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1 UBE UNIÃO PELAS LETRAS Editorial Na luta por uma nova forma de representação dos escritores brasileiros Confraternização UBE organiza evento para marcar seu 54º aniversário Ação As UBEs do Nordeste brigam por mais recursos Institucional Entidade marca presença em eventos literários locais, nacionais e internacionais Brasilianismo Aumenta o interesse pela literatura brasileira fora do país Entrevista Raimundo Carrero expõe seu processo de criação e fala sobre suas obras Gênero O romance histórico está em alta entre os autores contemporâneos Patrimônio Os 150 anos do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico de Pernambuco Entrevista A escritora Fátima Quintas na presidência da APL e o pioneirismo das mulheres Quadrinhos Roteiristas de HQ têm se aventurado na prosa e se firmado no mercado editorial Crítica Como definir o que é bom e o que é ruim no campo literário? 02 04 08 12 18 22 30 38 44 46 52 ARTIGOS Lucilo Varejão Neto Viagem ao Brasil Galeno Amorim Semeando livros Frederico Pernambucano de Mello Foucault e as máscaras da história Hugo Monteiro Ferreira Questões para reflexão Luzilá Gonçalves Ferreira Crianças, escola, literatura e prazer Melchíades Montenegro Filho Patrimônio da cultura literária pernambucana 28 36 50 78 86 88 Entrevista Marcos Accioly fala sobre sua obra e analisa a cena cultural brasileira Posicionamento O debate e o enfrentamento de ideias na literatura Gastronomia Mesmo tendo grande importância, a cozinha nacional aparece muito pouco nas obras literárias Cinema Como analisar as adaptações de livros para a sétima arte Infantojuvenil Escritores e ilustradores têm dedicado especial atenção a esse público, fugindo de títulos pobres, moralizantes e antipoéticos 58 62 68 72 80 12 DIVULGAÇÃO CAPA/IMAGEM: ROMEL DE LA TORRE/REPRODUÇÃO

divulgação 12alexandresanttos.com.br/revista2012.pdf · 2012. 7. 30. · Os 150 anos do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico de Pernambuco Entrevista A escritora Fátima

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UBEUNIÃO PELAS LETRAS

EditorialNa luta por uma nova forma de representação dos escritores brasileiros

ConfraternizaçãoUBE organiza evento para marcar seu 54º aniversário

AçãoAs UBEs do Nordeste brigam por mais recursos

InstitucionalEntidade marca presença em eventos literários locais, nacionais e internacionais

BrasilianismoAumenta o interesse pela literatura brasileira fora do país

EntrevistaRaimundo Carrero expõe seu processo de criação e fala sobre suas obras

GêneroO romance histórico está em alta entre os autores contemporâneos

PatrimônioOs 150 anos do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico de Pernambuco

EntrevistaA escritora Fátima Quintas na presidência da APL e o pioneirismo das mulheres

QuadrinhosRoteiristas de HQ têm se aventurado na prosa e se firmado no mercado editorial

CríticaComo definir o que é bom e o que é ruim no campo literário?

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ARTIGOS

Lucilo Varejão NetoViagem ao Brasil

Galeno AmorimSemeando livros

Frederico Pernambucano de MelloFoucault e as máscaras da história

Hugo Monteiro FerreiraQuestões para reflexão

Luzilá Gonçalves FerreiraCrianças, escola, literatura e prazer

Melchíades Montenegro FilhoPatrimônio da cultura literária pernambucana

283650788688

EntrevistaMarcos Accioly fala sobre sua obra e analisa a cena cultural brasileira

PosicionamentoO debate e o enfrentamento de ideias na literatura

GastronomiaMesmo tendo grande importância, a cozinha nacional aparece muito pouco nas obras literárias

CinemaComo analisar as adaptações de livros para a sétima arte

InfantojuvenilEscritores e ilustradores têm dedicado especial atenção a esse público, fugindo de títulos pobres, moralizantes e antipoéticos

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UBE | EditorialExpediente

DIRETORIA EXECUTIVA

Presidente Alexandre SantosVice-Presidente Geraldo Ferraz

1° Vice Presidente Sílvio Hansen

2° Vice Presidente Melchíades Montenegro

Secretário Geral Cássio Cavalcante

1° Secretário Jair Martins

2° Secretário Rachel CarrilhoTesoureiro Geral

Rogério Generoso1° Tesoureiro

Robson Sampaio Administrador Geral Salete Rego Barros

1° Administrador Marcos de Andrade

2° Administrador Jaqueline Torres

DEPARTAMENTOS

Música Dulce Albert

Artes Plásticas Fátima Almeida

Teatro Altair Leal

Língua Portuguesa Telma Brilhante

Intercâmbio Nacional André de Sena

Intercâmbio Internacional Laura Areias

Cultural Wilmar Medeiros

Imprensa Fernando Farias

Capacitação Diana Rodrigues Lopes

Patrimônio e Acervo Tavares de Lima

Pesquisa e Tecnologia Antônio Filho Neto

Jurídico Adalberto Arruda

Direito Autoral Meca Moreno

Relações InstitucionalEduardo Côrtes

Social Bernadete Bruto

Revista da UBE/PEProdução e Edição

Mariana Oliveira / DRT 3381Edição de Arte/Projeto Gráfico

Luiz Arrais / DRT 3054Revisão

Maria Helena PôrtoImpressão

CCS Gráfica e Editora

O novo modelo de representação dos escritores brasileiros Por Alexandre Santos

Vivemos em coletividade. Essa pequena frase encerra conhecimentos adquiridos e desen-volvidos pelo homem nos últimos 10 mil anos de presença na Terra, explicando a evolução da

espécie humana, o desenvolvimento social, político, cien-tífico e tecnológico e explicando, também, o princípio do aprendizado através da transmissão de conhecimentos en-tre comunidades, sociedades e gerações. Na vida em cole-tividade, surge uma espécie de conhecimento coletivo (ao mesmo tempo, é de todos e não é de ninguém) que, atra-vessando os tempos, percola o tecido social, contaminan-do todos para orientar decisões e impor comportamentos, sendo um dos principais responsáveis pela bem-sucedida jornada cumprida pela humanidade. Vale observar que, sob referências gerais como “colaboração” e “cooperação”, a dinâmica social implícita na “vida em coletividade”, pro-jeta-se em diversos níveis nos vários campos do relaciona-mento, deixando marcas positivas.

Na economia, por exemplo, em atitude que muitos cha-mam de “divisão do trabalho”, tomando por base voca-ções e formações individualizadas, a vida em coletividade desenvolveu um modus operandi que atribui aos envolvidos responsabilidades sobre segmentos para os quais estejam mais bem preparados. E, na esteira desse conceito, cada um ocupa lugar específico no palácio dos construtores. Uns são agricultores, outros são médicos, outros são engenhei-ros, outros são juristas, outros são comerciantes e assim por diante. No campo das artes literárias, não é diferente, pois tendo sempre um nicho leitor como “alvo”, em função de talentos e do modo como melhor contam a vida e descre-vem o mundo, uns falam em linguagem poética, outros em linguagem prosaica, uns fazem mergulhar na ficção, outros no realismo, uns nisso, outros naquilo, compondo a plu-ralidade multifacetada que transborda bibliotecas por todo o planeta. Observemos que, para oferecer o melhor resul-tado, o sistema decorrente da vida em coletividade precisa funcionar em ambiente de liberdade e de despreendimento, de modo que os talentos possam não apenas ser revelados, mas, sobretudo, aplicados. Não faria sentido um coral que, desconhecendo a existência de tenores, contraltos, baixos e

sopranos, ocupasse todas as posições com barítonos orien-tados a, conforme o caso, ajustar a modulação vocal.

Alcançada pela aplicação de contribuições individuais, segundo princípios da cooperação e da colaboração, a pro-dução dos bens econômicos tende a se aperfeiçoar em fun-ção da progressiva especialização dos envolvidos, reduzindo custos e gerando bens de melhor qualidade. A produção de um livro, por exemplo – que decorre do engajamento de um conjunto de profissionais sobre o texto para dar forma de objeto à obra de arte do escritor –, será tanto mais eficien-te quanto mais talentosos e preparados forem os escritores, editores, capistas, designers, impressores, publicitários e digi-tadores. Nessa perspectiva, para maximizar o benefício que pode oferecer ao bem-estar, além de liberdade e despren-dimento à vida em coletividade, precisa valorizar a descen-tralização, estimulando a revelação e o aperfeiçoamento de talentos, e cultivar a articulação, não apenas para organizar o processo produtivo, mas também para subordiná-lo aos interesses da sociedade. De fato, quanto mais amplo for o portfólio de talentos, maior será a probabilidade de sucesso do conjunto ou, inversamente, quanto mais contido ele for, menor será essa chance.

Acontece que nem sempre o bem-estar geral interessa a todos. De fato, muitas vezes, por razões menores, com olhos voltados apenas para os próprios interesses, forças conser-vadoras investem na concentração, de modo a controlar for-mas de conquista e manutenção das benesses advindas dos processos. Vem sendo assim no Brasil. Não é outra a razão da enorme concentração dos investimentos públicos nos seg-mentos culturais, na Região Sudeste do país. Além de injus-tos, processos que excluem brasileiros oriundos das diversas regiões são capengas, pois, afinal de contas, sendo o Brasil um país continental e, portanto, constituído por realidades associadas às mais diferentes condições topográficas, cli-máticas, históricas, econômicas, políticas e sociais, não há como representá-lo por padrões genéricos, como se não houvesse diferenças ou brasileiros de algum estado ou região tivessem características iguais ou merecimentos diferentes.

Atualmente, em Pernambuco, no nível em que atua, fruto dos aperfeiçoamentos e depurações inerentes à “vida

em coletividade” e satisfeito com avanços que protagonizou e impulsionou através da abertura de espaços para as diversas mani-festações que animam a cena literária con-temporânea – sem buscar responsáveis para a perda de preciosas e estratégicas posições ou almejar a exclusividade ou hegemonia da responsabilidade pela defesa do sistema maior em que se insere – o movimento União pelas letras alerta a sociedade para o recrudes-cimento do espírito concentrador que, além de marginalizar e excluir muita gente boa, tenta sufocar a emergência de entidades re-presentativas de escritores por todo o país. É notório que o modelo de representação con-cebido nos anos 1950, baseado no funcio-namento de UBEs estaduais foi deturpado, assumindo uma formulação petulante que, mesmo sem mandato específico e claramente estabelecido e pactuado, tenta afirmar a su-perioridade de uma sobre as demais, acenan-do a hegemonia e a exclusividade do falar em nome dos escritores brasileiros, inclusive na discussão de políticas nacionais e distribuição de recursos e oportunidades.

Estabelecida a desavença, é hora de pro-curar soluções.

Com o espírito que animou heróis na-cionais como Matias de Albuquerque e Frei Caneca, escritores pernambucanos se insur-giram contra a usurpação da bandeira que é de todos e, em setembro de 2011, aprovaram novo diploma estatutário com vistas à reor-ganização do sistema nacional de represen-tação dos escritores brasileiros, não apenas disciplinando a abertura de representações municipais e instalação de secções regio-nais, mas também criando o Conselho de Articulação Nacional – instância integrada por representantes de todos os estados da Federação que, com a função de auxiliar a formulação de políticas nacionais de cultura literária, provavelmente constituirá semente do novo sistema de representação.

É nessa ambiência – animada e estrutu-rada no clima vivido desde 28 de setembro de 2011, quando o Congresso Brasileiro de Escritores em Pernambuco abriu caminho para o restabeleci-mento do caráter nacional da representação política dos escritores brasileiros – que a UBE lança mais uma edição da revista da entidade.

Como a anterior, em finíssimo acaba-mento, a nova edição da Revista da UBE é uma obra-prima digna de constar nas refi-nadas estantes daqueles que colecionem os melhores periódicos culturais sul-america-

nos. Além de extensa matéria sobre a questão das UBEs e a necessidade de reestruturação do modelo de representação nacional do es-critores no Brasil, a revista apresenta repor-tagens sobre o dia a dia da União Brasileira de Escritores, incluindo a solenidade que co-memorou a passagem do 54º aniversário de sua fundação e a Ordem do Mérito Literário Jorge de Albuquerque Coelho, destacando a galeria que reúne os escritores Ariano Suas-suna, Gilvan Lemos, Fátima Quintas, Marcus Aciolly, Raimundo Carrero, Waldênio Porto e Frederico Pernambucano de Melo. A pre-sença da UBE em festas, encontros e festivais literários é objeto de um elenco de matérias especiais, que, além da presença internacio-nal de autores brasileiros e de editoras brasi-leiras na Feira de Frankfurt, contam a história do Instituto Arqueológico Histórico e Geográfico Pernambucano, que, este ano, comemora o sesquicentenário. Completando a pauta, junto com artigos sobre romances históricos, adaptações do cinema para a literatura, gas-tronomia e literatura, HQ e literatura infan-tojuvenil e seu boom, a Revista da UBE traz entrevistas com Raimundo Carrero, Fátima Quintas e Marcos Accioly.

Ao entregar este novo número à socieda-de, a UBE reafirma o orgulho do programa editorial que leva adiante, convicta de que, no ritmo ao alcance das suas atividades, vem di-vulgando o que existe de melhor na literatura da nossa terra. Nossa revista é um documen-to que merece leitura pausada, como se faz o deguste de um bom vinho, e ser guardada cuidadosamente, como se faz com as precio-sidades literárias que nos chegam às mãos.

* Alexandre Santos é presidente da UBE.

O movimento União pelas letras alerta a sociedade para o recrudescimento do espírito concentrador

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UBE | Confraternização

No Dia Nacional da Poesia (15 de março), a UBE fez 54 anos em grande estilo, com

uma importante cerimônia na sua sede, em Casa Forte, área nobre da Zona Norte do Recife. Diversos nomes carimbados da literatura participaram da festa, entre eles, o artista plástico Abe-lardo da Hora.

Por lá ainda passaram e fo-ram celebrados nomes de outras áreas, como o deputado estadual Daniel Coelho. Ele é autor da Lei Estadual segundo a qual 5% dos estoques nas livrarias devem ser compostos por escritores nor-destinos, sendo 2,5% pernam-

bucanos. Coelho, “velho amigo da Casa e dos escritores da ter-ra”, como definiu o presidente da UBE pernambucana, Alexan-dre Santos, recebeu o Voto de Aplauso da entidade, pela apro-vação da lei.

A noite foi marcada por ho-menagens. Foram contempla-dos: o Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernam-bucano, pelos seus 150 anos – é o instituto histórico estadual mais antigo do país –, sendo re-presentado por sua presidente, Margarida Cantarelli; a Socie-dade Brasileira de Médicos, por seu 40º aniversário, representa-da pelo presidente Cláudio Re-

nato Pina Moreira e a Fundação Gilberto Freyre, celebrando 25 anos, representada pela presi-dente Sônia Freyre.

Além das homenagens às entidades, houve a admissão do escritor Frederico Pernambuca-no de Mello na Ordem do Mérito Literário Jorge de Albuquerque Coelho – o prêmio máximo que a UBE pode conceder a um es-critor. Frederico Pernambucano, com a admissão, junta-se a um rol que contempla medalhões como Ariano Suassuna, Rai-mundo Carrero, Fátima Quintas (que discursou antes do home-nageado assumir o microfone) e Gilvan Lemos.

EvEnto, rEAlizAdo Em mArço, mArcoU AS comEmorAçõES do 54º AnivErSário dA inStitUiçãopor Thiago Lins

CASA CHEIA PARAfestejar e homenagear

FotoS: SaNtoS

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2 | Alexandre Santos (C) coordenou a mesa composta por nomes importantes da cena local

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UBE | Confraternização

O presidente da UBE em Per-nambuco, Alexandre Santos, abriu a série de discursos. “A UBE pretende não apenas dis-tinguir e notabilizar entidades e personalidades que se destacam pelo valor e pela contribuição que oferecem à conquista de objetivos da coletividade, mas também proclamar ao país sím-bolos e modelos a serem segui-dos”, afirmou.

Santos aproveitou a oportu-nidade para sublinhar a discre-pância que marca a distribuição de incentivos culturais Brasil afora. O escritor lembrou que, em 2006, 80% dos incentivos culturais federais foram apli-

cados nos estados do Rio de Ja-neiro, Minas Gerais e São Paulo, “numa concentração tão absur-da, que até o Tribunal de Con-tas da União reagiu, lembrando que a lei deveria democratizar o acesso à cultura e não ignorar o artigo da Constituição que obri-ga o governo a combater as de-sigualdades sociais e regionais”.

Encerrando o discurso, opor-tunamente intitulado Há vida inte-ligente e produtiva fora do eixo (refe-rência ao Sudeste voraz), Santos rotulou de skinheads culturais os que agem “em favor de interes-ses localizados e nem sempre compatíveis com as necessida-des da sociedade que compõe

o povo brasileiro. Que, um dia, todos os brasileiros possam ler e escrever a história, o sentimen-to e as vontades da nação para construir uma sociedade melhor para todos”, bradou, agradecen-do em seguida.

Findo o discurso, foi com-posta a extensa mesa. Além do presidente, estavam presentes o Presidente Emérito da UBE, Olímpio Bonald Neto, a Presi-dente da Academia Pernambu-cana de Letras, Fátima Quintas, o Presidente da Academia de Letras e Artes do Nordeste Bra-sileiro, Melchiades Montenegro Filho e o coordenador da Rede Integrada das Academias de Le-

tras e Artes do Nordeste, Waldê-nio Porto.

Completavam a mesa o Pre-sidente da Academia de Artes, Letras e Ciências de Olinda, Carlos Cavalcanti, a Presidente da Academia de Música de Per-nambuco, Leny Amorim, a Pre-sidente da Academia de Artes e Letras de Pernambuco, Tereza Magalhães, o Presidente da Aca-demia Recifense de Letras, Lu-cilo Varejão Neto, a Presidente da Academia de Letras do Pau-lista, Elizabeth Brandt e os ho-menageados.

Tiveram seguimento as ho-menagens, sempre com San-tos entregando diploma, placa

ou medalha, ato que precedia o discurso dos homenageados. O último entre eles foi Frederico Pernambucano de Mello, assu-midamente emocionado depois de ter visto Fátima Quintas, sua velha amiga da Fundação Jo-aquim Nabuco, rememorando histórias de sua juventude ao microfone.

Quintas falou por 15 minu-tos, mas bem poderia resumir a personalidade do colega, ao discorrer sobre sua “delicade-za perceptiva”: “(Isso) o leva não somente a descrever o fato, porém a senti-lo em todas as angulações”, declarou, sobre o olhar profundo do pesquisador.

FotoS: SaNtoS

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Mas a troca de afagos verbais foi apenas um de muitos pontos al-tos naquela noite – ou de 54 anos de história.

E o futuro? Santos mira alto, mencionando um modelo que propõe nada menos do que “a reorganização política dos es-critores no Brasil”, com vistas a equilibrar a distribuição de in-centivos à cultura. O modelo deve ser discutido durante o lan-çamento do Conselho de Articu-lação Nacional, com a presença de representantes de todos os es-tados. Santos afirma que o Con-selho é o primeiro passo na luta por um setor mais justo – ou pela reforma agrária literária.

3-4 | A festa foi prestigiada por um público vasto, de escritores, artistas e intelectuais

5 |Alexandre Santos recebeu seus convidados na sede da UBE, em Casa Forte6-7 | A festa foi uma comemoração aos 54 anos da instituição

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DEmOCRACIAliterária para uns

A mais antiga associa-ção de escritores do Brasil existe desde 1958. De lá até aqui, o

Brasil deixou de ser uma ditadu-ra, passou de devedor a credor do FMI e passou sem maiores consequências pela maior crise internacional desde 1929.

A União Brasileira dos Escri-tores, por sua vez, acolheu mais de 3.700 autores sob suas hostes, com a premissa de discutir po-líticas culturais que atendam os interesses de seus associados, em qualquer manifestação li-terária que seja. Embora a UBE considere oficial e claramente a pluralidade como uma de suas proposições, o órgão o faz levan-do mais em conta o estilo do que a origem do escritor.

A cultura passou por mu-danças nos últimos anos, como se deu com muitos aspectos sociais país afora. Reconheci-damente, os Pontos de Cultura servem, até hoje, como definiu o ex-ministro Gilberto Gil, de “do-in antropológico”, contemplan-do prioritariamente regiões que passariam despercebidas.

Porém estamos diante de uma iniciativa isolada, frente ao panorama secular e viciado da República do Café com Leite.

A PElEjA dAS UBES no nordEStE Por UmA diStriBUição jUStA dE rEcUrSoS por Thiago Lins

Originária da fusão da Sociedade Paulista de Escritores com a As-sociação Brasileira de Escritores, a UBE ainda não passou por uma “reforma agrária” que justifique a missão da entidade hoje.

Em Salvador, por exemplo, há uma representação da UBE de São Paulo, que recolhe as con-tribuições financeiras pagas por escritores soteropolitanos. De acordo com o presidente da UBE em Pernambuco, Alexandre Santos, o eixo Rio – São Paulo sempre esteve à frente do órgão. Porém, a partir da década 1980, começou a ofuscar ainda mais outras regiões e estados.

Um caso emblemático fo-ram as nomeações da Câmara Brasileira do Livro, uma ação da vigência de Gilberto Gil. Dos 20 nomeados, quase três quartos eram do citado eixo. “A ideia era dar um caráter nacional, mas as sedes eram em São Paulo e no Rio de Janeiro”, lembra Santos. Em ocasião de uma teleconfe-rência na época, Santos pediu a palavra. “Elogiei a iniciativa, mas afirmei que na prática não teria resultados porque, apesar do nome nacional, esse não era o caráter (da Câmara)”, conta o escritor. “O nome não dava a ela esse caráter”, reforça Santos,

UBE | Ação

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UBE | Açãoo pretexto de que os mesmos teriam projeção nacional. Foi então que a UBE de Pernambu-co, em parceria com a Bienal do Livro, realizou o Congresso Brasilei-ro de Escritores em Pernambuco, que também ocorreu no segundo se-mestre do ano passado.

Oportunamente, em palestra que integrava o evento, o escri-tor paranaense Miguel Sanches Neto discursou sobre a literatura fora do eixo. A UBE mudou seu estatuto, retirando a sigla que representava o estado de Per-nambuco do seu nome. Pouco depois, Santos destituiu da UBE em Salvador membros ligados à

unidade paulista, autorizando os baianos a assumirem a frente do órgão no local. Foi um episódio simbólico, uma vez que a UBE paulista já havia criado a tal “su-cursal” na terra de Jorge Amado.

LEGITIMAÇÃOUma UBE genuinamente bai-ana já foi criada para que, lá, os es critores possam se organizar e militar. Sua consolidação, por en quanto, depende apenas dos úl timos detalhes burocráticos. Já a legitimidade da “sucursal” será questionada por representan-tes locais junto ao Ministério da Cultura. Essa é uma das ações da

União pelas Letras, corrente à frente da UBE local, assumida por San-tos há três anos. “Queremos a reestruturação da representação nacional dos escritores”, resume.

O escritor admite não exis-tir “uma voz que abra uma caixa preta” do mercado literário no país. Entretanto, não faltam fatos para ilustrar seus argumentos. O próprio faz um esforço de memó-ria e tenta lembrar-se de algum conterrâneo que vá a próxima Feira de Frankfurt, que ocorre em 2013, na Alemanha. Não conse-gue. Comenta o caso do livreiro Tarcísio Pereira, que incentivou a literatura local a ponto de até,

completando que a base da en-tidade estava sediada no velho eixo Rio – São Paulo.

Passado o incômodo da situ-ação, Santos aproveitou a opor-tunidade para se colocar à dis-posição como representante da UBE. “Naquela época, a repre-sentação dos escritores no Brasil era feita pelo representante da UBE de São Paulo”, explica. Ou seja, a representação nacional não garantia acesso a incentivos.

Outro caso se deu em ocasião do Congresso Brasileiro de Escritores, quando Santos se surpreendeu com a grade, que só tinha es-critores cariocas e paulistas, sob

hoje, ser confundido com um es-critor propriamente dito, embo-ra sua relação com os livros, que já soma mais de 40 anos, nunca tenha sido criativa, mas, sim, co-mercial, editorial, afetiva e em-preendedora.

Sobre o episódio, Tarcísio lem-bra com orgulho: “Quem me in-centivou foi Osman (Lins, escritor e, então, sogro)”. O autor de Avalo-vara já tinha ido mais de uma vez à cidade alemã e insistia para que o genro arriscasse. Conseguiu. Tar-císio foi quatro vezes, a primeira no fim dos anos 1980. À época, o intuito era simples: conquistar o capital social que até hoje lhe é

reconhecido. Na bagagem, só as roupas azuis que sempre usou da cabeça aos pés. Deu certo.

Tarcísio voltaria anos mais tarde, em 1991, mas, como o próprio Alexandre lembra, con-vidado pelo governo alemão. Foi quando pôde corrigir uma injus-tiça literária. Se, nas vezes que foi como visitante, se queixou de que os estandes não represen-tavam o Brasil como um todo, quando foi como convidado fez em Frankfurt o que fazia na sau-dosa Livro 7: abriu espaço para os autores nordestinos. A ideia era montar uma exposição com a literatura regional. “O Nordeste deveria ter vez”, sublinha Tarcí-sio. Expôs 150 títulos em cerca de 20m², com autores que iam da Bahia ao Maranhão.

Hoje, o livreiro, que também tem experiência no ramo digital, considera “muito mais fácil” se lançar no mercado. “Está melho-rando e vai melhorar ainda mais. Em 2009, nós fundamos o Fórum da Literatura do Nordeste, em Forta-leza. Alexandre estava conosco. Nesse fórum, juntamos editores, distribuidores, autores... Toda a cadeia produtiva. Tivemos agora uma reunião em Salvador, esta-mos nos preparando para a Feira de Frankfurt do ano que vem (que homenageará escritores brasilei-ros)”, afirma Tarcísio, à frente, agora, da editora que carrega seu nome, para a qual não deve pro-curar nomes de fora:

— Tem muito nome daqui que pode vender bem, conclui.

A União pelas Letras quer reestruturar a representação nacional de escritores

Miguel Sanches Neto falou sobre literatura fora do eixo, no Congresso Brasileiro de Escritores em Pernambuco

De tanto incentivar a literatura local, o livreiro Tarcísio Pereira é confundido como escritor

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UBE | Institucional

PARA LANÇAR LUZsobre os escritores

A União Brasileira de Escritores em Per-nambuco, entidade que representa os au-

tores de obras literárias do Esta-do, tem como um dos seus prin-cipais objetivos o compromisso com a cultura, defendendo os in-teresses dos seus escritores e es-timulando-os a marcar presença nos cenários local, regional e na-cional. Dessa forma, a instituição se faz presente nas principais feiras literárias do Estado, des-tacando-se a Bienal Internacional do Livro de Pernambuco e a Festa Literária Internacional de Pernambuco (Fliporto). No âmbito nacional, a realização dos Congressos Brasileiros de Escri-tores em Pernambuco, dos Encontros Estaduais de Escritores e, ainda, dos Encontros Nacionais de Poesia Urbana – um empreendimento que desafia o órgão por conta da sua comple-xidade – é prioridade para enti-dade. A UBE também participará, em 2013, da maior feira de livros

A UBE tEm intEnSificAdo SUA PArticiPAção Em EvEntoS litErárioS com o oBjEtivo dE AProximAr oS AUtorES do SEU PúBlico por Pedro Paz

do mundo, a de Frankfurt (Ale-manha).

