Dissertacao Versao Integral Renato Sedano Onofri

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    RENATO SEDANO ONOFRI

    ATEORIA DA CAUSA SUBJETIVA COMO EXPRESSO JUSRACIONALISTA NOCDIGO COMERCIAL BRASILEIRO DE 1850

    Dissertao de mestrado realizada sob orientao doProfessor Titular IGNACIO MARIA POVEDA

    VELASCO, no Departamento de Direito Civil rea deHistria do Direito da Faculdade de Direito da

    Universidade de So Paulo.

    So PauloJaneiro de 2012

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    Para Valria, Luiz, Mariana e Henrique,as verdadeiras Luzes em minha vida.

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    NDICE

    Introduo .....................................................................................................................71 -Breve apresentao. ..................................................................................72 -Inovao e reforma promovidos pelo jusracionalismo do sculo XVIII......83 - O movimento codificador como corolrio do jusracionalismo do sc. XVIII94 -Iluminismo e reforma em Portugal........................................................... 105 - Situao geral da historiografia jurdica brasileira quanto ao impacto deideias jusracionalistas em nosso ordenamento................................................. 116 - Relativizao das posies expostas quanto ao Direito Comercial brasileiro ........................................................................................................................ 127 - Indcios da penetrao de inovaes jusracionalistas no Direito Comercialbrasileiro......................................................................................................... 148 - Possvel resultado da influncia jusracionalista no Cdigo Comercialbrasileiro......................................................................................................... 149 -Hiptese cientfica do presente trabalho.................................................. 1610 - Premissas metodolgicas....................................................................... 1711 - Plano de trabalho.................................................................................. 21

    Captulo 1 O Iluminismo jurdico em Portugal e suas consequncias em relao metodologia de integrao de lacunas no Direito luso-brasileiro. ............ .......... .......... . 22

    Plano do Captulo .................................................................................................... 221.1 - A introduo das ideias iluministas em Portugal: LUS ANTNIO VERNEY e oVerdadeiro Mtodo de Estudar. ............................................................................... 22

    1.1.1 VERNEY, a publicao do Verdadeiro Mtodo de Estudar e as cartas aEccellenza. ........................................................................................................ 22

    1 - Os estrangeirados............................................................................... 222 - O Verdadeiro Mtodo de Estudar............................................................ 233 -As cartas e relatrios a Eccellenza, de 1765-1766............................... 241.1.2 - Os principais aspectos ligados cincia jurdica contidos no Verdadeiro

    Mtodo de Estudar............................................................................................... 251 - Crticas ao ensino jurdico em Portugal................................................... 252 - Propostas de alteraes no ensino jurdico.............................................. 27

    1.1.3 - Cartas e relatrios dirigidos por LUSANTNIO VERNEYa Eccellenza... 291 - O papel de Verney nas reformas pombalinas........................................... 292 - Viso geral do contedo das cartas......................................................... 31

    1.2 - As Reformas Pombalinas ............................................................................ 321.2.1 Breve aceno sobre o sistema de integrao de lacunas anterior reforma

    pombalina............................................................................................................ 341 - O sistema inaugurado pelas Ordenaes Afonsinas................................. 342 - As modificaes insertas pelas Ordenaes Manuelinas em sua verso

    primitiva, pelas Ordenaes Manuelinas de 1521 e o regramento do direitosubsidirio nas Ordenaes Filipinas.............................................................. 363 - Distores na aplicao das fontes subsidirias e a necessidade de reforma. ........................................................................................................................ 39

    1.2.2 As reformas pombalinas no sistema de fontes subsidirias e no ensinojurdico: a introduo do usus modernus pandectarum em Portugal.................... 42

    1 -A Lei da Boa Razo, os Estatutos da Universidade de 1772 e o novo sistemade fontes subsidirias....................................................................................... 42

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    2 - Posteriores desenvolvimentos empreendidos pelo individualismo crtico emPortugal........................................................................................................... 493 - Consequncias da nova metodologia de integrao de lacunas no direito

    privado portugus e brasileiro.. ....................................................................... 50Captulo 2 Os primeiros passos do Direito Comercial brasileiro: a abertura dos portos, a

    ascenso de uma nova elite e a aplicao da legislao estrangeira no Brasil. .............. 53Plano do captulo ..................................................................................................... 532.1 A abertura dos portos e sua influncia no direito comercial brasileiro .............. ... 54

    2.1.1 - Antecedentes da abertura. ......................................................................... 541 - Portugal e Brasil entre Inglaterra e Frana............................................. 542 - O conflito franco-britnico...................................................................... 543 -A Conveno Secreta de Londres (22 de outubro de 1807)...................... 574 -Interesses ingleses por trs da Conveno Secreta.................................. 595 - Fechamento dos portos portugueses navegao inglesa........................ 606 -Reao inglesa ao fechamento e providncias para transferncia da corte61

    2.1.2. A chegada da Famlia Real e a abertura dos portos. .................... ............ .... 631 - O desembarque e as primeiras medidas em territrio brasileiro.............. 632 -A carta rgia de 28 de janeiro de 1808 e a abertura dos portos brasileiros snaes amigas ................................................................................................. 643 - O carter da abertura dos portos............................................................. 664 -A concorrncia de Jos da Silva Lisboa para o carter da abertura dos portos ........................................................................................................................ 665 -As naes amigas de Portugal................................................................. 696 - Uma pr-abertura dos portos? A tese de Jos Jobson de Andrade Arruda71

    2.1.3 Consequncias da abertura dos portos: a ascenso de uma nova elite, umnovo aparato burocrtico e utilizao da legislao estrangeira para integrao delacunas do Direito Comercial luso-brasileiro. .......... ........... ........... ............ ........... 75

    1 - Consequncias sociais............................................................................. 752 - Consequncias no mbito administrativo da colnia............................... 773- Consequncias jurdicas........................................................................... 804-Impacto na codificao do Direito Comercial brasileiro.. ........ .............. .. 85

    2.2 A codificao do Direito Comercial brasileiro..................................................... 862.2.1 A primeira tentativa: Jos da Silva Lisboa. ............. ........... ........ ........... .... 86

    1-A consulta a Real Juntae a escolha de Cairu para elaborao de um projetode Cdigo Comercial.. ..................................................................................... 86

    2.2.2. A proposta de Diogo Ratton .................................................................... 88 1-A proposta de adoo do Cdigo Comercial francs................................ 882-A reao do Visconde de Cairu................................................................ 89

    2.2.3 A segunda tentativa: o projeto da Comisso extraparlamentar da Regncia.901 -Nomeao da Comisso extraparlamentar.............................................. 902 - O projeto de Cdigo Comercial............................................................... 90

    3 - O trmite legislativo do projeto............................................................... 92

    Captulo 3 - A teoria da causa subjetiva no mbito do tratamento legislativo dispensado aoscontratos mercantis pelo Cdigo Comercial brasileiro. ................................................ 95

    Plano do captulo. .................................................................................................... 953.1 Breve nota a respeito das fontes justinianias e do pensamento medieval em torno do

    problema da causa. ........... ............ ......... ............. ........... ........ ........... ........... .......... ...... 963.1.1 Alguns significados do termo causa nas fontes justinianias. .................. .. 96

    1 - Emprego do termo em sentidos diversos a consequente falta de teorizao esistematicidade da teoria da causa no Direito Romano.................................... 96

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    3.1.2 A causa no direito medieval. .................................................................... 98 1 -A causa no pensamento escolstico.......................................................... 98

    3.3 A elaborao da teoria da causa no perodo Iluminista ........... ............. ........ .. 1003.3.1 As obras de DOMAT e POTHIER e a adoo de sua doutrina pelo Code Civil.100

    1- O papel de Jean Domat.......................................................................... 1012- O desenvolvimento de Robert Joseph Pothier......................................... 1013-A adoo da teoria pelo Code Civil........................................................ 1014- Esclarecimento terminolgico: causa enquanto requisito do contrato e causado contrato .................................................................................................... 1025- Principais caractersticas da teoria subjetiva da causa........................... 102

    3.4 O tratamento dispensado causa pelo Direito Comercial brasileiro .......... ..... 1043.4.1 A causa na doutrina comercialista dos principais autores em lngua portuguesa. .............................................................................................................................. 104

    1- O Dicionrio Jurdico-Comercial de Jos Ferreira Borges..................... 1042 - O tratado quinto dos Princpios de Direito Mercantil de Jos da Silva Lisboa ...................................................................................................................... 106

    3.4.2 A causa no Cdigo Comercial de 1850. ............ .......... .......... ............. ......... 1071- O tratamento legislativo......................................................................... 1072-Alguns apontamentos doutrinrios......................................................... 108

    Concluso ................................................................................................................. 111Obras Consultadas ..................................................................................................... 114Resumo ..................................................................................................................... 120Abstract ..................................................................................................................... 121

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    Agradecimentos

    Ainda que apenas um nome aparea na capa do trabalho, no h obra que se

    faa sozinho. Pude contar, ao longo dos meus trs anos no Programa de Ps-Graduao daFaculdade de Direito da Universidade de So Paulo, com o apoio, cooperao e pacincia

    de muitos amigos.

    A comear por meu orientador, Professor Titular Ignacio Maria Poveda

    Velasco, a quem agradeo no apenas pela oportunidade de ingresso no mestrado, mas

    tambm e talvez principalmente por ter me aceitado como monitor da cadeira de

    Histria do Direito no ano de 2006, fato que no exagero dizer foi fundamental em

    minha vida.

    Agradeo ao Professor Doutor Estevan Lo R Pousada pela amizade e

    conhecimento compartilhado ao longo dos anos. Agradeo tambm pelas valiosas

    contribuies feitas ao trabalho na banca de qualificao.

    Ao Professor Eduardo Doutor Tomasevicius Filho pelas contribuies na

    banca de qualificao e pela convivncia como integrante do corpo docente das Faculdades

    Integradas Campos Salles.

    A todos os integrantes do Grupo de Pesquisa e Monitoria da Faculdade de

    Direito da Universidade de So Paulo, a quem agradeo no nome da Professora Maria

    Cristina S. Carmignanni.

    Devo agradecer aos amigos de outrora: Arnaldo, Josiane, Naldo e Viviane; e

    tambm aos amigos de outrora e sempre: Paulo Henrique Signori Pinese, Paulo Cesar

    Cardozo da Silva Filho, Tiago Zanella, Juliana Miashiro, Renato P. Leon, Rafael T.

    Bassoli, Plinio Pontes Rodrigues e Jadiel William Tiago.

    Por fim, agradeo especialmente alm das quatro pessoas a quem este

    trabalho dedicado , aos amigos Ricardo Monier, Rodrigo Srgio Meirelles Marchini,

    Maria Claudia Pardo Tenrio e Tabir Dal Poggetto O. Sueyoshi, cujas constantes

    companhias e apoio foram fundamentais para que pudesse dar um ponto final a neste

    trabalho.

