
anteriormente elaborada, desenvolve o tema do carter axiolgico do conhecimento e da
realidade histrica, atravs de dois elementos dialeticamente opostos: o carter axiolgico e o
carter histrico do valor. No primeiro destes dois componentes, feita uma anlise de uma
crise da filosofia da Histria na atualidade que, por sua vez, foi o resultado dialtico de
imprecises historiogrficas dos filsofos da Histria e da inaptido filosfica dos
historiadores. Como reconstituio da tradio filosfica do problema, construdo o tema do
carter histrico do valor. A indagao busca, aqui, retroceder ao passado filosfico a fim de
procurar descobrir elementos que possam indicar em que medida o valor j tem sido encaradocomo um elemento inspirador das aes histricas ou explicativo do significado inteligvel
das aes histricas. Aqui, o resultado alcanado permitiu apresentar um confronto entre uma
tradio filosfica em que j pressentida a influncia do valor na vida histrica, e uma
filosofia relativista que colocou em dvida a possibilidade de integrao do valor no plano
histrico.
Deste confronto, resulta novamente uma sntese inacabada, incompleta e insatisfatria:
retomar a tradio de demonstrao do carter histrico do valor, sendo necessrio fundaruma tica e uma filosofia da histria que sejam capazes de superar tanto o relativismo tico,
produzido pela cincia moderna, quanto as prticas da moral tradicional, sem negar a
historicidade que a filosofia da poca moderna demonstrou haver na existncia humana e sem
recair, para isto, em um relativismo que impossibilite uma tica de pressupostos universais e
uma filosofia da Histria que torne inteligvel o conjunto das aes histricas.
O Captulo III, sob o ttulo de Os Princpios de uma Universalidade tica da Histria,
apresenta o segundo elemento do conjunto dialtico: procurar demonstrar que Scheler atribui Histria uma universalidade tica fundada sobre o carter absoluto do valor, sem que, com
isto, fosse necessrio incidir em um absolutismo tico que negasse a historicidade em nome
do propsito de atribuir Histria uma inteligibilidade.
Assim, no Captulo IV, caminha-se do relativo para o absoluto, numa revalidao do
carter imprescindivelmente absoluto dos pressupostos ticos, numa rejeio s concluses do
relativismo tico e do ceticismo historicista.
J no captulo V, apresenta alguns pontos relevantes da filosofia dos valores de Max
Scheler, segundo a qual, para Scheler, pode-se ter uma tica capaz de responder aos anseios
7/26/2019 Dissertao Max Scheler
17/140
hierarquizados, podendo ser acessveis a quaisquer homens, isentos de impedimentos morais e
racionais, pois os mesmos so apreendidos apenas atravs da intuio emocional intencional.
Em seguida, no captulo VI, aborda-se a crise histrico-axiolgica propriamente dita.
Esta profundamente marcada pelo secularismo, relativismo e subjetivismo, no campo
axiolgico. Tal maneira de conceber a tica provoca uma inverso na hierarquia dos valores,
em que os referenciais que regem o comportamento humano no obedecem mais aos valores
que esto submetidos e ligados sensibilidade, a matria. Este processo, no entanto, teve seu
primeiro impulso com o desenvolvimento das cincias e, posteriormente, da indstria. No
que estes elementos sejam indesejveis ou negativos, mas o que se mostrou foi que os
homens deixaram-se influenciar negativamente por aquilo que eles prprios criaram. Isto
equivale a afirmar que o referencial tico valorativo no so mais os valores humanos massim a cincia e a tcnica criadas pelos prprios homens. Scheler, como pudemos notar,
protesta contra esta forma de se configurar a vida moral do mundo contemporneo.
A concluso a ser alcanada, embora j implcita em toda recomposio do
pensamento tico de Scheler com relao teoria dos valores, identifica-se com a sntese,
finalmente exposta por Scheler, entre o carter relativo da tica e da Histria e o carter
absoluto do valor. Esta sntese seria ento idntica intuio inicial que presidiu toda a
elaborao do trabalho: a crise dos valores e a crise Histrica tornam-se novamenteinteligveis, filosoficamente, a partir de Scheler, como uma auto compreenso do homem a
respeito do carter absoluto de sua ao de realizar valores, ao esta que relativiza o passado,
constituindo-se em uma sntese entre um a priori axiolgico que intui e uma realidade
histrico-material que a condiciona.
7/26/2019 Dissertao Max Scheler
18/140
01 CAPTULO I: OS FUNDAMENTOS DOS VALORES TICOS
Max Scheler, em vez de falar sobre uma realidade referida a valores, critica uma tica
material de valores, a existncia de um mundo do ser totalmente separado do mundo do
dever-ser, onde os valores, enquanto bem, esto completamente separados da existncia,
entendida como mero suporte dos valores, e estes, perspectivados como realidades soltas,
absolutas9.
Os valores, como as ideias platnicas no so estruturas formais, carentes de contedo,
mas de contedos, matrias, estruturas, que determinam um especfico quale em coisa,
relaes ou pessoas.
Para o idealismo intelectualista da tradio platnico-socrtica, o fato moral oculta-se
numa ideia que precisa ser conhecida10. Conhecida a ideia do bem, a ao necessariamente
ser boa. Algum somente faz o mal por desconhecimento do bem. Esta tica otimista ignora
as contradies internas no homem, e que no somente a razo comanda as aes. Por outro
lado, sendo o bem ideal, nega o valor, na existncia, como realizao; nega o fato do mal, na
existncia. O valor moral, porm, somente surge como um ato concreto da pessoa, como
realizao de um valor no mundo.Scheler admite um a priori material, isto , que tanto h essncias formais como
essncias materiais. Se Husserl considera que esse a priori material pode ser captado por
intuio intelectual, j Scheler admite que podemos atingi-lo atravs de uma intuio
emocional, completamente independente de qualquer processo indutivo radicado na
experincia sensvel. O a priori scheleriano, , portanto
"um contedo essencial do conhecimento que nos direciona aocontedo absoluto do ser e do valor do mundo, posto que j notem razo para a separao radical entre a coisa em si e ofenmeno11
Os valores so descobertos pela experincia fenomenolgica, que a priori no sentido
de que no so conhecidos pela experincia sensvel ou observao emprica e se subtraem a
todo procedimento de induo.
9Reviravolta dos Valores, pg. 6510ET.I. Pg. 21911 Juan Llambias de Azevedo La Fenomenologia como mtodo de la filosofia Ed Nova Buenos Aires 1965
7/26/2019 Dissertao Max Scheler
19/140
A experincia fenomenolgica dos valores, ainda que concernente a contedos
intuitivos imediatos, difere essencialmente da intuio das restantes essncias eidticas ou
racionais.
Os valores, por conseguinte, no pertencem ao domnio do pensamento, nem so
captados por uma intuio racional. O mundo dos valores possui uma objetividade igual a das
essncias e , como elas, um "a priori" material, suscetvel de apreenso, relaes e conexes.
Tais qualidades axiolgicas diferem das demais qualidades, propriedades ou fora das coisas,
no pertencentes esfera do valor. Elas se distinguem tanto das coisas mesmas como dos bens
fundados nelas, os quais so chamados portadores dos valores - sejam pessoas, coisas ou
aes.
, portanto, em um mbito onde s o esprito pode ter acesso, que os valores existem epodem ser captados. O suporte a ocasio para a captao dos valores, a qual decorrente da
percepo emocional e se funda num "a priori" emocional.
Os valores s podem ser conhecidos no sentir, a saber, no sentir intencional12. Por
isso tambm se fala de uma teoria dos valores, contraposta a uma teoria intelectualista, ou
seja, a teoria neo-escolstica dos valores13.