A UBE é feita por escritores, para escritores e para o públi-co que aprecia a arte literária, além de outras linguagens que interagem com ela, como o tea-tro, a música, as artes plásticas. Contudo, o foco da instituição é mesmo o leitor. Mas não só isso. A entidade também dese-ja atingir o público não leitor. A experiência de integrar a grade da programação de feiras literá-rias trouxe o aprendizado de que a UBE deve sempre oferecer as condições necessárias para que os escritores dos variados gêne-ros literários atuem em pleni-tude, a fim de que a sociedade conheça a sua obra. E tem con-seguido. As festas e feiras de li-teratura são espaços que devem ser ocupados para tal empreen-dimento. Por isso, atuar nesses eventos é uma forma de lançar luz sobre o escritor, de aplacar os

A UBE manteve um auditório com 60 lugares, na última Fliporto

divulgação

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UBE | Institucional

Ao participar de eventos, a UBE reforça sua imagem de entidade representativa dos escritores

xandre Santos, estar presente em eventos literários é essencial para a publicidade do trabalho que a UBE vem desenvolven-do: “Ao participar deles, a UBE reafirma e reforça sua imagem como entidade representativa dos escritores, contribuindo de maneira ativa no processo de divulgação da produção literária dos artistas da palavra. O maior retorno que decorre da partici-pação dela nas festas e feiras li-terárias diz respeito à imagem da entidade perante a sociedade e, também, aos escritores que re-presenta”, conclui.

Durante a 8° Bienal Internacional do Livro de Pernambuco, por exem-

plo, realizada no terceiro tri-mestre de 2011, a UBE-PE pro-tagonizou o IV Congresso Brasileiro de Escritores em Pernambuco. Questões como a cadeia produtiva do livro, articulação cultural e projeções na literatura, do mesmo modo que o fenômeno sociocultural do cordel e a história, impren-sa e mídias alternativas na lite-ratura foram debatidas durante o evento. Nele, ainda, houve o lançamento da livraria virtual da UBE. Enquanto isso, na edição da Fliporto do mesmo ano, que atraiu cerca de 80 mil pessoas, a UBE se fez presente por meio de uma tenda localizada na cidade de Olinda, no Sítio de Seu Reis,

no Parque do Carmo, com um auditório para 60 lugares. Lá, fo-ram realizadas palestras, recitais, lançamento de livros e outras atividades culturais. Temas que despertam interesse como o de-safio das editoras alternativas em Pernambuco e a poesia e o tea-tro em A ópera do sol e G’Dausbbah’ tiveram espaço garantido na sua programação. Nessa festa lite-rária internacional, a instituição fez homenagem aos escritores pernambucanos Mauro Mota e Amaro Quintas, que completa-riam 100 anos em 2011.

Para o diretor da UBE, Rogério Generoso, o legado da entidade e o trabalho que ela desenvolve

nos encontros literários de me-nor porte também afiançam a participação da instituição nas principais feiras literárias de Per-nambuco e do país. Segundo ele, isso se dá, principalmente, pelo fato de ela defender histórica e estatutariamente o interesse de todo escritor, independente-mente de ele ser associado ou não. “Os eventos literários têm a percepção de que a UBE fo-menta e defende aquele que é o meio para que o produto final – o livro –, em toda sua cadeia, seja concluído. Por isso, a entidade tem lugar abonado em eventos de grande porte como Bienais, Fliporto, e, também, em debates

institucionais, sem esquecer, no entanto, dos encontros microrre-gionais, ou dos novos grupos de estudos e recitais poéticos que se formam. Enfim, a UBE traz em si a presença do escritor brasileiro, radicado em Pernambuco, ou em qualquer rincão deste país.”

O conjunto dos escritores pernambucanos desde sem-pre tem contribuído para im-plementar políticas públicas de incentivo à cultura, em que a literatura se insere. A UBE tem lutado, inclusive, com mudan-ças estatutárias, em defesa de uma atuação nacional articula-da e igualitária entre as diversas entidades de todas as regiões do Brasil que promovem o escritor e a literatura. Tais discussões vão desde a estética, a crítica, o fomento até a participação nas decisões de investimentos pú-blicos na linguagem, norteados pelo Plano Nacional de Cultura do Governo Federal (PNC), por meio do Ministério da Cultura. Para Rogério Generoso, a im-plantação do Plano Nacional de Cultura, que contempla a dimensão simbólica, cidadã e econômica dessa esfera, fez com que o escritor “antenado” com os novos paradigmas sociais es-tivesse incluso no processo de disseminação cultural no país.

hiatos entre o fazer literário, sua produção e distribuição. Assim como contribuir para a forma-ção de novos leitores e a inclusão social de cidadãos à margem da prática da escrita e compreensão da leitura, ferramentas indis-pensáveis para desenvolvimento de qualquer nação.

Atualmente, a UBE em Per-nambuco reúne aproximada-mente 1.300 escritores cadas-trados. Esse elevado número contribui para que a instituição se apresente como uma das en-tidades mais amplas e com a maior diversidade de pensa-mento e escrita do Brasil. Para o presidente da Instituição, Ale-

O diretor Rogério Generoso destaca a participação da entidade em eventos de pequeno porte

Palestras e recitais atraíram um grande público ao espaço da UBE

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UBE | Institucional

Era 1991, quando, diante da exclusão de editoras nordestinas no estande brasileiro montado na Feira de Frankfurt, o livreiro e escritor tarcísio Pereira liderou movimento que resultou na formação independente de outra delegação – o outro Brasil – que re-presentou 1.800 escritores nordestinos no evento. independentemente da vontade do eixo, as editoras nordestinas se fizeram presentes na Feira de Frankfurt, que seria realizada naquele ano. dois anos depois, o Brasil foi o país homenageado. Em 2013, exatamente 20 anos depois do primeiro preito, o Brasil voltará a ser o país vene-rado do evento. E a UBE estará presente nessa que é a maior feira de livro em todo o mundo. A importância disso não se dá ape-nas pela grandiosidade do acontecimento, mas, principalmente, por ser a cidade onde se encontram os principais editores, auto-res do momento, os agentes literários mais importantes, jornalistas especializados de dezenas de países – além de ser o local em que são realizados os maiores negócios do universo das letras por meio da venda de direitos autorais.

Só para se ter uma ideia da magnitu-de da Feira do Livro de Frankfurt, realizada a cada dois anos, em 2010, ela obteve um

saldo de 279,3 mil visitantes e 7.539 expo-sitores de 111 países. na ocasião, editores brasileiros fizeram negócios da ordem de US$ 170 mil. A estimativa é do projeto Bra-zilian Publishers, que ouviu 80% dos edito-res presentes na feira – que participaram do estande coletivo da câmara Brasileira do livro (cBl). na época, segundo o levanta-mento, a expectativa foi de que os contatos feitos na Alemanha renderiam ao menos US$ 274 mil no ano seguinte. outros dados que tiveram destaque: 59% dos exposi-tores ficaram satisfeitos com a qualidade dos contatos comerciais realizados e 77% dos expositores indicaram como “ótimo” o atendimento que receberam da cBl duran-te as exposições. no total, foram realizadas mais de 730 reuniões. Em 2013, como foi dito anteriormente, Brasil será o convidado de honra e terá, ali, uma excelente oportu-nidade de apresentar sua produção literária.

Segundo tarcísio Pereira, ainda não exis-te programação oficial para o estande do Brasil. o que existe, realmente, é um com-promisso do ministério da cultura de que ha-verá um espaço destinado aos editores do nordeste. “já fizemos, com a organização da rede nordeste do livro, leitura e literatura, duas reuniões para debater o tema, com a

Nordestinos em Frankfurt

presença de representante do pró-prio ministério, do Banco do nordes-te, do Programa Brazilian Publishers e do adido cultural do consulado da Alemanha – e todos confirmaram o interesse de participar do projeto para viabilizar a nossa participa-ção. o instituto delta zero é que vem coordenando essas reuniões e convidando demais parceiros para o projeto. Além da participação das editoras, acredito que seja impres-cindível a presença dos escritores sob a coordenação das UBEs. Afinal, a feira gira em torno de textos escri-tos pelos escritores.”

Para ele, esse é o momento dos escritores de outros estados seguirem o exemplo de Pernam-buco, que tem uma UBE muito bem estruturada, respeitada e atuante. “o presidente e escritor Alexandre Santos esteve conosco na reunião realizada em fortaleza, em 2009, quando da fundação da nossa rede, na qual teve oportunidade de falar a respeito da importância da representatividade da classe dos escritores. Sou testemunha da importância e do empenho dele na organização das UBEs nos outros estados da região. recentemente,

no encontro da rede em Salvador, Alexandre deixou clara a importân-cia da independência entre as UBEs, mostrando que cada uma tem vida própria, com total liberdade de or-ganização e posicionamentos. frankfurt é importante não só para a região nordeste, mas também para o Brasil, pois será dessa forma que mostraremos nossa diversida-de literária para o mundo.” tarcísio Pereira já esteve algumas vezes em frankfurt, inclusive como convida-do para fazer uma exposição com a produção literária do nordeste.

Segundo ele, isso se deu por meio do respeito à diversidade de cada estado ou região, criando as condições para o surgimento de novas plateias, ou seja, novos leitores, no caso da literatura. Além disso, auxiliou entidades como a UBE, no sentido de enca-minhar aspirações legítimas da categoria para uma distribuição mais equânime desses incenti-vos. “O escritor deve estar junto e atento a esses movimentos, pro-curando apoio e encaminhando reivindicações a entidades como a UBE. Em contrapartida, os go-vernos, a sociedade organizada e as entidades devem abrir um diálogo maior com a produção cultural de escritores, músicos e artistas em geral, a fim de que a criatividade do povo brasileiro seja exercida ampla e democra-ticamente.”

Levando em consideração o trabalho que a UBE vem reali-zando, é evidente que a sua par-ticipação em eventos literários potencializa a publicidade das obras dos escritores pernambu-canos. O presidente da institui-ção, Alexandre Santos, conside-ra que esse é o objetivo de todos os esforços. “Os escritores – que não são, necessariamente, es-pecialistas em teoria literária – alimentam os debates literários com a principal matéria-prima das discussões: os textos. Por serem autores e, portanto, jun-to com os personagens, grandes protagonistas da cena discutida, os escritores dão vida aos deba-tes literários, tornando-os mais atraentes. Muitos deles vêm se tornando conhecidos em fun-ção do destaque recebido nesses eventos.

Com a consciência dessa oportunidade, eventualmente, única, a UBE tem cuidado em produzir grades capazes de am-pliar a exposição dos escritores, maximizando a chance desfru-tada por cada um deles.”

O Brasil será mais uma vez, em 2013, o homenageado da Feira de Frankfurt

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UBE | Brasilianismo

Na primeira metade do século 18, Johann Wolfgang von Goethe propôs o conceito de

“Weltliteratur”, a literatura mun-dial ou universal, em contrapo-sição ao de literatura nacional. Defendia ele que a poesia é uma propriedade comum à huma-nidade, capaz de surgir por toda a parte e por todas as épocas, e sugeria que seus pares mantives-sem os olhos bem abertos para a arte que se produzia em outras nações. No mundo contemporâ-neo, não por coincidência, é na terra natal do escritor que é rea-lizado o maior encontro do mer-cado editorial no mundo, a Feira de Frankfurt, para onde anualmen-te essa poesia global migra, para ser revelada, apreciada e, é claro, gerar lucros. Desde 1988 (a feira ocorre desde 1949), essa vocação cosmopolita é ressaltada pela es-colha de um país convidado para apresentar a sua literatura. Em 2013, pela segunda vez, esse país será o Brasil. Ponto para o país sul americano, que vê se abrir uma larga janela para divulga-ção e criação de negócios na área. Mas isso indica uma força consi-derável da literatura brasileira lá fora? Estamos escrevendo para o mundo? Se estamos, o mundo está ouvindo?

Uma coisa é certa: os estudio-sos da literatura brasileira lá fora vêm aumentando em núme-ro. Em 2007, 13 anos depois da primeira participação do Brasil como convidado naquela feira, o projeto Conexões Itaú Cultural – Mapeamento Internacional da Literatura

Brasileira se propôs a perguntar quem eram e o que interessava a essas pessoas. Os dados levan-tados pela iniciativa permitem arriscar algumas conclusões. A maioria expressiva desse contin-gente de estudiosos (225 já foram catalogados pelo projeto, entre professores, pesquisadores e tra-dutores), atuam nos EUA, com 88 deles. A França vem em um distante segundo lugar, com 16. Pelo que mostram os números, os clássicos tupiniquins ainda lideram as pesquisas dos atuais “brasilianistas”. Os seis mais ci-tados são Machado de Assis, Cla-rice Lispector, Guimarães Rosa, Jorge Amado, Graciliano Ramos e Carlos Drummond de Andrade. Só a partir de então surgem os vi-vos, com Milton Hatoum, Chico Buarque e Rubem Fonseca.

Dos 225 estudiosos mapea-dos, 179 afirmaram se interes-sar especialmente pela literatu-ra feita no país a partir dos anos 80. “Não parece existir, como se imaginava, uma concentração exclusiva nos autores considera-dos clássicos, mas, pelo contrá-rio, predomina uma curiosidade real pela produção contemporâ-nea”, pontua João Cezar de Cas-tro Rocha, professor de literatura comparada da UERJ e consultor do projeto.

Mas o interesse dos acadêmi-cos não expressa a presença bra-sileira entre o público leitor es-trangeiro. O Index Traslationum, lista dos livros traduzidos no mundo organizada pela Organi-zação das Nações Unidas (ONU), mostra, como era de se esperar,

QUEm São oS EStUdioSoS dA litErAtUrA BrASilEirA lá forA E o QUE dEvE SEr fEito PArA AmPliAr o intErESSE dElES PElo QUE é ProdUzido PElo PAíSpor Diogo Monteiro

O Brasil falapara o mundo?

Paulo Coelho é o escritor brasileiro mais traduzido no mundo

divulgação

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UBE | Brasilianismo

Outro fator que limita a difu-são da literatura brasileira lá fora seria um de seus elementos ba-silares: a língua. Dos pesquisado-res constantes no banco de dados do Conexões Itaú Cultural, 38,67% acreditam que o português é um fator impeditivo para essa di-vulgação. Para Felipe Lindoso, o índice é alto para um idioma que teria uma projeção internacional significativa, como o nosso. “Na verdade, revela a insularidade do português como idioma interna-cional, já que a imensa maioria (de seus falantes) está localizada em um país, o Brasil”, analisa.

O tradutor alemão Berthold Zilly, da Freie Universität/Latei-namerika-Institut, de Berlim, deu uma mostra da necessidade de se contornar esse isolamen-to. “O interesse pelo português é muito grande, e se houvesse mais oferta de cursos, haveria mais estudiosos da língua”, respondeu em seu questionário. Zilly já le-vou para o alemão livros como Os Sertões, de Euclides da Cunha, La-voura arcaica, de Raduan Nassar, Memorial de Aires, de Machado de Assis e Triste fim de Policarpo Quares-ma, de Lima Barreto. Sua próxi-

ma empreitada será a tradução de Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa. Uma ousada empreitada, visto que o romance rosiano teve sua caudalosa nar-rativa vertida para o idioma ger-mânico nos anos 60, pelas mãos de Curt Meyer-Clason, pratica-mente em parceria com o autor, que vaticinou o resultado como a “tradução-mãe” de sua obra.

INSTITUTOEntre as soluções apontadas pe-los estudiosos catalogados pelo Conexões Itaú Cultural, para incre-mentar a presença da literatura brasileira no exterior, justamente a criação de bolsas para tradução é apontada pela maioria como a mais importante ação a ser toma-da. Em seguida, vem a abertura de cátedras de estudos brasileiros em universidades estrangeiras e o aumento no número de progra-mas de intercâmbio entre insti-tuições do Brasil e de outros pa-íses. Em quarto lugar, uma ideia antiga, que nunca saiu do papel: o Instituto Machado de Assis.

Seguindo os moldes portu-guês e espanhol, há muito se fala da criação de um Instituto

Machado de Assis, no âmbito do Ministério das Relações Exterio-res. A entidade teria a responsa-bilidade de centralizar as políticas de difusão da nossa literatura e de divulgação do nosso idioma. Além da continuidade dessas po-líticas públicas, o instituto pode-ria, argumentam seus defensores, aproveitar o momento de prota-gonismo político-econômico do Brasil no cenário internacional para alavancar essa divulgação, algo que já acontece, de maneira mais ou menos involuntária.

Um dos mais engajados de-fensores da ideia do instituto é o advogado e escritor pernambu-cano Antônio Campos. “Essa é uma ação urgentemente neces-sária. O português é um idioma falado por 240 milhões de pes-soas, no mundo. Precisamos in-crementar o intercâmbio, a valo-rização e o diálogo nos países de língua portuguesa”, defende. Em 2005, chegou a ser anunciado um acordo de cooperação entre o Instituto Camões e o ministé-rio brasileiro da Educação para a criação do Machado de Assis, po-rém, a ideia não saiu do plano das intenções.

apoio e estímulo à difusão da li-teratura nacional que vai propi-ciar a manutenção e, mais ainda, o aumento da presença de nossa produção lá fora. Ele cita como exemplos os institutos Cervantes, na Espanha, e Camões, em Por-tugal. Espanhóis e portugueses dão seguimento a uma espécie de grandes navegações da litera-tura. Estes, pelo estabelecimento de programas de tradução e edi-ção em universidades e centros de estudo da literatura e ensino do português. Aqueles apoiam o mercado editorial espanhol a pe-netrar na América Latina

Uma tentativa de sanar essa falta de políticas governamentais foi anunciada em julho do ano passado. O Ministério da Cultura, através da Fundação Biblioteca Nacional, concederá, até 2020, R$ 12 milhões em bolsas de tra-dução a editoras estrangeiras. Até a participação na Feira de Frankfurt, ano que vem, serão investidos R$ 3,2 milhões, distribuídos en-tre bolsas de R$ 2 mil a R$ 8 mil, por obra. Além das traduções, também será dado apoio finan-ceiro para a reedição de títulos já traduzidos.

no Brasil. “Ou seja, hoje em dia, o ‘brasilianista’, muito mais do que nas décadas anteriores, bem pode ser um ‘brasileiro’ radicado no exterior”, aponta Felipe Lin-doso.

APOIOQuando da primeira participação do Brasil como convidado espe-cial da Feira de Frankfurt, em 1994, o reconhecimento da literatura brasileira no exterior, especial-mente, claro, na Alemanha. Até o final da década de 90, o país era o primeiro entre os “terceiro mun-distas” em números de traduções no mercado alemão. Mas, depois dessa efervescência, o ritmo da presença brasileira no exterior decaiu. Na interpretação do jor-nalista e antropólogo Felipe Lin-doso, um dos coordenadores do Conexões, faltam ações institucio-nais de incentivo a essa difusão da nossa produção. “Os programas de apoio à tradução foram inter-rompidos várias vezes, e as ações se resumiram quase que à pre-sença das editoras brasileiras nas feiras internacionais”, avaliou.

Para Lindoso, é a continui-dade nas políticas públicas de

Paulo Coelho como o brasileiro mais traduzido no mundo. Jorge Amado vem em segundo lugar. Leonardo Boff, em terceiro. O quarto brasileiro mais traduzido no mundo é José Mauro de Vas-concelos, autor de Meu Pé de Laran-ja Lima, lembra? Clarice Lispector vem em quinto lugar, seguida do educador Paulo Freire.

No entanto, nomes mais re-centes vêm abrindo seu caminho na senda fechada do mercado editorial estrangeiro. São exem-plos Bernardo Carvalho, cujo Nove noites já foi lançado em 11 países; Patrícia Melo, que levou Elogio da mentira para 20; e Milton Hatoum, que teve obras transcritas para 17 idiomas.

PERFILUm dos dados mais significati-vos do levantamento feito pelo Conexões Itaú Cultural diz respeito ao perfil dos estudiosos da lite-ratura e da cultura brasileira. A grande maioria tem entre 50 e 60 anos; atua como professor-pesquisador; informa-se sobre o Brasil através de amigos e cole-gas, livros, revistas e publicações acadêmicas; utiliza o Aurélio ou o Houaiss como dicionário principal em seu trabalho; e não solicitou ajuda de instituições brasilei-ras para suas traduções. Mas foi a origem desses “brasilianistas” que mais chamou a atenção dos coordenadores do projeto.

O termo brasilianista foi usa-do pela primeira vez em 1969, por Francisco de Assis Barbosa, na apresentação do livro Brasil: de Getúlio a Castelo, de Thomas E. Ski-dmore. O Dicionário Houaiss incor-porou o termo “brasilianismo”, com a seguinte definição: “estu-do de ou especialização em te-mas brasileiros (esp. por parte de estrangeiros)”. Embora a imensa maioria dos mapeados no Con-exões estejam sediados nos EUA, França, México, Alemanha e In-glaterra, nessa ordem, o maior grupo deles (62 dos 225) nasceu

Antônio Campos defende a criação do Instituto Machado de Assis.Berthold Zilly (D) prepara-se para traduzir para o alemão Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa

Clarice Lispector é a única mulher entre os cinco escritores brasileiros mais traduzidos

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UBE | Entrevista

o PrEmiAdo EScritor PErnAmBUcAno, QUE PrEPArA doiS novoS livroS, fAlA SoBrE o ProcESSo dE criAção litEráriA, o PAPEl dA críticA,

doS PrêmioS E dA imPortânciA dA fé, Em SUA vidA entrevista a Débora Nascimento

“no princípio, nem pensava em religião nem nada; agora, as pessoas falam, todas as pessoas falam e falavam em deus. Umas para ressaltar os prazeres do Paraíso, outras para negar a existência divina. E outras, bem outras, que tinham orgulho de não acreditar em deus.” o trecho é de A minha alma é irmã de Deus, romance agraciado, em agosto de 2010, com o Prêmio São Paulo de literatura. o título do livro de raimundo carrero não é apenas lírico e sublime, mas guarda uma característica marcante: a ligação do autor com o divino.

o escritor pernambucano é uma pessoa religiosa e, agora, mais do que nunca, apega-se à fé no enfrentamento dos problemas decorrentes do acidente vascular cerebral que sofreu dois meses depois de ter recebido a citada premiação. o derrame provocou uma paralisia nos movimentos do lado esquerdo do seu corpo, o que fez com que, ainda hoje, o romancista escreva teclando apenas com o dedo indicador da mão direita. mas isso não o impede de criar. “Eu adoeci, mas não morri. continuo trabalhando do mesmo jeito, graças a deus.”, conta, ressaltando que escreve todo santo dia e ainda voltou a dar aulas nas suas oficinas literárias e a fazer palestras pelo país.

Seguindo esse ritmo profícuo, carrero lançou, no ano passado, Seria uma sombria noite severa (record) e agora prepara mais dois livros, a novela Tangolomango, ritual das paixões desse mundo, e Às vésperas do Sol, um livro autobiográfico, em que abordará a difícil experiência da doença e o proces-so de recuperação, que vem lhe exigindo uma carga máxima de determi-nação, paciência e esperança. “nesse livro, que vai entrar agora, o passado se introduz no presente com algumas coisas, com alguns momentos de reflexão, de análise da minha vida, de como foi minha vida, meu comporta-mento”, conta o escritor à UBE.

Em seu apartamento, no Bairro do rosarinho, carrero concedeu esta entrevista, numa tarde de sexta-feira, antevéspera de São joão, na qual duas de suas simpáticas irmãs o visitavam. Sentado numa poltrona, em frente à tv desligada, o autor, vestido com a camisa do evento literário Free Porto, tinha ao seu lado direito uma mesinha repleta de objetos, entre eles dois terços. “rezo o terço todo dia... .” na conversa, lembrou com emoção do início da carreira, quando recebeu ensinamentos de Ariano Suassuna; falou do seu processo de criação literária, da importância dos prêmios, do papel da crítica, e também de sua maior ambição como escritor: escrever a biografia de jesus cristo e de nossa Senhora.

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RAImundo CARRERO

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UBE | EntrevistaComo está o processo de escrever após o AVC?Teoricamente, não mudou nada, porque costumo escrever meus livros da seguinte forma: primeiro, escrevo um texto inteiro – digamos que seja um rascunho, mas é um texto inteiro. O computador favorece muito isso. Depois, vou entrando, mexendo, mudando, alterando; mudo sequências. É o que eu estou fazendo agora. Escrevo um romance. Então, terminei e tenho duas versões. Vou fazer agora a versão definitiva. O que me dá trabalho é escrever com um dedo só. Minha mão esquerda não trabalha.

Você não tem ninguém que o ajude na digitação?Não tenho e nem quero, porque literatura é uma coisa muito particular, privada. Você tem que fazer sozinho. E até o ato de digitar é um ato de criação. O digitar é muito bom. Ou o datilografar, como era antigamente. E isso é fundamental. O meu processo criativo continua o mesmo. Anoto muito pouquinho da história, crio o nome dos personagens, depois começo a trabalhar. Continuo trabalhando normalmente. Estou escrevendo dois livros: Às vésperas do Sol, que é um livro autobiográfico sobre a minha doença, e uma novela, que se chama Tangolomango, ritual das paixões desse mundo. E vou começar um novo livro, que vai se chamar As testemunhas da solidão, que é um livro para os leitores, porque eles são testemunhas da solidão do autor. Já escrevi dois para escritores. Agora vou escrever um livro para leitores, sobre como ler romance, como ler prosa. Já tenho alguma coisa anotada. Logo, logo, eu começo e termino esse aí. Eu adoeci, mas não morri. Continuo trabalhando do mesmo jeito, graças a Deus.

Você escreve diariamente?Diariamente. Pode ser que eu não escreva muito, mas escrevo. Até porque isso é uma técnica considerada do romance. Quem escreve romance não pode parar. Conto, não, porque você escreve um conto hoje, um conto

amanhã, outro depois e pode escrever normalmente. Mas, no romance, não, você tem que ter sequência, movimento, tem que manter o ritmo.

Como vai ser esse livro autobiográfico? Será a partir da doença ou desde os primórdios do menino Carrero?Não, o menino vai ser mais tarde. Vou escrever um dia, se interessar a alguém, a minha autobiografia. Mas isso será depois, muito depois. Quando eu ficar velho, eu escrevo. Tenho muita coisa anotada. Nesse livro que vai entrar agora, o passado se introduz no presente com algumas coisas, com alguns momentos de reflexão, de análise da minha vida, de como foi minha vida, meu comportamento, quais as minhas conquistas, os meus fracassos.

Depois que um livro seu está publicado, você o relê?Releio à medida que vão saindo as críticas. Quando alguém bota defeito, vou ver o meu romance, se realmente cometi aquele erro ou se o crítico é bobo. Mas não o leio todo, sistematicamente, da primeira à última página. Leio rápido algumas partes. Não gosto muito. Reler me põe muito nervoso e inquieto. É melhor escrever.