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    Introduo

    1 -Breve apresentao.Ao longo do ano de 2011, o Direito Comercial e, mais especificamente, a codificao do Direito Comercial esteve em evidncia no

    meio acadmico, principalmente por conta do projeto de Cdigo Comercial inserto pelo

    Professor FBIO ULHOA COELHOem sua obra O futuro do direito comercial1, que resultou

    no Projeto de Lei n 1572 /11, proposto pelo Deputado Vicente Cndido.

    O projeto, ora submetido consulta pblica2, reacendeu o debate sobre

    autonomia do Direito Comercial em relao ao Direito Civil, e sobre a necessidade de

    reafirmao dos princpios que o singularizam enquanto subramo do Direito Privado.

    Com efeito, FBIO ULHOA COELHO afirma que os valores do direito

    comercial esto esgarados, de modo que h necessidade de recos-los, tornando o

    regramento das relaes comerciais mais compreensvel e aplicvel no contexto social

    contemporneo. A vigncia de um novo Cdigo Comercial, na opinio do ilustre Professor,

    exerceria importante papel neste sentido, pois serviria para criar no somente um

    significativo momento de profunda reflexo da comunidade jurdica sobre os valores nele

    encetados, como tambm proporcionaria a renovao da produo doutrinria e

    jurisprudencial, com a superao de muitos conceitos velhos e anacrnicos e arejamento

    dos que ainda tm operacionalidade3.

    Dado, portanto, este momento de retomada de reflexes a respeito do

    Direito Comercial e sua codificao, parece ser oportuna a apresentao de um trabalho

    que trate, justamente, da Codificao do Direito Comercial a partir de um ponto de vista

    histrico.

    1COELHO, Fbio Ulhoa. O futuro do direito comercial, So Paulo, Saraiva, 2011.2Estgio da proposta conferido at o dia 20 de dezembro de 2011.3COELHO, Fbio Ulhoa, op. cit.(nota 1), pgs. 7-8. Em debate realizado no Salo Nobre da Faculdade deDireito do Largo So Francisco, aos 31 de agosto de 2011, o Professor Doutor JOS ALEXANDRE TAVARESGUERREIRO, em resposta ao autor do projeto, afirmou que os Cdigos Comerciais, ao longo da histria,nunca alcanaram o prestgio dos Cdigos Civis, e que mesmo o Cdigo Comercial de 1850 foi, de pouco em

    pouco, esvaziado, o que revela a tendncia de pulverizao pelo ordenamento do regramento comercial.Esse dado revelaria, por sua vez, a pouca afeio deste ramo do Direito Privado codificao. Deste modo, oProfessor TAVARES GUERREIROafirma temer que o novo Cdigo seja, antes de tudo, irrelevante.

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    A escolha do tema, no entanto, no est diretamente relacionada com o

    momento mencionado, mas com o contato, desde os tempos de graduao, com a temtica

    da Codificao do Direito Privado no Brasil, suas peculiaridades e vicissitudes.

    A presente dissertao guarda profundo paralelismo inclusive em suaestrutura com o trabalho apresentado pelo Professor ESTEVAN LO R POUSADA, no ano

    de 20064, sob orientao do Professor Titular IGNCIO MARIA POVEDA VELASCO, que

    tratava da preservao da tradio jurdica luso-brasileira no Brasil. Nossas pesquisas

    seguiram o caminho oposto, procurando identificar no a preservao de uma tradio

    jurdica, mas, pelo menos, um ponto de sua relativizao no ordenamento brasileiro. o

    que passamos a expor.

    2 - Inovao e reforma promovidos pelo jusracionalismo do sculo

    XVIII.Dimidium facti, qui coepit, habet: sapere aude, incipe...5. O dito horaciano serviu

    de mote aos pensadores de toda a Europa que, ao longo dos sculos XVII e XVIII,

    promoveram reformas nas mais diversas reas do conhecimento humano, visando

    superao do modo de vida do Antigo Regime.

    O direito no passou inclume pelo perodo6. Aproveitando-se da

    metodologia das cincias matemticas, os juristas pretenderam elaborar um novo sistema

    jurdico, abandonando a tradio do Direito Comum. O novo sistema teria como

    fundamento nico a razo, que, a partir da observao da natureza humana, elaboraria

    preceitos com validade universal, a exemplo dos enunciados das cincias exatas.

    Seguindo essa orientao metodolgica, formou-se, na era moderna, uma

    nova concepo do direito natural. Como era tradicional, havia a referncia natureza do

    homem e da sociedade, mas na sntese de RAOUL CHARLES VAN CAENEGEM,em primeiro

    lugar, o sistema de direito natural da Era Moderna recusava-se a derivar seus preceitos de

    4 POUSADA, Estevan Lo R. Preservao da tradio jurdica luso-brasileira: Teixeira de Freitas e aintroduo Consolidao das Leis Civis, Dissertao, So Paulo, 2006.5Em traduo livre: Metade da obra tem aquele que comea: ousa saber, comea... (HORCIO.Epistolas,livro I, ep. IIAd Lollium). Sobre as diversas interpretaes que se fez do mote iluminista, veja-se VENTURI,Franco. Utopia and reform in the Enlightenment, Cambridge, Cambridge University Press, 1971 (trad. port.FLORENZANO, Modesto, Utopia e reforma no iluminismo, Bauro, Edusc, 2003), pgs. 33-39.6 FRANZ WIEACKER aduz que as ideias iluministas concernentes cincia jurdica foram a fora mais

    poderosa no desenvolvimento do moderno direito depois do Corpus Iuris (...). (Privatrechtgechichte derneuzeit unter besonder Bercksichtigungder deutschen Entwicklung, 2 ed., Gttingen, Vandenhoeck undRuprecht, 1967 (trad. port. HESPANHA, Antnio Manoel Botelho. Histria do direito privado moderno, 2ed., Lisboa, Calouste Gulbenkian, 1993), pg. 297.

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    sistemas externos, como o direito divino ou o Corpus Iuris Ciuilis. Procuravam-se

    princpios evidentes e axiomticos, por meio do estudo racional e da crtica da natureza

    humana, de que se pudessem deduzir morer geometrico (ou seja, pela aplicao de

    mtodos matemticos) todos os preceitos. Da R.C. VAN CAENEGEMafirmar que o nome

    direito da razo (Vernunftrecht) , portanto, mais adequado do que direito natural, que

    possui outras conotaes7.

    Assim, o direito natural no era visto como um ideal de justia com uma

    significao maior do que a ordem jurdica positiva. Bem ao contrrio, o direito natural era

    tido como um corpo de princpios de que deveria ser diretamente derivado o direito

    positivo. Era, portanto, um direito natural aplicado8.

    3 - O movimento codificador como corolrio do jusracionalismo do sc.

    XVIII. A legislao, de um modo geral, e os cdigos, especialmente, foram responsveis

    pela introduo das reformas jusracionalistas nos ordenamentos nacionais.

    Ainda de acordo com R.C. vAN CAENEGEM, a legislao assumiu papel

    relevante - quase que exclusivo em alguns pases, como a Frana , na tarefa de conduzir

    as novas ideias para o plano prtico, uma vez que as decises dos tribunais e as

    universidades tiveram participao muito tmida neste sentido9.

    Leis e cdigos foram, portanto, os elementos de ligao entre a dimenso

    intelectual do Iluminismo e a dimenso pragmtica reformadora. Desse modo, muitas das

    construes intelectuais elaboradas no mbito jurdico ao longo dos sculos XVII e XVIII

    ganharam vida e aplicabilidade nos cdigos.

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    CAENEGEM, Raoul Charles van.Introduction historique au droit prive, Bruxelles, Story-Scentia, 1988 (trad.port. Carlos Eduardo Lima Machado. Uma introduo histrica ao direito privado, 2 ed., So Paulo,Martins Fontes, 2000), pgs. 164-165.8Idem, Ibidem, pg. 165. Em relao a este aspecto direito natural aplicado , interessante ver que,ainda em 1861, DELAMARRE e LE POITVINabriam seu tratado de Direito Comercial atestando a existncia dodireito natural e afirmando serem o Cdigo Civil e o Cdigo Comercial a aplicao deste direito natural aduas ordens definidas de coisas: Il existe un droit naturel; le Code civil et le Code de commerce sont deuxapplications de ce droit deux ordres dfinis de choses (...) (Trait thorique et pratique de droitcommercial, tomo I, 2 ed., Paris, Chales Hingray, 1861, pg. 1).9 Idem, Ibidem, pg. 170. Veremos abaixo, no captulo 1, que se na Frana as Universidades e aJurisprudncia tiveram papel tmido na colocao em prtica do programa Iluminista, em Portugal, bem aocontrrio, foram as duas principais janelas de abertura para as inovaes no mbito jurdico.

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    4 -Iluminismo e reforma em Portugal. O Iluminismo com sua vertente

    jurdica, o jusracionalismo alastrou-se, geograficamente, pela Europa de modo geral, mas

    de maneira no uniforme quanto s suas caractersticas.

    Se, na Frana, culminou com a Revoluo, em Portugal, culminou com umasrie de reformas conduzidas no por um movimento revolucionrio, mas pela prpria

    Coroa.

    A introduo das ideias Iluministas em Portugal deu-se pela atuao dos

    chamados estrangeirados, em especial Lus Antnio Verney, que, por meio de sua obra

    Verdadeiro Mtodo de Estudar influenciou as reformas empreendidas pelo Marqus de

    Pombal, na segunda metade do sculo XVIII10.

    As reformas, por sua vez, foram empreendidas em trs frentes: a legislao,

    a jurisprudncia e o ensino. Dois atos legislativos pombalinos foram fundamentais para a

    histria do direito portugus e brasileiro: foram eles aLei de 18 de agosto de 1769 (Lei da

    Boa Razo), e os Novos Estatutos da Universidade de Coimbra, de 1772; a primeira,

    reformando a jurisprudncia e o sistema de direito subsidirio das Ordenaes do Reino; a

    segunda, reformando o ensino universitrio11.

    Tais diplomas formaram um programa reformador bem estruturado sobre os

    ideias Iluministas, promovendo, em certa medida, o abandono de algumas tradies

    jurdicas muito antigas12.

    10A respeito do papel do VERNEY na introduo das ideias Iluministas em Portugal, ver, adiante, o captulo 1.11A Lei de 18 de agosto de 1769 teve impacto decisivo na evoluo do direito portugus e brasileiro. Pormeio dela, a administrao pombalina reformou por completo o sistema de direito subsidirio, mitigando aimportncia do direito romano, excluindo por completo o direito cannico, as glosas de Acrsio e oscomentrios de Brtolo, aos quais se atribua a responsabilidade pela insegurana que se instalara na doutrinae jurisprudncia. Nas palavras de NUNO J. ESPINOSA GOMES DA SILVA, nas Ordenaes Filipinas podedizer-se que, como fontes de direito, se indicavam grosso modo, a vontade do reie o utrumque ius. Agora, nosculo das luzes, mantm-se a vontade do monarca, mas pretende-se substituir o utrumque iuspela razo.(Histria do direito portugus: fontes de direito, 4 ed., Lisboa, Calouste Gulbenkian, 2006, pg. 464).

