Diversidade Na Perspectiva de Paulo Freire

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V Colquio Internacional Paulo Freire Recife, 19 a 22 - setembro 2005.

A FORMAO DE PROFESSORES PARA A DIVERSIDADE NA PERSPECTIVA DE PAULO FREIREAbigail Guedes Magalhes1 Anderson dos Santos Romualdo2 Maria Cristina Garcia Lima3 Regina Coeli Barbosa Pereira4 Smya Petrina Pessoa de Oliveira5 RESUMOA discusso sobre a formao de professores nos leva a refletir uma educao acessvel a todos e que respeite as peculiaridades humanas, o que nos remete ao pensamento de Paulo Freire. Torna-se necessria uma (re)significao nos diversos segmentos sociais e a escola, como uma instituio inserida numa sociedade plural e cambiante, discute a possibilidade de mudana, buscando romper com os entraves pelos quais a educao vem passando. Na realizao de uma prtica escolar inclusiva devem-se considerar os sujeitos historicamente constitudos como seres capazes da transformao e com direito a participar do processo de construo do mundo. O objetivo de nosso trabalho oportunizar aos educadores uma reflexo crtica da historicidade do processo educacional, visando uma educao humanista, que tem como um de seus principais pilares a realizao de uma prxis voltada para a diversidade. Palavras-chave: Formao de professores diversidade educao. Se a educao sozinha no transforma a sociedade, sem ela tampouco a sociedade muda. Se a nossa opo progressista, se estamos a favor da vida e no da morte, da eqidade e no da injustia, do direito e no do arbtrio, da convivncia com o diferente e no de sua negao, no temos outro caminho se no viver plenamente a nossa opo. Encarn-la, diminuindo assim a distncia entre o que fizemos e o que fazemos. (FREIRE, 2000, p. 67).

Nos dias atuais os debates sobre a educao para a diversidade fazem-se cada vez mais intensos pela urgncia das mudanas que se fazem necessrias e que oportunize uma educao para todos. Dessa forma, buscamos discutir uma prtica que compreenda o desenvolvimento do sujeito numa dimenso histrica, social e cultural que atenda as suas peculiaridades e respeite as diferenas. Buscamos, assim, na pedagogia humanista esses fundamentos cuja reflexo Paulo Freire (2003) denomina como prtica-educativo-progressista, que deve se desenvolver baseada numa relao de autonomia do educando, ou seja, transformar sua curiosidade ingnua e crtica em conhecimento. Compreender o desenvolvimento da conscincia crtico-reflexiva como uma caracterstica de construo faz parte de uma tica universal. Mas ser que ns educadores e educadoras estamos preparados para exercer essa prtica crtico-reflexiva? Ao discorrer sobre essas questes, Freire (2003) nos esclarece que:

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Especialista em Educao. Ncleo de Educao Especial da UFJF ([email protected]). Graduando em Pedagogia pela UFJF e bolsista IC/CNPq ([email protected]). 3 Graduanda em Pedagogia pela UFJF e bolsista PIBIC-UFJF/CNPq. ([email protected]). 4 Doutora em Filosofia. Professora da UFJF ([email protected]). 5 Graduanda em Pedagogia pela UFJF ([email protected]).

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No possvel pensar os seres humanos longe sequer da tica, quanto mais fora dela. Estar longe ou pior, fora da tica, entre ns, mulheres e homens uma transgresso. por isso que transformar a experincia educativa em puro treinamento tcnico amesquinhar o que h de fundamentalmente humano no exerccio educativo: o seu carter formador. Se se respeita a natureza do ser humano, o ensino dos contedos no pode dar-se alheio formao moral do educando. (p.33).

Nesse aspecto, temos que considerar a tica presente tambm nas aes e relaes do nosso cotidiano escolar que se fortalece nas atitudes e comportamentos vivenciados quando permitimos que o educando ou a educanda atue como ser histrico-social escolhendo, intervindo, criticando, rompendo, comparando, e tomando decises. Sendo assim, a problematizao das questes deve ser debatida no coletivo de nossas salas de aula e apoiarem-se no respeito s opinies do outro. Neste sentido, Freire (2001) ressalta que a tarefa fundamental do educador e da educadora :[...] uma tarefa libertadora. No para encorajar os objetivos do educador e as aspiraes e os sonhos a serem reproduzidos nos educandos, os alunos, mas para originar a possibilidade de que os estudantes se tornem donos de sua prpria histria. assim que eu entendo a necessidade que os professores tm de transcender sua tarefa meramente instrutiva e assumir a postura tica de um educador que acredita verdadeiramente na autonomia total, liberdade e desenvolvimento daqueles que ele ou ela educa. (p.78).

Quando aprofundamos essa discusso compreendemos que a construo do conhecimento se faz de forma mais dinmica, em ambientes heterogneos, onde a diferena seja percebida como aspecto positivo no processo educativo. As diferenas de gneros, etnias, religiosas e outras passaro a ser consideradas como fatores desencadeantes de novos construtos. Os embates e conflitos decorrentes desse novo momento onde se estabelecem as mudanas nos apontaro para um fazer coletivo diferenciado e, conseqentemente, para a busca de metodologias que atendam a todos os alunos. Ao afirmar que formar muito mais que puramente treinar o educando no desempenho de destrezas (FREIRE, 2003, p.14), Freire nos convida a repensar nossa prtica educativa. necessrio que o professor assuma-se como sujeito da produo do saber e saiba que ensinar no transferir conhecimentos, mas criar possibilidades para a sua construo. Portanto, formar e ser professor, uma relao de comunho, aceitao de valores inerentes a cada sujeito de aprendizagem envolvido nesse processo. Uma adequada formao do professor de fundamental importncia para o exerccio de sua prtica, pela postura que ir adotar no encaminhamento de suas aes. Nos ltimos anos, essa formao tem passado por uma reviso crtica substantiva, uma vez que muito se tem questionado sobre o papel da educao na sociedade e a falta de clareza sobre a funo do educador. Isso remete questo da formao tradicional dos educadores que acontece desvinculada da situao poltico-social e cultural do pas e que considera o professor como um especialista em contedos, um transmissor de saberes acumulados, desvinculados da realidade do aluno e do contexto social mais amplo.

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No incio dos anos 70, essa formao apresentou um carter simplesmente instrumental, como conseqncia da influncia do desenvolvimento tecnolgico e cientfico. A educao se constitua em elaborao e execuo de planos de ensino dentro de uma viso sistmica. O professor foi transformado em um simples transmissor acrtico e mecnico de conhecimentos e informaes. Sua formao ficou reduzida aquisio de instrumentos que propiciassem a transmisso desse contedo. A nfase exclusiva no treinamento tcnico do professor acabou prejudicando sua formao profissional. Este aprendeu como fazer, mas no aprendeu para que fazer. A partir dos anos 80 surge um movimento de conscincia poltica e cultural no pas e ao mesmo tempo emerge a necessidade do professor estar ciente de seu papel de agente sciopoltico. Foi preciso analisar e redimensionar a funo da dimenso pedaggica do ensino, neste novo contexto. E ainda superar a preocupao maior com a modernizao de mtodos de ensino e recursos tecnolgicos para se preocupar com as novas funes sociais e polticas da educao. A perspectiva crtica educacional fez com que essa formao tomasse novos rumos. O discurso do compromisso poltico do professor, a procura de novas alternativas de competncia, a conscientizao sobre o seu papel e da educao para a sociedade passaram a ser a principal preocupao dos envolvidos com a tarefa docente. O questionamento dos educadores apontava para o que seria uma competncia profissional englobando a dimenso poltica do ato pedaggico. Neste sentido, Freire (2003) nos remete a seguinte reflexo:E que dizer de educadores que se dizem progressistas mas de prtica pedaggicopoltica eminentemente autoritria? No por outra razo que insisti tanto, em Professora sim, Tia no, na necessidade de criarmos, em nossa prtica docente, entre outras, a virtude da coerncia. No h nada talvez que desgaste mais um professor que se diz progressista do que sua prtica racista, por exemplo. interessante observar como h mais coerncia entre os intelectuais autoritrios, de direita ou de esquerda. Dificilmente, um deles ou uma delas respeita e estimula a curiosidade crtica nos educandos, o gosto da aventura. Dificilmente contribui, de maneira deliberada e consciente, para a constituio e a solidez da autonomia do ser do educando. De modo geral, teimam em depositar nos alunos apassivados a descrio do perfil dos contedos, em lugar de desafi-los a apreender a substantividade dos mesmos, enquanto objetos gnosiolgicos, somente como os aprendem. (p.109-10).

Ser sujeito de experincia no somente ser sujeito de informao, de opinio, do trabalho, do saber, do julgar, do fazer, do poder, do querer, pois, o verdadeiro sentido de experincia se fundamenta no dilogo, que permite que haja transformao dos sujeitos envolvidos nesse processo. saber escutar, refletir, apreender a lentido, dialogar com o outro, para enxergar neste a diversidade dos saberes, tendo conscincia de que somos seres inacabados enquanto estivermos convivendo e experimentando com o outro o prazer da busca do conhecimento. Este conhecimento sempre vir a somar na formao humana, jamais podendo defini-la. Os homens ento, dotados de uma racionalidade, esto a cada momento em busca de ser mais, em busca de sua prpria compreenso enquanto sujeitos scio-histrico-interacionistas. Portanto, Freire entende os homens e mulheres como seres inconclusos, ou seja, em constante processo de busca e construo. E ainda os reconhece como:

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[...] seres que esto sendo, seres inacabados, inconclusos em e com uma realidade que, sendo histrica tambm, igualmente inacabada. Na verdade, diferentemente dos outros animais, que so apenas inacabados, mas no so histricos, os homens se sabem inacabados. Tm a conscincia de sua inconcluso. (FREIRE, 2002, p. 723).

E esse inacabamento, ou melhor, a conscincia dele, condio sine qua non do ser humano. E a partir desta conscientizao, o homem e a mulher possibilitam a abertura para buscar em seu interior sua prpria transformao; tornam-se mais crticos para o enfrentamento das situaes-limites que lhes so impostas socialmente. Nas palavras de Freire (2003): na inconcluso do ser, que se sabe como tal, que se funda a educao como processo permanente. Mulheres e homens se tornaram educveis na medida em que se reconheceram inacabados. No foi a educao que fez mulheres e homens educveis, mas a conscincia de sua inconcluso que gerou sua educabilidade. tambm na inconcluso de que nos tornamos conscientes e que nos inserta no movimento permanente de procura que se alicera a esperana. No sou esperanoso, disse certa vez, por pura teimosia, mas por exigncia ontolgica. (p.58).