Qual o impacto que a crítica tem na sua carreira?Em geral, a crítica é muito simpática comigo. É natural que apareça um crítico ou outro que bota defeito. Porém defeito onde não pode botar, porque se tem alguém nesse país que entende de romance, desculpe a minha vaidade, sou eu. Se um crítico disser algo, eu vou ver. Quase sempre ele está errado, mas respeito. A crítica tem impacto sobre a minha vida literária, no sentido de que gosto de apreciar até que ponto minha obra realmente está valendo a pena. É como os prêmios. Prêmio, para mim, é um momento de avaliação. Quando ganho um, imagino que a crítica avaliou meu romance. Então, volto a ele para ver se realizei aquilo que a premiação diz eloquentemente. Os críticos, às vezes, cometem deslizes, apontam erros que não existem. Não quero falar agora, não. Estou muito magoado com uma crítica que recebi de Seria uma sombria noite secreta. Mas não estou querendo falar agora, para não ficar com raiva. Quero falar com frieza e distanciamento. Creio que a tarefa do crítico é iluminar a obra do escritor – quando escurece, não vale a pena. Não porque fale mal, falar mal pode, não é? Não pode é errar, porque se eu procurei acertar, ele também tem

que acertar. E, depois, é uma proposta minha para sempre. Crítico não tem proposta de romance, quem tem é o escritor. O escritor é quem sabe o que fez. O crítico vai avaliar se o que o escritor fez é bom. Somente isso, não ficar inventando coisas. Eu percebo que a crítica gosta de inventar coisas. Mas sei me distanciar disso. Fico muito distante e muito tranquilo.

O que é melhor: ganhar prêmio ou vender muitos livros?O ideal é que venda bem, porque ganhar um prêmio é ser lido por um número reduzido de críticos. Mas vender bem significa que é quase certo de estar sendo lido por um grande número de leitores, e ser lido é muito bom, porque estamos conseguindo maiores espaços na vida literária do país. É melhor vender mais. Ganhar prêmio é bom, gosto muito e é importante, porque significa uma avaliação da crítica, uma parte da avaliação; significa que você acertou. Mas vender significa que você está alcançando um público maior. É isso que eu quero dizer. Isso é importante: ter um bom público, um bom número de leitores. Não só para segurar a continuidade da obra publicada, mas, principalmente, para ter leitores. Ter leitores é fundamental e decisivo.

A vendagem de livros, depois da internet, diminuiu?Não. Melhorou muito. Pedro Herz, que é o dono da Livraria Cultura, diz que a vendagem de livros melhorou. Então, acredito. Eu mesmo passei a vender mais. Não muito mais ou extraordinariamente mais, mas apenas mais. Melhorou o nível de vendagem. Acho que o leitor brasileiro responde bem ao escritor, comprando o seu livro, criticando, porque hoje a gente pode falar com o leitor diretamente, por causa da internet. Alguns mandam e-mails, alguns mandam até cartas ou telegramas pedindo exemplar autografado. É muito bom isso. Porque estreita a relação do autor com o leitor.

A partir de qual momento você se sentiu autenticamente um escritor?Logo no começo da década de 1990, quando publiquei Sinfonia para vagabundos, que foi uma resposta minha muito boa. Costumo dizer nas minhas aulas que o escritor só consegue produzir uma boa obra quando começa a perder o medo dele. Quando começa a escrever o que quer escrever, quando a alma dele manda, o que o sangue pede e desenvolve isso com grande qualidade literária, artística, ele começa a fazer uma boa obra. Enquanto ele tiver medo de si mesmo,

não faz nada, porque começa a fazer a experiência dos outros, o sentimento dos outros, a vontade dos outros, e não a dele. Depois que perde o medo, escreve bem e escreve muito. Isso é mais do que certo.

Essa vontade de escrever ficção começou quando?Eu era criança ainda. Achava que ia ser dramaturgo porque os primeiros livros que li, o grande número, eram peças de teatro e porque eu tinha um irmão mais velho, chamado Francisco, que era ator de circo e por ser ator comprava muita peça de teatro. Cheguei a ler Ibsen através do que ele deixou lá em casa. Como todo retirante, ele viajou e deixou embaixo do balcão da casa de meu pai muitos livros e eu comecei a ler por aí. Quando iniciei, já quis escrever, tinha entre nove e 11 anos. A partir daí, comecei a escrever pequenas peças, pequenas esquetes, besteirinhas, depois escrevi contos. Mas eu me realizo plenamente com o romance. Não gosto do muito longo, mas do curto, de 150 páginas por aí. Mas senti o germe da literatura ainda muito cedo, porque a minha primeira manifestação como artista aconteceu quando era menino – foi com a música. Eu, com oito, nove anos de idade, tocava em

“O escritor é quem sabe o que fez. O crítico vai avaliar se o que o escritor fez é bom. Somente isso, não ficar inventando coisas. Eu percebo que a crítica gosta de inventar coisas. mas sei me distanciar disso”

O primeiro livro de Carrero foi a História de Bernarda Soledade

Ariano Suassuna foi fundamental na formação de Carrero como escritor

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UBE | Entrevistabandas de música e, em alguns casos, a até em bailes, já menino. Depois que eu fiquei adolescente fui tocar música quase profissional numa banda chamada Os Tártaros, na qual fiquei dois ou três anos, e gravei. Aí, achei que as minhas possibilidades como escritor eram maiores. Então comecei a escrever seriamente e não somente como uma criança ou um diletante. A partir daí, a “doença” me pegou e eu não parei mais, graças a Deus.

Quem foi a primeira pessoa que o incentivou a escrever?Bom, foi um padre e um professor. No Colégio Salesiano, tinha um professor que era clérigo, um seminarista responsável por uma turma, chamado Aurélio Loyola – que ainda escreve –, era responsável pelos médios. O colégio era dividido em três categorias, pequenos, médios e maiores. Eu era muito novo, mas era muito alto. Com 10 anos, tinha quase a altura que tenho hoje. Vim para o Colégio Salesiano em 1960 e fiquei entre os médios. Havia um jornalzinho mimeografado e comecei a escrever. Na verdade, iniciei assim: esse jornalzinho chamava-se Baby Júnior, o nome era danado; ele fez um concurso de poemas internos, e eu fiz um poema. Lembro bem: o papel branco e a caneta vermelha, escrevi e o poema foi rejeitado sob a alegação de que não

tinha rima, não tinha métrica, essas coisas. Mas aí o padre disse: “Se quiser escrever, você tem todo o jeito, pode se arriscar”. Aí, eu comecei a escrever crônicas e artigos para o jornal e tentei escrever um ensaiozinho – eu lia muito um autor que não é mais lido no Brasil, chamava-se Paulo Setúbal. Então, comecei a ler muita coisa dele e depois disso eu escrevi um livrozinho, um fascículo chamado O Brasil de Paulo Setúbal. Parei, porque não prestava mesmo. Mudei de colégio, fui para o Diocesano. Daí, escrevi a minha primeira peça séria, chamada A revolta de Paulinho, que também não era grande coisa, terminei perdendo, e tentei tocar o barco para frente. Depois, fui para Salgueiro e escrevi várias coisas pequenas para representar com minha turma. Lá, eu tinha uma banda chamada Os cometas, que depois passou a se chamar The Lovers’ Black Tie. Eu escrevia pequenas peças, lutava para escrever uma novela e não conseguia. É tanto que eu escrevi uma novela com um título horrível, chamada Retalhos e momices, que era brincadeira de menino de 10, 12 anos. Quando saí do conjunto musical, na adolescência, escrevi a primeira novela séria, chamada Grande mundo em quatro paredes, que eu levei para Ariano Suassuna ler, e ele me deu uma resposta que ainda hoje acho fantástica: “Eu vou ler o seu livro.

Se eu não gostar, não significa que ele não presta; significa que eu não gostei. Se eu disser que não gostei, não desanime. Toque pra frente”. Quando voltei lá, numa terça-feira, ele disse: “A novela não é boa mesmo, não. Mas você tem uma coisa muito forte, que é seu estilo, você tem um estilo forte, uma linguagem muito forte. Prossiga com isso. Não pare”. Aí me emprestou Lazarillo de Tormes e Os demônios, de Dostoievski. Voltei para casa, fui ler, e a partir daí me tornei discípulo de Ariano. Escrevi, depois, uma novela Furna do cão e um livro de contos chamado O domador de espelhos. Terminou nada servindo, não publiquei nada, ficou tudo guardado. Depois escrevi A história de Bernarda Soledade, que foi meu primeiro livro. Ariano leu, gostou muito, achou que ela tinha a linhagem armorial, escreveu um belíssimo prefácio de 20 páginas, e publicamos pela Arte Nova, que era uma editora muito forte da época.

Ariano disse que você era um autor armorial. Você concordou na época?Concordei, porque, primeiro, eu queria ser armorial, era algo que eu desejava e pretendia, estudava para ser. Depois, a justificativa dele foi corretíssima: o título corresponde a título de litera-tura de cordel, a estrutura da novela trabalha com símbolos, heráldica, com as metáforas, as imagens do cordel e da cultura sertaneja. Então, concordo com ele. Trabalhei ainda mais dois roman-ces, achando que eram armoriais, e não eram. Na realidade, eu tinha me desviado do caminho sem querer.

Ariano foi uma espécie de mentor.Espécie, não, foi um mentor. Ensinou-me tudo. Tinha a paciência de me receber na sua casa, um dia inteiro, um domingo inteiro. Chegava às nove da manhã e saía às nove da noite. Hoje, morro de pedir desculpas a ele e à sua família, porque eu devia atrapalhar todo mundo, não é?

Isso era todo domingo?Não. Uma vez por mês. Mas, mesmo assim, era um trabalhão. Eu trabalhava com ele na universidade. Telefonava

dizendo: “Ariano, posso ir aí no domingo?” Ele dizia: “Pode vir.” Só uma vez ele disse que não podia. Mas me recebia todas as vezes com muita atenção, muita delicadeza. Ia à estante, apanhava livros, mostrava-me, lia trechos inteiros, páginas inteiras, capítulos inteiros. A gente conversava muito. Muitos perguntavam: “Você não discutia, não?” Eu não estava ali para discutir, não. Estava ali para aprender. E aprendi muito com Ariano. Quase 90, 100% do que aprendi foi com ele. Se é que eu aprendi, não é? Também não posso dizer isso, para não ter a indelicadeza de ofendê-lo, talvez.

Essa experiência com Ariano o influenciou a querer ser um mentor também, não é?Também. Porque ele teve a humildade de me ensinar tudo, de ler livros inteiros, de me emprestar obras literárias, de ler meus originais com uma paciência enorme, porque não é qualquer pessoa que lê um original de um escritor novo, anotando palavra por palavra, de me indicar: “Carrero, por que você não faz assim?”. E ele fez isso. Então, eu só tenho a agradecer muito. E também me tornei um professor de texto justamente porque aprendi muito e queria retribuir ensinando aos outros e, graças a Deus, já tenho ótimos alunos.

Qual a sua maior ambição como escritor?Minha maior ambição como escritor é escrever uma biografia de Jesus Cristo e de Nossa Senhora. Essa é uma ambição que carrego há muito e peço a Deus tempo para fazer, que eu não quero fazer uma besteira qualquer, um perfil. O pessoal tem a mania de escrever um perfil e chamar de biografia. Biografia é diferente de perfil, que é só uma apreciação do escritor ou da personalidade. Quero trabalhar uma coisa séria, que circule entre o histórico e o teológico.

Você tem muita fé, não é? Como foi que começou essa ligação com a religião?Na infância, com minha mãe. Minha mãe era extremamente religiosa. Meu pai, também, só que ele era menos, porque trabalhava muito. E, naquele tempo, mãe era quem cuidava da casa, da criação dos filhos. Não que meu pai fosse ausente. De forma nenhuma. Meu pai era muito presente. Era um interiorano, sertanejo, sério, seguro, muito cuidadoso com a educação dos filhos. Ajudou muito, educou-me muito. Muita coisa do meu caráter, da minha personalidade, vem de papai; outra, de mamãe. Lá em casa, nunca teve essa coisa de filho rebelde.

Qual o livro que todo mundo deveria ler?No Brasil, A Pedra do Reino, o grande romance de Ariano. E, no mundo, Cervantes. Acho que Dom Quixote deve ser lido por qualquer pessoa, em qualquer idade, em qualquer tempo, não se pode perder a oportunidade de ler. Na hora de morrer, tem que lembrar: “Opa, não li Cervantes”. Suspende a morte, para tudo, vai ler Cervantes, depois morre.

Qual o momento mais difícil no processo de escrever um livro?Geralmente, o fim. Botar o ponto final é muito complicado. No começo, a gente é alimentado por todos os sonhos, todas as alegrias – no meio, também. Terminar é terrível. Já finalizei dois romances na editora. Param as máquinas, encontrei o final ali. Foram O amor não tem bons sentimentos e Seria uma sombria noite secreta. Isso não é surpreendente para um autor. Conheço muita gente que diz não conseguir terminar um romance. Na verdade, ninguém consegue. Só consegue, quando publica. Em muitos casos, nem publicado. O livro está publicado, mas tem uma coisa que falta. Hemingway reescreveu o final de Adeus às armas, pelo menos, 79 vezes, para poder dar o livro como pronto. Foi um trabalho imenso.

Quais são os novos autores que o surpreenderam?A literatura brasileira recente está com muitos e grandes autores, que ainda estão construindo uma obra. Digo isso com muita alegria. Tem um menino que apareceu agora, Paulo Scott, e escreveu um livro muito bom, muito curioso. Gosto muito também de Joca Terron, de Ronaldo Bressane, Marcelino Freire, Marçal Aquino e muitos outros dos quais não posso me lembrar agora, mas que estão construindo uma obra de alta qualidade. Não se questiona mais a literatura brasileira. Ela está tão bem-servida, que não se questiona. Seria ingenuidade ou maldade fazê-lo. Só uma grande maldade ou extraordinária ingenuidade podem levar um crítico a questionar a qualidade da literatura brasileira.

“Dom Quixote deve ser lido por qualquer pessoa, em qualquer idade, em qualquer tempo. Na hora de morrer, tem que lembrar: ‘Opa, não li Cervantes’ . Suspende a morte, para tudo, vai ler Cervantes, depois morre”.

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Carrero (1º à esq.) participou de algumas bandas de rock na juventude

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De junho a agosto de 1949, Albert Camus esteve viajando pela América do Sul e em 15 de julho, ele anota em seus Journaux de voyage: Et nous apercevons les lumières de Rio courant au long de la côte, le “Pain de Sucre” avec quatre lumières à son sommet et, sur le plus haut sommet des montagnes qui semblent écraser la ville, un immense et regrettable Chist lumineux ( E nós percebemos as luzes do Rio correndo ao longo da costa, o “Pão de Açúcar” com quatro luzes em seu cume e, sobre o mais alto cume das montanhas, que parecem esmagar a cidade, um imenso e lamentável Cristo luminoso.

Lendo os seus Journaux de voyage, nós percebemos o quanto o Brasil foi inspirador, mas também muito cansativo. Aqui, ele conheceu a macumba, dançou o samba, frequentou um candomblé, visitou vilas de pescadores com suas habitações de palha, conheceu procissões e romarias com os seus adeptos, pagando promessas, observou os hábitos e costumes, tanto do povo como da burguesia enfadonha e vulgar. Por outro lado, conviveu com uma boa parte da intelectualidade brasileira, inclusive com o poeta Murilo Mendes, em alguns ambientes em que ele próprio reconheceu que: M. connaît et cite Char et trouve que depuis Rimbaud, c’est notre poète le plus important. J’en suis contente (M. conhece e cita Char e acha que, depois de Rimbaud, é nosso poeta mais importante. Eu estou contente com isso).

E, também, quando em casa de uma romancista e tradutora brasileira atenta que: la maîtresse de maison traduit Proust et la culture française de tous est vraiment profonde (a dona da casa traduz Proust e a cultura francesa de todos é verdadeiramente profunda).

Algumas das observações de Camus acerca do país são interessantes e não podem deixar de serem notadas, tais como a que fez em relação aos motoristas do Rio de Janeiro, em um tempo em que havia as chamados lotações: Les automobilistes brésiliens sont des fous joyeux ou de froids sadiques. La confusion et l’ anarchie de cette circulation ne sont compenseés que par une loi : arriver le premier,

Lucilo Varejão Neto

Viagem ao Brasil

coûte que coûte (Os automobilistas brasileiros são uns loucos felizes ou frios sádicos. A confusão e a anarquia deste trânsito não são compensadas senão por uma lei: chegar primeiro, custe o que custar).

Ou, ainda, sobre os afrontamentos decorrentes da má distribuição de renda existente em nosso país: Le contraste le plus frappant est fourni par l’étalage de luxe des palaces et des buildings modernes avec les favelas, à cent mètres quelquefois du luxe, sortes de bidonville accrochés au flancs des collines, sans eau ni lumière, où vit une population misérable noire et blanche (O contraste mais chocante é fornecido pela ostentação de luxo dos palácios e dos edifícios modernos com as favelas, a 100 metros algumas vezes, espécie de favelas pregadas nos flancos das colinas, sem água nem luz, onde vive uma população miserável negra e branca).

A natureza brasileira não deixa apenas os nativos deslumbrados com a sua riqueza natural, encontramos referências, por parte do visitante, não só às belezas das aves como às das praias: ...la baie de Rio aperçue cent fois sous les aspects les plus différents. Et les immenses plages du Sud, au sable blanc et aux vagues émeraudes, qui s’allongent, désertes...( ...a baía do Rio avistada cem vezes sob os aspectos os mais diferentes. E as imensas praias do Sul, com a areia branca e as ondas esmeraldas, que se alongam, desertas...).

E ainda: finalement bains dans une eau pure et fraîche (finalmente banho em uma água pura e fresca).

O Recife também esteve no roteiro de Camus.

Quand nous atterrisons à Recife, quatre heures et démie après, la porte de l’avion s’ouvre sur une terre rouge dévoré par la chaleur (Quando nós aterrisamos no Recife, quatro horas e meia após, a porta do avião se abre sobre uma terra vermelha devorada pelo calor).

Porém o recém-chegado em sua peregrinação pelos sítios históricos descobre: Admirables églises coloniales, où le blanc domine... La chapelle Dorée en particulier est admirable. Les azulejos

sont ici parfaitement conservés (Admiráveis igrejas coloniais, onde o branco domina... A Capela Dourada em particular é admirável. Os azulejos estão aqui perfeitamente conservados).

E conclui : J’aime Recife, décidément. Florence des Tropiques, entre fôrets et cocotiers, ses montagnes rouges, ses plages blanches (Gosto do Recife, decididamente. Florença dos Trópicos, entre florestas e coqueiros, suas montanhas vermelhas, suas praias brancas).

Mas a mãe do Recife também é visitada: Nous allons voir Olinda, petite baie, aux vieilles églises. Très beau couvent de Saint–François (Nós vamos ver Olinda, pequena baía, com velhas igrejas.

Muito belo convento de São Francisco).

Também foram feitas observações sobre o bumba-meu-boi que Camus taxou de spectacle extraordinaire, o cavalo-marinho e outras manifestações da nossa cultura popular. Vale ressaltar que uma boa parte das observações camusianas feitas no Brasil estão aproveitadas em sua novela La Pierre qui pousse, dentro de L’Exil et Le Royaume.

É escritor. Autor de De Mersault a Meursault, Escritos e escritores, Histórias verdadeiras, Entre o homem e o mundo e de contos e ensaios diversos.

RepRodução

Aqui, ele conheceu a macumba, dançou o samba, frequentou um candomblé, visitou vilas de pescadores com suas habitações de palha, conheceu procissões e romarias com os seus adeptos

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Nas entrelinhasda Históriao romAncE hiStórico, QUE EncontroU tErrEno fértil no BrASil, PArEcE vivEr Um Boom, SEndo BAStAntE vAlorizAdo EntrE oS AUtorES dE hojEpor Thiago Corrêa

Quando um estudante vai fazer vestibular, ele antes precisa de-cidir seu futuro no

preenchimento do formulário de inscrição. Entre as várias opções de carreira, ele poderá escolher o curso de Letras ou História. Na prova, Literatura aparece num canto e História em outro. Já com a cabeça raspada, o estudante perceberá que os centímetros que separavam os cursos no formu-lário se transformam em pare-des na universidade, isolados em seus respectivos departamentos. Na biblioteca, o aluno precisará se deslocar de uma estante a ou-tra para encontrar livros de His-tória e Literatura, devidamente separados em seções distintas pelo sistema de catalogação. Mas essa divisão que hoje se apresen-ta de maneira concreta, física até, tinha suas fronteiras borradas no passado.

Apesar da Grécia Antiga já fazer a distinção entre a criação ficcional e o discurso mimético, o teórico Luiz Costa Lima mos-tra, no artigo História e Literatura, que uma névoa ainda confundia os leitores no começo do século 16. A invenção e a imaginação conviviam ao lado dos fatos verí-dicos nos relatos de viagem, pas-

savam-se por verdade de acordo com a habilidade e a capacidade retórica do autor em construir uma narrativa coerente, plau-sível para o entendimento dos leitores da época. Porém, com o início das grandes navegações, o aprimoramento das cartas geo-gráficas e a acessibilidade maior às viagens, um parâmetro foi criado, elevando a resistência dos leitores, cujas crenças dei-xaram de ser tão suscetíveis à fantasia. O mundo já não parecia tão vasto assim para nos abrigar junto a criaturas tão diferentes. No artigo, Costa Lima apresenta

registros do século 17 em que lei-tores já tachavam certos relatos de viagem de mentirosos.

Obra que ilustra bem essa confusão mental típica dos mo-mentos de transição é o clássico Dom Quixote, publicado no início século 17. A obra de Miguel de Cervantes apresenta o problema do período ao trabalhar com um personagem que incorpora como verdade as novelas de cavalaria, confundindo ficção com realida-de, enxergando gigantes ao invés de moinhos de vento. “Em Dom Quixote há uma reafirmação do valor da ficcionalidade enquanto

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discurso, enquanto construção de um mundo como poderia ser, e não tal como ele é Dom Quixote reafirma o valor da ficcionalida-de pela via da ironia. Por meio do delírio do personagem ele desconstrói as novelas de cava-laria e reafirma a construção de um mundo que só existe na ca-beça do personagem”, explica o professor da pós-graduação em Letras da UFPE, Anco Márcio Te-nório Vieira.

Aos poucos, o incômodo foi se transformando numa neces-sidade dos viajantes e cientistas em diferenciar seus trabalhos, le-vando-os a romper com a escrita alegórica em busca de uma lin-guagem mais verossímil, dotada de maior credibilidade. Deu-se então a bifurcação: Literatura de um lado, História do outro. Gra-dativamente, ao longo dos últi-mos quatro séculos, elas se dis-

tanciaram de tal forma, que, hoje, as encontramos entrincheiradas em suas respectivas estantes nas livrarias e bibliotecas.

No entanto, a solidez dessas fronteiras se revela frágil, quando abrimos os livros. Do lado histo-riográfico, há algumas décadas a corrente da Nova História e os te-óricos pós-modernos passaram a relativizar o acesso à verdade, por ser fruto de construções discur-sivas e sujeitas a subjetividades individuais. O historiador ame-ricano Hayden White é um dos que encampam essa discussão, jogando luz na estrutura narrativa utilizada por seus colegas para a construção do discurso historio-gráfico. A tese de White, basean-do-se nos estudos sobre o gênero textual do canadense Northrop Frye, é que a escolha da forma empregada já implicaria numa série de subjetividades. Entre os

pós-modernos, temos a também canadense Linda Hutcheon, que põe em suspeita a possibilidade de se alcançar a verdade universal e totalizante, demolindo a ideia de um único centro (homem, branco, ocidental, heterossexual) para a adoção de várias perspecti-vas, cada qual com suas verdades e pontos de vista diferentes.

GêNESE DO ROMANCE HISTóRICOJá a Literatura mergulha na sub-jetividade do eu e sua relação com o terreno do real ganha no-vos tons. De acordo com o teó-rico húngaro Georg Lukács, as mudanças ocorridas na socie-dade europeia durante o período romântico permitiram que uma nova variante do romance fos-se criada, no caso, o romance histórico. A criação da varian-te é atribuída ao escocês Wal-ter Scott, autor de obras como

Waverley (1814), Rob Roy (1819) e Ivanhoé (1819). Neles, Scott apre-senta características que iriam fundar a variante romance his-tórico.

A mais representativa delas está na recusa em se valer da perspectiva oficial (dos heróis e governantes) para abordar fa-tos históricos, abordando-os apenas pelo olhar de persona-gens comuns, numa tentativa de mostrar como esses fatos afetam o cotidiano das pessoas. “O ro-mance histórico não deve mos-trar nem existências individuais nem acontecimentos históri-cos, mas a interseção de ambos: o evento precisa trespassar e transfixar de um só golpe o tem-po existencial dos indivíduos e seus destinos”, aponta o crítico literário americano Fredric Ja-meson no artigo O romance históri-co ainda é possível? (2004).

Entre as causas apontadas por Lukács, estão o romance so-cial do século 18 (variante capi-taneada pelas obras de Jonathan Swift, Henri Fielding e William Makepeace Thackeray) e a nova percepção da sociedade sobre o processo histórico após a Revolu-ção Francesa. Também é preciso lembrar que a gênese do roman-ce histórico ocorre no Romantis-mo, período em que as nações estão erguendo suas fronteiras, definindo-se como Estado. “As-sim como o Romantismo é fi-lho do Estado-nação, o romance histórico é filho do Romantismo e, por decorrência, do Estado-nação. O romance histórico en-cerra o eu da nacionalidade em contraposição ao eu das demais nacionalidades (no caso, o outro). O romance histórico é, como o espírito romântico, uma idealiza-ção do passado, de uma chamada

Era de Ouro, perdida pelo mundo burguês, industrial e cinzento”, observa o professor.

Cabe à Literatura, então, as-sumir o papel de tecer as identi-dades dos países, erguendo sím-bolos nacionais, exaltando seus heróis, divulgando feitos bélicos e valores do pensamento bur-guês, para construir o imaginá-rio da unidade entre povos que co-habitam o mesmo território. Não por coincidência, o romance histórico encontra terreno fértil no Brasil do século 19. “Eles sur-gem para suprir uma deficiência no incipiente sistema intelectual brasileiro: a ausência de uma his-tória pátria escrita por brasileiros. A literatura romântica no Bra-sil praticamente explora apenas uma das vertentes do Romantis-mo: a da nacionalidade. Dentro desse horizonte mental, ela tem uma missão: dizer aos brasileiros quem somos ou, de outro modo, construir a ideia do que somos”, analisa Anco Márcio.

A primeira obra desse tipo no país é Um roubo na Pavuna, de Azambuja Suzano. Publicado em 1843, pouco mais de duas déca-das após Dom Pedro I declarar a independência do Brasil; o ro-mance de Suzano abriu a trilha para a literatura nacional reforçar a desvinculação do país em rela-ção à metrópole. Caminho que, segundo o crítico Antonio Cân-dido, foi posteriormente seguido por autores como Joaquim Ma-nuel de Macedo (com As mulheres de mantilha, 1870), Bernardo Guima-rães (Maurício ou Os paulistas em São Paulo, 1877), Franklin Távora (Os índios do Jaguaribe, 1862; O cabeleira, 1876) e, o mais famoso deles, José de Alencar, com As minas de prata (1862) e A guerra dos mascates (1873). De acordo com o professor Anco Márcio, em Pernambuco também surgiram romances históricos nessa época, sendo Nossa Senhora dos Guararapes (1847), de Bernar-dino Freire de Figueiredo Abreu e Castro, o mais conhecido deles.