    Ao mesmo tempo, a Lei da Boa Razo estabeleceu novas orientaes para a jurisprudncia, na medida emque modificou as regras para a tomada de assentos, concentrando, com isso, maior autoridade na Casa daSuplicao de Lisboa, em detrimento dos tribunais de Relaes subalternos.Por fim, a reforma dos Estatutos da Universidade teve por finalidade complementar o que havia sido iniciadocom a Lei de 18 de agosto de 1769, visando educar os novos juristas sob os preceitos da nova mentalidade.Veremos o processo reformador pombalino em detalhes no captulo 1 do presente trabalho.12 ESTEVAN LO R POUSADA indica a reforma do direito das sucesses empreendida por Pombal, antesmesmo da Lei da Boa Razo, como exemplificativa de um aspecto do direito portugus, tomado do direitoromano justinianeu, que foi modificado com base nas novas ideias. As Leis de 24 de junho de 1766 e de 09de setembro de 1769 apresentam sensvel inspirao jusnaturalista, evidenciada na apologia da sucessolegtima (adequada aos ditames da razo natural) em detrimento da liberdade testamentria consagrada pelatradio lusitana desde o renascimento do direito justinianeu. (Cit.(nota 4), pgs. 68-69).

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    5 - Situao geral da historiografia jurdica brasileira quanto ao

    impacto de ideias jusracionalistas em nosso ordenamento13.Durante todo o perodo em

    que foi colnia e parte do perodo imperial, o Brasil teve um ordenamento jurdico comum

    a Portugal. Todavia, este dado no representou impedimento para que, a partir da

    independncia poltica do Brasil, os ordenamentos de ambas as naes tomassem rumos

    diversos, principalmente em relao ao Direito Privado.

    Tradicionalmente, a historiografia jurdica, tanto no Brasil quanto em

    Portugal, noticia uma linha de continuidade entre a tradio luso-brasileira e o Direito

    Privado brasileiro, especialmente o direito civil, aps a separao entre colnia e

    metrpole.

    Deve-se compreender o sentido da aduzida continuidade nos seguintes

    termos: o Direito Privado brasileiro, ao contrrio do portugus, teria escapado, de maneira

    geral, da influncia do jusracionalismo e suas inovaes que, pretensamente, rompiam com

    o Antigo Regime e o ius commune.

    Com efeito, Portugal viu penetrar-lhe as ideias jusracionalistas por entre os

    imensos espaos deixados abertos em seu ordenamento jurdico pelas lacunas e remisses

    ao direito subsidirio das Ordenaes Filipinas espaos que a Lei de 18 de Agosto de

    1769, a Lei da Boa Razo, e os Estatutos da Universidade de Coimbra de 1772 orientaram

    o preenchimento.

    Em Portugal, o individualismo crtico da primeira metade do sculo XIX

    procurava na legislao, jurisprudncia e doutrina estrangeiras o critrio para aferio do

    usus modernus pandectarum, elevado, por sua vez, a fonte subsidiria pelos Estatutos de

    1772. Neste perodo, incorporaram-se ao direito portugus, especialmente ao direito

    privado, muitas das inovaes jusracionalistas que foram levadas prtica pela codificao

    francesa, especialmente pelo Code Civil de 180414.

    13Ao longo do trabalho, utilizaremos os termos histriae historiografiano sentido da recomendao tericasintetizada por JULIO ARSTEGUI. O autor procura explicitar a importncia da utilizao de palavrasdiferentes para indicar a investigao eescrita da histriae a realidade histricaem si mesma. Apoiando-seem TOPOLSKY,ARSTEGUIdefende que historiografia cumpre bem o papel de indicar a escrita da histriasem gerar confuso com seu prprio objeto, a histria a realidade histrica. Cfr. ARSTEGUI, Jlio. Lainvestigacin histrica: teoria y mtodo, Barcelona, Critica, 1995 (trad. port. Andra Dore, A pesquisahistrica: teoria e mtodo, Bauru, Edusc, 2006), pgs. 23-37.14Sobre este aspecto, veja-se, novamente, ESTEVAN LO R POUSADA: com isso, promove-se uma reviravoltaquanto utilizao do critrio estabelecido pela Escola Jusnaturalista portuguesa, dando-se ao ususmodernusa acepo de direito estrangeiro das naes civilizadas da Europa. (Cit.(nota 4), pg. 90)

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    No Brasil, por outro lado, a vigncia das Ordenaes Filipinas por mais de

    trs sculos, possibilitada pela conjuno de diversos fatores, acarretou a preservao da

    tradio jurdica. Isto , no se observou, entre ns, o efeito de rompimento que o

    jusracionalismo acarretou alhures15.

    6 - Relativizao das posies expostas quanto ao Direito Comercial

    brasileiro.Se, no que se refere ao direito civil, a preservao da tradio verdade difcil

    de ser refutada, o outro ramo do direito privado, o Direito Comercial, demonstra,

    principalmente por meio da obra codificadora que teve incio em 1832 e terminou em

    1850, com a promulgao do Cdigo Comercial que o direito privado brasileiro no

    15 neste sentido que se manifesta GUILHERME BRAGA DA CRUZ.De acordo com o historiador, aproveitaram-se, em Portugal, as normas de integrao de lacunas e de interpretao da poca jusracionalista para quefossem introduzidas, pela via doutrinal, inovaes de fundo individualista bebidas nos Cdigos posteriores Revoluo Francesa (A formao histrica do moderno direito privado portugus e brasileiro, inRevista daFaculdade de Direito da Universidade de So Paulo , vol. 50, 1955, pg. 53). A ao criadora da doutrinateria atuado em trs frentes: 1) a formulao de novas interpretaes a respeito de textos legislativos que semantinham em vigncia; 2) a divulgao de novas doutrinas, contrrias ao Direito vigente, com a inteno deimplant-las em vista do desuso das velhas normas das Ordenaes, ou defendendo as inovaes de iureconstituendo; e, por fim, 3) ao exercida nas lacunas em que as normas vigentes remetiam a soluo para odireito subsidirio (Idem, Ibidem, pg. 57). Tal ao criadora terminou por ser cristalizada no Cdigo Civil

    portugus de 1967.No que se refere ao direito brasileiro, o historiador do direito portugus aduz que a desorientao doutrinal efilosfica resultante da penetrao das ideias liberais foi, no Brasil, acentuadamente menor que em Portugal(Idem, Ibidem, pg. 65). Por essa razo, o Cdigo Civil Brasileiro constitui, em pleno sculo XX, uma

    expresso muito mais fiel da tradio jurdica portugusa do que o prprio Cdigo Civil Portugus,promulgado 50 anos antes! (Idem, Ibidem, pg. 69). As referncias feitas por Braga da Cruz so,respectivamente, ao Cdigo Civil brasileiro de 1916, e ao Cdigo Civil portugus de 1867.O apontado diagnstico de uma maior preservao da tradio jurdica lusitana entre ns feito, tambm, porautores brasileiros. Veja-se, por exemplo, JOS CARLOS MOREIRA ALVES: O direito civil brasileiro deitasuas razes no antigo direito civil portugus, ligando-se a este mais estreitamente do que o prprio direitocivil lusitano dos tempos modernos (Panorama do direito civil brasileiro: das origens aos dias atuais, in

    Revista da Faculdade de Direito da Universidade de So Paulo, vol. 88, 1993, pg. 186).Tambm ORLANDO GOMES se manifesta da mesma forma. De acordo com esse autor, a longevidade dasOrdenaes Filipinas no Brasil singulariza a histria do direito civil brasileiro, pois teria ela impedido que o

    pas se integrasse no movimento de renovao legislativa que, a partir da Frana, tomou os pases ocidentaisno sculo XIX. (Razes histricas e sociolgicas do cdigo civil brasileiro, 1 ed., So Paulo, Martins Fontes,2003, pg. 3).Corroborando o sentido da conservao no direito civil brasileiro, PONTES DE MIRANDAaponta que, mesmo

    quando se seguiu o Cdigo Civil francs, no se deu propriamente qualquer inovao. Aduz o autor que, das1929 fontes materiais do Cdigo Civil brasileiro de 1916, a que mais concorreu quantitativamente foi o CodeCivil, com 172, menos por si do que pela expresso moderna que dera a regras romanas. Isto , concorreu

    por oferecer novas expresses s regras antigas, e no pelas inovaes nele contidas (Fontes e evoluo dodireito civil brasileiro, 2 ed., So Paulo, RT, 1981, pg. 93).

    No tocante ao papel conservador exercido pela obras de TEIXEIRA DE FREITAS, ver, por todos, ESTEVAN LOR POUSADA: Se por um lado a obra de A. TE IXEIRA DE FREITAS evidencia um carter sensivelmenteinovador sobretudo atravs da estruturao particular conferida a seu sistema de exposio do direito

    privado pode-se divisar na prpria Introduo Consolidao das Leis Civis uma forte tendnciaconservadora. Da o ttulo deste trabalho, tomando-se o autor no apenas como o mais inovador de todos osnossos juristas, mas como um dos principais elementos de preservao da tradio jurdica luso-brasileira(POUSADA, Estevan Lo R, op. cit.(nota 4), pg. 16).

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    passou to inclume quanto possa parecer primeira vista em relao s inovaes do

    jusracionalismo, efetivadas pelo movimento codificador do sculo XVIII e incio do sculo

    XIX.

    O Direito Comercial brasileiro recebeu a influncia jusracionalistaindiretamente, por meio, principalmente, dos Cdigos Comerciais da Frana (1807), da

    Espanha (1829) e de Portugal (1833)16.

    A explicao para essa diferenciao entre os dois ramos do direito privado

    encontrada na prpria Lei de 18 de agosto de 1769, j que, em relao ao Direito

    Mercantil17, a Lei da Boa Razo mandava aplicar, subsidiariamente, no o Direito Romano

    conforme boa razo, mas o Direito das naes crists cultas e polidas da Europa18.

