Upload
lunate-etanul
View
51
Download
5
Embed Size (px)
Citation preview
UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA
JLIO DE MESQUITA FILHO FACULDADE DE FILOSOFIA E CINCIAS DE MARLIA
BRUNO CHAPADEIRO RIBEIRO
TRABALHO E GESTO ATRAVS DO CINEMA
MARLIA
2013
BRUNO CHAPADEIRO RIBEIRO
TRABALHO E GESTO ATRAVS DO CINEMA
Dissertao apresentada Faculdade de Filosofia
e Cincias da Universidade Estadual Paulista
Jlio de Mesquita Filho, Faculdade de Filosofia e Cincias de Marlia, para obteno de
ttulo de Mestre em Cincias Sociais.
Linha de Pesquisa: Determinaes do Mundo
do Trabalho: Sociabilidade, Poltica e Cultura.
Orientador: Prof. Dr. Giovanni Alves
Financiamento: CAPES
Marlia
2013
Chapadeiro, Bruno.
C462t Trabalho e gesto atravs do cinema / Bruno Chapadeiro
Ribeiro. Marlia, 2013. 132 f. ; 30 cm.
Dissertao (Mestrado em Cincias Sociais) Universidade Estadual Paulista, Faculdade de Filosofia e
Cincias , 2013.
Bibliografia: f. 123-132.
Orientador: Giovanni Alves.
1. Trabalho. 2. Administrao de empresas. 3. Cinema. 4.
Trabalho na arte. 5. Ideologia. 6. Subjetividade. I. Ribeiro,
Bruno Chapadeiro. II. Chapadeiro, Bruno Ribeiro. III. Ttulo.
CDD 331.1
BRUNO CHAPADEIRO RIBEIRO
TRABALHO E GESTO ATRAVS DO CINEMA
Dissertao apresentada Faculdade de Filosofia
e Cincias da Universidade Estadual Paulista
Jlio de Mesquita Filho, Faculdade de Filosofia e Cincias de Marlia, para obteno de
ttulo de Mestre em Cincias Sociais.
BANCA EXAMINADORA
________________________________________________
Orientador: Prof. Dr. Giovanni Antnio Pinto Alves
UNESP-Marlia
_______________________________________________
Prof. Dr. Jos Roberto Montes Heloani
UNICAMP
_______________________________________________
Prof. Dr. Vera Lcia Navarro
USP Ribeiro Preto
Marlia-SP
05 de Fevereiro de 2013
Natlia, por seu amor e companheirismo.
Paulo, Eliana, Lucas e Daniela por todo o suporte e incentivo.
Lucy e Edmundo Chapadeiro, pela arte e a cincia.
Maria e Alar Ribeiro, pela enorme falta que fazem.
Aos trabalhadores, por sua resistncia cotidiana.
A desvalorizao do mundo humano aumenta em proporo direta
com a valorizao do mundo das coisas.
KARL MARX
Ainda se d grande importncia variedade de tcnicas possveis
do cinema e no se destacam as questes de contedo; no
devemos esquecer que em cada arte, o significado direto das coisas
est na vida cotidiana.
GYRGY LUKCS
Acho que uma funo digna do cinema mostrar o homem ao
homem.
GLAUBER ROCHA
No ligo de me casar com minha carreira. No espero que ela me
abrace noite.
NATALIE KEENER
(de Amor sem Escalas)
AGRADECIMENTOS
Agradeo primeiramente a Deus pelo dom da vida e da busca pela cincia que me deu.
A CAPES por permitir o desenvolvimento de grande parte deste trabalho e
Universidade Estadual Paulista Jlio de Mesquita Filho pelos oito anos que passei em suas dependncias e que me proporcionaram esclarecimento crtico, conscincia social de classe e
a certeza de que uma universidade pblica de qualidade, laica, e acessvel a todos ainda um
dos mais importantes baluartes desse pas.
Aos meus pais, Paulo e Eliana, que com muito esforo estiveram sempre moral e
fisicamente comigo em todos os passos que trilhei na vida. Fosse no ambiente acadmico ou
fora dele. E que me ensinaram todos os valores de honestidade e justia social. Valores estes
os quais carrego em mim e que espero multiplica-los to sabiamente quanto me foram
transmitidos. Ao meu irmo Lucas, que sempre fora um norte em minha vida. Exemplo de
garra e de se batalhar muito por tudo o que se almeja, mesmo que haja pedras no caminho.
Natlia, por traduzir em convivncia e persistncia, o verdadeiro significado de
companheirismo, lealdade e amor ao se fazer corpo disposto, porto seguro de minhas
angstias e aflies em momentos de desertos, energia cintica quando me encontrava esttico
e eco reverberante de qual fosse a frequncia transmitida por minhas vitrias e conquistas.
Aos meus avs paternos Maria e Alar Ribeiro pela imensa falta que fazem em minha
vida, porm que sou capaz de sentir em minha alma o orgulho que devem estar sentindo do
neto nesse momento. Onde quer que estejam.
Aos meus avs maternos Lucy e Edmundo Chapadeiro, onde, de uma herdei o amor
pela arte e do outro o gosto pela cincia. Esferas to distintas e ao mesmo tempo to prximas
que visei um perfeito casamento entre ambas. Tal como a unio dos dois.
Paulo, Cristina e Letcia pelo apoio, suporte e respaldo dado em toda essa jornada.
Aos meus amigos(as)-irmos(s) Ricardo, Denis, Edgard, Priscila, Bruna e Daniela,
por sua amizade duradoura, infinita e alm. Cada um me fez um pouco do que hoje sou.
Agradeo especialmente ao meu orientador, o professor Giovanni Alves por acreditar
e abraar meu objetivo de pesquisa, conferindo-me total confiana e liberdade na conduo e
execuo da mesma, sendo sempre um farol-guia pronto a me iluminar intelectualmente
quando no enxergava horizontes.
Aos docentes da UNESP-FFC-Marlia, Fbio Ocada e Paulo Teixeira, por comporem
minha banca de qualificao deste trabalho, e tambm aos professores Roberto Heloani
(Unicamp) e Vera Navarro (USP) por se disporem a sair de seus lares e tomar a estrada para
estarem comigo em minha banca de defesa do mestrado.
Ao falecido mestre, professor Jos Luiz Guimares, quem primeiro se fez presente e
limpou o caminho das pedras para que meu projeto de extenso, Cine CAPSIA, hoje
institucional, pudesse escrever sua histria na biografia da UNESP-FCL-Assis.
Aos irmos Lumire por seu invento, o cinematgrafo, que transformaria no s a
histria do mundo, mas tambm a minha. Ao camarada Felipe Macedo, figura na qual
agradeo aos demais cineclubistas espalhados por esse nosso pas que lutam para que estas
instituies sejam sempre uma organizao do pblico para o pblico.
Aos colegas de RET, GEPEG e Tela Crtica/CineTrabalho aqui representados nas
figuras dos camaradas Andr Luiz Vizzaccaro Amaral, Esdras Selegrin e Bruno Lacerra pelas
infrequentes, porm proveitosas, discusses a cerca do mundo do trabalho e seus rumos.
Aos demais pesquisadores da rea do trabalho que se fizeram presentes em minha
caminhada, bem como a todos os trabalhadores que pude acompanhar de perto suas vivncias
de prazer/sofrimento, reconhecimento/estranhamento de vossas lutas e labutas cotidianas.
RESUMO
Assistimos na primeira dcada do sculo XXI verdadeira crise do nosso tempo histrico.
No a crise das economias capitalistas, mas sim a crise do homem como sujeito histrico de
classe, isto , ser humano-genrico capaz de dar respostas radicais crise estrutural do
sociometabolismo do capital em suas mltiplas dimenses. importante salientar que crise
no significa morte do sujeito histrico de classe, muito menos sua supresso irremedivel,
mas to somente a explicitao plena da ameaa insuportvel perspectiva de futuro, risco de
desefetivao plena do ser genrico do homem e, ao mesmo tempo, oportunidade histrica
para a formao da conscincia de classe e, portanto, para a emergncia da classe social de
homens e mulheres que vivem da venda de sua fora de trabalho e esto imersos na condio
de proletariedade. Voltando nossos olhares para este novo (e precrio) mundo do trabalho
agravado pelo capitalismo global, o presente trabalho buscou analisar, por meio de dinmicas
de anlise crtica de filmes, esta nova era de barbrie social que se caracteriza pela
reestruturao produtiva do capital sob o esprito da gesto toyotista. Nos utilizamos da obra de arte como objeto de reflexo sociolgica numa perspectiva dialtica, podendo ela
contribuir para a apreenso de um conhecimento verdadeiro do ser social e do complexo scio
reprodutivo do capital. Durante a pesquisa, desenvolveu-se um processo de aprendizagem
crtica a partir da discusso da narrativa flmica procurando apreender o filme no apenas
como um texto, mas como um pr-texto capaz de nos conduzir autoconscincia reflexiva do
nosso tempo e enquanto meio esttico que propicia a reflexo crtica sobre o mundo burgus.
Levando em considerao a capacidade reflexiva e deliberativa dos homens, que no podem
trabalhar e viver sem dar sentido s suas aes e em si mesmo, afinal a dimenso simblica
a base a partir da qual as relaes sociais se constroem, buscou-se adotar procedimentos de
anlise crtica que implicaram numa longa imerso reflexiva do sujeito-pblico-como-classe
na forma e no sentido do filme. O produto material foi mais resultado prtico de uma
dinmica de anlise crtica do filme do que ponto de partida absoluto. A leitura de qualquer
obra de arte requer tempo e esforo e que, em nenhum momento, uma obra de arte, seja qual
for, est em conformidade com uma representao mental precisa que seria imagem no sentido psicolgico e no figurativo do termo. Toda obra de arte torna-se tambm, uma vez
cristalizada, o ponto de partida de uma reflexo para quem sabe olhar, o que vai de acordo
com a proposta de hermenutica crtica proposta no texto de que a apropriao crtica (e
compreensiva) do cinema permite por um lado, a apreenso da forma e do sentido das obras
flmicas em questo e por outro, contribui para o desenvolvimento do complexo terico-
categorial utilizado por este sujeito-pblico-como-classe habilitado. O mtodo de investigao
flmica consistiu, simplificadamente, em buscar os elementos da realidade atravs da fico, e
desta forma pensar e entender a sociedade que o produziu. A arte nada mais que uma
atividade que parte da vida cotidiana para, em seguida, a ela retornar, o que produz, nesse
movimento dialtico, uma elevao na conscincia sensvel dos homens. O que significa que
a anlise crtica de filmes que tratem da temtica trabalho e gesto pode contribuir com o desenvolvimento das cincias sociais.
Palavras-chave: trabalho; gesto; cinema; ideologia; subjetividade.
ABSTRACT
We saw in the first decade of this century the real crisis of our history time. Not a crisis of
capitalist economies, but the crisis of man as a historical class, the generic-human being able
to give replies to the structural crisis of the social metabolism of the capital in its multiple
dimensions. Importantly, crisis does not mean death of the historical class subject, much less
his hopeless suppression, but only a full explanation of the unbearable threat to the prospect
of future, risk of full desefection of the generic being of man and, at the same time, historic
opportunity to the formation of class consciousness and thus to the emergence of the social
class of men and women who live by selling their work force and are immersed in a
proletarian condition. Turning our eyes to this new (and precarious) world of work aggravated
by the global capitalism, this study sought to examine, through dynamics of critical analysis
of films, this new era of social barbarism that is characterized by productive restructuring of
capital under the spirit of toyotist management. We use the artwork as an object of sociological reflection in a dialectical perspective that may contribute to the seizure of a true
knowledge of self and the social reproductive complex of the capital. A critical learning
process was developed from the discussion of film narrative seeking to seize the film not only
as a text, but as a pre-text that can lead us to self-reflection of our time and as esthetic
medium that provides critical reflection about the bourgeois world. Taking into account the
reflective and deliberative ability of men, who cannot live and work without giving meaning
to their actions and in themselves, for the symbolic dimension is the base from which the
social relations are constructed, we sought to adopt procedures of critical analysis that
resulted in a long reflective soak of the public-individual-as-class in the shape and meaning of
the film. The material product was more a practical result of a dynamics of critical analysis of
the film than an absolute starting point. The reading of any work of art requires time and
effort and, not at any time, a work of art, whatever, is in accordance with an accurate mental
representation that would be image in the psychological sense and not in the figurative one of the term. Every work of art also becomes, once crystallized, the starting point of a
reflection for the one who knows how to view according to what is proposed by critical
hermeneutics proposed in the text in which the critical appropriation (and understanding) of
cinema allows to grasp the shape and meaning of the film works in question and on the other
hand, contributes to the development of the theoretical and categorical complex used by this
enabled public-individual-as-class. The film research method consisted, simply, in pursuing
the elements of reality through fiction, and thus thinking and understanding the society that
produced it. The art is nothing more than an activity that comes from everyday life, and then
returns to it, which produces, in this dialectical movement, an increase in sensible awareness
of men. This means that the critical analysis of films that deal with the theme work and management can contribute to the development of the social sciences.
Keywords: work; management; cinema; ideology; subjectivity.
SUMRIO
INTRODUO..........................................................................................
CAPTULO 1
O mtodo Tela Crtica: embasamentos terico-prtico analticos.......... 1.1 O mtodo Tela Crtica: pressupostos tericos............................................................
1.2 O mtodo Tela Crtica: pressupostos prticos............................................................
CAPTULO 2
Trabalho e Gesto........................................................................................ 2.1 Gesto da captura da subjetividade sob o capitalismo global................................. 2.2 Trabalho ideolgico e manipulao reflexiva: captura como escolha moral...... 2.3 Trabalho flexvel, vida reduzida e precarizao do homem que trabalha..................
11
19
25
28
32
34
40
43
CAPTULO 3
O insustentvel peso do trabalho, de Mike Judge........................................
49
CAPTULO 4
O que voc faria?, de Marcelo Pieyro........................................................
70
CAPTULO 5
Amor Sem Escalas, de Jason Reitman..........................................................
91
CONSIDERAES FINAIS.....................................................................
117
REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS.....................................................
123
11
INTRODUO
Sabe-se que um dos primeiros registros do cinema intitulou-se La Sortie de l'usine
Lumire Lyon (A Sada da Fbrica Lumire em Lyon). Produzido em 1895 por Auguste e
Louis Lumire, A Sada da Fbrica Lumire e outros nove pequenos filmes foram exibidos
para divulgar em Paris, o cinematgrafo, invento dos Irmos Lumire.
O primeiro filme exibido pelo cinematgrafo expe uma pequena multido de
operrias saindo da Fbrica Lumire aps cumprir a jornada de trabalho. Neste primeiro
registro documental do cinema, o mundo do trabalho exposto num momento curioso de sua
histria: a pequena multido de mulheres operrias saem da Fbrica, apressadas e felizes, com
seus vestidos longos e chapus da belle poque, indiferentes cmera do patro que registrava
a sada da Fbrica. Trata-se de um registro documental singelo, mas significativo no plano
simblico. O cinema nasce expondo imagens do cotidiano da proletariedade do mundo do
capital cujas contradies sociais imprimem a sua marca na imagem em movimento. Por isso,
as narrativas flmicas da proletariedade (documentais ou ficcionais) contm, muitas vezes nos
detalhes, em si e para si, a verdade da razo histrica do mundo do capital.
A reproduo cada vez mais realista do mundo oferecida pelo cinematgrafo
encaixava-se nos sistemas ideolgicos e estticos do sculo XIX. Desse modo, a cmera
(cinematgrafo) em si ainda hoje um aparato que encarna uma teoria da realidade, uma
ideologia, pois v o mundo como objeto do ponto de vista de um nico indivduo, que se faz
individualidade pessoal de classe.
Na primeira exibio do cinematgrafo, Georges Mlis esteve presente e interessou-
se logo pela explorao do aparelho. Enquanto os Irmos Lumire inauguram o
cinematgrafo, produzindo registros documentais do cotidiano da vida burguesa, Georges
Mlis percebeu o valor do cinema como meio de produo de imagens de espetculo. Deste
modo, com Mlis temos os rudimentos do cinema como indstria cultural da sociedade do
espetculo eis a marca indelvel da nova linguagem humana que nascia com o
cinematgrafo e que seria desenvolvida exausto no sculo XX, de forma que podemos
considerar Mlis como o pai dos efeitos especiais. Do cinematografo dos Irmos Lumire
aos recursos tecnolgicos que produzem vdeos no sculo XXI (filmadoras portteis ou em
IMAX), temos pouco mais de 100 anos.
A linguagem audiovisual que nasce com o cinematgrafo, tornou-se hoje meio
indispensvel no processo de subjetivao humana numa sociedade em que os meios de
12
representao simblica se tornaram centrais na reproduo do modo de vida e das relaes
sociais. O proletariado imerso hoje no bojo do capitalismo manipulatrio sob o esprito do
toyotismo1 no se define por no possuir os meios de produo, mas tambm especificamente
por no possuir os meios de produo simblica; no apenas por ter somente sua fora de
trabalho para pr venda no mercado, mas igualmente por negociar sua subjetividade.
Com o advento do cinema, se faz necessrio tambm o surgimento do pblico de
cinema. Este se constituiu atravs de um processo contraditrio de luta pela hegemonia no
controle dos meios de produo e circulao da reproduo simblica da realidade, atravs
das imagens em movimento. No toa, o cinema incorporou, neutralizou e domesticou aos
poucos as massas e suas vanguardas, estabelecendo e consolidando um modelo padro que
colocaria o pblico (inicialmente formado pelas classes trabalhadoras) na posio
espectatorial-receptiva, submisso a uma linguagem ideologicamente alinhada, linear e
mistificante (MACEDO, 2010, p. 39). Em seu Histria e Conscincia de Classe, Lukcs j
fizera a crtica dos homens contemplativos, indivduos criados pela sociedade da indstria
cultural e do entretenimento, homens e mulheres (de)formados em sua subjetividade para
contemplarem meramente o mundo espetacular das mercadorias (ALVES, 2010).
A classe dominante sempre teve bem claros seus interesses. Ao se apropriar desse
processo de formao e informao do cinema, de modo a criar as empresas da indstria
cultural, que fizeram do sculo XX, - o sculo do cinema -, tambm o sculo de
imbecilizao planetria. Interessada na manuteno de uma ordem burguesa, promoveu a
desefetivao de sujeitos humanos incapazes de uma interveno prtico-sensvel radical2.
Assim sendo, se hoje cada vez mais o audiovisual perpassa nossos modos de
sociabilidade, constituindo espaos mediticos (essencialmente audiovisualizados), o projeto
poltico e social contemporneo de trabalhos como o que se apresenta nas prximas pginas,
que utilizam o cinema como experincia crtica, devem ocupar uma posio central na
organizao e formao do pblico. Entende-se pblico de acordo com Macedo (2010,
p.47) que o define como a maioria absoluta da populao que hoje categoria central no
processo social, para reproduo ou para a transformao das relaes. Ou seja, pblico-
1 Em Max Weber, o esprito do capitalismo remete ao conjunto dos motivos ticos que inspiram a burguesia
em suas aes favorveis acumulao do capital. Chamamos de esprito do toyotismo a ideologia que justifica o engajamento no capitalismo global que pe em prtica novas tecnologias produtivas que visam
mudanas nos dispositivos de acumulao do capital atravs do desarmamento temporrio da crtica e da
captura da subjetividade do homem que trabalha. 2 O estabelecimento de um cinema-instituio, do cinema clssico-hollywoodiano, uma trajetria de
represso, controle e convencimento das massas, que se estende at o final dos anos 1920. O pblico
verdadeiramente popular do primeiro cinema sempre se expressou ruidosamente, e mesmo organizadamente, quanto a seus interesses e gostos. (MACEDO, 2010, p. 39).
13
como-classe3, no se definindo apenas por seu perfil estritamente econmico, por sua renda,
mas pelo lugar que ocupam na reproduo das relaes de produo.
O que nos importa essencialmente na relao entre o pblico (classe social) e o cinema
(audiovisual), so as condies de apropriao crtica, e no o mero acesso aos filmes
(condio necessria, mas insuficiente) que, por si, corresponde apenas necessidade de
criao de plateias ou em mercados cada vez mais imersos na fetichizao do audiovisual
como mercadoria. A questo da apropriao de contedos e sentidos, com vias ao
desenvolvimento da sua capacidade de expresso, a tarefa mais essencial que se coloca hoje
para o pblico sob as condies do capitalismo manipulatrio.
Para tal, compreende-se que uma obra cinematogrfica suscetvel a abordagens
muito diversas, uma vez que no existe uma nica teoria sobre cinema, mas ao contrrio,
existem vrias teorias que correspondem a abordagens possveis de um filme. A apropriao
crtica da forma e do sentido do filme com a promoo de dinmicas reflexivas e o debate
como instrumento convivial de compreenso e formao, atravs do compartilhamento das
experincias do pblico como classe, no visam a alfabetizao de um olhar que se deve ter
com a obra flmica.
O proletariado moderno j nasceu na frente de um televisor e se socializa
principalmente atravs das mdias audiovisuais, portanto, criar espaos onde se proponha
anlises crticas do mundo do trabalho sob a tica de uma obra cinematogrfica, propicia um
reencontro com os verdadeiros interesses e identidades de classe do homem que trabalha. O
que tornaria a pretenso de ensino de como ver ou entender um filme, uma realidade
autoritria e no emancipatria como de nosso desejo.
A educao, entendida como processo de construo de uma conscincia social capaz
de construir uma alternativa histrica transformadora, constitui a prtica e a base eficiente
para a apropriao e emprego das potencialidades de expresso e comunicao audiovisual
num sentido criativo. No como o instrumento de dominao, alienao e homogeneizao
que tem sido o papel do cinema desde sua institucionalizao comercial. Portanto, coloca-se
cada vez mais, nas condies da sociedade do espetculo e nos marcos do capitalismo
manipulatrio, a necessidade radical do cinema como experincia critica.
Assim, o intuito maior atribudo a esta pesquisa analisar o mundo do trabalho e as
formas de ser das ideologias da gesto no capitalismo global por meio de dinmicas de anlise
crtica de filmes. Para isso nos utilizamos do cinema como instrumento de reflexo crtico-
3 Utilizaremos ao logo do texto a expresso pblico-como-classe para conotar participao, de forma que
espectador tem justamente um vis passivo, no interativo.
14
sociolgica tendo como finalidade discorrer, atravs dos filmes, sobre a precarizao do
mundo do trabalho e os modelos de gesto adotados no capitalismo global sob o esprito do
toyotismo que, semelhante ao cinema (e por vezes com semelhantes artifcios), possui
mecanismos de captura da subjetividade do homem que trabalha.
Para tal, adotamos procedimentos de anlise crtica que implicaram numa longa
imerso reflexiva do pesquisador social na forma e no sentido do filme. Isto permitiu ao
mesmo um processo de aprendizagem crtica a partir da discusso da narrativa flmica
procurando apreende-la no como um fim, mas como um meio, uma ferramenta, que nos
conduz autoconscincia reflexiva do nosso tempo e enquanto um meio esttico que propicia
a reflexo crtica sobre o mundo burgus.
Com isso, quando tomamos a obra flmica como objeto de estudo para a compreenso,
aqui no caso, das formas de ser das ideologias da gesto toyotista com seus mecanismos de
captura da subjetividade da fora de trabalho no capitalismo global, nos deparamos frente
impossibilidade de uma anlise total e perfeitamente acabada. Esta somente alcanada por
meio de hipteses que se ancoram a um referencial terico pr-determinado. Em nosso caso, o
mtodo dialtico.
Desse modo, o que mais nos interessa no presente estudo a funo exercida pela arte
cinematogrfica na vida cotidiana dos homens e por isso que tratamos as anlises das obras
flmicas analisadas no no campo da representao, ou do imagtico com fim em si mesmo,
mas sim como produto do real (pois da transformao do real que tratamos), o que
potencializa o enriquecimento de nossa prpria experincia crtica.
Estamos ento de acordo com Frederico (2000) quando este nos diz que a prpria vida
cotidiana deve ser o ponto de partida e o ponto de chegada a qual a arte deve se apropriar:
da vida comum do homem que provm a necessidade do mesmo objetivar-se, ir alm de seus
limites habituais; e para a vida cotidiana que retornam os produtos de suas objetivaes.
Com isso, a vida social dos homens permanentemente enriquecida com as aquisies
advindas das conquistas da arte.
Todavia, a idia de que o cinema registre ou reproduza imagens do mundo real sempre
fora constantemente questionada no meio acadmico. O que se prope com este trabalho
caminha na direo contrria, de forma que o cinema, como meio de comunicao que pode
transformar o real, tem sua prpria linguagem e seu prprio modo de fazer sentido. Eisenstein
(2002) mesmo afirmava que o cinema como ferramenta de educao sovitica era suficiente,
pois seu didatismo trazia benefcios polticos, de forma que se torna irnico que o uso mais
15
comum da stima-arte no capitalismo global seja enquanto publicidade4 ou mero
entretenimento como dissemos.
desse modo, que buscamos compreender o cinema como a mais completa arte do
sculo XX, capaz de ser a sntese total das mais diversas manifestaes estticas do homem.
O cinema como arte total consegue apresentar a verdade dos conceitos e categorias das
cincias sociais atravs de situaes humanas tpicas elaboradas por meio de uma srie de
tcnicas de reproduo aprimoradas a partir de outras intervenes estticas (ALVES, 2010b).
Diferentemente da informao que s tem seu valor no momento em que nova e que
vive em um vo momento precisando entregar-se inteiramente a ele e sem perda de tempo de
se explicar nele, como salienta Benjamin (1993), muito diferente a forma e o sentido da
narrativa cinematogrfica que conserva suas foras e no se entrega a tempo algum, de forma
que ainda depois de muito tempo capaz de se desenvolver e de se manter atual5.
Assim, um filme capaz de ser realista e de se fazer a-histrico por incorporar em sua
forma e contedo estticos, uma dimenso capaz de expressar por meio de representaes
mistificadas o mundo dos homens. Na verdade, no a obra de arte que mistificada, mas
sim, o mundo que ela representa. Por isso, a perspectiva da esttica lukacsiana a qual
adotamos, de que a arte um reflexo antropomorfizado do mundo scio histrico.
De forma sinttica pode-se dizer que as dinmicas de anlises crticas utilizadas nesse
trabalho que visaram a desmistificao desse reflexo antropomorfizada do mundo scio
histrico contido nas obras flmicas implicaram em (...) etapas de pesquisa da forma do
filme, autorreflexo pessoal, apreenso de cenas significativas, preparao terico-crtica e
elaborao final de ensaio crtico. (ALVES, 2010c, p.65). Nos anexos deste trabalho
descrevemos com maior cautela e preciso os embasamentos tericos, bem como a
metodologia de atuao do Tela Crtica.
4 O cinema de entretenimento oferece a possibilidade de ver eventos e compreend-los de uma posio de
afastamento e domnio. O filme oferecido ao espectador, mas o espectador no tem nada a oferecer ao filme,
salvo o desejo de v-lo e ouvi-lo. Da ser uma posio de poder aquela desfrutada pelo espectador, especialmente
poder para entender eventos em vez de muda-los. Esta uma posio de domnio que se pode transformar aos
poucos em fascinao, em desejo fetichista de eliminar a prpria distncia e separao que tornam possvel o
processo de ver (TURNER, 1997, p. 113). 5 Cada manh recebemos notcias de todo o mundo. E, no entanto, somos pobres em histrias surpreendentes. A
razo que os fatos j nos chegam acompanhados de explicaes. Em outras palavras: quase nada do que
acontece est a servio da narrativa, e quase tudo est a servio da informao. Metade da arte narrativa est em
evitar explicaes. O extraordinrio e miraculoso so narrados com a maior exatido, mas o contexto psicolgico
da ao no imposto ao leitor. Ele livre para interpretar a histria como quiser, e com isso o episdio narrado
atinge uma amplitude que no existe na informao. (BENJAMIN, 1993, p. 203)
16
Assim, a arte aliada razo dialtica de fato o nico modo capaz de nos fazer
compreender o trabalho como esforo intelectual aplicado produo de um conhecimento,
uma obra de arte, um opus, uma vida cheia de sentido. A ttulo de exemplo, temos que muitos
cineastas no sculo XX trataram, direta ou indiretamente, do drama trgico da proletariedade,
expondo com seus filmes, vises da modernidade do capital com suas candentes contradies
sociais que dilaceram o ser genrico do homem.
Seria temerrio expor uma lista exaustiva de nomes de diretores do cinema mundial
que contriburam com filmes realistas capazes de permitir a apropriao do cinema como
experincia crtica a partir do eixo temtico Trabalho e Gesto, e que trataram com
desenvoltura da condio de proletariedade, do trabalho alienado e da luta de classes e suas
repercusses no plano da conscincia social. Porm, optamos por obras que tratassem do
contexto de crise de (de)formao do sujeito de classe iniciada a partir dos anos 2000 com o
agravamento do capitalismo manipulatrio. O referido tempo histrico explicita com sua
dramaticidade miditica, a alienao como um poder insuportvel afetando o homem que
trabalha no plano da conscincia contingente de classe, em sua condio de proletariedade.
Dessa forma, as obras escolhidas por ns para compor o presente trabalho, tais como,
O insustentvel peso do trabalho de Mike Judge, O que voc faria? de Marcelo Pieyro e
Amor sem Escalas de Jason Reitman diferem-se entre si em seus gneros, escolas e recursos
estticos e nacionalidades em que foram produzidos, no entanto, datam respectivamente dos
anos 1999, 2005 e 2009, de forma que, com o recorte temporal proposto, buscamos investigar
o reflexo esttico antropomorfizado de cada obra e o que cada uma delas e sua totalidade -
nos sugere quanto exposio do drama da proletariedade humana atrelado aos mecanismos
de captura da subjetividade do homem que trabalha pela gesto toyotista sob o agravamento
da crise estrutural do sociometabolismo do capital em suas mltiplas dimenses.
No captulo 1, visando contribuir com uma pedagogia audiovisual adaptada ao nosso
tempo histrico, descreveremos os pressupostos terico-metodolgicos nos quais se baseia o
rigor tcnico do mtodo Tela Crtica de anlise flmica em seu componente poltico mais
importante: a crtica das relaes sociais vigentes no mbito da produo e da reproduo
social. Procuramos tambm descrever brevemente nossas motivaes em aliar as temticas
trabalho e gesto com o cinema; inclusive justificando o porqu de nossa escolha pelo
referido mtodo de anlise crtica do mundo do trabalho a partir de dinmicas flmicas, como
tambm nossa rdua, porm prazerosa, trajetria de pesquisa. Desmistificando que exista
moleza quando o pesquisador social se utiliza do recurso cinematogrfico para discorrer
sobre temas to complexos quanto so trabalho e gesto.
17
No captulo 2 buscamos discorrer sobre esta nova era de barbrie social que se
caracteriza pela reestruturao produtiva do capital sob o esprito da gesto toyotista
expondo o contraste existente entre racionalizao intraempresa capitalista sob a lgica do
trabalho flexvel e a irracionalidade social com a disseminao do desemprego de longa
durao e a precarizao estrutural do trabalho. Narramos que, medida que o capitalismo
global a etapa superior do capitalismo manipulatrio, acirra-se o processo de crise do
humano, dado pelas novas formas de precariedade salarial com impactos importantes na
conscincia de classe. Nesse caso, o poder da ideologia e a intensificao do fetichismo da
mercadoria devido a vigncia do mercado na estruturao social, compem um cenrio
qualitivamente novo de desefetivao do ser genrico do homem6.
No captulo 3, faremos a anlise crtica do filme O insustentvel peso do trabalho
(Office Spaces, 1999) do diretor norte-americano Mike Judge onde, lanado no auge da New
Economy e do boom das empresas de Internet nos EUA em 1999, o filme uma deliciosa
tragicomdia sobre o mundo dos proletrios de colarinho-branco do Vale do Silcio na
Califrnia. No filme, todas as personagens esto imersos na condio de proletariedade, sendo
obrigados a trabalhar com as novas Tecnologias da Informao e de Comunicao (TICs)
advindas da Quarta Idade da Mquina prpria da gesto toyotista, e que os afoga num tipo de
trabalho tedioso, enfadonho e estranhado. Estranhamento este que penetra desde o cho-de-
fbrica, at o Office Space (espao do escritrio) e que est no tempo de trabalho e no tempo
de vida, fazendo desta, uma vida reduzida e estranhada.
No captulo 4, trataremos da produo ibero-americana O que voc faria? (El Mtodo,
2005) dirigido por Marcelo Pieyro que trata da temtica da gesto de recursos humanos
focada nas prticas de recrutamento e seleo dos departamentos de pessoal das grandes
empresas. Com O que voc faria? explicitamos o alinhamento das estratgias de contratao
dos gestores do capital s estratgias de organizao dos grupos de trabalho e de produo nos
locais de trabalho reestruturados. O que se coloca a lgica de captura da subjetividade do
homem implicado em cada momento da vida cotidiana, com escolhas pessoais sob
constrangimentos sistmicos dados. Desse modo, temos os nexos do capitalismo global em
sua forma de capitalismo manipulatrio que visa o primado do trabalho ideolgico em
tempos de crise estrutural do capital sob o esprito da gesto toyotista que organiza
6 Ou seja, o que consideramos como crise estrutural do capital possui as caractersticas de uma sndrome
social, isto , um conjunto de sinais e sintomas associados a uma condio social crtica, suscetvel de despertar reaes de temor e insegurana global. o que temos denominado de sociometabolismo da barbrie ou
barbrie social (ALVES, 2011).
18
mecanismos de captura da subjetividade do homem que trabalha impondo-lhe tais escolhas
pessoais estranhadas. Com O que voc faria?, soubemos articular a dialtica candente entre o
microcosmos das batalhas particularistas sob o capitalismo neoliberal, onde domina a
manipulao reflexiva, e o macrocosmo do catico capitalismo global, permeado por suas
intensas (e ampliadas) contradies sociais.
No captulo 5, com o filme Amor sem Escalas (Up in the Air, 2009) de Jason Reitman,
que conta a trajetria de Ryan Bingham, um consultor contratado por empresas para assumir a
tarefa de demitir os funcionrios considerados no mais necessrios, proporemos trabalhar
com o eixo-temtico gesto e vida pessoal. Por intermdio da ideologia da realizao de
si, a vida reduzida produz homens imersos em atitudes (e comportamentos) particularistas,
construdos (e incentivados) pelas instituies (e valores) sociais vigentes. no campo das
escolhas pessoais estranhadas por meio de valores-fetiches e suas imagens de valor que se
opera a captura da subjetividade e da intersubjetividade do homem-que-trabalha7.
A guisa de concluso, em nossas consideraes finais buscamos amarrar os contedos
pertinentes nossa temtica candente de trabalho e gesto, apresentados nas dinmicas de
anlises flmicas, salientando a importncia poltica de se ter uma pedagogia audiovisual de
cariz crtico adequada s condies do capitalismo manipulatrio no sculo XXI.
7 A manipulao social se d principalmente por meio da produo recorrente de indivduos reduzidos mera
particularidade, capazes de aceitar os valores-fetiches, reiterando a ordem das coisas e da vida reduzida (ALVES, 2011b, p. 51).
19
CAPTULO 1
O mtodo Tela Crtica: embasamentos terico-prtico analticos
Os vestgios da histria de um filme esto presentes de muitas maneiras: seja em sua
prpria narrativa, seja na realidade de quem o produziu, seja na qualidade de quem o relata
para quem no o viu, seja principalmente por tratar-se da vida comum, do mundo dos homens.
A questo para qual atemos, saber o limite e se o h - da profunda imerso do
sujeito que se faz pblico-como-classe na forma e no sentido do filme que o permita renunciar
a seus contedos subjetivos durante a ganga mstica fornecida pela narrativa
cinematogrfica de forma tal que permanea com a mente livre para envolver-se por
completo na histria contada e a enxerg-la desprovido de qualquer pr-interpretao ou
mesmo pr-conceitos para em seguida resignific-la.
Para compreendermos melhor a interao do sujeito enquanto individualidade pessoal
que se faz pblico-como-classe diante de uma obra de arte, aqui no caso, o recurso flmico,
Luis Espial (1976) nos diz que a situao espetacular a qual o pblico submetido diante de
um filme muito diferente da situao realista da pessoa na vida normal. Assim, numa
situao realista-objetiva tomamos uma atitude prtica, agressiva e disposta ao, enquanto
na situao espetacular-subjetiva trata-se de uma atitude no prtica. Na situao realista-
objetiva, explica ele, nos fixamos no contedo material das coisas. Precisamente por esta
atitude prtica estabelecemos uma relao pragmtica com o mundo que nos rodeia e vemos
tudo como teis, segundo a terminologia de Heiddeger. Ao contrrio, na situao
espetacular-subjetiva, muitas vezes, parece que vemos as coisas pela primeira vez, ao
depararmo-nos com elas com um olhar por vezes desapaixonado e neutro, o que se evidencia
como uma via de fcil acesso ideologia dominante.
No entanto, o quo neutro seria esse nosso olhar diante de uma obra cinematogrfica?
Tem-se, portanto questes essenciais no tocante relao sujeito-pblico-como-classe e obra
flmica: (1) Se h uma efetiva neutralidade do olhar/sentir deste frente a uma obra de arte (2)
quais os cuidados da utilizao de uma obra de arte para os fins que se quer vir-a-ser e (3) o
valor do recurso audiovisual enquanto capaz de nos conduzir autoconscincia reflexiva do
nosso tempo e enquanto meio esttico que propicia a reflexo crtica sobre o mundo burgus
conforme salientou Lukcs (2009).
Ora, a histria de toda autntica atividade artstica a luta para aproximar-se da
realidade, no entanto a infinitude extensiva e intensiva do mundo no jamais inteiramente
20
alcanvel pela arte, nem tampouco pela cincia, e no se pode falar seno de uma
aproximao. Logo, a obra de arte representa sempre apenas uma parte de realidade
historicamente limitada no espao e no tempo, mas o faz de tal modo que ela aspira e
consegue ser uma totalidade em si concluda como se elaborasse um mundo prprio e
particular, porm agindo tambm num sentido anlogo devendo influenciar do mesmo modo
quem a cria e quem a recebe transformando-os.
Lukcs (1968) refora nossa tese de que todos os caminhos percorridos pela
verdadeira arte provm da realidade social e que, portanto todas as estradas percorridas pela
justa eficcia exercida pela obra devem reconduzir realidade social, ampliando os horizontes
do homem e colocando-os em relaes mais estreitas e ricas com a realidade. Assim, Lukcs
insiste que a elevao da subjetividade individual ao nvel da universalidade atravs da
experincia esttica de uma obra de arte no deve ter nada de uma formalizao, mas sim
pressupor um reforo e amplificao da singularidade.
A arte representa sempre e exclusivamente o mundo dos homens, j que em todo ato de reflexo esttico (diferentemente do cientfico) o homem est sempre presente
como elemento de mediao nas relaes e nas aes e nos sentimentos dos homens,
deste carter objetivamente dialtico do reflexo esttico, de sua cristalizao na
individualidade da obra de arte, nasce uma duplicidade dialtica do sujeito esttico,
isto , nasce no sujeito uma contradio dialtica que, por sua vez, revela tambm o
reflexo de condies fundamentais no desenvolvimento da humanidade. (LUKCS, 1968, p. 284)
Para Lukcs, a finalidade da atividade esttica , portanto a autocontemplao da
subjetividade sendo essa impregnada pelos mltiplos contatos objetivos com a realidade
objetiva. Desse modo, a eficcia exercida pela obra de arte faz com que o sujeito-pblico
experimente uma relao mais rica e mais profunda de um mundo externo concebido com
riqueza e profundidade, do homem enquanto membro da sociedade, da classe, da nao,
enquanto microcosmos autoconsciente no macrocosmos do desenvolvimento da
humanidade (LUKCS, 1968, p. 296).
Nesta situao realista-objetiva nos deparamos com o que nos rodeia com a atitude
existencial do ter, do material, do possuir. Ao contrrio, na situao espetacular-subjetiva
tomamos a atitude do ser, quer dizer, o que nos rodeia diz mais sobre ns e nos personaliza. O
mundo burgus se coloca como o da situao realista-objetiva que incita os sujeitos humanos
condio de colecionadores de imensas quantidades de mercadorias, ao passo que a esfera
artstica por meio da situao espetacular-subjetiva promove o reencontro desse sujeito
21
humano consigo mesmo, dando personificao suas inquietudes e capaz de mostrar-lhe seu
ncleo humano-genrico.
Assim, a verdadeira arte torna-se dimenses da objetivao do ser humano,
responsvel pela humanizao da espcie e que nos levaria a independncia relativa da
prpria vida cotidiana. Ora, a vida social dos homens permanentemente enriquecida com as
aquisies advindas das conquistas da arte.
Porm, temos no fim do sculo XIX a poca da burguesia que passa a dominar e a
transformar os meios de produo, as relaes de trabalho, a sociedade e impor seu domnio
sobre o mundo ocidental, desenvolvendo diversas mquinas e tcnicas que segundo Bernadet
(1986) no s vm a facilitar seu processo de dominao, e a acumulao de capital, como
tambm passa a criar um universo cultural condizente com as relaes poltico-sociais que se
pretende estabelecer. Embora as atividades nos estdios de som e nas locaes de filmagem
possam ainda hoje ser artesanais, as prticas econmicas da indstria cinematogrfica so a
dos grandes negcios8. Assim, aliando-se mquina, arte e tcnica, tem-se, portanto, uma
importante ferramenta que d forma a este universo cultural e simblico proposto pela
burguesia e que expressa seu processo de dominao cultural, ideolgico e esttico, por meio
da reproduo da realidade que se quer transmitir.
Neste universo cultural da burguesia subsumido lgica do trabalho estranhado, torna-
se impossvel uma vida plena de sentido na tica lukacsiana, tendo em vista que o homem
passa a fazer do trabalho assalariado to-somente meio de subsistncia voltado para a fruio
do consumo alienado, invertendo, deste modo, a relao que teria com o trabalho como
princpio ontolgico. Marx (2004) j nos dizia que o trabalho estranhado aliena o homem de
seu prprio ser genrico, isto , mortifica seu corpo e arruna seu esprito. Dessa forma, a
tarefa poltica mais digna da verdadeira arte seria a de nos redimir da barbrie social do
mundo do capital, porm, o cinema como arte-total produto criativo em primeira instncia da
burguesia torna-se efetivamente o contrrio, uma instituio de aperfeioamento moral que
comumente subjuga os escravos assalariados na forma do entretenimento. Nesse sentido, a
diverso e o entretenimento apenas o prolongamento do trabalho sob o capitalismo
manipulatrio (ALVES, 2010b).
Nossa preocupao com a utilizao do cinema com meros fins visando o
entretenimento foi apontada j por Adorno e Horkheimer no conceito de indstria cultural,
que compreenderia as formas de entretenimento da arte moderna. Para Adorno, a obra
8 Nenhuma tecnologia nova pode ser introduzida sem que o sistema econmico o exija (TURNER, 1997, p. 21).
22
cinematogrfica no pode ser entendida isoladamente como uma forma artstica sui generis,
sendo que deve ser vista to-somente como o modo caracterstico da cultura de massas
contempornea que se serve de tcnicas de reproduo mecnica. A noo de cultura de
massas no supe uma arte que tem sua origem na massa e que se eleva a partir delas9. Logo,
tambm para Adorno a arte ficaria reduzida ao entretenimento, remdio para a fadiga dos
trabalhadores assalariados explorados pelo capital, e o cinema seria a arte que mais se
adequaria a essa funo social10
.
claro que Adorno reconhecia a potencialidade da arte cinematogrfica, desde que ela
no estivesse presa a estilos ideolgicos e s velhas frmulas da grande indstria cultural. A
exemplo de Lukcs, Adorno e Horkheimer no percebiam no cinema o desenvolvimento de
uma arte superior s anteriores (ainda que estes ltimos levantassem vrios aspectos
estruturais que dariam maior potencialidade ao cinema) pois as grandes corporaes fizeram
uso de seu domnio para mudar a estrutura da indstria cinematogrfica tornando-a mera
indstria cultural. Entretanto, o cinema comprometido com as contradies sociais do mundo
do capital, pautado nas lutas dos trabalhadores, ou mesmo voltado para a crtica ao modo de
vida burgus, contrape-se ao gosto das massas subalternas indstria cultural e aproxima-se
daquilo que os frankfurtianos consideravam como alta cultura11.
Mas para os frankfurtianos Adorno e Horkheimer, cultura j contm virtualmente o
levantamento estatstico, a catalogao, a classificao que a introduz no domnio da
administrao. Sua subsuno industrializada e conseqente inteiramente adequada ao
conceito de cultura que vivemos no mundo do capital. Ao reduzirmos cultura a
entretenimento, com a finalidade de ocupar os sentidos dos operrios e empregados desde a
sada do expediente de trabalho, at a chegada ao relgio de ponto na manh seguinte, com o
selo da tarefa de que devem se ocupar durante o dia, tornamos o cinema, construo cultural
de ordem burguesa, um mero circo audiovisual que entretm os escravos assalariados de
forma que o espectador no deve ter necessidade de nenhum pensamento prprio. Nesse caso,
9 Na era industrial avanada, as massas no tem mais remdio para desafogar-se e repor-se como parte da
necessidade de regenerar as energias para o trabalho que consumiram no alienante processo produtivo. Esta a
nica base material da cultura de massas. (ADORNO; EISLER, 1981, p. 14). 10
De todo os meios de cultura de massas, o cinema, ao ser o que mais abarca, o que mais mostra com maior nitidez esta tendncia aglutinante. O desenvolvimento de seus elementos tcnicos, imagens, palavra, som,
roteiro, representao dramtica e fotografia, como tais, desenvolveu paralelamente a determinadas tendncias
sociais para a aglutinao de bens culturais tradicionais convertidos em mercadorias. (idem, p. 1981) 11
Ao invs de se expor ao fracasso, no qual o estilo da grande obra de arte sempre se negou, a obra medocre sempre se ateve semelhana com outras, isto , ao sucedneo da identidade. A indstria cultural trai seu
segredo, a obedincia hierarquia social. A barbrie esttica consuma hoje a ameaa que sempre pairou sobre as
criaes do esprito que desde que foram reunidas e neutralizadas a ttulo de cultura (ADORNO & HORKHEIMER, 2006).
23
o produto prescreve toda reao, no por sua estrutura temtica que desmorona na medida em
que exige o pensamento, mas atravs de sinais. Toda ligao lgica que pressuponha um
esforo intelectual escrupulosamente evitada.
Assim, a indstria cultural que se desenvolveu nas ltimas dcadas sob o capitalismo
global tende a levar irremediavelmente deformao dos sujeitos humanos de classe,
tornando-os incapazes de escolhas radicais. A questo que se coloca hoje sob o tempo
histrico do capitalismo manipulatrio, descrito por Lukcs, como deter a mquina
industrial e poltica de cultura de massas montada pela ordem do capital que objetiva o
desmonte de sujeitos humanos. Afinal ento com o cinema que retomamos uma de nossas
indagaes iniciais: para que serve a arte e quais os cuidados da utilizao de uma obra de arte
(cinematogrfica) para os fins que se quer vir-a-ser?
Retomamos portanto a linha de pensamento de Espial (1976), de forma que somos
levados a pensar que no cinema, (1) a realidade no igual imagem da tela; (2) a imagem
da tela no igual imagem da percepo e; (3) a percepo no igual ao impacto sobre o
espectador. Com isso entende-se que a linguagem utilizada pelo cinema no tem em si
significao predeterminada, pois a significao depende essencialmente da relao que se
estabelece com outros elementos, nesse caso, com os contedos subjetivos do espectador.
A confuso sobre o cinema ser ou no a arte do real, ou que pelo menos ele imitaria
mimeticamente esta realidade, consiste em crer que a imagem que percebemos na tela
corresponde plenamente realidade. Edgar Morin (1962) nos explicita que o cinema realiza
o trabalho de uma mquina de percepo auxiliar e entre a realidade e a imagem que
percebemos existem diferenas ao passo que entre elas esto todos os truques e falsificaes
do meio cinematogrfico, que vem nos dar somente uma amostra de determinada imagem da
realidade12
e portanto, um vis ideolgico.
Assim, o cinema, por sua vez, se torna o objeto de captura do tempo transcorrido. A
produo de uma imagem automaticamente ir produzir uma ligao ontolgica e impessoal
com o objeto cinematogrfico, isso resultar na viso do cinema como representao total e
completa da realidade, no sentido de que, para que a realidade cinematogrfica proposta pelo
12 Para o cinema no existe tal ponto. A sua natureza ilusria uma natureza em segundo grau: resulta da montagem. Ou seja: no estdio cinematogrfico, o equipamento penetrou de tal forma na realidade que o seu
aspecto puro, livre dos corpos estranhos do equipamento, o resultado de um procedimento particular,
nomeadamente do registo de um aparelho fotogrfico ajustado expressamente e da sua montagem com outros
registos do mesmo tipo. O aspecto da realidade isento de aparelhagem, adquiriu aqui o seu aspecto artificial, e a
viso da realidade imediata tornou-se um miostis no mundo da tcnica (BENJAMIN, 1993).
24
realismo ocorra preciso que os acontecimentos representados sejam parcialmente
verdadeiros (BAZIN, 1991, p.59). Dessa forma, a credibilidade da obra est intrinsecamente
relacionada ao seu valor como registro documental para que se torne uma verdade na
imaginao, a autenticidade depende de acreditarmos na representao exposta na tela.
Para entendermos melhor este ponto, temos com Lacan que desenvolveu uma
descrio muito importante de um aspecto da infncia o qual chamou de fase do espelho.
Este o ponto em que a criana pela primeira vez reconhece a si mesma no espelho e percebe
que tem uma identidade distinta da identidade da me. Ao reconhecer uma imagem de si
mesma e ao criar uma fascinao por essa imagem, a criana comea a construir uma
identidade. O que as crianas veem, a nica coisa que podem ver, porm, uma imagem de si
mesmas - uma representao. Aqui comea o processo de equvoco e auto-iluso humana:
nossa identificao egostica com a imagem de ns mesmos sempre de algum modo ilusria.
Esta a consequncia de ver a tela como se fosse, em alguns aspectos, um espelho de ns
mesmos e do nosso mundo.
Como salientamos em nossa concluso, toda analogia necessita de limites e claro,
pautando-nos na teoria da fase dos espelhos de Lacan tambm devemos reconhecer a
experincia catrtica negativa em que no cinema o sujeito-espectador v tudo menos a si
prprio e o mundo social ao qual pertence. Tal analogia nos serve no mnimo para realar a
confuso entre percepo e realidade comum construo do eu enquanto individualidade
pessoal de classe e compreenso do filme narrativo.
Tal natureza ilusria do cinema uma natureza em segundo grau: resulta da
montagem. Ou seja: no estdio cinematogrfico, o equipamento penetrou de tal forma na
realidade que o seu aspecto puro, livre dos corpos estranhos do equipamento, o resultado de
um procedimento particular, nomeadamente do registo de um aparelho fotogrfico ajustado
expressamente e da sua montagem com outros registos do mesmo tipo. O aspecto da realidade
isento de aparelhagem, adquiriu o seu aspecto artificial, e a viso da realidade imediata
tornou-se um miostis no mundo da tcnica.
Eisenstein (2002) constitui a montagem como objeto central da construo de um
cinema revolucionrio, atravs da articulao da significao entre os planos, com o propsito
de compreender e alavancar a funo social do filme atravs do seu potencial artstico. Com
isso, propunha a substituio do cine-olho, contemplativo, esteticista e esttico, por um cine-
punho no qual se constroem variantes rtmicas guiadas por uma orientao ideolgica. Eis o
mtodo Tela Crtica.
25
Em resumo, podemos dizer que no cinema nos dada uma percepo j feita,
dominada ideologicamente, e que distorce a imagem da tela como sendo a imagem da
percepo. No entanto, a linguagem utilizada pelo cinema no tem em si significao
predeterminada por mais que possua contedos ideolgicos. A significao depende
essencialmente da relao que se estabelece com outros elementos, como os contedos
subjetivos do espectador, o que possibilita outras formas de apreenso das imagens atravs da
percepo do sujeito-habilitado-pblico-como-classe.
toda obra de arte torna-se tambm, uma vez cristalizada, o ponto de partida de uma reflexo para quem sabe olhar (FRANCASTEL, 1967).
Assim, ao vermos uma imagem cinematogrfica, no a recebemos como algo
completamente neutro e indito. Esta nos sugere outras imagens anteriores, as quais esto
carregadas de vivncia, o que pe por terra nossa outra questo primeva de que h um olhar
neutro sobre a arte e a cincia. Tais imagens, prprias do espectador, que o cinema desvela
por associao de imagens, traem suas emoes, suas vivncias e seu mistrio; criam um
estado afetivo e este estado afetivo aflora e comove o espectador. Neste caso o espectador no
saber o que que o comove. Porm, como observa Frederico (2000), o espectador pode
tambm ter uma comoo negativa e uma vivncia limitada da catarse promovida pela obra
flmica fazendo com que esse possa retornar ao cotidiano sem sofrer nenhuma mudana no
seu comportamento ou em sua percepo que visem uma resposta radical aos carecimentos
advindos do sociometabolismo do mundo burgus.
1.1 O mtodo Tela Crtica: pressupostos tericos
Os grandes filmes do cinema mundial comumente contribuem para a experincia da
catarse, elemento imprescindvel do processo de formao dos sujeitos humano-genricos.
Como observa Celso Frederico, a palavra catarse, usada originalmente na medicina, significa
purgao. Aristteles estendeu para a esttica o termo da catarse para mostrar que a arte tem
como funo a purificao: por meio da vivncia artstica, o homem experimenta uma
pacificao, uma liberao das emoes. (FREDERICO, 2000).
A experincia hermenutica de anlise crtica de filmes que expusemos nesse trabalho
uma experincia catrtica, de forma que, como observava Lukcs (1968), na fruio da obra
de arte, o espectador possa suspender sua vivncia cotidiana alienada e se reencontrar com o
gnero humano, confrontando-se com os eternos problemas da espcie humana que o artista
26
conformou num contexto particular, rico e estreito. Porm, tal efeito emocional provido pela
obra de arte cinematogrfica nos serve apenas como mdium do exerccio hermenutico
crtico de forma que se torna imprescindvel ir alm da embriaguez momentnea da fruio
esttica. Ou seja, ir alm da tela, apreendendo o filme no apenas como um texto, mas como
um pr-texto.
Como dissemos, o filme um mdium capaz de propiciar uma dinmica reflexiva
sobre o mundo social para alm da tela do cinema. Por isso, a metodologia a qual nos
apoiamos, baseada no Projeto Tela Crtica elaborada por Alves (2010c) no prope uma
sociologia do cinema, mas sim, um enlace entre sociologia e cinema visando utilizar a obra
flmica como meio esttico para propiciar uma reflexo crtica sobre o mundo burgus. A
idia discutir a sociedade a partir do filme, mais do que discutir o filme a partir da
sociologia.
A metodologia do Projeto Tela Crtica nasce da idia do cinema como experincia
crtica. Nela utilizamos o conceito de experincia crtica, tomado de Jean-Paul Sartre (1960);
e utilizamos tambm elementos da hermenutica dialtica de Hans-George Gadamer (2002) e
da teoria da recepo de Wolfgang Iser (1999) para sugerir uma proposta de interpretao
crtica.
Para resumirmos de forma vulgar e sinttica as teorias descritas acima que baseiam a
metodologia apropriada, temos que: (1) o conceito de experincia crtica disposto por Sartre e
adaptado ao nosso mtodo, trata o filme - o objeto artstico - como capaz de provocar reflexo
(e no mero entretenimento) ao sujeito-pblico-como-classe, tornando-o no mero espectador,
mas sim, produtor/organizador de cultura por meio da ressignificao do objeto artstico, ou
seja, o coloca como elemento central capaz de promover discusso crtica (trabalho
ideolgico) e produo categorial com vistas ao social13
. A grande arte se origina da falta
que h na interioridade do ser genrico do homem e a possibilidade de uma experincia crtica
frente a ela, que s adquire um sentido histrico efetivo (positivo) na medida em que buscar o
coletivo, isto , a autoconscincia crtica de si e do mundo conforme descrito por Lukcs
(2009).
(2) A tarefa da hermenutica dialtica, como observa Gadamer (2002), distinguir os
preconceitos que cegam dos que esclarecem, ou seja, a tomada de conscincia com relao
aos nossos preconceitos e crenas individuais, retirando-lhes o carter extremado e por vezes
negativo, ressignificando-os e os tornando capaz de explicitar as legtimas ideias da
13
Eis o sentido da experincia crtica - o homem obrigado a ir alm da coisa que provoca. Assim, tela crtica significa ir alm da tela. (ALVES, 2010c, p. 25).
27
compreenso verdadeira da obra flmica, tendo em conscincia, o entendimento do conceito
de distncia temporal que existe muitas vezes entre o filme e a perspectiva histrica de classe
do sujeito-pblico-como-classe. No se despreza o valor desta distncia temporal no processo
crtico-hermenutico, porm a perspectiva histrica de classe o que realmente produz a
filtragem do que ou no autntico na obra de arte. Como dissemos, para Alves (2010c), Tela
Crtica deve significar e possibilitar o ir alm da tela ou o filme como meio para uma
autorreflexo crtica da modernidade do capital no sentido de superar o passado e os
preconceitos adquiridos do mesmo tempo histrico, e formar sujeitos humanos que possam
negar o mundo social do capital que se (im)pe com toda fora s individualidades pessoais
de classe.
(3) O cinema como arte total capaz de promover uma empatia sublime. Tal como
Gadamer e sua hermenutica dialtica, Wolfgang Iser (1999) acredita no autoconhecimento
enriquecido que nasce de um encontro com o no familiar. A partir de sua teoria da recepo,
Iser (1999) nos diz que a obra de arte interroga e transforma as crenas implcitas com as
quais abordamos, desconfirma nossos hbitos rotineiros de percepo e com isso nos fora
a reconhec-los, pela primeira vez, como realmente so. Por isso que a anlise crtica do filme
no mera aplicao de um contedo sociolgico prvio no mesmo, mas, em lugar de
reforar as percepes cognitivas que temos, o filme realista transgride esses modos
normativos de ver e com isso nos ensina novos cdigos de entendimento.
Assim, toda experincia crtica pressupe sujeitos individuais capacitados com
determinadas habilidades cognitivo-conceituais prvias necessrias para o desenvolvimento
do processo de anlise crtica do filme conforme dissemos acima sobre a perspectiva de
Espinal (1976). Porm, o processo de experincia crtica (Sartre) no se d pela mera
aplicao destes contedos cognitivos prvios, sendo importante destacar que uma
hermenutica dialtica (Gadamer) do filme exige do sujeito-pblico-como-classe, a recepo
(Iser) do filme como espao de problematizao crtica do entendimento prvio de modo que
a verdadeira compreenso crtica de si e do mundo nunca ir emergir espontaneamente, mas
sim, por meio da experincia catrtica que o filme proporciona tal qual no caso da anlise
psicanaltica em que o papel do analista decisivo enquanto mediao exterior, embora no
interfira, de forma direta, na experincia crtica do analisando.
28
Figura 1 - O Trabalho do Cinema como Experincia Crtica
(A)
Apropriao I
(exibio do filme)
Trabalho de
Re-significao
Discusso crtica
(trabalho ideolgico)
Produo categorial
(A)
Apropriao II
(ao social)
Fonte: ALVES, 2010c.
1.2 O mtodo Tela Crtica: pressupostos prticos
A dinmica de anlise flmica implica etapas de pesquisa da forma do filme,
autorreflexo pessoal, apreenso de cenas significativas, preparao terico-crtica e
elaborao final de ensaio crtico. O esquema a seguir proposto por Alves (2010c) nos
explicita melhor o passo-a-passo do mtodo Tela Crtica:
Figura 2 - Etapa preparatria da Anlise Crtica do Filme
Apresentao cinematogrfica do filme (a forma do filme)
Diretor gnero flmico Roteiro Fotografia
1 exibio em tela grande (tima qualidade de imagem e som)
DVD Blu-Ray
Exposio do filme como representao ideolgica
(contexto histrico-poltico da produo do filme)
Tratamento do filme como projeo/identificao subjetiva (enquete pessoal)
Fonte: ALVES, 2010c.
Figura 3 - Fase de Anlise Crtica do Filme
2 Exibio do Filme em tela grande
Questo Prvia para Consulta:
Quais os eixos temticos de discusso sugeridos pelo filme?
Quais as cenas-chaves de contedo crtico?
29
Escolha do eixo temtico essencial
Apresentao terico-categorial da anlise crtica
3 exibio em tela pequena
Escolha de cenas/imagens significativas do filme
Digresses crticas sobre personagens tpicos
Fonte: ALVES, 2010c.
A operao de questionamento de um filme importante porque a partir deste
questionamento que iremos dar incio anlise crtica do filme. Aps assistirmos ao filme, em
sua primeira exibio em tela grande, fazemos escolhas e construmos problemticas a partir
destas escolhas. Mais importante do que responder, saber perguntar. Por isso, uma boa
pergunta vale por mil respostas. Questionar elaborar perguntas e problemticas sobre o
filme. Assim, o filme possui inmeras cenas que organizam a narrativa flmica. A questo
escolher as cenas do filme mais representativas ou tpicas da problemtica vinculada ao
eixo-chave previamente escolhido.
Aps a escolha de cenas do filme e suas personagens, deve-se tomar nota das
problemticas expostas em cada situao problemticas terico-categoriais, isto , o que
aquele elemento est sugerindo para nossa reflexo crtica. Eis a pergunta crucial. Aps a
organizao de um complexo de problemas, podemos a partir de ento, desenvolver a anlise
crtica do filme articulando autores, teorias e conceitos/categoriais analticas visando manter o
foco no eixo-temtico central em questo. Assim, os autores ajudam a constituir
problemticas na anlise crtica do filme e o filme ajuda a desenvolver tais problemticas,
envolvendo mais autores. Faz-se necessria, portanto a capacitao de sujeitos-receptores com
a leitura de autores que tratem do eixo-temtico central proposto a fim de habilitar o olhar.
Para Francastel (1967) a leitura de uma obra de arte requer tempo e esforo e que, em
nenhum momento, uma obra de arte, seja qual for, est em conformidade com uma
representao mental precisa que seria imagem no sentido psicolgico e no figurativo do
termo. O artista/diretor teve por vezes no necessariamente num instante a viso de um
fim a atingir; certamente ele jamais materializou instantaneamente essa intuio fundamental
30
que seria pobre se no se tornasse o centro de uma reflexo durvel e se no pudesse sugerir
em seguida a outros no somente o instante fugidio da intuio, mas o processo de
pensamento no fim do qual veio a criao.
Portanto, possvel utilizar a obra de arte como objeto de reflexo sociolgica numa
perspectiva dialtica. Desse modo, o cinema como experincia crtica habilita o sujeito-
receptor a abrir uma nova ordem de totalizaes das experincias vividas e percebidas14
.
Contudo, o sujeito-espectador no apenas mero receptor, mas sim, produtor/organizador de
cultura por meio da ressignificao do objeto artstico15. Assim, ao dialogar com a obra
flmica, o sujeito-receptor dialoga, de certo modo, com sua tradio histrico-existencial. O
filme apenas o elo mediador capaz de contribuir para a autoreflexidade crtica do sujeito-
espectador. To logo descubra o eixo temtico essencial, o sujeito-receptor discerne os
elementos compreensveis no filme e esboa um projeto de esmiuar os elementos
significativos e eixos-temticos para todo o texto flmico.
A arte , pois, atualmente, a expresso de grupos humanos distintos simultaneamente da sociedade global e das classes sociais, definidas por oposio de
interesses. (...) Se o estudo do carter esttico das obras oferece, pois um terreno de
estudo relativamente fcil e bem determinado, a investigao sobre os aspectos
significativos e sociais da arte se apresenta como infinitamente mais delicada. Para
ser exato, cada poca deve ser abordada com um mtodo diferente. certamente
permitido, entretanto, propor algumas direes gerais e alguns objetos precisos
pesquisa. (FRANCASTEL, 1993, p. 42).
Desse modo, o mtodo dialtico Tela Crtica visa analisar o mundo social em sua
etapa-histrica do capitalismo manipulatrio por meio de dinmicas de anlise crtica de
filmes. Para isso utiliza-se do cinema como instrumento de reflexo crtico-sociolgica tendo
como finalidade discorrer, atravs das obras flmicas, sobre a precarizao do mundo do
trabalho e os modelos de gesto adotados no capitalismo global. Adotam-se procedimentos de
anlise crtica que implicam numa longa imerso reflexiva do sujeito-receptor-analista na
forma e no sentido do filme, desenvolvendo tambm um processo de aprendizagem crtica a
14
Estou seguro que as cincias histricas e filosficas muito tem a ganhar com uma considerao mais atenta dos fatos artsticos. Estou tambm seguro que a cincia da arte e a prpria arte tem muito a ganhar com uma
apreciao melhor de seu papel psicolgico e tcnico na vida das sociedades. Apreciaremos melhor a arte do
passado, - e a do presente - se lhe conhecermos melhor a significao humana. Longe de fanar pela reflexo,
nossa sensibilidade esttica s pode se refinar pelo estudo. (FRANCASTEL, 1993, p. 48). 15
O homem que trabalha como criador instigado a ir alm da criatura como prvia-ideao e teleologia de seu prprio criador. Nesse retorno do objeto/coisa que provoca sobre o sujeito, que Lukcs caracteriza como sendo
um momento da alienao (no sentido positivo). Eis o sentido da experincia crtica o homem obrigado a ir alm da coisa que provoca. Assim, tela crtica significa ir alm da tela. Portanto, inverter aquele em-si do
objeto artstico num para-si humano-genrico. (ALVES, 2010b, p. 25)
31
partir da discusso da narrativa flmica a partir da adoo do mtodo dialtico um rigoroso
compromisso com a objetividade cientfica do conhecimento social.
importante esclarecer que a anlise crtica de um filme no imparcial e, portanto
no compartilha as iluses da neutralidade positivista como dissemos. Baseia-se em
pressupostos irremediavelmente ideolgicos, o que no significa que seja arbitrria e imbuda
de subjetivismos, mas sim, busca identificar e trazer luz os fatos que no conhecemos ou os
aspectos imanentes obra cultural (como o filme realista) que possamos desconhecer (e
estranhar) em virtude desta identidade da no-identidade entre sujeito e objeto (LUKCS,
2009). Ou seja, enquanto o realismo como escola esttica alude imerso na realidade do
filme atravs da transparncia e da unidade do que est sendo reproduzido, tomar a obra como
arte realista prope a quebra da narrativa em virtude da reflexo sobre o que est sendo
representado.
Ora, se foi devidamente com o cinema que nos colocamos a seguinte pergunta: - para
que serve a arte?, a resposta que, para ns, esta deve ser politizada, no sentido de que o
cinema que a Stima Arte deve tornar-se experincia crtica. Por fim, utilizar o cinema
como experincia crtica visa a formao de sujeitos humanizados capazes de resgatar o
sentido da experincia humano-genrica desefetivada pela relao existente entre o homem e
o mundo das coisas. De fato, sob o capitalismo manipulatrio, somente a arte realista ser
capaz de nos redimir da crise de (de)formao do sujeito histrico de classe, instaurado pelo
atual estado de barbrie social do capitalismo global.
32
CAPTULO 2
Trabalho e Gesto
A mundializao do capital, a acumulao flexvel e o neoliberalismo constituram nas
ltimas dcadas de capitalismo global, um novo (e precrio) mundo do trabalho, complexo,
fragmentado e heterogeneizado (ANTUNES, 2006; ALVES, 2000). Em presena de uma
economia proveniente da mundializao do capital, em rpida mutao e orientada para a
especificidade de cada cliente em particular, as organizaes toyotistas adquiriram uma maior
flexibilidade e capacidade de inovao como condio sinequanon para se manterem
competitivas. Isto levou os agentes econmicos a requerer uma maior flexibilizao na gesto
do fator trabalho e dos seus custos, ocasionando fenmenos como o desemprego estrutural.
Sob tal panorama da acumulao flexvel, temos hoje um momento deveras catico no
chamado mundo do trabalho no capitalismo global: j no se encontram empregos para
aqueles que dele necessitam para sobreviver e os que ainda esto empregados geralmente
trabalham muito e no ficam um dia sequer sem pensar no risco do desemprego. Devido
recente crise financeira mundial, este medo ocorre no s na base dos assalariados, pois essa
tendncia cada vez mais avana na ponta da pirmide social, chegando at os gestores,
promovendo o fnomeno do downsizing. medida que a populao aumenta, menor
tambm a capacidade de incorporar os jovens no mercado de trabalho. Segundo a
Organizao Internacional do Trabalho (OIT), em 2012 os desempregados no mundo so mais
de 202 milhes e por conta da crise, o prognstico de que o ndice cresa 6,2% em 2013.
At 2016, 210 milhes de pessoas ainda estaro procura de emprego, apesar de uma possvel
retomada paulatina da economia capitalista. O mesmo relatrio da OIT (2012, p.17) ainda
acrescenta que cerca de 1,5 bilho de trabalhadores sofrero forte eroso salarial. Ou seja,
talvez, amanh, os ndices de desemprego possam at cair, em termos relativos, s que s
custas da barbarizao da vida social16
.
O crescimento deste desemprego em massa e a ampliao de novas formas de
precariedade salarial e da precarizao do trabalho que ocorrem hoje sob o capitalismo global
tambm uma precarizao do homem que trabalha, no sentido de desefetivao do homem
como ser genrico capaz de dar respostas s situaes-problemas oriundas de seu cotidiano.
Esta nova configurao do trabalho nos demonstra novas dimenses das metamorfoses sociais
do mundo do trabalho que expem toda a barbrie social contida neste processo que visa a
16
A barbrie nunca em potncia, ela inteiramente em ato, e seu ato apenas o gesto de impotncia de sujeitos empobrecidos perante um mundo que no criou (...) (MATTI, 2002).
33
mescla do tempo de vida com o tempo de trabalho, em virtude das excessivas jornadas de
trabalho que reduz a vida pessoal a mero trabalho assalariado. Articula-se o que Alves
(2011c) chamar de vida reduzida que trataremos adiante.
No novo (e precrio) mundo do trabalho, estruturado pelo esprito toyotista que se
implanta no apenas na indstria, mas principalmente no setor de servios, que devemos
voltar a nossa ateno. Faria (2007, p. 66) nos diz que o toyotismo no pode ser considerado
um modelo japons de gesto e de produo, mas um modelo capitalista contemporneo que,
com o apoio de pesquisadores de outras nacionalidades, especialmente dos EUA, foi
implementado e desenvolveu-se no Japo, pas que oferecia as condies propcias a que este
processo ocorresse justamente em um momento de crise de acumulao do capital. Ou seja,
sob o capitalismo global, a utilizao do toyotismo como modelo de referncia no interior do
processo de reestruturao produtiva instalou-se em diversos pases industrializados no
somente por ser uma resposta do capital crise de sobreacumulao ou enquanto um novo
modo de produo, mas sim enquanto uma ideologia capitalista, um novo discurso para gerir
e capturar a subjetividade dos trabalhadores.
deste novo mundo de trabalho precrio que o sistema do capital tende a
impulsionar sua expanso e instaurar uma nova barbrie social. Deste modo, a luta social deve
ser conduzida contra a voracidade insacivel do capital que tenta transformar o tempo de vida
em tempo de trabalho, algo que contribuiria to-somente para a degradao humana. o que
vemos hoje na economia capitalista no mundo: vive-se para ser explorado pelo o capital.
Na medida em se desenvolve o desemprego estrutural e o trabalho precrio, que
parecem indicar a necrose social da lgica capitalista-mercantil, impulsiona-se, por outro
lado, o mundo dos pequenos negcios, um imenso campo de reproduo ideolgica (e
material) da produo de mercadorias. Como nos lembra Alves (1999), tal fato apontado,
inclusive, pelos idelogos da burguesia, como sendo uma das sadas para o desemprego
estrutural17
. Ora, a ideologia da gesto toyotista ao disseminar o mito do
autoempreendedorismo como o operador da autoativao no mercado de trabalho, expe que,
17
No meio do furaco da crise que agora atinge o corao do sistema capitalista, vemos a eroso do trabalho
relativamente contratado e regulamentado, herdeiro da era taylorista e fordista, que foi dominante no sculo XX
resultado de uma secular luta operria por direitos sociais e que est sendo substitudo pelas diversas formas de empreendedorismo, cooperativismo, trabalho voluntrio, trabalho atpico, formas que oscilam entre a superexplorao do trabalho e a prpria autoexplorao do trabalho, sempre caminhando em direo a uma
precarizao estrutural da fora de trabalho em escala global (ANTUNES, 2009, p. 51).
34
por trs da farsa do Voc S/A18
, subsiste na verdade um novo tipo de estranhamento
capitalista, de subsuno real do trabalho ao capital, de condies salariais precrias e de
precariedade do trabalho.
Diante deste quadro, Antunes (2006) defende que o capitalismo sob a gide do
esprito do toyotismo, no foi capaz de eliminar as mltiplas formas e manifestaes do
estranhamento. Com isso o scio metabolismo da barbrie cria um novo patamar de
estranhamento para milhes de desempregados e trabalhadores precrios, homens e mulheres
desvinculados das promessas da modernidade, numa poca de psmodernidade.
Segundo esta ideologia da gesto toyotista, a nova produo de mercadorias deve
buscar dispor de trabalhadores flexveis para lidar com as mudanas no processo produtivo,
enfrentar imprevistos (incidentes/eventos) e trabalhadores passveis de serem transferidos de
uma funo a outra dentro da empresa, requerendo-se, para tanto, a polivalncia e a constante
atualizao de suas competncias. Segundo os idelogos do toyotismo, flexibilidade e
polivalncia o que lhes d a medida correta de sua "empregabilidade". No limite, o
esprito do toyotismo nos conduz ideologia da gesto que prega a abolio do regime
salarial, cujo sonho o mundo de prestadores de servios, indivduos empreendedores,
funcionrios PJ, colaboradores.
Todo esse aparato de exigncias organizacionais sustenta-se no envolvimento dos
trabalhadores com novos procedimentos de produo da gesto toyotista. Constitui-se assim
um novo nexo psicofsico capaz de moldar e direcionar ao e pensamento dos trabalhadores
em conformidade com a racionalizao da produo. Desse modo, o eixo central de atuao
da lgica do capital adequado s condies da reestruturao produtiva a gesto da
captura da subjetividade.
2.1 Gesto da captura da subjetividade sob o capitalismo global
A organizao toyotista do trabalho tem uma densidade manipulatria de maior
envergadura. Na nova produo do capital, o que se busca capturar no apenas o fazer e
o saber dos trabalhadores, mas a sua disposio intelectual-afetiva, constituda para
cooperar com a lgica da valorizao (ALVES, 2011). Dessa forma, o trabalhador
encorajado a pensar pr-ativamente e a encontrar solues antes que os problemas
18
Sob o capitalismo manipulatrio, o foco privilegiado o EU das individualidades pessoais de classe. o que
podemos denominar de capitalismo Voc S/A. Por isso, o apelo s ideologias do empreendedorismo e trabalho
por conta prpria que abusam da noo de talentos humanos ou mesmo de capital humano (ALVES, 2010).
35
aconteam. Na empresa toyotizada cria-se um ambiente de desafio contnuo, em que o capital
no dispensa como fez o fordismo, o esprito do trabalhador. O que significa que, se no
fordismo o trabalhador na linha de montagem, executando tarefas montonas e repetitivas,
pensava demais, ou tem muito mais possibilidade de pensar como ressaltou Gramsci (1984), o
que poderia lev-los a um curso de pensamento pouco conformista, sob o esprito do
toyotismo, o trabalhador pensa e obrigado a pensar muito mais. At sua exausto, diga-se de
passagem, mas colocando a inteligncia humana a servio do capital.
No caso do fordismo, o nexo psicofsico era constitudo, segundo Gramsci (2010),
pela ideologia puritana e pela represso sexual. No caso do toyotismo, este nexo se constitui
pela disseminao dos valores-fetiches, expectativas e utopias de mercado e pela liberao
dos instintos, ao mesmo tempo em que se preserva a disciplina industrial.
H na verdade no esprito do toyotismo uma captura da subjetividade dos
trabalhadores, sendo o objetivo do capital uma integrao do trabalho aos interesses da
empresa, como se ambos fossem portadores de interesses comuns. Neste sentido, a
substituio do taylorismo-fordismo pelo toyotismo no pode ser concebida como um avano
ou ruptura, pois, o que havia de essencial dentro da lgica capitalista permaneceu, que a
busca de maior lucratividade e produtividade com custos reduzidos19
.
Alves (2000, p. 35) nos atenta que de certo modo, o toyotismo conseguiu superar -
no sentido dialtico de superar conservando -, alguns aspectos predominantes da gesto da
produo capitalista sob a grande indstria no sculo XX, inspirados no taylorismo e fordismo
que instauraram a parcelizao e a repetitividade do trabalho. Porm, com a desespecializao
e polivalncia operria, o que torna o toyotismo o modelo predominante sob o capitalismo
global justamente resolver um dos problemas estruturais prprios de todos os tipos de gesto
da produo de mercadorias capitalista: efetivar o consentimento operrio lgica de
valorizao do capital no plano da produo e reproduo social.
Desse modo, esse novo cenrio da gesto da fora de trabalho no sculo XXI instaura
um novo nexo em que o trabalhador convencido massivamente de que o papel ontolgico
19
A literatura de gesto empresarial dos anos 90 contm ideais, propostas de organizao humana, modos de ordenamento dos objetos e formas de garantia que so de natureza to diferente daquilo que se encontra na
literatura de gesto empresarial dos anos 60 que difcil no reconhecer que o capitalismo mudou muito de
esprito ao longo dos ltimos trinta anos, ainda que a nova configurao no possua fora mobilizadora qual a
figura anterior conseguira chegar, pelo fato de estar incompleta no plano da justia e das garantias. Em todo o
caso, para o novo esprito conseguir implantar-se [...] ele precisa estar em condies de responder a alguma
exigncia no atendida no perodo anterior. [...] Parece-nos assim, bem evidente que a nova gesto empresarial
pretende responder s demandas de autenticidade e liberdade, feitas historicamente em conjunto com aquilo que
denominamos crtica esttica, deixando de lado as questes de egosmo e das desigualdades tradicionalmente associadas na crtica social. (BOLTANSKI, 2009).
36
dos homens no mundo, e, portanto, seu papel, se efetiva apenas pela realizao de si por meio
de luta de posies e espaos em uma corrida incessante por produtividade. Marinho (2008)
aponta para a implicao dessa proliferao da nova gesto do trabalho no capitalismo global,
que se faz eficaz, pertinente, criativa e que controla e manipula todo um tecido social,
administrando um mundo doente socialmente, que impe ao trabalhador uma presso
contnua que o leva a inmeras formas de adoecimento e sofrimento no trabalho20
.
Braverman (1974) inclusive nos coloca que tal controle de fato, o conceito
fundamental de todos os sistemas gerenciais capitalistas, como foi reconhecido implcita ou
explicitamente por todos os tericos da gerncia. Como o capitalismo cria uma sociedade na
qual ningum por hiptese consulta qualquer coisa seno o interesse prprio, e como
prevalece o contrato de trabalho entre as partes nada mais prevendo seno evitar que
prevaleam sobre os de outros, a gerncia torna-se um instrumento perfeito e sutil para a
manipulao psicolgica do trabalho21
.
Boltanski e Chiapello (2009) ressaltam que o capitalismo global sob o esprito do
toyotismo apresenta duas faces: uma voltada para a acumulao do capital, e a outra para
princpios de legitimao. Nesse caso ltimo, a literatura porque no dizer tambm dos
filmes - de gesto empresarial utilizada pelas organizaes toyotistas pode ser entendida como
o receptculo dos novos mtodos de obter lucro, das novas recomendaes feitas aos gerentes,
para a criao de empresas mais eficazes e cada vez mais competitivas. Porm, tal literatura
de gesto empresarial no se utiliza apenas de linguagem meramente tcnica, onde podemos
encontrar receitas prticas que visem a melhorar o rendimento das organizaes tal como se
aumenta o desempenho de uma mquina. Ela comporta ao mesmo tempo todo um vocabulrio
ideolgico, no mnimo por se tratar de uma literatura normativa que diz aquilo que deve ser, e
no o que , a tal ponto que se indaga sobre o crdito que pode ser dado essa literatura no
sentido de se ter conhecimento sobre o que de fato ocorre no interior das empresas
capitalistas.
Assim, a nova forma de gesto da captura da subjetividade da fora de trabalho
instaurada pelo modelo predominante toyotista ergue-se como um constructo terico que
evidencia sua legitimao, e como prtica sistemtica-manipulatria. Na qual, as
20
Talvez o estressamento da corporalidade viva seja estratgia defensiva das individualidades pessoais de classe
cindidas exausto pelos novos processos de subjetivao do capital (ALVES, 2011c, p. 45). 21
No er