Dom Quixote confunde ficção e realidade.A criação do gênero é atribuída a Walter Scott, acima, à direita

Linda Hutcheon suspeita da possibilidade de se alcançar uma verdade universal

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Para escrever Olinda abrasada, foram necessários seis anos de pesquisa para Waldênio Porto

ROMANCE HISTóRICO, HOJEEmbora o romance histórico na-turalmente tenha sofrido mudan-ças do Romantismo para os dias atuais, carregando um viés mais questionador do que de registro, ele se encontra valorizado entre os autores da contemporaneida-de com uma espécie de boom de obras ficcionais no fim do século 20. De acordo com o historiador inglês Peter Burke, o interesse dos leitores pela variante se deve tanto à possibilidade de turismo temporal na comodidade da pol-trona como pela rapidez com que as transformações sociais têm ocorrido nos dias de hoje, geran-do nas pessoas uma necessidade de autoconhecimento do próprio passado.

No Brasil, não tem sido di-ferente. Obras como O chalaça (1994) de José Roberto Torero, Boca do Inferno (1989) de Ana Mi-randa, O xangô de Baker Street (1995) e O homem que matou Getúlio Vargas

(1998) de Jô Soares desfrutaram de grande popularidade entre os leitores. Em comum, todos eles carregam a ficção no DNA e são erguidos nas entrelinhas de fatos históricos relevantes para o Brasil.

Recentemente, duas obras de autores pernambucanos chega-ram à estante do romance his-tórico com a proposta de preen-cher com imaginação as lacunas deixadas em aberto no registro do passado. Tratam-se de Maldição e fé, escrito pelo presidente da UBE Alexandre Santos (2011), e Olinda abrasada (2012) do médico e aca-dêmico Waldênio Porto. Ambos focam nos contornos da invasão holandesa a Pernambuco, no sé-culo 17.

Para escrever Olinda abrasa-da, foram necessários seis anos de pesquisa, entre visitas ao sí-tio histórico e leituras tanto de relatos escritos por portugueses como por holandeses. O cuidado no embasamento é consequên-

cia do projeto estabelecido pelo escritor, que procurou usar o po-der de sedução da literatura para transmitir conhecimento. “Mi-nha preocupação foi de ensinar a História, despertar o interesse dos mais novos para o nosso passa-do. E a literatura é uma maneira mais prazerosa para se contar a História”, aponta Porto. Assim, através da leitura de Olinda abrasa-da, os leitores têm a oportunidade de descobrirem a importância de personagens que hoje se perde-ram, como nomes de viadutos, pontes e ruas da cidade, como o capitão André Temudo e o dona-tário de Pernambuco Matias de Albuquerque.

O rigor da pesquisa se traduz em descrições da paisagem seis-centista, na riqueza de detalhes com que o autor narra a chegada dos holandeses e na complexida-de das tensões culturais, políticas, econômicas e religiosas da época. “Olinda era a Dubai daquela épo-ca, uma vila opulenta, com ri-queza impressionante. Isso atraiu uma população diversa, entre os 2 mil habitantes tinham coloni-zadores portugueses, represen-tantes comerciais holandeses, judeus fugidos da Inquisição na Europa, índios e negros escra-

vos. Havia uma multiplicidade de conflitos”, observa o acadêmico que ocupa a cadeira de número 15 da Academia Pernambucana de Letras.

Valendo-se das tensões des-se tabuleiro, montado com 78 fi-guras históricas; Porto utiliza as brechas da História para inserir outros 44 personagens fictícios e contar a história de amor en-tre a judia Bianca e Tiago, filho de cristãos velhos. “O que fiz foi humanizar a História. Não inven-tei nem alterei os fatos históricos, meu trabalho foi de correlatar fa-tos que realmente aconteceram. Apenas imaginei o sentimento e as reações dos personagens. Por exemplo, não há registro do teor da conversa entre Joers e Calabar, então imaginei esse diálogo cal-cado na verdade histórica”, ex-plica Porto.

Nessa mesma linha, segue o romance Maldição e fé. Embora a obra de Alexandre Santos apre-sente uma liberdade imaginativa maior, ele se mantém fiel aos da-dos colhidos durante os três anos de pesquisa que lhe forneceram subsídios para a criação do ro-mance. “Procuro oferecer dados concretos, sem induzir o leitor a erros. Os marcos históricos que aparecem no livro aconteceram exatamente do mesmo jeito. A literatura está no trabalho de es-culpir o texto, escolher as pala-vras certas para traduzir as ideias, deixando o texto suave”, aponta Santos.

No entanto, essa preocupação não o impediu de criar. Ainda que não deturpe os acontecimentos do passado, Santos se despren-de do compromisso do discurso histórico e explora os elementos reais como uma maneira de ele-var o mistério da trama de Maldi-ção e fé e discutir certas verdades implantadas pela história oficial. “Diz-se que a Holanda invadiu o Brasil, quando na verdade existia um acordo dos holandeses com a Espanha em troca de segurança

no comércio marítimo”, lembra Santos. Além disso, o autor ex-plora a instabilidade da Olinda do século 17, gerada pelo domínio espanhol de Portugal, pela ame-aça dos interesses da Holanda no negócio do açúcar e pela Inquisi-ção, como pontos de tensão em que traça os pilares da sua obra e propõe uma visão crítica sobre as relações de poder.

Nesse caso, o embasamento histórico – ao invés de impor li-mites – serviu de estímulo para a imaginação. Afinal, o autor con-ta que a narrativa nasceu da sua curiosidade em torno da única casa que não sucumbiu ao fogo que destruiu Olinda durante a invasão holandesa. Detalhes so-bre as condições das viagens, das embarcações, da alimentação e das armas da época ajudam o autor a fazer o contraponto en-tre fantasia e realidade para dar maior veracidade à ficção. A par-tir daí, o que seria o mote para um conto acabou se transformando num romance de 336 páginas pe-las quais o autor conta a trajetória do padre exorcista Daniel Coro-geanu, que esteve envolvido no combate à legião do vampiro Vlad

Tepes e depois foi convocado para a caçada aos demônios empreen-dida na Terra Brasilis.

O interessante é perceber que, cada uma do seu jeito, as obras – Olinda abrasada e Maldição e fé – re-tomam as trilhas desbravadas por Nossa Senhora dos Guararapes, que, lá no século 19, já usava as invasões holandesas como matéria-prima literária. Nessas novas viagens ao passado, os autores evidenciam a importância dos eventos seiscen-tistas para a formação da identi-dade dos pernambucanos, refor-çando-os em nosso imaginário.

Os contornos da invasão holandesa em Pernambuco no século 17 servem de pano de fundo para recentes romances históricos

Alexandre Santos e Waldênio Porto autografam exemplares de seus livros

imageNS: divulgação

Alexandre Santos se mantém fiel aos dados colhidos em três anos de pesquisa para Maldição e fé

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Monteiro Lobato completou 130 anos em abril, mas continua tão vivo na memória do povo brasileiro, que foi confirmado como o escritor mais admirado do Brasil. Tal fenômeno, num lugar onde o índice de leitura ainda está aquém do satisfatório, deve-se à marcante presença de sua obra para sucessivas gerações. Foi ele quem inventou a literatura infantil e o próprio negócio do livro no Brasil, além de apregoar que precisávamos ler mais para termos um país melhor.

Além dessa admiração dos brasileiros de todas as idades por Lobato, a pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, do Instituto Pró-Livro, traz outras revelações. A boa notícia é que mostra a consolidação do fato de a média nacional de leitura ter dobrado na última década (de apenas 1,8 livro por habitante/ano em 2001 para os atuais quatro livros).

A má notícia vem justamente dessa consolidação – entre 2007 e 2011, os índices de leitura se mantiveram no mesmo patamar, e até caíram um pouco, quando o que se precisava era justamente o contrário: uma ascensão contínua. Ou seja, o Brasil continua a ler pouco, e ainda temos 100 milhões de brasileiros que não leem um livro sequer.

Para cativar leitores e, sobretudo, os não leitores, é necessário um conjunto de ações, que se por um lado deve atuar no sentido de melhorar e, em muitos casos, dar alguma habilidade leitora à uma parte substancial da população que está distante dos livros, de outro é imprescindível que se dê acesso àqueles leitores ávidos por tê-los à mão.

É aí que entra o papel da biblioteca pública! Mas como cumpri-lo se só um entre cada dez brasileiros vai com frequência a uma delas e nada menos do que metade da população jura que nada será capaz de fazer com que entre em uma delas. Dentre as queixas mais comuns ouvidas pelos entrevistadores do Ibope estão a falta de livros novos, ou em boas condições, e deficiências nos acervos.

Esses fatores, além da difícil acessibilidade, são responsáveis por afastar as pessoas das bibliotecas. Apesar de a maioria dos entrevistados saber da existência de bibliotecas em suas cidades ou

Galeno Amorim

É presidente da Fundação Biblioteca Nacional.

Semeando livros

bairros, mesmo assim três em cada quatro deles não as frequentam (!), um índice exageradamente alto. Por outro lado, sabe-se que não há país desenvolvido no mundo que tenha alcançado essa posição sem, antes, ter solucionado a questão do acesso à educação de qualidade, à cultura e, particularmente, à leitura.

Não por outra razão o tema biblioteca está no topo dos investimentos em políticas públicas do livro e leitura que o Ministério da Cultura e a Fundação Biblioteca Nacional anunciaram no Dia Mundial do Livro e dos Direitos do Autor, celebrado em 23 de abril, data de morte de Shakespeare, Miguel de Cervantes e outros tantos escritores.

Mas não basta construir e implantar mais bibliotecas ou recompor os desatualizados acervos desses equipamentos culturais (embora 20% dos leitores digam que o simples fato de haver livros novos o estimulariam a ir até uma biblioteca). Por isso, além de criar, de forma inédita, um programa que já começa ampliando e atualizando o acervo de 2.700 bibliotecas municipais e comunitárias, com obras escolhidas por elas próprias, serão anunciados novos programas para investir na formação dos bibliotecários.

E, ao mesmo tempo, milhares de jovens e professores e bibliotecários aposentados serão contratados este ano para atuarem nas

comunidades, inclusive rurais, como agentes de leitura, que vão de casa em casa levar os livros e, com eles, um novo horizonte em suas vidas.

Quem sabe, assim, nos meses de abril dos anos vindouros só boas notícias possam ser dadas ao se anunciar os novos retratos da leitura no Brasil. Afinal, somente a leitura formará cidadãos com consciência crítica, e só a leitura, a literatura e o livro, uma nova legião de Lobatos, agora e no futuro.

divulgação

Para cativar leitores e, sobretudo, os não leitores, é necessário um conjunto de ações, dar alguma habilidade leitora à uma parte substancial da população que está distante dos livros, de outro é imprescindível que se dê acesso àqueles leitores ávidos por tê-los à mão

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UBE | Patrimônio

inStitUto ArQUEológico, hiStórico E gEográfico PErnAmBUcAno, QUE fUncionA nA rUA do hoSPício, no rEcifE, comEmorA 150 AnoS dE AtividAdE por Pollyanna Diniz

em boas mãos

Relíquias guardadas

O trânsito não para um segundo. Por aqui, o comércio formal ou informal é intenso.

Os bares e restaurantes congre-gam as pessoas no horário de almoço ou para a cervejinha no fim da tarde. Estamos na Rua do Hospício, no centro da capi-tal pernambucana. Em meio ao caos cotidiano da metrópole, o casarão de número 130 guarda um acervo de preciosidades so-bre a história do Brasil e, mais especificamente, de Pernam-buco, que poucos imaginam. Há não muito tempo, por exemplo, Margarida Cantarelli, desembar-gadora e também presidente do Instituto Arqueológico, Histó-rico e Geográfico Pernambu-cano (IAHGP), descobriu mais uma pérola: a pena com a qual a princesa Isabel assinou a Lei do Ventre Livre, que libertava os filhos das escravas negras nasci-das no Brasil, em 1871. Este ano, o IAHGP está comemorando 150 anos de atividades.

“Quando estava vindo para cá, recebi uma ligação de um senhor do Tribunal de Contas do Acre. Ele me propôs um convê-nio para microfilmar os mais de 400 documentos que o Instituto possui sobre o estado – o que, para mim, foi uma surpresa. As-sim como a pena, que está em um cofre. Eu sabia que nós guar-dávamos vários estandartes de clubes abolicionistas, mas não algo assim”, conta a presidente.

De fato, não há um inventário de tudo que o Instituto possui, só levantamentos de algumas cole-ções – os quadros, por exemplo, estão catalogados de forma mais completa. Mas, se hoje em dia ainda acontece, antigamente era muito comum que a população fizesse doações à casa. “Rece-bi um senhor com uma coleção de livros raros. Disse que o so-gro dele era professor de Histó-ria e que achava que, aqui, no Instituto, aqueles livros podiam d

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UBE | Patrimônioter muito mais serventia, já que seriam acessíveis a um número bem maior de pessoas”, conta Margarida.

Quem chega ao casarão é geralmente recebido por Seve-riano Ferreira de Lima, 73 anos, funcionário mais antigo do local. “Ele é o nosso museu que fala”, avisa a presidente. Severiano está no Instituto desde 1957. Foi trazido por um convite de nin-guém menos do que Mário Melo, “Secretário Perpétuo” do Ins-tituto, uma distinção proposta diante da missão que o jornalista assumiu de preservar a histó-ria e lutar pela associação. Melo ingressou como sócio do IAHGP em 1909 e dizia que a institui-ção era “a razão de ser da minha existência”.

O jornalista, poeta, músico, advogado, professor, se envol-veu diretamente, por exemplo, na organização das celebrações dos centenários da Revolução Pernambucana, em 1917, e da Confederação do Equador, em 1924. Foi também um dos defen-

sores do reconhecimento social do Instituto. Teve êxito: em 1919, o órgão alcançou a patente de associação de utilidade pública e o governo do estado fez a doação da atual sede, onde funcionava o então Ginásio Ayres Brito. O IA-GHP foi fundado e funcionou até 1847 nas instalações do Conven-to do Carmo do Recife; depois passou por outros locais e desde 1920 está no casarão atual.

Por iniciativa também de Mário Melo, quando era depu-tado estadual, o Instituto virou órgão consultivo obrigatório da Câmara Municipal do Recife, sempre que fossem propostas mudanças nos nomes das ruas da cidade. “Ele era um homem muito simples. Mas fez muito por isso aqui”, conta Severiano.

RELíQUIAS O “museu que fala” faz as vezes de guia para o público no térreo da casa (o Instituto tem apenas três funcionários para a opera-cionalização do seu funciona-mento). No primeiro pavimento,

encontra-se o marco divisório das capitanias de Pernambuco e Itamaracá, assentado pelo pri-meiro donatário, Duarte Coelho Pereira, em 1535. O marco é mo-numento nacional tombado pelo Instituto do Patrimônio Históri-co e Artístico Nacional (Iphan), assim como todas as coleções arqueológicas, históricas e artís-ticas do IAHGP.

Ainda no térreo, um painel retrata a Batalha dos Guarara-pes. A obra foi pintada (ou res-taurada, não se sabe ao certo) em 1801, por José da Fonse-ca Galvão. Analisando mais de perto, vemos índios, negros e brancos lutando juntos na ba-talha. O acervo possui, ainda, peças inusitadas para o público, como os óculos de vidro verde que pertenceram ao capitão José de Barros Lima, o Leão Coroa-do, personagem que precipitou a eclosão da Revolução de 1817. Está no acervo, também, a espa-da do Leão Coroado, que foi do-ada ao Instituto pelos netos dele.

“É uma verdadeira aula de História. É muito diferente para o aluno que ele possa visualizar aqui, através de objetos e docu-mentos, os assuntos estudados nos livros”, comenta Margari-da Cantarelli. É possível que se saiba, por exemplo, as circuns-tâncias do assassinato de João Pessoa, mas certamente aquele conhecimento será ampliado e ficará gravado na memória

quando o estudante puder ver a xícara em que o ex-presidente do país estava tomando chá na Confeitaria Glória, na antiga Rua Nova, no Recife, quando foi morto no dia 26 de julho de 1930. Ou, antes disso, o diário do general Abreu e Lima, que lu-tou ao lado de Bolívar durante o processo de independência das “Américas Espanholas”.

No primeiro andar, entre as peças expostas, estão cadeiri-nhas de arruar – uma delas per-tenceu à Matriz da Boa Vista e é decorada com pinturas que fa-zem menção à eucaristia. Toda dourada, parece ter saído de um filme de época. O mobiliário é uma parte bastante significativa do acervo. Há quatro cadeiras do século 17, doadas por Luís Perei-ra de Faria, em 1886; várias me-sas do século 18; mobiliário do Palácio da Presidência da Pro-víncia à época do Conde da Boa Vista; e uma mesa de reuniões da antiga Assembléia Provincial, anterior à inauguração do Palá-cio Joaquim Nabuco.

O Instituto guarda um objeto muito curioso: uma cápsula do tempo, que só será aberta no dia 7 de novembro de 2025. “Quan-do o Diario de Pernambuco (jornal mais antigo em circulação na América Latina) fez um século, trouxe essa cápsula para cá. O jornal confiava que o Instituto iria acompanhar a sua consoli-dação”, conta a presidente. Na cápsula, que fica numa redoma, lê-se: “Esta lata contém a notícia exacta de tudo quanto fez o Diario de Pernambuco para solenizar o seu primeiro centenário em 7 de no-vembro de 1925, oferecida pelo sócio deste ‘instituto’ Naasson Figueredo com a condição de ser aberta em 7 de novembro de 2025”. O Instituto guarda, ainda, a primeira prensa do periódico, de 1825.

São muitos também os papéis e documentos que integram o acervo do Instituto, como os es-critos de Mário Melo para a im-prensa. “Foi uma doação do filho dele. Estamos com um projeto de fazer uma publicação em parce-

Ainda não há um inventário completo das relíquias do Instituto, mas os quadros estão todos catalogados

Pintura a óleo retrata membros da família Burle Dubeux (à esq.).Quem visita o IAGHP tem uma verdadeira aula de História

A pena utilizada pela Princesa Isabel para assinar a lei do Ventre Livre faz parte da coleção

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UBE | Patrimônioria com a Fundação Joaquim Na-buco”, antecipa Margarida Can-tarelli. Para a Revista do Instituto, por exemplo, que circulou pela primeira vez em 1863, e até hoje é produzida, Mário Melo escre-veu dezenas de artigos. No nú-mero 79, escreveu “A maçonaria e a Revolução Pernambucana de 1817”; fez texto sobre o arquipé-lago Fernando de Noronha; sobre os limites Pernambuco-Paraíba, e sobre lendas pernambucanas e arqueologia. Os números da revista “testemunham a mul-tiplicidade e a abrangência dos interesses de pesquisa de Mário Melo”, diz o livro que registra a história do IAHGP.

“O Instituto Arqueológico é, hoje, um centro de referên-cia para pesquisadores de várias áreas do saber, oriundos não só de Pernambuco, mas de outros estados do país e de países es-trangeiros. Seus vastos fundos documentais e bibliográficos atraem pessoas interessadas em estudar e divulgar conheci-mentos sobre o nosso passado e nossa herança cultural”, escre-veram Fernanda Ivo, George Ca-bral, Reinaldo Carneiro e Tácito Cordeiro nesse livro.

DE OLHO NO FUTUROÉ bastante significativo que o nome do Instituto, que agora completa 150 anos, seja “Per-nambucano” e não “de Pernam-buco”. “O Instituto já nasceu uma associação privada. E os fundadores já tinham a noção de que não seria uma entidade governamental, mas uma ins-tituição do povo, que guarda a riqueza do pernambucano”, co-menta Margarida Cantarelli. Essa decisão, no entanto, traz bônus, como a liberdade do órgão, mas também ônus, como as dificul-dades financeiras e de visibili-dade da instituição.

Apesar do rico acervo e de todas as características de mu-seu histórico, o que demanda

ainda mais verba para a sua ma-nutenção, o Instituto sobrevive a partir da contribuição de cerca de 30 sócios que pagam mensa-lidades de R$ 80, além de doa-ções e convênios. A segurança, por exemplo, é feita pela Guarda Patrimonial; e só há três funcio-nários para a manutenção do lo-cal e atendimento ao público.

Margarida Cantarelli apos-ta em parcerias. Numa sala no primeiro andar do prédio anexo, uma equipe cedida pela Funda-ção de Amparo à Ciência e Tec-nologia do Estado de Pernam-buco (Facepe) está empenhada na limpeza, organização, cata-logação e indexação de vários documentos, entre eles cerca de 9 mil inventários – há inventá-rios desde o período do Brasil colônia, “quando os escravos estavam no rol de bens – e o que percebemos que é que poderiam ser até mais detalhadamente descritos que uma proprieda-de”, pontua a desembargadora.

Outra parceria do Instituto foi com uma empresa de infor-mática, o que possibilitou que pesquisadores tenham acesso à parte do acervo documental através de seis computadores. A meta de disponibilizar o ma-terial na internet é um projeto, mas que demanda muito mais dinheiro, verba que a instituição não dispõe para coisas bem ur-gentes, como mudanças na sala que guarda o acervo e a instala-ção de climatização adequada.

Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano

Onde: Rua do Hospício, 130, Boa VistaVisitação: De segunda a sexta-feira, das 9h às 17h; e aos sábados, das 8h às 12hIngresso: R$ 2 (preço único)Informações e agendamentos: (81) 3222-4952

“Queremos facilitar a pesquisa e a produção de conhecimento ”

[entrevista] mArGArIDA CAntArEllI

O Instituto está comemorando 150 anos, tem uma importância fundamental para a manutenção da memória de Pernambuco, mas não faz parte do cotidiano das pessoas. Elas não conhecem esse acervo. Como mudar isso?Essa era justamente a minha ideia, com a grande celebração dos 150 anos do Instituto: dizer que nós existimos. E posso dizer que já aumentou o nosso fluxo de visitantes, a quantidade de escolas que vem aqui, pessoas do interior. Aos sábados, por exemplo, sempre recebemos pessoas de fora.

Há uma parceria com as escolas, com as universidades?Ainda não. Estamos tentando um convênio com o governo do estado para que possamos fazer visitas-aula. Temos um acervo imenso que pode ser visitado e ainda fizemos uma sala com computadores, com impressora, para que pesquisadores e alunos de História possam vir fazer suas pesquisas aqui. Há documentos que, por causa do zoom, conseguimos ler de forma bem melhor do que se eles estivessem em nossas mãos. Não é à toa que, há dois anos consecutivos, em 2010 e em 2011, recebemos o prêmio do programa Memória do Mundo, da Unesco. Não faz sentido ter um acervo desse e ele não ser pesquisado. O que queremos é dizer para as pessoas do que dispomos e facilitar a pesquisa e a produção de conhecimento.

Há algum projeto também para o prédio?Temos a meta de construir um prolongamento do prédio para reaproveitar a biblioteca, que hoje está apinhada e desorganizada. É preciso que esse catálogo esteja digitalizado. Não se sabe, por exemplo, o número exato de volumes que temos na biblioteca. Mas, só pelo visual, podemos dizer que são mais de 20 mil títulos.

O mobiliário é parte importante do acervo

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UBE | Entrevista O que significa ser a primeira mulher a presidir a APl?A responsabilidade é enorme, porém a gratificação em ter sido escolhida para ocupar cargo de tamanha importância ameniza o tom do peso. A vida só se torna intensa na medida em que as conquistas são alcançadas através da obstinação de perseguir projetos; do contrário, não haveria razão de lutar pela efêmera existência. A APL simboliza uma “Casa do Pensar”, o que me impele a criar programas que venham a revigorá-la na sua dinâmica intelectual. Gosto tanto da ficção que a arte de inventar me agrada. Falo em inventar no sentido de dar à Instituição um “modelo” literário/acadêmico bem diversificado em atividades e ações. Só assim, seguiremos uma trilha latejante em debates, discussões, seminários. Sendo uma “Casa do Pensar” representa um locus propício à reflexão. E nada mais percuciente que a reflexão para conciliar os paradoxos e as contradições. Pensar é o mesmo que viver. E viver significa turbulência, do que se infere que toda caminhada resulta numa batalha permanente. Afinal, a existência reclama finas indagações. Mais indagações do que respostas.

Por que só agora depois de mais de 100 anos de existência isso aconteceu?Importante dizer que a APL recebeu — entre os seus membros — a segunda mulher a ingressar numa academia brasileira, o que não é pouco. E na data de 1920. Seu nome: Edwiges Sá Pereira. A primeira mulher teria sido Priscila Duarte, poetisa mineira, no ano de 1909, na Academia Paulista. Portanto, Pernambuco confirma seus pioneirismos também nessa área. Vale ressaltar que Rachel de Queiroz, a primeira mulher a entrar na Academia Brasileira de Letras, atinge tal conquista somente em 1977. Logo, Pernambuco sempre aplaudindo as antecipações.

Ao longo desses anos, como foi a relação das mulheres com a APl?Não conheço historicamente preconceitos na APL em relação às mulheres. Há, sim, uma admiração

pelo trabalho feminino. Confesso que, como mulher, nunca senti a pressão do preconceito em lugar algum. Considero fundamental o suporte da autoconfiança visando a vencer os obstáculos. E mais: a profunda determinação naquilo que se almeja. Naturalmente que o ritmo social de hoje permite que o feminino se afirme com segurança. Entretanto, faz-se imprescindível um estímulo interior compatível ao desejo de se impor. Ninguém escala uma montanha sem antes planejar os passos da aventura.

A sua administração será marcada por algum traço feminino?O meu desejo é universalizar a Academia, sem dualidades de gênero. O pensamento do homem e da mulher se complementa para galgar um patamar uníssono. O traço universal humaniza a humanidade, sem prejuízo de características de cada sexo.Como a senhora avalia a literatura feita por mulheres em Pernambuco?Pernambuco é um estado cheio de pioneirismos, como se sabe. As Revoluções Libertárias falam por si, sem esquecer que o primeiro livro no Brasil, aqui foi escrito, por Bento Teixeira, A Prosopopeia, em 1601. Branca Dias também foi a primeira mulher educadora. Martha de Holanda (de

Vitória de Santo Antão) escreveu o Delírio do nada no início do século 20, época pouco propícia para precoces emancipações. Distinguiu-se também por ter sido a primeira mulher a conseguir o título de eleitor no Brasil, isso em 1933, antes de ser homologado o direito do voto feminino, o que se deu em 1934. Tais exemplos mostram o vanguardismo da literatura feminina em terras pernambucanas.

De modo geral, há algo que diferencie a literatura feita por mulheres?Preferia dizer que existe a literatura produzida pela “voz” da mulher, não necessariamente uma literatura feminina. Pergunto: seria possível distinguir fragmentos literários (anônimos) de mulher ou de homem? A condição humana é uma só; sentimentos, angústias, anseios se equivalem, ainda que sob a ondulação da diferença. Uma diferença que não se associa apenas às relações de gênero, mas a perspectivas individuais. O perspectivismo, tão exaltado por Ortega y Gasset, talvez explique melhor as variações do humano. Não gosto de rótulos, nem de definições, nem de engessamentos, sobretudo quando se trata de observar o comportamento humano. Sou mesmo francamente universal.