O ponto de partida da tica de Scheler reside na reviso do processo do conhecimento
deixado por Kant. Para este, s h duas vias para o conhecimento da verdade: pelos sentidosou pela razo. Atravs dos sentidos, possvel atingir os objetos externos ao sujeito, na
medida em que estejam presentes na extenso do mundo e que possam ser representados pela
mente. Atravs da razo, Kant admite que seja possvel conhecer determinados princpios
lgicos e determinadas categorias mentais, mas amplia essa possibilidade quando atribui
razo o papel de orientar a ao, enquanto razo prtica. A esta cabe alcanar o princpio do
dever, sobre o qual se funda no apenas sua regra de conduta para a moralidade, como
tambm o fundamento para uma tica aplicvel a todo e qualquer ser humano, em qualquertempo ou lugar.
O desconhecimento, por parte de Kant, da experinciafenomenolgica, a nica que lhe daria acesso ao a priorimaterial constitudo pelos valores14
Excludas essas duas vias, nenhuma outra h para Kant, como caminho de acesso
verdade, tanto no que se refere ao conhecimento como no que diz respeito ao papel da
12SCHELER, Max. O personalismo tico. Pg. 3913 Newman J H Fundamentao da religio Max Scheler Freiburgo 1923
7/26/2019 Dissertao Max Scheler
20/140
vontade na produo do conhecimento. Viu Scheler que no h, na teoria do conhecimento e
na teoria da ao elaboradas por Kant, lugar para os valores e muito menos para uma terceira
via para o conhecimento, de carter intuitivo ou emocional. Antes dos sentidos e da razo, o
ser humano sente. Trata-se de um sentir independente dos sentidos e no condicionado pela
razo. Essa percepo emocional alcana o que os sentidos no tocam e entende o que a razo
no explica. Scheler entende que a percepo emocional antecede e condiciona todas as
formas e os contedos do conhecimento. Aderindo ao mesmo propsito kantiano de construir
uma tica sobre algum princpio de validade universal, encontra, na noo de valor, o
fundamento que buscava. Segundo sua interpretao, os valores so objetos to reais quanto
os objetos da percepo sensorial e os objetos inteligveis da razo pura. Aplica ao valor o
mesmo carter apriorstico que Kant atribui aos princpios e s categorias. Segundo Kant, s material aquilo que captado pelos sentidos e s formal aquilo que elaborado pela razo.
Scheler afirma que no mundo dos valores, essa oposio entre formal e material no ocorre,
pois os valores so igualmente objetos a priori da intuio emocional, e tambm podem ser
percebidos atravs de sua realizao material15.
Mais ainda, os valores no pertencem ao formalismo da razo, como tambm no
perdem seu contedo apriorstico pelo fato de se realizarem materialmente. Ao contrrio,
necessitam de sua realizao material para serem conhecidos, embora sempre permaneamcomo objetos ideais. Nenhuma realizao material de valor esgota ou suprime seu carter
ideal, na medida em que, a cada valor, corresponde uma infinita srie de realizaes materiais.
Os valores, na concepo objetivista de Scheler, podem ser, portanto, simultaneamente,
materiais e a priori.
Max Scheler busca uma continuidade do pensamento moral kantiano, no sentido de
atestar o fundamento apriorstico, porm, tentando corrigir sua identificao com o formal e o
racional, atravs de uma tica material dos valores e um apriorismo emotivo. Kant estariaassociando, erroneamente, a noo de fim ao de valor. Segundo Scheler, os bens so "coisas"
valiosas16. Atenta para a distino entre bens e valor, no sentido em que aqueles tm validez
indutiva e emprica e esto sujeitos ao da Histria e da natureza, logo, impossibilitados de
constiturem-se em princpios universais17. Bem como no se pode conceber os fins de uma
ao moral separadamente dos valores a serem realizados. Caber tica axiolgica
15SCHELER, Max. O personalismo tico. Pg. 4416 SCHELER Max tica Material dos Valores I Pg 35
7/26/2019 Dissertao Max Scheler
21/140
scheleriana, portanto, apresentar a independncia entre os valores em relao aos bens e aos
fins.
Scheler define os termos bens e fins de um modo particular. Por bens, compreendem-
se objetos que dispem da presena de valor. Por fins, compreende-se todo contedo: do
pensar, do perceber, do representar, que est dado a se realizar. Estes esto fundados nos
objetivos que, por sua vez, no so representativos e pertencem ordem do querer 18. Os
objetivos caracterizam-se, ento, como tendncia a algo, e tm os valores enquanto
fundamento. Neste sentido, os valores, que no podem ser extrados dos fins e tampouco ter
contedos representativos, encontram-se includos nos objetivos. Assim, o conceito de bom
ou mal, anterior a toda experincia.
Os valores, como qualidade independente, a priori, dos bens, relacionam-se tanto aosobjetos do mundo quanto s nossas reaes frente a eles. Esta independncia designa-os
como imutveis e, deste modo, Scheler mostra-se contrrio s formas de subjetivismos
axiolgicos que relativizam os valores, bem como as doutrinas que os compreendem como
imperativos. Para superar tais teses, lana mo do conceito de intencionalidade do
pensamento fenomenolgico. O perceber sentimental, abertura captao do valor como fato
psquico, tende a um objeto irredutvel vivncia. Deste modo, a supresso do perceber
sentimental no equivale extino do ser do valor.
1.1 Diviso do esprito com a razo e a ordem hierrquica dos valores
Recusando as formas de intelectualismo que se baseiam na estrita diviso do esprito
em razo e sensibilidade, Scheler adverte para um terceiro modo - a ordem do corao - j
descrita por Pascal, que seria a via de acesso captao dos valores. Estes se apresentam
inacessveis razo por constiturem-se como objetos emocionais; logo, sua apreenso s
possvel por um meio que se ajuste a eles, ou seja, atravs de um perceber sentimental.
Conexes formais de valores so as primeiras evidncias obtidas a partir da evidncia
da intuio da essncia pura do valor em geral. So conexes formais porque puramente
lgicas. So essenciais, porque independentes de depositrio, de toda qualidade e modalidade
7/26/2019 Dissertao Max Scheler
22/140
de valores,19modalidade que, como veremos, constitui o a priori material de uma tica. Aqui
no estamos falando de tica, ou seja, de realizao de valores, mas sim dos valores como
essncias puras. Estas conexes existem entre os valores mesmos, independentemente se
estes valores existam ou no20.
As conexes formais so relativas essncia pura ou geral do valor, a pura ideia de
valor, independente de sua realizao. So conexes formais as seguintes evidncias: Todos
os valores - ticos, estticos, religiosos; - ou so positivos (tambm chamados simplesmente
valores), ou so negativos (ou desvalores); para cada valor positivo h um seu correlato
negativo. o que tambm se chama a polaridade dos valores. Assim, h a relao de valor
do bom-mau, belo-feio, justo-injusto, etc. Alm disso, um mesmo valor no pode ser positivo
e negativo simultaneamente, (mas, como veremos, apenas superior ou inferior em relao aoutros valores, permanecendo no entanto positivo, se for este o caso).
A partir de Brentano, Scheler identifica quatro relaes essenciais fundamentais e
necessrias na relao entre a pura conexo essencial da polaridade e a dimenso da
existncia21:
a) A existncia de um valor positivo , em si mesma, um valor positivo tambm;
b) A existncia de um valor negativo , em si mesma, um valor negativo;
c) A inexistncia de um valor positivo , em si mesma, um valor negativo;d) A inexistncia de um valor negativo , em si mesma, um valor positivo.
Alm disso, h uma relao essencial entre valor e dever-ser ideal. Primeiramente,
todo dever-ser ideal est fundado num valor. Somente os valores que devem ser (valores
positivos) ou no- ser (valores negativos ou desvalores). A partir da surge a relao entre o
dever ser ideal e o ser justo. O ser justo o ser de um algo que tem sua origem em um dever
ser positivo, isto o ser de um algo que tem sua origem na essncia do valor. por isso que o
ponto de partida da tica no pode ser simplesmente um dever ser, seja um dever serpuramente ideal, como o imperativo formal que decorre de uma lei lgica da razo, muito
menos um dever ser normativo ou prtico, isto , positivado. Porque o dever ser tem sua
origem no valor. por isto que, na crtica a Kant, Scheler observa que este desconhece que
as leis (leis formais de onde Kant pretende tirar a ideia de bom; aquilo que depois de
Husserl se conhece como intenes categoriais, universalizantes, etc.).
