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Do liberalismo clássico ao liberalismo pedagógico contemporâneo: uma
análise do fundamento histórico e seu alcance educacional.
Paulo Emílio de Assis Santana
UEM – Universidade Estadual de Maringá
Resumo O presente trabalho apresenta alguns elementos históricos, filosóficos e educacionais sobre o pensamento
liberal clássico procurando fazer a relação com aspectos pedagógicos contemporâneos. O autor busca nas
figuras de John Locke e Jean Jaques Rousseau os fundamentos necessários para o entendimento das raízes do
pensamento liberal, analisando cada um destes autores desde os fatos históricos mais importantes das suas
vidas até as suas principais propostas políticas e filosóficas. A partir destes aspectos o articulista faz uma
breve análise crítica sobre algumas manifestações liberais presentes na prática pedagógica contemporânea, e
das relações existentes com os fundamentos estabelecidos por aqueles autores clássicos. Ao final, apresenta
algumas estratégias práticas para que os docentes articulem uma forma de fazer frente ao pensamento
hegemônico liberal a partir da prática pedagógica desenvolvida por eles no contexto escolar.
Palavras-chave: liberalismo, história, pensamento educacional, prática pedagógica
Introdução
Temos a compreensão que a educação, em sua essência, deve ser entendida como
uma ciência que tem tanto em seus fundamentos históricos como nos filosóficos as
diretrizes necessárias para o seu desenvolvimento. Sem tais diretrizes, a compreensão
sobre os desdobramentos sociais e políticos que têm como base a prática educativa será
incompleta e, portanto, destituída da direção necessária para a correta interpretação dos
fenômenos educacionais em sua correta perspectiva.
Nesse sentido, quantos aos interesses do presente artigo, a história e a filosofia
oferecerão o direcionamento necessário para o entendimento objetivo da filosofia liberal
radical, bem como dos desdobramentos presentes na prática educativa contemporânea. O
surgimento histórico da filosofia liberal e os fundamentos políticos que se constituíram em
elementos norteadores para uma nova forma de educação contrária à estrutura educacional
que perdurou até o século XVIII, serão de fundamental importância para a constituição da
sociedade capitalista desde o seu início até aquele que se constitui nos termos dos dias
atuais.
Em virtude das exigências metodológicas que giram em torno deste artigo, não nos
deteremos de forma aprofundada na amplitude teórica esboçada pelos teóricos escolhidos
para nos fundamentar. Entretanto, temos a convicção que os excertos selecionados aqui,
nos fornecerão as sementes históricas, filosóficas e educacionais necessárias para a
compreensão do alcance que os fundamentos radicais liberais têm até os dias atuais.
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Na intenção de definir as relações do pensamento liberal com as questões
educacionais, procuraremos delinear os elementos históricos específicos que caracterizam
o fundamento do liberalismo tanto em sua vertente clássica quanto na pedagógica. Para
isso tomaremos como ponto de partida alguns excertos de dois teóricos clássicos do
liberalismo que são: John Locke e Jean Jaques Rousseau. Ao mesmo tempo procuraremos
apontar alguns desdobramentos do pensamento liberal presentes na prática pedagógica
hodierna. Na parte final deste artigo deixaremos alguns encaminhamentos teóricos e
políticos visando futuros estudos sobre a temática discutida aqui.
1. John Locke: vida, alguns fundamentos teóricos e concepção educacional
Devemos entender que as idéias liberais têm o seu embrião no pensamento
filosófico de John Locke (1632-1704), que, a partir de seu pensamento político e filosófico,
vai influenciar de maneira decisiva a maioria dos pensadores políticos dos séculos XVIII e
XIX. Torna-se evidente que para a compreensão do pensamento liberal de Locke
precisamos nos deter de maneira breve num rápido histórico desse filósofo e político, que,
de forma perseverante, lutou contra o autoritarismo do soberano inglês de seu tempo.