A escritora e antropóloga, atual presidente da APL, promete uma gestão sem dualidade de gênerosEntrevista a Mariana Oliveira

fáTImA

“Não gosto de rótulos. Sou francamente universal”

A Academia Pernambucano de letras (APl), fundada em 1901, foi pioneira, entre as academias de letras brasileiras, ao receber entre seus membros uma mulher, a escritora Edwiges Sá Pereira, em 1920. Agora, depois de 111 anos de história, a instituição tem pela primeira vez uma mulher no seu comando. no final de janeiro deste ano, fátima Quintas, acadêmica desde 2002, assumiu a chefia da entidade, que segue o modelo francês e tem 40 cadeiras, das quais oito atualmente são ocupadas por mulheres. depois de 10 anos sendo gerenciada por Waldênio Porto, a APl será presidida pela escritora e antropóloga nos próximos dois anos.A acadêmica foi eleita por aclamação no final do ano passado e credita o fato a sua ativa participação na instituição nos últimos 10 anos. “Acho que pesou um pouco a questão da visão feminina. A mulher costuma ver as coisas com mais acuidade, com uma sensibilidade e olhar diferentes. creio que isso chamou a atenção”, opina fátima Quintas. nesta breve entrevista à Revista da UBE, ela fala do pioneirismo feminino em Pernambuco e de seus planos para a APl.

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UBE quadrinhos

A migrAção doS rotEiriStAS dE hQS PArA A ProSA trAdicionAl firmA-SE no mErcAdo EditoriAl, trAzEndo SUAS oBrAS Ao PAntEão dA litErAtUrApor Diogo Monteiro

Criando uma ponte entre dois mundos

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Watchmen, de Alan Moore e David Gibson, sucesso no cinema, fez parte da lista dos 100 maiores romances

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UBE | quadrinhos

quecidos e decadentes, pessoas desavisadas inseridas nas quere-las divinas, monstros, persona-gens lúgubres e melancólicos e gatos são recorrentes nos contos, novelas e romances escritos pelo festejado autor. Festejado é a pa-lavra. Suas incursões na literatura tradicional renderam-lhe diver-sos prêmios, quase todos espe-cializados em ficção científica e fantasia, como o Hugo, por quatro vezes; o Locus, em cinco opor-tunidades; e três Bram Stoker Award. A produção de Gaiman, que nunca abandonou os roteiros de quadrinhos, contabiliza uma caudalosa produção de livros desde 1991, entre seis romances, 11 obras infantojuvenis e várias coletâneas de contos. “Minha fic-ção se debruça sobre medos e de-sejos primais”, define.

Fenômeno editorial no mun-do todo, o autor de Deuses ameri-canos e Os filhos de Anansi diz gostar

Em outubro de 2005, a re-vista Time preparou uma lista, elaborada pelos críticos Lev Grossman e

Richard Lacayo, dos 100 maiores romances da língua inglesa lan-çados desde 1923, ano em que a publicação foi fundada. Entre medalhões como Lolita, Complexo de Portnoy, O som e a fúria, Trópico de Câncer e O apanhador no campo de cen-teio, um título chamou a atenção: Watchmen, de Alan Moore e Dave Gibbons, uma “novela gráfica”, ou, para falar mais claramente, uma história em quadrinhos. A escolha reacendeu uma antiga teima entre os que defendem que as HQs, ou pelo menos parte de-las, podem ser classificadas como literatura e aqueles que refutam totalmente a ideia. Em 1991, Neil Gaiman e Charles Wess leva-ram o World Fantasy Award por uma edição da revista Sandman, com uma releitura bem própria do Sonhos de uma noite de verão, de Shakespeare. Art Spiegelman viu seu Maus, biografia ilustrada da experiência de seus ancestrais em um campo de extermínio, re-ceber um Pulitzer, em 1995.

Indiferentes aos arrepios causados pela aproximação en-tre literatura tradicional e qua-drinhos em determinadas pes-soas – e aqui não se discute a equiparação ou não das duas formas de expressão –, alguns autores têm feito mais: a traves-sia de uma linguagem para ou-tra. Quadrinistas vêm se aven-turando no mundo das palavras desacompanhadas das ilus-trações, com reconhecimento do público e, em alguns casos, também da crítica. É o caso do inglês Alan Moore, aquele que recebeu a deferência da revista Time há sete anos. Em 1996, já ostentando o frequente título de o mais importante roteirista de quadrinhos em terras britâni-cas, ele lançou A voz do fogo, um conjunto de 13 histórias curtas, todas ambientadas em sua ci-

dade natal, Northampton, num período que vai do ano 5000 a.C. até 1995 da era atual. No livro, Moore mantém-se fiel a várias de suas obsessões, já exausti-vamente exploradas na arte se-quencial: feitiçaria, violência, erotismo e estruturas narrativas inovadoras (a primeira histó-ria do volume, por exemplo, é contada em primeira pessoa por um personagem primitivo, que desconhece a língua falada ou escrita). Ele deve estrear como romancista este ano, com um li-vro a se chamar Jerusalém.

A fidelidade às temáticas re-correntes de sua obra nos quadri-nhos também parece ser a chave do sucesso da empreitada de Neil Gaiman, que foi responsável – assim como Moore – por uma re-viravolta no mundo das HQs, du-rante os anos 1980, com a revista Sandman e álbuns como Orquídea negra e Livros da magia. Deuses es-

Neil Gaiman tem se aventurado na literatura.Lourenço Mutarelli (acima, à dir.) é o brasileiro mais famoso a trabalhar com as duas linguagens

da possibilidade de permitir ao leitor “criar um mundo na cabeça dele”, mas sente falta do controle “sobre o olhar de quem lê”, e do quadrinho em branco, que dei-xa em aberto o pensamento do personagem. Hoje, Gaiman passa metade do seu tempo em viagens e palestras pelo mundo. A última de suas passagens pelo Brasil – onde diz se sentir “um jogador de futebol”, tamanha a aceitação do público em suas passagens pelo país – foi em 2008, para partici-par da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip). Nessa visita, ele de-fendeu que, nos Estados Unidos e na Inglaterra, o debate contra a visão das HQs como literatura ar-refeceu, após o Pulitzer ganho por Spiegelman e a menção de Moore pela Time.

MUTARELLIEntre os nascidos no Brasil, onde a vida dos roteiristas de quadrinhos

é por si só já bastante difícil, não há muitos casos emblemáticos de migração para o universo da pro-sa. Provavelmente, o caso mais bem-sucedido é o de Lourenço Mutarelli. Começando a carrei-ra como cenarista dos estúdios Maurício de Souza, o autor, que também é ilustrador, passou por vários fanzines e colaborações para revistas até ganhar visibili-dade com Transubstanciação, álbum de 1991. Os traços expressionis-tas, os temas mórbidos, a obses-são pela morte e pelo submundo social, projetaram-no no cenário cultural brasileiro. Depois vieram Eu te amo Lucimar, O dobro de cinco. Em 2002, ele apresentou O cheiro do ralo, seu primeiro romance, escrito em cinco dias, de forma “acidental”, diz ele.

Se já era respeitado por sua produção nos quadrinhos, a en-trada no mundo da prosa garan-tiu a Mutarelli uma projeção ain-

da maior. Outros cinco romances vieram na sequência, sendo O natimorto, Miguel e os demônios e A arte de produzir efeito sem causa – que le-vou um terceiro lugar no Prêmio Brasil Telecom – os mais bem-recebidos. Vieram as adaptações para o cinema de O cheiro do ralo e O natimorto – nesta, o autor, que é também ator, opera como prota-gonista.

Em entrevistas, Mutarelli já declarou que tem dois públicos distintos, o dos quadrinhos e o da prosa, que pouco se inter-rela-cionam. Resta saber qual dos dois grupos se interessará pelo seu mais novo livro, lançado no ano passado, Quando meu pai se encon-trou com o ET fazia um dia quente. Um volume ilustrado em tinta acríli-ca pelo próprio criador, em que a arte propositalmente não corres-ponde ao texto das páginas próxi-mas. Nem só prosa, nem HQ. Ou muito pelo contrário.

Alan Moore é um dos autores da novela gráfica Watchmen

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Não é fácil ler Michel Foucault, filósofo da linha dos que não transigem com a distância entre sua mente treinada e a do leitor neófito. Menos ainda alimentar a pretensão de ter entrado na posse de sua filosofia, tecida de muitas originalidades, de alguns paradoxos e de uma independência intelectual que somente cede passo aos demônios existenciais que lhe povoaram a mente pela vida afora, como confessava sem biombos de conveniência burguesa.

No Microfísica do poder, mergulha profundamente na questão do que há de errático na trajetória do homem em sociedade. Tudo quanto a simetria lógica ou a harmonia estética nos permite supor como linearidade previsível nos passos do homem em sociedade, perde fé ante a proposição de que vivemos acontecimentos ao acaso, sem referências de origem ou presentes. Faz pensar na imagem de Bertrand Russel sobre o oceano do pensamento do homem, no qual a porção governada pela lógica navegaria toda ela contida numa casca de noz...

Baudrillard já nos tinha arrebatado a bengala de algumas certezas sobre o mundo. O conforto de uma ciência positiva capaz de mitigar nossa angústia existencial. Ao berrar que nenhum sistema universal seria digno de confiança, por não ser aferível mediante troca com similar de mesma envergadura - a inexorabilidade do que chamou de “troca impossível” - já nos roubara toda veleidade quanto a certezas universais. Mas restavam as intrassistemáticas, salvas do incêndio de suas lentes agudas. É aqui que Foucault vai exercitar sua demolição filosófica, duvidando de que a metafísica venha a encontrar a “origem miraculosa” que vem buscando incessantemente, ou de que a moral possa chegar um dia a um perseguido “fundamento originário” digno desse nome, ou de que qualquer origem tenha por si, pelo fato de ser origem, uma perfeição preambular ao desgaste da exposição à vida.

No campo mambembe do desdobramento histórico, buscas assim não conduzirão a nada.

Frederico Pernambucano de Mello

Foucault e as máscaras da história

É historiador. Membro da Academia Pernambucana de Letras.

Por não ser a história fundamento da metafísica, arrimo da moral ou fonte do valor. A história não é senão resumo da diferença, cachimbou sem emoção. E o que disse subiu na fumaça. Pé ante pé, o homem não se cansa de remontar os passos da humanidade no afã de chegar à máscara primordial e, aí, emocionado, retirá-la, deparando-se com a essência inefável do ser inaugural. A esse engano o tem conduzido a metafísica sem cessar, seja no plano da razão profana, seja no da fé religiosa. Engano mesmo, porque a imagem original não nos perfilará diante da perfeição ansiada. Ao contrário. Sendo história, não irá além da discórdia entre os elementos constitutivos. Ou ao disparate. A origem eugênica seria, assim, ilusão metafísica incorrigível, nunca realidade histórica. No campo em que prevalece a construção, a máscara final não será retirada ou frustrará a espera pelo harmônico.

Relevante no estudo que empreende é a identificação da história como saber perspectivo. Situado. Não só por conta do tema, o que não causaria arrepios num positivista bem-comportado, mas por conta do autor. Aí o arrepio é grande, por ter feito parte da história imemorialmente a ilusão de um historiógrafo situado fora do contingente, do secular, do transitório, do valor de época, da tendência, do modismo. Fora da própria história, enfim, metido em trincheira metafísica de justificação impossível.

Seguir Foucault é desarmar o espírito de preconcepções, lavando-se de certezas aderentes. É aceitar o segredo de que a coisa não encerra uma essência imanente, e de que a imagem que dela nos chega não passa de uma construção cultural. Datada e situada, por conseguinte. Eis alguns dos limites da cautela epistemológica draconiana que se impõe, e nos oferta, o filósofo da cabeça coerentemente raspada. Não é fácil acompanhar Foucault. Ainda mais difícil é passar por suas lições de olhos fechados.

RepRodução

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UBE | Crítica

A situação da crítica li-terária junto a leitores, intelectuais, jornalis-tas, está cada dia mais

irrespirável. Ser crítico literário, estudar a literatura de forma aca-dêmica, está se tornando algo tão complicado quanto apoiar o abor-to, a legalização das drogas e a discussão a respeito do casamento gay. Politicamente correto é não se importar com a teoria, lixar-se para a tradição, mandar às favas qualquer crítica ou crítico pro-duzidos nos corredores da aca-demia, sejam eles estruturalistas ou formalistas, ligados às teorias do imaginário ou às correntes dos estudos culturais.

Os críticos recebem as piores alcunhas: repetidores, macaque-adores, dependentes dos profes-sores e dos grandes especialistas. Aos seus detratores, a crítica é tudo, menos um ato de inteligên-cia diante de uma obra. Os pro-fissionais que a isso se dedicam ficam reféns da ditadura do gosto, presos nas frases feitas utilizadas como argumentos definitivos, coisas do tipo “gosto não se dis-cute”. O que dizer diante disso?

Primeiro, tentemos definir para que serve a crítica literária. Para que um crítico existe? Pen-so que o papel de um crítico é o

obras; ele avalia sua recepção, sua estrutura, seu alcance. Isso cria padrões de qualidade (até mesmo para serem rompidos), educa o gosto, aumenta a percepção, pos-sibilita a multiplicidade de leitura e de diálogo sobre as obras. Para isso, também serve a arte – para ampliar nosso horizonte a respei-to da vida. Mas isso demanda vo-cação e sobretudo tempo.

Se, ao menos em tese, a todas as pessoas se destina um roman-ce como A montanha mágica, do ad-mirável Thomas Mann, poucos (e cada dia mais poucos) têm ânimo para enfrentar tal colosso de mil páginas. Para estabelecer rela-ções, ir em busca dos elementos históricos, formais e sociais que esse romance tece com o mundo, nem se fale. É aí que entra o crí-tico, quase sempre acompanhado em sua empreitada: colegas que falaram do mesmo livro e con-cordaram ou não com as afirma-ções feitas pelo outro colega. Essa discordância em nada diminui a importância de nenhum dos dois contendores – ao contrário, enriquece-a. Quem ganha é o lei-tor, o público que consome (ainda nesses dias de miséria intelectu-al) literatura, que, absorvido pela

A EtErnA QUErElA dA críticA litEráriA, SUA vAlidAdE E A SUA fUnçãopor Carlos Augusto da Silva/Bula Revista*

Preferência não se discute; gosto sim

mesmo de qualquer intelectual das ciências humanas: historia-dor, sociólogo, antropólogo. Des-mistifiquemos, para que os que se doem não cortem seus pulsos. Não, um crítico não se julga supe-rior aos outros leitores. Não é nem se considera o dono da verdade. Pelo contrário, sua obrigação, in-tenção e compromisso é o diálogo permanente com tudo o que já foi escrito, seja nas academias ou na solidão da criação artística verbal.

Ser crítico é uma profissão como outra qualquer, como ser sociólogo também o é. A literatura não é feita para os críticos apenas, tal como a sociedade não existe para os estudos sociológicos. Es-sas coisas existem para a huma-nidade como um todo, circuns-crevem-se nela, fazem parte dela. Mas nem todos têm tempo, inten-ção ou vocação para dedicarem sua vida exclusivamente ao estu-do da literatura ou da sociedade.

Aquele que quer ser crítico li-terário tenta compreender as re-lações, correlações, diálogos que se estabelecem entre as obras e os outros campos dos saberes a fim de dimensionar o alcance, a qualidade, o que há de comum e diferente entre as mais variadas

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UBE | Críticaessas que a literatura se perpetua e se reinventa no horizonte da história.

O malfalado Sainte-Beuve di-zia ser o crítico aquele que sabe ler e ensina os outros a lerem. Eu não iria tão longe. A crítica é um instrumento indispensável, e até os que a renegam são, mesmo sem saber, por ela conduzidos em muitos momentos de suas esco-lhas e de suas opiniões. Ela não ensina a ler, mas potencializa, melhora a leitura, o leitor, os au-tores e, por consequência, a lite-ratura.

O primeiro contato com a crí-tica se dá na escola. O primeiro crítico com o qual se tem conta-to é o autor do livro didático, que lança sentenças inúmeras sobre os escritores que fizeram e fazem a história da literatura brasileira. Um livro didático já seria uma resposta àqueles que perguntam “qual a serventia da crítica”. Mas seria uma resposta ruim, na me-dida em que penso dever preva-lecer, seja em nível escolar ou superior, na graduação ou pós-

graduação, o enfrentamento das obras para depois se ter acesso ao conhecimento da crítica.

Outro problema dos manuais escolares é sua calcificação, seu comodismo estagnante que não revisa os julgamentos, os concei-tos e nem o movimento canônico que corrige erros da crítica ime-diatista que pode, em um arroubo, condenar ao esquecimento um autor de qualidade devido a um julgamento precipitado. O gran-de Gustave Lanson, por exemplo, se não atacou Charles Baudelaire, ignorou-o, como também o fez Sainte-Beuve, escrevendo sobre sua vida, mas não sobre sua obra.

Os manuais podem também, com seus resumos breves e sua condensação massiva, desesti-mular a leitura. Por isso, apon-tá-los como uma justificativa da crítica não é a resposta que a va-loriza, mas que a reduz como os manuais reduzem os fenômenos literários.

Sendo o livro didático uma resposta falha à pergunta a respei-to da função da crítica, uma me

parece razoável: se ela não ensina a ler, pode educar o gosto. E gosto se discute, sim, embora o pensa-mento limitado diga que não.

Quando se chega nesse ponto da querela, envolvendo a existên-cia da crítica, sua validade e sua função, penso ser preciso acei-tar um fato: existe o bom gosto e o mau gosto. O que é bom gosto? É gostar do que é bom. E o mau gosto? É gostar do ruim. Mas o problema é como definir o bom ou o ruim em literatura. A teoria literária entra em cena com seus instrumentos de análise, verifi-cando o arranjo da obra, a estru-tura do enredo, a adequação de uma estratégia narrativa à trama apresentada, as formas de se con-seguir atingir a emoção do leitor, os recursos de linguagem, como metáfora, aliteração e outros, a recepção desses textos ao longo da história, sua capacidade de re-presentação do real, seu aspecto unicamente formal, estrutural, linguístico.

Um bom exemplo é o pre-cursor do texto teórico-crítico,

A Poética, de Aristóteles. Nela, o filósofo grego, querendo investi-gar o que é a poesia (nome que se dava a tudo o que era literatura na antiguidade clássica), acaba nos dando uma aula de como deve ser uma boa tragédia: quais ele-mentos ela deve conter, quais os procedimentos a serem operados pelo poeta na sua composição, a que aspectos temporais e es-paciais ele deve obedecer, quais as leis de composição devem ser seguidas por ela, a fim de provo-car no espectador uma emoção, o efeito catártico, o terror e a pie-dade.

A Poética é um exemplo de aplicação do método crítico por-que, para Aristóteles demonstrar a especificidade do fenômeno literário, ele recorre a uma obra, debruça-se sobre as minúcias de um texto, serve-se de um exem-plo, dá ao texto sua imanência, mas sem esquecer-se do efei-to que o texto deve ser capaz de provocar no espectador-leitor. O exemplo de obra literária por ele considerada modelo é o Édipo rei

de Sófocles. Aristóteles não nos ensina somente a ver como é uma tragédia perfeita, ele nos ensina que é pelo contato com a tradi-ção que se buscam as bases para o julgamento, para a comparação, para a reflexão. Seu olhar cuida-doso a cada elemento da peça de Sófocles possibilitou a ele nos oferecer, enquanto leitores, ins-trumentos a partir dos quais nos orientamos ao apreciar uma peça e, para aqueles que escrevem pe-ças, orientou no sentido de guiá-los para um campo mais ou me-nos certo de como fazer bem feita a sua tragédia. Suas regras são uma camisa de força? Jamais. O rompimento enriquece e o mo-delo, se educa, mostra também quando precisa ser rompido para se prosseguir dali em diante.

Preferir ou não preferir não qualifica nada como bom ou ruim. É possível e aceitável eu não adorar uma obra muito boa e ter apreço por uma obra cuja quali-dade é discutível, talvez porque esta, de qualidade incerta, dialo-gue mais com minha subjetivida-de eu a prefira a uma obra-prima. Até aqui, tudo bem. O problema é quando eu considero uma coi-sa boa só porque eu gosto dela ou considero uma coisa ruim porque não gosto da mesma. Nesse pon-to, a razão cede espaço à emoção (coisa legítima em se tratando de seres humanos), porém o diálogo intelectual se encerra. Não se tra-

pressa dos dias, carece de norte e encontra na crítica uma indica-ção, um apoio daquele que, pago para ser leitor, dedica seu tempo e sua vida a entender uma obra e ampliar-lhe o alcance, o sentido.

Geralmente, os detratores da crítica não são os verdadeiros e melhores amantes da literatura. Não. Tratam-se dos pseudointe-lectuais, preguiçosos, um grupo fraco (infelizmente grande), preso à estupidez da certeza avalizada por predileções pessoais. Na outra ponta da corda, vemos um grupo de leitores de gabarito conhecer a crítica, apreciar um bom exer-cício interpretativo, reconhecer nela não um ato estéril e tolo de papaguear professores ou outros críticos especializados. Ao con-trário disso, os intelectuais com-prometidos com a compreensão do fenômeno literário, seja de qual área for, veem na crítica um ato de criação também.

O crítico, antes mesmo que Wimsatt e Beardsley escrevessem sobre a falácia intencional (aquela que entrega nas mãos da inten-ção do autor todos os segredos da interpretação literária), não é um mero apontador de aspectos como tempo, espaço, persona-gem e enredo. Muito menos um sujeito que, induzido por uma biografia, diz como funciona uma obra. O exemplo de Sainte-Beuve é marcante: crítica pautada em biografia quase sempre é limita-da e tímida no que diz respeito ao enfrentamento do texto. Este tem uma imanência, existe, é coisa dada, a linguagem não é um mero produto de uma subjetividade, está inscrita num contexto social, histórico, mas também de lingua-gem, de tradição. Dirão os ingê-nuos: “É preciso saber disso? Im-porta-me a história apresentada pelo livro, ou entender a intenção do poeta”. A esses, replicamos: a literatura não carece desse tipo de leitor e nem desse tipo de leitura. Ela não enriquece, não acrescenta e não é por causa de leituras como

Geralmente, os detratores da crítica não são os verdadeiros e melhores amantes da literatura

O crítico Sainte-Beuve (E) ignorou o talento do poeta Charles Baudelaire

Poucos leitores enfrentam as mais de 1.000 páginas da obra A montanha mágica, de Thomas Mann (À esquerda)

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UBE | Crítica

ta mais de discutir gosto, mas, sim, preferências. Preferência, eu concordo, não se discute, mas gosto, sim. O papel do crí-tico não é fazer com que se goste ou se prefira isso a aquilo, mas, sim, com que sejamos capazes de reconhecer quando algo, em arte, é bom ou ruim, quan-do é bem-feito ou não: essa é a única forma de reconhecer as nuances do gênio humano e onde ele se manifesta. Os patri-mônios da raça humana devem valer mais do que o patrimônio das nossas preferências.

Que se prefira o razoável ao genial, mas fazendo isso com consciência, com honestidade, sem se doer e se deixar magoar

por se reconhecer com uma sen-sibilidade menos apta ao que tem, de fato, qualidade.

Esta colocação me faz voltar à questão do cânone. Essa dis-cussão é quase sempre levantada quando se debate ou não a neces-sidade de se ler e conhecer a lite-ratura contemporânea e não ficar preso “somente” aos medalhões. Os críticos que se dedicam ao câ-none e defendem sua leitura são chamados de elitistas, donos da verdade, preconceituosos, arro-gantes. O próprio Harold Bloom, atacado, apelidou seus oponen-tes de “militantes da escola do ressentimento”. Mas o fato é que,

sem o cânone, não vejo como compreender e dialogar com competência sobre o contem-porâneo. É uma encruzilhada, pois o domínio do cânone é, no mínimo, difícil. De forma completa, impossível. Assim, es colher o contemporâneo em detrimento do cânone parece-me uma escolha quase sempre perigosa, haja vista que o tem-po é mesmo curto, e conhe-cer literatura demanda tem po, muito tempo – talvez, das ar-tes, seja a que mais demanda.

A literatura contemporâ-nea deve ser lida. Em nenhum momento propomos o contrá-rio. Pode ser bem apreciada, analisada. Estar em diálogo

com o seu tempo é necessário ao homem. Mas o leitor não especia-lizado, porém costumaz, que lê os clássicos, está mais preparado para o novo. Saberá reconhecer-se ali, na obra literária contemporânea, não como um espelho de sua car-ne, não valorizando apenas o fato de ela ecoar com maior vigor por ter sido produzida em sua época, mas, sim, como um humano que carrega uma tradição atemporal, presente nos livros de ontem e de hoje. O leitor contumaz sabe-rá algo mais e talvez o principal: a língua, o nosso instrumento de comunicação, serve para muitas

outras coisas, e pode tornar parti-cular o alheio, por via da arte.

Já para um estudioso, um pro-fissional da literatura, o cânone é indispensável e deve ser sua prioridade. Se Italo Calvino estava certo ao dizer que “clássico é um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer”, de-vemos ser honestos em reconhe-cer o fato de estarmos em uma época cada dia mais escassa de livros com essa envergadura. As razões para esse empobrecimento da literatura, não sabemos, e po-deríamos fazer diversas conjec-turas, mas todas seriam especu-

lações carentes de embasamento sólido. Mas a respeito do empo-brecimento dos leitores, podemos apontar, com certeza, a falta de professores-leitores de literatura. Uma sala de professores de uma escola é um bom termômetro: onde deveriam se reunir os in-telectuais responsáveis pela for-mação cultural dos jovens, vemos leitores (e quando são) de Crepús-culo, O caçador de pipas e O Código Da Vinci. Esses sim, meros papaguea-dores do livro didático. O grande crítico Otto Maria Carpeaux, em sua monumental História da Literat-ura Ocidental, sentencia: “Enquanto a crítica literária se ocupa conti-nuamente de revalorizações, des-truindo os ídolos da convenção e revivificando autores ou épocas inteiras injustamente esquecidas ou desprezadas, os professores de História Literária repetem sem cansaço os mesmos clichês”.

O leitor que leva em consi-deração a crítica sabe mais re-conhecer o valor e a importância dos clássicos, e saberá discutir com mais habilidade o que lê, saindo do lugar comum das im-pressões e emoções causadas por um enredo que o leve às lágrimas ou ao riso. Clássicos e crítica for-mam um binômio perfeito por-que ambos nos fazem reconhecer o primordial em literatura: inte-ressa mais o como é dito, e não o que é dito. Os canônicos resistem ao tempo por sua força de lin-guagem, até porque as histórias já foram, de certo modo, todas contadas. Os críticos cooperam no entendimento e perpetuação das obras porque olham para os procedimentos estão atentos ao conteúdo como consequên-cia e parte da forma. Orie n tado por esse binômio, talvez, possa se chegar a um reconhecimento mais pleno e satisfatório da li-teratura. Mas prepare-se aquele que assim o fizer: estará no limbo dos politicamente incorretos.

*texto extraído da revista online Bula..

Harold Bloom apelidou seus oponentes de “Militantes da Escola do Ressentimento”

Otto Maria Carpeaux afirmava que os professores de História Literária repetem sempre os mesmos clichês

FotoS: divulgação

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UBE | Entrevista

“Você não vê ninguém lendo neste país”

ACCIolymARCOS

marcus Accioly, 69 anos, 14 prêmios literários, é poeta que esconde sob formas clássicas e figuras mitológicas, as questões contemporâneas mais pungentes. é um estrategista que não se “importa muito com a mídia” e com os lançamentos, como gosta de ressaltar o pernambucano de Aliança. Sua estante de inéditos, quase 15 livros, aliás, já supera a dos títulos publicados. mas isso deve começar a mudar em breve e o poeta pretende apresentar alguns desses títulos às editoras ainda em 2012. A revista da UBE conversou com o poeta em seu gabinete no conselho Estadual de cultura sobre esses e outros temas que envolvem sua carreira.