19ET-II,p.145: Todos los sentimientos de felicidad y infelicidad est fundados en la percepcin sentimental delos valores, y la felicida ms honda, la beatitude ms acaabad, es absolutamente dependiente en su ser de la
consciencia de la propia bondad moral. Solo el bueno es dichoso.20ET-Ip.124: esas conexiones existen entre los valores mismos, independientemente por comlpeto de que estosvalores existan o no existan
7/26/2019 Dissertao Max Scheler
23/140
Os valores do bom e do mau, em sentido moral, somente podem ter como depositrios
originais pessoas ou atos, isto , os portadores que nunca podem ser objetivveis, como o so
as coisas, bens ou fins. Quando chamamos as coisas de boas somente o fazemos em relao
mediada pessoa, mas no que as coisas tenham um valor moral. Somente podemos dizer que
determinada coisa ou fim bom no sentido de que atravs deles se realizam valores materiais,
da mesma forma que o ato moral da pessoa aquele que realiza valores materiais, e surge,
portanto da, por analogia, o valor moral da pessoa. Mas o valor moral do ato pode ser bom ou
mau; o valor da pessoa, no entanto, sempre positivo, bom. O bom, na coisa ou no fim,
apenas indica, por mediao, algo que deve ser realizado para que surja o nico bom, que o
valor moral da pessoa que realiza. A realizao da pessoa mesma.
Valores que se referem mais propriamente s coisas so os do agradvel-desagradvel,e, aos fins, valores como os do til-intil. Pessoas no podem ser depositrios destes valores,
porque no so coisas. Da mesma forma, os seres vivos, para Scheler, no so coisas. Por
outro lado, no so pessoas. Por isso no se pode aplicar o valor de agradvel ou til aos seres
vivos como seus depositrios, mas somente os valores de nobre-vulgar, no sentido de valores
da vida ou vitais.
Os valores apresentam-se ordenados hierarquicamente, segundo Scheler. Tal
hierarquia a priori e escalonada por meio do ato de preferncia, base dos juzos axiolgicos.Distintamente do ato de eleger, que se d entre aes, exige contedos de fins e supe o
conhecimento da superioridade do valor. O preferir refere-se a bens e valores, sendo estes de
modo apriorstico. Assim, no ato de preferir, intuitivamente ou consciente, acompanhado de
reflexo, que se d a superioridade de um valor. Apesar de este ato determinar a superioridade
de um valor sobre o outro, Scheler desenvolve ainda cinco critrios para determinar a
hierarquia axiolgica: durabilidade, divisibilidade, fundao, profundidade da satisfao e
relatividade. A durabilidade do valor, contrrio ao fugaz e passageiro, no se refere aos bens,mas quilo que manifesta o eterno.
O critrio da divisibilidade aponta para o fato de que quanto maiores os valores menos
fracionados se apresentam. A fundao designa que, se um valor se apia em outro, menor
que ele, assim os valores so mais altos por fundarem previamente outros. A profundidade da
satisfao estabelece que, quanto mais alto o valor, mais profunda a satisfao, sendo que por
satisfao entende-se uma vivncia de cumprimento de um valor; e por profundidade, a
independncia do perceber sentimental entre os valores. Sobre o critrio de relatividade faz-
se necessrio notar que os valores no so relativos, mas sim o conhecimento que temos
7/26/2019 Dissertao Max Scheler
24/140
Dos cinco critrios mencionados, juntamente com o dado da preferncia, teremos uma
sucesso hierrquica dos valores que se estabelecem da seguinte maneira, em ordem
crescente: valores sensoriais (alegria-tristeza, prazer-dor); valores da civilizao (til-danoso);
valores (nobre-vulgar); valores culturais ou espirituais - estticos (belo-feio), tico-jurdicos
(justo-injusto), especulativos (verdadeiro-falso); valores religiosos (sagrado-profano).
1.2 O Ressentimento
Um ato especfico de vivncia o ressentimento22. Toma a significao da expresso
francesa, ressentimento, que indica dois elementos em sua etimologia: a repetio de uma
vivncia que suprassume as emoes que a envolvem, e o dado da qualidade desta emoo ser
de ordem hostil. Ao iniciar sua anlise do termo, resgata textos da Genealogia da Moral em
que Nietzsche apresenta o ressentimento como fonte dos juzos morais de valor, na civilizao
ocidental, determinado pela moral crist. Neste primeiro momento atenta estrutura da
vivncia do ressentimento, que se baseia em alguns movimentos internos e afeies como: avingana, o dio, maldade, inveja, cobia e a malcia. O sentimento e impulso vingana,
base primeira para o ressentimento, traz duas especificidades: uma retrao de durao
determinada e a conscincia de um sentimento de impotncia. Neste sentido, o ato de
vingana no se realiza imediatamente como impulso a uma reao contrria, mas se d como
reflexo.
Ns no utilizamos a palavra RESSENTIMENT por uma
predileo pela lngua francesa, advinda de nosso interior, maspor no nos ser suficiente a tradio alem da mesma. Concorrepara isso o fato de a palavra ter sido cunhada atravs deNietzsche como um termo tcnico. Na atual significao dapalavra francesa eu encontro dois elementos: primeiramenteque, no ressentimento, se estabelece a repetio, atravs e apartir do viver, de uma determinada reao de respostaemocional contra um outro. Atravs destas reaes, cada
22 importante notar como, no decorrer de sua obra, abordada a problemtica do ressentimento na moral moderna cominmeros exemplos. Alm disso so feitas, pelo autor, constantes aluses comparativas com o pensamento de F. Nietzsche,contrastando-o com seu pensamento. Alm disso, convm antes exortar que particularmente esta sua obra Da Reviravolta
dos Valores tem por objetivo no s, como ele mesmo diz: ... a libertao da alma da juventude alem de todo o venenotrazido pelo ressentimento, mas, tambm, de responder s duras crticas apresentadas nas teses nietzscherianas contra suaconcepo de moral crist, pois, segundo Max Scheler, em contrapartida com seu rival, esta no se apresenta acometida emressentimento Defendendo o ponto de vista do pensamento scheleriano procurar se manter fidelidade ao seu
7/26/2019 Dissertao Max Scheler
25/140
emoo recebe um elevado aprofundamento e descida ao centroda personalidade, tanto como um manifestante afastamento daexpresso e da zona de sustentao da pessoa. Este sempre-de-novo-atravs e a partir do viver da emoo e dos antecedentessobre os quais ela responderia. O ressentimento um
revivenciar da emoo mesma um sentir de novo. Destarte, apalavra traz em si o fato da qualidade desta emoo ser umnegativo, o que significa dizer, um movimento dahostilidade...23
Neste trecho, Scheler expressa com maior detalhe as razes originais pelas quais ele
aplica o termo ressentimento da maneira como at o presente momento foi aplicada. Na
verdade ele assim continuar a ser aplicado. Num primeiro momento, aps apresentar
algumas particularidades de natureza lingustica a respeito do uso do termo, ele prprioadmite o fato de Nietzsche t-lo utilizado pela primeira vez em seu sentido tcnico.
