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UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS DE MARÍLIA BRUNO CHAPADEIRO RIBEIRO TRABALHO E GESTÃO ATRAVÉS DO CINEMA MARÍLIA 2013

Dissertacao Mestrado Bruno Chapadeiro Ribeiro

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  • UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA

    JLIO DE MESQUITA FILHO FACULDADE DE FILOSOFIA E CINCIAS DE MARLIA

    BRUNO CHAPADEIRO RIBEIRO

    TRABALHO E GESTO ATRAVS DO CINEMA

    MARLIA

    2013

  • BRUNO CHAPADEIRO RIBEIRO

    TRABALHO E GESTO ATRAVS DO CINEMA

    Dissertao apresentada Faculdade de Filosofia

    e Cincias da Universidade Estadual Paulista

    Jlio de Mesquita Filho, Faculdade de Filosofia e Cincias de Marlia, para obteno de

    ttulo de Mestre em Cincias Sociais.

    Linha de Pesquisa: Determinaes do Mundo

    do Trabalho: Sociabilidade, Poltica e Cultura.

    Orientador: Prof. Dr. Giovanni Alves

    Financiamento: CAPES

    Marlia

    2013

  • Chapadeiro, Bruno.

    C462t Trabalho e gesto atravs do cinema / Bruno Chapadeiro

    Ribeiro. Marlia, 2013. 132 f. ; 30 cm.

    Dissertao (Mestrado em Cincias Sociais) Universidade Estadual Paulista, Faculdade de Filosofia e

    Cincias , 2013.

    Bibliografia: f. 123-132.

    Orientador: Giovanni Alves.

    1. Trabalho. 2. Administrao de empresas. 3. Cinema. 4.

    Trabalho na arte. 5. Ideologia. 6. Subjetividade. I. Ribeiro,

    Bruno Chapadeiro. II. Chapadeiro, Bruno Ribeiro. III. Ttulo.

    CDD 331.1

  • BRUNO CHAPADEIRO RIBEIRO

    TRABALHO E GESTO ATRAVS DO CINEMA

    Dissertao apresentada Faculdade de Filosofia

    e Cincias da Universidade Estadual Paulista

    Jlio de Mesquita Filho, Faculdade de Filosofia e Cincias de Marlia, para obteno de

    ttulo de Mestre em Cincias Sociais.

    BANCA EXAMINADORA

    ________________________________________________

    Orientador: Prof. Dr. Giovanni Antnio Pinto Alves

    UNESP-Marlia

    _______________________________________________

    Prof. Dr. Jos Roberto Montes Heloani

    UNICAMP

    _______________________________________________

    Prof. Dr. Vera Lcia Navarro

    USP Ribeiro Preto

    Marlia-SP

    05 de Fevereiro de 2013

  • Natlia, por seu amor e companheirismo.

    Paulo, Eliana, Lucas e Daniela por todo o suporte e incentivo.

    Lucy e Edmundo Chapadeiro, pela arte e a cincia.

    Maria e Alar Ribeiro, pela enorme falta que fazem.

    Aos trabalhadores, por sua resistncia cotidiana.

  • A desvalorizao do mundo humano aumenta em proporo direta

    com a valorizao do mundo das coisas.

    KARL MARX

    Ainda se d grande importncia variedade de tcnicas possveis

    do cinema e no se destacam as questes de contedo; no

    devemos esquecer que em cada arte, o significado direto das coisas

    est na vida cotidiana.

    GYRGY LUKCS

    Acho que uma funo digna do cinema mostrar o homem ao

    homem.

    GLAUBER ROCHA

    No ligo de me casar com minha carreira. No espero que ela me

    abrace noite.

    NATALIE KEENER

    (de Amor sem Escalas)

  • AGRADECIMENTOS

    Agradeo primeiramente a Deus pelo dom da vida e da busca pela cincia que me deu.

    A CAPES por permitir o desenvolvimento de grande parte deste trabalho e

    Universidade Estadual Paulista Jlio de Mesquita Filho pelos oito anos que passei em suas dependncias e que me proporcionaram esclarecimento crtico, conscincia social de classe e

    a certeza de que uma universidade pblica de qualidade, laica, e acessvel a todos ainda um

    dos mais importantes baluartes desse pas.

    Aos meus pais, Paulo e Eliana, que com muito esforo estiveram sempre moral e

    fisicamente comigo em todos os passos que trilhei na vida. Fosse no ambiente acadmico ou

    fora dele. E que me ensinaram todos os valores de honestidade e justia social. Valores estes

    os quais carrego em mim e que espero multiplica-los to sabiamente quanto me foram

    transmitidos. Ao meu irmo Lucas, que sempre fora um norte em minha vida. Exemplo de

    garra e de se batalhar muito por tudo o que se almeja, mesmo que haja pedras no caminho.

    Natlia, por traduzir em convivncia e persistncia, o verdadeiro significado de

    companheirismo, lealdade e amor ao se fazer corpo disposto, porto seguro de minhas

    angstias e aflies em momentos de desertos, energia cintica quando me encontrava esttico

    e eco reverberante de qual fosse a frequncia transmitida por minhas vitrias e conquistas.

    Aos meus avs paternos Maria e Alar Ribeiro pela imensa falta que fazem em minha

    vida, porm que sou capaz de sentir em minha alma o orgulho que devem estar sentindo do

    neto nesse momento. Onde quer que estejam.

    Aos meus avs maternos Lucy e Edmundo Chapadeiro, onde, de uma herdei o amor

    pela arte e do outro o gosto pela cincia. Esferas to distintas e ao mesmo tempo to prximas

    que visei um perfeito casamento entre ambas. Tal como a unio dos dois.

    Paulo, Cristina e Letcia pelo apoio, suporte e respaldo dado em toda essa jornada.

    Aos meus amigos(as)-irmos(s) Ricardo, Denis, Edgard, Priscila, Bruna e Daniela,

    por sua amizade duradoura, infinita e alm. Cada um me fez um pouco do que hoje sou.

    Agradeo especialmente ao meu orientador, o professor Giovanni Alves por acreditar

    e abraar meu objetivo de pesquisa, conferindo-me total confiana e liberdade na conduo e

    execuo da mesma, sendo sempre um farol-guia pronto a me iluminar intelectualmente

    quando no enxergava horizontes.

    Aos docentes da UNESP-FFC-Marlia, Fbio Ocada e Paulo Teixeira, por comporem

    minha banca de qualificao deste trabalho, e tambm aos professores Roberto Heloani

    (Unicamp) e Vera Navarro (USP) por se disporem a sair de seus lares e tomar a estrada para

    estarem comigo em minha banca de defesa do mestrado.

    Ao falecido mestre, professor Jos Luiz Guimares, quem primeiro se fez presente e

    limpou o caminho das pedras para que meu projeto de extenso, Cine CAPSIA, hoje

    institucional, pudesse escrever sua histria na biografia da UNESP-FCL-Assis.

    Aos irmos Lumire por seu invento, o cinematgrafo, que transformaria no s a

    histria do mundo, mas tambm a minha. Ao camarada Felipe Macedo, figura na qual

    agradeo aos demais cineclubistas espalhados por esse nosso pas que lutam para que estas

    instituies sejam sempre uma organizao do pblico para o pblico.

    Aos colegas de RET, GEPEG e Tela Crtica/CineTrabalho aqui representados nas

    figuras dos camaradas Andr Luiz Vizzaccaro Amaral, Esdras Selegrin e Bruno Lacerra pelas

    infrequentes, porm proveitosas, discusses a cerca do mundo do trabalho e seus rumos.

    Aos demais pesquisadores da rea do trabalho que se fizeram presentes em minha

    caminhada, bem como a todos os trabalhadores que pude acompanhar de perto suas vivncias

    de prazer/sofrimento, reconhecimento/estranhamento de vossas lutas e labutas cotidianas.

  • RESUMO

    Assistimos na primeira dcada do sculo XXI verdadeira crise do nosso tempo histrico.

    No a crise das economias capitalistas, mas sim a crise do homem como sujeito histrico de

    classe, isto , ser humano-genrico capaz de dar respostas radicais crise estrutural do

    sociometabolismo do capital em suas mltiplas dimenses. importante salientar que crise

    no significa morte do sujeito histrico de classe, muito menos sua supresso irremedivel,

    mas to somente a explicitao plena da ameaa insuportvel perspectiva de futuro, risco de

    desefetivao plena do ser genrico do homem e, ao mesmo tempo, oportunidade histrica

    para a formao da conscincia de classe e, portanto, para a emergncia da classe social de

    homens e mulheres que vivem da venda de sua fora de trabalho e esto imersos na condio

    de proletariedade. Voltando nossos olhares para este novo (e precrio) mundo do trabalho

    agravado pelo capitalismo global, o presente trabalho buscou analisar, por meio de dinmicas

    de anlise crtica de filmes, esta nova era de barbrie social que se caracteriza pela

    reestruturao produtiva do capital sob o esprito da gesto toyotista. Nos utilizamos da obra de arte como objeto de reflexo sociolgica numa perspectiva dialtica, podendo ela

    contribuir para a apreenso de um conhecimento verdadeiro do ser social e do complexo scio

    reprodutivo do capital. Durante a pesquisa, desenvolveu-se um processo de aprendizagem

    crtica a partir da discusso da narrativa flmica procurando apreender o filme no apenas

    como um texto, mas como um pr-texto capaz de nos conduzir autoconscincia reflexiva do

    nosso tempo e enquanto meio esttico que propicia a reflexo crtica sobre o mundo burgus.

    Levando em considerao a capacidade reflexiva e deliberativa dos homens, que no podem

    trabalhar e viver sem dar sentido s suas aes e em si mesmo, afinal a dimenso simblica

    a base a partir da qual as relaes sociais se constroem, buscou-se adotar procedimentos de

    anlise crtica que implicaram numa longa imerso reflexiva do sujeito-pblico-como-classe

    na forma e no sentido do filme. O produto material foi mais resultado prtico de uma

    dinmica de anlise crtica do filme do que ponto de partida absoluto. A leitura de qualquer

    obra de arte requer tempo e esforo e que, em nenhum momento, uma obra de arte, seja qual

    for, est em conformidade com uma representao mental precisa que seria imagem no sentido psicolgico e no figurativo do termo. Toda obra de arte torna-se tambm, uma vez

    cristalizada, o ponto de partida de uma reflexo para quem sabe olhar, o que vai de acordo

    com a proposta de hermenutica crtica proposta no texto de que a apropriao crtica (e

    compreensiva) do cinema permite por um lado, a apreenso da forma e do sentido das obras

    flmicas em questo e por outro, contribui para o desenvolvimento do complexo terico-

    categorial utilizado por este sujeito-pblico-como-classe habilitado. O mtodo de investigao

    flmica consistiu, simplificadamente, em buscar os elementos da realidade atravs da fico, e

    desta forma pensar e entender a sociedade que o produziu. A arte nada mais que uma

    atividade que parte da vida cotidiana para, em seguida, a ela retornar, o que produz, nesse

    movimento dialtico, uma elevao na conscincia sensvel dos homens. O que significa que

    a anlise crtica de filmes que tratem da temtica trabalho e gesto pode contribuir com o desenvolvimento das cincias sociais.