Poeta pernambucano analisa o atual cenário cultural do Brasil e fala sobre suas obras publicadas e inéditasEntrevista a Paulo Carvalho

PAIxÃO INTENSA PELA ARTE DE ESCREVER

O senhor tem mais livros inéditos do que publicados. O que significa ser um autor “inédito” num cenário que atrela necessariamente o ato de escrever e a “imagem de escritor” à publicação? Eu tenho 14 livros publicados. São livros espessos, como é o caso de Latinoamérica, com 620 páginas, ou como Sísifo, que possui 408. Escrever, para mim, é uma compulsão, uma necessidade. Diz Alfonso Reyes, citado por Jorge Luis Borges, que quando a gente não publica, acaba corrigindo o livro interminavelmente. Eu descobri, então, um jeito de não corrigir o livro dessa forma: é escrever interminavelmente. Acontece que fiz um acúmulo. Estou com quase 15 livros prontos. Escrevo diretamente no computador e, claro, às vezes corrijo alguns trechos aqui e ali. Mas são livros prontos. Pretendo, neste ano de 2012 e talvez até neste mês de julho, fazer uma viagem ao Rio de Janeiro. Será uma peregrinação pelas editoras como se eu fosse, assim, um estreante. Vou levar, naturalmente, alguns desses livros para publicação. Como eu viajava muito (trabalhei no Ministério da Cultura, com Antônio Houaiss, e fui do Conselho Federal de Cultura), tinha uma relação de proximidade com as editoras. Hoje, estou um pouco mais recluso e os livros, fatalmente, ficaram acumulados. Às vezes, sinto-me um escritor inédito ou póstumo, mas com muitos livros, escritos um após o outro. Apenas para ilustrar essa obsessão, hoje (uma quinta-feira do mês de julho), acordei às 4h da manhã. Quando eram 8h, eu já tinha quatro horas de trabalho. Também tenho passado os finais

de semana em Itamaracá (gosto da natureza, do céu aberto, do espaço livre – digo que saí do mar canavial para o mar oceânico), também trabalhando com o notebook. Acho o seguinte: a minha geração cometeu um grave erro. Um pecado. A geração anterior, de 45, de 30, foi para o sudeste e lá se estabeleceu. Lá, você encontraria Bandeira, Cabral, Joaquim Cardozo, Drummond. E lá, principalmente no Rio, você encontraria as editoras. Nós, que somos da geração de 60, aqui no Recife chamada de 65, tivemos o problema sério da repressão. Uma época difícil de publicar (eu mesmo me escondi profundamente, passando a cantar os mitos gregos como se fossem heróis ou anti-heróis latino-americanos). Hoje, essa minha geração estaria no poder. Não no poder político, mas na posição de exemplo, paradigma, modelo, ícone para os jovens. Mas aconteceu uma coisa estranha. Os jovens de hoje, por essa escassez de publicação, especialmente em poesia (quando você chega com um livro de poesia, o editor torce o nariz ou fecha a cara, um pouco espantado – e, se você chega com um livro de 600 páginas, ele tem vontade de assassinar você rapidamente), não têm um paradigma. Não buscam o poeta do passado. E não estamos mais no Modernismo, mas no novo ou Neomodernismo, no Pós-modernismo, melhor dizendo. O tempo do simulacro, da televisão, do computador. Um novo tempo que tem facilitado muitas coisas, mas confundido outras (hoje, o sujeito escreve um poema em dois minutos, publica na internet e, quando você vai ver, não é nada).

divulgação

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UBE | EntrevistaPor que a opção por poemas longos como Latinoamérica (2001), por uma poesia épica contemporânea? Eu digo que o épico é um temperamen-to. Há um poema de Castro Alves, um poeta banido da Universidade, do qual eu gosto muito. Este poema é Laço de fita. É extremamente lírico. Ele diz: “Não sabes, criança? ‘Stou louco de amores./ Prendi meus afetos, formosa Pepita / Mas onde? No templo, no espaço, nas névoas?! / Não rias, prendi-me / Num laço de fita”. E um pouco mais adian-te: “E agora enleada na tênue cadeia/ Debalde minh’alma se embate, se ir-rita.../ O braço, que rompe cadeias de ferro,/ Não quebra teus elos,/ Ó laço de fita!”. Então, de repente, você vê o temperamento forte. O temperamento épico de Castro Alves, dentro de um poema extremamente lírico. Eu digo sempre que a poesia que eu tento fazer é um misto do popular e do erudito, da vanguarda e da tradição e da lucidez e da loucura. Uma linha de equilíbrio entre esses pares. O poema longo num país longo como o Brasil você pode e deve, e os poetas do passado fizeram muito isso, não só cantar, mas contar. Cantar contando. Ou contar cantando. Uma maneira de você realizar, digamos assim, o inteiro. Não sou contra quem escreve haicais ou quadras. Não, o poe-ta deve escrever o que quiser. Mas para cantar um continente, como a Améri-ca, ou o mundo de hoje que se tornou fatalmente um mundo global, você não pode cantar sem força e sem fôlego. O sentido da busca da oralidade contida. Mais ou menos como é a diferença, em prosa, de quem escreve conto e de quem escreve romances. O conto é extremamente denso, extremamente tenso, com uma carga poética extrema. Mas no romance você respira. No caso do poema lírico, há uma carga muito grande. Em Baudelaire, por exemplo, você tem uma poesia feita sob tensão. Uma tensão contida que deixa o leitor aceso até o final. Mas se você vai ler A divina comédia, de Dante, Os Lusíadas, de Camões, a Ilíada ou a Odisseia, de Home-ro, você tem uma pausa para respirar. É como se você se sentasse em volta de uma fogueira e todos começassem a cantar e a contar aquela história.

Em alguns livros, como Cancioneiro (1968), Nordestinados (1971) ou Guriatã (1980), há uma forte presença de elementos da literatura popular. Como se deu esse contato e apropriação?Foi exatamente o meu início. Nasci em um engenho de açúcar. Conheci de perto o cordel. Aliás tenho um livro inédito chamado Poética popular, em que estudo exatamente a forma do lírico, do épico, do dramático, no cordel e na viola. Portanto, o meu contato primeiro foi com a oralidade (note que até a nossa fala é meio lenta, meio cantada). Mas, quando concluí Cancioneiro (1968), e depois Nordestinados (1971), desejei buscar uma coisa nova, fora daquele sistema. Além desse meu desejo, havia o problema de como era possível dizer as coisas. Por exemplo, no Cancioneiro eu digo: “O cangaceiro luta por questão de justiça, já que esta não existe onde existe a polícia”. Isso não era bem-visto à época. Então, o que fiz eu? Peguei os mitos dos marginais gregos, Sísifo, Íxion e Narciso, e realizei uma trilogia mitológica. Íxion, por sinal, é o meu livro favorito. E está esgotado. Já Narciso é um livro todo feito em sonetos invertidos, como que num espelho distorcido. Podemos até pensar que Narciso é o homem apaixonado por si mesmo, como diz a lenda, mas para mim é o homem que não tem medo de olhar para dentro de si próprio.

“Nós, que somos da geração de 60, aqui no Recife chamada de 65, tivemos o problema sério da repressão. Uma época difícil de publicar (eu mesmo me escondi profundamente, passando a cantar os mitos gregos como se fossem heróis ou anti-heróis latino-americanos)”

Por isso que eu o fiz se afogando ou morrendo à beira, não mais do lago, mas à beira do mar, no sentido das ondas da revolução. Íxion, outro personagem formidável grego, é um livro sobre a tortura. Em Latinoamérica, eu deixo esse tema claro. Mas no Íxion isso se passa no porão, o porão do inferno. O Sísifo, quando cheguei com o poema em cima do píncaro (Deus é quem pode explicar como encontrei isso), eu inverti o tempo e, ao invés de ele empurrar para a pedra cair em seguida, ele começa a empurrar para baixo, até chegar à infância. Por isso, a última palavra do livro é “menino”, em que eu fiz deslocar o “ó” como se fosse a pedra caindo. Esse livro foi publicado e esgotado em 1976. Tenho mais coisas escritas sobre ele do que a grossura dele, que é de 408 páginas. Um livro nunca republicado. Então, veja que é um problema sério: não se trata apenas de publicar livros novos, mas de republicar os que já publiquei. Lembro que Narciso ganhou o Prêmio da Associação Paulista dos Críticos de Arte e o Prêmio Olavo Bilac, da Academia Brasileira de Letras.

Seus livros são como estratégias. Latinoamérica conforma-se como uma luta de boxe. Eu gosto muito de lutas. Inclusive do MMA (meu nome é Marcus Morais

Accioly, talvez até por isso...). Quando fui fazer o Latinoamérica, um livro que me levou 20 anos, decidi não dividi-lo em cantos, mas em rounds, já que se trata de uma luta não apenas política, mas de uma luta de forças, uma luta mortal na América Latina. Depois de certa parte, o livro é dividido em rounds de cinco minutos, com três minutos de descanso. E assim fui cantando todos os países da América

Latina. Fundamentalmente, é um livro sobre anti-heróis, e não heróis, como a epopeia tradicional. Por que anti-heróis? Porque os nossos heróis, do Brasil e de toda a América, foram heróis destroçados. Foi uma luta. Cada dia que eu pegava no livro para trabalhar era como um treinamento de boxe e, rigorosamente, é uma luta contra os Estados Unidos. Uma luta contra o imperialismo.

O senhor comenta que um livro que não fica de pé na estante também não fica de pé na história. O senhor fala igualmente, nesse mesmo sentido, que não gosta de “poeta com prisão de ventre”.Hoje, temos não só escritores que escrevem pouco, mas escritores que nunca escrevem. Tenho um amigo no Ceará chamado César Barreto. O cearense, você sabe, tem um espírito muito irônico e eu ia muito a Fortaleza e aparecia nos restaurantes um rapaz, um poeta, que era muito engraçado. No início, eu o achava chato, mas depois passei a achar engraçado, quando ele vinha, declamava umas quadras e ia embora. Um belo dia, eu chego, sento-me, e pergunto a César Barreto: “Cadê aquele poeta?”. E César: “Ele não é mais poeta. Publicou um livro”. Até publicar o livro era um

poeta do Ceará e agora não será mais poeta.

O senhor foi secretário-executivo do ministério da Cultura. Como vê a gestão atual do minC? Acho o cenário nacional cultural muito confuso. Muito nebuloso. A cultura que se faz hoje nos estados e nos municípios é uma cultura de eventos. Você traz um cantor famoso, todo mundo dança, bate palmas, e nada fica daquilo. Não há um plano rigoroso de publicação, de compras de livros para bibliotecas. A cultura do país está ficando com um atraso muito grande. Eu me aposentei da universidade, mas nas últimas aulas que eu estava dando, já tinha dificuldade de contar até anedotas, porque as pessoas não entendiam. Não estavam ligadas. Tomadas por uma espécie de alheamento. Você não vê ninguém lendo nesse país. Nem jornal.

Acha que existe uma espécie de exagero de teorização nas Universidades? Durante muito tempo, teve início uma espécie de teorização sobre tudo e sobre nada. As pessoas procuravam saber as últimas notícias do que estava acontecendo no mundo (Jacques Lacan, Derrida...) e traziam isso para o

pobre do aluno. Quando ele ia escrever sua dissertação de mestrado, ficava como Procusto, um bandido da mitologia. Dizem que Procusto tinha uma cama em casa na qual deitavam pessoas que encontrava na rua. Se a pessoa fosse menor que a cama ele esticava a pessoa até dar na bitola da cama. Se fosse menor, ele cortava os membros. É isso que a Universidade é, ou tem feito: um leito de Procusto. Você não tem o direito de escrever o que quer. Deve ser dentro daquela bitola. Hoje, as teses e dissertações são metade de teoria e o texto é o mínimo possível. Você não pode escrever sobre poesia, se você não lê poesia.

FotoS: divulgação

Marcos com integrantes da Geração 65 reunidos para participar de um documentário de Luci Alcântara

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UBE | Posicionamento

ENTRE Oachaque e a polêmicahojE, o cAmPo litErário continUA SEndo Um ESPAço rico PArA o dEBAtE E o EnfrEntAmEnto dE idEiASpor Paulo Floro

Nelson Rodrigues foi o maior polemista que a literatura brasileira teve. E sua verborragia

sobre os mais diversos temas ainda repercute nos dias de hoje. Fugin-do das ideias amplamente aceitas, ele se desvencilhava de um porto seguro para atacar seus alvos com um humor quase galhofeiro. “Toda unanimidade é burra” é hoje uma máxima conhecida até por quem não leu uma única linha de sua obra. Esse poder em gerar contro-vérsia, com certeza, ajudou a fazer sua fama. Hoje, na literatura brasi-leira, pode não existir uma figura exemplar como Nelson, nem que desperte empatia como ele, mas o meio segue cheio de achaques e polêmicas, seja em relação a uma obra específica, seja na voz opi-nativa e posicionamentos de seus autores.

Há pouco, o professor apo-sentado da Universidade de São

Paulo e crítico literário Rober-to Schwarz causou barulho com o livro de ensaios Martinha versus Lucrécia (Companhia das Letras). Ele demorou 15 anos para tornar pública sua opinião sobre o livro de memórias de Caetano Veloso, Verdade tropical (Cia de Bolso). Se-gundo ele, Caetano tem um “tra-ço de personalidade muito à von-tade no atrito, mas avesso ao an-tagonismo”. Disse também que o cantor “festejou a derrocada da esquerda como um momento de libertação”. Um dos pontos mais

comentados diz respeito à análise feita sobre o golpe militar de 1964. “O memorialista compartilha os pontos de vista e o discurso dos vencedores da Guerra Fria”, dis-se. Em outro momento, critica o “amor aos homens da ditadura”. O ensaio abriu um debate quase inevitável no meio literário, com todos os especialistas, sejam crí-ticos, professores, leitores, co-mentando as ideias de Schwarz.

Apesar de o crítico destacar as qualidades literárias de Verdade tropical, a polêmica entre os dois

quase sempre omitia esse detalhe. O clímax veio com uma entre-vista que Caetano Veloso conce-deu ao suplemento Ilustríssima, da Folha de S.Paulo, em que ele rebate algumas posições de Schwarz. “É envaidecedor que Schwarz tenha escrito tanto (e com tanta ener-gia) sobre meu velho livro. Claro que não coincido com o grosso da crítica ideológica”, disse em ma-téria assinada pelo editor Paulo Werneck. Sempre solicitado para dar opinião sobre os mais diver-sos assuntos, Caetano tem mag-

netismo para polemizar, o que parece ter ajudado a repercussão de Martinha versus Lucrécia. “Gosto de obras que trazem uma nova visão sobre algo e dos autores polêmicos que considero inteli-gentes. Discordo de muitas coisas que Caetano fala, mas qualquer livro dele me interessa”, disse Diogo Guedes, crítico literário do Jornal do Commercio.

Para ele, as polêmicas hoje em dia estão mais comuns, sobretu-do fora do meio literário. “Hoje, existem essas figuras comercias,

Lobão, Pondé, colunistas, mas, ao mesmo tempo, acho que o campo literário é menos debatido como um todo, e uma das cau-sas disso é que se tem uma visão mais homogênea da produção li-terária, tanto por parte dos auto-res como dos críticos.” Dentro da gama de festivais literários exis-tentes hoje em dia, as polêmicas e controvérsias também encon-tram campo fértil. É uma opor-tunidade para escritores trocarem ideias sobre temas que pairam no seu meio ao longo do ano e se

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UBE | Posicionamentoencontrarem em uma mesa para confabular com o público. Para o pesquisador e mestre em Teoria da Literatura, Cristhiano Aguiar, esses encontros estão em um ní-vel abaixo do satisfatório. “Muitas vezes, a impressão que tenho é de que os debates literários têm sido muito mais um momento de entretenimento do que uma troca fecunda de ideias. Por outro lado, talvez tenha sido sempre assim: é a forma contemporânea das conversas de salão (lembremos aquelas cenas dos romances do século 19, com seus bailes e sa-raus domésticos) e não há nada de errado em que existam”, diz.

Aguiar ainda opina sobre a qualidade das polêmicas de hoje. “A controvérsia, a polêmica, não precisam ser vistas como algo alheio à literatura; a literatura é o texto, os leitores e as circunstân-cias de leitura. Mas nem todas as polêmicas são interessantes, nem todas implicam que o seu cria-dor seja alguém digno de leitura e atenção.” Mas, até que ponto es-ses debates ajudam a performan-ce mercadológica dos autores e suas obras? “Com certeza ajuda na divulgação: autores desbo-cados sempre se tornam figuras ‘públicas’, viram comentadores de outras polêmicas, ganham perfis em revistas e jornais. Aca-bam se tornando uma imagem da qual é difícil de descolar-se também”, diz Guedes. Ele cita o escritor francês Michel Houllebe-cq, para falar de alguém capaz de provocar reações exaltadas com seus textos – “o islamismo é a religião mais idiota do mundo”, tachou certa vez. No contraponto de uma polemização pobre estão os manuais politicamente incor-retos que inundam as livrarias. O RECIFEUm livro recente que provocou barulho entre a crítica especiali-zada tem o Recife tanto como ce-nário como personagem. Orgia, do argentino Túlio Carella, ganhou

nova edição pela editora Opera Prima. Representante máximo da literatura homoerótica, a obra traz os diários de Túlio durante o tem-po em que viveu na cidade nos anos 1960, a convite da Universi-dade Federal de Pernambuco. Ele relatou suas andanças pelo cais do porto, jogou-se na libertina-gem gay pelo Centro, encontros sorrateiros com homens brutos e detalhou tudo. Chegou a ser en-carado como um estrangeiro sub-versivo. Ainda em 1968, o livro teve uma pequena edição, logo esgotada.

Lida hoje, a obra ainda causa estranheza e o tom visceral com que relata uma realidade escon-dida da maioria das pessoas ain-

da provoca alguma polêmica. Foi nessa embalagem “provocadora” que Orgia chegou às livrarias em 2011. Segundo seu atual editor, o jornalista Álvaro Machado, isso não implicou vendagens expres-sivas. “Como somos uma editora pequena, não temos um esquema de distribuição tão eficaz”, disse. “Tentamos dar uma dimensão maior à obra. Não precisamos su-blinhar o escândalo, que a obra já tem de sobra.” Entre pesquisa e finalização, o editor levou entre três e quatro anos para concluir a edição.

“O autor era um visionário, estava além do tempo dele. Ele conseguiu enxergar, naquele tem po, questões sociais que vi-

vemos hoje, como as trocas se-xuais baseadas nas relações so-ciais”, diz Machado.

Em Pernambuco, a cena local ganhou um ingrediente provoca-dor com a chegada do Urros Mas-culinos, o coletivo formado por Bruno Piffardini, Artur Rogério e Wellington de Melo. A ideia era fazer uma provocação ao grupo de escritoras do Vozes Femini-nas. Era uma forma de satirizar as questões de gênero que orbitam os debates sobre literatura. Eles chegaram a organizar encontros inovadores na cidade, como a FreePorto (brincadeira com a Flipor-to, maior festa literária do Estado), que geraram opiniões diversas pelo modo um tanto iconoclasta

com que atuavam. Nomes como Marcelino Freire, Lucila Nogueira e Ronaldo Correia de Brito parti-ciparam desses eventos.

Com tempo estimado para terminar, o Urros encerrou suas atividades no início deste ano. “Na verdade, não pretendíamos alcançar efeito nenhum. Ou até queríamos: que as pessoas pen-sassem um pouco mais sobre literatura e menos sobre o que está à borda disso, por mais con-traditório que possa parecer.” “O Urros nasceu como uma iniciati-va ao contrário, então o objetivo maior é a autossabotagem. Nisso, acho que fomos um sucesso”. O atrito das polêmicas pode con-tribuir para um debate rico, mas

muitas vezes serve ao propósito de julgamentos morais e ataques às opiniões de seus autores, sem dar muita importância ao que publicam. “Aqui, no Recife, tem algumas criaturas com esse hábi-to feioso. Mas é melhor nem co-mentar”, diz Wellington de Melo.

QUADRINHOSA arte sequencial brasileira tem muito destaque nas livrarias, e seus autores também são alvo de polêmicas que alimentam im-prensa e mercado. O mais co-nhecido deles é o cartunista La-erte, que, em 2009, passou a se travestir usando roupas e itens do vestuário feminino em tempo integral. Fruto de uma crise exis-

O pesquisador e mestre em teoria da Literatura Christiano Aguiar diz que “nem todas as polêmicas são interessantes, nem todas implicam que o seu criador seja alguém digno de leitura e atenção”

Michel Houullebecq provoca reações exaltadas com suas declarações

Caetano Veloso falou sobre as críticas de Schwarz no suplemento literário da Folha de S.Paulo

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UBE | Posicionamentotencial, essa transformação pas-sou a refletir bastante em seus trabalhos. Mais subjetivas, mui-tas tiras trazem críticas ao pen-samento conservador do brasi-leiro e ataques contra a homo-fobia. O desenhista foi impedido de entrar no banheiro feminino de uma famosa pizzaria de São Paulo, em janeiro deste ano. O pedido partiu de uma cliente que disse estar “constrangida” pelo fato de a filha, menor de idade, estar presente no local. “Ela não entendeu a existência do trans-gênero. Para ela, travesti é uma espécie de sem-vergonha, um transformer, um palhaço. Eles estão desinformados. Com boa ou má-fé, eles estão pratican-do o preconceito”, disse Laerte, à época. Hoje, tanto o atual tra-balho quanto sua figura pública provocam controvérsia.

Já o artista plástico e quadri-nista Rafael Campos Rocha me-xeu em um meio que gera po-lêmica instantânea: a religião. Sua estreia em livro foi a cole-tânea de tiras Deus, essa gostosa (Quadrinhos na Cia). Na obra, Deus é uma mulher negra que possui poderes oniscientes e onipresentes, mas é adepta dos prazeres carnais e frivolidades da vida humana. “Fiz um Deus que fosse o oposto simétrico do Deus das religiões monoteís-tas adotadas pelo homem mo-derno ocidental. Portanto, ela é sexuada, feminina, noturna, apátrida (isso é muito impor-tante) e profundamente con-tracultural”, conta.

A obra saiu primeiro no jor-nal Folha de S.Paulo e na revista piauí. “Recebo e-mails, às ve-zes sombrios e ameaçadores,

às vezes só me chamando de imbecil. Uma carta delicio-sa foi enviada para a Folha, que chama o meu trabalho de ‘um deboche ignóbil e malicioso’.” POLêMICOS HISTóRICOSNelson Rodrigues pode ser con-siderado o mais célebre dos po-lemistas, mas é possível dizer que a literatura brasileira é pró-diga nesse quesito desde muito cedo. São muitos os exemplos. Já em 1888, o carioca Raul Pompeia trouxe para seu romance O Ateneu um jovem complexado, vivendo em um universo ansioso cheio de regras e opressão. Chocou por tratar de forma inédita temas como masculinidade e homo-fobia. Defensor do ideário abo-licionista, Pompeia envolveu-se em diversas polêmicas, foi ata-cado pela imprensa, criticado por intelectuais e envolvido em escândalos amplamente divul-gados. Isolado, suicidou-se no Natal de 1895.

Mais tarde, na década de 1920, um grupo de escritores e artistas resolveu escandalizar

a classe média paulistana com uma semana de exibições que antenava para o Modernismo, vigente na Europa. Hoje, bas-tante relativizada, a Semana de Arte Moderna entrou para a história como um momento de rupturas na literatura brasileira.

O mais célebre nome daque-la geração, Oswald de Andrade, tornou-se ícone por sua produ-ção na literatura, teatro e jorna-lismo. Tinha um ideal naciona-lista acurado e defendeu suas posições em artigos publicados em jornais de São Paulo e do Rio de Janeiro. Seu pensamento de vanguarda o colocou em cho-que com nomes como Monteiro Lobato, em um célebre artigo em que defende a pintora Anita Mafaltti. Tido como “subversi-vo”, ele atacou conservadores da esquerda e da direita e atacou o nazismo crescente da época. PAPEL DA CRíTICAA cobertura especializada em literatura, na imprensa brasi-leira, serve de combustível para repercutir polêmicas do meio. A importância da crítica está sendo posta em xeque, mas sua relevância não pode ser subes-timada. A antologia Geração zero zero, organizada por Nelson de Oliveira, provocou reações con-trárias entre os leitores, répli-cas e tréplicas na Folha de S.Paulo. Apesar do barulho entre escri-tores e editores, o pesquisador Cristhiano Aguiar acha que isso não tenha influenciado nas ven-dagens.

“No entanto, esta forma de repercussão – críticas literárias na imprensa e polêmicas entre autores – não deve ser subes-timada: essas discussões têm, sim, um efeito, porém mais re-lacionado ao próprio meio li-terário e aos seus mecanismos específicos (e idiossincráticos)”, diz. “O importante é que todo o barulho não nos impeça de fazer o mais importante: ler.”

Rafael Campos Rocha mexeu com a questão religiosa em Deus, essa gostosa

O escritor e dramaturgopernambucanoNelson Rodrigues foi um dos maiores polemistas brasileiros

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UBE | Gastronomia

APESAr dA imPortânciA dA gAStronomiA nA SociEdAdE nAcionAl, comidA é Um itEm SUBmErgido nA litErAtUrA cláSSicA nAcionAl por Eduardo Sena

Pilar da literatura ingle-sa do século 18, e con-siderada até hoje um clássico literário da-

quelas paragens, a escritora Jane Austen esteve durante toda a in-fância e adolescência dentro da burguesia agrária da Inglaterra daqueles idos. Fez valer a máxi-ma sociológica de que o homem é fruto do meio, e trouxe de for-ma marcante em grande parte de suas obras, e com riquezas de detalhes, as tradições domés-ticas de sua sociedade. Entre as tantas daquela época, aparecem de forma recorrente nos livros da autora o famoso chá da tarde, os suntuosos cafés da manhã da fi-dalguia inglesa, e o ambiente da cozinha como um todo.

Com o Reino Unido atraves-sando, nesse período, a Revolu-ção Industrial, essa inocência nas obras de Jane é apenas aparente, e pode ser interpretada de várias maneiras. A mais preponderante delas é o fato de a escritora ver-ter em letras todos os costumes vividos por ela, utilizando a co-mida como fio condutor de seus romances dentro de um caráter ficcional. Tomando como ponto de partida as obras de Austen, como instrumentos de forma-ção da sociedade inglesa durante muito tempo, é de se estranhar que o Brasil não tenha nada pa-recido no gênero romance.