Posteriormente, e de modo bem compreensvel, ele expe o aspecto emocional do
ressentimento, que, de fato, lhe uma caracterstica inseparvel, conforme j exposto. Mais
adiante Scheler, com maior preciso, conclui seu pensamento, sustentado em todo o
desenrolar de sua obra. tambm, importante citar este fragmento integralmente:
Coloquemos agora, no lugar de uma definio da palavra, uma
curta caracterizao e descrio da coisa. Ressentimento umenvenenamento pessoal da alma, com causas e conseqnciasbem determinadas. Ele uma introjeo psquica contnua, queatravs de um exerccio sistemtico de recalcamento dedescargas desperta certos movimentos internos e afeces, queem si so normais e pertencem estrutura fundamental danatureza humana, bem como uma srie de introjees contnuassob a forma de iluses de valor, que trazem como conseqnciaos juzos de valor...24
Ao fundamentar sua axiologia em bases formais, Scheler parte de uma interpretao
kantiana. Kant considera que toda tica material seja eudaimonista em oposio tica formal
que, uma vez racional, afastaria a inconsistncia e os erros da vida emocional como
determinante. Para Scheler tal compreenso tem suas razes nas noes insuficientes que Kant
teria sobre a vida emocional, os valores e a relao entre ambos. Mesmo com a ausncia de
estudos especficos acerca do tema, pode-se extrair a identificao entre o fato de algo possuir
valor e o correlativo estado de prazer do sujeito ao atribuir tal valor, o que Kant considera
como uma lei natural, ou seja, o homem tende ao prazer espontaneamente. Resultado desta lei
23 SCHELER Max Da Reviravolta dos Valores Pg 45
7/26/2019 Dissertao Max Scheler
26/140
a impossibilidade de separar a tendncia do prprio prazer, do prazer alheio, o que Scheler,
por sua vez, abordar no sentido de classificar como prazer ou desprazer sensveis, cuja
essncia o no poder ser pressentido, mas unicamente ser dado percepo afetiva como
sentimento atual e prprio. Deste modo no h sensao dos sentimentos sensveis alheios,
mas somente uma ressonncia do sentimento respectivo25. O que em primeira instncia ir
defender - partindo da precria formulao kantiana de que no possvel o a priori em uma
tica baseada em vivncias emocionais - o carter objetivo do valor, o qual no s pode ser
o fundamento de uma relao, mas o somar-se relaomesma, e o fundamento estaria na
categoria valorativa de um perceber sentimental de algo. Para refutar a ideia de que o ser
valioso de algo representa uma relao dos objetos com as vivncias de prazer ou desprazer,
apresenta as seguintes teses:
Em primeiro lugar os valores podem constituir o fundamentode uma relao, mas no so relaes. Assim a plenitude dovalor das coisas no est na relao vivificada, pois nossosestados sentimentais tendem a ocultar as qualidades valiosasdas coisas. Um dos paradigmas desta incapacidade de vivificaro valor de algo est na imagem do egosta, pois reduz-se aocomo referncia valorativa. Em segundo lugar - contrrio ideia de que o os valores so capacidades existentes nas coisaspara produzir prazer e atrair a ao humana argumenta que ohomem tende sobretudo aos bens, mas no ao prazer que h nos
bens26
H uma intrnseca relao, portanto, entre o valor, a percepo sentimental do valor e
o estado sentimental. Sendo que os valores nos objetos so anteriores experincia dos
estados sentimentais - j efetuados - que produzem tais objetos. H de se notar que Scheler
no considera o valor e nem tampouco os bens operantes por si mesmos, mas, os valores
como valores e os bens como bens so operantes na vivncia, ou como motivos que surgem
como atraente e repugnante. A vivncia (de prazer ou desprazer) opera segundo uma
ordenao constante, permanente e interindividual - que a prpria essncia do valor -
provocando estados sentimentais ao mesmo tempo atuais e recorrentes.
Para Max Scheler, o ressentimento a negao dos valores pela inverso dos valores,
uma tica material dos valores. Ele busca a tica material, a tica que tem contedo e o
contedo consiste na realizao dos valores.
25O termo, da maneira empregada por Scheler, adquire significado prprio, no qual ele comea a esboar suanoo acerca do ressentimento (cf Max SCHELER Da Reviravolta dos Valores p 43)
7/26/2019 Dissertao Max Scheler
27/140
Pois bem, o contrrio da moral, a forma suprema de atitude no moral ou antimoral,
precisamente o ressentimento, que consiste na negao dos valores. Na negao dos valores
ou na sua inverso. Suponham que algum no realiza valores ou se oponha a eles: isto no
seria propriamente ressentimento. Ressentimento negar que aquilo seja valor. A bondade ou
a beleza ou a elegncia ou a santidade ou qualquer valor, um valor. Ressentido quem diz:
"No, no, que no um valor, no desejvel, no valioso". Isto, ou tambm a inverso:
ou colocar o valor inferior por cima do superior; ou inverter a direo: tomar o negativo como
positivo.
Quem aspira a uma viso de mundo fundada filosoficamentetem de ter a coragem de apoiar-se na sua prpria razo. Deve
duvidar tentativamente de todas as opinies herdadas e nodeve reconhecer nada que no lhe seja pessoalmente inteligvele fundamentvel27
De modo geral, no pensamento de Max Scheler, o ressentimento abordado como
unidade de vivncia. Isto corresponde a dizer que o mesmo atribui-se enquanto parte de um
todo. Este, por sua vez, pode formar-se por pensamentos complexos (mais amplos), que
derivam de percepes da realidade das vivncias dos homens. atravs deste procedimento
que as ento chamadas unidades de vivncia e resultado
28
, experimentadas por homens,adquirem real significado, visto que se vinculam a um todo significante, que no deixa de ser
a totalidade das experincias ou vivncias humanas. Torna-se, ento, parte integrante e
constituinte da realidade dos homens, mas especificamente na sua dimenso tica e elemento
constitutivo de variedade de atos.
Grollen o escuro na alma do viandante, a zanga retida eindependente da atividade do eu, zanga esta que atravs de umrepetido perpassar de intenes de dio ou de outras emoeshostis, acaba por se formar, sem ainda abarcar nenhuma precisainteno hostil.29
Sob certo aspecto, este fragmento da obra de Scheler revela que o ressentimento em seu
incio pode no ter intenes de hostilidade, pois neste estgio no passaria de uma simples
constatao de no-pertena ou inferioridade, por exemplo. Porm torna-se nocivamente
hostil quando cativado e desenvolvido.
27Cf. Max SCHELER, Da reviravolta os valores,, p.5428O termo, da maneira empregada por Scheler, adquire significado prprio, no qual ele comea a esboar suanoo acerca do ressentimento (cf Max SCHELER Da reviravolta dos valores p 43)
7/26/2019 Dissertao Max Scheler
28/140
1.3 O juzo dos valores
Scheler aponta para o que chama de prejuzo, o fato da ciso entre as noes de razo
e sensibilidade marcar as fronteiras do modo de pensar desde a antiguidade. As consequncias
partem do modo de compreender toda a vida emocional unicamente no mbito da
sensibilidade, e, portanto, relegada ao plano do relativo. A tica foi demarcada a partir desta
diviso tornando-se, por um lado, absoluta, racional e apriorstica; e por outro, emprica e
emocional. Alguns dos poucos autores que se colocaram contra este prejuzo foram Santo
Agostinho e Blaise Pascal. neste ltimo autor que encontramos a expresso ordre du
coeur ou logique du coeur, entendendo que o corao teria uma determinada espcie de
razo na qual exprime uma legalidade eterna e absoluta do sentir, amar e odiar. Refere-se a
um tipo de experincia que deflagra uma ordem eterna entre os objetos (inacessveis razo)
que correspondem aos valores e sua ordem hierrquica.
Essas ideias sobre os valores e sua hierarquia permitem aScheler, por um lado, refinadas anlises crticas dosubjetivismo tico no mundo moderno e delineamento agudoda antropologia do burgus (isto , do homem ressentido edesconfiado, fanatizado pelo valor do til e insensvel ao valordo trgico)30
Scheler, porm, faz uma distino entre o sentir (ou perceber sentimental) dos outros
estados sentimentais. Enquanto aquele intencional e pertence s funes de apreenso de
contedos e de fenmenos, estes pertencem somente aos contedos e fenmenos. Sendo que
h um perceber sentimental intencional primrio, ou seja, surge na simultaneidade com osentimento (aquele ao qual se dirige o perceber sentimental). A percepo sentimental, neste
sentido, est associada a um movimento do sentir no qual algo chega a sua concretizao.