    Palavras-chave: trabalho; gesto; cinema; ideologia; subjetividade.

  • ABSTRACT

    We saw in the first decade of this century the real crisis of our history time. Not a crisis of

    capitalist economies, but the crisis of man as a historical class, the generic-human being able

    to give replies to the structural crisis of the social metabolism of the capital in its multiple

    dimensions. Importantly, crisis does not mean death of the historical class subject, much less

    his hopeless suppression, but only a full explanation of the unbearable threat to the prospect

    of future, risk of full desefection of the generic being of man and, at the same time, historic

    opportunity to the formation of class consciousness and thus to the emergence of the social

    class of men and women who live by selling their work force and are immersed in a

    proletarian condition. Turning our eyes to this new (and precarious) world of work aggravated

    by the global capitalism, this study sought to examine, through dynamics of critical analysis

    of films, this new era of social barbarism that is characterized by productive restructuring of

    capital under the spirit of toyotist management. We use the artwork as an object of sociological reflection in a dialectical perspective that may contribute to the seizure of a true

    knowledge of self and the social reproductive complex of the capital. A critical learning

    process was developed from the discussion of film narrative seeking to seize the film not only

    as a text, but as a pre-text that can lead us to self-reflection of our time and as esthetic

    medium that provides critical reflection about the bourgeois world. Taking into account the

    reflective and deliberative ability of men, who cannot live and work without giving meaning

    to their actions and in themselves, for the symbolic dimension is the base from which the

    social relations are constructed, we sought to adopt procedures of critical analysis that

    resulted in a long reflective soak of the public-individual-as-class in the shape and meaning of

    the film. The material product was more a practical result of a dynamics of critical analysis of

    the film than an absolute starting point. The reading of any work of art requires time and

    effort and, not at any time, a work of art, whatever, is in accordance with an accurate mental

    representation that would be image in the psychological sense and not in the figurative one of the term. Every work of art also becomes, once crystallized, the starting point of a

    reflection for the one who knows how to view according to what is proposed by critical

    hermeneutics proposed in the text in which the critical appropriation (and understanding) of

    cinema allows to grasp the shape and meaning of the film works in question and on the other

    hand, contributes to the development of the theoretical and categorical complex used by this

    enabled public-individual-as-class. The film research method consisted, simply, in pursuing

    the elements of reality through fiction, and thus thinking and understanding the society that

    produced it. The art is nothing more than an activity that comes from everyday life, and then

    returns to it, which produces, in this dialectical movement, an increase in sensible awareness

    of men. This means that the critical analysis of films that deal with the theme work and management can contribute to the development of the social sciences.

    Keywords: work; management; cinema; ideology; subjectivity.

  • SUMRIO

    INTRODUO..........................................................................................

    CAPTULO 1

    O mtodo Tela Crtica: embasamentos terico-prtico analticos.......... 1.1 O mtodo Tela Crtica: pressupostos tericos............................................................

    1.2 O mtodo Tela Crtica: pressupostos prticos............................................................

    CAPTULO 2

    Trabalho e Gesto........................................................................................ 2.1 Gesto da captura da subjetividade sob o capitalismo global................................. 2.2 Trabalho ideolgico e manipulao reflexiva: captura como escolha moral...... 2.3 Trabalho flexvel, vida reduzida e precarizao do homem que trabalha..................

    11

    19

    25

    28

    32

    34

    40

    43

    CAPTULO 3

    O insustentvel peso do trabalho, de Mike Judge........................................

    49

    CAPTULO 4

    O que voc faria?, de Marcelo Pieyro........................................................

    70

    CAPTULO 5

    Amor Sem Escalas, de Jason Reitman..........................................................

    91

    CONSIDERAES FINAIS.....................................................................

    117

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS.....................................................

    123

  • 11

    INTRODUO

    Sabe-se que um dos primeiros registros do cinema intitulou-se La Sortie de l'usine

    Lumire Lyon (A Sada da Fbrica Lumire em Lyon). Produzido em 1895 por Auguste e

    Louis Lumire, A Sada da Fbrica Lumire e outros nove pequenos filmes foram exibidos

    para divulgar em Paris, o cinematgrafo, invento dos Irmos Lumire.

    O primeiro filme exibido pelo cinematgrafo expe uma pequena multido de

    operrias saindo da Fbrica Lumire aps cumprir a jornada de trabalho. Neste primeiro

    registro documental do cinema, o mundo do trabalho exposto num momento curioso de sua

    histria: a pequena multido de mulheres operrias saem da Fbrica, apressadas e felizes, com

    seus vestidos longos e chapus da belle poque, indiferentes cmera do patro que registrava

    a sada da Fbrica. Trata-se de um registro documental singelo, mas significativo no plano

    simblico. O cinema nasce expondo imagens do cotidiano da proletariedade do mundo do

    capital cujas contradies sociais imprimem a sua marca na imagem em movimento. Por isso,

    as narrativas flmicas da proletariedade (documentais ou ficcionais) contm, muitas vezes nos

    detalhes, em si e para si, a verdade da razo histrica do mundo do capital.

    A reproduo cada vez mais realista do mundo oferecida pelo cinematgrafo

    encaixava-se nos sistemas ideolgicos e estticos do sculo XIX. Desse modo, a cmera

    (cinematgrafo) em si ainda hoje um aparato que encarna uma teoria da realidade, uma

    ideologia, pois v o mundo como objeto do ponto de vista de um nico indivduo, que se faz

    individualidade pessoal de classe.

    Na primeira exibio do cinematgrafo, Georges Mlis esteve presente e interessou-

    se logo pela explorao do aparelho. Enquanto os Irmos Lumire inauguram o

    cinematgrafo, produzindo registros documentais do cotidiano da vida burguesa, Georges

    Mlis percebeu o valor do cinema como meio de produo de imagens de espetculo. Deste

    modo, com Mlis temos os rudimentos do cinema como indstria cultural da sociedade do

    espetculo eis a marca indelvel da nova linguagem humana que nascia com o

    cinematgrafo e que seria desenvolvida exausto no sculo XX, de forma que podemos

    considerar Mlis como o pai dos efeitos especiais. Do cinematografo dos Irmos Lumire

    aos recursos tecnolgicos que produzem vdeos no sculo XXI (filmadoras portteis ou em

    IMAX), temos pouco mais de 100 anos.

    A linguagem audiovisual que nasce com o cinematgrafo, tornou-se hoje meio

    indispensvel no processo de subjetivao humana numa sociedade em que os meios de

  • 12

    representao simblica se tornaram centrais na reproduo do modo de vida e das relaes

    sociais. O proletariado imerso hoje no bojo do capitalismo manipulatrio sob o esprito do

    toyotismo1 no se define por no possuir os meios de produo, mas tambm especificamente

    por no possuir os meios de produo simblica; no apenas por ter somente sua fora de

    trabalho para pr venda no mercado, mas igualmente por negociar sua subjetividade.

    Com o advento do cinema, se faz necessrio tambm o surgimento do pblico de

    cinema. Este se constituiu atravs de um processo contraditrio de luta pela hegemonia no

    controle dos meios de produo e circulao da reproduo simblica da realidade, atravs

    das imagens em movimento. No toa, o cinema incorporou, neutralizou e domesticou aos

    poucos as massas e suas vanguardas, estabelecendo e consolidando um modelo padro que

    colocaria o pblico (inicialmente formado pelas classes trabalhadoras) na posio

    espectatorial-receptiva, submisso a uma linguagem ideologicamente alinhada, linear e

    mistificante (MACEDO, 2010, p. 39). Em seu Histria e Conscincia de Classe, Lukcs j

    fizera a crtica dos homens contemplativos, indivduos criados pela sociedade da indstria

    cultural e do entretenimento, homens e mulheres (de)formados em sua subjetividade para

    contemplarem meramente o mundo espetacular das mercadorias (ALVES, 2010).

    A classe dominante sempre teve bem claros seus interesses. Ao se apropriar desse

    processo de formao e informao do cinema, de modo a criar as empresas da indstria

    cultural, que fizeram do sculo XX, - o sculo do cinema -, tambm o sculo de

    imbecilizao planetria. Interessada na manuteno de uma ordem burguesa, promoveu a

    desefetivao de sujeitos humanos incapazes de uma interveno prtico-sensvel radical2.

    Assim sendo, se hoje cada vez mais o audiovisual perpassa nossos modos de

    sociabilidade, constituindo espaos mediticos (essencialmente audiovisualizados), o projeto

    poltico e social contemporneo de trabalhos como o que se apresenta nas prximas pginas,

    que utilizam o cinema como experincia crtica, devem ocupar uma posio central na

    organizao e formao do pblico. Entende-se pblico de acordo com Macedo (2010,

    p.47) que o define como a maioria absoluta da populao que hoje categoria central no

    processo social, para reproduo ou para a transformao das relaes. Ou seja, pblico-

    1 Em Max Weber, o esprito do capitalismo remete ao conjunto dos motivos ticos que inspiram a burguesia

    em suas aes favorveis acumulao do capital. Chamamos de esprito do toyotismo a ideologia que justifica o engajamento no capitalismo global que pe em prtica novas tecnologias produtivas que visam

    mudanas nos dispositivos de acumulao do capital atravs do desarmamento temporrio da crtica e da

    captura da subjetividade do homem que trabalha. 2 O estabelecimento de um cinema-instituio, do cinema clssico-hollywoodiano, uma trajetria de

    represso, controle e convencimento das massas, que se estende at o final dos anos 1920. O pblico

    verdadeiramente popular do primeiro cinema sempre se expressou ruidosamente, e mesmo organizadamente, quanto a seus interesses e gostos. (MACEDO, 2010, p. 39).

  • 13

    como-classe3, no se definindo apenas por seu perfil estritamente econmico, por sua renda,

    mas pelo lugar que ocupam na reproduo das relaes de produo.

    O que nos importa essencialmente na relao entre o pblico (classe social) e o cinema

    (audiovisual), so as condies de apropriao crtica, e no o mero acesso aos filmes

    (condio necessria, mas insuficiente) que, por si, corresponde apenas necessidade de

    criao de plateias ou em mercados cada vez mais imersos na fetichizao do audiovisual

    como mercadoria. A questo da apropriao de contedos e sentidos, com vias ao

    desenvolvimento da sua capacidade de expresso, a tarefa mais essencial que se coloca hoje

    para o pblico sob as condies do capitalismo manipulatrio.