1.1 Um breve relato das condições históricas e políticas que forjaram o
pensamento teórico de John Locke
O Liberalismo econômico como teoria hegemônica caracterizou-se, inicialmente,
como uma estratégia filosófica e política fundamental para legitimar as práticas verificadas
na Revolução Industrial burguesa na segunda metade do século XVIII. A questão essencial
para o pensamento burguês seria estabelecer uma filosofia política que abarcasse a
totalidade da sociedade européia da época. Segundo Dewey o “uso das palavras liberal e
liberalismo para denotar uma particular filosofia social não surgem senão na primeira
década do século dezenove” (DEWEY, 1970, p.17). Ou seja, trinta anos após o início da
Revolução Industrial é que se vai postular uma teoria política sobre aquilo que já estava
materializado na sociedade, através dos desdobramentos que o capital havia produzindo
nela.
Como fruto de sua época, Locke vivenciou de maneira ativa os conflitos políticos
da Inglaterra. Filho de burgueses comerciantes, da cidade de Bistrol, presenciou quando
criança a revolução puritana de 1648, naquele país. Certamente, por perceber o ativismo
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político-religioso do seu pai que se alistou no exército do parlamento, Locke foi
tremendamente influenciado pela causa histórica do Parlamento inglês. Depois de estudar
em Oxford, e de sofrer grande influência filosófica e religiosa de John Owen (1616-1683),
tornou-se um combatente teórico das idéias filosóficas de Descartes (1596-1650) e
trabalhou como médico particular de Antony Ashley Cooper (1621-1683). Cooper, que se
transformaria no primeiro Lorde de Shafsterbury, atribuiu ao jovem médico funções de
assessoria política, encaminhado Locke em direção aos círculos intelectuais e políticos da
época.
A dupla ascensão política de Cooper e Locke estava relacionada aos interesses do
Parlamento inglês, que de maneira sistemática, opunha-se às medidas políticas adotadas
por Carlos II (1630-1685). Os conflitos históricos, portanto, entre o Parlamento inglês e o
Soberano formaram o contexto político para o surgimento das teorias políticas de Locke.
Para ele, um dos alvos políticos centrais de qualquer ser humano se constituía em ser livre
do domínio do soberano, e, portanto, nada mais revolucionário para o ambiente onde o
mesmo travou as suas lutas políticas mais agudas.
Com os acontecimentos que deram início à Revolução Gloriosa ou vitória dos
Comuns, contra Jaime II em 1688, sobem ao trono Guilherme de Orange e sua esposa
Maria, dando início a um novo período monárquico na Inglaterra, definindo-se aquele
sistema como uma monarquia burguesa, já que a mesma estava plenamente submetida aos
interesses da burguesia inglesa emergente da época. À luz dos acontecimentos, Locke
retorna no mesmo navio de Guilherme de Orange e sua esposa, em 1689, para a Inglaterra
e dois livros seus, dos mais importantes, são publicados entre 1689 e 1690 os "Dois
tratados sobre o governo Civil”, além da edição do "Ensaio sobre o Entendimento
Humano".
Podemos perceber nesse breve relato da história de vida de Locke como que e tais
fatos foram essenciais para definir o pensamento filosófico e político daquele pensador. A
ação política e histórica serão os elementos práticos necessários à constituição dos seus
escritos em torno do confronto contra o autoritarismo do soberano de sua época. A
fundamentação teórica que Locke oferecerá ao liberalismo posterior foi certamente
determinada pelas ações práticas e políticas de. Passemos agora a uma breve análise de
alguns dos elementos teóricos, considerados por nós como basilares para o entendimento
do pensamento liberal como um todo.
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1.2 John Locke e a liberdade natural do indivíduo como ponto de partida.
A defesa da liberdade natural do indivíduo diante do absolutismo estatal da época
de Locke terá um caráter eminentemente revolucionário, já que o soberano não poderia
segundo este pensador, dispor de algo que não lhe pertencia. A filosofia liberal deixava
evidente que o indivíduo era dono da sua própria vida, que em essência, constituía-se num
direito natural em sua base existencial.