Ao abordar os princpios de relatividade e subjetividade dos valores, Scheler recusa
por um lado, a tese de um ontologismo absoluto, em que h objetos inapreensveis por
qualquer conscincia; mas tambm recusa a doutrina da subjetividade, quando compreendida
sobre o lastro da concepo de um eu transcendental, ou uma conscincia geral, ou quando
luz de uma perspectiva em que os valores so frutos de uma organizao humana. Quanto
7/26/2019 Dissertao Max Scheler
29/140
mais nos distanciamos da esfera espiritual, mais os valores sero dados como signos das
coisas, bem como o risco que se tem ao ocultar-se no convencionalismo da sociedade. O
subjetivismo est, em certo modo, atrelado ao homem histrico e suas necessidades e no a
uma categoria a priori do sujeito em si.
1.4 A relatividade dos valores
Sobre a relatividade dos valores com respeito ao homem, Scheler se mostra, por
conseguinte, contrrio chamada tica humana. Assim como Kant, considera que a
humanidade seja apenas um objeto dentre outros, e no um sujeito necessrio que teria
unicamente para si a capacidade de apreenso de valores. Assim como tambm no cr poder
definir a humanidade como princpio das estimativas morais, no sentido de que o bom e o mal
so o que fomenta, ou impede a tendncia de evoluo radicada naquele como gnero.
A crtica doutrina tica kantiana ir ser o objetivo secundrio de sua obra, a qual ser
submetida aos pontos de insuficincia, na inteno de extrair-lhe contedos objetivos
verdadeiros. A tica de Kant figura, para Scheler, como a mais bem acabada dentre os
modernos, no na forma de concepo do mundo ou conscincia religiosa, mas sim, na forma
do conhecimento mais estrito e cientfico que cabe tica filosfica, porm cr na
determinao tnica e histrica que orientou sua formulao na razo pura de validade
universal. Portanto merece ser repensada nas suas bases essenciais.
1.5 Personalismo tico
O personalismo tico, centrado na pessoa individual, o que indica ser para Scheler
efetivamente uma das bases de seu pensamento. Com a teoria da corresponsabilidade
primitiva, relativa ao princpio de solidariedade, afasta a possvel interpretao de
individualismo que poderia ser gerado a partir das noes de bem individual e objetivamente
vlido, e da deciso moral individual de cada pessoa. Segundo esta teoria, cada pessoa
7/26/2019 Dissertao Max Scheler
30/140
assenta em um fundamento metafsico (o que ser rechaado posteriormente) ao evocar uma
constituio espiritual do universo (mesmo que recriado na esfera pessoal), como aponta:
"O princpio mais importante e essencial que esta obra pretendeu fundamentar e
transmitir com a maior integridade que o sentido e o valor finais de todo este universo se
mede, em ltima instncia, exclusivamente pelo puro ser (no pela rendio) e pela bondade
mais perfeita que seja possvel, dentro da rica plenitude, na mais pura beleza e na harmonia
mais ntima das pessoas, nas que se concentram e potencializam as vezes todas as energias do
cosmos"31.
7/26/2019 Dissertao Max Scheler
31/140
02 CAPTULO II: O CONCEITO DE VALOR E O PROBLEMA DA
HISTORICIDADE
Os valores passam a constituir, como j foi examinado, um tema constante da
investigao filosfica. O conceito de valor passou a conter um significado pouco definido:
ora uma sensao, ora uma norma tica, ora um critrio de diferenciao de objetos.
No se trata propriamente aqui de apresentar um conceito de valor nem as diferentes
conceituaes trazidas pelas diferentes axiologias, e sim demonstrar como, na tica, Max
Scheler encarou o problema da variabilidade histrica das normas ticas, e como alcanou
uma nova perspectiva de compreenso da vida histrica, atravs de uma nova conceituao do
valor. O conceito de valor na tica de Scheler aparecer com maior clareza aps esta
demonstrao. No momento, basta salientar que Histria e valor aparecem na tica como
elementos interdependentes que se integram dentro de uma totalidade explicativa da
existncia e do dever ser.
Esta interdependncia entre a histria e o valor supe um elemento comum a ambos: a
tica, o dever ser das aes humanas e os princpios que o regem. A Histria supe valores na
medida em que estes se constituem em critrios diferenciadores dos atos histricos e do
prprio relato das aes histricas. A tica supe valores, na medida em que os atos so
movidos por critrios preferenciais. Contudo, o problema axiolgico da Histria coloca de
pronto, um dilema: ou os valores so determinados pela Histria e o resultado o relativismo
tico, ou os valores so determinados pela tica, e o resultado a negao da variabilidade
histrica dos princpios ticos. Assim, ora se nega a tica por condicion-la histria, ora se
nega a Histria, por torn-la um movimento aleatrio, em torno de uma tica eterna. Em
outras palavras: ora o absoluto a Histria, ora o absoluto a tica. Sendo a Histria umabsoluto, os valores ticos so entendidos como variveis, em decorrncia das variaes
histricas e a tica torna-se determinada por insondveis desgnios. Quando o absoluto a
tica, os valores so entendidos como imutveis, determinando as mudanas histricas que
ora se afastam, ora se aproximam de um ponto fixo identificado como o conjunto universal
das normas ticas. Neste caso, a histria apenas um movimento que ora se afasta, ora se
aproxima das mesmas normas ticas, sem que estas sejam superadas.
A atualidade do problema axiolgico da Histria tem acarretado, portanto, posiesabsolutistas, ora do lado da tica, ora do lado da Histria, resultando, no primeiro caso, numa
7/26/2019 Dissertao Max Scheler
32/140
7/26/2019 Dissertao Max Scheler
33/140
Para chegar a esta fundamentao Scheler no precisou condenar a tica ao relativismo
histrico, embora no tenha adotado, como pensam alguns33, posies absolutistas com
relao ao valor.
Para Scheler s possvel fundar a tica quando seus princpios procedem de algum
pressuposto universal e sua aplicabilidade tenha carter universal. Toda reflexo tica uma
busca de princpios universais em que se possa fundar. Ainda que se trate de uma tica
relativista, mesmo assim a universalidade o seu propsito: demonstrar que tudo relativo,
universalmente relativo, ou seja, a universalidade do propsito relativista.
A tica de Scheler tambm se prope uma universalidade de princpios e, mais do que
isto, estabelecer uma universalidade dentro da tica que seja capaz de explicar o que h de
histrico na prpria tica. Assim, a filosofia tica de Scheler se prope fundar uma novauniversalidade tica, capaz de conter uma compreenso de sua historicidade e de atribuir um
significado prpria Histria.
A tica de Scheler pode ser considerada a mais importante elaborao da filosofia
tica depois de Kant. comparvel, pelas propores e pela sua importncia, elaborao
tica de Aristteles, de Santo Toms e do prprio Kant.
A importncia da tica de Scheler decorre no s da sua universalidade quanto aos
princpios em que se funda, mas tambm do fato de ter acrescentado algo busca deuniversalidade das ticas anteriores. Pode-se dizer mesmo que o pensamento tico de Scheler
e toda a fundamentao axiolgica com que Scheler a apresenta contm um elemento que fora
desconhecido por todas as grandes ticas anteriores: a historicidade. Esse pressuposto no fora
sequer conhecido por Aristteles, nem por Santo Toms, nem por Kant. O prprio Kant no
levara em considerao qualquer implicao da Histria sobre o comportamento tico. Ao
contrrio, historicidade sempre fora vista, na poca de Kant, como uma concesso aos
postulados das chamadas ticas materiais e, conseqentemente, historicidade significariarelativizar os princpios ticos. O esforo de Kant resume-se em procurar um imperativo de
carter racional que evite as ticas materiais.