    Para tal, compreende-se que uma obra cinematogrfica suscetvel a abordagens

    muito diversas, uma vez que no existe uma nica teoria sobre cinema, mas ao contrrio,

    existem vrias teorias que correspondem a abordagens possveis de um filme. A apropriao

    crtica da forma e do sentido do filme com a promoo de dinmicas reflexivas e o debate

    como instrumento convivial de compreenso e formao, atravs do compartilhamento das

    experincias do pblico como classe, no visam a alfabetizao de um olhar que se deve ter

    com a obra flmica.

    O proletariado moderno j nasceu na frente de um televisor e se socializa

    principalmente atravs das mdias audiovisuais, portanto, criar espaos onde se proponha

    anlises crticas do mundo do trabalho sob a tica de uma obra cinematogrfica, propicia um

    reencontro com os verdadeiros interesses e identidades de classe do homem que trabalha. O

    que tornaria a pretenso de ensino de como ver ou entender um filme, uma realidade

    autoritria e no emancipatria como de nosso desejo.

    A educao, entendida como processo de construo de uma conscincia social capaz

    de construir uma alternativa histrica transformadora, constitui a prtica e a base eficiente

    para a apropriao e emprego das potencialidades de expresso e comunicao audiovisual

    num sentido criativo. No como o instrumento de dominao, alienao e homogeneizao

    que tem sido o papel do cinema desde sua institucionalizao comercial. Portanto, coloca-se

    cada vez mais, nas condies da sociedade do espetculo e nos marcos do capitalismo

    manipulatrio, a necessidade radical do cinema como experincia critica.

    Assim, o intuito maior atribudo a esta pesquisa analisar o mundo do trabalho e as

    formas de ser das ideologias da gesto no capitalismo global por meio de dinmicas de anlise

    crtica de filmes. Para isso nos utilizamos do cinema como instrumento de reflexo crtico-

    3 Utilizaremos ao logo do texto a expresso pblico-como-classe para conotar participao, de forma que

    espectador tem justamente um vis passivo, no interativo.

  • 14

    sociolgica tendo como finalidade discorrer, atravs dos filmes, sobre a precarizao do

    mundo do trabalho e os modelos de gesto adotados no capitalismo global sob o esprito do

    toyotismo que, semelhante ao cinema (e por vezes com semelhantes artifcios), possui

    mecanismos de captura da subjetividade do homem que trabalha.

    Para tal, adotamos procedimentos de anlise crtica que implicaram numa longa

    imerso reflexiva do pesquisador social na forma e no sentido do filme. Isto permitiu ao

    mesmo um processo de aprendizagem crtica a partir da discusso da narrativa flmica

    procurando apreende-la no como um fim, mas como um meio, uma ferramenta, que nos

    conduz autoconscincia reflexiva do nosso tempo e enquanto um meio esttico que propicia

    a reflexo crtica sobre o mundo burgus.

    Com isso, quando tomamos a obra flmica como objeto de estudo para a compreenso,

    aqui no caso, das formas de ser das ideologias da gesto toyotista com seus mecanismos de

    captura da subjetividade da fora de trabalho no capitalismo global, nos deparamos frente

    impossibilidade de uma anlise total e perfeitamente acabada. Esta somente alcanada por

    meio de hipteses que se ancoram a um referencial terico pr-determinado. Em nosso caso, o

    mtodo dialtico.

    Desse modo, o que mais nos interessa no presente estudo a funo exercida pela arte

    cinematogrfica na vida cotidiana dos homens e por isso que tratamos as anlises das obras

    flmicas analisadas no no campo da representao, ou do imagtico com fim em si mesmo,

    mas sim como produto do real (pois da transformao do real que tratamos), o que

    potencializa o enriquecimento de nossa prpria experincia crtica.

    Estamos ento de acordo com Frederico (2000) quando este nos diz que a prpria vida

    cotidiana deve ser o ponto de partida e o ponto de chegada a qual a arte deve se apropriar:

    da vida comum do homem que provm a necessidade do mesmo objetivar-se, ir alm de seus

    limites habituais; e para a vida cotidiana que retornam os produtos de suas objetivaes.

    Com isso, a vida social dos homens permanentemente enriquecida com as aquisies

    advindas das conquistas da arte.

    Todavia, a idia de que o cinema registre ou reproduza imagens do mundo real sempre

    fora constantemente questionada no meio acadmico. O que se prope com este trabalho

    caminha na direo contrria, de forma que o cinema, como meio de comunicao que pode

    transformar o real, tem sua prpria linguagem e seu prprio modo de fazer sentido. Eisenstein

    (2002) mesmo afirmava que o cinema como ferramenta de educao sovitica era suficiente,

    pois seu didatismo trazia benefcios polticos, de forma que se torna irnico que o uso mais

  • 15

    comum da stima-arte no capitalismo global seja enquanto publicidade4 ou mero

    entretenimento como dissemos.

    desse modo, que buscamos compreender o cinema como a mais completa arte do

    sculo XX, capaz de ser a sntese total das mais diversas manifestaes estticas do homem.

    O cinema como arte total consegue apresentar a verdade dos conceitos e categorias das

    cincias sociais atravs de situaes humanas tpicas elaboradas por meio de uma srie de

    tcnicas de reproduo aprimoradas a partir de outras intervenes estticas (ALVES, 2010b).

    Diferentemente da informao que s tem seu valor no momento em que nova e que

    vive em um vo momento precisando entregar-se inteiramente a ele e sem perda de tempo de

    se explicar nele, como salienta Benjamin (1993), muito diferente a forma e o sentido da

    narrativa cinematogrfica que conserva suas foras e no se entrega a tempo algum, de forma

    que ainda depois de muito tempo capaz de se desenvolver e de se manter atual5.

    Assim, um filme capaz de ser realista e de se fazer a-histrico por incorporar em sua

    forma e contedo estticos, uma dimenso capaz de expressar por meio de representaes

    mistificadas o mundo dos homens. Na verdade, no a obra de arte que mistificada, mas

    sim, o mundo que ela representa. Por isso, a perspectiva da esttica lukacsiana a qual

    adotamos, de que a arte um reflexo antropomorfizado do mundo scio histrico.

    De forma sinttica pode-se dizer que as dinmicas de anlises crticas utilizadas nesse

    trabalho que visaram a desmistificao desse reflexo antropomorfizada do mundo scio

    histrico contido nas obras flmicas implicaram em (...) etapas de pesquisa da forma do

    filme, autorreflexo pessoal, apreenso de cenas significativas, preparao terico-crtica e

    elaborao final de ensaio crtico. (ALVES, 2010c, p.65). Nos anexos deste trabalho

    descrevemos com maior cautela e preciso os embasamentos tericos, bem como a

    metodologia de atuao do Tela Crtica.

    4 O cinema de entretenimento oferece a possibilidade de ver eventos e compreend-los de uma posio de

    afastamento e domnio. O filme oferecido ao espectador, mas o espectador no tem nada a oferecer ao filme,

    salvo o desejo de v-lo e ouvi-lo. Da ser uma posio de poder aquela desfrutada pelo espectador, especialmente

    poder para entender eventos em vez de muda-los. Esta uma posio de domnio que se pode transformar aos

    poucos em fascinao, em desejo fetichista de eliminar a prpria distncia e separao que tornam possvel o

    processo de ver (TURNER, 1997, p. 113). 5 Cada manh recebemos notcias de todo o mundo. E, no entanto, somos pobres em histrias surpreendentes. A

    razo que os fatos j nos chegam acompanhados de explicaes. Em outras palavras: quase nada do que

    acontece est a servio da narrativa, e quase tudo est a servio da informao. Metade da arte narrativa est em

    evitar explicaes. O extraordinrio e miraculoso so narrados com a maior exatido, mas o contexto psicolgico

    da ao no imposto ao leitor. Ele livre para interpretar a histria como quiser, e com isso o episdio narrado

    atinge uma amplitude que no existe na informao. (BENJAMIN, 1993, p. 203)

  • 16

    Assim, a arte aliada razo dialtica de fato o nico modo capaz de nos fazer

    compreender o trabalho como esforo intelectual aplicado produo de um conhecimento,

    uma obra de arte, um opus, uma vida cheia de sentido. A ttulo de exemplo, temos que muitos

    cineastas no sculo XX trataram, direta ou indiretamente, do drama trgico da proletariedade,

    expondo com seus filmes, vises da modernidade do capital com suas candentes contradies

    sociais que dilaceram o ser genrico do homem.

    Seria temerrio expor uma lista exaustiva de nomes de diretores do cinema mundial

    que contriburam com filmes realistas capazes de permitir a apropriao do cinema como

    experincia crtica a partir do eixo temtico Trabalho e Gesto, e que trataram com

    desenvoltura da condio de proletariedade, do trabalho alienado e da luta de classes e suas

    repercusses no plano da conscincia social. Porm, optamos por obras que tratassem do

    contexto de crise de (de)formao do sujeito de classe iniciada a partir dos anos 2000 com o

    agravamento do capitalismo manipulatrio. O referido tempo histrico explicita com sua

    dramaticidade miditica, a alienao como um poder insuportvel afetando o homem que

    trabalha no plano da conscincia contingente de classe, em sua condio de proletariedade.

    Dessa forma, as obras escolhidas por ns para compor o presente trabalho, tais como,

    O insustentvel peso do trabalho de Mike Judge, O que voc faria? de Marcelo Pieyro e

    Amor sem Escalas de Jason Reitman diferem-se entre si em seus gneros, escolas e recursos

    estticos e nacionalidades em que foram produzidos, no entanto, datam respectivamente dos

    anos 1999, 2005 e 2009, de forma que, com o recorte temporal proposto, buscamos investigar

    o reflexo esttico antropomorfizado de cada obra e o que cada uma delas e sua totalidade -

    nos sugere quanto exposio do drama da proletariedade humana atrelado aos mecanismos

    de captura da subjetividade do homem que trabalha pela gesto toyotista sob o agravamento

    da crise estrutural do sociometabolismo do capital em suas mltiplas dimenses.

    No captulo 1, visando contribuir com uma pedagogia audiovisual adaptada ao nosso

    tempo histrico, descreveremos os pressupostos terico-metodolgicos nos quais se baseia o

    rigor tcnico do mtodo Tela Crtica de anlise flmica em seu componente poltico mais

    importante: a crtica das relaes sociais vigentes no mbito da produo e da reproduo

    social. Procuramos tambm descrever brevemente nossas motivaes em aliar as temticas

    trabalho e gesto com o cinema; inclusive justificando o porqu de nossa escolha pelo

    referido mtodo de anlise crtica do mundo do trabalho a partir de dinmicas flmicas, como

    tambm nossa rdua, porm prazerosa, trajetria de pesquisa. Desmistificando que exista

    moleza quando o pesquisador social se utiliza do recurso cinematogrfico para discorrer

    sobre temas to complexos quanto so trabalho e gesto.