Para apreendermos este sentido de experincia preciso entender que a aprendizagem se d nas interaes, nas interlocues, nas trocas, portanto, a nossa busca constante e no passageira, enquanto sujeitos inconclusos e abertos a desvendar os saberes que a experincia tem a nos oferecer. Freire (2002) nos aclara essa questo do ser inconcluso, em especial educador ou educadora e sua prxis, quando diz que:A se encontram as razes da educao mesma, como manifestao exclusivamente humana. Isto , na inconcluso dos homens e na conscincia que dela tm. Da que seja a educao um quefazer permanente. Permanente, na razo da inconcluso dos homens e do devenir da realidade. Desta maneira, a educao se re-faz constantemente na prxis. Para ser tem que estar sendo. (p.73).

O ser ex-posto na experincia corre o risco de ser transformado por esta, pois, se ele no consegue problematizar as aes do cotidiano escolar, ele no internalizar estas transformaes, nunca ter sensao de completude. O sujeito de experincia corre o perigo de se indignar, ou seja, no se conformar com a situao posta, buscando sempre respostas s suas indagaes, nunca se acomodando. Portanto, experincia no prtica, pois essa nem sempre est sensvel e reflexiva ao momento vivido. A formao de um profissional competente, necessrio s novas condies econmicas, polticas, sociais e culturais do pas exige um preparo adequado. As dimenses tcnica e poltica da educao tornam-se os elementos norteadores das propostas de ensino. A escola hoje requisita um professor que expresse em seu fazer pedaggico as dimenses humana, tecnolgica e poltica e que seja capaz de visualizar os efeitos sociais do trabalho pedaggico e dos condicionamentos que nele interferem, que saiba selecionar criticamente as orientaes de sua prxis. A preocupao bsica na formao de professores no pode ser somente a de lhes oferecer os contedos das disciplinas pedaggicas, mas tambm a de preparar profissionais 4

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comprometidos com um projeto de sociedade voltado para a construo do homem integral tico, esttico, poltico e social. A competncia tcnica e o compromisso poltico do professor certamente eliminar de sua prtica o subterfgio de culpar somente o aluno pelo fracasso escolar e excluir aqueles que apresentem dificuldades de aprendizagem. H urgncia em preparar educadores aptos a enfrentar os desafios colocados por uma sociedade em mudana. Ser educador nesta nova dimenso significa comprometimento com a construo de uma nova realidade. preciso formar o professor restaurando-lhe o seu ser docente, no sentido ontolgico para que possa exercer uma prtica humanizada. A prtica pedaggica se desenvolve como instrumento de manuteno ou transformao do status quo. A formao do professor pode significar a tentativa de modificar ou manter no somente o trabalho pedaggico-educativo, mas tambm o processo histrico da sociedade como um todo. Freire faz uma crtica pedagogia tradicional denominada por ele educao bancria, sendo esta o exerccio de uma prtica massificadora, de treinamento, na qual os educandos tornamse meros receptores de contedos que so depositados pelos educadores de forma a manter os primeiros margem do conhecimento e de sua razo de existir. Nesta educao, a relao existente entre os envolvidos no processo ocorre verticalmente, j que os educandos transformam-se em reprodutores e copiadores, ou seja, sujeitos a-crticos, tendo o discurso do educador como verdade absoluta, no intervindo no processo educacional em momento algum. Freire (2002) ressalta que este tipo de educao:[...] conduz os educandos memorizao mecnica do contedo narrado [...] os transforma em vasilhas, em recipientes a serem enchidos pelo educador. Quanto mais v enchendo os recipientes com seus depsitos, tanto melhor educador ser. Quanto mais se deixarem docilmente encher, tanto melhores educandos sero. Desta forma, a educao se torna um ato de depositar, em que os educandos so os depositrios e o educador o depositante (p.58).

Contrapondo-se a esta prtica, Freire prope uma educao problematizadora, que forme um sujeito crtico, participativo e atuante na sociedade com o objetivo de transform-la para que todos tenham iguais oportunidades. Esta a educao libertadora que Freire defende como justa e igualitria e que desperta no indivduo a sua vocao ontolgica, ou seja, ser sujeito de sua prpria realidade. Nesta perspectiva, a relao existente horizontal, pois a troca de experincias e conhecimentos entre educador e educando constante, e um no se sobrepe ao outro. Nas palavras de Freire (2002):No seria possvel educao problematizadora, que rompe com os esquemas verticais caractersticos da educao bancria, realizar-se como prtica da liberdade, sem superar a contradio entre o educador e os educandos. [...] Desta maneira, o educador j no o que apenas educa, mas o que, enquanto educa, educado, em dilogo com o educando que, ao ser educado, tambm educa. Ambos, assim, se

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tornam sujeitos do processo em que crescem juntos e em que os argumentos de autoridade j no valem. (p. 68).

A prtica pedaggica no comporta mais o ato de depositar ou de apenas transmitir conhecimentos e valores que condicionam o aluno a uma viso parcializada da realidade. Ela deve se estabelecer a partir do conhecimento existente, elaborando novos conhecimentos. Assim, esta prtica se transforma em uma situao gnosiolgica, com o desenvolvimento de uma postura ativa e co-participante dos sujeitos nela envolvidos. Por ser tarefa de sujeitos, o conhecimento exige ao e reflexo do homem sobre o mundo, sobre a realidade em que vive. A reflexo leva os alunos a assumirem uma postura crtica diante dos problemas com os quais se deparam no dia-a-dia. Para Freire (1981), o ato de conhecer envolve um movimento dialtico que vai da ao reflexo sobre ela e desta a uma nova ao para o educando conhecer o que antes no conhecia, deve engajar-se num autntico processo de abstrao por meio do qual reflete sobre a totalidade ao-objeto, ou, em outras palavras, sobre formas de orientao no mundo (p.50). Todo problema requer contextualizao. Ele no pode ser analisado de modo parcial, isoladamente, mas numa perspectiva global, relacionando-se o aspecto em questo com o contexto no qual acontece. A problematizao elimina a memorizao e a repetio mecnica dos conhecimentos e faz com que o aluno perceba a realidade dos fatos de forma mais aprofundada. a problematizao, portanto, que torna autntica a aprendizagem e propicia o domnio do conhecimento de forma efetiva. A conscientizao possibilita ao aluno inserir-se no processo histrico; reconhecer que o homem faz a histria e que capaz de mudar o seu rumo. Conforme Freire (1980), a conscientizao produz a desmitologizao, ou seja, propicia ao educando reconhecer os mitos que camuflam a realidade social para melhor decifr-la. A conscientizao acontece quando se ultrapassa a simples apreenso do fato, para analis-lo de forma crtica. Quando se permite aflorar a conscincia racional o homem passa a orientar suas aes pelo pensamento, por meio da lgica. Dessa forma, educar pela conscientizao significa possibilitar a busca de plenitude da condio humana. Segundo Freire (2002):Somente o dilogo, que implica um pensar crtico, capaz, tambm, de ger-lo. Sem ele no h comunicao e sem esta no h verdadeira educao. A que, operando a superao da contradio educador-educandos, se instaura como situao gnosiolgica, em que os sujeitos incidem seu ato cognoscente sobre o objeto cognoscvel que os mediatiza. (p.83).

Agindo assim, o educador possibilita ao aluno a oportunidade de elaborar seu pensamento, aprofundar a compreenso que tem de si, do outro, do mundo, do contexto social mais amplo. Este mtodo de ensino dialgico acompanha algo da maiutica socrtica6, fazendo com que o6

O mtodo socrtico, como denominado, consiste numa dialtica, em que a discusso se desenvolve em dois tempos, - a ironia e a maiutica. A ironia socrtica consiste em perguntar, fingindo desconhecer o assunto (= dvida fictcia e metdica), com vistas a refutar a tese contrria e preparar a tese verdadeira. A maiutica (de: "4 , b T = parir) de Scrates conduz o interlocutor a descobrir paulatinamente o conhecimento sobre o objeto de discusso. No caso de Scrates que

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aluno por si, sob orientao do professor possa elaborar conhecimento, adquirir informaes. A reflexo, a conscientizao, s podem acontecer por meio do dilogo do qual o educador dever fazer uso constante. Na medida em que a prtica educativa no pode acontecer pela simples transferncia acrtica do conhecimento, o dilogo torna-se, portanto, elemento imprescindvel para o processo educativo. Ele se constitui no encontro de sujeitos interlocutores na busca da compreenso e significao para o conhecimento que se desvela. Acontece com a co-participao de sujeitos no ato de pensar. na dialogicidade e na problematizao que educador e educando, conjuntamente, adquirem uma postura crtica e o domnio do conhecimento. De acordo com Freire (2003), no pode haver dilogo se no h humildade e se no se reconhece a possibilidade de uma constante troca com o outro. O autor nos questiona:Como posso dialogar, se alieno a ignorncia, isto , se a vejo sempre no outro, nunca em mim?

Como posso dialogar, se me admito como um homem diferente, virtuoso por herana, diante dos outros, meros isto, em quem no reconheo outros eu?Como posso dialogar, se me sinto participante de um gueto de homens puros, donos da verdade e do saber, para quem todos os que esto fora so essa gente, ou so nativos inferiores? Como posso dialogar se parto de que a pronncia do mundo tarefa de homens seletos e que a presena das massas na histria sinal de sua deteriorao que devo evitar? Como posso dialogar, se me fecho contribuio dos outros, que jamais reconheo, e at me sinto ofendido com ela? Como posso dialogar se temo a superao e se, s em pensar nela, sofro e definho? (p. 80-1).

pelo dilogo que o professor vai fazer com que o aluno caminhe, desenvolva seu raciocnio, tome posicionamentos. Mas, em Freire, o dilogo no exclui o conflito, e sim, ativa discusses, solicita participao e presena do educando. O dilogo no uma discusso polmica nem mesmo hostil entre o educador e o educando, mas o elemento bsico da conscientizao, da busca do saber, da verdade. uma ao conjunta, que requer envolvimento de todos os envolvidos no processo ensino-aprendizagem. Para isso, o professor precisa ter atitude de abertura, de aceitao do outro com sua subjetividade. Da o que se pe em evidncia a unidade educador-educando, num processo de intercomunicao. O professor que tem respostas prontas obriga o aluno a se calar, elimina o dilogo e estabelece uma relao de poder entre eles, ao mesmo tempo em que bloqueia a capacidade de pensar do educando, ou melhor, sua capacidade de ser. Com a chamada quebra de paradigmas, deflagradas na Modernidade e refletidas na atual sociedade, muitas das prticas educacionais que por vezes se mostraram puramente tecnicistas, vieram tona nas discusses de toda a esfera educacional. E, no que tange aos indivduos envolvidos nesse processo, os educandos passaram a ser vistos, por uma correntesupunha haver idias inatas, a maiutica consistia, mais precisamente, em fazer recordar, despertando os conhecimentos virtualmente possudos. [...]. Alm disto, a maiutica era caracterizada pela sua concepo inatista, bem como pelo fato de hav-la denominado em funo profisso de sua me, que era parteira. (http://www.cfh.ufsc.br/~simpozio/ novo/2216y098.htm).