A historicidade assumida por Scheler como um pressuposto de toda sua reflexo
tica. Para Scheler, necessrio partir do fato de que o homem um ser histrico e este
pressuposto tem sido visto pelos analistas de seu pensamento como um dado especfico, uma
peculiaridade, ou mesmo um avano do pensamento filosfico em relao a elaboraes
anteriores. No que a historicidade da condio humana tenha sido uma ideia nova, quando
7/26/2019 Dissertao Max Scheler
34/140
considerada por Scheler. O que h de novo est na construo de uma tica no relativista e
capaz de se fundar em postulados universais (como Aristteles e como Kant) sem afastar de si
as ideias a respeito da historicidade da condio humana que se tornaram frequentes e
amplamente aceitas a partir de Hegel.
Poder-se-ia dizer mesmo que a historicidade compareceu como tema ao pensamento
de Kant sem vincular-se tica, e sim como um simples demonstrativo da evoluo da
racionalidade. O imperativo categrico racional, mas no histrico: o que h de histrico
o momento com que a evoluo da racionalidade humana se defronta e revela a existncia do
imperativo categrico. Kant chegou a esforar-se, pelo desdobramento da razo, a tentar uma
reconstituio da origem plausvel da histria universal, na qual a origem do universo e da
vida histrica da humanidade so recriadas no como vivncia nem como reconstruo factualde uma realidade observada empiricamente, e sim pelo poder autodefinidor e pan-elucidativo
inerente faculdade racional do homem.
No entanto, a razo prtica de Kant no leva em considerao a historicidade da vida
tica. Esta se define pelo cumprimento constante de um imperativo categrico que se constitui
em um absoluto extra-histrico, ainda que presente em apenas um determinado momento da
prpria histria. O imperativo categrico tambm no influi nos rumos da Histria porque
exterior a ela .Quem atribuiria ao imperativo categrico um papel atuante na Histria seria Hegel,
para quem o imperativo categrico perde o seu carter meramente tico, transformando-se em
um esprito autodefinidor de si mesmo, para quem a tica e a histria so resultados deste
processo de autorrevelao. Com Hegel, a Histria passa a ser fundadora dos princpios
ticos, tal como seria afirmado pelas filosofias de tipo historicista.
Marx e Nietzsche constituram-se em tentativas de restituir Histria uma
fundamentao tica. Tanto Marx como Nietzsche tiveram um importante papel na crtica aohistoricismo de origem idealista por mostrarem ambos que a Histria um fruto de um fazer e
que, sem a ao do homem no possvel , da mesma forma que sem o homem inexistiria a
prpria tica. tica, em Nietzsche e em Marx, algo que o homem faz.
Scheler procurou dar a este fazer um carter efetivamente universal: no um fazer
voltado apenas para o justo no plano dos valores teis (ou econmicos) e nem tampouco um
fazer voltado para a destruio de tudo quanto seja histrico. Se certo que a Histria adquire
um sentido pela ao prtica em Marx, perde este sentido em Nietzsche.
Nem Marx, nem Nietzsche lograram produzir uma tica de pressupostos universais e
7/26/2019 Dissertao Max Scheler
35/140
homem e que fosse capaz de ajustar-se historicidade, sem retroceder s ticas materiais
anteriores a Kant. Com Scheler h, por influncia de Hegel, de Marx e de Nietzsche, entre
outros, uma retomada do carter material da tica.
A tica material reaparece em Scheler em decorrncia da incapacidade do formalismo
em adequar-se realidade e s condies histricas da existncia. Esta descoberta feita por
Scheler, ao se propor levar adiante o projeto Kantiano de superao do impasse criado entre o
absolutismo das ticas formais e o empirismo das ticas materiais.
A historicidade surge como o primeiro argumento que Scheler atira contra as ticas
de bens e de fins, logo no incio da tica: o mundo dos bens est sujeito a alteraes
constantes34. Ainda a, Scheler est ao lado de Kant, auxiliando-o com uma argumentao que
j no apenas a de Kant, desacreditar as ticas que se contentam em falar de bens e fins.Scheler j tinha em mente partir da historicidade por ser este um dos pontos mais
fortes da argumentao empirista. Parece evidente a predisposio de Scheler a no perder a
historicidade, ao se afastar do empirismo tico: seu propsito era no se desvincular do
aspecto concreto da existncia, que marcante no empirismo. A inspirao de Husserl est
aqui presente: Scheler quer apoiar-se em um dado que seja acessvel ao conhecimento
imediato, ao procurar desenvolver uma explicao do homem e do mundo.
No entanto, Scheler pretende mais do que uma simples adoo dos elementosempricos em que se baseiam as ticas materiais. Pretende super-las, dando a elas uma
universalidade que no carea da fora da evidncia que os dados empricos atribuem
construo de uma tica de tipo indutivo.
A tica de Scheler se inicia e se encerra abordando o problema da historicidade.
Logo s primeiras pginas, h uma referncia que denuncia esta preocupao dele pela
influncia que as variaes histricas tm sobre os princpios ticos:
A alterao deste mundo dos bens modifica o sentido e osignificado do bom e do mau. Dado que a histria nos mostraque este mundo de bens est submetido a uma alteraoconstante e a um movimento continuo, o valor moral do querere dos seres humanos participariam tambm do destino destemundo35
Nesse momento Scheler retoma a crtica de Kant s ticas materiais e mostra sua
preocupao pela influncia da histria sobre os princpios ticos. Ao final da tica, esta
34 tica 4/34
7/26/2019 Dissertao Max Scheler
36/140
preocupao persiste, como se todo o seu esforo tivesse girando sempre em torno do tema
da historicidade:
Renuncio aqui... a um estudo sobre o papel essencial quedesempenham os tipos de pessoas de valor no interior dasociedade e da histria... de modo a fundar uma tica dasvocaes humanas em que se distinga o que constante do que historicamente varivel nesta vocaes.....36
O projeto da tica de Scheler teve, como um dos seus propsitos centrais, a
colocao do problema da Histria diante da tica, procurando distinguir aquilo que, na tica,
historicamente varivel daquilo que constante, como afirma nas linhas finais da obra.
A preocupao com o que h de varivel na tica estabelece a necessidade de fixar limites
para a variabilidade histrica da tica, tal como faz em vrios momentos da tica e
principalmente no Captulo V, item 6, onde, sob o ttulo Relatividade histrica dos valores
ticos e parmetros desta relatividade, exprime textualmente aquele propsito:
Como j foi visto, uma das pretenses fundamentais da ticaformal e de seu a priori formal consiste em serem capazes, porsi ss, e em decorrncia de seus prprios pressupostos, detornar compreensveis a variabilidade histrica e a diversidadetnica ou racional dos valores morais, sem extrair
necessariamente, desta variabilidade, concluses cticas37
Atravs da tica, Scheler pretendia, portanto, tornar compreensvel a variabilidade
histrica sem que, com isto, sua tica se tornasse relativista ou perdesse as bases universalistas
que reconhecia tica de Kant.
O ingresso da questo da variabilidade histrica leva, como j foi examinado,
indagao tica quanto ao dilema de optar por uma afirmao da historicidade e,
consequentemente, perder a validade universal dos princpios ticos, ou ento afirmar esta
validade universal dos princpios ticos e portanto negar validade afirmao de que, na
histria, a tica alterada.
Scheler tem, como parte integrante de seu projeto, a superao do dilema, ou seja: no
negar a variabilidade histrica da tica, nem abdicar de uma tica fundada em um principio
universalmente vlido.