  • 17

    No captulo 2 buscamos discorrer sobre esta nova era de barbrie social que se

    caracteriza pela reestruturao produtiva do capital sob o esprito da gesto toyotista

    expondo o contraste existente entre racionalizao intraempresa capitalista sob a lgica do

    trabalho flexvel e a irracionalidade social com a disseminao do desemprego de longa

    durao e a precarizao estrutural do trabalho. Narramos que, medida que o capitalismo

    global a etapa superior do capitalismo manipulatrio, acirra-se o processo de crise do

    humano, dado pelas novas formas de precariedade salarial com impactos importantes na

    conscincia de classe. Nesse caso, o poder da ideologia e a intensificao do fetichismo da

    mercadoria devido a vigncia do mercado na estruturao social, compem um cenrio

    qualitivamente novo de desefetivao do ser genrico do homem6.

    No captulo 3, faremos a anlise crtica do filme O insustentvel peso do trabalho

    (Office Spaces, 1999) do diretor norte-americano Mike Judge onde, lanado no auge da New

    Economy e do boom das empresas de Internet nos EUA em 1999, o filme uma deliciosa

    tragicomdia sobre o mundo dos proletrios de colarinho-branco do Vale do Silcio na

    Califrnia. No filme, todas as personagens esto imersos na condio de proletariedade, sendo

    obrigados a trabalhar com as novas Tecnologias da Informao e de Comunicao (TICs)

    advindas da Quarta Idade da Mquina prpria da gesto toyotista, e que os afoga num tipo de

    trabalho tedioso, enfadonho e estranhado. Estranhamento este que penetra desde o cho-de-

    fbrica, at o Office Space (espao do escritrio) e que est no tempo de trabalho e no tempo

    de vida, fazendo desta, uma vida reduzida e estranhada.

    No captulo 4, trataremos da produo ibero-americana O que voc faria? (El Mtodo,

    2005) dirigido por Marcelo Pieyro que trata da temtica da gesto de recursos humanos

    focada nas prticas de recrutamento e seleo dos departamentos de pessoal das grandes

    empresas. Com O que voc faria? explicitamos o alinhamento das estratgias de contratao

    dos gestores do capital s estratgias de organizao dos grupos de trabalho e de produo nos

    locais de trabalho reestruturados. O que se coloca a lgica de captura da subjetividade do

    homem implicado em cada momento da vida cotidiana, com escolhas pessoais sob

    constrangimentos sistmicos dados. Desse modo, temos os nexos do capitalismo global em

    sua forma de capitalismo manipulatrio que visa o primado do trabalho ideolgico em

    tempos de crise estrutural do capital sob o esprito da gesto toyotista que organiza

    6 Ou seja, o que consideramos como crise estrutural do capital possui as caractersticas de uma sndrome

    social, isto , um conjunto de sinais e sintomas associados a uma condio social crtica, suscetvel de despertar reaes de temor e insegurana global. o que temos denominado de sociometabolismo da barbrie ou

    barbrie social (ALVES, 2011).

  • 18

    mecanismos de captura da subjetividade do homem que trabalha impondo-lhe tais escolhas

    pessoais estranhadas. Com O que voc faria?, soubemos articular a dialtica candente entre o

    microcosmos das batalhas particularistas sob o capitalismo neoliberal, onde domina a

    manipulao reflexiva, e o macrocosmo do catico capitalismo global, permeado por suas

    intensas (e ampliadas) contradies sociais.

    No captulo 5, com o filme Amor sem Escalas (Up in the Air, 2009) de Jason Reitman,

    que conta a trajetria de Ryan Bingham, um consultor contratado por empresas para assumir a

    tarefa de demitir os funcionrios considerados no mais necessrios, proporemos trabalhar

    com o eixo-temtico gesto e vida pessoal. Por intermdio da ideologia da realizao de

    si, a vida reduzida produz homens imersos em atitudes (e comportamentos) particularistas,

    construdos (e incentivados) pelas instituies (e valores) sociais vigentes. no campo das

    escolhas pessoais estranhadas por meio de valores-fetiches e suas imagens de valor que se

    opera a captura da subjetividade e da intersubjetividade do homem-que-trabalha7.

    A guisa de concluso, em nossas consideraes finais buscamos amarrar os contedos

    pertinentes nossa temtica candente de trabalho e gesto, apresentados nas dinmicas de

    anlises flmicas, salientando a importncia poltica de se ter uma pedagogia audiovisual de

    cariz crtico adequada s condies do capitalismo manipulatrio no sculo XXI.

    7 A manipulao social se d principalmente por meio da produo recorrente de indivduos reduzidos mera

    particularidade, capazes de aceitar os valores-fetiches, reiterando a ordem das coisas e da vida reduzida (ALVES, 2011b, p. 51).

  • 19

    CAPTULO 1

    O mtodo Tela Crtica: embasamentos terico-prtico analticos

    Os vestgios da histria de um filme esto presentes de muitas maneiras: seja em sua

    prpria narrativa, seja na realidade de quem o produziu, seja na qualidade de quem o relata

    para quem no o viu, seja principalmente por tratar-se da vida comum, do mundo dos homens.

    A questo para qual atemos, saber o limite e se o h - da profunda imerso do

    sujeito que se faz pblico-como-classe na forma e no sentido do filme que o permita renunciar

    a seus contedos subjetivos durante a ganga mstica fornecida pela narrativa

    cinematogrfica de forma tal que permanea com a mente livre para envolver-se por

    completo na histria contada e a enxerg-la desprovido de qualquer pr-interpretao ou

    mesmo pr-conceitos para em seguida resignific-la.

    Para compreendermos melhor a interao do sujeito enquanto individualidade pessoal

    que se faz pblico-como-classe diante de uma obra de arte, aqui no caso, o recurso flmico,

    Luis Espial (1976) nos diz que a situao espetacular a qual o pblico submetido diante de

    um filme muito diferente da situao realista da pessoa na vida normal. Assim, numa

    situao realista-objetiva tomamos uma atitude prtica, agressiva e disposta ao, enquanto

    na situao espetacular-subjetiva trata-se de uma atitude no prtica. Na situao realista-

    objetiva, explica ele, nos fixamos no contedo material das coisas. Precisamente por esta

    atitude prtica estabelecemos uma relao pragmtica com o mundo que nos rodeia e vemos

    tudo como teis, segundo a terminologia de Heiddeger. Ao contrrio, na situao

    espetacular-subjetiva, muitas vezes, parece que vemos as coisas pela primeira vez, ao

    depararmo-nos com elas com um olhar por vezes desapaixonado e neutro, o que se evidencia

    como uma via de fcil acesso ideologia dominante.

    No entanto, o quo neutro seria esse nosso olhar diante de uma obra cinematogrfica?

    Tem-se, portanto questes essenciais no tocante relao sujeito-pblico-como-classe e obra

    flmica: (1) Se h uma efetiva neutralidade do olhar/sentir deste frente a uma obra de arte (2)

    quais os cuidados da utilizao de uma obra de arte para os fins que se quer vir-a-ser e (3) o

    valor do recurso audiovisual enquanto capaz de nos conduzir autoconscincia reflexiva do

    nosso tempo e enquanto meio esttico que propicia a reflexo crtica sobre o mundo burgus

    conforme salientou Lukcs (2009).

    Ora, a histria de toda autntica atividade artstica a luta para aproximar-se da

    realidade, no entanto a infinitude extensiva e intensiva do mundo no jamais inteiramente

  • 20

    alcanvel pela arte, nem tampouco pela cincia, e no se pode falar seno de uma

    aproximao. Logo, a obra de arte representa sempre apenas uma parte de realidade

    historicamente limitada no espao e no tempo, mas o faz de tal modo que ela aspira e

    consegue ser uma totalidade em si concluda como se elaborasse um mundo prprio e

    particular, porm agindo tambm num sentido anlogo devendo influenciar do mesmo modo

    quem a cria e quem a recebe transformando-os.

    Lukcs (1968) refora nossa tese de que todos os caminhos percorridos pela

    verdadeira arte provm da realidade social e que, portanto todas as estradas percorridas pela

    justa eficcia exercida pela obra devem reconduzir realidade social, ampliando os horizontes

    do homem e colocando-os em relaes mais estreitas e ricas com a realidade. Assim, Lukcs

    insiste que a elevao da subjetividade individual ao nvel da universalidade atravs da

    experincia esttica de uma obra de arte no deve ter nada de uma formalizao, mas sim

    pressupor um reforo e amplificao da singularidade.

    A arte representa sempre e exclusivamente o mundo dos homens, j que em todo ato de reflexo esttico (diferentemente do cientfico) o homem est sempre presente

    como elemento de mediao nas relaes e nas aes e nos sentimentos dos homens,

    deste carter objetivamente dialtico do reflexo esttico, de sua cristalizao na

    individualidade da obra de arte, nasce uma duplicidade dialtica do sujeito esttico,

    isto , nasce no sujeito uma contradio dialtica que, por sua vez, revela tambm o

    reflexo de condies fundamentais no desenvolvimento da humanidade. (LUKCS, 1968, p. 284)

    Para Lukcs, a finalidade da atividade esttica , portanto a autocontemplao da

    subjetividade sendo essa impregnada pelos mltiplos contatos objetivos com a realidade

    objetiva. Desse modo, a eficcia exercida pela obra de arte faz com que o sujeito-pblico

    experimente uma relao mais rica e mais profunda de um mundo externo concebido com

    riqueza e profundidade, do homem enquanto membro da sociedade, da classe, da nao,

    enquanto microcosmos autoconsciente no macrocosmos do desenvolvimento da

    humanidade (LUKCS, 1968, p. 296).

    Nesta situao realista-objetiva nos deparamos com o que nos rodeia com a atitude

    existencial do ter, do material, do possuir. Ao contrrio, na situao espetacular-subjetiva

    tomamos a atitude do ser, quer dizer, o que nos rodeia diz mais sobre ns e nos personaliza. O

    mundo burgus se coloca como o da situao realista-objetiva que incita os sujeitos humanos

    condio de colecionadores de imensas quantidades de mercadorias, ao passo que a esfera

    artstica por meio da situao espetacular-subjetiva promove o reencontro desse sujeito

  • 21

    humano consigo mesmo, dando personificao suas inquietudes e capaz de mostrar-lhe seu

    ncleo humano-genrico.