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progressista, como agentes da transformao social, ou seja, como seres-sujeito do quefazer. Sendo assim, a questo da individualidade impulsionou, ou ao menos abriu espao para uma reflexo crtica, um novo olhar dos educadores, que at ento mantinham a idia de classe homognea. Cada ser dotado de individualidade, contexto social e, principalmente, um fato que essencial na educao, cada educando tem seu nvel de desenvolvimento. Conseqentemente, uma classe escolar heterognea em todos os seus aspectos. Os alunos considerados fora dos padres socialmente estabelecidos de normalidade, em face de um pensamento conservador, ficam marginalizados, estereotipados, segregados do convvio com os ditos normais. Em algumas sociedades, ser negro, ser velho, ser mulher, ser criana, ser deficiente etc., representou ao longo dos tempos e ainda representa uma condio de subalternidade de direitos e desempenho de funes sociais. As diversas formas de discriminao so reflexos da padronizao social, que ingenuamente explicada, por uma viso caritativa ou mesmo de proteo, chegando at no discurso em prol da segregao para se fazer um treinamento para posterior convvio social. nesse contexto de discriminao que Freire se posicionou contra todo um sistema social que exclui um indivduo mediante um fator peculiar do sujeito. Isto uma perversidade do homem moderno. Freire (2003) declarou que:Aceitar e respeitar a diferena uma dessas virtudes sem o que a escuta no se pode dar. Se discrimino o menino ou menina pobre, a menina ou o menino negro, o menino ndio, a menina rica; se discrimino a mulher, a camponesa, a operria, no posso evidentemente escut-las e se no as escuto, no posso falar com eles, mas a eles, de cima para baixo. Sobretudo, me probo entend-los. Se me sinto superior ao diferente, no importa quem seja, recuso-me escut-lo ou escut-la. O diferente no o outro a merecer respeito um isto ou aquilo, destratvel ou desprezvel. (p. 1201).

Na realizao de uma prtica escolar inclusiva devem-se considerar os sujeitos historicamente constitudos como seres capazes da transformao e com direito a participar do processo de construo do mundo. Para isso torna-se necessria a construo de uma nova tica. Neste sentido, Freire (2003), em relao tica universal esclarece que:Quando, porm, falo da tica universal do ser humano estou falando da tica enquanto marca da natureza humana, enquanto algo absolutamente indispensvel convivncia humana. Ao faz-lo estou advertido das possveis crticas que, infiis ao meu pensamento, me apontaro como ingnuo e idealista. Na verdade, falo da tica universal do ser humano da mesma forma como falo de sua vocao ontolgica para o ser mais, como falo de sua natureza constituindo-se social e historicamente no como um a priori da Histria. (p.18).

Dessa forma, compreender o conceito de incluso em seu sentido amplo significa reestruturar a nossa prxis, reavaliar as interaes do nosso cotidiano escolar e adequ-las realidade social e cultural de nossos alunos. A escola inclusiva deve ser aquela que busca construir no coletivo uma pedagogia que atenda a todos os alunos e que compreenda a diversidade humana como fator impulsionador dessa nova forma de organizar as aprendizagens. 8

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Se um dos princpios da incluso a celebrao das diferenas, entend-la como agente de transformao de nossa realidade educacional respeitar nos educandos suas singularidades. fazer do nosso espao escolar o lugar onde as experincias coletivas sejam vivenciadas considerando as atitudes ticas adotadas pelo grupo como condies indispensveis, capazes de promover mudanas significativas nos processos sociais. Entretanto, para isso, torna-se necessrio investir na formao de professores no sentido de aprofundar os questionamentos de como realizar uma prtica escolar que acompanhe as mudanas ocorridas em decorrncia dos avanos trazidos, sobretudo pelas novas tecnologias que nos oferecem outra forma de cognio e conseqentemente outras formas de relaes sociais. A concepo de educao tradicional que se apia na idia de padro, de homogneo no se insere mais nesse espao-tempo que estamos acompanhando hoje. Assim, compreender o verdadeiro papel de um educador ou uma educadora progressista, com vistas a realizar uma pedagogia que atenda a todos os alunos significa formar para o mltiplo e para o heterogneo, ou seja, conscientizar-se da necessidade de adotar uma nova concepo de educao. No entanto, para realiz-la, precisamos rever nossos planejamentos curriculares, nosso sistema de avaliao, a funo de seus administradores, a importncia da formao continuada dos professores, e a relao professor/aluno, considerando em todas elas os conceitos da tica nas relaes, que devem direcionar os pilares dessa nova escola. Essa proposta de uma nova formao docente encontra em Paulo Freire uma vasta argumentao considerando que os fundamentos de sua obra apiam-se em pilares que norteiam a realizao de uma educao para todos. As categorias estruturais do pensamento freireano discutem as prticas desenvolvidas no espao escolar considerando a historicidade, o dilogo, a conscientizao, a inconcluso, a utopia (indito vivel), a comunho e a libertao como realidades que devero permear todo o trabalho do educador ou da educadora com vistas a essa construo baseando-se no respeito s diferenas sociais, culturais, tnicas e adequando-as ao espao-tempo atual. REFERNCIAS BONDA, Jorge Larrosa. Notas sobre a experincia e o saber de experincia. Disponvel em: . Acesso em 21 jul. 2005. (traduo: Joo Wanderley Geraldi). FREIRE, Paulo. Extenso ou Comunicao. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: saberes necessrios prtica educativa. So Paulo: Paz e Terra, 2003. FREIRE, Paulo. Pedagogia da Indignao: cartas pedaggicas e outros escritos. So Paulo: UNESP, 2000. FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002. FREIRE, Paulo. Pedagogia dos sonhos possveis. So Paulo: UNESP, 2001. PAULI, Evaldo. Segundo Perodo da Filosofia Antiga. In: Enciclopdia Simpozio. Disponvel em: < http://www.cfh.ufsc.br/~simpozio/novo/2216y098.htm > Acesso em: 25 jul. 2005.

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CONCEPO DIALGICA E AS NTICS: A EDUCOMUNICAO E OS ECOSSISTEMAS COMUNICATIVOSAdemilde Silveira Sartori1 Maria Salete Prado Soares RESUMOAlicerce do pensamento latino-americano sobre a inter-relao comunicao e educao, Paulo Freire iluminou as bases de um novo modelo comunicacional considerado por Jess MartnBarbero como a primeira teoria latino-americana de comunicao. Paulo Freire desponta como o educador que definiu bases slidas para gestar os espaos dos ecossistemas comunicativos, pois sua teoria dialgica, baseada em colaborao, unio, organizao e sntese cultural, aproxima-se do conceito de Educomunicao. A Educomunicao um campo terico-prtico integrado e integrador que pressupe um modus operandi que reconceitua a relao comunicao e educao. Nestes termos, o educomunicador aquele profissional que, tendo em conta as possibilidades comunicativas colocadas pelas NTIC, gera e gerencia ecossistemas comunicativos. Palavras-chave: Educao dialgica educomunicao ecossistemas comunicativos.

INTRODUO O sculo XX apresentou significativas transformaes em quase todos os mbitos: sociais, econmicos, polticos, culturais que abalaram a sociedade vigente e que esto diretamente ligadas ao surgimento das tecnologias da comunicao e da informao. Elas reorganizaram prticas, vivncias, estruturas, infiltrando-se em praticamente todos os setores da sociedade, alterando rotinas sedimentadas tanto na vida empresarial quanto na particular. Neste sculo da comunicao, a globalizao tambm contribuiu para abalar estruturas e quadros de referncia que serviam de parmetros a indivduos e coletividades. Capaz de uniformizar a sociedade, de manipular e impor padres alheios sociedade local e, paradoxalmente, promover um renascimento de valores culturais locais, a globalizao trouxe, no rastro de sua passagem, uma exacerbao das desigualdades sociais e acirramento da excluso social, tanto internamente aos Estados quanto no plano internacional, o que gerou uma evidente eroso social da cidadania.7

As novas tecnologias possibilitaram a construo de uma malha de conexo entre reas do conhecimento distintas e a criao de uma dimenso por onde transitam idias e conceitos dspares, permitindo humanidade vivenciar novas experincias no saber, no fazer, no sentir. A importncia que a comunicao assumiu na sociedade atual nos obriga a olh-la como uma nova fora nas relaes cotidianas, em todas as esferas sociais. O sculo XIX reorganizou-se econmica, poltica e socialmente em funo do desenvolvimento industrial e do crescimento1 7

Doutora em Cincias da Comunicao pela ECA/USP, UESC ([email protected]) Mestre em Cincias da Comunicao pela ECA/USP ([email protected].).

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das relaes entre povos e culturas; o sculo XX confrontou-se com a onipresena dos meios de comunicao que escancarou a fora dos dispositivos de informao presentes em cada canto do planeta de forma instantnea, produzindo sentidos, induzindo ideologias; tudo isso acarretou profundas conseqncias na vida individual e coletiva dos sculos XX e XXI, inclusive na educao. Martn-Barbero (1996) afirma que estamos diante de um ecossistema comunicativo conformado no pelas mquinas ou meios, mas por linguagens, saberes e escritas, pela hegemonia da linguagem audiovisual sobre a tipogrfica que desordenam e remodelam as formas de aquisio do saber e do conhecimento. Para o educador Paulo Freire, a comunicao elemento fundamental pois ela que transforma seres humanos em Sujeitos. Freire estabelece a relao entre comunicao e educao, na medida em que esta ltima vista como um processo daquela, j que uma construo partilhada do conhecimento mediada por relaes dialticas entre os homens e o mundo. A COMUNICAO O campo da Comunicao transita por diferentes reas, incorporando um esprito transdisciplinar, o que longe de enfraquec-la, confere-lhe uma vitalidade mpar nessa transgresso de fronteiras disciplinares e cruzamento de posturas cientficas. Para Pierre Bourdieu, campo um universo que [...] possui sua doxa especfica, conjunto de pressupostos inseparavelmente cognitivos e avaliativos cuja aceitao inerente prpria pertinncia (BOURDIEU, 2001, p. 122). Identifica, assim, vrios campos como o cientfico, o jornalstico, o literrio, o artstico, e cada um consiste em uma institucionalizao de um ponto de vista, [...] um conjunto de pressupostos e de crenas partilhadas [...] inscritas em certo sistema de categorias de pensamento (BOURDIEU, 1997, p. 67). Ao contemplar uma determinada problemtica, um campo :[...] um espao social estruturado, um campo de foras h dominantes e dominados, h relaes constantes, permanentes, de desigualdade, que se exercem no interior desse espao que tambm um campo de lutas para transformar ou conservar esse campo de foras. Cada um, no interior desse universo, empenha em sua concorrncia com os outros a fora (relativa) que detm e que define sua posio no campo e, em conseqncia, suas estratgias. (BOURDIEU, 1997, p. 57).

Neste sentido, em Histria das Teorias da Comunicao, Armand Mattelart e Michlle Mattelart entendem o campo da comunicao como um:[...] campo de observao cientfica que, historicamente, se inscreveu em tenso entre redes fsicas e imateriais, entre o biolgico e o social, a natureza e a cultura, os dispositivos tcnicos e o discurso, a economia e a cultura, as perspectivas micro e macro, o local e o global, o ator e o sistema, o indivduo e a sociedade, o livrearbtrio e os determinismos sociais. (MATTELART e MATTELART, 1999, p. 10).

Esse campo em profunda e contnua mutao caracterizado por Vencio Lima (2001) como desarticulado, conflituoso e em permanente crise terica, o que no impede a Comunicao de, mesmo possuindo contornos vagos e indefinidos, estar na centralidade da discusso no final do sculo XX e incio do XXI, prestando-se aos mais diversos usos estratgicos. 1

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A palavra comunicao entendida, muitas vezes pelos especialistas, como possuidora de duas faces: como um processo em que A envia uma mensagem para B, sobre o qual a mensagem tem um efeito determinado ou pode ser enfocada como uma negociao e um intercmbio de sentido, no qual as mensagens, as pessoas, suas culturas e a realidade interagem para possibilitar a produo de sentido, ou seja, a sua compreenso. (OSULLIVAN, 2001, p. 52). O autor latino-americano Jorge Huergo (2001) explica que, etimologicamente, a palavra comunicao provm da palavra latina communis que significa tornar comum. So dois sentidos apresentados pelo verbo: o primeiro, como transitivo, tem o significado de transmitir e persuadir e est intimamente ligado a divulgao, quer dizer, enquanto um fala, o outro escuta. Estabelece-se uma relao de poder em que um o que transmite, detm o conhecimento e o outro simplesmente recebe, numa relao vertical que se torna mais acentuada ainda quando levamos em considerao os meios de comunicao de massa. Esse sentido do verbo comunicar foi chamado por Paulo Freire, no livro Educao como Prtica da Liberdade (1967), de alienao da ignorncia, pois o outro que recebe no pode ter o processo de conhecimento sem a doao daquele que detm o saber. A segunda interpretao entende o verbo como reflexivo e, nesse sentido, comunicar tornar comum, partilhar e dialogar. Transformou-se, em alguns casos, em um sentido quase religioso, como a idia de comunidade ideal de comunicao, de Jrgen Habermas, baseada na vontade subjetiva dos participantes (comunicao intersubjetiva) e na idia de comunicao como uma condio da vida social. A comunicao seria um agir, um comportamento, uma expresso humana observvel e identificvel. No agir comunicacional, as aes so orientadas para o entendimento mtuo, o ser que inicia o processo comunicacional tambm produto dos processos de socializao. Se o conceito de comunicao apresenta, como diz Lima (2001), a ambigidade de ter no seu significado dois extremos de transmitir, sentido unidirecional e o de compartilhar, processo participativo o significado tambm sofreu alteraes ao longo do tempo. Ela teve vrios sentidos, tais como: (a) de objeto tornado comum uma comunicao ou comunicado; (b) de meios fsicos de transporte, as vias de comunicao estradas, rios, canais; e (c) os meios tecnolgicos de transmisso de informao, isto , a (imprensa, cinema, rdio, televiso) (LIMA, op. cit., p. 25). Oscilando entre a transmisso a envolvida a tcnica (ou a funcional como quer Dominique Wolton, 2002) e a comunicao como interao, h, contemporaneamente, uma tendncia a associar o conceito de comunicao aos meios de comunicao de massa, face s radicais transformaes por que passaram as tecnologias da comunicao no final do sculo passado. A dissoluo de barreiras entre os diferentes meios tecnolgicos, do analgico ao digital, que acontece com aparatos como telefone, televiso, mquina fotogrfica, computador e que esto convergindo para um nico sistema e convivendo num mesmo aparelho s refora a posio central que a comunicao assume no mundo contemporneo. Ela passa a ser considerada como legitimadora de discursos, comportamentos, aes e atua como um instrumento de consenso, assim como foram a religio nas sociedades tradicionais, o progresso nas sociedades modernas ou a produo na sociedade industrial (RODRIGUES, 1999, p. 13).

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Forma-se o que Adriano Duarte Rodrigues chama de uma ideologia comunicacional (RODRIGUES, op. cit.) no processo da modernidade; a ela caberia redefinir um novo tipo de racionalidade, j que os modelos lgicos fundamentados ou na vertente racionalista, baseada na razo tcnico-cientfica ou na anti-racionalista, vanguardista, exauriram-se durante o processo. Apresentando-se de modo confuso, com pretenses arcaizantes de sociabilidade, a ideologia da comunicao vem carregada de anseios de refundao, de recomeo, de nova era. do autor a seguinte definio de comunicao:A comunicao no um produto, mas um processo de troca simblica generalizada, processo de que a sociabilidade, que gera os laos sociais que estabelecemos com os outros, sobrepondo-se s relaes naturais que estabelecemos com o meio ambiente. Se todos os seres vivos estabelecem em permanncia trocas imediatas e espontneas com o mundo natural que os rodeia, nos homens esta interao no imediata; mediatizada por smbolos culturais concebidos, elaborados e legados por sucessivas geraes, como a linguagem verbal, os gestos e os comportamentos, o vesturio, a arte, a disposio e o arranjo do espao pblico ou do espao privado. Discursos e silncios, gestos, comportamentos, aes e omisses constituem as manifestaes dos processos comunicacionais, na medida em que correspondem a expectativas geradas pelas regularidades que formam o tecido das relaes sociais. (RODRIGUES, 1999, p. 22).

A comunicao um processo de expresso da participao social, de estabelecimento de contato entre pessoas, grupos e classes:A comunicao estuda a produo, a veiculao e recepo das mensagens, tanto a nvel pessoal como social, tanto na esfera do privado como na esfera pblica, e a interao dos emissores-receptores numa determinada conformao econmica, poltica e cultural, num determinado tempo e espao, onde se liga o factual do cotidiano com o conjuntural e estrutural. (MORAN, 1993, p. 15).

Assim, to importante quanto estudar e refletir sobre a comunicao intransitiva, centrada nos dispositivos de que se valem os media, investigar as possibilidades contidas na comunicao transitiva, proporcionada por complexas redes interpessoais. Na medida em que a educao transformou-se em espao privilegiado de discusso e cidadania, um importante tecido comunicativo, torna-se vital colocar a comunicao no centro no fazer pedaggico, quer para questionar os mecanismos no transitivos nas suas diferentes feies, entend-los e poder agir sobre eles, quer para promover ecossistemas comunicativos que destravem os ns pelos quais a educao est passando. OS ECOSSISTEMAS COMUNICATIVOS Walter Benjamin (1982) foi, talvez, o primeiro a entrever o nascimento do novo sensorium que se formava no intervalo entre as novas condies de produo e as transformaes culturais promovidas pelas novas tecnologias da comunicao e informao. Essa mudana permite uma aproximao com tudo aquilo que at ento estava distante para as massas a arte, por exemplo, mas no s ela desmistificando, com a ajuda das tcnicas, aquilo que possua a aura de sagrado, o que era mantido resguardado e inacessvel populao em geral. Esse sensorium permite romper o distanciamento e revigorar o sentimento de igualdade da massa diante da cultura, prerrogativa antes apenas da elite. 1

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Por intermdio das novas tecnologias e do desenvolvimento da nova sensibilidade, criou-se uma energia que perpassa os novos mecanismos de apreenso do mundo pela mediao de conectar-se ou desconectar-se dos aparelhos, sempre com destaque para a televiso (BACCEGA, 2000, p. 10), que pode ser percebida nas empatias cognitivas e expressivas, desenvolvidas, principalmente, pelos jovens. Martn-Barbero explica que frente lngua e ao territrio, as (linguagens) eletrnicas, audiovisuais, musicais, ultrapassam essa limitao, produzindo comunidades hermenuticas que respondem a novos modos de perceber e narrar a identidade (MARTN-BARBERO, 1998, p. 58). Identidades que so capazes de amalgamar e fazer conviver ingredientes de universos culturais diversos (MARTN-BARBERO, op. cit., p. 13). Instaura-se, assim, um ecossistema to vital quanto o ambiental: o ecossistema comunicativo:Se trata de una experiencia cultural nueva, o como W. Benjamin lo llam, un sensorium nuevo, unos nuevos modos de percibir y de sentir, de or y de ver, una nueva sensibilidad que en muchos aspectos choca y rompe con el sensorium de los adultos. Un buen campo de experimentacin de estos cambios y de su capacidad de distanciar a la gente joven de sus propios padres se halla en la velocidad y la sonoridad. No slo en la velocidad de los autos, sino en la de las imgenes, en la velocidad del discurso televisivo, especialmente en la publicidad y los videoclips, y en la velocidad de los relatos audiovisuales. Y lo mismo sucede con la sonoridad, con la manera con que los jvenes se mueven entre las nuevas sonoridades: esas nuevas articulaciones sonoras que para la mayora de los adultos marcan la frontera entre la msica y el ruido, mientras para los jvenes es all donde empieza su experiencia musical. (MARTN-BARBERO, 2000, p. 49).

Para a Biologia, a noo de ecossistema inclui tanto fatores biticos (vivos: animais, plantas, bactria entre outros) quanto abiticos (ambiente fsico) inter-relacionados dinamicamente. Pode ser considerado como o conjunto dos relacionamentos mtuos entre os seres vivos e o meio ambiente. No ecossistema, acontecem trocas e ele est em contnuo dinamismo; no determinado por seu tamanho, mas por sua estrutura e seus padres de organizao. Jsus Martn-Barbero (2000) quem articulou o conceito de ecossistema comunicativo, no apenas conformado pelas tecnologias e meios de comunicao, mas tambm pela trama de configuraes constituda pelo conjunto de linguagens, representaes e narrativas que penetra na vida cotidiana de modo transversal. Adilson Citelli (2000, p. 246) enftico ao assegurar que, diante das experincias culturais descentradas (formas de socializao, de dispositivos de identificao, de cultura) e onde nada acontece na esfera pblica sem que exista uma mediao de alguma mdia, de alguma forma de trnsito internacional, preciso [...] assegurar a base democrtica aos cidados. Esta a razo pela qual, para Martn-Barbero (2000), vital que a escola absorva a idia de que preciso incorporar um trabalho srio que contemple o novo sensorium e os media, alm de evitar que se aprofunde o fosso entre a sensibilidade e a cultura dos professores e dos alunos. Por esse vis, a escola prioriza a interao com os novos campos de experincia surgidos da reorganizao dos saberes, dos fluxos de informao, das redes de intercmbio, alm de interatuar com os novos modos de representao e de aes cidads, que interligam o local com o mundial. Dessa forma, deve, portanto, assumir o trabalho com o ecossistema comunicativo como a dimenso estratgica da cultura (MARTN-BARBERO, 1996). O desafio como inserir na escola um ecossistema comunicativo que contemple ao mesmo tempo: experincias culturais heterogneas, o entorno das novas tecnologias da informao e 1

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da comunicao, alm de configurar o espao educacional como um lugar onde o processo de aprendizagem conserve seu encanto. (MARTN-BARBEIRO, 1996) As polticas culturais e comunicacionais na educao devem passar pelas ambiguas y complejas interacciones entre el ecosistema comunicacional y el sistema poltico en su indelegable responsabilidad de dinamizar la educacin y creatividad cultural, incluyendo em ambas la invencin cientfica y la innovacin tecnolgica (MARTN-BARBEIRO, 2002, p. 56). Uma postura crtica aos meios de comunicao s ser eficiente quando inserida em um projeto educativo cultural mais amplo. Ismar de Oliveira Soares (1999) desenvolve o conceito de ecossistema comunicativo de modo mais abrangente. O pesquisador deseja estabelecer bases slidas para a inter-relao comunicao e educao, a qual chama de Educomunicao, que trabalha a partir de um substrato comum que a ao comunicativa no espao educativo, ou seja, a comunicao inter-pessoal, grupal, organizacional e massiva promovida com o objetivo de produzir e desenvolver ecossistemas comunicativos atravs da atividade educativa e formativa. Soares insere o conceito na perspectiva da gesto comunicativa: compreende a organizao do ambiente, a disponibilidade dos recursos, o modus faciendi dos sujeitos envolvidos e o conjunto das aes que caracterizam determinado tipo de educao comunicacional (SOARES, 2002b, p. 125). Por esse ngulo, falar em ecossistema comunicativo implica buscar a descentralizao de vozes, a dialogicidade, a interao. As relaes devem buscar equilbrio e harmonia em ambientes onde convivem diferentes atores. No apenas no mundo tecnolgico que atua o ecossistema comunicativo, mas em todas as esferas e a comunicao. Assim como h a necessidade de uma relao equilibrada entre homens e natureza, necessria a criao de verdadeiros "ecossistemas comunicativos" nos espaos educativos, que cuide da sade e do bom fluxo das relaes entre as pessoas e os grupos humanos, bem como do acesso de todos ao uso adequado das tecnologias da informao. (SOARES, 2002c). Para Soares, o conceito de Educomunicao est intrinsecamente ligado ao de ecossistema comunicativo, j que a primeira representada pelo conjunto de aes que permitem que educadores, comunicadores e outros agentes promovam e ampliem as relaes de comunicao entre as pessoas que compem a comunidade educativa. (SOARES, op. cit.). Ou seja, o lcus de ao da Educomunicao so os ecossistemas comunicativos, que, para Soares, devem conter fluxos comunicativos positivos; existe mesmo uma recomendao de que ao geri-los interessante comear a partir dos pontos de consenso (Ibidem), evitando conflitos. EDUCOMUNICAO Importante questo referente inter-relao comunicao e educao diz respeito ao papel da comunicao nas relaes interpessoais, de trocas entre sujeitos. Nesse sentido, pode ser entendida como uma comunicao transitiva, o processo de expresso da participao social, do estabelecimento de contato entre pessoas, grupos e classes. A comunicao expressa a dinmica do cotidiano, a existncia social do indivduo e a do indivduo na 1

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sociedade, conforme Jos Manuel Moran (1993, p. 11). fundamentalmente uma prtica vivida, um campo de trocas e de interaes que possibilita a expresso, o relacionamento, o ensino e o aprendizado. Essa outra maneira de ver a comunicao passa pela perspectiva do compartilhamento, da troca e de entendimento entre as pessoas. Nesse sentido, aproxima-se da viso de tericos da educao, como Paulo Freire, para quem a comunicao fundamental nas relaes humanas, assim como a inter-relao de seus elementos bsicos no processo educativo. Para haver conhecimento, necessria uma relao social igualitria e dialogal entre os sujeitos, que resulta em uma prtica social transformadora. Baseado em Freire, Francisco Gutierrez defendia o princpio de que o processo de comunicao essencial educao e que o processo de aprendizagem autntico quando se efetua uma mudana naquele que aprende. Por esse motivo a aprendizagem pressupe a interao, o intercmbio. (GUTIRREZ, 1978, p. 33-39). O princpio da ao e do dilogo comunicativos podem ser alargados se relacionarmos com a dimenso da comunicao pessoal de Jos Manuel Moran:A comunicao caminha na direo da incluso, da integrao. Da incluso de pessoas diferentes, de formas distintas de ver. Caminha na aproximao de mais pessoas, de mais grupos; no estabelecimento de vnculos, de pontes para aproximarnos das pessoas, sem isolar-nos em grupinhos, panelinhas, ou seitas. [...] Pela comunicao no s expresso emoes, sentimentos, como tambm lido com afeto. Pela comunicao busco afeto, carinho, ser querido, amado. Se essas emoes so bem gerenciadas, so positivas, facilitaremos todas as atividades em todas as dimenses e direes das nossas vidas. A rejeio, a falta de afeto, de aceitao nos desestrutura, nos joga para fora de ns mesmos numa busca frentica de qualquer compensao, reconhecimento, aceitao. (MORAN, 1998, p. 10-16). [...] Ou seja, ao falarmos de ecossistema comunicativo seria interessante pensar na qualidade das relaes interpessoais do processo, visto que no podemos desconsiderar que, antes de tudo, temos seres humanos que esto interagindo. Jorge Huergo j havia percebido esse fato ao analisar o sentido de dilogo que contm o termo comunicao. Para ele, a interao entre sujeitos nem sempre acontece de modo perfeito. La comunicacin rara vez es simtrica, en el sentido de "entre iguales", y armoniosa, en el sentido de "no conflictiva"; por eso vamos a considerar a la comunicacin dialgica como un encuentro, antes que como un acuerdo: un encuentro donde los que se encuentran cargan con sus memorias, sus conflictos, sus diferencias. (HUERGO, 2001).

A inter-relao comunicao-educao gerou estudos que foram desenvolvidos pelo Ncleo de Comunicao e Educao da Escola de Comunicaes e Artes da Universidade So Paulo (NCE-ECA/USP), preocupado em fundamentar, pesquisar, desenvolver e solidificar um novo campo, a Educomunicao, que por sua natureza inter-relacional, estrutura-se de modo processual, meditico, transdisciplinar e interdiscursivo, sendo vivenciado pelos seus atores atravs de reas concretas de interveno social, que podem constituir-se em vertentes, de acordo com Ismar de Oliveira Soares. (SOARES, 1999, p. 65). O autor define a Educomunicao como:O conjunto das aes inerentes ao planejamento, implementao e avaliao de processos, programas e produtos destinados a criar e fortalecer ecossistemas

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comunicativos em espaos educativos presenciais ou virtuais, assim como a melhorar o coeficiente comunicativo das aes educativas, incluindo as relacionadas ao uso dos recursos da informao no processo de aprendizagem." (SOARES, 2002a, p. 115).

Quatro reas de interveno foram sistematizadas ao se pensar a abrangncia da Educomunicao: a) Educao para a Comunicao, preocupada com a reflexo a respeito dos impactos e influncias dos media, na relao entre os plos do processo de comunicao (Estudos de Recepo) e no campo pedaggico pelos programas de formao de receptores autnomos e crticos frente aos meios (Educao para a Comunicao, Media Education ou Media Literacy). No continente latino-americano, tambm conhecida como leitura crtica dos meios, educao para a televiso ou educao para os meios; b) Mediao tecnolgica na educao que compreende os procedimentos e as reflexes em torno da presena e dos mltiplos usos das tecnologias da informao na educao; c) Gesto comunicativa, voltada para o planejamento, execuo e realizao dos processos e procedimentos que se articulam no mbito da Comunicao/Cultura/Educao. Dela faz parte o planejamento das relaes entre os professores e alunos, entre direo, corpo docente e alunos ou nas relaes entre a escola e a comunidade onde est inserida. Alm disso, tambm h o planejamento de aes voltadas criao de ambientes favorveis ao desenvolvimento do ensino, implantao de projetos de educao frente aos meios de comunicao, implementao do exerccio artstico, ou mesmo, disseminao das tecnologias num plano de ensino. d) Reflexo epistemolgica que v a inter-relao Comunicao e Educao como fenmeno cultural emergente e instiga projetos de pesquisa para legitimao do novo campo e investigaes sobre as vertentes que compem a Educomunicao, constituindo-se uma reflexo acadmica. A inter-relao Comunicao/Educao j tinha acontecido em pocas e momentos anteriores, ainda que mais intuitiva e no to sistematizada. Clestin Freinet na Frana e Paulo Freire no Brasil so considerados os desbravadores da rea Educao para Comunicao. Embora atuassem em contextos bem diversos, trabalhassem com pblicos distintos Freinet na educao de zero a 14 anos, Freire na educao de adulto e apresentassem objetivos diferentes o francs visava mudanas na estrutura e pedagogia escolares, o brasileiro buscava uma reorganizao scio-poltica do mundo havia muitas semelhanas entre eles. Ambos tinham uma concepo poltica da educao, acreditavam na no neutralidade do ato pedaggico, sustentavam o dilogo e a colaborao, alertavam para a manipulao do ser humano e, sobretudo, estavam convictos da possibilidade de transformao do indivduo e da sociedade. A vista de acesso era a livre expresso, o dilogo e a cooperao. PAULO FREIRE Para entender a histria da inter-relao comunicao e educao latino-americana aps os anos 70, preciso voltar os olhos para Paulo Freire que desenvolveu fundamentos slidos 1

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para um novo modelo educomunicacional, essencialmente horizontal, democrtico e dialgico. A matriz freireana perpassa o pensamento de vrios tericos da comunicao da Amrica Latina, principalmente Mrio Kapln, Jess Martn-Barbero, Guillermo OrozcoGmez, Francisco Gutirrez. Martn-Barbero atribui a Freire la primera teoria latinoamericana de comunicacin, ya que no slo tematiz prcticas y procesos comunicativos de estos pases sino que puso a comunicar a Amrica Latina consigo misma y con el resto del mundo. (MARTN-BARBERO, 2002, p. 20). O educador brasileiro, mais do que inaugurar um pensamento dialgico, democrtico e libertador na pedagogia nacional e latino-americana, transformou-se em um marco na histria da Educao. Sua concepo de educao popular abalou as bases do ensino elitista vigente, repercutiu internacionalmente e produziu uma ruptura no percurso histrico da educao/comunicao. Ele apostava na educao por intermdio do audiovisual. J na dcada de 60, a Conferncia Nacional dos Bispos havia aprovado o uso da Telescola no Movimento de Educao de Base (MEB). Alm disso, acreditava tambm na educao em outros espaos que no o da educao formal. Extenso ou Comunicao? elaborado em 1968/1969, reflete a importncia da comunicao no processo de conhecimento. Bsica nas relaes humanas, ela se apresenta como uma relao social igualitria, dialogal, na co-participao dos sujeitos no ato de conhecer. A exploso das tecnologias da comunicao e informao leva o pensador a afirmar que mais que a utilizao de uma tcnica ou tecnologia, a problematizao e a conscientizao so fundamentais no ato pedaggico. Isso no significa ignorar ou rejeitar novas tecnologias ou linguagens; ao contrrio, preciso apropriar-se delas, com critrio, para reavivar a humanizao do homem: preciso discutir os meios de comunicao e a quem eles servem. uma crtica poltica e no tecnolgica. O projeto educacional que construiu visava ao fim da opresso e das desigualdades sociais por intermdio do desenvolvimento da conscincia crtica e histrica. Suas bases aliceravam-se em uma teoria do conhecimento que se pautava pelo respeito ao educando, pela busca da autonomia e pela dialogicidade, a partir de um pensamento crtico e libertador, na busca pela igualdade, justia e unio, pressupostos orientadores na construo de novos paradigmas educacionais. Ao partir da realidade do educando para encontrar temas geradores que vivificassem a educao, Freire substitua uma viso mais simplista por outra crtica, e partia do pressuposto de que havia em cada ser humano um saber nico, ainda que rudimentar, mas de onde era possvel estabelecer uma nova relao com a vida. Inaugurava, assim, uma metodologia dialgica que renegava a transmisso vertical de contedos: do mestre, que detm o conhecimento, para o aluno, que devia absorv-la. Essa educao que chamou de bancria estava na raiz da dominao cultural. Para Freire, no existe educao neutra, impossvel separar o processo de aprendizagem do processo poltico, j que ao construir significados de uma realidade, estamos atribuindo valores que podem ser imobilizantes ou, ao contrrio, ativos, que acreditem que reflexo e ao podem transform-la. A educao problematizadora desenvolvida por ele procura 1

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desvelar o mundo e calcada numa relao dialgica entre educador e educando. O educador j no mais o que apenas educa, mas o que enquanto educa, educado, em dilogo com o educando que, ao ser educado, tambm educa. [...] Os homens se educam em comunho, mediatizados pelo mundo. (FREIRE, 1978, p. 78-79). O sentido atribudo ao dilogo, que pressupe uma relao horizontal entre os seres, fundado no amor, na humildade, na f dos homens, fundamental para a estrutura do conhecimento, visto que o ato cognoscente no termina no objeto cognoscvel, uma vez que se comunica a outros sujeitos igualmente cognoscentes. A educao comunicao, dilogo, na medida em que no a transferncia de saber, mas um encontro de sujeitos interlocutores que buscam a significao dos significados. (FREIRE, 1979, p. 69). Tem-se, assim, uma teia de interaes que estabelece a sintonia entre comunicao e educao. A comunicao o elemento pelo qual possvel transformar o ser humano em sujeito da sua prpria histria, vivendo uma relao dialtica, em dilogo, que o conduz a uma conscincia crtica e a uma transformao. O mundo social humano no existiria se no fosse capaz de se comunicar. A comunicao um processo de interao de Sujeitos em dilogo, elemento estruturante e intrnseco ao ser humano. Este o primeiro dos trs nveis, chamado de antropolgico: a comunicao como constitutiva do ser humano. (LIMA, 1981). O segundo nvel, epistemolgico, parte do pressuposto de que s acorre conhecimento na comunicao; ele o resultado da relao social entre dois sujeitos mediatizados pelo objeto que querem conhecer: o sujeito pensante no pode pensar sozinho; no pode pensar sem a co-participao de outros sujeitos no ato de pensar... (LIMA, op. cit, p. 63). A dimenso poltica, terceiro nvel, entendida quando lembramos que no h conhecimento e nem comunicao se a relao entre os sujeitos no for igual. A comunicao para Freire, diz Vencio Lima, uma relao social igualitria, dialogal que produz conhecimento, uma prtica transformadora e poltica. A viso que Freire tem da comunicao dialgica parte de um paradigma scio-estrutural; no se trata de um enfoque no mbito pessoal, mas social e poltico, muito diferente do individualismo baseado na auto-realizao. Ele condena os que acreditam que indivduos possam ser transformados enquanto as estruturas sociais so mantidas intactas. Isso no significa que Freire no se preocupe com o indivduo, com o particular; pelo contrrio, a esfera pessoal s encontra sua plenitude quando est inserida no todo; a autorealizao s tem sentido na medida em que est conectada ao outro. A dialogicidade como essncia da educao libertadora apresenta algumas caractersticas importantes: a colaborao (a ao dialgica s se realiza entre sujeitos), unio (fundamental para a conscincia de classe ou de grupo), organizao (momento da aprendizagem em que se busca transformar) e sntese cultural (instrumento de superao da cultura):

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La puerta a la comunicacin que nos abre P. Freire es bsicamente a su estructura dialgica. Pues hay comunicacin cuando el lenguaje da forma a la conflictiva experiencia del convivir, cuando se constituye en horizonte de reciprocidad de cada hombre con los otros en el mundo. (MARTN-BARBERO, 2002, p. 30).

TEORIA DIALGICA EM PRTICA: UM EXEMPLO. No cerne da Educomunicao est a concepo dialgica de Freire. Trabalhos desenvolvidos nesse campo interdisciplinar colocam em prtica os princpios de colaborao, unio, organizao e sntese cultural. Um exemplo foi o projeto Educom TV a linguagem audiovisual na escola: uma ao educomunicativa, desenvolvido pelo Ncleo de Comunicao e Educao - NCE, do Departamento de Comunicao e Artes, da Escola de Comunicao da Universidade de So Paulo, ECA-USP, em parceria com a CENP/SEE Secretaria de Educao do Estado de So Paulo e a GIP/DTE. Este projeto constitui-se de um curso que capacitou 2.243 professores da rede pblica do estado de So Paulo para o uso do audiovisual em sala de aula, por intermdio de atividades on-line realizadas por meio de um Ambiente Virtual de Aprendizagem, em 2002. A estrutura do Educom TV era constituda de 3 coordenadores, 35 tutores cada um responsvel por uma sala virtual de aprendizagem com cerca de 65 cursistas , equipe operacional, equipe de suporte tcnico, alm de articuladores. O contedo pedaggico foi distribudo ao longo dos meses de junho a dezembro em 10 mdulos. Esses se compunham de parte terico-reflexiva, exerccios dissertativos relacionados prtica diria docente e ao uso das NTCI, alm de solicitarem intensa navegao por hipertextos e discusses em chats e fruns. O projeto foi educomunicativo e lastrado em Freire, pois tanto no desenho pedaggico interno do curso - concepo do AVA, seleo dos tutores, elaborao do material didtico e relaes travadas entre tutores, coordenadores, suporte tcnico quanto nas relaes com os alunos, atendia aos trs princpios apontados por SIERRA (2000, p.21-22), da relacionabilidade, da alteridade e da dialogicidade:A escolha dos tutores para o projeto Educom TV foi norteada pelos princpios da Educomunicao. Recrutados entre alunos de ps-graduao, mestrandos ou doutorandos, vinham de diferentes reas do conhecimento: Pedagogia, Cinema, Filosofia, Fsica, Biologia, Letras, Sociologia, Antropologia, Geografia, Artes e Jornalismo. A heterogeneidade da formao dessas pessoas foi fator determinante para a construo de um saber conjunto, partilhado pelo grupo, que contribuiu para a unio e o estabelecimento de laos de confiana entre os membros da equipe. (SOARES et al, 2004).

O tutor tinha tripla funo: a primeira, pessoal, era estabelecer uma relao de cordialidade e confiana entre os participantes; a segunda, tecnolgica, deveria orientar seus educandos a utilizar as ferramentas disponibilizadas pelo curso e a terceira, pedaggica, consistia em avaliar e comentar as respostas dos cursistas aos exerccios, dentro do ritmo de cada um, estimulando-os a reverem sua prtica pedaggica de modo a que pudessem ter um novo olhar sobre a educao, sobre os meios de comunicao e as novas tecnologias, sem, contudo, desqualificar as crenas que carregassem:

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Os textos e os exerccios, assim como o contato com os tutores, valorizavam a aprendizagem como construo de significados, em uma dimenso cooperativa ou colaborativa da aprendizagem que ps em evidncia o papel dos pares e a tutela do adulto nas situaes de aprendizagem (ou seja, aprendizagem como ato social). (SOARES et al, op. cit.).

Dentro da concepo dialgica, as trs funes desempenhadas pelos tutores do Educom TV convergiam para a valorizao e a ressignificao do papel do professor que deveria, ele tambm, sentir-se parte integrante de uma teia colaborativa de seres humanos envolvidos em questes pedaggicas e educacionais. (SOARES et al, op.ci.t) A relao dialgica entre os pares criou um ecossistema comunicativo eficiente e permitiu que os professores-cursistas questionassem suas prticas e conceitos e incorporassem uma nova viso sobre sua prtica pedaggica.[...] A forma em que se deu a relao entre cursistas, tutores, coordenao geral, equipe operacional e equipe tcnica, teceu laos colaborativos consistentes evidenciados pela troca dialgica e assdua de experincias e idias que culminaram com o bom resultado do projeto. Os resultados deste curso aparecem consubstanciados nos trabalhos finais - alguns surpreendentemente rigorosos em relao aos conceitos envolvidos e outros dotados de acentuada criatividade. (SOARES et al, op.cit.).

De fato, os resultados obtidos ao final do curso indicam que o professor se transformou ao final do projeto Educom TV. Foram elaborados, em parcerias, 980 projetos interdisciplinares, o ndice de permanncia esteve em torno de 91% (considerado muito bom para cursos online) e a pesquisa avaliativa final realizada com os professores revelou que houve efetiva contribuio na qualidade do ensino ministrada pelos professores. CONCLUSO No mundo atual em que preciso educar numa sociedade em que os dispositivos tecnolgicos e miditicos produzem outras sensibilidades, deslocalizam o saber, inauguram novas formas de expresso, Comunicao e Educao caminham juntas. Ao despontar como educador que percebeu a comunicao humana como dilogo. (Lima, op. cit. 71) e entendeu as inter-relaes entre educao e comunicao, Paulo Freire forneceu uma base terica slida para a gesto de ecossistemas comunicativos, pois sua teoria dialgica, baseada em colaborao, unio, organizao e sntese cultural, aproxima-se do conceito de Educomunicao. A Educomunicao configura-se assim como campo tericoprtico integrado e integrador que pressupe um modus operandi que reconceitua a relao comunicao e educao. Como diz Vencio Lima:No momento em que as potencialidades das tecnologias interativas acenam para a quebra da unidirecionalidade e da centralizao das comunicaes, o conceito de comunicao dialgica, relacional e transformadora de Freire oferece uma referncia normativa revitalizada, criativa e desafiadora para todos aqueles que acreditavam na prevalncia de um modelo social comunicativo humano e libertador. (LIMA, op. cit., p.69).

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A RELAO EDUCADOR-EDUCANDO NA PERSPECTIVA FREIREANAAdriana Marques Ferreira1 Leonardo Docena Pina2 Thagnani Reis do Carmo3 RESUMOO trabalho aborda as contribuies de Paulo Freire a respeito das relaes entre educadores e educandos. Para tal faz-se necessrio abordamos as crticas freireanas ao modelo de educao que desconsidera a diversidade como caracterstica maior dos sujeitos. Freire destaca a postura que o professor assume de detentor do conhecimento, colocando o aluno na posio de mero receptor desse; numa relao vertical, denominando-a de educao bancria. Contrapondo-se a esse perfil de educao, evidenciamos a educao para a liberdade que considera todo indivduo como agente de sua transformao, neste modelo a relao horizontal, dialgica para que assim, o educando possa ter conscincia de que no esta apenas no mundo, mas com o mundo, buscando formas de transformar a realidade. Palavras-chave: Relao educador educando, dilogo, diversidade.

Este trabalho fruto de um projeto de pesquisa financiado pelo CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico) intitulado Uma leitura crtica da Educao Especial a caminho da incluso, cujo objetivo analisar a contribuio que Paulo Freire, Vygotsky e Michel Foucault deram no processo de ruptura paradigmtica da excluso para a incluso. Neste cenrio Paulo Freire ocupa um lugar de destaque na defesa dos direitos humanos e na valorizao de todas as pessoas como sujeitos historicamente inseridos no processo permanente de mudana de si e da realidade. Para tal, utilizada a metodologia da anlise de discurso, AD, em sua vertente francesa, que busca compreender os efeitos de sentidos derivados e/ou constitutivos dos movimentos dos discursos. Paulo Freire em suas obras sempre se demonstrou preocupado com a relao do ensino e aprendizagem desenvolvidos no sistema educacional. Preocupao esta que possui seu cerne na relao estabelecida entre educador ou educadora e educando ou educanda. Primeiramente, vale pontuarmos que o ato de ensinar inexiste sem aprender, pois foi a partir da condio humana de que todos so capazes de aprender que ao longo dos tempos, homens e mulheres foram desenvolvendo maneiras, mtodos de educar. Desta forma, o ato de aprender que justifica a relao estabelecida entre professores e professoras com seus alunos e alunas. Perante essa relevncia do ato de aprender de todo ser humano, na relao educador (a) e educando (a), Freire (2002, p. 25) pontua que no h docncia sem discncia, ou seja, quem1 2

Graduanda em Pedagogia pela UFJF e bolsista BIC/UFJF.([email protected]). Graduando em Educao Fsica pela UFJF([email protected]). 3 Graduanda em Pedagogia pela UFJF ([email protected]).

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ensina aprende ao ensinar e quem aprende ensina ao aprender. Quando o (a) educador (a) se v como sujeito formador do processo educativo e seus alunos e alunas como objetos que devem ser formados, e que, portanto recebem passivamente conhecimento pertencente ao sujeito que sabe e que so a eles transferidos, ocorre um esvaziamento da relao dialtica de aprendizagem de toda pessoa humana. Quanto a isso, Freire (2004) faz uma crtica severa, na qual a educao se torna o ato de depositar conhecimentos, em que os educandos e educandas so os depositrios e os educadores e educadoras os depositantes. Essa seria a chamada concepo bancria de educao, na qual a prtica pedaggica reduzida ao ato de depositar, transferir e transmitir valores e conhecimentos:Em lugar de comunicar-se, o educador faz comunicados e depsitos que os educandos, meras incidncias, recebem pacientemente, memorizam e repetem. Eis a a concepo bancria da educao, em que a nica margem de ao que se oferece aos educandos a de receberem os depsitos, guard-los e arquiv-los (FREIRE, 2004, p. 58).

Na viso bancria da educao, o saber torna-se uma doao dos que se julgam sbios aos que julgam nada saber. Doao que se funda numa das manifestaes instrumentais da ideologia da opresso, representada pela dicotomia opressor e oprimido, sendo que ao primeiro previsto a deteno de todo o saber e conseqentemente, todo o poder, e ao segundo, sua impossibilidade de problematizar questes relacionadas realidade que o oprime, tendo ento que simplesmente aceit-la como ela . Esta estratificao implcita na relao uma distoro tica; se posicionar acima do outro, seja ele quem for, significa distorcer o sentido da existncia humana, j que todos so seres de mesmo valor. O domnio do saber cientfico, a posio de professor (a), no d a este (a) o direito de olhar os (as) alunos (as) de cima; da mesma forma, no saber determinado contedo no remete a idia de o (a) aluno (a) ter menor valor. Para Freire (2004), a educao bancria uma concepo que, implicando uma prtica, somente pode interessar aos opressores, que estaro to mais em paz, quanto mais adequados estejam os homens ao mundo (p.63). Da que esse modelo de educao tende a reduzir a existncia dos homens e mulheres ao mero viver; tende a faz-los seres da adaptao, do ajustamento. Assim, lhes negada a possibilidade de exercerem sua vocao ontolgica de ser sujeito, de estar no mundo e com o mundo, de existir ao invs de apenas sobreviver. Freire (1996) destaca que essa capacidade ou possibilidade de ligao comunicativa do existente com o mundo objetivo, contida na prpria etimologia da palavra, que incorpora ao existir o sentido de criticidade que no h no simples viver. Transcender, discernir, dialogar (comunicar e participar), so exclusividades do existir. Neste modelo educacional, a relao educador-educando se faz vertical, de cima para baixo, definindo os que sabem e os que no sabem, reproduzindo na escola a relao opressoroprimido. O pragmatismo ocupa o lugar da esperana. A opresso legitimada, suprimindose o direito fundamental de todo homem e mulher de agirem em sua prpria histria. No so reconhecidas todas as potencialidades dos sujeitos, ao contrrio, as diferenas so realadas, vistas como entraves ao desenvolvimento. A diversidade desconsiderada diante das dificuldades formuladas e postas em prtica pelo opressor, e a mudana considerada como 2

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um sonho impossvel de se realizar. Para os acomodados no h o que fazer alm de excluir do sistema aqueles que fogem aos padres de normalidade. Observa-se que muitas condies sociais tm sido consideradas e tratadas como desviantes, fato que reflete, nas diversas situaes, um julgamento social, julgamento que se requinta na medida em que as sociedades se aprimoram tecnologicamente em funo de valores e de atitudes culturais especficas. Em algumas sociedades, ser negro (a), ser velho (a), ser mulher, ser criana, etc, representou ao longo dos tempos, como ainda representa, uma condio de subalternidade de direitos e desempenho de funes sociais. E neste contexto de complexa trama de relaes sociais, dentro e fora da escola, que se manifestam as diversas formas de controle, discriminao e opresso em relao aos ditos desviantes, ou seja, no contexto social que se manifestam as mais variadas formas de preconceito e/ou aceitao daquilo que se apresenta como diferente ou indesejado, atitudes contra as quais Freire sempre se posicionou de forma contundente. Um exemplo clssico desta situao o (a) aluno (a) considerado (a) portador (a) de necessidades especiais, principalmente o (a) chamado (a) deficiente. Ao consider-lo (a) como incapacitado (a) a sociedade cria prticas assistencialistas, contexto este que favorece uma relao professoraluno fundada na piedade e no sentimento de caridade, que nada mais faz do que posicionar este (a) aluno (a) no lugar de pobre coitado (a), invlido (a), etc. No caso especfico da deficincia, pode-se afirmar, em conformidade com Fonseca (1987), que a mesma reflete, em muitos aspectos, a maturidade humana e cultural de uma determinada comunidade. O que no se pode negar que h, implicitamente, uma importante varivel cultural e que se encontra na base do julgamento que estabelece a distino entre deficientes e no deficientes. Segundo Fonseca (1987), Essa relatividade obscura, tnue, sutil e confusa, procura, de alguma forma, afastar ou excluir os indesejveis, cuja presena ofende, perturba e ameaa a ordem social (p.9). Direcionando o olhar para dentro da escola, encontramos, de um lado, professores e professoras conservadores, ingnuos e/ou acomodados, que facilitam o crescimento contnuo da ideologia opressora, cuja discriminao ato corriqueiro, muitas vezes imperceptvel por ser considerado comum; de outro lado, encontramos professores e professoras progressistas, considerando-se realmente educadores e educadoras comprometidos na medida em que lutam contra qualquer forma de discriminao, na medida em que se colocam em favor da esperana que os animam, e, apesar de tudo, na medida em que se colocam frente ao embate ideolgico como lutadores (as) obstinados (as), que se cansam, mas no desistem. O (a) educador (a) que aliena a ignorncia se mantm em posies fixas, invariveis, com uma viso fatalista da realidade. E a rigidez destas posies nega a educao e o conhecimento como processo de infinita busca. Freire (2004) chama a ateno dos (as) verdadeiros (as) humanistas para o fato de que eles (as) no podem, na busca pela libertao, servir-se da concepo bancria, sob pena de se contradizerem em sua busca. Assim como tambm no pode esta concepo tornar-se legado da sociedade opressora sociedade revolucionria. (FREIRE, 2004, p.66). Contrapondo-se educao bancria, Paulo Freire evidencia a educao libertadora, que considera todo indivduo como agente de transformao, reconhecendo-o como sujeito 2

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histrico inserido na realidade de forma crtica. Desse modo, a relao educador-educando amparada pela irrecusvel prtica do inteligir, do sempre desafiar o (a) educando (a) com quem se comunica a produzir sua prpria compreenso do que vem sendo comunicado. A educao para a libertao deve privilegiar o exerccio da compreenso crtica da realidade e possibilitar no s a leitura da palavra, a leitura do texto, mas tambm a leitura do contexto, a leitura do mundo:A educao que se impe aos que verdadeiramente se comprometem com a libertao no pode fundar-se numa compreenso dos homens como seres vazios a quem o mundo encha de contedos; no pode basear-se numa conscincia especializada, mecanicistamente compartimentada, mas nos homens como corpos conscientes e na conscincia como conscincia intencionada ao mundo. No pode ser a do depsito de contedos, mas a da problematizao dos homens em suas relaes com o mundo. (FREIRE, 2004, p.67).

Nesse modelo de educao, o (a) educador (a) progressista, comprometido (a) com a mudana, no pode apenas falar aos educandos e educandas sobre sua viso do mundo, ou tentar imp-la. preciso dialogar para que ambos possam realizar uma leitura crtica sobre as verdadeiras causas da degradao humana. O papel do (a) educador (a) progressista desafiar a curiosidade ingnua do (a) educando (a) para, com ele (a), partejar a curiosidade epistemolgica. E a partir da relao dialgica entre educadores (as) e educandos (as) que a prtica educativa se afirma como desocultadora de verdades escondidas. Desta maneira, Freire (2004) afirma que:[...] o educador j no mais aquele que apenas educa, mas o que, enquanto educa, educado, em dilogo com o educando que, ao ser educado, tambm educa. Ambos, assim, se tornam sujeitos do processo em que crescem juntos e em que os argumentos de autoridade j no valem. E para ser autoridade, funcionalmente, necessrio estar a favor da liberdade e no contra a mesma. E ningum educa ningum e to pouco educa a si prprio: os homens educam em comunho mediatizados pelo mundo. Mediatizados pelos objetos cognoscveis que, na prtica bancria, so possudos pelo educador que os descreve ou os deposita nos educandos passivos. (p.68).

Assim, a educao problematizadora ou educao para a liberdade ocorre numa relao horizontal, onde educador (a) e educando (a) estabelecem constante dilogo, buscando transformar a realidade. O respeito ao conhecimento prvio que o (a) educando (a) possui de fundamental importncia, para que se possa propor, e nunca impor, o que, e como ser desenvolvido o trabalho em sala de aula. Para Freire (2004), A educao como prtica da liberdade, ao contrrio daquela que prtica da dominao, implica na negao do homem abstrato, isolado, solto, desligado do mundo, assim tambm na negao do mundo como uma realidade ausente dos homens (p.70). A educao problematizadora uma relao dialgicodialtica entre educador (a) e educando (a), ou seja, ambos aprendem e ensinam juntos. Se h uma prtica exemplar como negao da experincia formadora a que dificulta ou inibe a curiosidade do educando. (FREIRE, 2002, p.94). Os questionamentos, as perguntas, e as comparaes que partem dos (as) alunos (as) durante as aulas, abrem espao para consideraes que, alm de enriquecer o processo de construo do conhecimento, ampliam 2

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os limites do contedo a ser trabalhado. Da a importncia de dialogar com os educandos e educandas e dar-lhes liberdade de expressar suas idias e curiosidades. Freire (2001) no perodo em que trabalhava com educao de jovens e adultos j vivenciava uma das virtudes que considerava necessria ao educador democrtico. Que preciso saber como ouvir, ou seja, saber como ouvir uma criana negra com a linguagem especfica dele ou dela como a sintaxe especfica dele ou dela, saber como ouvir o campons negro analfabeto, saber como ouvir um aluno rico, saber como ouvir os assim chamados representantes de minorias que so basicamente oprimidas. Se no aprendermos como ouvir essas vozes, na verdade no aprendemos realmente como falar. Apenas aqueles que ouvem, falam. Aqueles que no ouvem acabam apenas por gritar vociferando a linguagem ao impor suas idias. (p.58-59). Muitos professores (as), porm, desqualificam, minimizam, ironizam e/ou negam as contribuies de seus alunos e alunas para no correrem o risco de responder algo que v alm das respostas prontas j preparadas. Mantm a postura de detentores de todo o conhecimento, resguardados pela concepo bancria, que lhes d, segundo Gadotti (1995), maior segurana ao permitir que estabeleam limites ao que ser transmitido em aula. Esse autor afirma que a elaborao do saber, alm dos puros conhecimentos, no se faz sem riscos, sem desafios, para alm da segurana que nossas verdades prontas nos oferecem. (GADOTTI, 1995, p.135) Alm do mais, cabe destacar que a liberdade tambm no se faz sem riscos, sem desafios, nem tampouco se faz, por meio de uma prtica autoritria que inibe a participao dos (as) alunos (as). Quanto a isso, Freire afirma que:O professor que desrespeita a curiosidade do educando, o seu gosto esttico, a sua inquietude, a sua linguagem, mais precisamente, a sua sintaxe e a sua prosdia; o professor que ironiza o aluno, que o minimiza, que manda que ele se ponha em seu lugar ao mais tnue sinal de sua rebeldia legtima, tanto quanto o professor que se exime do cumprimento de seu dever de propor limites liberdade do aluno, que se furta ao dever de ensinar, de estar respeitosamente presente experincia formadora do educando, transgride os princpios fundamentalmente ticos de nossa existncia. (FREIRE, 2002, p.66).

Desta forma, devemos assumir o papel de educadores e educadoras democrticos, no podendo negar o dever de, na nossa prtica docente, reforar a capacidade crtica do (a) educando (a), sua curiosidade e sua insubmisso. Educadores e educadoras democrticos tm como uma de suas tarefas primordiais trabalhar com os (as) educandos (as) a rigorosidade metdica com quem devem se aproximar dos objetos cognoscveis - no tendo nada a ver com o discurso bancrio meramente transferidor do perfil do objeto ou do contedo - onde ensinar alongar o ensino do objeto e do contedo dentro de uma produo que gera condies de possibilitar um aprender criticamente. Tais condies s esto sendo exploradas com educadores (as) e educandos (as) criadores (as), instigadores (as), inquietos (as), rigorosamente curiosos (as), humildes e persistentes. Condio que respeite os conhecimentos e saberes que os (as) educandos (as) trazem do seu cotidiano, das suas vivncias anteriores escola. Educandos e educandas vistos dentro de uma perspectiva na qual aprendem como sujeitos da construo e da reconstruo desse saber que ser ensinado, ao lado de educadores e educadoras, igualmente sujeitos do processo. 2

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Para que haja uma relao horizontal o dilogo fundamental, e este consiste no respeito aos educandos e educandas. Para coloc-lo, o (a) educador (a) no pode se pr na posio ingnua de quem se julga detentor (a) de todo o saber, deve, antes, colocar-se na posio humilde de quem no sabe tudo, levando em considerao que o (a) educando (a) algum com toda uma experincia de vida e tambm portador (a) de um saber. Desta maneira, o dilogo se impe como caminho pelo qual homens e mulheres ganham significao enquanto seres humanos. uma exigncia existencial, o encontro em que se solidarizam o refletir e o agir dos sujeitos interessados na transformao e humanizao do mundo. imprescindvel que o pensar seja verdadeiro para que se tenha um dilogo, tambm verdadeiro e crtico, objetivando superar, assim, a contradio que se instaura entre opressor-oprimido. Da a importncia do papel do (a) educador (a) no desenvolvimento de sua tarefa docente no apenas ensinar os contedos, mas tambm de possibilitar aos educandos e educandas a aprendizagem do pensar certo, ou seja, levar seus alunos e alunas, perante a leitura e estudo de textos ou teorias, irem alm do que leram e das idias apresentadas pelo autor ou autora. Pois o ensinar, aprender e pesquisar lidam com esses dois momentos do ciclo gnosiolgico: o em que se ensina e se aprende o conhecim