36 tica 620/305
7/26/2019 Dissertao Max Scheler
37/140
7/26/2019 Dissertao Max Scheler
38/140
homem apresentadas pelas filosofias anteriores, dentre asmencionadas no primeiro captulo, pode ser suficiente paraScheler. Estas filosofias no conseguem alcanar e unir o serdo homem em seu todo. Todas as ideias filosficas a respeitodo homem se tornam sintomticas apenas para certas pocas
ou unidades culturais e sempre falharam por no entender ohomem como sendo um ser histrico39
Para John N. Nota40, a obra de Scheler converge para uma Filosofia da Histria em
toda a sua parte final (entre 1922 e 1928) mas considera tambm muito importante o perodo
entre 1912 e 1922, durante o qual foi elaborada a tica. Nota mostra que uma explcita
filosofia da histria estava por surgir quando Scheler escreveu, em 1906, uma carta a Georg
Von Hertling, onde h um trecho muito citado pelos estudiosos da obra de Scheler: dizia de
sua preferncia pela teoria do conhecimento, pela metafsica e pela tica. Nota v nestafrase o prenncio de uma filosofia que estava por surgir e que seria essencialmente
relacionada com a Histria. Escreve Nota: Uma explicita filosofia da histria estava por
surgir e a primeira clara colocao do problema encontrada na mais importante obra de
Scheler: O Formalismo em tica e a tica Material dos Valores41
John Nota v a historicidade como uma caracterstica marcante da obra de Scheler,
sendo mesmo um elemento a partir do qual foi possvel a viso scheleriana do homem.
Percebe-se ainda que foi da fenomenologia que Scheler extraiu esta categoria:
Efetivamente, isto novamente a aplicao do conhecimentoque (Scheler) adquiriu de sua experincia fenomenolgica: ohomem um ser histrico que, pelo simples fato de saber-sehistrico, transcende o meramente histrico, a pura sucesso dotempo. meta-histrico na histria 42
correta esta presena de uma filosofia da histria na tica de Scheler, tal como
apontam Frings e John Nota.
Antes da publicao de Ser e tempo de Heidegger e antes da fase da Lebenswelt
da obra de Husserl, j Scheler escrevia sobre a natureza histrica da existncia, textos como
este:
39Manfred Frings, Max Scheler A concise introducion to the world of a great thinker, Duquesne Press University, Eds. E.Nauwelaerts, Louvain, 1965. p. 19540
John N. Nota, Max Schelers Philosophy of History, in Acts of XIV Internacional Congress of Philosophy, IV, pgs. 572-580.41John N. Nota, Max Schelers Philosophy of History, in Acts of XIV Internacional Congress of Philosophy, IV, pgs. 572-580 p 573
7/26/2019 Dissertao Max Scheler
39/140
7/26/2019 Dissertao Max Scheler
40/140
e o valor enquanto universalidade44. A forma no tem validade universal, mas sim o valor. A
norma, enquanto forma concreta de aplicao de valores, transforma-se em uma moralidade
cujas disposies so tomadas como sendo a tica de um determinado crculo humano45.
Scheler faz uma distino entre essencialidade e universalidade em que uma
essencialidade universal quando se manifesta de modo idntico em uma pluralidade de
objetos diferentes entre si46. A universalidade tem assim, para Scheler, um carter de
aplicao universal de uma essncia. A norma tica pode ter uma validade universal, mas no
necessariamente universal esta sua validade. Ser universal na razo direta de sua efetiva
universalidade de aplicao. Como ser visto adiante, necessrio distinguir a no-necessria
universalidade tica da norma, da necessria universalidade do valor sobre o qual se fundam,
como diferentes formas histricas de realizao concreta, em suas manifestaes, queassumem diferentes variaes sob a forma de moralidade ou de normatividade prtica. Esta
confuso entre aplicabilidade universal de uma essncia e a sua aplicao universal efetiva
conduz a dois diferentes conceitos de universalidade. A falta de uma distino entre a
universalidade de aplicabilidade e a universalidade de aplicao poderia ser apontada como
uma das origens da divergncia entre aquelas diferentes concepes ticas que Scheler
igualmente condena: o absolutismo tico e o relativismo tico.
2.2 Absolutismo e relativismo ticos
Tanto o absolutismo como o relativismo ticos fundam-se, portanto, sobre um
equvoco a respeito da noo de universalidade.
Para o absolutismo tico, ou a norma universal ou no pertence tica. Enquanto
isto, o relativismo tico encara a norma como inteiramente procedente de variaes histricas
e completamente mutvel. No caso do absolutismo tico, a norma um absoluto e todas as
variaes histricas so relativas.
No caso do relativismo tico, o absoluto a histria e relativo, a tica, por ser gerada
pelas variaes ocorridas dentro da histria.
44tica, 281 /28645 tica 281/ 285
7/26/2019 Dissertao Max Scheler
41/140
O relativismo tico se baseia, certo, em pressuposto inaceitvel para Scheler. Porm
da influncia indutivista das ticas materiais que julgaram ser possvel extrair os princpios
ticos da observao e da experincia. As ticas materiais e relativismos so bastante afins
quanto aos seus postulados.
O relativismo e as concluses das ticas materiais a respeito da Histria dedicam toda
sua ateno ao factual e anotao as mutaes e das diversidades da aplicao s normas
ticas. Atendo-se que toda tica material tende a no procurar um elemento essencial, comum
ou universal das normas, esta atitude leva, inevitavelmente, ao relativismo. Escreve Scheler:
parecia que toda tica material estava destinada a conduzir ao ceticismo tico de vez que
toda as valoraes materiais se mostravam relativas historicamente47.
Relativismo, ceticismo, mutabilidade aleatria e ininteligvel dos elementos da ticapela fora das mudanas histricas algo inaceitvel para Scheler. Chega mesmo a procurar
as causas que possam explicar o aparecimento de ticas do tipo relativista.
Uma das causas do relativismo apontada por Scheler na inadequada separao entre
razo e sensibilidade48. Na medida em que se atribui sensibilidade funes totalmente
alheias racionalidade e na medida em que nenhuma vivncia de tipo emocional pode ser
alcanada atravs da racionalidade, a existncia torna-se eticamente encarada de modo
relativista. Na medida em que a razo afastada da vida emocional, toda alterao ocorrida noplano real adquire uma autonomia prpria, em funo de uma causalidade de tipo vitalista.
Assim, separando razo e sentimento, lgica e emotividade, a filosofia moderna tende a
considerar como fator determinante destas funes no-lgicas a alterao real da estrutura
orgnica, em sua evoluo atravs da vida e da histria49.
Outra causa apontada por Scheler reside no aparecimento das teorias vitalistas para as
quais a vida considerada o valor supremo. Ao referir-se ao vitalismo, escreve Scheler:
Se no se admite qualquer valor acima do biolgico, ento,apesar de toda sua civilizao, preciso definir o homem comoum animal que se tornou enfermo e ver no pensamento humanouma forma desta enfermidade50
O vitalismo, como o relativismo, recebem de Scheler a condenao por no terem sido
capazes de captar a prpria racionalidade inerente vida em sua grandeza, vendo esta adoo
de valores como uma enfermidade ou um ressentimento. Os vitalizas so incapazes, por
47tica, 306/30548tica, 260/26649 tica 260/266
7/26/2019 Dissertao Max Scheler
42/140
7/26/2019 Dissertao Max Scheler
43/140
partir do dever, apresenta um carter negativo, crtico e repressivo55. So ticas que contm
uma desconfiana intrnseca, no s com relao natureza humana, como tambm prpria
essncia dos atos morais em geral56, a ponto de construir suas bases sobre um terreno que
conduz inevitavelmente ao ceticismo e ao relativismo. A relao entre tica imperativa e
relativismo tico surge precisamente pela intervenincia da historicidade na aplicao de tal
tica. Quando uma tica afirma o-que-no-deve-ser-feito, sua validade histrica persiste
enquanto o ato no permitido no praticado, ou pelo menos, enquanto o ato no permitido
sempre condenado quando praticado. Basta o ato no permitido passar a ser permitido para
haver propenso a se ver na mutabilidade histrica uma variao essencial da conscincia
moral, raiz de qualquer relativismo tico.
Lembrando o paradoxo de Goethe a respeito da no vinculao entre a ao e aimperatividade da norma57, Scheler mostra que nenhuma conduta moral fundada na vontade
pode orientar-se por uma simples imperatividade tica, mesmo que esta norma imperativa
proceda de mandamentos divinos. Em realidade, nenhum imperativo, inclusive nenhum
imperativo categrico, caso exista, pode ser justificado sem ser por referncia a uma
obrigao ideal e, indiretamente, ao valor correspondente58. O agir uma forma de buscar o
valor e no de fugir ao valor. Em consequncia, toda tica imperativista, contrariando a
essncia do comportamento tico do homem, gera sua prpria destruio, porque
o homem bom, que age espontaneamente realizando aquiloque seu discernimento apontava como bom, coloca-se nadefensiva diante de um contedo que tome a forma imperativa,resultando da uma tendncia ao mau59.