    Assim, a verdadeira arte torna-se dimenses da objetivao do ser humano,

    responsvel pela humanizao da espcie e que nos levaria a independncia relativa da

    prpria vida cotidiana. Ora, a vida social dos homens permanentemente enriquecida com as

    aquisies advindas das conquistas da arte.

    Porm, temos no fim do sculo XIX a poca da burguesia que passa a dominar e a

    transformar os meios de produo, as relaes de trabalho, a sociedade e impor seu domnio

    sobre o mundo ocidental, desenvolvendo diversas mquinas e tcnicas que segundo Bernadet

    (1986) no s vm a facilitar seu processo de dominao, e a acumulao de capital, como

    tambm passa a criar um universo cultural condizente com as relaes poltico-sociais que se

    pretende estabelecer. Embora as atividades nos estdios de som e nas locaes de filmagem

    possam ainda hoje ser artesanais, as prticas econmicas da indstria cinematogrfica so a

    dos grandes negcios8. Assim, aliando-se mquina, arte e tcnica, tem-se, portanto, uma

    importante ferramenta que d forma a este universo cultural e simblico proposto pela

    burguesia e que expressa seu processo de dominao cultural, ideolgico e esttico, por meio

    da reproduo da realidade que se quer transmitir.

    Neste universo cultural da burguesia subsumido lgica do trabalho estranhado, torna-

    se impossvel uma vida plena de sentido na tica lukacsiana, tendo em vista que o homem

    passa a fazer do trabalho assalariado to-somente meio de subsistncia voltado para a fruio

    do consumo alienado, invertendo, deste modo, a relao que teria com o trabalho como

    princpio ontolgico. Marx (2004) j nos dizia que o trabalho estranhado aliena o homem de

    seu prprio ser genrico, isto , mortifica seu corpo e arruna seu esprito. Dessa forma, a

    tarefa poltica mais digna da verdadeira arte seria a de nos redimir da barbrie social do

    mundo do capital, porm, o cinema como arte-total produto criativo em primeira instncia da

    burguesia torna-se efetivamente o contrrio, uma instituio de aperfeioamento moral que

    comumente subjuga os escravos assalariados na forma do entretenimento. Nesse sentido, a

    diverso e o entretenimento apenas o prolongamento do trabalho sob o capitalismo

    manipulatrio (ALVES, 2010b).

    Nossa preocupao com a utilizao do cinema com meros fins visando o

    entretenimento foi apontada j por Adorno e Horkheimer no conceito de indstria cultural,

    que compreenderia as formas de entretenimento da arte moderna. Para Adorno, a obra

    8 Nenhuma tecnologia nova pode ser introduzida sem que o sistema econmico o exija (TURNER, 1997, p. 21).

  • 22

    cinematogrfica no pode ser entendida isoladamente como uma forma artstica sui generis,

    sendo que deve ser vista to-somente como o modo caracterstico da cultura de massas

    contempornea que se serve de tcnicas de reproduo mecnica. A noo de cultura de

    massas no supe uma arte que tem sua origem na massa e que se eleva a partir delas9. Logo,

    tambm para Adorno a arte ficaria reduzida ao entretenimento, remdio para a fadiga dos

    trabalhadores assalariados explorados pelo capital, e o cinema seria a arte que mais se

    adequaria a essa funo social10

    .

    claro que Adorno reconhecia a potencialidade da arte cinematogrfica, desde que ela

    no estivesse presa a estilos ideolgicos e s velhas frmulas da grande indstria cultural. A

    exemplo de Lukcs, Adorno e Horkheimer no percebiam no cinema o desenvolvimento de

    uma arte superior s anteriores (ainda que estes ltimos levantassem vrios aspectos

    estruturais que dariam maior potencialidade ao cinema) pois as grandes corporaes fizeram

    uso de seu domnio para mudar a estrutura da indstria cinematogrfica tornando-a mera

    indstria cultural. Entretanto, o cinema comprometido com as contradies sociais do mundo

    do capital, pautado nas lutas dos trabalhadores, ou mesmo voltado para a crtica ao modo de

    vida burgus, contrape-se ao gosto das massas subalternas indstria cultural e aproxima-se

    daquilo que os frankfurtianos consideravam como alta cultura11.

    Mas para os frankfurtianos Adorno e Horkheimer, cultura j contm virtualmente o

    levantamento estatstico, a catalogao, a classificao que a introduz no domnio da

    administrao. Sua subsuno industrializada e conseqente inteiramente adequada ao

    conceito de cultura que vivemos no mundo do capital. Ao reduzirmos cultura a

    entretenimento, com a finalidade de ocupar os sentidos dos operrios e empregados desde a

    sada do expediente de trabalho, at a chegada ao relgio de ponto na manh seguinte, com o

    selo da tarefa de que devem se ocupar durante o dia, tornamos o cinema, construo cultural

    de ordem burguesa, um mero circo audiovisual que entretm os escravos assalariados de

    forma que o espectador no deve ter necessidade de nenhum pensamento prprio. Nesse caso,

    9 Na era industrial avanada, as massas no tem mais remdio para desafogar-se e repor-se como parte da

    necessidade de regenerar as energias para o trabalho que consumiram no alienante processo produtivo. Esta a

    nica base material da cultura de massas. (ADORNO; EISLER, 1981, p. 14). 10

    De todo os meios de cultura de massas, o cinema, ao ser o que mais abarca, o que mais mostra com maior nitidez esta tendncia aglutinante. O desenvolvimento de seus elementos tcnicos, imagens, palavra, som,

    roteiro, representao dramtica e fotografia, como tais, desenvolveu paralelamente a determinadas tendncias

    sociais para a aglutinao de bens culturais tradicionais convertidos em mercadorias. (idem, p. 1981) 11

    Ao invs de se expor ao fracasso, no qual o estilo da grande obra de arte sempre se negou, a obra medocre sempre se ateve semelhana com outras, isto , ao sucedneo da identidade. A indstria cultural trai seu

    segredo, a obedincia hierarquia social. A barbrie esttica consuma hoje a ameaa que sempre pairou sobre as

    criaes do esprito que desde que foram reunidas e neutralizadas a ttulo de cultura (ADORNO & HORKHEIMER, 2006).

  • 23

    o produto prescreve toda reao, no por sua estrutura temtica que desmorona na medida em

    que exige o pensamento, mas atravs de sinais. Toda ligao lgica que pressuponha um

    esforo intelectual escrupulosamente evitada.

    Assim, a indstria cultural que se desenvolveu nas ltimas dcadas sob o capitalismo

    global tende a levar irremediavelmente deformao dos sujeitos humanos de classe,

    tornando-os incapazes de escolhas radicais. A questo que se coloca hoje sob o tempo

    histrico do capitalismo manipulatrio, descrito por Lukcs, como deter a mquina

    industrial e poltica de cultura de massas montada pela ordem do capital que objetiva o

    desmonte de sujeitos humanos. Afinal ento com o cinema que retomamos uma de nossas

    indagaes iniciais: para que serve a arte e quais os cuidados da utilizao de uma obra de arte

    (cinematogrfica) para os fins que se quer vir-a-ser?

    Retomamos portanto a linha de pensamento de Espial (1976), de forma que somos

    levados a pensar que no cinema, (1) a realidade no igual imagem da tela; (2) a imagem

    da tela no igual imagem da percepo e; (3) a percepo no igual ao impacto sobre o

    espectador. Com isso entende-se que a linguagem utilizada pelo cinema no tem em si

    significao predeterminada, pois a significao depende essencialmente da relao que se

    estabelece com outros elementos, nesse caso, com os contedos subjetivos do espectador.

    A confuso sobre o cinema ser ou no a arte do real, ou que pelo menos ele imitaria

    mimeticamente esta realidade, consiste em crer que a imagem que percebemos na tela

    corresponde plenamente realidade. Edgar Morin (1962) nos explicita que o cinema realiza

    o trabalho de uma mquina de percepo auxiliar e entre a realidade e a imagem que

    percebemos existem diferenas ao passo que entre elas esto todos os truques e falsificaes

    do meio cinematogrfico, que vem nos dar somente uma amostra de determinada imagem da

    realidade12

    e portanto, um vis ideolgico.

    Assim, o cinema, por sua vez, se torna o objeto de captura do tempo transcorrido. A

    produo de uma imagem automaticamente ir produzir uma ligao ontolgica e impessoal

    com o objeto cinematogrfico, isso resultar na viso do cinema como representao total e

    completa da realidade, no sentido de que, para que a realidade cinematogrfica proposta pelo

    12 Para o cinema no existe tal ponto. A sua natureza ilusria uma natureza em segundo grau: resulta da montagem. Ou seja: no estdio cinematogrfico, o equipamento penetrou de tal forma na realidade que o seu

    aspecto puro, livre dos corpos estranhos do equipamento, o resultado de um procedimento particular,

    nomeadamente do registo de um aparelho fotogrfico ajustado expressamente e da sua montagem com outros

    registos do mesmo tipo. O aspecto da realidade isento de aparelhagem, adquiriu aqui o seu aspecto artificial, e a

    viso da realidade imediata tornou-se um miostis no mundo da tcnica (BENJAMIN, 1993).

  • 24

    realismo ocorra preciso que os acontecimentos representados sejam parcialmente

    verdadeiros (BAZIN, 1991, p.59). Dessa forma, a credibilidade da obra est intrinsecamente

    relacionada ao seu valor como registro documental para que se torne uma verdade na

    imaginao, a autenticidade depende de acreditarmos na representao exposta na tela.

    Para entendermos melhor este ponto, temos com Lacan que desenvolveu uma

    descrio muito importante de um aspecto da infncia o qual chamou de fase do espelho.

    Este o ponto em que a criana pela primeira vez reconhece a si mesma no espelho e percebe

    que tem uma identidade distinta da identidade da me. Ao reconhecer uma imagem de si

    mesma e ao criar uma fascinao por essa imagem, a criana comea a construir uma

    identidade. O que as crianas veem, a nica coisa que podem ver, porm, uma imagem de si

    mesmas - uma representao. Aqui comea o processo de equvoco e auto-iluso humana:

    nossa identificao egostica com a imagem de ns mesmos sempre de algum modo ilusria.

    Esta a consequncia de ver a tela como se fosse, em alguns aspectos, um espelho de ns

    mesmos e do nosso mundo.

    Como salientamos em nossa concluso, toda analogia necessita de limites e claro,

    pautando-nos na teoria da fase dos espelhos de Lacan tambm devemos reconhecer a

    experincia catrtica negativa em que no cinema o sujeito-espectador v tudo menos a si

    prprio e o mundo social ao qual pertence. Tal analogia nos serve no mnimo para realar a

    confuso entre percepo e realidade comum construo do eu enquanto individualidade

    pessoal de classe e compreenso do filme narrativo.