    16 o prprio GUILHERME BRAGA DA CRUZ quem chama ateno para o fato de que, no Brasil, o direitoprivado, em si mesmo, nem direta, nem indiretamente recebeu, por via legislativa, alteraes de grande vulto,se excetuarmos a importante reforma do direito comercial, levada a cabo com a promulgao do Cdigo de1850 (Cit. Formao(nota 15), pg. 66). No mesmo sentido CLOVIS VERSSIMO DO COUTO E SILVA: No ,entretanto, difcil estabelecer as razes pelas quais o Direito Civil brasileiro manteve-se imune s influnciado Cdigo Napolenico, ao contrrio do que sucedeu com o Cdigo Comercial de 1850, que sofreu forteinfluncia do Cdigo Comercial francs de 1807. (COUTO E SILVA, Clvis V. O direito civil brasileiro em

    perspectiva histria e viso de futuro, inRevista dos Tribunais, n 628, 1988 (agora in FRADERA, Vera MariaJacob. O direito privado brasileiro na viso de Clvis do Couto e Silva, Porto Alegre, Livraria do Advogado,1997, pgs 11-12))17 Ao longo deste trabalho, utilizaremos as expresses Direito Comercial e Direito Mercantilindistintamente, conforme orientao da Professora PAULA ANDREA FORGIONI em sua recente tese detitularidade: No Brasil, alguns acreditam que as expresses direito mercantil, direito comercial e direito

    empresarialassumiriam significados diversos. O direito mercantildesignaria a matria em sua primeira fase,ligada disciplina da atividade dos mercadores medievais; direito comercialestaria relacionado ao segundoperodo, em que os atos de comrcio definem os limites da disciplina, e, por fim, direito empresarialseria onome atualmente correto, porque a empresa o centro do debate. Contudo, essa distino estril, pois astrs expresses so sinnimas. Em todas as fases de sua evoluo,esse ramo especial do direito sempredisciplinou a atividade dos agentes econmicos encarregados da gerao de riqueza, fossem eles chamadosmercadores, comerciantes ou empresrios. O trao diferenciador dessa rea do direito, e que identifica seus

    protagonistas, sempre foi o marcado escopo de lucro. Discusses semelhantes quanto ao nome dado matriaocorrem na Frana (droit des marchands, droit commerciale, mais recentemente, droit des affaires), comoexplica Jean Hilaire (...). Na Itlia, a expresso diritto commerciale tradicional (...), enquanto dirittoimprenditoriale no comum. H tambm quem entenda que as expresses direito mercantil oumercadores seriam demasiadamente antigas. Nota-se, porm, que possuem a mesma raiz da palavramercado, nada podendo haver de mais contemporneo para designar aqueles que nele atuam. Osestadunidenses empregam com freqncia o substantivo Merchant e o verbo to merchandise. Anota

    Scandizzo que a palavra mercado nasce do particpio passado do verto latino mercari, que significa comercial(...) (A evoluo do direito comercial brasileiro: da mercancia ao mercado, So Paulo, RT, 2009, pg. 13,nota de rodap n 1).18 Textualmente, a Lei de 18 de Agosto de 1769 dispunha (...) que aquella boa razo, que o sobredito

    preambulo determinou, que fosse na praxe de julgar subsidiaria no possa nunca ser a da authoridadeextrinseca destes, ou daquelles textos de Direito Civil, ou abstractos, ou ainda com a concordancia de outros;mas sim, e to smente: ou aquella boa razo, que consiste nos primitivos principios, que contm verdadesessenciaes, intrinsecas, e inalterveis, que a Ethica dos mesmos Romanos havia estabelecido, e que osDireitos Divino, e Natural, formalizaro para servirem de Regras Moraes, e Civis entre o Christianismo: ouaquella boa razo, que se funda nas outras Regras, que de universal consentimento estabeleceo o Direito dasGentes para a direcco, e governo de todas as Naes civilisadas: ou aquella boa razo, que se estabelecenas Leis Politicas, Economicas, Mercantis e Maritimas, que as mesmas Naes Christs tem promulgado

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    Verificou-se, portanto, no Brasil, no tocante ao Direito Comercial, soluo

    parecida com aquela que o individualismo crtico deu para identificao do usus modernus

    pandectarum em Portugal: na falta de legislao, doutrina, jurisprudncia e, em

    decorrncia do pacto colonial, at mesmo de usos e costumes mercantis, socorreu-se da

    aplicao da legislao estrangeira pelos tribunais nacionais.

    7 - Indcios da penetrao de inovaes jusracionalistas no Direito

    Comercial brasileiro. A anlise da historiografia jurdica nacional permite entrever que o

    dispositivo da Lei de 18 de Agosto de 1769 que mandava aplicar as leis das naes crists

    cultas e polidas, em matria de Direito Mercantil, permitiu, com efeito, a penetrao de

    inovaes jusracionalistas no Direito Comercial brasileiro.

    As fontes testemunham que o enunciado normativo da Lei da Boa Razo

    no foi letra morta, aplicando-se, efetivamente, a legislao estrangeira tanto em Portugal,

    quanto no Brasil19.

    8 -Possvel resultado da influncia jusracionalista no Cdigo Comercial

    brasileiro. No se pode, contudo, exagerar o resultado da aplicao da legislao

    estrangeira, afetada pelas reformas do sculo XVIII, como determinante no carter do

    Cdigo Comercial brasileiro.

    Com efeito, no se verificou a introduo de novas ideias que modificaram,

    em outras naes, o prprio mago do sistema de direito privado. o caso, por exemplo,

    do art. 1583 do Code Civilde 1804, cujo enunciado normativo consagrava o princpio de

    que basta o consenso para transmisso dos direitos reais20.

    com manifestas utilidades, do socego publico, do estabelecimento da reputao, e do augmento dos cabedaesdos povos, que com as disciplinas destas sabias, e proveitosas Leis vivem felices a sombra dos thronos, edebaixo dos auspcios dos seus respectivos Monarcas, e Principes Soberanos.

    Sendo muito mais racionavel, e muito mais coherente que nestas interessastes materias se recorra antes emcaso de necessidade ao subsidio proximo das sobreditas Leis das Naes Christs, iluminadas, e polidas, quecom ellas esto resplandecendo na boa, depurada e s Jurisprudencia (...) do que ir buscar em boas razes, ousem razo digna de attender-se, depois de mais de 17 seculos o socorro s Leis de huns Gentios (...).19A este respeito ver, infra, 2.2.3, 3, em que se abordaro as consequncias jurdicas da abertura dos portos

    brasileiros navegao internacional, apontando, na ocasio, a aplicao dos cdigos estrangeiros, comopermitido pela Lei da Boa Razo, por conta da escassez de regramento mercantil na at ento colnia doBrasil. A escassez era no apenas legislativa, mas tambm de costumes comerciais, na medida em que, ataquele momento, vivia-se sob regime de exclusivo metropolitano.20Sobre a importncia do referido artigo para a sistemtica de todo um cdigo, T EIXEIRA DE FREITAS, naIntroduo Consolidao das Leis Civis, repreende JOS HOMEM CORREIA TELLES: O systema inteiro deum Codigo depende muitas vezes de uma s disposio. Se o respeitavel autor do Digesto Portuguez,

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    A influncia da legislao estrangeira no Cdigo Comercial brasileiro faz-

    se sentir, sem dvida alguma, no aspecto formal: a organizao das diferentes partes, livros

    e ttulos daqueles trs mencionados cdigos, quais sejam, o francs, o espanhol e o

    portugus, anloga a do Cdigo de 1850.

    Do ponto de vista material, um aspecto em especial chama a ateno: o

    enunciado normativo do artigo 129, inciso 3, do Cdigo Comercial, revela a influncia do

    art. 1108, inciso IV, do Code Civilfrancs de 1804, ao impor a causacomo requisito de

    validade de um contrato.

    O art. 1108 do Cdigo Civil francs est (e sempre esteve) assim redigido:

    Article 1108

    Quatre conditions sont essentielles pour la validit d'une

    convention :

    Le consentement de la partie qui s'oblige ;

    Sa capacit de contracter;

    Un objet certain qui forme la matire de l'engagement ;

    Une cause licite dans l'obligation.(destacamos)

    Por sua vez, o revogado art. 129 do Cdigo Comercial brasileiro de 1850,

    tinha a seguinte redao:

    imbudo nos principios de um falso Direito Natural que no combina com os interesses da sociedade asrelaes entre as partes contractantes, resolveu adoptar a disposio do Art. 1583 do Codigo Civil Francez,um dos corolrios da outra disposio generica do Art. 711; era necessario, que no tivesse omittido asdiversas restrices desse Codigo, que serviro de correctivo (se bem que incompleto) ao seu systema

    espiritualista, e acautelaro funestos abusos.Ao contrario, se por um lado foi indifferente todas as exigncias da sua innovao, tomando-aisoladamente, e no como applicao de uma theoria, que substitue o pensamento ao facto; por outro lado foicontradictorio, exluindo a tradio, e ao mesmo tempo conservando as regras do Direito Romano e do DireitoPortuguez, respeito da tradio ficta, e symbolica e dos actos solemnes de posse (Consolidao das leiscivis, 3 ed., Rio de Janeiro, Garnier, 1876 (ed. fac-similar, Braslia, Senado Federal, 2003), pgs. LIX-LX).Em certa medida, cremos que a crtica dirigida por TEIXEIRA DE FREITAS a CORREA TELLES poderia sertambm dirigida aos responsveis pela elaborao do Cdigo Comercial brasileiro, na medida em queadotaram, no art. 129, inc. 3, regra inovadora, adotada pelo Cdigo Civil francs por inspirao de ROBERTJOSEPH POTHIER, que em nada corresponde tradio jurdica luso-brasileira e que no foi acompanhada deoutras disposies que a complementariam. Este o ponto que passaremos a expor em seguida no corpo detexto.

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    Art. 129 So nulos todos os contratos comerciais:

    1.que forem celebrados entre pessoas inbeis para contratar;2.que recarem sobre objetos proibidos pela lei, ou cujo uso ou

    fim for manifestamente ofensivo da so moral e bons costumes;

    3.que no designarem a causa certa de que deriva aobrigao;

    4.que forem convencidos de fraude, dolo ou simulao (art.828);

    5. sendo contrados por comerciante que vier a falir, dentro de40 (quarenta) dias anteriores declarao da quebra (art.

    827).(destacamos)

    J.X.CARVALHO DE MENDONAafirma, expressamente, em seu Tratado de

    direito comercial, que a regra do art. 129 cpia do Cdigo Civil francs21.

    V-se que, a exemplo do Code Civil de 1804, o Cdigo Comercial

    brasileiro, em seu art. 129, inciso 3, cominava, para a hiptese de falta de causa, a

    invalidade do contrato.

    A regra no se coaduna com a tradio jurdica luso-brasileira; mais do que

    isso, a causa, vista como requisito de validade de um negcio jurdico criao inovadora

    do jusracionalismo que teve repercusso legislativa no Code Napoleon, ponto sobre qu

    trataremos no captulo 3, infra.

    9 -Hiptese cientfica do presente trabalho. O presente estudo ter como

    finalidade investigar os meios pelos quais a teoria francesa da causa dita subjetiva , que

    prev a invalidade do contrato pela falta de causa, chegou ao art. 129, inciso 3, do Cdigo

    Comercial.

    21 O Cod. Commercial, no art. 129, n.3, cpia infeliz do art. 1.108 do Cod. Civil francez, exige comoessencial nos contratos commerciaes a designao de uma causa certa, da qual se deriva a obrigao(CARVALHO DE MENDONA, Jos Xavier. Tratado de direito comercial brasileiro, vol. I, Rio de Janeiro,Freitas Bastos, 1963, pg. 49).

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    Provoca surpresa encontrarmos em um diploma central do sistema de

    Direito Privado brasileiro, que esteve em vigncia, por completo, por mais de 153 anos e

    que ainda vige em sua segunda parte, que regula o comrcio martimo, um enunciado

    normativo que destoa significativamente da tradio jurdica seguida pelo Direito Civil.

    Mesmo se comparado ao todo do Cdigo Comercial, o enunciado do art.

    129, inciso 3, tambm destoa. Como j acenado nesta Introduo22, uma das principais

    inovaes do jusracionalismo em relao ao direito privado, a eficcia real do contrato de

    compra e venda. O consensualismo ganhou espao na legislao de diversos pases, entre

    eles Itlia e o prprio Portugal, alm, claro, da Frana23. No entanto, no Cdigo

    Comercial brasileiro que, a julgar pelo art. 129, inciso 3, estaria voltado s novas

    tendncias, a eficcia real da compra e venda no se observa, prendendo-se o Cdigo

    tradio romanstica24.

    Assim, a hiptese do presente trabalho a de que a penetrao da inovao

    jusracionalista consubstanciada na ideia da invalidade do contrato pela falta ou defeito de

    causa teria ocorrido por meio do permissivo contido no 9 Lei da Boa Razo, somado

    sua concretizao nos termos dos Estatutos da Universidade de Coimbra de 1772, no

    sentido de permitir e estimular a busca de solues para o direito mercantil na legislao,

    jurisprudncia e doutrina estrangeiras25.

    10 -Premissas metodolgicas. Para empreendermos a investigao a que

    nos propomos, devemos analisar, alm dos textos historiogrficos e de historiografia

    jurdica, trs espcies de fontes, que se complementam na investigao histrico-jurdica:

    a)as fontes legislativas brasileiras e estrangeiras, que no mbito de nosso tema assumem

    22Cfr. supra 7, nota de rodap n 21.23No Cdigo Civil francs, a norma que estabelece o princpio consensual em relao ao contrato de comprae venda est no art. 1583. No Cdigo Italiano de 1942, foi estipulada uma regra geral para os contratos comefeitos reais: Art. 1376. Contratto con effetti reali - Nei contratti che hanno per oggetto il trasferimento della

    propriet di una cosa determinata, la costituzione o il trasferimento di un diritto reale ovvero il trasferimentodi un altro diritto, la propriet o il diritto si trasmettono e si acquistano per effetto del consenso delle partilegittimamente manifestato. O Cdigo Civil portugus de 1966 tambm prev a eficcia real do contrato decompra e venda: Art. 879 A compra e venda tem como efeitos essenciais: a)A transmisso da propriedadeda coisa ou da titularidade do direito; (...).24O Cdigo Comercial brasileiro manteve, nos arts. 126 e 197 a 200, a distino entre ttulo e modo deaquisio, afastando a transmisso consensual de direitos reais.25No se pode afirmar que a metodologia de integrao de lacunas inaugurada pelas reformas pombalinasteve repercusso decisiva na formao do Direito Privado brasileiro, como teve em relao ao direito

    portugus. No o teve e no pretendemos afirmar o contrrio. Entretanto, no se pode negar, diante dasevidncias das fontes, que tal metodologia teve aplicabilidade no Brasil, especificamente em relao aoDireito Mercantil, cuja doutrina em lngua portuguesa ainda era substancialmente incipiente.

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    especial importncia; b) as fontes doutrinrias, nacionais e estrangeiras; c) as fontes

    jurisprudenciais.

    A seleo dos textos e fontes a serem analisados ao longo de um trabalho

    historiogrfico est intimamente relacionada com a metodologia a ser empregada, bemcomo a viso de histria que tem o pesquisador, de sorte que alguns pontos devem ser

    esclarecidos.

    Em primeiro lugar, oportuno ressaltar que, recentemente, as pesquisas

    histricas se voltaram de forma bastante decidida para as questes culturais, relativizando

    o paradigma materialista de anlise histrica. As histrias poltica e econmica no mais

    ocupam posies central nos livros, cedendo espao para outros aspectos, como a questo

    da identidade, da religio, educao, e outros temas anteriormente negligenciados nas

    pesquisas de ordem histrica26.

    Em um trabalho como este que agora apresentamos, que trata, grosso modo,

    de uma determinada linha de influncia jusfilosfica que influenciou o direito comercial

    brasileiro, natural seria trazer para o texto aspectos de histria econmica que ajudaram a

    traar o perfil de nossa legislao mercantil. Entretanto, o prprio objeto da pesquisa uma

    teoria jurdica Iluminista que teria sido transplantada para o ordenamento brasileiro

    impe uma aproximao mais intelectualistado que materialista. No se pode questionar

    que, mesmo diante das ltimas orientaes metodolgicas pesquisa histrica, os aspectos

    26PETER BURKE assim se manifesta a respeito deste movimento de expanso dos campos de pesquisa dohistoriador: De acordo com o paradigma tradicional, a histria diz respeito essencialmente poltica. Naousada frase vitoriana de Sir John Seeley, Catedrtico de Histria em Cambridge, Histria a poltica

    passada: poltica a histria presente. A poltica foi admitida para ser essencialmente relacionada ao Estado;em outras palavras, era mais nacional e internacional, do que regional. No entanto, no inclua a histria daIgreja como uma instituio e tambm o que o terico militar Karl von Clausewitz entendia como acontinuao da poltica por outros meios, ou seja, a guerra. Embora outros tipos de histria a histria daarte, por exemplo, ou a histria da cincia no fossem totalmente excludos pelo paradigma tradicional,eram marginalizados no sentido de serem considerados perifricos aos interesses dos verdadeiros

    historiadores.Por outro lado, a nova histria comeou a se interessar por virtualmente toda a atividade humana. Tudo temuma histria, como escreveu certa ocasio o cientista J.B.S. Haldane; ou seja, tudo tem um passado que podeem princpio ser reconstrudo e relacionado ao restante do passado. Da a experesso histria total, to caraaos historiadores dos Annales. (A nova histria, seu passado e seu futuro, in BURKE, Peter (org.) New

    perspectives on historical writing, Oxford, Blackwell, 1991 (trad. port. Magda Lopes. A escrita da histria:novas perspectivas, So Paulo, UNESP, 1992), pgs. 10-11).A Escola dos Annales, referida por BURKE no trecho acima transcrito, , justamente, um movimento dereao ao paradigma tradicional de estudo da histria a metodologia rankeana, em referncia ao historiadoralemo LEOPOLD VON RANKE. Marca-se o incio da Escola, muito associada s novas perspectivas de estudoda histria brevemente enunciadas no corpo de texto e na transcrio acima com a fundao da revista

    Annales, em 1929, por LUCIEN FEBVRE e MARC BLOCH.

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    materiais no podem ser deixados de lado. Tais aspectos, todavia, no constituem o objeto

    diretode nossas atenes.

    Outro ponto que pode causar espanto no leitor o fato de tratarmos, como

    objeto de pesquisa, de um enunciado normativo do Cdigo Comercial j revogado peloCdigo Civil vigente. Qual o interesse no estudo de um dispositivo que j no tem

    aplicao no ordenamento? Este aspecto merece, igualmente, esclarecimentos.

    No mbito das pesquisas jurdicas, bem como nos trabalhos doutrinrios e

    manualsticos, estamos habituados a encontrarmos resenhas histricas como intritos das

    dissertaes e teses acadmicas. No grande o volume de obras especificamente voltadas

    pesquisa da histria jurdica, o que pode causar a impresso de que, na realidade, o

    estudo da Histria do Direito serve, unicamente, para justificar o direito vigente, ou para

    que se utilize o mtodo hermenutico da interpretao histrica.

    Essa impresso, no entanto, falsa. Assim como qualquer estudo de ordem

    histrica histria social, econmica, cultural, etc. a histria do direito, tendo como

    objeto de estudo uma realidade intimamente relacionada prpria existncia do homem em

    sociedade, um fim em si prprio. Como qualquer outro aspecto da vida humana, o direito

    uma realidade histrica. O conhecimento dos fatos passados, as experincias jurdicas

    ou no que formam nosso modo de vida tm uma inegvel importncia em si mesmo27.

    O ltimo ponto a ser esclarecido neste pargrafo diz respeito a uma

    derradeira questo metodolgica deste trabalho. J mencionamos acima que tratamos de

    um aspecto tcnico muito particular da dogmtica jurdica privatista a teoria francesa

    sobre a causa em seu vitual acolhidamento pelo Cdigo Comercial brasileiro de 1850.

    No pretendemos, portanto, realizar uma reconstruo totalizante de uma experincia

    jurdica. Antes de tudo, procuraremos enfocar as questes dogmticas, buscando entender

    as implicaes prticas do problema.

    27

    Nesse sentido manifesta-se FRANZ WIEACKER: Hoje, j no constitui tarefa do historiador fundamentarhistoricamente os direitos actuais, como, outrora, na Idade Mdia e at poca barroca; ou tornar possvel ainterpretao histrica do direito vigente, como ainda se pretendia na cincia jurdica do sc. XIX. Taistarefas podem ainda hoje continuar a interessar, uma vez por outra, os juristas; no entanto, elas noconstituem o objectivo directo da investigao histrico-jurdica.Dir-se-, antes, que a misso cognitiva da histria do direito como a de qualquer outra histria no sefundamenta no material previamente estabelecido dos dados e factos histricos e na sua utilidade para o

    presente, mas na historicidade da nossa prpria existncia. Na medida, porm, em que a histria do direit oacaba por recorrer necessariamente, quanto a esta questo, prpria experincia do direito, tornam-se seuobjecto quaisquer domnios da histria em que, em geral, possa ser encontrada a experincia humana dodireito. Ela acaba por ser a Histria, sob o ponto de vista da experincia humana do direito. (Cit.(nota n. 6),

    pg. 4).

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    No possvel ignorar a orientao metodolgica to bem sintetizada por

    MARIO BRETONE, em sua Histria do direito romano. O mencionado autor abre sua obra

    propondo uma abordagem que vai alm dos textos jurdico-normativos e doutrinrios, pois

    esses fornecem dados parciais sobre a experincia jurdica. BRETONE exemplifica seu

    argumento com a elaborao de um testamento, ato capital para o cidado romano: (...)

    nenhuma obra jurdica, pela sua prpria natureza, est em condies de nos restituir o

    mundo emotivo e afectivo de quem escrevia, ou fazia escrever, o prprio testamento

    (percebemos, por vezes, apenas o seu eco enfraquecido)28.

    Pginas adiante, ao discutir em que sentido se deve entender uma histria

    jurdica, BRETONE esclarece que a sociologia ou, ainda, a histria social fornece uma

    perspectiva externa que impede o historiador do direito de cair no tecnicismo, abrindo

    caminho para entendimento do papel do direito e dos juristas no sistema social global. Noentanto, o direito, mesmo observado sobre a tica da sociologia, no deixa de ser um

    fenmeno tcnico, e deve ser analisado como tal29.

    Portanto, acompanhando a orientao de BRETONE,guiar-nos-emos ao longo

    do trabalho pela premissa de que a histria social no pode deixar de acompanhar a histria

    jurdica, sob pena de se prender a tecnicismos estreis, sem qualquer relevncia na prtica

    cotidiana30. No entanto, o foco principal estar nas implicaes tcnicas do problema que

    nos propomos estudar, pois, como j salientamos, no se trata, nas dimenses deste

    28BRETONE, Mario. Storia del diritto romano, Bari, Laterza, 1987 (trad. port. Isabel Teresa Santos e HosseinSeddighzadeh Shooja,Histria do direito romano, Lisboa, Estampa, 1998), pg. 19.29 Assim se manifesta o autor: O direito, observado sociologicamente, no deixa por isso de ser umfenmeno tcnico at demasiado difcil. Ele deve ser investigado nestas suas dificuldades, nos mtodos enos processos de que se serve, nas doutrinas e nas manifestaes literrias, nas filosofias que oacompanham, nas necessidades que satisfaz (ou descura) e nos efeitos que produz sobre toda a organizaosocial. (BRETONE, Mario, op. cit.(nota 28), pgs. 29-30).30Neste sentido, eloquente o exemplo fornecido pelos historiadores PETER GARNSEY e RICHARD SALLER.Tradicionalmente, o jurista, apoiado nas fontes, enxerga a famlia romana como uma organizao autoritria,em que ao paterfamilias eram atribudos amplos poderes, inclusive de vida e de morte ( vitae necisque

    potestas), sobre seus descendentes diretos. No entanto, os referidos historiadores utilizaram- evidncias

    demogrficas para negar uma organizao familiar to centrada nopatria potestascomo estamos habituadosa conceber. A diferena de idade entre pais e filhos, em outras palavras, a distncia temporal entre umagerao e outra, era, em mdia, muito grande, de sorte que, ao tempo em que o filho, ou filha, estava apto acasar, o pai j no estava vivo e, portanto, no interferia no casamento. Alm disso, GARNSEY E SALLERanalisaram fontes literrias que demonstram que as relaes entre os familiares, especialmente entre pais efilhos, eram afetuosas e que as questes patrimoniais a respeito da formao do peculium no eramlevantadas, de modo que a questo da incapacidade do filius famlia para constituio de seu prprio

    patrimnio no tinha reflexo na vida prtica.Tais fatores resultavam, na concluso dos autores, em uma famlia muito menos autoritria e centrada no

    poder do pai do que poderia sugerir a leitura das fontes exclusivamente jurdicas. Cfr. GARNSEY, Peter;SALLER, Richard. The Roman empire: economy, society and culture, London, Duckworth, 1987, pgs. 126-147.

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    trabalho, de elaborar uma reconstruo totalizante no sentido de uma histria total, bem

    ao gosto dosAnnales-, uma vez que, nos dizeres de POPPER, transcritos por BRETONE, a

    totalidade no pode ser concebida como objectoou campoda investigao histrica31.

    11 - Plano de trabalho. Para realizarmos a anlise a que nos propomos,

    dividiremos a exposio em trs captulos. No primeiro deles lanar-se-o os olhos sobre o

    Iluminismo jurdico portugus; em seguida, no segundo captulo, procuraremos verificar as

    consequncias do Iluminismo jurdico sobre o direito mercantil e traar os principais

    aspectos da formao histrica do Direito Comercial brasileiro; por fim, o ltimo captulo

    destina-se anlise do regramento da causa no Cdigo Comercial de 1850, verificando-se,

    em um primeiro momento, as origens jusracionalistas da invalidade do contrato por falta de

    causa, e, em seguida, confirmando-se a adoo do regramento semelhante ao do Cdigo

    Civil francs no Cdigo Comercial brasileiro.

    31O autor prossegue a sua transcrio: Uma investigao determinada (e umainvestigao por definio spode ser determinada) que teria por objecto o todo: uma espcie de convite confuso, indeterminao, auma historiografia mstica (BRETONE, Mario, op. cit.(nota 28), pg 28).

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    Captulo 1 O Iluminismo jurdico em Portugal e suas consequncias emrelao metodologia de integrao de lacunas no Direito luso-brasileiro.

    Plano do Captulo O presente captulo pretende fornecer uma breve viso

    sobre os principais aspectos do Iluminismo jurdico portugus.

    O captulo ser dividido em duas partes. Na primeira delas, verificaremos de

    que forma se deu a introduo das ideias Iluministas em Portugal, por meio da obra de

    LUS ANTNIO VERNEY. Em seguida, veremos como o pensamento de VERNEY foi

    transposto para o mbito legislativo, por meio das chamadas reformas pombalinas.

    Como j vimos na Introduo, as reformas empreendidas ao longo doreinado de D. Jos I, pelas mos de seu Ministro Marqus de Pombal, tiveram forte

    inspirao iluminista e reflexos permanentes na histria do direito portugus e, tambm, do

    direito brasileiro. Especificamente em relao ao direito comercial, o 9 da Lei da Boa

    Razo dispunha ser aplicvel, como legislao subsidiria aquela boa razo, que se

    estabelece nas Leis Polticas, Economicas, Mercantis, e Maritimas das naes cultas e

    polidas da Europa; posteriormente, os Estatutos da Universidade de Coimbra de 1772 que

    realizavam a interpretao autntica do dispositivo, fixando a legislao estrangeira como

    critrio de aferio do usus modernus pandectarum.

    1.1- A introduo das ideias iluministas em Portugal: LUS ANTNIO VERNEY e oVerdadeiro Mtodo de Estudar.

    1.1.1 VERNEY, a publicao do Verdadeiro Mtodo de Estudar e as

    cartas a Eccellenza.

    1 - Os estrangeirados.A introduo do Iluminismo em Portugal deve-

    se ao grupo que ficou conhecido como estrangeirados. Eram portugueses que passaram

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    a residir fora de Portugal portanto, no estrangeiro e que desejaram ver sua ptria

    comungar do esprito de renovao que se espalhava pela Europa32.

    2 - O Verdadeiro Mtodo de Estudar.No entanto, deste grupo, nenhum

    membro merece maior destaque pelo menos no que se refere ao mbito jurdico que a

    figura de LUS ANTNIO VERNEY. Esse estrangeirado teve publicada, anonimamente, no

    ano de 1746, a obra epistolar chamada O Verdadeiro Mtodo de Estudarque, com base no

    Iluminismo italiano, enfrentava os princpais problemas verificados no ensino superior

    portugus, ligado, sobremaneira, aos Jesutas33.

    A obra foi publicada em dois tomos, totalizando dezesseis cartas. De todas,

    a que mais de perto interessa cincia jurdica a de nmero XIII. Alm do impacto

    cultural provocado pelo contedo mesmo da carta, as ideias de VERNEY nela expostas

    tiveram acolhimento legislativo nas reformas empreendidas pelo Marqus de Pombal, anos

    32 GOMES DA SILVA, Nuno Jos Espinosa, op. cit. (nota 11), pg. 461. A este respeito, LUS CABRAL DEMONCADA: Estavam na moda os memoriais e as cartas-relatrios dirigidas aos govrnos pelos homenseminentes que se achavam no estranjeiro, qusi sempre a pedido dos mesmos governos, contendo ideas esugestes que estes depois podiam aproveitar ou no; (...). (Um iluminista portugus do sculo XVIII: Lus

    Antnio Verney,So Paulo, Saraiva, 1941, pg. 33).A despeito da referncia ao grupo estrangeirado no texto, convm noticiar que, recentemente, o conceito foi

    posto em xeque pela historiografia. Conforme BRUNO FERRAZ LEAL FERREIRA, com a dissoluo dosalazarismo, observa-se cada vez mais uma abertura, entre outros adventos, ao marxismo e historiografia

    dosAnnales. O resultado, at hoje, tem sido contestao s noes que apartavam os ibricos da civilizaoda Europa clssica, bem como ideia de bloqueio da Ilustrao em Portugal. A prpria noo deestrangeirado foi revista. Jorge Borges de Macedo contestou-a, enxergando-a como uma hisptese que,embora tivesse se mantido, no corresponderia realidade. Sua fragilidade explicativa atribuda

    principalmente inexistncia de uniformidade entre os prprios estrangeirados sobre os mais diversostemas. No teriam constitudo um grupo especfico, com aes especficas. A crtica de B ORGES DEMACEDO iniciou um debate acerca da ideia de estrangeirado, havendo quem defendesse a utilizao doconceito, e outros que se bateram pelo abandono da palavra. H consenso, no entanto, quanto a ser difcilcaracterizar o grupo estrangeirado com um todo definido e orgnico. (Cfr. FERREIRA, Breno Ferraz Leal.Contra todos os inimigos. Lus Antnio Verney: historiografia e mtodo crtico , Dissertao (USP-FFLCH),So Paulo, 2009, pgs. 56-57)33A introduo primeira edio l-se o seguinte: Certo Religiozo da Universidade de Coimbra, omem muidouto, como mostra nas suas cartas; pedio a um Religiozo Italiano, seu amigo, que vivia em Lisboa; que lhedese algumas instrusoens , em todo o gnero de estudos. O que o dito Barbadinho executa, em algumas

    cartas: explicando-lhe em cada-uma, o que lhe-parece: e acomodando tudo, ao estilo de Portugal (VERNEY,Lus Antnio. O verdadeiro mtodo de estudar, tomo I, Valensa, Antonio Balle, 1746, pg. 1).Mantivemos a indicao bibliogrfica do Verdadeiro mtodocomumente usada, embora seja de notar que, narealidade, a obra no foi impressa em Valena por Antonio Balle, e nem se trata esta da primeira edio daobra. A primeira edio, impressa em Npoles, no pde circular em Portugal, por conta da proibioimposta pelo tribunal do Santo Ofcio. Diante da negativa da Inquisio, VERNEYresolveu recorrer fraude,fazendo imprimir, novamente em Npoles, seu Verdadeiro mtodo, apondo o nome de novo editor, AntonioBalle, em Valena. , justamente, esta edio que est disponvel em formato digital no stioda Biblioteca

    Nacional de Portugal, acessvel pelo seguinte endereo eletrnico: http://purl.pt/118 . A respeito da histria da publicao do Verdadeiro mtodo, veja-seANDRADE, Antonio Alberto de. Vernei e a cultura de seu tempo, Coimbra,Acta Universitatis Coninbrigensis,1966, notadamente pgs. 171 a 175.

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    mais tarde. A Carta XIII, sem dvida, constitui uma colaborao moral34 para a reforma

    pedaggica prognosticada pelo Compndio histrico sobre o estado da Universidade de

    Coimbra no tempo da invaso dos Jesutas (1771) e levada a efeito pela Reforma dos

    Estatutos da Universidade de Coimbra (1772)35.

    3 - As cartas e relatrios a Eccellenza, de 1765-1766. CABRAL DE

    MONCADA,em sua obra Um iluminista portugus do sculo XVIII: Lus Antnio Verney,

    publica, anexas, oito cartas e dois relatrios documentos, at ento, inditos trocados,

    entre os anos de 1765 e 1766, entre o autor do Verdadeiro Mtodocom uma autoridade da

    intimidade do Ministro Pombal, que o se supunha ser o Ministro Francisco de Almada e

    Mendona

    Sabe-se, contudo, aps mais acurados estudos, no se tratar do Ministro

    Almada a autoridade com quem Verney confidenciava. ANTONIO ALBERTO DE ANDRADE

    indica tratar-se do ento diplomata Ayres de S e Melo, que j havia sido, tal como

    Almada, plenipotencirio portugus na Itlia36.