Scheler mostra que a tendncia do comportamento moral sempre o de realizar um
valor positivo, e toda tica imperativa uma tica que no reconhece este aspecto por
prescrever inclusive aquilo que j constitui uma tendncia. Quando nos prescrevem algo quevai no mesmo sentido do nosso amor, esta prescrio j sentida por ns como uma grande
agresso60. Ao mostrar esta natureza do comportamento moral, Scheler fulmina todas as
ticas que se baseiam em imperativos ou em condenaes de formas de comportamento,
porque todas essas ticas contrariam a prpria essncia da vida moral. Escreve textualmente:
55tica, 216/22756tica, 215/22757tica, 214/226 (quem age nunca tm conscincia moral)58tica, 217/22859 tica 218/229
7/26/2019 Dissertao Max Scheler
44/140
7/26/2019 Dissertao Max Scheler
45/140
7/26/2019 Dissertao Max Scheler
46/140
reino das valoraes66que a Histria, da mesma forma que se possa ver, na mistura de
tintas na tela, um quadro que se possa apreciar e compreender.
Scheler coloca-se, portanto, contra o absolutismo tico e contra o relativismo tico.
Sua alternativa para superar este dilema abrir a perspectiva para uma historicidade no
relativista da tica. assim que surge a noo de ethos: Por seu lado, os defensores de uma
tica da pura forma repousam sobre um outro erro... ignoram as variaes deste ethos67. As
variaes do ethos so o prprio fundamento da historicidade sobre a qual se baseia o
pensamento tico de Scheler. Esta historicidade no apenas uma superficial alterao
externa e sim uma historicidade essencial, uma historicidade que se funda em uma
mutabilidade universal, uma historicidade construda sobre uma prxis que muda e cujo
mudar caracteriza-a e condiciona. No deixando lugar algum para o ethos, um lugar entre atica e a moralidade prtica68, a tica absolutista dos bens e dos fins uma tica esttica,
cega para uma das dimenses mais importantes da realidade humana.
2.3 O ethos e sua historicidade
O equvoco, tanto do absolutismo como do relativismo, repousa sobre uma
conceituao errnea de universalidade e de historicidade. O absolutismo tico procura uma
universalidade tica que desconhece a historicidade, enquanto o relativismo desconhece a
necessidade de uma universalidade, por considerar apenas a historicidade. A universalidade
do relativismo reside na prpria unicidade da historicidade, enquanto o absolutismo termina
por dissolver-se pela fora de uma historicidade que lhe corri o absoluto proposto.Para Scheler h uma universalidade e h uma historicidade. Contudo, a universalidade
encontrada pela tica de Scheler no se ope historicidade, nem desta provm, e nem
tampouco a exclui. A universalidade tica de Scheler est implcita na historicidade e, com
esta, forma um conjunto harmnico e unitrio, apesar de evolutivo. A universalidade da tica
de Scheler no causa nem produto da historicidade e sim a historicidade a reveladora de
uma universalidade que procura dentro de si mesma.
66tica, 306/30767 tica 315/314
7/26/2019 Dissertao Max Scheler
47/140
7/26/2019 Dissertao Max Scheler
48/140
O ethos aponta a historicidade tica. No apenas variao, mas a variao moral,
em decorrncia da natureza essencialmente histrica das prprias normas morais.
Contm uma historicidade que, segundo Scheler, ignorada pelos defensores do
absolutismo tico, ao afirmarem a aplicabilidade universal da norma. Na medida em que a
norma histrica, desenrola se uma percepo interna de onde nasce o mundo tico, do qual
fazem parte a prpria tica, as normas, os usos e costumes e as instituies. Todas estas
formas ticas procedem de um centro, de uma fonte do conhecimento moral. Este centro o
ethos.
Sendo histrico, o ethos no sempre o mesmo: tem uma variao, uma mutao
histrica e, como decorrncia disto, gera normas ticas que variam consideravelmente ao
longo do tempo. Os defensores do absolutismo tico
...ignoram naturalmente as variaes deste ethos,imaginando que haja apenas um ethos nico e invarivel,exprimindo-se por novas frmulas, de maneira tal que oshomens, sempre e em todo lugar, teriam sabido distinguir domesmo modo em que consiste o bom e o mau. Pordesconhecer a historicidade essencial do ethos em si mesmo,como forma de vivencia dos valores e de sua hierarquia, sonecessariamente levados a pensar que em todos os tempos umatica perfeita deve ser possvel, tica esta que esgote todos os
valores morais e o esprito que os capta e que,conseqentemente, deve poder exprimir-se por um nicoprincipio, que seria o principio absoluto da moralidade70
O absolutismo, segundo Scheler, no tem acesso ao ethos que uma percepo
social de valores da qual nasce todo o mundo tico. Sendo histrico, torna histrico o mundo
tico, suas normas e seus costumes.
O relativismo ignora o ethos por
...acreditar que possvel fazer depender de umdesenvolvimento no somente das valoraes de carter moral,mas tambm os prprios valores e sua hierarquizao, tendopor fonte o fato de que aplica retrospectivamente aos sujeitosmorais do passado histricos valores morais que obteve porabstrao das valoraes atuais e toma aquilo que constituiefetivamente a variao do ethos por uma simples adaptaode vontades e de aes e de aes ao que corresponde asvaloraes atuais ou sua suposta unidade 71.
70 tica 315/314
7/26/2019 Dissertao Max Scheler
49/140
O relativismo desconhece o ethos tal como o faz o absolutismo. Ambos ignoram que
o ethos constitui por si mesmo a prpria Histria, contm em si uma historicidade
essencial72, caracterizada por uma varivel e evolutiva captao de valores, ou seja de
essncias de aplicabilidade universal que se revelam a ele mesmo . Absolutismo e relativismo
ticos, portanto,
... ignoram a histria interna do prprio ethos, esta histriamais central e situada no prprio corao de todas as demais 73
O ethos, portanto, constitui-se o centro da Histria. No apenas h nele uma
historicidade, mas sim a sua historicidade procede do fato de que nele est a Histria em si
mesma, mais central do que estar no centro de todas as demais. No centro do ethos
possvel encontrar a Histria produzindo a si prpria . Pode-se, pois, dizer que no ethos
unificam-se os conceitos de Histria e de historicidade em um centro do qual tudo o mais
decorre. Este centro, que visvel atrs da expresso, esta histria mais central, tem uma
total coeso, um carter totalmente unificador. Existe porque uno, unificante e indivisvel. O
ethos enquanto histria central e enquanto historicidade essencial preserva apenas sua
prpria unidade, mas no a tica que dele provm. A tica varivel, as normas e os costumes
tambm o so. Mas todas estas variaes procedem de uma variao central, de uma variao
que funde-se a prpria variao da histria, a variao do ethos.
O conceito de ethos unifica assim Histria e tica. No centro do ethos est a
Histria e do centro do ethos nascem as normas ticas. Toda tica ora aparece
... como um corolrio constante de todo ethos; ora...aparece por estar ligada a um processo de decomposio de umethos existente74
A tica procede do ethos e este se constitui em fonte emanadora de normas. No h
normas porque estas procedem de dedues lgico-ticas sobre princpios abstratos, como
demonstrava Kant, e sim porque o ethos cria as normas. Nenhuma norma, para Scheler,
procede de fora da vida tico-histrica. Tudo procede de uma histria central, de um ncleo
que, ao mesmo tempo, variao constante e fonte permanente para a elaborao dos
preceitos ticos.
72tica, 315/31473 tica 316/315
7/26/2019 Dissertao Ma