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International Congress of Critical Applied Linguistics
Brasília, Brasil – 19-21 Outubro 2015
576
DIZERES EM IMAGENS: COMPREENDENDO A CULTURA SURDA E O
ENSINO DE SEGUNDA LÍNGUA
Eduardo BRASIL
Universidade de Brasília (UnB)
Orientadora: Profa. Dra. Janaína de Aquino Ferraz
RESUMO
O objetivo deste artigo é analisar os depoimentos de professores surdos de Libras com relação
ao que se define como cultura surda e como ela é importante tanto para o ensino de português
escrito como segunda língua para surdos quanto para o ensino de Libras para ouvintes. Os
relatos serão gravados em vídeo e as transcrições das entrevistas constituirão o corpus da
pesquisa. Para fins de registro em áudio das transcrições, o intermédio de um intérprete de
Libras poderá ser necessário para a tradução dos relatos dos surdos não oralizados. Desde a
aprovação da Lei de Libras (Lei 10.436/02, de 24 de abril de 2002), a língua de sinais é
reconhecida com seu devido status de língua natural do surdo, resultado de lutas políticas e,
portanto, ideológicas rumo à conquista de uma equidade social pelo exercício da cidadania, no
sentido de garantir a eles o direito de ser surdo. De acordo com Gladis Perlin, em seu artigo
intitulado “Identidades Surdas” (em SKLIAR, C. “A surdez: um olhar sobre as diferenças”),
ser surdo é pertencer a um mundo de experiência visual e não auditiva. Isso significa ter a
Língua de Sinais como língua natural, a qual promove a percepção visual do mundo e forja as
bases do universo cultural do indivíduo. Sob uma perspectiva de ensino de línguas com base
em uma construção visual de sentidos, que é o principal argumento de Perlim sobre a
formação de identidades surdas, terei como base a Teoria da Multimodalidade (Kress e van
Leeween) e as múltiplas identidades surdas definidas por Perlin: híbridas, de transição,
incompletas e flutuantes. A Análise de Discurso Crítica (ADC) assume um papel importante
na contribuição de categorias de análise para a amostra, uma vez que o texto, entidade viva da
concretização do discurso, opera em termos de relações sociais, formação de sistemas de
conhecimento, crenças e formação de identidades sociais.
Palavras-chave: Multimodalidade; Surdez; Cultura.
1) INTRODUÇÃO
A motivação deste estudo vem da tentativa de delinear hipóteses para o
pesquisador iniciante sobre o que é ou do que se constitui a cultura surda. A relevância
de investigações desta natureza se dá devido à complexidade da educação tanto de
surdos, que precisam aprender português como segunda língua, quanto para os
ouvintes, que precisam aprender Libras para se comunicarem com o surdo. Entendo
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este como sendo o ponto fulcral para qualquer discussão que envolva o ensino de
segunda língua justamente por crer na indissociabilidade entre língua e cultura,
especialmente quando se trata de línguas de modalidades distintas, sendo o português
uma língua audiolingual e a Libras uma língua vísuo-espacial. Tais princípios são
basilares para o fomento da real acessibilidade às práticas sociais, discursivas e de
letramento da minoria surda, que se vê compelida a aderir à cultura ouvinte
hegemônica, responsável por ditar a ordem do discurso vigente para o livre exercício
da cidadania, já que as leis brasileiras discorrem sobre a equidade de direitos entre
surdos e ouvintes e regulamentam a implementação de medidas legais de amparo ao
surdo.
Assim, defendo que discussões sobre cultura surda, ensino de português
escrito como segunda língua, letramento de surdos, lei de Libras ou quaisquer outras
questões que envolvam a formação do surdo como cidadão devem dar voz aos relatos
dos próprios surdos. Portanto, os professores surdos da Apada1 foram os meus grandes
colaboradores, pois são eles os modelos surdos que reforçam a valorização da língua
de sinais e, consequentemente, da cultura surda. A base teórica encontra nas obras de
Karin Strobel (2013) e Gládis Perlin (2015) as vozes de duas pesquisadoras surdas
sobre questões teóricas de natureza cultural e identitária. De acordo com Perlin, ser
surdo é pertencer a um mundo de experiência visual e não auditiva. Isso significa ter a
Língua de Sinais como língua natural, a qual promove a percepção visual do mundo e
forja as bases do universo cultural do indivíduo. Sob uma perspectiva de ensino de
línguas com base em uma construção visual de sentidos, que é o principal argumento
de Perlin sobre a formação de identidades surdas, terei como categorias de análise as
múltiplas identidades surdas definidas por ela (identidades surdas, híbridas, de
transição, incompletas e flutuantes), os artefatos culturais do povo surdo definidos por
Strobel (experiência visual, desenvolvimento linguístico, família, vida social e
política) e utilizarei a Teoria da Multimodalidade (Kress e van Leeween) para
justificar o que dizem ambas autoras sobre o ser visual, que constitui o indivíduo
1 A Apada (Associação de Pais e Amigos dos Deficientes Auditivos) é uma organização sem fins lucrativos,
cujos serviços prestados à comunidade surda vão de acompanhamento psicológico a cursos
profissionalizantes, letramento de surdos, cursos de Libras para surdos, para suas famílias e para a
comunidade em geral, cursos de interpretação e oficinas de pintura e desenho. Lá, iniciei meus estudos da
língua de sinais. Todos os professores são surdos, formados em Letras – Libras e alguns já estão se
preparando para ou já têm mestrado.
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surdo. A Análise de Discurso Crítica (ADC) assume um papel importante na
contribuição de categorias de análise para a amostra, uma vez que o texto, entidade
viva da concretização do discurso, opera em termos de relações sociais, de formação
de sistemas de conhecimento, crenças e também na construção de identidades sociais.
Quanto aos métodos de pesquisa e coleta de dados, o paradigma adotado é o
da pesquisa social qualitativa, já que não há experimentos nem análise de números e
sim a interpretação e reinterpretação dos dados. De acordo com Bauer, 2014 (p. 20-
21): “A pesquisa social apoia-se em dados sociais – dados sobre o mundo social –
que são o resultado, e são reconstruídos nos processos de comunicação. (...) Na
pesquisa social, estamos interessados na maneira como as pessoas espontaneamente
se expressam e falam sobre o que é importante para elas e como elas pensam sobre
suas ações e a dos outros”. Utilizei entrevistas individuais semi-estruturadas, com um
roteiro de nove questões, que me levariam a responder às seguintes perguntas de
pesquisa:
1) É possível encaixar os participantes nas categorias de identidades surdas propostas por
Perlin? A que estereótipos sobre o surdo os professores se referem em seu discurso?
2) Como o discurso dos professores define cultura surda? Quais artefatos culturais
propostos por Strobel são predominantes?
3) Como eles encaram as repercussões da Lei de Libras (Lei 10.436/02, de 24 de abril de
2002) e decretos que regulamentam essa lei no que tange o ensino da língua de sinais
como primeira e segunda língua e do português escrito como segunda língua para
surdos?
2) LITERATURA CASADA: PARES QUE SE COMPLETAM.
2.1. CULTURA SURDA E ADC
A cultura é um elemento indissociável de uma língua. Reitero essa afirmação
para defender que a língua de sinais é o primeiro marco cultural da comunidade surda,
com base no seguinte trecho, retirado de SACKS, 2010, p. 155: “O desenvolvimento de
funções psicológicas superiores, para Vygotsky, não é algo que ocorre ‘naturalmente’, de um
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modo automático – requer mediação, cultura, um instrumento cultural. E o mais importante
desses instrumentos culturais é a língua. Mas os instrumentos culturais e as línguas, explica
Vygotsky, foram desenvolvidos para a pessoa ‘normal’, a pessoa que tem intactos todos os
órgãos dos sentidos, todas as funções biológicas. O que, então, será melhor para o deficiente,
para a pessoa diferente?2 A chave para seu desenvolvimento será a compensação – o uso de
um instrumento cultural alternativo. Assim, Vygotsky chega à educação especial dos surdos: o
instrumento cultural alternativo, para eles, é a língua de sinais – uma língua que foi criada
para e por eles. A língua de sinais está voltada para as funções, as funções visuais, que ainda
se encontram intactas; constitui o modo mais direto de atingir as crianças surdas, o meio
mais simples de lhes permitir o desenvolvimento pleno, e o único que respeita sua diferença,
sua singularidade.”
No Brasil, a língua de sinais foi oficializada pela Lei Federal no. 10.436, de 24
de abril de 2002 e regulamentada pelo Decreto Federal no. 5.626, de 22 de dezembro
de 2005. A importância da Lei de Libras, primeiramente, se dá pela conquista
alcançada após anos de luta por uma equidade lingüística entre ouvintes e surdos,
fazendo com que ela se tornasse obrigatória nos cursos de formação de professores e
intérpretes de Libras e embasou propostas de ensino bilíngue, nas quais a língua de
sinais seria a língua de instrução e o português escrito seria ensinado como segunda
língua. Entretanto, nossa sociedade ainda precisa de mais esclarecimentos sobre a
comunidade surda, além de mais acesso a ela. Apesar das conquistas trazidas pela lei,
há uma real escassez de profissionais especializados que entendam suas necessidades e
sua língua. Isto posto, defendo que a eficácia tanto do ensino de português escrito
como segunda língua para surdos quanto do ensino de Libras para ouvintes depende
do quanto os docentes ensinam aos aprendentes o que venha a ser cultura surda, como
as identidades surdas dão suporte aos vários artefatos culturais que constituem o ser
surdo (em um patamar de discrepância e não de inferioridade em relação à cultura
ouvinte), de forma a viabilizar um amplo intercâmbio lingüístico e cultural entre
surdos e não surdos – o que pode ampliar o acesso à cidadania a todos – não somente
para cumprir o que postula uma lei federal.
Por conseguinte, recorro a Strobel (2013), pesquisadora surda, autora da
importante obra “As imagens do outro sobre a cultura surda”, na qual este estudo se
baseia. Segundo a autora, “cada teoria sobre cultura é o resultado de uma história
2 Trecho sublinhado porque, no original, a fonte está em itálico.
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particular que inclui os escritos de vários pesquisadores que tinham suas próprias
ideias em relação às culturas diferenciadas. Desde o final do século XIX, os
pesquisadores vêm elaborando inúmeros conceitos sobre cultura e, apesar de a cifra
ter ultrapassado mais de 200 definições, ainda não chegaram a um acordo sobre o
significado exato da terminologia.”3 Ela faz um apanhado de várias definições de
cultura, levando em consideração as transformações dos conceitos ao longo da
história, mostrando as mudanças nas relações da sociedade com a natureza e com os
seus membros entre si:
Tabela 1: conceitos de cultura apresentados por Strobel (2013)
Conceito de cultura Autor e referências
bibliográficas
Visão de Strobel
A cultura é a estrutura daquilo
que é chamado de “hege-
monia”, que molda os sujeitos
humanos às necessida-
des de um tipo de sociedade
politicamente organiza-
da, remodelando-os com base
nos atuantes dóceis, mo-
derados, de elevados princípios,
pacíficos, conciliado-
res.
Frederick Schiller apud
EAGLETON, Terry.
“A ideia de cultura”.
Tradução de Sandra
Castello Branco. São Paulo:
Editora
UNESP, 2005.
A ideia unitária de cultura está relacionada na
sociedade com as ideologias
hegemônicas, de padronização, de
normalização, nas quais todos devem se
identificar com esta cultura única em um
determinado espaço. Isso eviden-
cia que esta sociedade gerou o desejo da
necessidade de sermos perfeitos
para pertencermos a ela, senão estaríamos
excluídos. Alteridade e diferença
são vistas como manchas para a sociedade.
A cultura não possui forma
unitária. A pluralização
do termo cultura se faz
necessária, já que há diferentes
culturas dentro de diferentes
nações e períodos, bem
como diferentes culturas sociais
e econômicas dentro
da própria nação.
Joahann Herder apud
EAGLETON, Terry.
“A ideia de cultura”.
Tradução de Sandra
Castello Branco. São Paulo:
Editora
UNESP, 2005.
Neste pensamento pós-moderno, a
pluralidade encontra-se cruzada com a
autoidentidade, em vez de se dissolver em
identidades distintas. Considerar
a questão cultural no plural admite a
multiplicidade de manifestações de
grupos culturais das mais diversas naturezas,
tornando o conceito de cultu-
ra mais amplo.
A cultura que temos determina
uma forma de ver, de
interpelar, de ser, de explicar e
de compreender o
mundo.
HALL, Stuart. “A
centralidade da cultura:
notas
sobre as revoluções
culturais de nosso tempo”.
Educação e Realidade:
Cultura, Mídia e Educa-
ção, v. 22, n. 3, jul.-dez.
1997.
A cultura é uma ferramenta de
transformação, de percepção, da forma de
ver diferente, não mais de homogeneidade,
mas de vida social constitutiva
dos jeitos de ser, de fazer, de compreender e
de explicar. Essa nova marca
cultural transporta para uma sensação a
cultura grupal, ou seja, como ela di-
ferencia os grupos, no que faz emergir a
“diferença”.
Em latim, cultura significa o EAGLETON, Terry. “A Isso mostra que o cultivo da linguagem e da
3 Strobel, 2013: página 20.
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cuidado dispensado à ter-
ra cultivada. O conceito de
cultura é proveniente do de
natureza, sendo que um dos
significados originais é
“lavoura” ou “cultivo agrícola”.
ideia de cultura”. Tra-
dução de Sandra Castello
Branco. São Paulo:
Editora UNESP, 2005.
identidade são, então, os ele-
mentos fundamentais de uma cultura. Na
cultura, a palavra natureza signifi-
ca tanto o que está a nossa volta como o que
está dentro de nós. Sem a na-
tureza (sol, chuva, fertilizantes) uma semente
não cresceria.
A cultura permite ao homem não
somente adaptar-se a
seu meio, mas também adaptar
esse meio ao próprio
homem, a suas necessidades e
seus projetos. Em suma,
a cultura torna possível a
transformação da natureza.
CUCHE, Denys. “A noção
de cultura nas ciên-
cias sociais”. Bauru:
EDUSC, 2002.
Um ser humano, em contato com o seu
espaço cultural, reage, cresce e de-
senvolve sua identidade, o que significa que
os cultivos que fazemos são co-
letivos e não isolados. A cultura não vem
pronta: daí a razão pela qual ela
sempre se modifica e se atualiza, decorrente
de desenvolvimento cultural
experimentado pelas gerações passadas.
Pela comparação das definições e os comentários de Strobel, é notável o
enlace entre a cultura e a Análise de Discurso Crítica, doravante ADC. Tendo
Fairclough (2001, p. 90-91) como um de seus mais notáveis autores, em sua teoria
social do discurso, o uso da linguagem é visto como uma prática social, não como uma
atividade puramente individual ou reflexo de variáveis situacionais. Assim, o uso da
linguagem é fortemente construído em um alicerce de forças dialéticas, pois ao mesmo
tempo em que o discurso molda a sociedade, ele é também moldado por ela. Numa
concepção tridimensional do discurso, segundo Fairclough, é ele o responsável pela
construção de identidades sociais, além de contribuir para a formação das relações
sociais entre os sujeitos e dos sistemas de conhecimento e crenças. Portanto, a
justificativa da ADC como uma das bases teóricas para o entendimento de cultura
surda se dá pela inter e multidisciplinaridade das questões culturais, pela relação entre
língua, cultura e sociedade e pelas relações de poder, dominação e desigualdade que
marcam a comunidade surda, que também abarca o discurso de resistência à
dominação ouvinte.
Para encerrar este primeiro bloco teórico e, ao mesmo tempo, estabelecer um
gancho com o próximo, faço uso de duas últimas citações que, a meu ver, são
extremamente elucidativas para as questões que levanto. A primeira é Ferraz (2015, p.
380): “o conceito de identidade, de acordo com Giddens, é construído
linguisticamente, sendo esse o protótipo das relações sociais. Em outras palavras, a
primeira identidade de um falante, para ele (2002, p. 39), é a língua, ou seja, essa é a
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primeira matriz de identidade social do sujeito.” Consequentemente, faz-se urgente
delimitar as dimensões da cultura surda que, segundo Strobel (2013, p. 29): “é o jeito
de o sujeito surdo entender o mundo e modificá-lo a fim de torná-lo acessível e
habitável, ajustando-o com as suas percepções visuais, que contribuem para a
definição das identidades surdas, e das ‘almas’ das comunidades surdas. Isto significa
que abrange a língua de sinais, as ideias, as crenças, os costumes e os hábitos do
povo surdo.”
2.2. IDENTIDADE VISUAL E TEORIA DA MULTIMODALIDADE
Tendo em vista as considerações sobre cultura, de forma geral, bem como
sobre a cultura surda, é importante frisar que é errônea a noção de que todos os surdos
compartilham da mesma cultura. Assim como há diferentes formas de se entender o
mundo de um país para outro, de uma cidade para outra, de um indivíduo para outro, o
mesmo ocorre com as diversas culturas e povos surdos. Contudo, mesmo concebendo
uma ideia plural de cultura, entendo que há um denominador comum entre todas as
culturas surdas: a experiência visual. “Quando pronunciamos ‘povo surdo’, estamos
nos referindo aos sujeitos surdos que não habitam no mesmo local, mas que estão
ligados por uma origem, por um código ético de formação visual4, independentemente
do grau de evolução lingüística, tais como a língua de sinais, a cultura surda e
quaisquer outros laços.” (Strobel, p. 38). Entendo esse referido código ético de
formação visual como a substituição (total ou parcial, de acordo com o grau de surdez)
dos sentidos ativados pela captação das ondas sonoras – por meio dos ouvidos – por
todas as cores, formas, gestos, movimentos, dimensões, expressões faciais e demais
ações, objetos ou seres captados na presença da luz, pelos olhos.
Ben Barhan, escritor e professor surdo norte-americano, propõe que os surdos
sejam chamados de pessoas visuais (Strobel, p. 45): “Usando essa palavra, eu me
coloca na posição das coisas que eu posso fazer ao invés das que não posso fazer.
Identificando-me como uma pessoa visual, isso explicaria tudo ao meu redor: os
aparelho TDDs, os decodificadores, as campainhas luminosas, a leitura labial e a
emergência de uma língua visual, a língua de sinais americana”. Interessante é o
4 Grifo meu
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reforço positivo da constituição de sua identidade surda, que utiliza a visão como
forma de comunicação com o ambiente, de modo a codificar o mundo a sua volta por
meio de significados visualmente transmitidos, ao invés de aceitar o discurso da
deficiência, da falta de audição, da não-normalidade e menor-valia, que comprometem
e dificultam a vida dos surdos, já que não ouvem apitos, megafones, buzinas, ligações
telefônicas, filmes nacionais sem legenda, anúncios de aeroportos, rádio, programas de
TV, vêem-se isolados em situações corriqueiras como passeios com guias turísticos,
reuniões de trabalho, palestras, peças com fantoches, etc. Nada disso faz parte da
cultura surda.
É nesse sentido que a Teoria da Multimodalidade desempenha um papel
fundamental na construção de sentidos já que, para ela, a palavra oral ou escrita não é
o único modo de composição de um significado. Como afirmam Vieira e Silvestre,
2015 (p. 95-96): “Hoje, a linguagem verbal, nos seus modos oral e escrito, continua a ter
um papel central na vida das pessoas e o sistema educativo não é exceção a esta realidade.
No âmbito da comunicação, como resultado da evolução das novas tecnologias, têm sido
integrados outros modos de comunicar, para além da linguagem verbal. Embora a linguagem
verbal, na sua forma impressa, se tenha tornado uma forma privilegiada de veicular o
conhecimento através dos tempos, nas últimas décadas, juntamente com o modo visual, este
modo tem se convertido em co-modo. A palavra impressa no jornal, na revista, articula-se
com a imagem ou com a fotografia; o livro escolar ou acadêmico já não é apenas um texto
constituído pela palavra escrita, mas um texto multimodal, em que a palavra escrita interage
com gráficos, quadros, tabelas, desenhos, imagens, na construção de significados. Os
produtores de texto fazem escolhas deliberadas relativamente ao uso dos modos de
representação e a respectiva articulação de forma a construir os seus textos multimodais. No
entanto, embora se verifique uma crescente coexistência dos diversos modos semióticos, os
modos visuais continuam a ser ignorados como elementos constitutivos de significado. A
leitura parcial de um texto multimodal apenas na sua vertente de linguagem verbal escrita
revela-se insuficiente numa sociedade que se caracteriza pela emergência do modo visual.”
Faço uso das palavras das autoras acima para justificar os dizeres em
imagens, dos quais o título deste trabalho faz luz. Na modernidade atual, a imagem
tem ganhado mais espaço na vida de todos nós como uma dimensão material, icônica e
socialmente motivada na atividade de construir significados. Abriram-se novos
caminhos no âmbito de trocas de experiências e de conhecimento. Dos widgets de
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celulares (ícones, botões e menus, localizados na área de trabalho) aos emojis
(ideogramas usados em mensagens, representando expressões faciais, configurações
de mão, animais, ícones etc), dos anúncios de propaganda impressos aos comerciais de
TV, do jornal impresso ao livro didático, do Facebook ao Instagram, palavras e
imagens compõem um mosaico conceitual ora pela mescla entre si ora em substituição
desta por aquela. Não objetivo, entretanto, ressaltar a dualidade entre textos verbais e
não verbais, mas sim valorizar o visual como forma plena de comunicação, o que
constitui os dizeres surdos, compostos por imagens produzidas pelo configuração e
movimento das mãos, além de expressões faciais.
3) CATEGORIAS DE ANÁLISE: IDENTIDADES SURDAS E ARTEFATOS
CULTURAIS
3.1. IDENTIDADES SURDAS
Perlin (2015) estuda as identidades surdas através dos depoimentos de outros
surdos. Ela enfatiza o não universalismo das questões identitárias (p. 52): “Entendo o
conceito de identidades plurais, múltiplas; que se transformam, que não são fixas,
imóveis, estáticas ou permanentes, que podem até mesmo ser contraditórias, que não
são algo pronto”. Ela faz uma correlação entre identidades surdas e estereótipos, pois
eles apontam impedimentos, que os indivíduos carregam consigo, para a aceitação de
serem surdos, numa clara demonstração de incompatibilidade entre a representação da
identidade surda com a ouvinte. Assim, ela elabora um divisão de cinco categorias de
identidades surdas, que são:
3.1.1. Identidades surdas: estão presentes no grupo pelo qual entram os surdos
que fazem uso da experiência visual plena. O orgulho e a luta pelo direito de ser surdo
é uma característica marcante desta identidade.
3.1.2. Identidades surdas híbridas: são os surdos que nasceram ouvintes e,
com o tempo, tornaram-se surdos. Conhecem a estrutura do português falado e usam-
no para codificar suas percepções visuais para logo em seguida expressarem-se em
língua de sinais.
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3.1.3. Identidades surdas de transição: surdos que foram mantidos reféns da
experiência ouvinte por longos anos, a maioria por serem filhos de pais ouvintes.
Posteriormente, juntam-se à comunidade surda por conta própria, quando já
conseguem decidir por si mesmos.
3.1.4. Identidade surda incompleta: surdos que são mantidos no cativeiro da
hegemonia ouvinte. Neste caso, a família os privou do total acesso à comunidade
surda e toda a sua educação e saber são fincadas em identidades ouvintes. A identidade
surda é tida como incompleta porque ela foi evitada ou ridicularizada (ou marcada por
estereótipos).
3.1.5. Identidades surdas flutuantes: surdos que rejeitam a identidade surda.
Querem ser oralizados, mas não se inserem na comunidade ouvinte (por falta de
comunicação), tampouco na comunidade surda (por falta de sinais), por isso suas
identidades são tidas como flutuantes. Alguns vivem nesses conformes porque se
acomodaram a esta situação de identidade fragmentada, vítimas da hegemonia
ouvintista.
3.2. Artefatos Culturais
Dada a amplitude dos conceitos de cultura, utilizo os artefatos culturais
postulados por Strobel (2013) como elementos catalizadores que apontam traços
culturais relevantes para o entendimento de cultura surda. Segundo a autora (p. 43):
“O conceito “artefatos”não se refere apenas a materialismos culturais, mas àquilo
que na cultura constitui produções do sujeito que tem seu próprio modo de ser, ver,
entender e transformar o mundo. Traço comum em todos os sujeito humanos seria o
fato de que somos todos artefatos culturais e, assim, os artefatos ilustram uma
cultura.” Em suma, eles são:
3.2.1. Artefato cultural: experiência visual
É a total interação visual e não auditiva com o mundo. Compreende a língua
de sinais, a necessidade do intérprete, de tecnologia de leitura, as expressões faciais e
corporais. A autora conta estórias pessoais e de outros surdos, as quais ilustram a
importância das experiências visuais, variando de relatos curiosos como o pânico que
sentiu ao ver uma lagartixa pela primeira, achando que se tratava de um filhote de
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jacaré, a relatos preocupantes que colocam em risco a vida de muitos, como quando
ficou presa no banheiro do ônibus ao fazer uma viagem interestadual à noite (p. 51):
“Como avisar ao motorista que estou presa? E se me chamarem? Como poderei
ouvir? Como posso ‘ver’ se estão me ouvindo e se estão me chamando? E como vou
explicar a eles se não posso ‘ver’ a resposta deles?” Tocantes são as narrativas de
crianças, que não entendem o porquê de se sentirem isoladas das conversas e demais
práticas sociais, num mundo onde até os animais são ouvintes.
Há bastante ênfase à necessidade de se promover um maior contato entre
crianças e adultos surdos a fim de se levar modelos culturais maduros a esses
pequenos indivíduos em plena formação cultural, além de denunciar os perigos da falta
de acessibilidade em aeroportos e bancos, que misturam sinais visuais e auditivos para
dar orientações importantes aos seus usuários e frequentadores.
3.2.2. Artefato cultural: desenvolvimento linguístico
Aqui, é confirmada a aquisição da língua de sinais pelo indivíduo surdo como
sendo sua língua natural, ficando claro que as línguas orais devem ser ensinadas como
segunda língua, pois os surdos nunca conseguirão adquiri-las de forma natural e
espontânea, mesmo aqueles que residem na zona rural e se comunicam por meio de
“sinais emergentes” ou “sinais caseiros”. Relatos históricos sobre as línguas vísuo-
espaciais, assim como as pesquisas em escrita de sinais (Sign Writing) dão vigor ao
status da Libras.
Mais uma vez, relatos pessoais tocam até os leitores menos sensíveis. Strobel
revela que tinha um desconforto com as aulas de religião da escola e, ao ser
questionada por sua mãe sobre o motivo para tanto, ela responde (através de gestos e
vocabulários isolados) que não saberia como Deus a entenderia quando morresse
porque não sabia falar. Fica claro o clamor por dar um senso de dignidade a qualquer
ser humano, que anseia por se comunicar com outros seres humanos por meio da
língua.
Quanto mais cedo se faz a estimulação dos sinais em uma criança surda, mais
ela crescerá com uma autoestima e identidade sadias. Os efeitos de se privar o surdo
do contato com seus semelhantes, segundo a autora, são devastadores, pois ele irá atrás
de uma identidade ouvinte que nunca alcançará. A formação de guetos torna-se natural
quando surdos forasteiros desbravam uma nova cidade e, uma vez achados os seus
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pares, agregam-se em seus pontos de encontro. O tom de protesto denuncia o
extermínio de muitas línguas de sinais e o preconceito de que elas não são línguas
plenas e sim sistemas rudimentares de gestos para comunicação.
3.3.3. Artefato cultural: família
Strobel enfatiza que a família é o primeiro núcleo da sociedade que enfatiza o
discurso da medicalização da surdez porque, ao perceberem os mínimos indícios de
que seus bebês são surdos, os pais os levam ao médico, que indicará ou o implante
coclear ou a proibição dos sinais sob a ameaça de que assim eles sempre serão
deficientes. Os questionamentos comuns são: será que meu filho surdo um dia ouvirá?
Será que um dia ele falará igual a uma criança ouvinte? Será que um dia ele será mais
bem aceito pela sociedade? Será que um dia o meu filho terá uma vida normal? A
crítica que faz a tantos “serás” é que nunca há o questionamento: será que a inserção
em uma comunidade surda ajudará na formação do meu filho como indivíduo pleno?
Ao se desenvolver, a criança surda cresce carente de diálogo ao redor da mesa
durante as refeições, celebrações de datas comemorativas, durante as novelas, etc.
Seleciono meticulosamente os trechos que mais me chamaram atenção (p. 61, 62):
“Em famílias ouvintes, as crianças surdas observam as conversas e discussões que
não são direcionadas a elas”. “É o que se chama de isolamento mental. (...) Sente-se
ansioso por um contato. Sufoca por dentro, mas não pode transmitir esse sentimento
horrível a ninguém. (...) Não lhe é concedida sequer a ilusão de participação. (...) Há
a solidão e a resistência, a sede de se comunicar e, algumas vezes, o ódio porque é
sempre preciso pedir, puxar alguém pela manga ou pelo vestido para saber um pouco,
um pouquinho daquilo que se passa a sua volta. Caso contrário, a vida é um filme
mudo, sem legendas”.
Exceções são os casos em que os membros da família aprendem língua de
sinais e servem de intérpretes para seus parentes surdos, fazendo a ponto entre eles e
os ouvintes. Nas famílias em que os membros surdos são maioria, a cultura surda é
transmitida às gerações futuras com muita naturalidade, a ponto de levar as crianças
surdas a acharem que os ouvintes são estranhos ou diferentes: “Um papagaio fazia
parte da família. Eu ficava intrigada e imaginando por que todos falavam mais com o
papagaio do que comigo. Neste período, começaram as dúvidas e mais dúvidas, sem
imaginar que eu podia ser diferente. Não lembro se sabia os nomes das pessoas.
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Demorei muito para entender que eu, as pessoas, as coisas tinham nomes”.
(VILHALVA, 2001, p. 12 apud Strobel, 2013, p. 64).
3.3.4. Artefato cultural: literatura surda
Engloba todos os relatos e produções culturais que envolvam as experiências
de indivíduos surdos ao longo dos anos, cujas narrativas tenham a língua de sinais e
questões de cultura e identidade surdas. Contemplam também questões de militantes
surdos, vitórias a opressões, vidas de grandes líderes, bem como a literatura que
circula no meio acadêmico. São esses os registros que ficaram para que as próximas
gerações de surdos possam ter acesso ao legado cultural de seus antepassados.
Os gêneros textuais comuns são poesia, piadas, romances, fábulas, lendas e
outras manifestações culturais. Os registros em língua de sinais são gravados em
vídeo. Strobel ressalta, ainda, que a história do povo surdo data de tempos imemoriais
e é marcada por complexidades. Os meios de comunicação vão além das línguas de
sinais: as expressões corporais, faciais, desenhos e imagens visuais também colorem o
mosaico da literatura surda.
3.3.5. Artefato cultural: vida social e esportiva
O que mais marca este artefato é a aglutinação da comunidade surda por meio
das associações de surdos, da prática de esportes, da vida escolar e a frequência a
eventos sociais que envolvem a promoção da cultura surda. Estão incluídos nesta
categoria o batismo em língua de sinais, o bater palmas sem produzir sons (com as
mãos levantadas girando no ar), as adaptações visuais com bandeiras coloridas em
partidas de futebol (substituindo os apitos), etc.
3.3.6. Artefato cultural: política
A articulação política dos surdos surgiu das associações de surdos no século
XVIII, dado o baixo padrão de vida na época e a necessidade de se ajudarem uns aos
outros. Strobel cita a FENEIS (Federação Nacional de Educação e Integração dos
Surdos), a Federação Mundial dos Surdos (WDF) e a Confederação Brasileira dos
Desportos dos Surdos (CBDS).
A pedagogia surda e o empoderamento do professor surdo são enfatizados no
sentido de salientar a necessidade de adaptação curricular para o surdo aprendiz e o
fortalecimento de modelos bem sucedidos para os jovens surdos. A Lei 10.436, de 24
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de abril de 2002 é um marco da luta do povo surdo para o reconhecimento em nível
nacional da Libras como a língua natural dos surdos.
3.3.7. Artefato cultural: materiais
Materiais englobam tudo aquilo que promove a acessibilidade visual do
surdo. Dos aparelhos telefônicos TDDs às campainhas luminosas, as legendas em
programas de televisão e os recursos de câmera do celular moderno.
4) ANÁLISE DOS VÍDEOS
As entrevistas foram conduzidas nas dependências da Apada, no Setor
Comercial Sul, em Brasília, DF, com a autorização prévia da coordenação pedagógica
desta instituição. Quatro professoras surdas se dispuseram a dar entrevistas. Com o
intuito de manter suas identidades em sigilo, seus nomes fictícios são Adriana, Irene,
Eva e Melissa. Os depoimentos foram gravados em vídeo nas datas de 29/6/2015,
02/7/2015 e 07/7/2015, sendo que Adriana e Irene foram entrevistadas no mesmo dia
(29/6), uma seguida da outra. Fato importante quanto às datas é que Eva e Melissa
também gravaram suas participações no mesmo dia (02/7), mas Melissa teve somente
um minuto e trinta segundos de seu primeiro depoimento registrado porque a bateria
da câmera havia descarregado e somente percebi o problema após a conclusão da
entrevista. Mesmo assim, ela gentilmente concordou em colaborar comigo num
segundo momento, sendo a única entrevistada no dia 07/7. Na conclusão do artigo,
discorrerei sobre a relevância que isso teve para a análise dos dados.
Encontrei dificuldades no agendamento das entrevistas com a coordenação da
Apada, de modo a explicar os objetivos do trabalho e conseguir as devidas
autorizações, depois com os intérpretes e, por fim, com os próprios professores. Esses
são dados importantes de pesquisa porque a incompatibilidade de agendas fez com que
os professores me escolhessem, não o contrário. De forma a ilustrar este ponto, relato
o primeiro dia de entrevistas. Eu havia perguntado para uma funcionária da Apada, no
dia anterior ao primeiro contato com uma das professoras, se o dia e horário da
primeira entrevista estavam confirmados. Nossa conversa se deu em língua de sinais e
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entendi que a professora Giselda5 me atenderia no dia seguinte, pela manhã, às 10h,
em seu horário de intervalo. Haveria intérpretes disponíveis, então eu poderia me
despreocupar. No dia seguinte, ao chegar na Apada, descubro que a professora teve
um problema pessoal e não foi trabalhar. Não havia nenhum intérprete disponível
também. Percebendo minha expressão de agonia, isolado na recepção (e desolado
também), a professora Irene, acreditando que eu era um aluno surdo deslocado, se
apresentou a mim em Libras e ofereceu sua ajuda. Com bastante dificuldade de me
expressar em Libras, pude esclarecer o que se passava e ela gentilmente se
disponibilizou para dar entrevista. Aceitei sem hesitar e pedi a um colaborador da
Apada, que não é intérprete, para fazer a tradução simultânea da entrevista. Nesse
meio tempo, a coordenação então sugeriu que eu entrevistasse a professora Adriana,
que é oralizada, então eu não precisaria de intérpretes, ou seja: eu passei de zero a duas
entrevistadas num picar de olhos.
A questão linguística se apresenta como um fator de peso. Das quatro
entrevistadas, somente Irene é surda não oralizada e a voz de seu discurso ficou por
conta de alguém que não é intérprete profissional. Suponho que muitas informações
acabaram se perdendo na tradução – o que, de início, foi muito frustrante. Contudo,
como estamos tratando de pesquisa qualitativa, a interpretação desse dado corrobora o
agravamento da barreira lingüística e comunicacional imposta pela surdez e,
consequentemente, pelo meu parco conhecimento de Libras, ao buscar dar voz ao
surdo nesta pesquisa. Esta é a prova de que, de fato, a ponte entre o universo surdo e o
universo ouvinte é o intercâmbio linguístico.
Outro dado interessante é que, mesmo sendo oralizadas, Adriana, Eva e
Melissa não compreenderam algumas das perguntas. De início, o meu reflexo natural
de ouvinte foi o de aumentar o volume da voz, mas percebi que não se tratava de
nenhuma falha ao captar a língua falada. Como a recorrência do não entendimento se
deu de maneira quase sistemática, procurei investigar as razões para tais
desentendimentos e encontrei a seguinte passagem do livro “Vendo Vozes”: “Fazer
perguntas a crianças [surdas] sobre o que acabaram de ler mostrou-me que muitas delas
podem apresentar notável deficiência linguística. Elas não possuem o recurso linguístico
proporcionado pelas formas interrogativas. Não é que não saibam a resposta para a
5 Nome fictício
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pergunta, e sim que não entendem a pergunta. [...] Indaguei certa vez a um menino: ‘Quem
mora na sua casa?’ (A pergunta foi traduzida para ele por seu professor na língua de sinais.)
O menino mostrava, pela expressão do rosto, que não estava entendendo. Notei então que o
professor modificou a questão, transformando-a numa série de sentenças declarativas: ‘Na
sua casa, você, sua mãe [...]’. Uma expressão de compreensão surgiu-lhe no rosto, e ele me
fez um desenho de sua casa com todos os membros da família, incluindo o cachorro. [...]
Notei vezes sem conta que os professores tendem hesitar em fazer perguntas a seus alunos, e
com freqüência expressam as indagações na forma de sentenças incompletas para que as
crianças surdas possam preencher lacunas.” (RAPIN, Isabelle. Apud SACKS, 2010, p. 55)
Infelizmente, a elucidação dessa problemática só chegou em minhas mãos
após o término da coleta dos dados. Como, em português, a entonação é a marca que
diferencia uma sentença afirmativa de uma interrogativa, é razoável aceitar que haja
certa dificuldade de compreender perguntas. Ainda assim, permanece intrigante o fato
de que a questão em que peço a definição de cultura surda trouxe muitas dúvidas e
hesitações para as entrevistadas, a despeito das paráfrases que utilizei para clarear a
pergunta. Inicialmente, cheguei a acreditar que não conseguiria responder à primeira
pergunta de pesquisa (Como os professores surdos definem cultura surda e qual é o
reflexo disso em sua identidade?). Todavia, reitero que analiso em todo o discurso das
professoras entrevistadas elementos que reforçam os conceitos de cultura surda,
marcados pelos artefatos culturais, de Karin Strobel, não somente a resposta isolada de
cada pergunta. São esses os elementos-chave que me ajudaram a desenhar conclusões
de como cada participante entende a cultura surda e, consequentemente, definem suas
identidades surdas.
4.1. Adriana
Adriana nasceu ouvinte e perdeu a audição à medida que chegou à fase
adulta. Surpreendi-me com sua eloquência, espontaneidade e conforto com a língua
oral. Ela começou a sinalizar quando fiz a primeira pergunta, mas logo prosseguiu com
a entrevista somente em português. Começou a estudar Libras com dezoito anos, num
curso para ouvintes e, na convivência com os surdos que trabalhavam com ela nos
correios, em Goiânia, foi se desenvolvendo. Viu que a carência por profissionais
qualificados para ensinar Libras é grande, então procurou uma formação específica.
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Seleciono alguns trechos de seu discurso que apontam quais sistemas de conhecimento
e crenças sobre cultura e identidade surdas ela utiliza:
Tabela 2: trechos transcritos da entrevista com a professora Adriana
Sobre as leis que protegem os direitos dos surdos
“(Houve) muuuuita mudança. Nossa! A lei deu um aparato legal pra contratações, pra formação geral. Foi por meio
da lei que foi possível se fazer respeitar,
se fazer prova adaptada, se contratar profissionais. Por mais que tem que ir no Ministério Público às vezes, mas é por
meio da lei que isso é possível. Pela lei
que... que é possível.. que hoje a universidade tem muito intérpretes, que as escolas também. Então é por meio da lei.
Se não existisse a lei que dissesse que a
língua (de sinais) é a segunda língua oficial, não tinha esse pessoal todo disponível pra... pra.. entrar na sociedade,
né, e pra amparar o surdo.”
Sobre a cultura surda Sobre a identidade surda
“A importância de ensinar Libras, qual é? Nós queremos
inclusão social e é por
meio da língua que ela vai acontecer. Então só uma
língua refinada, aprimorada,
uma língua estudada, né, que isso é possível. Então acho
que o ensino é o caminho.”
“Esse negócio de cultura é muito complexo, né, mas
enfim... O quê que é cultura
surda? É o jeito surdo de ser: a língua, é... a maneira
com que ele percebe o mun-
do, é... as adaptações em acessibilidade pra entender a
língua oral, pra aprender
português e pra se comunicar com o ouvinte.”
“Não é o professor ouvinte que manda na língua oral, na
língua escrita? A língua
não é dele? Então é ele quem vai ensinar para o surdo.”
“Eu vi uma palestra do Falk (renomado professor surdo)
e ele exemplificou isso de
um jeito muito bacana. Ele colocou lá uma frase no
quadro assim: ele estava pela
primeira vez numa associação de surdos e recebeu um
bilhetinho de uma paquera...”
“Na minha família tem outras pessoas com surdez. Se
nasce com audição normal
e com o decorrer dos anos, 5, 6, 7 anos, já começa a
perder a audição. O canal
do ouvido vai estreitando. Então a minha primeira
língua foi a língua oral, foi a
língua portuguesa escrita, a língua oral. Depois, com...
com 15 anos, quando eu
fiz a primeira audiometria, eu já tinha metade da
audição normal, metade da au-
dição de um ouvido. Aí já é indicado o uso da prótese,
né, porque é isso que mé-
dico sabe fazer. E depois a audição foi sumindo muito
rápido. Com 20 anos eu já
não percebia nada sem aparelho, eu era dependente
demais do aparelho porque
eu já tinha a língua oral e já tinha a memória auditiva.
Hoje não me vejo sem a-
parelho. Se eu andar na rua sem aparelho, tenho a
impressão que o carro vai ba-
ter em mim porque não tô vendo de onde eles tão
vindo.”
“Português não sei até hoje. Escrevo o projeto de
mestrado e volta vinte vezes.”
“O que é ser bilíngue? Os profissionais que estão
envolvidos nisso sabem o que é
ser bilíngue? Então primeiro é aprender o que é ser
bilíngue do ponto de vista
linguístico e depois entender o que é ser bilíngue do
ponto de vista do surdo.”
“Eu não trabalho com segunda língua. Minha primeira
língua é a Língua de Si-
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nais porque eu acho que eu não sei português. Eu não
sei. Eu não domino a lín-
gua portuguesa. Se um dia eu dominar a língua
portuguesa escrita, enfim... Vai
demorar muito, mas nós tamo trabalhando pra isso.”
4.2. Irene
Irene foi a única professora a conceder a entrevista usando Libras do começo
ao fim. O colaborador da Apada que serviu de intérprete ajudou-me com boa vontade,
mas não é profissional e nota-se um discurso quebrado, difícil de ser compreendido
quando transformado em língua escrita. Saliento que, comparativamente, as
transcrições desta entrevista se apresentam em menor volume, dada a barreira que se
ergueu entre mim e a entrevistada pela falta de proficiência (de ambos) na língua do
interlocutor.
Tabela 3: trechos transcritos da entrevista com a professora Irene
Sobre as leis que protegem os direitos dos surdos
“A lei foi um grande acontecimento para a Língua de Sinais, pro Brasil foi um marco. Eu acho que faltou também
muita coisa, é claro. Está nítido na questão de espe-
cificar advogado, médico, muitos serviços a gente encontra muitas barreiras. Agora, só legalizar foi bom, tem que
respeitar. Se a gente olhar pra trás, tem muita coisa
que melhorar. Então continua ruim ainda.”
Sobre a cultura surda Sobre a identidade surda
“O foco tem que ser ensinar o surdo porque isso faz parte do
contexto de vida, para ele se desen-
volver, ampliar os conceitos, expandir o conhecimento. Então é
importante que ele saiba a Lín-
gua de Sinais (...). O ouvinte também precisa conhecer Libras para
ele estar pronto para seguir
igual ao indivíduo surdo.”
“Os ouvintes, né, no geral, querem se comunicar, outros ficaram
pensando: ‘Pôxa, é... como será
essa Língua de sinais, né? Será que é uma língua mesmo, né? Mas
aí eles acabam entendendo
que é uma língua. Não é uma coisa frágil, é uma coisa muito rica,
né. Eles conseguem entender
essa cultura surda. Também o ouvinte tem a língua dele, né, a
língua dele é uma língua rica.
Tem suas influências, assim como outras línguas, né. E a Libras a
gente acaba trazendo para o
mesmo patamar. (...) Antes a comunidade ouvinte não era muito de
saber. Hoje tem essa curiosi-
dade de descobrir a língua de sinais. Por exemplo, a pessoa vê o
“Tem um pequeno problema: para o surdo, o
português é muito di-
fícil. Para o ouvinte, não tem dificuldade a
questão do visual. O sur-
do é muito visual. Essa obrigatoriedade de ele
ter que ler português
escrito pode despertar interesse ou não. Isso
tudo fica mais fácil
quando se tem um intérprete ou um professor
para se dedicar e en-
sinar isso... o português... usando a língua de
sinais.”
“Tem que ser estimulado o visual. Esse é o
melhor modelo (de edu-
cação), mas tem que começar quando a
criança nasce.”
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surdo sinalizando e acha que
aquela comunicação não é equivalente a um português, ou ao
inglês. Acham que é só gestos né.
E acabam trazendo a ideia de superioridade. A partir do
conhecimento, ela começa a ter uma
ideia de que as coisas são importantes.”
“(Cultura surda) é uma coisa minha, importante pra mim e pra
todos os surdos, né. É... como se
fosse... o nosso valor... que pode até ser julgado como subjetivo,
mas é um valor do nosso povo.
É uma expressão, o jeito da gente ir e vir, ter nosso espaço. Então é
como se fosse um orgulho
também. Acho que está associado a isso: é o que eu sou, a forma
como me expresso, sinto. Toda
comunidade tem isso. O exemplo do ouvinte é igual: eles têm a
cultura deles e isso é parte deles
de verdade Nós somos uma minoria, mas temos nossa língua e
cultura. Está dentro de nós.”
“O modelo (da Escola Bilíngue) é bom. Talvez o importante é
começar desde bebê. A família tem
também que fazer cursos. Se a família não se apressar, a criança
pode perder uns 50% e crescer
sem aprender Libras.”
4.3. Eva
Eva expressa-se com clareza em português, embora tenha dificuldade com a
pronúncia das palavras. Nasceu ouvinte, mas perdeu a audição antes dos 7 anos. Ela
sinalizou ao mesmo tempo em que utilizou-se da língua oral durante toda a entrevista.
Fez Letras Libras porque percebeu que no Brasil e no mundo há uma real necessidade
de se ensinar língua de sinais para ter contato com o surdo, já que muitos não
conseguem ser oralizados. Ela enfatiza bastante a necessidade de ouvintes aprenderem
Libras, especialmente ao narrar as dificuldades que teve na escola, aprendendo junto
com ouvintes e sendo forçada a oralizar e sinalizar ao mesmo tempo, culpando a
sociedade por não enxergar o esforço que o surdo faz. Também fala sobre a
necessidade urgente de intérpretes nas escolas e o baixo quórum de professores surdos
no mercado. Demonstra ter um conhecimento sobre a história de seu povo e valoriza
as lutas do povo surdo pela conquista de seus direitos.
Tabela 4: trechos transcritos da entrevista com a professora Eva
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Sobre as leis que protegem os direitos dos surdos
“A luta foi muito grande desde 2002 porque mostra que a Língua de Sinais é uma língua porque hoje em dia acham
que não é. É uma língua mesmo. Aí a gente sofre
muito porque a Língua de Sinais sempre é destruída, sempre volta e não tem nada de registro da Libras do passado.
Então ontem eu tava estudando sobre o calvário
do surdo (...) Achava que o surdo é anormal: ele é surdo e não pode pensar. Aí matava. Aí com o tempo... Isso porque
destruíram os sinais. Aí surgiram outros surdos
com outra língua de sinais. Aí não tem registro passado. Aí teve integração porque ajudava ele a oralizar: se quisesse
usar as mãos, impedia, botava implante, botava
aparelho. É uma integração. Então a luta foi muito grande e hoje em dia mostra que é uma língua, não é qualquer um.
Aí tem a Lei de Libras, né e tem Decreto também
de 2005 para ser obrigatório Língua de Sinais na universidade, faculdade, curso básico pra professor surdo
principalmente, né, porque a língua é dele mesmo, pra ele
ensinar. O intérprete é muito importante, né, porque tem pouco professor surdo. O intérprete pode traduzir as aulas
das outras matérias, também palestras. E é a lei da
gente. A gente tem que ter. Mas tem gente acha que o decreto da Escola Bilíngue é falso porque ainda tá integração.
Tem (só) uma escola bilíngue em Taguatinga. Nas
outras escolas não tem. Aí tá integrado então fica difícil adaptar pro surdo (...) então a gente tá lutando pra conseguir
uma lei de verdade. Aí na faculdade de Letras
Libras explica só lei, lei, lei. (...) A Escola Bilíngue é única, né. Mas o governo tava tentando fechar. (...) Lá é bilíngue
pra ele (o surdo), né. Então a luta é grande por-
que nas outras escolas não tem. Aí a pessoa fala que é uma lei falsa. Tá na lei, tá na Constituição: ok, é uma língua,
mas língua oficial não tem ainda.”
Sobre a cultura surda Sobre a identidade surda
“É importante fazer curso de Libras. É mais fácil ter
contato pra apoiar o surdo.
Pra alguns é obrigatório fazer o curso por causa da
faculdade porque é a segunda
língua oficial no Brasil. Então pra fono, pedagogia,
quando lida com criança surda
tem que saber comunicar. Mas o surdo tá lutando pra os
outros aprenderem no
banco, no hospital, na delegacia. Vai que a polícia aponta
a arma e o surdo não sa-
be, aí prende ele e ele é inocente. Aí precisa saber se
comunicar com a língua de si-
nais. No hospital é coisa privada, no banco também, não
quer saber quanto dinheiro
que ele tem. É obrigatório porque o Brasil tá lutando por
isso. (...) Às vezes tem procuração e ele assina sem saber.
Aí é necessário uma pessoa que sabe Libras.”
“Minha irmã me acompanhou na escola. A primeira
educação dela foi em Libras e
hoje ela é uma pessoa fluente, é intérprete geral. Ela me
ensinava aos poucos e ho-
je eu sei, né. Eu leio, entendo, comunicação entendo. Mas
pra escrever é muito difí-
cil pra gente porque a gente não consegue colocar
preposição, artigo, são pala-
vras-chave. Então hoje a gente tá com uma luta muito
“Se tiver alguém que sabe Libras, vai ajudar muito
então eu decidiajudar os ou-
tros e fazer curso de Letras Libras pra ensinar.”
“Foi muito difícil pra mim na sala de aula. Não tinha
intérprete na época. Tinha
uma escola com Comunicação Total. A gente oralizava
e sinalizava ao mesmo
tempo como eu tô falando agora. Mas isso não é legal.
Precisa separar. Tem que
ser uma escola bilíngue, né. Aí estuda só português e
depois estuda só Libras.”
“Quando eu estudei foi muito complicado porque o
professor escreve no quadro e
dá as costas e eu não consigo ouvir e não consigo
leitura labial também. Aí man-
da atividade em casa, eu leio e não entendo. Tinha
intérprete na sala de aula que
só acompanhava o português palavra por palavra, ela
não adaptou pra Libras aí
tive muita dificuldade. Então muito surdo teve nota
fraca. Aí parece que o sur-
do não sabe, é burro ou preguiçoso, mas não é.”
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grande e tem que ter o portu-
guês porque é língua oficial do Brasil.”
“Precisa mostrar muita imagem, principalmente vídeo
porque conhece variação dos
professores porque muita gente reclama: ‘Ah, ele me
ensinou assim e você me ensi-
nou assim..’ Aí eu falo: ‘É variação. É igual o ouvinte
fala no nordeste macaxeira
ou aipim e pra outros é mandioca.’ Precisa aprender
variação”
4.4. Melissa
Melissa me concedeu duas entrevistas. Na primeira, mostrou que sabe utilizar
o português falado (perfeitamente) e sinalizou ao mesmo tempo. Na segunda, só usou
o português oral. Creio, baseando-me nos relatos, que isso se deve pelo fato de que
muitos pensam que usar Libras e português ao mesmo tempo enfraquece o status da
língua de sinais como língua plena ou que isso compromete a formação de uma
identidade surda sadia. Os dados que puderam ser resgatados do primeiro relato são as
minhas notas de campo, que não serão usadas no quadro de transcrições, mas são aqui
expostos: ela me relatou que fez vestibular acreditando que se tratava de um concurso
público, já que leu a palavra “Libras” no edital. Não achava que iria passar e se
surpreendeu ao descobrir que o curso que faria era de 4 anos e não 6 meses. Pensou
em desistir, mas chegou a se formar. Para ela, o surdo só não escuta, mas é uma pessoa
normal, não deficiente. Os problemas começam a surgir na família porque o não
conhecimento da língua de sinais faz com que os pais deleguem a educação de seus
filhos para estranhos.
Ela também me confidenciou que se sente incomodada com o aparelho
auditivo, que ganhou do governo, porque seu uso acarreta em fortes dores de cabeça.
Com isso, criticou o estereótipo de que o surdo é agressivo ou rude pois, afinal, quem
é simpático quando sente dor? Também criticou os médicos, que prescrevem o
implante coclear como medida de normalizar o surdo e, assim, enchem seus bolsos de
dinheiro. Ambos aparelho e implante limitam a liberdade de ir à praia, fazer esporte,
brincar na escola, ou seja, levar uma vida normal.
Defende que todo surdo tem que aprender português para não ser vítima de
um analfabetismo funcional. Ao pegar um ônibus voltando para casa ou assinar um
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documento no banco, o surdo precisa dominar a língua portuguesa em sua modalidade
escrita. Quanto à cultura surda, ela se diz distante disso. Não socializa com outros
surdos com frequência a ponto de ser estigmatizada por eles como sendo ouvinte. Ela
disse que resiste a isso e se recusa a ajudá-los em situações de emergência que
precisam do uso da língua oral como, por exemplo, em restaurantes, caso alguém
precise resolver um problema com a conta. Nestes episódios, ela usa língua de sinais
com os garçons, mesmo que não a compreendam. Ela insiste que assim o faz para que
os demais surdos também entendam que a identidade surda dela é tão válida quanto a
deles.
Quanto ao benefício das leis, mostrou-se pouco satisfeita. Ela não concorda, por
exemplo, com o fato de que, por ser surda, ela concorre em pé de igualdade com um
candidato cadeirante a uma vaga de concurso porque ele escuta e aprende palavras
novas todos os dias. Já ela, por ser surda, não consegue dominar a língua escrita e
acaba tirando notas muito baixas nas redações. Algumas dessas crenças foram
recorrentes na segunda entrevista, como mostra o quadro analítico abaixo. Há, todavia,
uma sutil diferença quanto à visão que tem das leis quando comparadas as duas
entrevistas.
Tabela 5: trechos transcritos da segunda entrevista com a professora Melissa
Sobre as leis que protegem os direitos dos surdos
“Muita coisa (avançou depois da lei). Nossa, antes não tinha nada. Melhor alguma coisa do que nada, né. Então muita
coisa avançou, né, mesmo sendo devagar. Com
toda dificuldade, a gente tá caminhando bem, a gente tá indo no caminho certo. Tem que lutar mais. (...) Muita coisa
precisa mudar: tem nem como explicar, né, porque
é, assim, muito detalhe na Lei de Libras. Não só da Lei de Libras, mas como dos deficientes, né. (...) Agora eu acho que
deveria haver uma participação de cada tipo de
pessoa com deficiência no meio dessas decisões. Você escolher pra mim é muito fácil. Eu posso escolher por você?
Não, né. Então eu acho que eu tinha que participar
mais também. (...) Tem que ter alguém que dê opinião de cada tipo de deficiência. Assim a coisa pode avançar. Agora o
ouvinte escolher pro deficiente e ele não saber
como é a deficiência, não resolve.”
Sobre a cultura surda Sobre a identidade surda
“Por exemplo, pra falar no telefone sempre tenho que estar
pedindo a alguém pra li-
gar pra mim, ir pra médico ou pra resolver algum
problema, então eu fico limitada a
certos tipos de coisas. E a dificuldade é grande. Por
exemplo, tem aquele telefone pra
deficiente auditivo... Não é todo mundo que tem. Como eu
“Então ele (o surdo) precisa aprender o português. Não
que eu seja a favor de português... ã-ã, nada disso. É só
pela comunicação.”
“O meu contato com o surdo é aquele grupinho, assim,
de fim de semana (...) En-
tão eu não tenho, assim, aquela cultura de, por
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vou falar com você se você
não tem? Você tem na sua casa? Não tem. Isso não é
acessibilidade. (...) Por isso que
o meio de comunicação é o celular, né. As mensagens, as
imagens na webcam, o
Skype, que é um programa que o surdo fala ao vivo
também...”
“Quando você tem um problema pra resolver na escola do
seu filho você não precisa
ir lá, você liga. A gente não. Precisa se locomover, sair do
trabalho, pro chefe enten-
der é difícil porque ele acha que você ta inventando
desculpa, então é complicado
nessa parte.”
“Esse não é o problema porque nem todo mundo tem
paciência pra falar com o surdo.
E isso é a realidade, inclusive dentro da família. Tem dias
que todo mundo tá mara-
vilhoso, agora tem dias que ninguém... entendeu? Aí, assim,
com o tempo você vai só acumulando aquela coisa dentro
de você e a realidade não é o que a gente vê, né.”
“É igual à lei que foi vetada. Assim, às vezes, com essas
leis, o deficiente já não tinha muito acesso a muita coisa.
Alguns conseguem. Não são todos, né. E muita coisa foi
tirada.
Então, quer dizer, em vez da gente conseguir, a gente ta,
né... Igual eu falei pra você
o negócio do concurso. Da outra vez eu falei pra você do
concurso público: ah, sou
surda. Tudo bem: eu falo, conheço, mas ‘ah, é falta de
esforço’. Ah, tá. (...)mas vamo
botar nós dois juntos. O seu conhecimento é
completamente diferente do meu, né.
Então, assim, você vai aprender muito mais rápido do que
eu (...) no dia da prova do concurso tem palavras (...) até
pro ouvinte mesmo é difícil – imagina pro surdo que
não conhece, nunca viu aquela palavra, não sabe nem o
significado dela. (...) Você
entende? Então é difícil. E as pessoas acham: ‘ah,
coitadinho’. Não é coitadinho.
É porque, infelizmente, a educação não ensina aquilo que
você tem que aprender des-
de o começo, desde pequenininho. Você vai aprender de
grande. É muita coisa. E fal-
ta um pouco o acesso pro surdo a isso.”
“A outra dificuldade é porque não tem profissionais
qualificados pra ensinar. Não
tem. E quando tem, os profissionais podem ser
exemplo, ah, vou no cinema com o
surdo, vamos pro teatro... (...) A minha cultura não é
essa, né. É meia... assim...
não é qualquer... eu não pratico esporte com o surdo.
Tem surdo que pratica es-
porte, que vai na academia, um grupo de surdos mesmo,
né, que se reúne. (...)
Não é todo fim de semana, né. Apesar de que eu já tive
muitas oportunidades e
acabei optando por outras coisas que me fez eu me
afastar.”
“Por eu falar, ninguém acredita que minha surdez é
profunda. (...) Então, assim,
é difícil mas por mais que eu fale, por mais que eu
escute pouco, é difícil o aces-
so a muita coisa, principalmente para resolver (algo
que não consigo entender
bem) em médico, de escola.”
“Agora, assim, em relação ao trabalho, não me empata
de trabalhar, não me em-
pata de me relacionar com outra pessoa.”
“Então é difícil. (...) E eu morria de vergonha (...) e eu
tinha vergonha de falar
(para os professores da escola que ela não ouvia)
porque era só eu na época.
Surda. Então no 2o grau eu repeti duas ou três vezes até
que, quando o professor
veio de novo (...) eu cheguei na diretora na época e
falei ‘olha, é isso, isso e isso’
e foi a partir daí que eu descobri que eu tinha direito,
que eu era deficiente. E
até então eu não sabia e eu já tinha 20, mais de 20
anos, né. Foi aí que eu come-
cei a estudar os meus direitos.”
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qualificados, mas não pra ensinar pro
surdo. (...) Mas também deveria ter professores intérpretes
qualificados pra isso. Se
não tiver, não adianta.”
5) CONCLUSÕES
Os dados relevantes podem ser compilados no quadro abaixo, como ponto de
partida para o encaminhamento de minhas conclusões, desenvolvidas a partir das
perguntas de pesquisa.
Tabela 6: quadro comparativo das quatro entrevistas
Professora Identidade Surda e
(estereótipos
mencionados)
Artefatos culturais
mencionados
Opinião sobre as leis
Adriana Híbrida
(Médico só sabe fazer
implante)
-Literatura (líder surdo: Falk);
-Vida social (aprender português
facilita a inclusão);
- Política (ouvinte é dono da
língua oral).
Positiva: a lei deu um suporte de
pessoal para amparar o surdo e
deu respeito e status à Libras
Irene Surda
(Libras é uma língua
pobre)
-Experiência visual (surdo é
visual e português é difícil);
-Desenvolvimento linguístico
(Libras para que
todos caminhem igualmente);
- Família (tem de saber Libras e
ensiná-la desde bebê);
- Política (lei).
Ambivalente: foi um grande marco
para o país, porém falta mui-
ta coisa como ampliar a
obrigatoriedade para advogados,
médi-
cos e outros profissionais estudarem
Libras na graduação.
Eva Transição
(Surdo é fechado,
burro e preguiçoso)
-Desenvolvimento linguístico
(importante ensinar
Libras aos surdos, português é
difícil, Libras é lingua e
tem variação);
- Família (irmã virou intérprete);
- Literatura (calvário do surdo);
- Vida social (batismo);
- Política (lei, militância,
professor surdo).
Ambivalente: a lei reconhece a Libras
como língua, ressalta a
importância de se obrigar as
faculdades a incluí-la no currículo,
mas acha o decreto da Escola
Bilíngue falso (inclusão X integra-
ção)
Melissa Incompleta / Flutuante
(Surdo é agressivo,
coitadinho, deficien-
te, não se esforça)
-Desenvolvimento linguístico
(guetos, variação);
- Família (isolamento);
- Vida social e esportiva
(preconceito de outros surdos);
- Política (lei, militância,
Ambivalente: na 1a entrevista, disse
que houve pouco avanço por
conta da falta de equidade em
concursos. Na 2a entrevista, disse
que a lei ajudou muito porque antes
não tinha nada. Criticou o
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professor especialista
em surdos)
- Materiais (falta acessibilidade)
estatuto do deficiente e disse que falta
mais representação ativa
nas tomadas políticas de decisão por
parte dos surdos.
1) É possível encaixar os participantes nas categorias de identidades surdas propostas por
Perlin? A que estereótipos sobre o surdo os professores se referem em seu discurso?
Sim. O tempo que leva para que o surdo entre em contato com a comunidade
surda determina em qual mapeamento identitário ele se encontra, com relação às
categorias propostas por Perlin. Esse encaixe, contudo, realmente não é uma tarefa
fácil de se fazer, pois estamos tratando de indivíduos, pessoas que têm suas
complexidades, idiossincrasias, medos, valores, família, identidade próprias, mas não
são estáticas nem imutáveis. Portanto, uma determinação monolítica de identidades
surdas só é possível dentro de um recorte temporal específico. Os estereótipos a que as
entrevistadas se referem nos mostram quais são suas lutas internas na busca de reverter
a imagem que o ouvinte tem sobre os surdos.
2) Como o discurso das professoras define cultura surda? Quais artefatos culturais
propostos por Strobel são predominantes?
Inicialmente, definem a cultura surda como sendo fortemente marcada por
lutas políticas, pela militância, pelo direito a participar das tomadas de decisão que os
afetam e, principalmente, pela consciência da letra das leis que resguardam seus
direitos enquanto surdos. Depois vêm as questões de ordem social que marcam a
comunidade surda, como a família e o papel importante que ela desempenha no
desenvolvimento da criança surda, as dificuldades de socialização e o
desenvolvimento linguístico, com ênfase na importância de se aprender português
como segunda língua, sendo a língua de sinais o instrumento de maior peso
constituinte do indivíduo surdo. A falta de registros sobre o passado e história sofrida
de seu povo, marcada por lutas que continuam até hoje, vêm logo em seguida,
sobressaindo questões de (falta de) acessibilidade.
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3) Como eles encaram as repercussões da Lei de Libras (Lei 10.436/02, de 24 de abril de
2002) e decretos que regulamentam essa lei no que tange o ensino da língua de sinais
como primeira e segunda língua e do português escrito como segunda língua para
surdos?
O maior ganho é a obrigatoriedade do ensino de Libras no ensino superior
para cursos de fonoaudiologia, licenciaturas e pedagogia. No ensino fundamental e
médio, a contratação de intérpretes tem um peso relevante. Porém, mesmo com o
reconhecimento de Libras como língua, governo e sociedade não abraçaram a causa
por inteiro, já que demais profissionais como médicos, policiais, advogados,
atendentes de banco, assistentes sociais e outros não são obrigados a ter contato com a
língua de sinais em seus cursos de formação.
Por fim, me parece estranho que a experiência visual não tenha sido tão
relevantemente marcada no discurso das professoras, o que me leva a crer que, como 3
das 4 entrevistadas são oralizadas, ainda há uma confluência robusta de experiências
auditivas que não se sobressaem às visuais. Na discrepância de opiniões sobre as leis,
emitidas pela professora Melissa, houve um marco importante no intervalo de uma
semana pra outra, que foram os sete vetos da presidenta Dilma ao texto do Estatuto do
Deficiente. Dentre estes, estão a contratação de pessoas com deficiência por empresas
que têm entre 50 e 99 funcionários e a reserva de 10% das vagas nos processos
seletivos para cursos de nível técnico, tecnológico e superior de instituições federais
públicas e privadas. Apesar dos vetos, sua opinião se mostrou ser mais positiva quanto
às legislações na segunda entrevista. Porém, a crítica que fez aos próprios deficientes,
no sentido de buscarem mais representação política nessas tomadas de decisão, é
contundente. Afinal, o direito à cidadania requer que tomemos posse da habilidade
discursiva em defesa de interesses próprios. O preço de outorgar essa responsabilidade
a outrem é deveras caro.
REFERÊNCIAS
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Sistêmico-Funcional, Análise de Discurso Crítica, Semiótica Social. Brasília, DF: 2015.