    Tal natureza ilusria do cinema uma natureza em segundo grau: resulta da

    montagem. Ou seja: no estdio cinematogrfico, o equipamento penetrou de tal forma na

    realidade que o seu aspecto puro, livre dos corpos estranhos do equipamento, o resultado de

    um procedimento particular, nomeadamente do registo de um aparelho fotogrfico ajustado

    expressamente e da sua montagem com outros registos do mesmo tipo. O aspecto da realidade

    isento de aparelhagem, adquiriu o seu aspecto artificial, e a viso da realidade imediata

    tornou-se um miostis no mundo da tcnica.

    Eisenstein (2002) constitui a montagem como objeto central da construo de um

    cinema revolucionrio, atravs da articulao da significao entre os planos, com o propsito

    de compreender e alavancar a funo social do filme atravs do seu potencial artstico. Com

    isso, propunha a substituio do cine-olho, contemplativo, esteticista e esttico, por um cine-

    punho no qual se constroem variantes rtmicas guiadas por uma orientao ideolgica. Eis o

    mtodo Tela Crtica.

  • 25

    Em resumo, podemos dizer que no cinema nos dada uma percepo j feita,

    dominada ideologicamente, e que distorce a imagem da tela como sendo a imagem da

    percepo. No entanto, a linguagem utilizada pelo cinema no tem em si significao

    predeterminada por mais que possua contedos ideolgicos. A significao depende

    essencialmente da relao que se estabelece com outros elementos, como os contedos

    subjetivos do espectador, o que possibilita outras formas de apreenso das imagens atravs da

    percepo do sujeito-habilitado-pblico-como-classe.

    toda obra de arte torna-se tambm, uma vez cristalizada, o ponto de partida de uma reflexo para quem sabe olhar (FRANCASTEL, 1967).

    Assim, ao vermos uma imagem cinematogrfica, no a recebemos como algo

    completamente neutro e indito. Esta nos sugere outras imagens anteriores, as quais esto

    carregadas de vivncia, o que pe por terra nossa outra questo primeva de que h um olhar

    neutro sobre a arte e a cincia. Tais imagens, prprias do espectador, que o cinema desvela

    por associao de imagens, traem suas emoes, suas vivncias e seu mistrio; criam um

    estado afetivo e este estado afetivo aflora e comove o espectador. Neste caso o espectador no

    saber o que que o comove. Porm, como observa Frederico (2000), o espectador pode

    tambm ter uma comoo negativa e uma vivncia limitada da catarse promovida pela obra

    flmica fazendo com que esse possa retornar ao cotidiano sem sofrer nenhuma mudana no

    seu comportamento ou em sua percepo que visem uma resposta radical aos carecimentos

    advindos do sociometabolismo do mundo burgus.

    1.1 O mtodo Tela Crtica: pressupostos tericos

    Os grandes filmes do cinema mundial comumente contribuem para a experincia da

    catarse, elemento imprescindvel do processo de formao dos sujeitos humano-genricos.

    Como observa Celso Frederico, a palavra catarse, usada originalmente na medicina, significa

    purgao. Aristteles estendeu para a esttica o termo da catarse para mostrar que a arte tem

    como funo a purificao: por meio da vivncia artstica, o homem experimenta uma

    pacificao, uma liberao das emoes. (FREDERICO, 2000).

    A experincia hermenutica de anlise crtica de filmes que expusemos nesse trabalho

    uma experincia catrtica, de forma que, como observava Lukcs (1968), na fruio da obra

    de arte, o espectador possa suspender sua vivncia cotidiana alienada e se reencontrar com o

    gnero humano, confrontando-se com os eternos problemas da espcie humana que o artista

  • 26

    conformou num contexto particular, rico e estreito. Porm, tal efeito emocional provido pela

    obra de arte cinematogrfica nos serve apenas como mdium do exerccio hermenutico

    crtico de forma que se torna imprescindvel ir alm da embriaguez momentnea da fruio

    esttica. Ou seja, ir alm da tela, apreendendo o filme no apenas como um texto, mas como

    um pr-texto.

    Como dissemos, o filme um mdium capaz de propiciar uma dinmica reflexiva

    sobre o mundo social para alm da tela do cinema. Por isso, a metodologia a qual nos

    apoiamos, baseada no Projeto Tela Crtica elaborada por Alves (2010c) no prope uma

    sociologia do cinema, mas sim, um enlace entre sociologia e cinema visando utilizar a obra

    flmica como meio esttico para propiciar uma reflexo crtica sobre o mundo burgus. A

    idia discutir a sociedade a partir do filme, mais do que discutir o filme a partir da

    sociologia.

    A metodologia do Projeto Tela Crtica nasce da idia do cinema como experincia

    crtica. Nela utilizamos o conceito de experincia crtica, tomado de Jean-Paul Sartre (1960);

    e utilizamos tambm elementos da hermenutica dialtica de Hans-George Gadamer (2002) e

    da teoria da recepo de Wolfgang Iser (1999) para sugerir uma proposta de interpretao

    crtica.

    Para resumirmos de forma vulgar e sinttica as teorias descritas acima que baseiam a

    metodologia apropriada, temos que: (1) o conceito de experincia crtica disposto por Sartre e

    adaptado ao nosso mtodo, trata o filme - o objeto artstico - como capaz de provocar reflexo

    (e no mero entretenimento) ao sujeito-pblico-como-classe, tornando-o no mero espectador,

    mas sim, produtor/organizador de cultura por meio da ressignificao do objeto artstico, ou

    seja, o coloca como elemento central capaz de promover discusso crtica (trabalho

    ideolgico) e produo categorial com vistas ao social13

    . A grande arte se origina da falta

    que h na interioridade do ser genrico do homem e a possibilidade de uma experincia crtica

    frente a ela, que s adquire um sentido histrico efetivo (positivo) na medida em que buscar o

    coletivo, isto , a autoconscincia crtica de si e do mundo conforme descrito por Lukcs

    (2009).

    (2) A tarefa da hermenutica dialtica, como observa Gadamer (2002), distinguir os

    preconceitos que cegam dos que esclarecem, ou seja, a tomada de conscincia com relao

    aos nossos preconceitos e crenas individuais, retirando-lhes o carter extremado e por vezes

    negativo, ressignificando-os e os tornando capaz de explicitar as legtimas ideias da

    13

    Eis o sentido da experincia crtica - o homem obrigado a ir alm da coisa que provoca. Assim, tela crtica significa ir alm da tela. (ALVES, 2010c, p. 25).

  • 27

    compreenso verdadeira da obra flmica, tendo em conscincia, o entendimento do conceito

    de distncia temporal que existe muitas vezes entre o filme e a perspectiva histrica de classe

    do sujeito-pblico-como-classe. No se despreza o valor desta distncia temporal no processo

    crtico-hermenutico, porm a perspectiva histrica de classe o que realmente produz a

    filtragem do que ou no autntico na obra de arte. Como dissemos, para Alves (2010c), Tela

    Crtica deve significar e possibilitar o ir alm da tela ou o filme como meio para uma

    autorreflexo crtica da modernidade do capital no sentido de superar o passado e os

    preconceitos adquiridos do mesmo tempo histrico, e formar sujeitos humanos que possam

    negar o mundo social do capital que se (im)pe com toda fora s individualidades pessoais

    de classe.

    (3) O cinema como arte total capaz de promover uma empatia sublime. Tal como

    Gadamer e sua hermenutica dialtica, Wolfgang Iser (1999) acredita no autoconhecimento

    enriquecido que nasce de um encontro com o no familiar. A partir de sua teoria da recepo,

    Iser (1999) nos diz que a obra de arte interroga e transforma as crenas implcitas com as

    quais abordamos, desconfirma nossos hbitos rotineiros de percepo e com isso nos fora

    a reconhec-los, pela primeira vez, como realmente so. Por isso que a anlise crtica do filme

    no mera aplicao de um contedo sociolgico prvio no mesmo, mas, em lugar de

    reforar as percepes cognitivas que temos, o filme realista transgride esses modos

    normativos de ver e com isso nos ensina novos cdigos de entendimento.

    Assim, toda experincia crtica pressupe sujeitos individuais capacitados com

    determinadas habilidades cognitivo-conceituais prvias necessrias para o desenvolvimento

    do processo de anlise crtica do filme conforme dissemos acima sobre a perspectiva de

    Espinal (1976). Porm, o processo de experincia crtica (Sartre) no se d pela mera

    aplicao destes contedos cognitivos prvios, sendo importante destacar que uma

    hermenutica dialtica (Gadamer) do filme exige do sujeito-pblico-como-classe, a recepo

    (Iser) do filme como espao de problematizao crtica do entendimento prvio de modo que

    a verdadeira compreenso crtica de si e do mundo nunca ir emergir espontaneamente, mas

    sim, por meio da experincia catrtica que o filme proporciona tal qual no caso da anlise

    psicanaltica em que o papel do analista decisivo enquanto mediao exterior, embora no

    interfira, de forma direta, na experincia crtica do analisando.

  • 28

    Figura 1 - O Trabalho do Cinema como Experincia Crtica

    (A)

    Apropriao I

    (exibio do filme)

    Trabalho de

    Re-significao

    Discusso crtica

    (trabalho ideolgico)

    Produo categorial

    (A)

    Apropriao II

    (ao social)

    Fonte: ALVES, 2010c.

    1.2 O mtodo Tela Crtica: pressupostos prticos

    A dinmica de anlise flmica implica etapas de pesquisa da forma do filme,

    autorreflexo pessoal, apreenso de cenas significativas, preparao terico-crtica e

    elaborao final de ensaio crtico. O esquema a seguir proposto por Alves (2010c) nos

    explicita melhor o passo-a-passo do mtodo Tela Crtica:

    Figura 2 - Etapa preparatria da Anlise Crtica do Filme

    Apresentao cinematogrfica do filme (a forma do filme)

    Diretor gnero flmico Roteiro Fotografia

    1 exibio em tela grande (tima qualidade de imagem e som)

    DVD Blu-Ray

    Exposio do filme como representao ideolgica

    (contexto histrico-poltico da produo do filme)

    Tratamento do filme como projeo/identificao subjetiva (enquete pessoal)

    Fonte: ALVES, 2010c.

    Figura 3 - Fase de Anlise Crtica do Filme

    2 Exibio do Filme em tela grande

    Questo Prvia para Consulta:

    Quais os eixos temticos de discusso sugeridos pelo filme?

    Quais as cenas-chaves de contedo crtico?

  • 29

    Escolha do eixo temtico essencial

    Apresentao terico-categorial da anlise crtica

    3 exibio em tela pequena

    Escolha de cenas/imagens significativas do filme

    Digresses crticas sobre personagens tpicos

    Fonte: ALVES, 2010c.

    A operao de questionamento de um filme importante porque a partir deste

    questionamento que iremos dar incio anlise crtica do filme. Aps assistirmos ao filme, em

    sua primeira exibio em tela grande, fazemos escolhas e construmos problemticas a partir

    destas escolhas. Mais importante do que responder, saber perguntar. Por isso, uma boa

    pergunta vale por mil respostas. Questionar elaborar perguntas e problemticas sobre o

    filme. Assim, o filme possui inmeras cenas que organizam a narrativa flmica. A questo

    escolher as cenas do filme mais representativas ou tpicas da problemtica vinculada ao

    eixo-chave previamente escolhido.

    Aps a escolha de cenas do filme e suas personagens, deve-se tomar nota das

    problemticas expostas em cada situao problemticas terico-categoriais, isto , o que

    aquele elemento est sugerindo para nossa reflexo crtica. Eis a pergunta crucial. Aps a

    organizao de um complexo de problemas, podemos a partir de ento, desenvolver a anlise

    crtica do filme articulando autores, teorias e conceitos/categoriais analticas visando manter o

    foco no eixo-temtico central em questo. Assim, os autores ajudam a constituir

    problemticas na anlise crtica do filme e o filme ajuda a desenvolver tais problemticas,

    envolvendo mais autores. Faz-se necessria, portanto a capacitao de sujeitos-receptores com

    a leitura de autores que tratem do eixo-temtico central proposto a fim de habilitar o olhar.

    Para Francastel (1967) a leitura de uma obra de arte requer tempo e esforo e que, em

    nenhum momento, uma obra de arte, seja qual for, est em conformidade com uma

    representao mental precisa que seria imagem no sentido psicolgico e no figurativo do

    termo. O artista/diretor teve por vezes no necessariamente num instante a viso de um

    fim a atingir; certamente ele jamais materializou instantaneamente essa intuio fundamental

  • 30

    que seria pobre se no se tornasse o centro de uma reflexo durvel e se no pudesse sugerir

    em seguida a outros no somente o instante fugidio da intuio, mas o processo de

    pensamento no fim do qual veio a criao.

    Portanto, possvel utilizar a obra de arte como objeto de reflexo sociolgica numa

    perspectiva dialtica. Desse modo, o cinema como experincia crtica habilita o sujeito-

    receptor a abrir uma nova ordem de totalizaes das experincias vividas e percebidas14

    .

    Contudo, o sujeito-espectador no apenas mero receptor, mas sim, produtor/organizador de

    cultura por meio da ressignificao do objeto artstico15. Assim, ao dialogar com a obra

    flmica, o sujeito-receptor dialoga, de certo modo, com sua tradio histrico-existencial. O

    filme apenas o elo mediador capaz de contribuir para a autoreflexidade crtica do sujeito-

    espectador. To logo descubra o eixo temtico essencial, o sujeito-receptor discerne os

    elementos compreensveis no filme e esboa um projeto de esmiuar os elementos

    significativos e eixos-temticos para todo o texto flmico.

    A arte , pois, atualmente, a expresso de grupos humanos distintos simultaneamente da sociedade global e das classes sociais, definidas por oposio de

    interesses. (...) Se o estudo do carter esttico das obras oferece, pois um terreno de

    estudo relativamente fcil e bem determinado, a investigao sobre os aspectos

    significativos e sociais da arte se apresenta como infinitamente mais delicada. Para

    ser exato, cada poca deve ser abordada com um mtodo diferente. certamente

    permitido, entretanto, propor algumas direes gerais e alguns objetos precisos

    pesquisa. (FRANCASTEL, 1993, p. 42).

    Desse modo, o mtodo dialtico Tela Crtica visa analisar o mundo social em sua

    etapa-histrica do capitalismo manipulatrio por meio de dinmicas de anlise crtica de

    filmes. Para isso utiliza-se do cinema como instrumento de reflexo crtico-sociolgica tendo

    como finalidade discorrer, atravs das obras flmicas, sobre a precarizao do mundo do

    trabalho e os modelos de gesto adotados no capitalismo global. Adotam-se procedimentos de

    anlise crtica que implicam numa longa imerso reflexiva do sujeito-receptor-analista na

    forma e no sentido do filme, desenvolvendo tambm um processo de aprendizagem crtica a

    14

    Estou seguro que as cincias histricas e filosficas muito tem a ganhar com uma considerao mais atenta dos fatos artsticos. Estou tambm seguro que a cincia da arte e a prpria arte tem muito a ganhar com uma

    apreciao melhor de seu papel psicolgico e tcnico na vida das sociedades. Apreciaremos melhor a arte do

    passado, - e a do presente - se lhe conhecermos melhor a significao humana. Longe de fanar pela reflexo,

    nossa sensibilidade esttica s pode se refinar pelo estudo. (FRANCASTEL, 1993, p. 48). 15

    O homem que trabalha como criador instigado a ir alm da criatura como prvia-ideao e teleologia de seu prprio criador. Nesse retorno do objeto/coisa que provoca sobre o sujeito, que Lukcs caracteriza como sendo

    um momento da alienao (no sentido positivo). Eis o sentido da experincia crtica o homem obrigado a ir alm da coisa que provoca. Assim, tela crtica significa ir alm da tela. Portanto, inverter aquele em-si do

    objeto artstico num para-si humano-genrico. (ALVES, 2010b, p. 25)

  • 31

    partir da discusso da narrativa flmica a partir da adoo do mtodo dialtico um rigoroso

    compromisso com a objetividade cientfica do conhecimento social.

    importante esclarecer que a anlise crtica de um filme no imparcial e, portanto

    no compartilha as iluses da neutralidade positivista como dissemos. Baseia-se em

    pressupostos irremediavelmente ideolgicos, o que no significa que seja arbitrria e imbuda

    de subjetivismos, mas sim, busca identificar e trazer luz os fatos que no conhecemos ou os

    aspectos imanentes obra cultural (como o filme realista) que possamos desconhecer (e

    estranhar) em virtude desta identidade da no-identidade entre sujeito e objeto (LUKCS,

    2009). Ou seja, enquanto o realismo como escola esttica alude imerso na realidade do

    filme atravs da transparncia e da unidade do que est sendo reproduzido, tomar a obra como

    arte realista prope a quebra da narrativa em virtude da reflexo sobre o que est sendo

    representado.

    Ora, se foi devidamente com o cinema que nos colocamos a seguinte pergunta: - para

    que serve a arte?, a resposta que, para ns, esta deve ser politizada, no sentido de que o

    cinema que a Stima Arte deve tornar-se experincia crtica. Por fim, utilizar o cinema

    como experincia crtica visa a formao de sujeitos humanizados capazes de resgatar o

    sentido da experincia humano-genrica desefetivada pela relao existente entre o homem e

    o mundo das coisas. De fato, sob o capitalismo manipulatrio, somente a arte realista ser

    capaz de nos redimir da crise de (de)formao do sujeito histrico de classe, instaurado pelo

    atual estado de barbrie social do capitalismo global.

  • 32

    CAPTULO 2

    Trabalho e Gesto

    A mundializao do capital, a acumulao flexvel e o neoliberalismo constituram nas

    ltimas dcadas de capitalismo global, um novo (e precrio) mundo do trabalho, complexo,

    fragmentado e heterogeneizado (ANTUNES, 2006; ALVES, 2000). Em presena de uma

    economia proveniente da mundializao do capital, em rpida mutao e orientada para a

    especificidade de cada cliente em particular, as organizaes toyotistas adquiriram uma maior

    flexibilidade e capacidade de inovao como condio sinequanon para se manterem

    competitivas. Isto levou os agentes econmicos a requerer uma maior flexibilizao na gesto

    do fator trabalho e dos seus custos, ocasionando fenmenos como o desemprego estrutural.

    Sob tal panorama da acumulao flexvel, temos hoje um momento deveras catico no

    chamado mundo do trabalho no capitalismo global: j no se encontram empregos para

    aqueles que dele necessitam para sobreviver e os que ainda esto empregados geralmente

    trabalham muito e no ficam um dia sequer sem pensar no risco do desemprego. Devido

    recente crise financeira mundial, este medo ocorre no s na base dos assalariados, pois essa

    tendncia cada vez mais avana na ponta da pirmide social, chegando at os gestores,

    promovendo o fnomeno do downsizing. medida que a populao aumenta, menor

    tambm a capacidade de incorporar os jovens no mercado de trabalho. Segundo a

    Organizao Internacional do Trabalho (OIT), em 2012 os desempregados no mundo so mais

    de 202 milhes e por conta da crise, o prognstico de que o ndice cresa 6,2% em 2013.

    At 2016, 210 milhes de pessoas ainda estaro procura de emprego, apesar de uma possvel

    retomada paulatina da economia capitalista. O mesmo relatrio da OIT (2012, p.17) ainda

    acrescenta que cerca de 1,5 bilho de trabalhadores sofrero forte eroso salarial. Ou seja,

    talvez, amanh, os ndices de desemprego possam at cair, em termos relativos, s que s

    custas da barbarizao da vida social16

    .

    O crescimento deste desemprego em massa e a ampliao de novas formas de

    precariedade salarial e da precarizao do trabalho que ocorrem hoje sob o capitalismo global

    tambm uma precarizao do homem que trabalha, no sentido de desefetivao do homem

    como ser genrico capaz de dar respostas s situaes-problemas oriundas de seu cotidiano.

    Esta nova configurao do trabalho nos demonstra novas dimenses das metamorfoses sociais

    do mundo do trabalho que expem toda a barbrie social contida neste processo que visa a

    16

    A barbrie nunca em potncia, ela inteiramente em ato, e seu ato apenas o gesto de impotncia de sujeitos empobrecidos perante um mundo que no criou (...) (MATTI, 2002).

  • 33

    mescla do tempo de vida com o tempo de trabalho, em virtude das excessivas jornadas de

    trabalho que reduz a vida pessoal a mero trabalho assalariado. Articula-se o que Alves

    (2011c) chamar de vida reduzida que trataremos adiante.

    No novo (e precrio) mundo do trabalho, estruturado pelo esprito toyotista que se

    implanta no apenas na indstria, mas principalmente no setor de servios, que devemos

    voltar a nossa ateno. Faria (2007, p. 66) nos diz que o toyotismo no pode ser considerado

    um modelo japons de gesto e de produo, mas um modelo capitalista contemporneo que,

    com o apoio de pesquisadores de outras nacionalidades, especialmente dos EUA, foi

    implementado e desenvolveu-se no Japo, pas que oferecia as condies propcias a que este

    processo ocorresse justamente em um momento de crise de acumulao do capital. Ou seja,

    sob o capitalismo global, a utilizao do toyotismo como modelo de referncia no interior do

    processo de reestruturao produtiva instalou-se em diversos pases industrializados no

    somente por ser uma resposta do capital crise de sobreacumulao ou enquanto um novo

    modo de produo, mas sim enquanto uma ideologia capitalista, um novo discurso para gerir

    e capturar a subjetividade dos trabalhadores.

    deste novo mundo de trabalho precrio que o sistema do capital tende a

    impulsionar sua expanso e instaurar uma nova barbrie social. Deste modo, a luta social deve

    ser conduzida contra a voracidade insacivel do capital que tenta transformar o tempo de vida

    em tempo de trabalho, algo que contribuiria to-somente para a degradao humana. o que

    vemos hoje na economia capitalista no mundo: vive-se para ser explorado pelo o capital.

    Na medida em se desenvolve o desemprego estrutural e o trabalho precrio, que

    parecem indicar a necrose social da lgica capitalista-mercantil, impulsiona-se, por outro

    lado, o mundo dos pequenos negcios, um imenso campo de reproduo ideolgica (e

    material) da produo de mercadorias. Como nos lembra Alves (1999), tal fato apontado,

    inclusive, pelos idelogos da burguesia, como sendo uma das sadas para o desemprego

    estrutural17

    . Ora, a ideologia da gesto toyotista ao disseminar o mito do

    autoempreendedorismo como o operador da autoativao no mercado de trabalho, expe que,

    17

    No meio do furaco da crise que agora atinge o corao do sistema capitalista, vemos a eroso do trabalho

    relativamente contratado e regulamentado, herdeiro da era taylorista e fordista, que foi dominante no sculo XX

    resultado de uma secular luta operria por direitos sociais e que est sendo substitudo pelas diversas formas de empreendedorismo, cooperativismo, trabalho voluntrio, trabalho atpico, formas que oscilam entre a superexplorao do trabalho e a prpria autoexplorao do trabalho, sempre caminhando em direo a uma

    precarizao estrutural da fora de trabalho em escala global (ANTUNES, 2009, p. 51).

  • 34

    por trs da farsa do Voc S/A18

    , subsiste na verdade um novo tipo de estranhamento

    capitalista, de subsuno real do trabalho ao capital, de condies salariais precrias e de

    precariedade do trabalho.

    Diante deste quadro, Antunes (2006) defende que o capitalismo sob a gide do

    esprito do toyotismo, no foi capaz de eliminar as mltiplas formas e manifestaes do

    estranhamento. Com isso o scio metabolismo da barbrie cria um novo patamar de

    estranhamento para milhes de desempregados e trabalhadores precrios, homens e mulheres

    desvinculados das promessas da modernidade, numa poca de psmodernidade.

    Segundo esta ideologia da gesto toyotista, a nova produo de mercadorias deve

    buscar dispor de trabalhadores flexveis para lidar com as mudanas no processo produtivo,

    enfrentar imprevistos (incidentes/eventos) e trabalhadores passveis de serem transferidos de

    uma funo a outra dentro da empresa, requerendo-se, para tanto, a polivalncia e a constante

    atualizao de suas competncias. Segundo os idelogos do toyotismo, flexibilidade e

    polivalncia o que lhes d a medida correta de sua "empregabilidade". No limite, o

    esprito do toyotismo nos conduz ideologia da gesto que prega a abolio do regime

    salarial, cujo sonho o mundo de prestadores de servios, indivduos empreendedores,

    funcionrios PJ, colaboradores.

    Todo esse aparato de exigncias organizacionais sustenta-se no envolvimento dos

    trabalhadores com novos procedimentos de produo da gesto toyotista. Constitui-se assim

    um novo nexo psicofsico capaz de moldar e direcionar ao e pensamento dos trabalhadores

    em conformidade com a racionalizao da produo. Desse modo, o eixo central de atuao

    da lgica do capital adequado s condies da reestruturao produtiva a gesto da

    captura da subjetividade.

    2.1 Gesto da captura da subjetividade sob o capitalismo global

    A organizao toyotista do trabalho tem uma densidade manipulatria de maior

    envergadura. Na nova produo do capital, o que se busca capturar no apenas o fazer e

    o saber dos trabalhadores, mas a sua disposio intelectual-afetiva, constituda para

    cooperar com a lgica da valorizao (ALVES, 2011). Dessa forma, o trabalhador

    encorajado a pensar pr-ativamente e a encontrar solues antes que os problemas

    18

    Sob o capitalismo manipulatrio, o foco privilegiado o EU das individualidades pessoais de classe. o que

    podemos denominar de capitalismo Voc S/A. Por isso, o apelo s ideologias do empreendedorismo e trabalho

    por conta prpria que abusam da noo de talentos humanos ou mesmo de capital humano (ALVES, 2010).

  • 35

    aconteam. Na empresa toyotizada cria-se um ambiente de desafio contnuo, em que o capital

    no dispensa como fez o fordismo, o esprito do trabalhador. O que significa que, se no

    fordismo o trabalhador na linha de montagem, executando tarefas montonas e repetitivas,

    pensava demais, ou tem muito mais possibilidade de pensar como ressaltou Gramsci (1984), o

    que poderia lev-los a um curso de pensamento pouco conformista, sob o esprito do

    toyotismo, o trabalhador pensa e obrigado a pensar muito mais. At sua exausto, diga-se de

    passagem, mas colocando a inteligncia humana a servio do capital.

    No caso do fordismo, o nexo psicofsico era constitudo, segundo Gramsci (2010),

    pela ideologia puritana e pela represso sexual. No caso do toyotismo, este nexo se constitui

    pela disseminao dos valores-fetiches, expectativas e utopias de mercado e pela liberao

    dos instintos, ao mesmo tempo em que se preserva a disciplina industrial.

    H na verdade no esprito do toyotismo uma captura da subjetividade dos

    trabalhadores, sendo o objetivo do capital uma integrao do trabalho aos interesses da

    empresa, como se ambos fossem portadores de interesses comuns. Neste sentido, a

    substituio do taylorismo-fordismo pelo toyotismo no pode ser concebida como um avano

    ou ruptura, pois, o que havia de essencial dentro da lgica capitalista permaneceu, que a

    busca de maior lucratividade e produtividade com custos reduzidos19

    .

    Alves (2000, p. 35) nos atenta que de certo modo, o toyotismo conseguiu superar -

    no sentido dialtico de superar conservando -, alguns aspectos predominantes da gesto da

    produo capitalista sob a grande indstria no sculo XX, inspirados no taylorismo e fordismo

    que instauraram a parcelizao e a repetitividade do trabalho. Porm, com a desespecializao

    e polivalncia operria, o que torna o toyotismo o modelo predominante sob o capitalismo

    global justamente resolver um dos problemas estruturais prprios de todos os tipos de gesto

    da produo de mercadorias capitalista: efetivar o consentimento operrio lgica de

    valorizao do capital no plano da produo e reproduo social.

    Desse modo, esse novo cenrio da gesto da fora de trabalho no sculo XXI instaura

    um novo nexo em que o trabalhador convencido massivamente de que o papel ontolgico

    19

    A literatura de gesto empresarial dos anos 90 contm ideais, propostas de organizao humana, modos de ordenamento dos objetos e formas de garantia que so de natureza to diferente daquilo que se encontra na

    literatura de gesto empresarial dos anos 60 que difcil no reconhecer que o capitalismo mudou muito de

    esprito ao longo dos ltimos trinta anos, ainda que a nova configurao no possua fora mobilizadora qual a

    figura anterior conseguira chegar, pelo fato de estar incompleta no plano da justia e das garantias. Em todo o

    caso, para o novo esprito conseguir implantar-se [...] ele precisa estar em condies de responder a alguma

    exigncia no atendida no perodo anterior. [...] Parece-nos assim, bem evidente que a nova gesto empresarial

    pretende responder s demandas de autenticidade e liberdade, feitas historicamente em conjunto com aquilo que

    denominamos crtica esttica, deixando de lado as questes de egosmo e das desigualdades tradicionalmente associadas na crtica social. (BOLTANSKI, 2009).

  • 36

    dos homens no mundo, e, portanto, seu papel, se efetiva apenas pela realizao de si por meio

    de luta de posies e espaos em uma corrida incessante por produtividade. Marinho (2008)

    aponta para a implicao dessa proliferao da nova gesto do trabalho no capitalismo global,

    que se faz eficaz, pertinente, criativa e que controla e manipula todo um tecido social,

    administrando um mundo doente socialmente, que impe ao trabalhador uma presso

    contnua que o leva a inmeras formas de adoecimento e sofrimento no trabalho20

    .

    Braverman (1974) inclusive nos coloca que tal controle de fato, o conceito

    fundamental de todos os sistemas gerenciais capitalistas, como foi reconhecido implcita ou

    explicitamente por todos os tericos da gerncia. Como o capitalismo cria uma sociedade na

    qual ningum por hiptese consulta qualquer coisa seno o interesse prprio, e como

    prevalece o contrato de trabalho entre as partes nada mais prevendo seno evitar que

    prevaleam sobre os de outros, a gerncia torna-se um instrumento perfeito e sutil para a

    manipulao psicolgica do trabalho21

    .

    Boltanski e Chiapello (2009) ressaltam que o capitalismo global sob o esprito do

    toyotismo apresenta duas faces: uma voltada para a acumulao do capital, e a outra para

    princpios de legitimao. Nesse caso ltimo, a literatura porque no dizer tambm dos

    filmes - de gesto empresarial utilizada pelas organizaes toyotistas pode ser entendida como

    o receptculo dos novos mtodos de obter lucro, das novas recomendaes feitas aos gerentes,

    para a criao de empresas mais eficazes e cada vez mais competitivas. Porm, tal literatura

    de gesto empresarial no se utiliza apenas de linguagem meramente tcnica, onde podemos

    encontrar receitas prticas que visem a melhorar o rendimento das organizaes tal como se

    aumenta o desempenho de uma mquina. Ela comporta ao mesmo tempo todo um vocabulrio

    ideolgico, no mnimo por se tratar de uma literatura normativa que diz aquilo que deve ser, e

    no o que , a tal ponto que se indaga sobre o crdito que pode ser dado essa literatura no

    sentido de se ter conhecimento sobre o que de fato ocorre no interior das empresas

    capitalistas.

    Assim, a nova forma de gesto da captura da subjetividade da fora de trabalho

    instaurada pelo modelo predominante toyotista ergue-se como um constructo terico que

    evidencia sua legitimao, e como prtica sistemtica-manipulatria. Na qual, as

    20

    Talvez o estressamento da corporalidade viva seja estratgia defensiva das individualidades pessoais de classe

    cindidas exausto pelos novos processos de subjetivao do capital (ALVES, 2011c, p. 45). 21

    No er