“Dentro do senso comum, os valores que mais se sobressaem ao Brasil como um todo é o fu-tebol, o carnaval e a diversida-de gastronômica. No entanto, é muito escassa ou quase nula a participação desses elementos dentro dos produtos culturais que temos, sobretudo os de ini-ciação”, aponta a socióloga Alba Maranhão. A pedido da repor-tagem, quatro críticos culturais elencaram 10 livros de formação do brasileiro, aqueles clássicos que “tem-que-ser” lidos na es-cola. Na lista, apareceram em comum as obras: Dom Casmurro,

LETRAS SEm GOSTO RepRodução

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UBE | Gastronomia

Doce poesia

Se no gênero romance, os motivos gastronômicos permeiam de forma pontual os livros, na poesia a abrangência é mais notória, talvez por existir um foco maior dentro do tema que está sendo escrito. cronista gastronômica, a respeitada jornalista a nina horta certa vez falou que quem escreveu os melhores poemas sobre comida foram Pedro nava, ma-nuel Bandeira, carlos drummond e, sobretudo, Adélia Prado. “A poesia de Adélia oferece uma comovente felicidade simples, surgida do fazer cotidiano”, constatou. nesse contexto, figura casamento, poema que está no livro terra de Santa cruz (Editora record, 2006) da escritora mineira.

Casamento

há mulheres que dizem:meu marido, se quiser pescar, pesque,mas que limpe os peixes.Eu não. A qualquer hora da noite me levanto,ajudo a escamar, abrir, retalhar e salgar.é tão bom, só a gente sozinhos na cozinha,de vez em quando os cotovelos se esbarram,ele fala coisas como “este foi difícil”“prateou no ar dando rabanadas”e faz o gesto com a mão.o silêncio de quando nos vimos a primeira vezatravessa a cozinha como um rio profundo.Por fim, os peixes na travessa,vamos dormir.coisas prateadas espocam:somos noivo e noiva.

acepipes, o virado de feijão com torresmos, os bolinhos de chuva e de polvilho e o indefectível café coado na hora.

Para Hugo Viana, crítico de li-teratura do jornal Folha de Pernam-buco, a comida dentro da litera-tura, seja ela clássica ou contem-porânea, aparece sempre como uma forma de contextualizar a situação de tempo e de espaço. “Por mais que não seja, de fato, um elemento de grandeza dentro das páginas, a gastronomia serve para ilustrar algo subliminar do personagem; seja o seu caráter, uma impaciência, liberdade ou código social”, defende.

O jornalista toma como exemplo o livro O cheiro do ralo, de Lourenço Mutarelli, que traz uma visão complexa da vida suburbana de São Paulo, pas-seando discretamente pelo fast food. “Nesse romance, espe-cificamente, o personagem se apaixona por uma moça que é garçonete. Portanto, a figura da comida é meramente ilustrativa, complementar e secundária. O livro não se propõe a discutir os hábitos alimentares de lancho-nete, mas utiliza o artifício para construir a identidade dos per-sonagens”, explica.

comer, morre”. Nas páginas de Jorge, comia-se muito bem, di-ga-se de passagem. Da infinida-de de frutas às merendas, doces e iguarias da culinária baiana. Para não falhar nesse quesito, o escri-tor consultava quituteiras famo-sas daquelas plagas, como Dona Ayla, Dadá, Canô e Maria. “Tal-vez Jorge seja o escritor que mais trouxe o elemento comida para dentro das suas páginas, de uma forma natural e leve, como uma atividade no cotidiano do perso-nagem”, afiança Mário Hélio.

Monteiro Lobato também era um ávido defensor da comida nacional em suas obras. Dizia que “um país se faz com ho-mens, livros... e uma boa gastro-nomia”. Chauvinista, criticava a elite que executava receitas com ingredientes brasileiros e as bati-zavam com termos franceses. No Sítio do Pica-Pau Amarelo, sua obra mais conhecida, ele elevou a mesa a um instrumento de con-fraternização dos personagens do sítio. Dona Benta e seus netos, Narizinho e Pedrinho, o Viscon-de de Sabugosa e a boneca Emí-lia utilizavam o ambiente da co-zinha para narrar suas aventuras e buscar conforto nos quitutes de tia Nastácia. Entre os clássicos

to mais na ausência da comida do que na presença dela como parte de um rito. De Guimarães Rosa, Grande sertão: veredas traz um pou-co disso. Para ilustrar a falta de alimento, ele fala da importân-cia da mandioca e mostra a vida em torno do polvilho (amido da raiz). “O ato de quebrá-lo era gostoso, parecia um brinquedo de menino”, escreveu. O quinze, da escritora cearense Rachel de Queiroz, também traz essa mes-ma perspectiva. A obra, de 1930, mas que retrata a grande seca de 1915, aborda o duro duelo entre o homem e a terra, valendo-se da fome para exprimir os anseios e angústias da região.

SE NÃO COMER, MORREQuintessência da literatura baia-na, Jorge Amado não se cansava de dizer: “Personagem tem de ser vivo, de carne e osso. Se não

Vidas secas, O cortiço, Macunaíma, A moreninha, Memórias póstumas de Brás Cubas, Grande sertão: veredas e Triste fim de Policarpo Quaresma. Oito títu-los em comum, quase uma una-nimidade.

É interessante perceber que, em nenhuma das obras iden-tificadas, a comida aparece de maneira relevante. “Dentro da literatura clássica, os escrito-res sempre procuraram beber na fonte das escolas europeias. No Romantismo, por exemplo, trouxeram a coisa da tragédia. Já no Realismo e Naturalismo, apostaram nas mazelas sociais. Comida nunca foi vista como algo importante e que mereça destaque. É como se fosse abor-dar futilidade”, dispara Mário Hélio, curador da Festa Literária In-ternacional de Pernambuco – Fliporto.

Nesse contexto de reflexão social, as luzes são deitadas mui-

Boom editorial

mesmo que na ótica da hierarquia literária ainda seja subjugada, o fato é que a gastro-nomia já desponta como um das seções mais procuradas dentro das livrarias. deixando de servir como plano de fundo para os livros técnicos, o assunto se transformou em fonte de pesquisa, biografias e outros enredos. Segundo o site especializado em mer-cado editorial, Publish News, entre os 20 livros de não ficção mais vendidos em 2011, figuram dois com motivos gastronômicos: A cozinha rápida de Ana maria Braga, da apresentadora de tv homônima, e 30 minutos e pronto, do badalado chef inglês jamie oliver. Algo impensável, há 10 anos.

o chef de cozinha brasileiro Alex Atala, que ocupa o posto do 4º melhor mundo, segundo a revista inglesa Restaurant, também já se aventurou no mundo das letras lançando, em 2008, o Escoffianas brasileiras (larousse do Brasil), revelando os porme-nores dos ingredientes nacionais e suas receitas. Em Pernambuco, o jornalista Bruno Albertim também naquele ano pôs nas prateleiras o seu Recife – guia prático, histórico e sentimental da cozinha de tradição, contando a história de uma das cozinhas mais importantes do Brasil – a pernambucana –, com um guia dos principais endereços do recife para se deleitar com tais ícones gastronômicos.

igualmente evocando a cozinha típica do Estado, a pesquisadora gastronômica ma-ria lectícia monteiro cavalcanti (foto) condensou parte de seus copiosos estudos, aos quais ela sempre se dedicou com afinco – na teoria e na prática, e lançou em 2009 o livro História dos sabores pernambucanos. Um calhamaço de 359 páginas, divididos em 13 capítulos, começando pelas heranças indígena, portuguesa e africana, até che-gar aos tira-gostos, entradas, pratos de sustança, acompanhamentos e sobremesas.

“no início, as pesquisas eram para satisfazer uma curiosidade minha de saber que pratos eram nossos e quais vieram de fora”, revela a escritora que foi criada no engenho, e tem em todas as memórias da sua infância o cenário da cozinha da casa de sua avó, onde passava horas vendo-a preparar os pratos. “isso me marcou muito, o gosto da culinária, o prazer de cozinhar”, afiança.

Ela lembra, ainda, que a literatura culinária de Pernambuco tem uma dívida com o sociólogo gilberto freyre. “Em uma época na qual virou moda copiar receitas que não eram nossas, ele alertou para esse grande patrimônio que é a comida de Pernambu-co. daí, começamos a valorizá-la, receber os amigos com pratos tradicionais, e tam-bém fazendo uma releitura deles, usando ingredientes da terra com nossa leitura”, explica maria lectícia.

Pioneiro de todos nessa arte, o escritor que inaugurou a literatura gas-tronômica ocidental com o livro A fisiologia do gosto, Brillat-Savarin, dizia que “sempre existiu uma ín-tima aliança entre a arte de bem-dizer e a arte de bem-comer”. Seja no Bra-sil, de jorge Amado, ou na inglaterra, de jane Austen, o importante é perceber que um prato não oferece apenas ingredientes e re-ceitas. conta toda uma for-ma de estar no mundo.

Gabriela, do romance de Jorge Amado, era uma grande cozinheira

divulgação

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UBE | Cinema

litErAtUrA E cinEmA EStão fortEmEntE intErligAdoS. convidAmoS PESQUiSAdorES, críticoS, EScritorES E cinEAStAS PArA dEBAtEr A QUEStão por Guilherme Carréra

A sugestão de que a li-teratura pode ser considerada superior ao cinema talvez en-

contre respaldo na experiência da adaptação cinematográfica de um livro. Beber da fonte de um material já existente para elabo-rar um roteiro colocaria o cinema degraus abaixo como arte? Para o cineasta, escritor e ensaísta Fer-nando Monteiro, não há como hierarquizar. “Literatura e cine-ma são duas linguagens diferen-tes”, decreta.

Nascido em 1949, Monteiro vem de uma geração marcada pelo amadurecimento de cine-astas europeus e norte-america-nos, hoje, considerados referên-cias. Sua incursão pelo cinema não demorou a acontecer. Em 1972, produziu e dirigiu o curta-metragem Visão apocalíptica do rad-inho de pilha, que viria a represen-

VIRE A PáGINAe rebobine o filme

tar oficialmente o Brasil no Festival Internacional de Guadalajara, no Mé-xico. Quase que concomitante-mente, estreou na literatura. Em 1973, saía o poema longo Memória do mar sublevado, editado como primeiro livro.

Essa predisposição para a câ-mera e para a pena lhe valeu ex-periência em ambos os domínios. “Sou de uma geração apaixonada pela literatura e pelo cinema, si-multaneamente. Para nós, não havia ‘supremacia’ de uma sobre o outro, e vice-versa.” Monteiro e sua turma, no entanto, não pu-nham muita fé no impresso. “Nós achávamos que a pena viria a ser, progressivamente, ‘substituída’ pe la câmera. Mas não foi o que aconteceu.”

Anos de experiência nas duas frentes levaram o literato cinéfi-lo a ministrar encontros sobre a relação que se pode estabelecer

entre literatura e cinema. Em li-nhas gerais, entrega: “Estudamos como reconhecer os pontos fa-lhos de uma má adaptação cine-matográfica e, inversamente, os méritos de uma bem-sucedida adaptação para a tela”. Sem que-rer se alongar sobre os métodos que utiliza em sala de aula, vai de encontro ao público, quando o assunto é como diferenciar uma boa e uma má adaptação.

“O que se faz é a transposição de um meio expressivo para ou-tro, operação artística na qual os valores da obra original estarão presentes de forma necessaria-mente ‘alterada’ pela passagem do conteúdo abstrato das palavras para a concretude das imagens. Será outro o livro vertido para o cinema, ou seja, transformado num filme”, deixa claro. “Não haveria por que a plateia consi-derar o filme uma boa adaptação,

Hitchcock dirigiu adaptações de filmes que não eram obras-primas

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tendo como base o critério da fi-delidade total ao livro escrito.”

É o que pensa também o es-critor Homero Fonseca. “É sim-plesmente impossível transpor-tar para a tela as minúcias de um livro. O tempo da leitura é um (dias, semanas, meses), o do fil-me é outro (100, 120 minutos). O melhor critério para julgar uma adaptação é se ela captou ‘o es-pírito da coisa’, ou seja, a essên-cia do romance, trasladada para outra linguagem, a do cinema”, explica.

Fonseca lançou, em 2007, Roliúde, um romance curioso. E que, de certa forma, toca nossa discussão. Bibiu, o protagonista, é um contador de histórias, dividi-do entre a caatinga e Hollywood. Tem como hábito traduzir para o linguajar do Nordeste as histó-rias cinematográficas de grandes clássicos, como: King Kong (1933), E o vento levou... (1939), Casablanca (1942), entre outros. Essas tra-mas, por sua vez, se misturam às intempéries que vive em seu cotidiano nos anos 1940. “Mas o livro não é sobre o cinema hollywoodiano nem pretende ter uma narrativa cinematográfica.

O livro é sobre um contador de filmes, e a linguagem é a dele, o ponto de vista, o ritmo narrati-vo.” Embora crave essa distinção, o autor acredita que “cinema e literatura se influenciam, fenô-meno, aliás, que acontece com praticamente todas as formas de arte”.

Se Roliúde vai virar filme, Fon-seca desconversa. Mas o fato é que, no teatro, a história já foi parar. “Dei plena liberdade ao diretor e ator João Ricardo Olivei-ra, do Rio de Janeiro, para adap-tar. Ele captou perfeitamente o tal ‘espírito da coisa’. Toda vez a que assisto, tenho a impres-são de que a peça é o livro, mas também é outra coisa comple-tamente diferente. Em resumo: é também outra arte, é teatro.” Doutor em Cinema pela Univer-sidade de Sorbonne (França), Alexandre Figueirôa aplaude a não hierarquização e explica por quê. “Estamos falando de tex-tos construídos a partir de sig-nos diferentes. O livro tem como base a palavra, e o filme, além da palavra, conta com a imagem e o som. Nem sempre é possível na adaptação transformar o sig-

no verbal em signo audiovisual. Nesse processo de transposição, haverá sempre algo do texto ori-ginal que ficará para trás e novos elementos que aparecerão no novo suporte.”

Ao entrar no debate, Rosân-gela Neres, doutora pela Univer-sidade Federal da Paraíba, esta-belece uma diferença pontual. “O cinema basicamente ‘mostra’ e a literatura ‘conta’”, afirma. A professora, no entanto, credi-ta à linguagem cinematográfica um poder novo. “O cinema tem apostado em conceitos relevan-tes, como o poético e o simbóli-co, na construção de adaptações que apresentam certa autonomia em relação ao texto literário.” E não raro essas adaptações conse-guem superar o texto original. “A seleção da narrativa e os acrésci-mos poéticos estabelecidos em As horas (2001), de Stephen Daldry, e Direito de amar (2009), de Tom Ford, por exemplo, abrilhantam o novo texto. Considero essas adaptações muito mais criativas do que os próprios textos literá-rios.”

Figueirôa reitera, citando os cineastas Alfred Hitchcock e Luis

Buñuel. “Eles dirigiram adap-tações de livros que não eram necessariamente obras-primas, mas que resultaram em filmes interessantes.” Do norte-ameri-cano, temos Pacto sinistro (1951), adaptado de um romance de Patricia Highsmith, e Os pássaros (1963), adaptação de um conto de Daphne Du Maurier. Do espa-nhol, há A bela da tarde (1967), da obra de Joseph Cassel, e, ainda, Este obscuro objeto do desejo (1977), adaptação livre do romance La femme et le pantin, de Pierre Louys.

QUEM é O DONO DA HISTóRIA?Do proveito que se tira de um conto ou de um romance, o con-ceito da autoria de um filme pode ser estremecido. Para o crítico de cinema e doutor em Comunica-ção pela Universidade Federal de Pernambuco Rodrigo Carrero, um filme de autor em nada tem

a ver com filmar um roteiro ba-seado em uma ideia original (e entendamos original como disso-ciada de um texto literário). “O conceito de autoria no cinema tem muito mais a ver com estilo e estética do que com conteúdo e narrativa. Claro que todo dire-tor tem preferências por certos temas, mas, no geral, ele coloca suas impressões digitais na es-colha dos ângulos e movimen-tos de câmera, no trabalho com os atores, no uso da música e dos sons.” Desse modo, retor-namos ao mestre do suspense. “Hitchcock talvez seja o melhor exemplo, já que ele costumava trabalhar frequentemente com adaptações literárias, inclusive Psicose (1960), mas a gente conse-gue reconhecer rapidamente um filme dele.”

A suposição de que existe, de fato, uma ideia original inquie-

ta os pesquisadores. Fernando Mendonça, doutorando em Teo-ria da Literatura pela UFPE e pro-fessor de uma disciplina sobre adaptações cinematográficas, re-chaça o conceito. “A cada dia fico mais convencido que a suposição de uma ideia original é hipótese impossível, argumento imprati-cável, pois tudo já foi dito e con-tado.” Com isso, ele acredita que, para um filme ter assinatura, vale mais a forma como o argu-mento vai ser trabalhado do que o argumento propriamente dito. “Um cinema é original a partir do momento em que ele estabelece imagens e conexões que ainda não foram previstas. Um cineasta é um autor pelas escolhas que faz para materializar uma ideia, não pela ideia em si.”

Historicamente, o cinema do século 19 estabeleceu forte relação com o teatro. A França

Fernando Monteiro, Homero Fonseca e Alexandre Figueirôa afirmam que não é possível hierarquizar as linguagens

A bela da tarde, obra de Joseph Canel, foi adaptada para as telas por Luis Buñuel

aNa FoNSeca

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UBE | Cinemados irmãos Lumière investiria suas duas primeiras décadas em curtas-metragens inspirados no cotidiano. “Só a partir de 1917, quando o longa-metragem de 120 minutos passou a ser mais aceito, as adaptações literárias ganharam espaço”, explica Car-rero. Mendonça lembra que a década subsequente ajudou a sedimentar a relação entre cine-ma e literatura. “Nos anos 1920, a influência da literatura sobre o cinema começa a se delinear com mais recursos e conscienti-zação, por conta das vanguardas modernistas e da reflexão que alguns cineastas teóricos, como Jean Epstein e Serguei Eisenstein, enxergaram frente aos benefícios da relação entre as artes.”

A VISÃO DE QUEM ADAPTA “Se a gente não gosta do que está adaptando, o resultado não pode prestar”, garante Bráulio Tavares, escritor, compositor e roteirista para cinema e televisão. “Eu pro-curo sempre absorver o espíri-to do autor, seu modo de ser, de pensar, de sentir, de ver o mun-do. Procuro acreditar na história que está sendo contada”, ensina. A lista de adaptações de Tavares é significativa.

Além de já ter adaptado Gil-berto Freyre, Nei Leandro de Castro e Marco Carvalho, ele é o responsável pela adaptação dA Pedra do Reino (2007), de Ariano Suassuna, para a televisão (em-bora o tratamento dado pelo di-retor Luiz Fernando Carvalho se assemelhe ao do cinema). “Tí-nhamos em mãos não apenas o Romance da Pedra do Reino, que tem 700 páginas, mas também Ao sol da Onça Caetana que tem umas 250 e As infâncias de Quaderna que deve ter umas 500 (inédito em livro, consultamos a edição em folhe-tim de jornal). Nós nos concen-tramos no primeiro livro, mas esses outros dois serviram para preencher as lacunas da histó-ria e explicar melhor o passado

dos personagens”. A crítica se dividiu, mas esse não é o tipo de retorno que o afeta. “Acho que a maioria não gostou, mas a mino-ria que gostou percebeu bem as nossas intenções.”

Na função de roteirista, Tava-res diz que precisa encarar o de-safio da adaptação com parcelas semelhantes de liberdade e limi-te. “Todo processo criativo preci-sa de liberdade e de rédeas, mas cada trabalho cria seu próprio sistema de regras. Às vezes, o di-retor chama o roteirista para es-crever porque se identifica com as ideias ou o estilo dele. Outras vezes é o produtor que contrata um roteirista para desenvolver um projeto que ele quer produ-zir. Em cada situação dessas, o grau de liberdade e de limitação varia muito.” Como lema, um só. “Eu diria que se a gente está adaptando a obra de alguém deve respeitar suas ideias, mesmo que tome certas liberdades quanto à forma.”

O currículo do cineasta Léo Falcão conta com duas experi-ências do gênero. Seu primei-

ro longa-metragem Guia prático, histórico e sentimental da cidade do Recife (2008) é uma adaptação de Gilberto Freyre. E o curta Pa-lavra plástica (2010) foi realizado a partir de poemas de Carlos Pena Filho. O curioso é que ambos são documentários, quase uma exceção no rol das adaptações. “No primeiro, o grande desafio foi traduzir todos os aspectos da obra de Freyre (como pes-quisador e autor) num estatu-to documental, mostrando um Recife que também é meu. Já no segundo, comecei de um segun-do nível de adaptação: a partir das leituras de artistas plásticos dos poemas de Carlos Pena, criei sequências de imagens que de-veriam guardar uma relação não apenas retórica, mas, sobretudo, plástica.” Para Falcão, um cine-asta não pode fazer com o ma-terial de um escritor o mesmo que não pode fazer com o olhar do espectador. “No fim das con-tas, o que fica é o filme, e não o processo de adaptação ou as ex-pectativas (frustradas ou supe-radas). Se o filme é bom, valeu.”

Como analisar um filme em meia página de jornal

diante dos críticos de jornais, essa relação tende a ser suspensa no momento em que se opina sobre um filme. “Para avaliar um filme, é preciso olhar para ele como algo indepen-dente. roteiro original ou adaptado, se o filme não se sustenta como obra autônoma, é falha grave e deve ser apontada”, afir-ma o jornalista André dib. crítico de cinema do Diario de Per-nambuco, ele gosta de avaliar uma obra sob o ponto de vista da reinvenção. “Uma boa adaptação reinventa a essência da obra original. no livro Cinemancia, júlio Bressane trata do processo de tradução como exercício de liberdade criativa. Ele parte do caso de São jerônimo, que converteu a Bíblia do sânscrito para o grego, investigação que foi tema de um de seus filmes. Quan-tas liberdades foram tomadas para chegar até a Bíblia ociden-tal? da literatura para o cinema, vale o mesmo.”

jornalista cultural do portal Pernambuco.com, júlio ca-vani comunga da mesma opinião, mas abre exceção. “Se o filme for baseado em um livro que possua uma importância anterior, ressalvas podem ser feitas, principalmente, quan-do há algum tipo de deturpação em relação à essência do material original.” na hora de enumerar as adaptações bem-sucedidas, destaca Vidas Secas (1963), de nelson Pereira dos Santos, baseado no romance de graciliano ramos. dib escolhe Lavoura arcaica (2001), a adaptação de luiz fernan-do carvalho do livro de raduan nassar, e justifica. “o filme

alia uma narrativa audiovisual com capítulos inteiros do livro, praticamente lidos em voz over pelo personagem principal. o resultado é maravilhoso. E muito raro. é um caso tão à parte, que não dá nem pra usar como exemplo.”

carrero, crítico responsável pelo site Cinerepórter, lem-bra, ainda, Cidade de Deus (2002), dirigido por fernando meirelles e adaptado da obra de Paulo lins, marco da cine-matografia nacional, lançado há exatos 10 anos. “é um óti-mo exemplo de síntese de um material muito amplo dentro de uma narrativa concisa”, avalia. Quando se prepara para resenhar sobre um filme, ele fica de olho na capacidade de o mesmo ser verbalmente contido. “Acho essencial que os responsáveis pela adaptação contenham o impulso natural pela verborragia, porque bom cinema não é feito com exces-so de exposição verbal. é preciso um trabalho de tradução dessa verborragia em imagens e sons.”

Quando assistiu a Brás Cubas (1985), de júlio Bressane, dib vai além ao comparar o filme ao texto original de ma-chado de Assis. “o diretor faz uma viagem de sons e luzes que passa longe de descrever ambientes e personagens, de transpor diálogos do romance original, itens de uma suposta ‘fidelidade’ que se confunde com reverência, ou até submis-são. Em Brás Cubas, machado, ou ao menos a busca por ele, está na luz do filme.”

A adaptação do Romance da Pedra do Reino para a TV dividiu a crítica

Lavoura arcaica, obra de Raduan Nassar, ganhou versão cinematográfica

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Este texto, de modo despretensioso, propõe reflexões sobre a problemática da leitura no Brasil e de como essa problemática se relaciona com a escola brasileira e de como repercute na formação do leitor. Por meio de tópicos curtos e diretivos, procuramos trazer à tona alguns pontos, ao nosso ver, relevantes para a discussão da temática. Reconhecemos a brevidade das reflexões e suas limitações. Desse modo, antecipadamente, agradecemos sugestões e críticas que por ventura existam. Outrossim, sugerimos que o texto seja lido menos como verdades fechadas e mais como pontos abertos à discussão.

Não se pode dizer que o Brasil é um país de leitores assim como a França já foi no século passado. Também não se pode dizer que o Brasil é um país sem leitores, pois, de verdade, não existem não-leitores. Em algum nível, todos, sem exceção, desde que humanos, lemos. O que podemos dizer, sem muito cuidado com possíveis equívocos, é que, no Brasil, a leitura não é uma prioridade para os governos de um modo geral.

É fato que a leitura – no sentido estrito da palavra –, isto é, como sendo uma ação relacionada à compreensão do código verbal tão-somente tem sido motivo de discussões das mais diversas e das mais intensas. No entanto, embora seja motivo de discussão não tem sido pauta priorizada quando as questões tocam nas políticas públicas sobre leitura, formação do leitor, sobre a relação entre leitura e escola. Em todo caso, nos dias contemporâneos, existem iniciativas oficiais que nos levam a crer que, cedo ou tarde, a problemática da leitura e sua relação com a escola e mais precisamente, a problemática da leitura literária e sua relação com a escola serão temas que estarão no foco das discussões mais acirradas sobre políticas públicas de leitura. O PNLL, por exemplo, talvez seja um indicativo do que estou prevendo.

Se entendermos que em 1920, 75% da população brasileira eram analfabetos, isto é,

Hugo Monteiro Ferreira

A leitura, a literatura para infância e a escola brasileira

Professor do Departamento de Educação da UFRPE. Assessor Especial da HMF Assessoria Pedagógica. Escritor. Palestrante. Representante da Cátedra UNESCO de Leitura em Pernambuco.

não possuíam a alfabetização escolar mínima, compararemos com os dados apresentados nos dias atuais, cerca de 9% são analfabetos no Brasil, entenderemos que as problemáticas da leitura no Brasil não são mais as mesmas e que, embora ainda não sejam exatamente o que podem vir a ser, tais problemáticas aparecem em destaque.

No entanto, o destaque que lhes é dado parece-nos muito pouco relevante quando comparado a questões também importantes para a formação e manutenção de uma sociedade crítica, criativa e cuidadosa. A leitura, quando posta em oposição – se é que isso deva ser feito – a outra maneira de construção e desdobramento da informação, no Brasil, ainda ocupa espaço desprivilegiado.

Nas casas das famílias brasileiras, com raras exceções, a cronotopia do livro não é vista e nem sentida. De verdade, o livro quase inexiste nas casas. Desse lugar de onde falamos agora, falamos da ausência da leitura no cotidiano doméstico dos brasileiros e das brasileiras, porém não tratamos de qualquer modalidade de leitura, exceto da modalidade verbal escrita e mais precisamente da leitura do livro.

É o livro, objeto muito antigo, nas famílias brasileiras, um bem cultural de pouca frequência. E quando dizemos de pouca frequencia, estamos querendo dizer de pouco uso e de uso muito pouco concretizado. O livro e a casa do brasileiro não costumam ser, digamos, elementos unidos. Em pesquisa recente, assinalamos que de dez famílias pesquisadas somente duas tinham livros em seus espaços domésticos.

Os livros e as leituras são questões merecedoras de muitas atenções. Por razões sociais e históricas, que o espaço não nos permite aprofundar, no Brasil, nas famílias, a leitura de livros é assunto de valor questionável. Ler um livro, vimos em nossa pesquisa sobre leitura e família, para alguns, pode ser considerada uma

perda de tempo muito grande e de consequências não relevantes para a vida mercadológica.