Os direitos individuais dos cidadãos deveriam ser preservados, não cabendo ao
Governo nenhuma ingerência. Para Locke, “os governos são instituídos para proteger os
direitos individuais, que preexistem à organização política das relações sociais” (DEWEY,
1970 p. 17). As palavras do pensador inglês são elucidativas quanto a isso ao afirmar que,
O motivo que leva os homens a entrarem em sociedade é a preservação da
propriedade; e o objetivo para o qual escolhem e autorizam um poder legislativo
é tornar possível a existência de leis e regras estabelecidas como guarda e
proteção às propriedades de todos os membros da sociedade, a fim de limitar o
poder e moderar o domínio de cada membro da comunidade (LOCKE, 1978, p.
83).
Na conformação do novo Estado burguês que surgiria no século XVIII, a partir da
Revolução Francesa, as idéias de Locke postuladas ainda em meados do século XVII,
formaram o fundamento necessário para o seu estabelecimento. Conforme afirma Cunha, o
novo sistema social fundado na propriedade e no direito natural dos seres humanos, na
visão de Locke ultrapassaria de longe a velha ordem monárquica. Diz ela,
Longe de crer, como Hobes que é a sociedade que cria os direitos, Locke acha
que a sociedade foi instituída para defender direitos que moralmente lhe pré-
existem. Tais direitos são: o de propriedade – justificado pelo trabalho; o de
autoridade de pai de família e o de liberdade pessoal – que implica na liberdade de culto. Não poderia nesse sistema haver religião de Estado. O direito de
legitima defesa é da mesma forma um direito natural. É este direito o único que
o pacto social vai transferir para o Estado, posto que, em uma sociedade
organizada, o cidadão não faz justiça por si próprio, ou seja, pelas próprias mãos
(CUNHA, 1986, p.19).
Apesar de as idéias de Locke terem primariamente a finalidade de garantir a
individualidade do ser humano diante do Estado, que, em sua época, agia de maneira
déspota com relação às questões religiosas, o legado deixado por este filósofo aos futuros
pensadores liberais foi útil no sentido de formular as idéias básicas do sistema capitalista,
como a propriedade privada e a idéia da livre iniciativa. Mais uma vez o pensamento de
Dewey sobre a contribuição de Locke é importante, diz ele, “o liberalismo de Locke legou
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ao pensamento social posterior uma rígida doutrina de direitos naturais inerentes aos
indivíduos, independente da organização social” (1970, p.18).
Quando aborda a questão da escravidão, no capítulo IV do livro, Dois Tratados
sobre o Governo, Locke é enfático quanto à necessidade do desenvolvimento da liberdade
natural necessária ao indivíduo, como um pressuposto político de confronto com o poder
estabelecido.
A liberdade natural do homem consiste em estar livre de qualquer poder superior
sobre a Terra e em não estar submetido à vontade ou à autoridade legislativa do
homem, mas ter por regra apenas a lei da natureza. A liberdade do homem em
sociedade consiste em são estar submetido a nenhum outro poder legislativo
senão aquele estabelecido no corpo político mediante consentimento, nem sob o domínio de qualquer vontade ou sob a restrição de qualquer lei afora as que
promulgar o legislativo, segundo o encargo a este confiado. (LOCKE, 1998, p.
402).
1.3 John Locke e a questão da propriedade: um dos fundamentos do liberalismo
Fruto do ambiente religioso vivenciado em sua época, Locke procurou estabelecer
as bases para a defesa da propriedade do indivíduo em relação ao Estado a partir da
concessão que Deus fez ao homem desde Adão. Afirma ele,
Não me contentarei em responder que, se é difícil formular a propriedade
partindo da suposição que Deus deu o mundo a Adão e a sua posteridade comum, é impossível que qualquer homem que não um monarca universal
pudesse ter qualquer propriedade baseando-se na suposição de que Deus deu o
mundo a Adão e seus herdeiros em sucessão, com exclusão de todo o resto de
sua posteridade. Todavia esforçar-me-ei para mostrar como os homens podem
chegar a ter uma propriedade em várias partes daquilo que Deus deu à
Humanidade em comum, e tal sem qualquer pacto expresso entre todos os
membros da comunidade (LOCKE, 1978, p.45).
Locke enxergava a propriedade como um bem amoral, ou seja, destituído de uma
qualidade política em si, mas como um direito que Deus em sua soberania havia concedido
a todos os seres humanos. