Upload
truongtuong
View
224
Download
0
Embed Size (px)
Citation preview
Ano 3 (2017), nº 5, 915-935
DO CONSUMISMO AO CONSUMO
SUSTENTÁVEL: NAS VEREDAS DA
(RE)EDUCAÇÃO EM UMA SOCIEDADE
MULTICULTURAL1
Isabel Cristina Brettas Duarte*
Angelita Maria Maders**
Tentamos achar nas coisas, que por isso nos são preciosas, o
reflexo que nossa Alma projetou sobre elas.
Marcel Proust
Resumo: Este artigo, para alcançar seu objetivo – verificar se é
possível uma mudança do consumismo para um consumo sus-
tentável -, traz, inicialmente, alguns aspectos conceituais para
diferenciar consumo de consumismo. Para tanto, toma como
ponto de partida a obra do sociólogo polonês Zygmunt Bauman,
“vida para consumo: a transformação das pessoas em mercado-
ria”. Posteriormente, para responder ao problema, analisa a ne-
cessidade de mudanças de uma cultura do consumismo ao 1Artigo publicado como capítulo de livro in: KERBER, Gilberto Kerber; BOFF, Salete
Oro; JESUS, José Lauri Bueno de. Educação para o consumo sustentável e prevenção do superendividamento.1 ed.Campinas, SP: Millennium Editora, 2015, v.1, p. 67-82. * Doutoranda em Direito junto Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões, Mestre em Direito, Mestre em Letras e Licenciada em Letras-Espanhol, todos pela Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões (URI). Advogada da Procuradoria-Geral do Município de Santo Ângelo. Professora do curso de graduação em Direito do Instituto Cenecista de Ensino Superior de Santo Ângelo (CNEC/IESA). ** Defensora Pública do Estado na Comarca de Santo Ângelo/RS, Professora da Uni-versidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões - URI Campus de Santo Ângelo e da Universidade do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul - UNIJUÍ, Mestre em Gestão, Desenvolvimento e Cidadania pela Unijuí, Doutora em Direito pela Universidade de Osnabrück, (Alemanha), Pós-doutoranda junto à Universidade de Santiago do Chile, e membro do Núcleo de Direitos Humanos da Defensoria Pú-blica do Estado do Rio Grande do Sul.
_916________RJLB, Ano 3 (2017), nº 5
consumo sustentável, caminho este que se entende passa pela
(re)educação das pessoas que compõem a sociedade multicultu-
ral em face da sua conscientização acerca dos contornos que im-
plicam a sustentabilidade. Concluiu que, para uma transforma-
ção paradigmática ao consumo sustentável, é preciso refletir so-
bre as mudanças sofridas pelas relações de consumo nos últimos
tempos e, principalmente, tomar consciência acerca do impulso
consumista que move a sociedade atual, o que, contudo, é uma
tarefa complexa, ainda mais se considerada a pluralidade social,
mas que é possível por meio de uma (re)educação a ser iniciada
nos lares e ser reforçada pelas escolas, pela mídia, pelo Estado e
pelos próprios consumidores. O método de pesquisa utilizado foi
o bibliográfico.
Palavras-Chave: Consumo. Consumismo. Sustentabilidade.
Multiculturalismo.
Sumário: Introdução; 1. Consumo versus consumismo; 2. Sus-
tentabilidade e educação para o consumo em uma sociedade
multicultural. Conclusão; Referências.
INTRODUÇÃO
presente texto se propõe a começar pelo óbvio: o
consumo é inerente à existência humana desde os
primórdios da humanidade. Todos consomem, de
forma necessária ou desnecessária, bens indispen-
sáveis ou dispensáveis. E aí reside a importância
da temática proposta, “(Re)Educação para o consumo sustentá-
vel”, pois é preciso refletir acerca da mudança paradigmática so-
frida pelas relações de consumo nos últimos tempos, tanto da
mudança que já aconteceu quanto daquela que ainda se faz ne-
cessária para viabilizar a existência da humanidade.
Nesse desiderato, é imprescindível diferenciar o
O
RJLB, Ano 3 (2017), nº 5________917_
consumo, algo que é salutar à vida das pessoas, do consumismo,
algo que na sociedade moderna beira à patologia por seu viés
desenfreado, preocupado em demasia com a ostentação e pouco
preocupado com questões ligadas à sustentabilidade e à sobrevi-
vência humana. A tomada de consciência acerca do impulso
consumista que move a sociedade atual é considerada um passo
inicial e imprescindível para uma mudança de atitudes que via-
bilizem um consumo sustentável e, portanto, uma reeducação
dos consumidores, o que, contudo, é uma tarefa complexa, ainda
mais se considerada a pluralidade social.
Assim, o presente estudo pretende diferenciar consumo
de consumismo, bem como analisar a necessidade de transfor-
mação de uma cultura do consumismo ao consumo sustentável,
caminho este que passa pela (re)educação das pessoas que com-
põem a sociedade multicultural brasileira em face da sua cons-
cientização acerca dos contornos que implicam a sustentabili-
dade. Para tanto, toma-se como ponto de partida a obra do so-
ciólogo polonês Zygmunt Bauman, “vida para consumo: a trans-
formação das pessoas em mercadoria”, a qual, inclusive, traz um
capítulo, justamente o primeiro, intitulado “consumo versus
consumismo”, que motivou a elaboração deste texto.
1 CONSUMO VERSUS CONSUMISMO
O tema que se aborda no presente artigo necessita, pri-
meiramente, ser melhor definido no que se refere ao consumo e
ao consumismo para, depois, abordar a questão do consumo sus-
tentável e da necessidade de uma educação para tanto. Como re-
ferido, utiliza-se como pano de fundo a obra de Bauman, para
quem, “de maneira distinta do consumo, que é basicamente uma
característica e uma ocupação dos seres humanos enquanto indi-
víduos, o consumismo é um atributo da sociedade”2 , o que
2 BAUMAN, Zygmunt. Vida para consumo: a transformação das pessoas em merca-doria. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008, p. 41.
_918________RJLB, Ano 3 (2017), nº 5
parece acertado.
Nesse contexto, “Consuming life”, do título original,
tanto pode significar “vida para consumo”, como quis a tradução
em português, quanto “consumindo a vida”. Ambos os conceitos
se prestam a expressar os questionamentos trazidos por Bauman
na referida obra, bem como seu alerta para as transformações
sofridas pelas vontades, pelos desejos e anseios em virtude da
passagem do consumo ao consumismo em uma sociedade glo-
bal.
Assim, trata-se de uma questão muito mais complexa
quando analisada em profundidade e numa perspectiva histó-
rico-contextual. A Revolução Industrial trouxe uma nova forma
de economia e de consumo, sendo que foi a partir dela que a
indústria começou a produzir excedentes. Porém, muito antes de
a indústria começar a produzir excedentes, os supérfluos já eram
comprados pelas pessoas, embora tivessem outra função: refor-
çar o apreço pelas crianças, a intimidade dos casais, o aconchego
doméstico, o vínculo entre as gerações, por exemplo.
O que se percebe é que existia outro tipo de intenção na-
queles que compravam, pois o valor simbólico dos objetos pre-
ponderava justamente porque havia uma demanda de que os ob-
jetos tivessem durabilidade e existência simbólicas para quem
adquirisse tais objetos. Desse modo, pratos, mesas, toalhas, mó-
veis, por exemplo, eram adquiridos não somente por sua utili-
dade imediata, mas também para que fossem uma forma de pro-
longar a memória afetiva da família, já que seriam repassados
aos descendentes. Tudo isso contava a história das gerações e
era feito para permanecer e testemunhar o esforço dos sujeitos
para transcender a duração da mera vida biológica.
Nesse sentido, percebe-se que o supérfluo de então tinha
uma função cultural completamente diversa do supérfluo de
hoje. Antes, as pessoas eram compradoras; hoje, tornam-se con-
sumidoras, porque os produtos têm caducidade programada. Isso
se deve, em grande parte, à própria indústria, pois torna os
RJLB, Ano 3 (2017), nº 5________919_
objetos obsoletos, bem como os modos de viver, sentir, amar, o
que é agravado pelo trabalho da mídia. O consumo de bens ma-
teriais e até mesmo do sexo como um produto tornou-se um im-
perativo para que as pessoas possam se sentir felizes e reconhe-
cidas pelo outro. Com isso, perde-se a consciência das circuns-
tâncias que deram origem ao objeto para ocultar a nova função
que lhe é atribuída pelos apelos do mercado voltados não mais
ao consumo em si, mas ao consumismo.
Refletindo-se sobre isso, e na esteira do pensamento de
Edgar Morin ao propor um conhecimento para a reintrodução da
consciência na ciência3, é de se pensar na reintrodução da cons-
ciência no consumo/consumismo, pois a consciência precisa ser
reintroduzida não somente na ciência, mas nos mais diversos
segmentos sociais. O conceito de complexidade do pensador
francês está ligado ao da incerteza e diretamente relacionado às
potencialidades manipuladoras produzidas pelo desenvolvi-
mento do conhecimento científico, e uma delas é nitidamente
percebida nas relações de mercado e seus reflexos no con-
sumo/consumismo.
Para isso, parafraseando Morin, assim como as ciências
naturais não têm consciência da sua inscrição em uma cultura,
em uma sociedade, em uma história, tem-se que também o con-
sumo não tem consciência de sua inscrição em uma cultura, em
uma sociedade, em uma história, ou seja, não têm consciência
do seu papel na sociedade, nem dos princípios ocultos que co-
mandam as suas elucidações. Em suma, assim como as ciências,
também o consumo não tem consciência de que lhe falta uma
consciência. Assim, “o problema da ciência e da consciência se
encontra hoje colocado como problema ético e como problema
de consciência reflexiva, postulando ambos a reintrodução do
sujeito”4 3 MORIN; Edgar; LE MOIGNE, Jean. A inteligência da complexidade. São Paulo: Peirópolios, 2000. 4 MORIN; Edgar; LE MOIGNE, Jean. A inteligência da complexidade. São Paulo: Peirópolios, 2000, p. 34-35.
_920________RJLB, Ano 3 (2017), nº 5
Nessa senda, Morin, em várias passagens da obra A inte-
ligência da complexidade, explicou o porquê de a ciência ser um
típico exemplo da complexidade, mas a leitura atenta desse livro
permite afirmar que também a pós-modernidade é um típico
exemplo da complexidade, pois enseja questionamentos de
como agir, com que fim agir, qual a diferença entre agir desta ou
daquela maneira, para quem agir. E como pano de fundo dessas
perguntas, a grande interrogação: tal ação auxilia a construir um
modelo para a humanidade? Ou ainda, a escolha da ação a ser
efetuada colabora para engrossar o conjunto das ações destruti-
vas ou construtivas da humanidade?
É nesse sentido que é possível afirmar que o agir relaci-
onado ao consumo precisa ser repensado, ou melhor, pensado
em sua complexidade, pois somente assim, com o reconheci-
mento dessa complexidade, é possível considerar reflexões
como as trazidas por Bauman, o qual é um dos autores que, na
contemporaneidade, melhor pensou a sutil transformação dos
compradores em consumidores e do consumo em consumismo.
O referido autor parte da explicação do modelo da fase
“sólida” da modernidade, caracterizado pela orientação voltada
à segurança, de sorte que naquele momento os bens produzidos
“deviam ser resguardados do desgaste e da possibilidade de caí-
rem prematuramente em desuso, [...] pois a satisfação parecia
residir na promessa de segurança a longo prazo, não no desfrute
imediato dos prazeres.”5
Após, trata da transição desse modelo caracterizado pela
solidez e durabilidade para um modelo caracterizado pela liqui-
dez e descartabilidade, modelo este mais ajustado a uma socie-
dade de consumidores, que, cada vez mais, “associam a felici-
dade não tanto à satisfação de necessidades, mas a um volume e
uma intensidade de desejos sempre crescentes, o que implica o
uso imediato e a rápida substituição dos objetos destinados a
5 BAUMAN, Zygmunt. Vida para consumo: a transformação das pessoas em merca-doria. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008, p. 43.
RJLB, Ano 3 (2017), nº 5________921_
satisfazê-la.”6 É justamente esse modelo vigorante que traz uma
série de preocupações voltadas a outros tipos de reflexões típicas
da pós-modernidade, a exemplo da sustentabilidade, pois Novas necessidades exigem novas mercadorias, que por sua
vez exigem novas necessidades e desejos; o advento do consu-mismo inaugura uma era de obsolescência embutida dos bens
oferecidos no mercado e assinala um aumento espetacular na
indústria da remoção do lixo. A instabilidade dos desejos e a
insaciabilidade das necessidades, assim como a resultante ten-
dência ao consumo instantâneo e à remoção, também instantâ-
nea, de seus objetos, harmonizam-se bem com a nova liquidez
do ambiente em que as atividades existenciais foram inscritas
e tendem a ser conduzidas no futuro previsível.7
No atual modelo que ele descreve como sendo do consu-
mismo líquido-moderno, o tempo não é cíclico nem linear, mas
“pontilhista”, ou seja, pontuado, marcado por rupturas e descon-
tinuidades, um tempo fragmentado pela multiplicidade de “ins-
tantes eternos”. Desse modo, o “tempo da necessidade” foi subs-
tituído pelo “tempo de possibilidades”, tempo aleatório, aberto
em qualquer momento ao imprevisível irromper do novo.8
Na sociedade de consumidores, a busca da felicidade é o
propósito mais almejado, invocado principalmente nas campa-
nhas de marketing destinadas a reforçar a disposição dos consu-
midores para consumir cada vez mais. Dessa forma, o valor mais
característico da sociedade de consumidores é uma vida feliz,
uma felicidade instantânea e perpétua, na medida em que o con-
sumo é um investimento em tudo que serve para o valor social e
a autoestima do indivíduo.9
Assim, sendo a autoestima uma das questões mais
6 BAUMAN, Zygmunt. Vida para consumo: a transformação das pessoas em merca-
doria. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008, p. 44. 7 BAUMAN, Zygmunt. Vida para consumo: a transformação das pessoas em merca-doria. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008, p. 45. 8 BAUMAN, Zygmunt. Vida para consumo: a transformação das pessoas em merca-doria. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008, p. 46-47. 9 BAUMAN, Zygmunt. Vida para consumo: a transformação das pessoas em merca-doria. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008, p. 52; 60; 76.
_922________RJLB, Ano 3 (2017), nº 5
emblemáticas do sujeito moderno, em permanente construção e
geralmente sujeita a uma série de transtornos psicológicos, não
é de se estranhar que a promessa de satisfação pelo consumo so-
mente permaneça sedutora enquanto o desejo permanecer insa-
tisfeito, num permanente ciclo de insatisfação a ser satisfeita
como forma de agregar valor social ao indivíduo, aumentando
sua autoestima por meio da pseudo sensação de felicidade pro-
porcionada pelo consumo. Nas palavras de Bauman: É exatamente a não-satisfação dos desejos e a convicção inque-
brantável, a toda hora renovada e reforçada, de que cada tenta-
tiva sucessiva de satisfazê-los fracassou no todo ou em parte
que constituem os verdadeiros volantes da economia voltada
para o consumidor. A sociedade de consumo prospera en-
quanto consegue tornar perpétua a não satisfação de seus mem-
bros (e assim, em seus próprios termos, a infelicidade deles).10
Esse processo muitas vezes leva a um círculo vicioso, no
qual o esforço para satisfazer uma necessidade acaba se trans-
formando em compulsão ou vício, quando então “o impulso para
buscar soluções de problemas e alívio para dores e ansiedades
nas lojas se torna um aspecto do comportamento encorajado com
avidez a se condensar num hábito sem alternativa aparente.”11
Nesse sentido, Bauman alerta para o fato de o consu-
mismo ser uma economia do engano, na medida em que, ao “es-
timular a emoção consumista e não cultivar a razão” (2008, p.
65), estimula a irracionalidade dos consumidores, quando na
verdade o consumo deveria se pautar pela consciência e infor-
mação para que o supérfluo não ocupe o lugar do necessário
numa sociedade que “sempre precisa de mais e nunca tem o bas-
tante.”12
Nesse processo, que muitas vezes passa despercebido
10 BAUMAN, Zygmunt. Vida para consumo: a transformação das pessoas em merca-doria. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008, p. 63-64. 11 BAUMAN, Zygmunt. Vida para consumo: a transformação das pessoas em merca-doria. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008, p. 64. 12 BAUMAN, Zygmunt. Vida para consumo: a transformação das pessoas em merca-doria. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008, p. 68.
RJLB, Ano 3 (2017), nº 5________923_
pelas pessoas, na ânsia por se consumir cada vez mais, perde-se
a noção do equilíbrio financeiro e os gastos excessivos levam a
situações de endividamento das famílias, principalmente quando
se trata das classes econômicas menos favorecidas, pois Numa sociedade de consumidores, todo mundo precisa ser,
deve ser e tem que ser um consumidor por vocação. [...] Essa
sociedade não reconhece distinções de classe. O pobre é for-
çado a uma situação na qual tem de gastar o pouco dinheiro ou
os parcos recursos de que dispõe com objetos de consumo sem
sentido, e não com suas necessidades básicas, para evitar a total
humilhação social e evitar a perspectiva de ser provocado e ri-
dicularizado. 13
Nessa senda, os mecanismos que engendram o sistema
de consumo servem aos propósitos da economia do capitalismo
selvagem, cuja autorreprodução é inexoravelmente relacionada
à autorreprodução do sistema de consumismo, pois O segredo de todo sistema social durável (ou seja, que se auto-
reproduz (sic) com sucesso) é transformar seus pré-requisitos
funcionais em motivos comportamentais dos atores. Para apre-
sentar de maneira diferente, o segredo é fazer todos os indiví-
duos desejarem realizar o que é necessário para capacitar o sis-
tema e se auto-reproduzir.14
Dessa forma, percebe-se que um dos grandes aliados do
consumismo é a compulsão por comprar, largamente incenti-
vada pelas milionárias estratégias de marketing, que sabem ex-
plorar como ninguém os complexos da sociedade líquido-mo-
derna, que busca as mais variadas formas de remediar a angústia
e o tédio de seus sujeitos. Bauman denomina complexo de ina-
dequação às ações de consumo que “ocupam lugar de honra en-
tre nossas ansiedades mais frequentes, enervantes e desgastan-
tes.”15 São esses estados de emergência trazidos pelas
13 BAUMAN, Zygmunt. Vida para consumo: a transformação das pessoas em merca-doria. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008, p. 73-74. 14 BAUMAN, Zygmunt. Vida para consumo: a transformação das pessoas em merca-doria. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008, p. 89-90. 15 BAUMAN, Zygmunt. Vida para consumo: a transformação das pessoas em merca-doria. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008, p. 122.
_924________RJLB, Ano 3 (2017), nº 5
perturbações de espírito que levam não somente ao consumo do
supérfluo, mas ao consumo do necessário em excesso.
No entanto, isso não somente não é capaz de aliviar essa
condição de angústia como também é autopropulsor de novas
condições de angústia existencial: “a cultura consumista é mar-
cada por uma pressão constante para que sejamos alguém
mais.”16. Esse mais e mais que se está a exigir das pessoas gera
uma constante e eterna insatisfação, pois é impossível alcançar
o conjunto de infinitas possibilidades ofertadas pelo mercado na
constante busca pela famigerada felicidade: O sonho de tornar menos apavorante a incerteza e mais pro-
funda a felicidade está no cerne da obsessão dos consumidores
com a manipulação de identidades, exigindo pouco sacrifício e
nenhum esforço diário exaustivo, apenas por meio do aparato
da mudança de ego – e de mudar o próprio ego usando roupas
que não aderem à pele e que, portanto, não devem impedir no-
vas mudanças. No caso da autodefinição e da autoconstrução,
como em todas as atividades da vida, a cultura consumista per-manece fiel a seu personagem e proíbe a acomodação final e
qualquer satisfação perfeita, consumada, que não requeira
aperfeiçoamentos.17
Nesse norte, é importante referir que, segundo Arlie Rus-
sel Hochschildo, citado por Bauman, o principal “dano colate-
ral” perpetrado pela invasão consumista é a “materialização do
amor”, uma vez que o consumismo atua para manter a reversão
emocional do trabalho e da família: Expostos a um bombardeio contínuo de anúncios graças a uma
média diária de três horas de televisão (metade de todo o seu tempo de lazer), os trabalhadores são persuadidos a “precisar”
de mais coisas. Para comprar aquilo que agora necessitam, pre-
cisam de dinheiro. Para ganhar dinheiro, aumentam sua jornada
de trabalho. Estando fora de casa por tantas horas, compensam
sua ausência do lar com presentes que custam dinheiro. Mate-
rializam o amor. E assim continua o ciclo. Ocupados em ganhar
16 BAUMAN, Zygmunt. Vida para consumo: a transformação das pessoas em merca-doria. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008, p. 128. 17BAUMAN, Zygmunt. Vida para consumo: a transformação das pessoas em merca-doria. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008, p. 145-146.
RJLB, Ano 3 (2017), nº 5________925_
mais dinheiro em função de coisas que crêem precisar para se-
rem felizes, homens e mulheres têm menos tempo para a em-
patia mútua e para negociações intensas, por vezes tortuosas e
doloridas, mas sempre longas e desgastantes. E ainda menos
para resolver seus mútuos desentendimentos e discordâncias.
Isso aciona outro círculo vicioso: Quanto mais obtêm êxito em
“materializar” a relação amorosa, menores são as oportunida-
des para o entendimento mutuamente compassivo exigido pela notória ambiguidade poder/carinho do amor.”18
Nesse ínterim, é possível perceber que quanto maior a
demanda de consumo, ou seja, quanto mais eficaz for a sedução
de potenciais clientes, mais segura e próspera será a sociedade
de consumo, que se movimenta por fatores como a promoção da
novidade e o rebaixamento da rotina: Os mercados de consumo se superam em desmontar as rotinas
existentes e se apropriar antecipadamente da implantação e fi-
xação de outras. Os mesmos mercados, contudo, alcançam
efeito ainda mais profundo: para os membros de uma sociedade
de consumidores treinados de maneira adequada, toda e qual-quer rotina e tudo que se associe a um comportamento rotineiro
(monotonia, repetição) torna-se insustentável. O “tédio”, a au-
sência ou mesmo interrupção temporária do fluxo perpétuo de
novidades excitantes se transforma num espantalho odiado
pela sociedade de consumo.19
Assim, o “nunca estar entediado” é a medida de uma vida
de felicidade e sucesso, sendo que “a intensa atividade de con-
sumo é a rota principal, a estrada régia que conduz à vitória sobre
o tédio.”20 Isso, se por um lado promete felicidade, por outro,
conduz a um abismo de reiterada insatisfação e infelicidade
frente à volatilidade dos bens de consumo que se adquire, le-
vando a uma homogeneização aviltante à diversidade cultural, a
uma afronta à identidade individual e coletiva e à necessidade de
18 BAUMAN, Zygmunt. Vida para consumo: a transformação das pessoas em merca-doria. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008, p. 153-154. 19 BAUMAN, Zygmunt. Vida para consumo: a transformação das pessoas em merca-doria. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008, p. 164-165. 20 BAUMAN, Zygmunt. Vida para consumo: a transformação das pessoas em merca-doria. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008, p. 166.
_926________RJLB, Ano 3 (2017), nº 5
urgentemente se repensar tais questões para a preservação da es-
pécie, bem como da própria humanidade, especialmente se con-
siderado que os recursos naturais são finitos.
Para tanto, e dando sequência a essa linha de pensa-
mento, propõe-se refletir acerca da sustentabilidade e da neces-
sidade de uma (re)educação para o consumo em uma sociedade
que deve se manter plural.
2. SUSTENTABILIDADE E EDUCAÇÃO PARA O CON-
SUMO EM UMA SOCIEDADE MULTICULTURAL
Quando se fala em sustentabilidade e ou consumo sus-
tentável é importante, para evitar cacofonias, a exemplo do que
se fez no item anterior, que se precisem os conceitos e se deli-
mite o tema sob um ponto de partida plausível. E porque não
fazê-lo por meio de uma tentativa de definição de sustentabili-
dade e de consumo sustentável?
Antes, porém, esclarece-se que, na abordagem doutriná-
ria da temática em questão doutrina, encontram-se termos como
“consumo ético”, entendido este como aquele que observa a
procedência dos produtos e as condições sociais em que foram
fabricados, para que viabilizar sua escolha pelo consumidor; em
“consumo sustentável”, que interessa para este texto e tem a ver
com a escolha dos consumidores fundada no critério ambiental
menos lesivo, como parte do desenvolvimento sustentável; e em
“consumo responsável”, que se relaciona com a cidadania, com
um consumo que repense a relação entre o local e o global, o
individual e o coletivo, buscando reconciliar as questões sociais
e ambientais. Veja-se que não são sinônimos, mas que tem o
mesmo pano de fundo e ou a mesma finalidade, isto é, garantir
a preservação da diversidade para esta e para as futuras gerações.
Por sua vez, o consumismo amplamente debatido no item
anterior, seria um conjunto de comportamentos que levam ao
consumo indiscriminado, ao endividamento, a um estado de
RJLB, Ano 3 (2017), nº 5________927_
dependência, à degradação ambiental, à indiferença com relação
às consequências do consumo exacerbado, incluindo a gestão de
resíduos, o qual se pretende seja freado por meio de uma
(re)educação dos cidadãos/consumidores.
Mas o que se verifica na doutrina é que, muitas vezes,
referidos conceitos estão vinculados com a economia e a enge-
nharia, até mesmo porque é difícil separar o consumo das ativi-
dades de produção, inclusive industrial, assim como com o meio
ambiente. No entanto, é possível tratar da temática também bus-
cando suas bases na Sociologia, na Filosofia e na Antropologia,
entre outras áreas do conhecimento, ainda mais quando se pre-
tende vinculá-la à questão cultural.
Na primeira parte deste texto foi abordada a questão da
“cultura do consumo” em seu aspecto negativo e agora se pre-
tende tratar do consumo sustentável como uma forma positiva
de consumo, porque se questiona se o futuro da sociedade com-
porta o consumismo na forma como vem ocorrendo nas últimas
décadas, especialmente no que se refere ao esgotamento dos re-
cursos naturais e à degradação ambiental.
A preocupação e os debates acerca dos efeitos desse con-
sumo sobre o meio ambiente são constantes, inclusive no sentido
de buscar alternativas para haver uma produção limpa e um con-
sumo ambientalmente responsável, como referem Manzini e
Vezzoli21, até porque uma mudança de comportamento por parte
das pessoas terá implicações também em sua demanda social por
bem-estar, o que é e será complexo. Para isso, também a ecolo-
gia deverá ser uma aliada da economia, bem como outras áreas
do conhecimento, como referido anteriormente.
Assim, é pacífico na doutrina que o consumo sustentável
é aquele que não agride o meio ambiente, que respeita os recur-
sos naturais para garantir o suprimento das necessidades das
21 MANZINI, E.; VEZZOLLI, C. O desenvolvimento de produtos sustentáveis: os re-quisitos ambientais dos produtos industriais. São Paulo: Edusp, 2002.
_928________RJLB, Ano 3 (2017), nº 5
futuras gerações. Para Cooper22, o consumo sustentável implica
a adoção de “padrões de consumo através da compra e uso dos
bens e serviços que atendam às necessidades básicas das pessoas
em conjunto com a minimização da degradação ambiental”. Isso
significa, também, a necessidade de haver a redução de consumo
movido pelo ímpeto, pelo desejo de possuir por possuir.
A compulsão consumista foi objeto de estudo por Bau-
man, para quem “o código em que nossa 'política de vida' está
escrito deriva da pragmática do comprar.”23 Esse consumismo
diz respeito a uma identidade que o consumidor pretende de-
monstrar ou aderir, pois entende que pelo consumo ou por suas
posses ele pode melhor se expressar. Essa “identidade artificial”
buscada pelo consumidor, por sua vez, é cada vez mais homogê-
nea, espelho dos cidadãos norte-americanos, e não consegue re-
presentar a identidade territorial do cidadão.
Não é por nada que, de acordo com Ferguson, citado por
Bauman, a noção de desejo, que seria o spiritus movens da ati-
vidade consumista e que é capaz de conduzir a uma identidade
artificial, […] liga o consumo à auto-expressão, e as noções de gosto e discriminação. O indivíduo expressa a si mesmo através de
suas posses. Mas para a sociedade capitalista avançada, com-
prometida com a expansão continuada da produção, esse é um
quadro psicológico muito limitado, que, em última análise, dá
lugar a uma “economia” psíquica muito diferente. O querer
substitui o desejo como força motivadora do consumo.24
Assim, vige a cultura do consumo em detrimento das de-
mais, ensejando o desaparecimento das culturas tradicionais. O
sujeito acaba sendo representado ora como consumidor ora
como objeto e não mais como cidadão. Por isso, não é possível
22 COOPER, R. The Design Experience – The Role of Design and Designers in the 21 Century. Cornwall, Ashgate Publishing, 2002. 23 BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Tradução: Plínio Dentzien, Rio de Ja-neiro: Jorge Zahar Ed., 2001, p. 87. 24 BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Tradução: Plínio Dentzien, Rio de Ja-neiro: Jorge Zahar Ed., 2001, p. 89.
RJLB, Ano 3 (2017), nº 5________929_
falar de consumo fora do fenômeno da globalização, uma vez
que hoje é impossível pensar ou agir sem ter em conta as tendên-
cias hegemônicas da urbanização e da industrialização, que, in-
clusive, tem influenciado a cultura de diferentes povos. Os efei-
tos desse processo foram tão grandes que influenciaram o modo
de agir e de consumir das pessoas, tanto que Canclini refere que
da relação dos latino-americanos com os europeus foi possível
aprender a ser cidadãos e da intensa relação econômica e cultural
com os Estados Unidos essa cidadania foi reduzida a ser consu-
midor, inclusive no que se refere aos intercâmbios culturais.25
Há aqueles que festejam a ideia do pensamento único,
fruto do processo globalizatório, assim como o fim da diversi-
dade ideológica, com o que, contudo, não se pode concordar,
porque os processos de consumo são complexos, assim como as
identidades, e o consumo deve servir para pensar a própria cul-
tura, assim como a cultura tem o dever de pensar o consumo e
uma nova responsabilidade para evitar o consumismo exacer-
bado e atentatório à própria sustentabilidade humana como se
tem visto.
O consumismo exacerbado de produtos produzidos em
escala mundial acaba por mascarar o mosaico de culturas exis-
tentes no mundo, bem como desfavorece a interação entre elas,
já que homogeniza os comportamentos, o que impede de ver o
outro como alter. Chegou-se a tal ponto que, se analisada a so-
ciedade sob o aspecto do consumo, corre-se o risco de interpretá-
lo sob preposições estanques, que inviabilizam a compreensão
da multiculturalidade e da própria complexidade da sociedade.
O que se percebe nas novas gerações é que as identidades estão
mais organizadas em torno dos bens provenientes de outros lu-
gares, a exemplo dos de Hollywood, que se encontram em todos
os países do mundo, em detrimento dos símbolos histórico-
25 CANCLINI, Nestor García. Consumidores e Cidadãos: conflitos multiculturais da globalização. Tradução de Maurício Santana Dias. 5. ed. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2005, p. 13; 17.
_930________RJLB, Ano 3 (2017), nº 5
territoriais, da pátria, como outrora, de modo a ser construída por
meio do que se imagina sobre os outros do que sobre o que real-
mente é.
Por isso, insiste-se, os processos de consumo e consu-
mismo são complexos. Tanto que não se consegue explicar
como pessoas que mal dispõem do que comer diariamente fazem
festas e compram presentes no Natal, por exemplo, acumulando
dívidas que apertam ainda mais o famigerado orçamento mensal.
Para tentar entender tal situação, Canclini refere que “o consumo
é um processo em que os desejos se transformam em demandas
e em atos socialmente regulados.”26 Isso também foi objeto de
estudo por Bauman, como visto anteriormente.
Em razão da globalização, pode-se dizer que reina uma
cultura do efêmero, os objetos perderam a relação de fidelidade
com os territórios originários, sendo a cultura definida, então,
como um “processo de montagem multinacional, uma articula-
ção flexível de partes, uma colagem de traços que qualquer ci-
dadão de qualquer país, religião e ideologia pode ler e utilizar.”27
Nesse sentido, quando se trata do tema consumo associ-
ado ao multiculturalismo, ele está sendo analisado com metas
sustentáveis, pois as comunidades geralmente se estruturam so-
bre a interação com o meio, com o território e com os conheci-
mentos tradicionais. Por isso, o consumo sustentável aparece
como uma proposta que além de incentivar as inovações tecno-
lógicas e as mudanças nas escolhas individuais de consumo, en-
fatiza também as ações coletivas e as mudanças políticas, eco-
nômicas e institucionais, para fazer com que os padrões e os ní-
veis de consumo se tornem mais sustentáveis.
Dessa forma, busca incentivar o debate na esfera pública
26 CANCLINI, Nestor García. Consumidores e Cidadãos: conflitos multiculturais da globalização. Tradução de Maurício Santana Dias. 5. ed. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2005, p. 65. 27 CANCLINI, Nestor García. Consumidores e Cidadãos: conflitos multiculturais da globalização. Tradução de Maurício Santana Dias. 5. ed. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2005, p. 32.
RJLB, Ano 3 (2017), nº 5________931_
para a formulação e implementação de políticas públicas, preo-
cupando-se com o acesso e a distribuição dos recursos ambien-
tais de forma equitativa, ou seja, com justiça social e ambiental.
Para alguns autores, porém, talvez ele possa ser mais viável no
contexto local do que no cenário global, haja vista a diversidade
social.
Já a sustentabilidade tem como base o poder de uma na-
ção em prover seu próprio bem-estar e o das futuras gerações e,
por isso, a importância de se conscientizar para um consumo
ético, responsável, mormente dos recursos naturais, que devem
ter respeitados seus limites e períodos de regeneração. Para
tanto, é preciso investir em educação para o consumo sustentá-
vel, que contribua para obter um equilíbrio entre a satisfação
pessoal e a sustentabilidade planetária e para a eliminação das
desigualdades no acesso aos recursos naturais.
Uma educação voltada à sustentabilidade, mormente em
uma sociedade multicultural, deve iniciar nos lares, envolvendo,
inclusive, as crianças para que se possa reduzir a quantidade de
lixo gerado dentro de casa, para evitar a “produção, criação de
mais consumidores consumistas”, que compram não para satis-
fazer suas necessidades, mas desejos insaciáveis criados pelos
fornecedores e comercializadores de bens de consumo, utili-
zando-se, para tanto, dos meios de comunicação. Isso implica
aprender valores como solidariedade, respeito ao próximo, res-
ponsabilidade, cidadania e, para aqueles que são incapazes de
colocar em prática tais valores, uma reeducação voltada à sus-
tentabilidade.
Assim, o papel da escola não é de menor importância
nesse aspecto, onde deve ser incentivada a descoberta do im-
pacto das ações humanas no ambiente, por exemplo, onde po-
dem ser esclarecidas as diferenças e as consequências de um
consumo sustentável e do consumismo exacerbado, sua história
e reflexos para o futuro, bem como pensadas soluções para frear
o anseio consumista negativo.
_932________RJLB, Ano 3 (2017), nº 5
Nesse contexto, outro autor importante nesse cenário de
conscientização, seja para fins de educação, seja para fins de re-
educação para um consumo sustentável, que se entende seja pre-
mente, é a mídia, a qual, ao invés de incentivar o consumo, de-
veria buscar freá-lo conscientizando os consumidores acerca do
seu impacto negativo para esta e para as futuras gerações, vi-
sando tanto ao público infantil quanto ao adulto.
O consumo patológico deve, então, ser alterado para pa-
drões de consumo não voltados apenas para a satisfação de ne-
cessidades imediatistas, mas para a diversidade social, voltado a
beneficiar a relação do indivíduo com o meio. Para isso, também
o Estado, enquanto organismo legitimado, tem que fazer seu de-
ver de casa e regular o mercado. Este, por sua vez, também deve
se autorregular.
Nesse sentido, o consumidor também tem papel impor-
tante para a transformação do consumismo em consumo susten-
tável, já que dele depende a mudança de comportamento de um
nível individual para o coletivo, para o que urge a tomada de
consciência.
CONCLUSÃO
Rompendo com a continuidade que provavelmente é es-
perada quando se está encaminhando para o encerramento de um
texto acadêmico, cita-se uma história mitológica que pode bem
representar a celeuma que se quis mostrar neste texto. Tântalo
foi condenado a ficar um palmo distante de qualquer comida que
quisesse comer e qualquer bebida que quisesse beber, numa con-
denação eterna a passar fome e sede como castigo por ter tentado
roubar a ambrosia, comida dos deuses.
Talvez a atual sociedade do líquido-moderno, utilizando
a terminologia de Bauman, esteja vivenciando a maldição de
Tântalo, a insaciabilidade em consumir cada vez mais, desejo
esse alimentado na proporção da intangibilidade do objeto de
RJLB, Ano 3 (2017), nº 5________933_
consumo. E assim, condenados a passar “fome e sede de con-
sumo” principalmente em relação àquilo que está distante do po-
der aquisitivo de consumo.
Isso porque se passou da sociedade de produtores para
uma sociedade onde o consumo impera sobre a produção e as
relações sociais, antes sólidas, que se tornam cada vez mais lí-
quidas, pois, ao invés da solidez e segurança pretensamente pro-
piciadas pelo período moderno, atualmente, o transitório e o efê-
mero permeiam a sociedade líquida, cuja fluidez contrasta com
a estabilidade e a segurança de outrora.
Com tal mudança paradigmática, ganhou força a ideia de
que o “tédio” não pode ser tolerado, pela sua associação a um
estilo de vida fracassado numa sociedade na qual o consumo as-
sociado à quebra da rotina é sinal de sucesso. No entanto, urge
que se reconstrua tal pensamento no sentido das pessoas se cons-
cientizarem de que possuir e consumir certos objetos e praticar
determinados estilos de vida não são condições necessárias para
a famigerada felicidade; muito pelo contrário, pois o endivida-
mento das famílias se torna motivo de conflito e preocupação.
Nesse contexto, atualmente, impera a ânsia por consumir
sempre mais e mais rápido, descartando ainda mais rapidamente
o velho pela novidade. Um consumo/consumismo desenfreado
e sem consciência de si; daí Bauman defender a ideia de que na
sociedade líquida os indivíduos se tornam, ao mesmo tempo, os
produtores e promotores das mercadorias e a própria mercado-
ria. Porém, a busca por satisfazer desejos insaciáveis leva a uma
espécie de neurose coletiva na qual se perde a noção do que são
realmente as necessidades básicas de consumo em nome do im-
perativo do desejo por consumir mais e mais.
Assim, perceber esses mecanismos ocultos que estão en-
gendrados nas relações de consumo, tais como eles se configu-
ram na atualidade, é imprescindível para, voltando ao que foi
esposado no início do texto, reintroduzir a consciência no con-
sumo. A dualidade cartesiana do sujeito-objeto cede espaço à
_934________RJLB, Ano 3 (2017), nº 5
dualidade consumidor-mercadoria, sendo que é necessário
emancipar os atores-consumidores para que atuem corretamente
nos palcos do cenário-mercado de consumo.
Para isso, é necessária uma educação em valores comuns
a todas as comunidades, a exemplo da solidariedade, da respon-
sabilidade, da ética, a iniciar nos lares, a ser reforçada nas esco-
las e também ser objeto de pontuação pela mídia, que possui um
papel importante na formação dos consumidores dos séculos XX
e XXI, mas que tem sido utilizada pelos produtores de bens de
consumo somente para incentivar o consumismo.
Isso somente será possível quando as pressões e apelos
para o consumismo, explícitos e implícitos, cederem espaço à
liberdade consciente do consumidor que é educado para refletir
acerca da realidade que o cerca e que exige o cuidado com ques-
tões como a sustentabilidade. Eis um dos maiores desafios da
atual sociedade multicultural brasileira, que necessita se (re)edu-
car para mudar seus hábitos de consumo de modo a compreender
que consumir não é sinônimo de felicidade.
REFERÊNCIAS
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Tradução: Plínio
Dentzien, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001.
BAUMAN, Zygmunt. Vida para consumo: a transformação das
pessoas em mercadoria. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.,
2008.
CANCLINI, Nestor García. Consumidores e Cidadãos: confli-
tos multiculturais da globalização. Tradução de Maurício
RJLB, Ano 3 (2017), nº 5________935_
Santana Dias. 5. ed. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2005.
COOPER, R. The Design Experience – The Role of Design and
Designers in the 21 Century. Cornwall, Ashgate Pu-
blishing, 2002.
MANZINI, E.; VEZZOLLI, C. O desenvolvimento de produtos
sustentáveis: os requisitos ambientais dos produtos in-
dustriais. São Paulo: Edusp, 2002.
MORIN; Edgar; LE MOIGNE, Jean. A inteligência da comple-
xidade. São Paulo: Peirópolios, 2000.