    Tais documentos parecem comprovar um contato direto entre Lus Antnio

    Verney e o governo portugus. CABRAL DE MONCADA julga que deles resulta uma

    completa identidade de esprito entre as convices do sbio e a obra do estadista, e ainda

    mais do que isso, se possvel: uma plena conscincia por parte do primeiro de cumprir

    uma misso cultural e cvica transcendente, fornecendo ao Govrno do seu pas, por

    portas-travessas e sob o favor de secretos e indirectos entendimentos, muitas sugestes e

    conselhos que, - curiosa coincidncia! no tardariam em ser aproveitados e, muitas vezes,

    passado algum tempo, convertidos em lei37.

    34

    A expresso de CABRAL DE MONCADA,Lus, op. cit.(nota 32), pg. 15.35A respeito, veja-se POUSADA, op. cit(nota 4), pgs. 59-60, nota de rodap n 123. O mesmo autor conclui,mais adiante (pg. 61) que Lus Antnio Verney o responsvel mediato pelas reformas empreendidas peloMarqus de Pombal a partir da segunda metade do sculo XVIII. Isso fica evidente a partir da leitura daCarta XIIIdo Verdadeiro Mtodo de Estudar: nela so lanadas crticas ao ensino e prtica do Direito emPortugal ao mesmo tempo em que se recomenda Sua Majestade a reformulao do estudo jurdico naUniversidade de Coimbra, bem como substanciais alteraes quanto ao exerccio da prtica forense.36A anlise a respeito da personalidade destinatria das cartas de Verney est em ANDRADE,Antonio Albertode, op. cit.(nota 41), pgs. 495-498. Acompanhando a concluso de ANDRADE, no sentido de ser Ayres de So correspondente de VERNEY, veja-se FERREIRA, Breno Ferraz Leal, op. cit.(nota 32), pg. 44.37Idem, Ibidem, pgs. 16-17. Os documentos publicados por CABRAL DE MONCADA, conforme indicado nocorpo de texto, esto na mesma edio ora citada da obra sobre Verney.

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    Empreenderemos uma breve anlise das cartas e relatrios aps exposio

    dos principais aspectos ligados ao ensino e prtica do direito contidos no Verdadeiro

    Mtodo de Estudar.

    1.1.2 - Os principais aspectos ligados cincia jurdica contidos no

    Verdadeiro Mtodo de Estudar.

    A Carta XIIIdo Verdadeiro Mtodo de Estudar contm crticas em relao

    ao estado do ensino jurdico em Portugal e as principais alteraes que, no pensamento de

    Verney, deveriam ser empreendidas38.

    1- Crticas ao ensino jurdico em Portugal.

    De forma muito contundente, VERNEYinicia suas crticas ao ensino jurdico

    no Portugal de seu tempo apontando a absoluta falta de mtodo com que os estudos eram

    dirigidos na Universidade de Coimbra. Em suas palavras, o estudante s estuda depois

    que Doutor, e quer opor-se s Cadeiras. Nam digo que estuda com metodo: mas mete na

    cabesa muito texto, e suas respostas, que o que lhe-basta39.

    Em aberta oposio ao estilo escolstico-bartolista, dominante, at ento,

    para o ensino do direito, o autor aduz que a lgica formal como era ensinada ao seu tempo

    baseada no silogismo despicienda ao jurista, uma vez que acostuma o entendimento a

    mil sutilezas metafsicas sem fundamento algum; obriga o Logico, que se guia por-ela, a

    fazer o mesmo na-Lei40.

    38Utilizaremos como guia dos aspectos relevantes do Verdadeiro Mtodopara este tpico o estudo realizadopor POUSADA,Estevan Lo R, op. cit.(nota 4).39

    VERNEY, Lus Antnio, op. cit.(nota 33), tomo II, pg. 142.40 Idem, Ibidem, loc. cit.A crtica ao estudo da lgica, como realizado at ento, era uma nota comum aoperodo, como destaca JOAQUIM DE CARVALHO: Como este [o compndioInstituies dialcticas, de PEDRODA FONSECA], os outros compndios de lgica aristotlica fatigavam o esprito sem o esclarecerem, deixando

    pela vida fora a sensao da inutilidade e do tempo perdido; por isso se compreende que se tornasse objeto dechacota quem na vida real tomasse a srio o verbalismo das distines lgicas e que o mestre do infante D.Antnio, irmo de D. Joo V, o engenheiro Manuel de Azevedo Fortes (1660-1748), tivesse escrito noantelquio da Lgica racional, geomtricae analtica (Lisboa, 1744) que semelhante estudo mais servia

    para embaraar e confundir as nossas idias do que para aperfeioar as operaes do nosso entendimento, que o fim principal da Lgica. (A crtica da segunda escolstica portuguesa, introduo a LOCKE, John.Ensaio philosophico sobre o entendimento humano. Resumo dos Livros I e II, recusado pela mesa RealCensria e agora dado ao prelo com introduo e apndice, Coimbra, Biblioteca da Universidade, 1950

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    Todavia, um dos pontos centrais e que ter srios impactos nas reformas

    empreendidas na segunda metade do sculo XVIII por Pombal das crticas de VERNEYao

    ensino jurdico diz respeito primazia do direito nacional portugus. O autor observa que

    os bacharis egressos da Universidade de Coimbra colavam grau sem nunca terem lido a

    legislao ptria, pois se dava excessiva ateno ao direito romano justinianeu41.

    Como medida corretiva a esse problema, VERNEY prope uma reforma

    educacional, para valorizao do direito do Reino, nos moldes da que havia sido realizada

    na Frana por Lus XIV42.

    Outro ponto decisivo no pensamento do autor sobre o ensino jurdico

    aquele em que se defende a necessidade do estudo doDireito Natural. Logo nas primeiras

    pginas da Carta XIII, VERNEY aduz que a tica em sentido estrito considera o sumo

    bem e o modo para consegui-lo; ou expe os diversos ofcios e obrigaes do homem

    para se conformar com a reta razo, isso , a jurisprudncia natural ou universal; ou,

    quando considera as aes do homem enquanto so teis comunidade civil, a que se

    chama poltica. Toda essa normao tem a mesma origem, pois a lei natural, a lei divina e a

    lei das gentes so a mesma lei com diversos respeitos. Portanto, para o autor, claro est que

    quem no sabe jurisprudncia natural no pode entender a jurisprudncia romana.

    Justamente por no se entender esse ponto que, aduz VERNEY, no se regulam bem os

    estudos jurdicos43.

    (agora in O nascimento da moderna pedagogia: Verney, Rio de Janeiro, Documentrio/PUC-Rio, 1979, pg.20).41No-Principio do quinto-ano deve o estudante, ler o direito Portuguez, ou as leis municipais: notando ascoizas, em que diversifica do-Comum. Sem duvida digno de admirasam, que saiam os omens das-Universidades, falando muito nas leis de Justiniano, que s servem, faltando a lei municipal; e nada saibamdaquela lei, por-que se-m-de governar! Isto o mesmo que um Teologo, o qual, despois de doutorado, saisedas-escolas, sem saber os proceitos gerais, da-lei Divina (Idem, Ibidem, pg. 178). Observe-se, no entanto,que VERNEY ao apontar como mtodo adequado o histrico compendiriono despreza o estudo da histriaromana e do direito romano. O autor indicava, efetivamente, que, para compreenso da histria universalera

    imprescindvel o estudo da histria romana. Conforme o autor, seria necessrio conhecer perfeitamente ahistria romana, pois quem a-sabe bem, tem o comentrio perpetuo, da-Lei. Em seguida, VERNEY afirmaque, tendo-se lido a histria romana, deve o estudante ler a histria do Direito Civil, principalmente doDireito Civil romano (VERNEY, Lus Antnio, op. cit.(nota 33), tomo II, pg. 165)42 Muito bem a-conhecem, em outros Reinos estrangeiros, em que se-estabelecram cadeiras, do-Direitomunicipal. O que especialmente fez Luiz XIV em Fransa: cuja memoria ser eterna, na republica Literaria.Sendo admiravel naquele grande omen, que, pasando toda a sua vida ocupado, em trabalhozisimas guerras,nam ouve Rei algum no-mundo, que igualmente promovse o comercio, e as letras: pois s ele fundou mais,e mais utis Academias, que os antecedentes todos; e as melhores, que se-vejam na Europa. Emfim esteestudo, tambem se-deve fazer na Universidade: e talvez que asim se-poupasem muitas demandas, que nacem,da-ignorancia da-Lei (Idem, Ibidem, pgs. 178-179).43Idem, Ibidem, pgs. 140-141.

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    A seguir, o autor tambm indica a insuficincia do direito justinianeu na

    formao dos juristas que ocupariam funes na administrao estatal. A preocupao de

    VERNEY em relao a este aspecto est relacionada ao costume de os bacharis se

    ocuparem dos negcios do Estado, seja no mbito econmico, seja no mbito poltico.

    Neste contexto, revela-se a insuficincia do conhecimento das leis romanas para eventuais

    relacionamentos com povos de cultura diversa da europia. Diz VERNEY que, com a

    formao que recebem os homens de Estado, ao se colocar diante deles uma questo que

    envolve, por exemplo, direito de guerra, procurariam eles as solues nos textos imperiais

    romanos. Alguns, ainda, procurariam acrescentar algum texto colhido das fontes do Direito

    Cannico. No entanto, esses documentos no sero sempre suficientes. O autor oferece o

    exemplo de uma questo surgida entre uma nao europia com turcos ou com chineses.

    Argumenta VERNEY que as fontes romanas teriam para os povos de outras culturas amesma autoridade que teriam para o europeu o Alcoro ou os escritos de Confcio. Deste

    modo, mais adequado seria recorrer ao direito das gentes e ao direito natural, e no ao

    direito romano44.

    2- Propostas de alteraes no ensino jurdico.Os pensadores do sculo

    XVIII, Verney includo, tinham uma ideia muito clara do que era necessrio destruir para

    desobstruir o caminho rumo s Luzes. No entanto, a forte conscincia em relao quilo

    que deveria ser derrubado no foi acompanhada, em todas as reas, por uma nova

    construo, pela ideia do que deveria ser construdo no lugar das runas da escolstica.

    Tambm neste campo, Verney no foi exceo ao seu tempo. Registra JOAQUIM DE

    CARVALHO que Verney , fundamentalmente crtico: com rubor da vergonha e com a

    conscincia viril de quem cumpre uma boa ao decisiva, bateu-se pela renovao do plano

    44 E fundados nisto, nam tem dificuldade de rezolverem, toda controversia, sobre o direito da-Paz, e da-Guerra, dos-Patos, e tudo o mais que pode suceder, entre Nasoens, e Nasoens. Mas por-pouco que se-considere a materia, se-achar, que estes documentos nam sam bons, para rezolver tudo. Suponhamos quenace uma controversia, entre uma nasm Europeia, com os Turcos, ou Chinas, ou Malabares, sobre aviolasam da-paz, ou coiza semelhante; julga V.P. que m-de ter autoridade entre eles, as Pandetas deJustiniano, ou as Decretais, ou Moralistas? Tanta como se aqueles nos-alegasem, com o Alcoram: os outroscom Confucio, ou semelhante doutor dos-seus. Nestes cazos ou se-trate com Aziaticos, ou Europeos, ouqualquer outra gente racionavel, necesario ter promtas, nam as leis Romanas, mas as das-Gentes, ou do-direito Natural, abrasados por-todos, os que uzam da-razam: para poder mostrar, a justisa da-nosa cauza, deque se-tiram as solusoens, dos-tais cazos: e de que se-devem tirar, nam s naqueles, mas ainda nos-quesucedem, entre Nasoens cultas (Idem, Ibidem, pg. 151).

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    de estudos e pela reforma da mentalidade, mas a sua razo de militante estava mais bem

    instruda do que devia remover-se do que devia fundar-se45.

    Todavia, especificamente no que se refere cincia do direito, VERNEY

    oferece um plano claro, um novo sistema de estudo, de forma geral, bem acabado edirigido por uma firme convico intelectual. Tanto assim, que suas ideias foram postas em

    prtica em seguida, quando da reforma dos Estatutos da Universidade de Coimbra

    (1772)46.

    VERNEY, ao iniciar a exposio de seu sistema de estudar leis, aduz que,

    ao longo da histria do direito romano, os patrcios passaram a invejar os plebeus aps

    terem esses usurpado algumas magistraturas. Para se distinguirem desses ltimos e

    serem necessrios na Repblica, os patrcios inventram mil formulas novas de Direito, e

    as ocultaram com todo cuidado. A partir deste ponto que passou o estudo do direito a ser

    dificultoso47.

    Dado todo o itinerrio histrico do direito civil, patente a necessidade do

    estudo histrico para o jurista. VERNEY afirma, inclusive, que pela histria que o

    estudante deve comear o estudo da lei48.

    O autor aduz que tendo visto quais so as fontes, do Direito todo, deve

    passar a estudar a istoria Romana. E como esta nam se-pode intender bem, se intender ao

    menos, a istoria Universal; por iso deve estud-la. E no mesmo tempo tomar alguma ideia,

    da Cronologia, e seus principios: e juntamente procurar na carta Geografica, os lugares, e

    provincias, de que se-faz mensam: pois desta sorte, nam s intender melhor a Istoria; mas

    conservar perpetuamente, a memoria dela49.

    Tendo lido a histria romana, o estudante deve passar histria do direito

    civil, principalmente do direito civil romano. Com isso, estar-se-ia preparado para as

    Instituies de Justiniano, advertindo-se porem, de fugir de toda a sorte de comentarios.

    Os comentrios so prejudiciais ao estudo, pois muitos so feitos por idolatras de

    45CARVALHO, Joaquim de, op. cit.(nota 40), pg. 33.46 Ainda na esteira das lies de JOAQUIM DE CARVALHO, deve-se observar que a palavra sistema, comoempregada no texto, deve ser entendida em sentido amplo, uma vez que, por se colocar contra os grandessistemas da escolstica, a atitude deVERNEYcomo filsofo consistiu em proclamar que no tinha Filosofia,quer se entenda por esta palavra a ordenao em um sistema de um conjunto de pensamentos relacionadosentre si com travao lgica, que o desabrochamento da problematicidade, isto a transformao em

    problema do que passa despercebido ou se d como indubitado. (Cit.(nota 40) pg. 36).47VERNEY, Lus Antnio, op. cit.(nota 33), tomo II. 161.48Idem, Ibidem, pg. 164.49Idem, Ibidem, pg. 165.

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    Justiniano, que supem que o Imperador teve revelaes divinas e, por isso, nunca

    afirmam que sua obra tem falhas e incongruncias; ao contrrio, querem justificar tudo50.

    Portanto, aps a formao histrica preparatria, o estudante deveria lanar-

    se ao estudo das Leis Imperiais em uso, despidas de qualquer comentrio, e expostas deacordo com a sua ordem natural51.

    Ao longo das crticas e propostas contidas na Carta XIII, VERNEY revela sua

    preferncia pelo mtodo histrico compendirio, que deveria substituir o estilo escolstico

    bartolista.

    O que foi apregoado por Verney ao longo da Carta XIII do Verdadeiro

    Mtodo de Estudarencontrou guarida nas reformas pombalinas, principalmente na Lei da

    Boa Razo e na Reforma Universitria de 1772, por meio de que se levou a efeito

    importantes modificaes no ensino jurdico e no sistema de direito subsidirio ao

    ordenamento portugus52.

    1.1.3 - Cartas e relatrios dirigidos por LUS ANTNIO VERNEY a

    Eccellenza.

    1 - O papel de Verney nas reformas pombalinas.A anlise da Carta XIIIdo Verdadeiro Mtodo de Estudar sem dvida revela uma evidente conexo espiritual

    50Idem, Ibidem, pgs. 166-167.51Cfr. POUSADA, Estevan Lo R, op. cit.(nota 4), pg. 65. A respeito do uso modernodo direito romano,VERNEY afirma que no pode o jurista ler apenas a lei romana, pois sem duvida, que a experiencia mostra,que, sem a noticia de outras coizas, nam poder no-estilo prezente, julgar de muitas daquelas leis, que foramfeitas para outro estilo: a mudansa dos-costumes, e governos cauza, que muitos oje nam sirvam. Ja namtemos os mesmo magistrados, e oficiais publicos. Nam se-fala ja de servos no mesmo sentido, demanumisoens, libertos, libertinos, colonos, censitos, e outras especies de agricultores: nem de veteranos, eoutros uzos da-guerra. O ptrio poder nam tem oje, o mesmo vigor. Tudo isto oje inutil: e por-isso se

    querem outras noticias (VERNEY, Lus Antnio.Verdadeiro, op.cit. (nota 33), pgs. 176-177).Sobre a reduo das leis imperiais a sua ordem natural, VERNEYaduz que Quando o moso vai lendo, podenotar, os que sam de maior utilidade, e por-lhe um final; para se-aplicar a eles, com o tempo. Mas o principal

    ponto est, em reduzir as Leis, sua ordem natural; como deviam ser dirigidas, se acazo Triboniano, e seuscompanheiros conhecesem, (que certamente nam conhecram) aquilo a que ns chamamos, Metodo (Idem,Ibidem, pg. 171).52Neste sentido, ESTEVAN LO R POUSADA:Conforme indica ESTEVAN LO R POUSADA, o preconizado

    por Lus Antnio Verney foi efetivamente implementado pelo Marqus de Pombal, notadamente atravs daLei de 18 de agosto de 1769, do Compndio histrico sobre o estado da Universidade de Coimbra de 1771edosNovos Estatutos Universitrios de 1772, por meio dos quais importantes reformas foram promovidas nosmbitos do direito subsidirioe do ensino jurdico52 (Cit. (nota 4), pg. 66).

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    entre o pensamento de seu autor e as reformas empreendidas na segunda metade do sculo

    XVIII pelo Ministro Pombal.

    No pode e nem se pretende relativizar o papel do Verdadeiro Mtodo

    na introduo das ideias Iluministas em Portugal. No entanto, no dizer de C ABRAL DEMONCADA, depois de lidas estas cartas, dificilmente poder deixar-se de concordar com

    Camilo, quando o grande escritor, no seu Perfil do Marqus, chamou a Verney o mais

    fecundo orculodo grande estadista53.

    No possvel, no entanto, valorizar excessivamente o papel destas cartas e

    relatrios nas reformas da segunda metade do sculo XVIII. O prprio Verney queixa-se,

    em carta datada de 8 de fevereiro de 1786, dirigida ao Padre Joaquim de Foyos, que teve a

    chance de iluminar a nao portuguesa, mas que nunca lhe haviam sido dados os meios

    para tanto54.

    Ou seja, apesar de as correspondncias revelarem a existncia de mais do

    que uma conexo espiritual entre Verney e as reformas pombalinas, o papel do

    estrangeirado no direcionamento das reformas tem que ser realizado com cautela.

    As cartas e relatrios tratam de assuntos muito diversos, como veremos a

    seguir. Todavia, alguns dos principais pontos envolvidos nas reformas no tm lugar nas

    correspondncias, tendo sido expostos por VERNEY apenas no Verdadeiro Mtodo de

    estudar.

    Dada a importncia histrica dos documentos, bem como as poucas anlises

    sobre eles empreendidas nas pesquisas jurdicas, passaremos a uma breve exposio de seu

    contedo, procurando estabelecer as conexes pertinentes com as reformas pombalinas.

    53CABRAL DE MONCADA, Lus, op. cit.(nota 32), pg. 16.54Esclarece VERNEY, na mencionada carta, como Portugal, por meio de seus Ministros, o deixou sem meios

    de cumprir aquilo que julgava ser sua misso: E como tinha composto obras em todas as faculdades (tirandomedicina) para uso da nosa nasam, e tinha gasto muito dinheiro niso, e no tinha as rendas necesarias paratantos gastos, foi necesario que parese, e me puzese a observar o que l e c faziam, para assim ver o que eudevia fazer. E deste modo ficamos parados por alguns anos, nos quais porem eu fui sempre limando algumasobras. Escrevi entam de Pisa ao Marqus de Pombal, que tendo-me o Rei D. Jos prometido de me pagar aimpresam de todas as minhas obras, como j tinha pago os primeiros tres tomos (Apparatus ad Phil., De relogica e De re metaphysica), de que lhe nomeava as testemunhas, madase verificar a ditar ordem para aFisica. Mas o Marqus no respondeo nada, e somente me nomeou pouco depois (carta regia de 13 de abrilde 1768) Secretario Regio para servir a Corte com o Ministro Almada, que entam tornou para c (Carta de 8de fevereiro ao Padre Joaquim Foyos, in CABRAL DE MONCADA, Lus, op. cit.(nota 32), pg. 146).Convm mencionar que ANTONIO ALBERTO DE ANDRADEquestiona ser o Padre Joaquim Foyos o verdadeirodestinatrio da carta de 8 de fevereiro de 1786. As razes para tanto esto na op. cit.(nota 33), pgs. 498-499.

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    2 - Viso geral do contedo das cartas.55 Como j acenamos acima, as

    cartas tratam de assuntos diversos entre si. A nota comum a todas elas, no entanto, a

    constante crtica aos jesutas, a quem Verney atribua a responsabilidade por toda sorte de

    males do reino e de sua vida pessoal

    Com efeito, na carta de 17 de julho de 1765, Verney aponta os efeitos

    nocivos que a educao no molde dos Jesutas operava nos prncipes, especialmente no que

    se refere m gesto do errio pblico. Para VERNEY, o soberano agia, em muitas

    localidades, como titular do dinheiro pblico, quando, na verdade, deveriam comportar-se

    como meros administradores, visando somente a vanta