A escola brasileira é uma invenção da modernidade. É forjada sob a lógica do modelo de sociedade burguesa do século 19 e tem nos princípios e pressupostos das teorias racionalistas sua linha diretriz de pensamento. Diríamos que a escola brasileira não foi criada senão para conseguir dar cumprimento aos ideários da lógica mercantil e foi pela ótica do funcionalismo que a leitura foi tratada na escola.

O livro para a infância (para mim, a palavra “infância” remete tanto à criança quanto ao adolescente) chegou às escolas brasileiras menos como um livro que fosse do agrado dos leitores reais, e mais como um livro que tivesse por objetivo principal ensinar para meninas e meninos – diferenciados pela classe social e econômica da qual faziam parte – o que elas e eles deveriam aprender a fim de que pudessem ser “legais” representantes – futuros – do sonho mercantil.

A leitura de livros para a infância, nesse sentido, foi menos uma ação de escolha do leitor em formação e mais uma imposição do projeto societário da época. A leitura na escola e a leitura escolar – sem fazer distinção dos conceitos que permeiam as duas expressões – não se deu – no seu aspecto coletivo – pelo e por prazer, porém se deu pelos processos da obrigação leitora.

A literatura para a infância, por exemplo, foi utilizada no Brasil, no início do século 20 como uma estratégia pedagógica com vistas à alfabetização de crianças escolares – isso por isso mesmo não tem grandes problemas –, entretanto, a questão é que tal estratégia pedagógica ignorava as possibilidades oferecidas pela literatura e reduzia a literatura a mero auxílio de ensino.

A redução da literatura a mero auxílio de ensino é um dos mais equivocados atos da escola brasileira, todavia, esse foi o espaço e o tempo que a leitura do livro para infância conseguiu ter na escola brasileira do início do século 20. As consequências dessa desastrosa maneira de se relacionar com a leitura de literatura foram muito ruins para a formação do leitor literário no Brasil.

Uma leitura por obrigação nunca é, de verdade, um ato de escolha. Ou seja, a leitura obrigatória proposta pela escola brasileira no início do século 20 para os leitores brasileiros em formação menos ajudou a formar pessoas críticas e mais contribuiu para que houvesse aversão ao ato de ler. Leitores obrigados não são autônomos, visto que não reconhecem no processo leitor um momento de libertação.

A leitura de literatura deve ser uma ação de escolha e feita sob a lógica do prazer. Somente

assim – de outra maneira ignoramos – é possível que o leitor em formação possa viver uma experiência que o conduza para a criatividade e para a criticidade. Dizemos “conduza”, mas, de fato, devemos dizer “construa”, posto que o sujeito crítico e criativo é um sujeito “construído”.

O leitor criativo e crítico é aquele que construído na e pela leitura não aceita – de modo mecânico – ideias e ideários. O leitor crítico é sobremaneira uma pessoa que utiliza a reflexão quando diante de situações complexas que a vida lhe traz. A criticidade é uma característica do sujeito leitor forjada na leitura de literatura. A escola, se bem orientada, pode e deve ser uma cronotopia de construção desse leitor.

De mesma maneira, a escola também pode e deve contribuir para a construção de sujeitos criativos. Os sujeitos criativos são também os sujeitos que se propõem ao novo e não fazem uso da repetição como um elemento necessário à construção da verdade. Os sujeitos criativos buscam e encontram soluções para as situações complexas que a vida individual e coletiva apresenta e fazem da criatividade uma estratégia de melhoria social.

A criatividade é essencial ao desenvolvimento de uma comunidade. Sujeitos leitores são criativos e são críticos, isto é, são fundamentais para sociedades que almejem o bem comum. Desse ponto de vista, entendemos que o Brasil – considerando seu projeto para o bem comum – necessita formar, urgentemente, por meio das famílias e das escolas, leitores críticos e criativos, posto que são tais leitores a garantia de uma sociedade reflexiva e plural.

Este texto trouxe à tona reflexões as quais, se lidas com cuidado, poderão levar o leitor a seguinte sentença: a leitura no Brasil ainda é um desafio, porém não é um desafio intransponível. A leitura literária, feita nas famílias ou nas escolas, quando não imposta, porém vivenciada pelo e com prazer, é muito importante para a formação de sujeitos críticos e criativos.

Não se pode dizer que o Brasil é um país de leitores assim como a frança já foi no século passado. Também não se pode dizer que é um país sem leitores, pois, de verdade, não existem não-leitores. Em algum nível, todos, sem exceção, lemos. O que podemos dizer, é que, no Brasil, a leitura não é uma prioridade para os governos de um modo geral

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UBE | Infantojuvenil

LEITURAna infânciao rótUlo “infAntojUvEnil” é EScorrEgAdio E controvErSo, mUitAS vEzES USAdo como jUStificAtivA PArA UmA ProdUção PoBrE, morAlizAntE E AntiPoéticA por Gianni de Paula Melo

Há uma popular tirinha do quadrinista Macanu-do em que o gato Fellini

tenta apressar Enriqueta, quando a menina está decidindo qual li-vro da sua estante deve ler. A per-sonagem explica seu dilema com muita sensatez: “O que acontece é que vou ler muitos livros em minha vida... Mas os que eu ler na infância vou me lembrar pra sempre”. O que a memória acolhe e amarra é cruz para vida inteira; se podemos, minimamente, de-finir nossas lembranças, melhor para nós. Enriqueta, enquanto leitora, já se sente pressionada nesse sentido, consciente de que as suas escolhas da infância são determinantes para a relação que vai estabelecer com as obras li-terárias. Tal lucidez, no entanto, nem sempre podemos esperar do leitor iniciante, daquele que está começando a tatear esse universo artístico complexo, por isso cabe

aos mediadores – pais, professo-res, educadores diversos – a res-ponsabilidade de apontar textos, autores e caminhos.

Essa relevância dos livros li-dos quando criança para a forma-ção intelectual e pessoal remete ainda a responsabilidade do es-critor, mencionada certa vez pela professora e pesquisadora Luzilá Gonçalves: “Fazer literatura in-fantojuvenil não é você escrever qualquer brincadeirinha, envolve uma sensibilidade importante. Porque quando a gente desperta uma pessoa para a beleza, a gente não segura mais ela”. Na verda-de, a responsabilidade do escritor continua a mesma: fazer litera-tura. O termo (e rótulo) “infan-tojuvenil” é escorregadio e con-troverso, muitas vezes utilizado como justificativa para uma pro-dução pobre, moralizante e an-tipoética. Aliás, o bibliotecário e comentador de livros para crian-

ças, Marcus Crouch, é muito feliz quando defende que “o autor ho-nesto (...) escreve o que está den-tro de si e precisa sair. Às vezes o que ele escreve terá ressonância nas inclinações e interesses dos jovens, outras vezes, não”.

A palavra que deve interessar ao leitor literário, seja qual for a sua idade, é essa que compõe a obra honesta. Mas, além de trazer a verdade do seu autor, ela deve apresentar compromisso estético forte. A safra contemporânea de publicações “para crianças” tem assumido louváveis experimen-tações de forma e conteúdo; por isso é válido se ater a alguns li-vros do catálogo “infantojuvenil”

O pernambucano André Neves é um dos ilustradores que tem se destacado na área

RepRodução

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UBE | Infantojuvenilque preenchem olhos e alma dos apreciadores exigentes.

Bili com limão verde na mão, assi-nado pelo poeta Décio Pignatari, é uma desses trabalhos de gran-de potência poética e diálogo elaborado entre o texto e as ilus-trações. Reconhecido por mui-tos como uma espécie de Alice no país das maravilhas tupiniquim, o livro se utiliza de recursos li-terários complexos como o flu-xo de consciência e dá um laço entre poesia e prosa, exploran-do as estratégias verbovocovisuais do Concretismo. Nele, vemos a arte sem didatismo: não existe intenção de afunilar as interpre-tações para um sentido único, para “aquilo que a história quer ensinar”. Bili... é a viagem ima-ginativa que toda literatura deve ser, com um sentido formativo que não busca as ações corretas, mas a sensibilidade apurada.

Consolidar ações corretas, em vez de problematizar o mundo e o humano, é uma das ambições equivocadas de parte da produ-ção dita infantojuvenil. Na dire-ção contrária a essa lógica, vem livros como O pequeno fascista, de

Ações em Pernambuco

Em consonância com essas preocupações do universo da literatura in-fantojuvenil, Pernambuco tem assistido a uma multiplicação de ações regulares voltadas à formação do leitor. Projetos com diferentes focos estão sendo desenvolvidos, para colaborar na educação das crianças, estimular o contato com os livros literários e, assim, ampliar o senso de humanidade. “o esforço de formar crianças e jovens leitores não deve ser apenas um projeto escolar, mas, principalmente, da família e, por que não dizer, de toda a sociedade”, lembra-nos o professor Antônio nunes, curador da Fliporto Criança.

o eixo desse grande festival direcionado aos mais jovens possui, indiscutível relevância para reuni-los em torno dessa arte tão cara. no calendário anual do estado, é uma das poucas atividades literárias pre-vistas para esse público e possibilita um contato com importantes es-critores e ilustradores sem a atmosfera de idolatrias. Além disso, serve como vitrine de lançamentos e, é claro, momento de difusão do prazer pela leitura, como comenta nunes: “o nosso objetivo é levar ao nosso público o melhor da literatura infantil e juvenil brasileira, além de realizar atividades de valorização do livro e da leitura. desejamos despertar nas crianças pernambucanas tudo de bom que pode derivar dessa relação”.

diante do efeito restrito que o evento pontual provoca, a Fliporto de-cidiu investir em ações continuadas em olinda, para assistir a uma po-pularização da leitura mais efetiva na cidade. “dentre estas, ganha des-taque a casa do livro infantil e da leitura de olinda (clilo), um espaço permanente para ações voltadas à formação de leitores, localizado no centro histórico da cidade, motivo pelo qual, acreditamos, passará a fa-zer parte do roteiro turístico e cultural da cidade, bem como se integrará ao cotidiano de suas crianças e jovens”, revela Antônio nunes. idealizado para funcionar como um museu vivo, o espaço contará com biblioteca, ambiente para exposição, sala de leitura e um quintal destinado às ati-vidades ao ar livre.

outra iniciativa de estímulo, dessa vez voltada mais para a produ-ção, que está se mostrando sólida e profícua é o Concurso Cepe de Li-teratura Infantil e Juvenil. no ano em que realiza a terceira edição dessa saudável disputa, a companhia Editora de Pernambuco já apresenta um catálogo coerente e rico. Sobre o surgimento dessa proposta, a escri-tora luzilá gonçalves, que coordena o concurso, explica: “como a lite-ratura infantojuvenil vem se expandido, não só pelo viés mercadológi-co, mas, sobretudo, no processo formativo, então percebemos que era importante suprir essa lacuna”. junto à Bagaço, empresa com histórico compromisso no setor infantil, assistimos ao estabelecimento de certa autonomia local nessa vertente do mercado editorial.

Fernando Bonassi, e Mentiras... e mentiras, da Ta-tiana Belinky. O primeiro já chama atenção pelo título nada dócil e conta a história de um menino sem limites, prejudicado por uma fa-mília desestruturada e uma sociedade ácida. Se na “literatura adulta”, Bonassi demonstra uma vocação para a polêmica, nos seus li-vros infantis não se despe desse traço e põe em xeque a pureza das crianças, tratando o assunto com criticidade, a partir de uma lin-guagem leve e lúdica. Porém essa desconstru-ção de mitos relacionados à formação moral dos menores também está presente na obra de escritores menos controversos. Aos 93 anos, Tatiana Belinky já escreveu mais 250 livros que circulam entre os mais jovens, incluin-do peças, crônicas e poemas. Em Mentiras... e mentiras, a escritora relativiza o comporta-mento que, desde cedo, seja no discurso dos pais ou na narrativa de Pinóquio, aprendemos ser incorreto. Segundo ela: “Há mentironas e mentirinhas, mentiras maldosas e mentiras bondosas, mentiras feias e mentiras bonitas, mentiras covardes e mentiras corajosas, men-tiras que valem a pena e mentiras que não compensam o esforço”. Curiosamente, assim como as publicações já citadas, essa também não oferece verdades absolutas para o seu pú-blico, nem um mundo maniqueísta de reso-luções fáceis.

Desmontar certos valores, no entanto, não é obrigatório, mas apenas uma forma de re-

A poetisa Adélia Prado rememora sua infância em Carmela vai à escola.Abaixo, ilustração de Bueno para O pequeno fascista

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UBE | Confraternização

Além de escritor e ilustrador com mais de 100 títulos publicados, ricardo Azevedo também é doutor em letras pela Universidade de São Paulo, pesquisador na área de cultura popular e professor de cursos de especialização em Arte-Educação e literatura. o currículo diversificado contribuiu para que autor consolidasse um olhar crítico sobre a formação do leitor literário e mantivesse uma desconfiança contínua em relação à chamada literatura infantil e juvenil.

Durante muito tempo, a literatura direcionada às crianças e adolescentes foi vista como uma produção de menor relevância. Esse é um preconceito superado?Creio que, muito lentamente, a chamada literatura infantojuvenil venha ganhando mais interesse por utilizar um tipo de linguagem análoga às formas literárias populares, assunto muito pouco estudado; por trazer as riquíssimas relações entre texto e imagem, outro tópico pouco investigado; e por possibilitar uma reflexão que reveja os estereótipos culturais a respeito de adultos e crianças. Na minha

visão, adultos e crianças são muito mais parecidos do que diferentes e isso precisa ser ressaltado sob o risco de transformarmos o mundo num ambiente esquizofrênico, baseado apenas em “mercados”. Nesse sentido, recomendo a leitura de Junius Maltby, um pequeno e precioso texto de John Steinbeck (em português, está no livro O potro vermelho. Em inglês, no livro The pastures of heaven). Traduzo livremente um pequeno trecho: “Robbie cresceu como uma pessoa séria. Seguia os homens (Junius, seu pai, e Jakob Stutz, um amigo de seu pai), escutava suas conversas e participava de suas discussões. Junius

nunca tratou seu filho feito criança, porque não sabia como crianças deviam ser tratadas...”.

Em sua opinião, nós também não sabemos? Eis o ponto: infelizmente, imaginamos “saber” o que “é” a criança, tanto que é comum encontrar em livros o recado: “para crianças de 10 anos”. Ignora-se solenemente as características pessoais, as experiências individuais, as diferenças culturais, as crenças e costumes de cada pessoa. Mais que isso, ignoram-se as reais potencialidades de crianças e jovens e, no lugar disso tudo, consideramos uma média estatística e burra. O mundo e a educação serão melhores quando não tivermos tanta certeza a respeito do que sejam as crianças, até porque, nesse dia, não teremos tanta certeza do que sejam os adultos. Sem dúvida, será um tempo mais humano, diversificado e criativo.

no entanto, relevar que esse público possui peculiaridades não seria voltar a entender a criança, apenas, como “um pequeno adulto”? Nada disso. Primeiro, porque essas

ideias de Phillipe Ariès e outros precisam ser matizadas. Basta ler um texto escrito na Idade Média, ou em períodos anteriores, para perceber que, obviamente, sempre existiram crianças e que elas sempre foram amadas, cuidadas e protegidas. Por outro lado, o que seria esse tal “adulto”? Um bando de técnicos egocêntricos e despolitizados que ignora sua própria cultura e só pensa em ganhar dinheiro para consumir mais e mais? Se isso é o adulto, estamos mal. Como disse, vejo muito mais pontos em comum entre as faixas de idade do que diferenças. As diferenças certamente existem, mas são conjunturais, enquanto as semelhanças são de caráter estrutural. Seria ótimo, se crianças e jovens percebessem que seu pai e seu avô também são aprendizes diante das questões impostas pela vida concreta e não estereotipada. Seria ótimo se crianças e jovens, desde sempre, fossem levados a perceber que tomarão nossos lugares, serão os protagonistas na construção do futuro e que, para isso, precisam se preparar, ser politizados, conhecer a cultura humana.

Por que é tão difícil estabelecer uma produção crítica voltada à literatura infantojuvenil no país? Creio que, no Brasil, essa reflexão tem sido construída no âmbito das universidades: basta citar os nomes de Teresa Lajolo, Regina Zilbermann, Vera Aguiar, João Ceccantini, Renata Junqueira, Juliana Loyola, Zaira Turchi, Flavia Ramos, Maria Zélia Versiani, Nair Gurgel e muitos outros pesquisadores trabalhando e formando novos pesquisadores em vários pontos do país. O problema é que seus estudos são ignorados pela chamada mídia. Mas não sinto que a mídia discuta seriamente a chamada literatura adulta, tirando aquelas obras e autores nos quais algumas editoras estão interessadas em promover num dado momento. Trata-se, enfim, de um cenário em que a palavra cultura cabe muito pouco.

direcionar o olhar das crianças, de sobrepor lentes de entendimento. Manter-se no simples e no tradicio-nal também pode ser poético, basta que a forma literária esteja a favor da história, que a palavra flutue nas páginas. Esse é o efeito alcançado por Adélia Prado em Carmela vai à es-cola, em que velhas mensagens sobre o valor dessa instituição e da família estão colocadas com a acuidade de uma grande poetisa, que rememora a própria meninice passeando pela linguagem artesanal elaborada nessa fase da vida. A última frase do livri-nho é de grande precisão literária, pois Carmela nos diz que “Contada, a vida de qualquer um fica bonita”, obrigando-nos a lembrar que a boa narrativa é menos o que de fato é dito (ou vivido) e mais o “como é dito”, a contação, o sentido artístico.

A memória pessoal também foi matéria-prima da última obra pu-blicada em vida por Bartolomeu Campos de Queirós. O escritor mi-neiro, que faleceu em janeiro des-te ano, relembra a própria infância em Vermelho amargo, livro confessio-nal que muitos dirão não se tratar de um título infantojuvenil. Ora, então o profundo e o existencial é privilégio do universo adulto? Para Queirós, que se dedicou a estudos sobre aprendizagem e à militância da educação pela arte, as interro-gações feitas sobre a condição hu-mana, quando ainda somos jovens, não são tolas ou fáceis. Na verdade, passamos a vida inteira tentando responder as mesmas perguntas que germinam lá no começo.

Assim como Adélia, ele ainda faz do escrito literário um espaço de ode à própria literatura. Enquanto a sua conterrânea recorda com candura as leituras decisivas datadas da época narrada, como As reinações de Narizinho, de Lobato, e Coração, de Edmundo D’Amicis, ele revela a importância da arte literária para suportar fardos da juventude: “Eu suspeitava de que o embaraço das letras amarrava se-gredos que só o coração decifra. Mas uma certeza me vigiava: ler era meu único sonho viável”.

“Não se muda uma sociedade com atos isolados”

[entrevista] rICArDO AzEVEDO

divulgação

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Nunca ouvi falar de um grande escritor que não tenha sido um grande leitor em seus tempos de criança. Que não tenha passado horas de encantamento, isolado do mundo, um livro à mão, alheio aos jogos dos amiguinhos, ao movimento da casa, mergulhado em um reino de fantasias, contos de fadas, aventuras de heróis de ficção científica. Ou simplesmente acompanhando acontecimentos corriqueiros, mas transfigurados pela imaginação de um autor, como o fizeram a senhora Leandro Dupré, com as aventuras do cachorrinho Samba ou José Mauro de Vasconcelos com seu Pé de laranja-lima. Carlos Drummond de Andrade se deleitava com Robinson Crusoé. Clarice Lispector, conta, em Felicidade clandestina, como invejava a menina sardenta e gorda que tinha um pai livreiro. Lucila Nogueira descreve o encontro com Pele de Asno em dias de chuva, num sótão da Rua do Lima. E todos nós tivemos nosso livro preferido, que nos fizeram sonhar, incentivaram nosso exercício da fantasia e ajudaram a ler o mundo.

Os brasileiros leem pouco, dois livros e meio por ano, em média, é o que revela pesquisa do Ministério. Mas alguma coisa está acontecendo que irá mudar, embora em prazo não tão curto, o panorama da leitura nacional: é o esforço que estão fazendo órgãos governamentais ou as escolas, particulares ou da rede pública, na formação dos pequenos leitores.

Nunca na história deste país, como diria o outro, se publicou tanto livro para crianças. Nunca tanto se fez para a formação de um público infantil ou juvenil. Nunca se viu o surgimento de tantos títulos e de autores, estes nem sempre vocacionados para tal, diga-se de passagem, pois muita gente está aproveitando a ocasião para se lançar no mercado e produzir textos que o professor indica, por força de circunstâncias que todos conhecemos, por pressão de editores, e interesses econômicos diversos. A Câmara Brasileira do Livro, o Movimento por um Brasil Literário, fundado

Luzilá Gonçalves Ferreira

Crianças, literatura, escola e prazer

É escritora e pesquisadora com mais de 30 livros publicados e professora do Depto de Letras da UFPE.

Escrever para crianças é muito mais difícil do que se imagina. foi o que se percebeu em simpósio organizado por uma dessas empresas, que reuniu especialistas em literatura infantil, como marina Colasanti, Ana maria machado, Laura Sandroni, marisa Lajolo, Ana Dourado e Bartolomeu Campos de Queirós

por Bartolomeu Campos de Queirós e Frei Beto, a Biblioteca Nacional, a Federação Nacional do Livro Infantil e Juvenil, o próprio Ministério, estão engajados em belas campanhas que buscam, com recursos do governo ou aliados a empresas privadas, como a C&A ou a Gerdau, para só citar dois nomes, atingir o maior número passível de pequenos leitores.

Entretanto, escrever para crianças é muito mais difícil do que se imagina. Foi o que se percebeu em simpósio organizado por uma dessas empresas, que reuniu especialistas em literatura infantil, como Marina Colasanti, Ana Maria Machado, Laura Sandroni, Marisa Lajolo, Ana Dourado e Bartolomeu Campos de Queirós. Este último, lembra a impossibilidade de se viver sem as palavras e como a palavra tem o poder de alterar o real. E acrescenta: “Meu trabalho enquanto professor passou a ser dar asas às fantasias das crianças”. Para ele, o desenvolvimento da sensibilidade deve ser um objeto de aprendizagem tanto quanto as disciplinas comuns.

A Cepe, Companhia Editora de Pernambuco, criou uma linha editorial dedicada ao público infantojuvenil, com textos escolhidos por um grupo de especialistas, e através de um concurso para inéditos no nível internacional. Temos, aqui, livros para os pequeninos, como Bia Baobá. Bia é uma menina meio distraída, que presta atenção em muitas coisas ao mesmo tempo, esquece de tirar o chapéu quando toma banho e não gosta de ir à escola em dias de chuva. Temos histórias para adolescentes, como a do menino de rua que, após muitos revezes, termina por encontrar seu lugar na sociedade. Entre essas duas linhas de faixa etária, estão livros intermediários, mas que podem até interessar adultos, como a nossa Cabra sonhadora, que usa batom e perfume nos chifres, ou como o belo Roda Moinho, poemas.

Tudo isso nos leva a colaborar na construção da subjetividade do pequeno leitor, e neles

a capacidade de inventar seu próprio destino. E nesse caminho, pais e, sobretudo, a escola têm seu lugar reservado, como escreve Bartolomeu Campo de Queirós no final de seu artigo, no livro Nos caminhos da literatura, publicado pela FNLIJ:

“Mas não é fácil para a escola, usar com plenitude a literatura. A escola faz da literatura um instrumento pedagógico, ela sempre quer que a criança leia para saber, enquanto a literatura deve ser lida pelo prazer de ler. E, sempre que há sofrimento, na literatura, ela surge vestida de beleza. Por ser assim, corre-se o risco de a escola empobrecer a arte: querer objetivar aquilo que só dialoga com a subjetividade”.

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Em todo o mundo existem locais que independente da vontade do homem tornam-se ícones culturais, sejam quais forem as formas de arte em que são apresentados: fotográficas, cinematográficas, pictóricas, literárias, musicais etc. Podemos exemplificar citando a Torre Eiffel em Paris; a Torre de Londres, a ponte Golden Gate em São Francisco; a cidade perdida de Machu Picchu, no Peru, o Coliseu em Roma; o Grand Bazaar em Istambul; a casa em que morou Pablo Neruda em Viña Del Mar, no Chile, e uma infinidade de outros lugares.

No Brasil, país de dimensões continentais com uma riquíssima história e uma cultura de meio milênio, além de uma pré-história que remota a milhares de anos, não poderia faltar áreas de interesses culturais que serviram de cenário ou inspiração também às mais diversas modalidades de arte. Citarei algumas: a esquina das Avenidas Ypiranga e São João em São Paulo, tema da música Sampa de Caetano Veloso; o Bar Vesúvio em Ilhéus, citado no livro Gabriela cravo e canela, de Jorge Amado; o Bairro de Copacabana cenário de As noivas de Copacabana, uma minissérie televisiva escrita por Dias Gomes e produzida pela Rede Globo; Os pampas do Rio Grande do Sul na trilogia O tempo e o vento de Érico Veríssimo, para citar só essas.

Pernambuco, Estado de uma efevescência literária quase cinco vezes centenária, está prenhe de áreas, sítios, locais, logradouros e instituições que nesses quinhentos anos de história serviram de cenário, tema ou simples paisagem nos meandros das obras literárias dos escritores pernambucanos.

A mais antiga citação de um logradouro que constitui o número um na história de Pernambuco e do Brasil está na mais antiga obra literária brasileira a Prosopopeia de Bento Teixeira, publicada em 1601, quando no Canto XVII diz – “...A natureza, mãe bem atentada,/ um porto tão quieto

e tão seguro,/que pera as curvas Naus serve de muro.” Se refere ao porto do Recife.

No nosso estado, podemos relacionar dezenas de locais ou instituições contidos nos mais diversos tipos de obras literárias, poemas clássicos ou cordeis, ficção, crônicas etc. Listarei alguns: o Bar Savoy no poema Chopp de Carlos Pena Filho; a feira de Caruaru na música de Onildo Almeida, imortalizada na voz de Luiz Gonzaga em canção homônima, A feira de Caruaru; a Rua Nova no romance de Carneiro Vilela, A emparedada da Rua Nova.

Não só dentro de citações em obras existem ícones culturais em nosso Estado; logradouros, instituições, restaurantes, residências e outros tipos mais, existem em abundância e são verdadeiros patrimônios da cultura em Pernambuco.

A União Brasileira de Escritores - UBE, com a sensibilidade do seu presidente Alexandre Santos, considerando a necessidade de valorizar e destacar locais cuja história tenha contribuido para o progresso da cultura literária no nosso Estado, resolveu fazer de público o Reconhecimento dos Locais de Interesse Literário. Esse reconhecimento, de acordo com normas estatutárias, foi concretizado com a fixação de uma placa de outorga daquele local na qualidade de Patrimônio da Cultura Literária Pernambucana.

Em princípio três foram os agraciados: a sede da União Brasileira de Escritores-UBE, na rua Santana, nº 202, Bairro de Casa Forte, Recife, a Livraria Geração 65, na Casa da Cultura e por último o centenário Restaurante Leite, na Praça Joaquim Nabuco nº 147, Bairro de Santo Antônio, no Recife e que nesse ano de 2012 completa 130 anos de funcionamento, sendo o mais antigo restaurante do Brasil.

Melchíades Montenegro Filho

Patrimônio da culturaliterária pernambucana

É presidente da Academia de Letras e Artes do Nordeste.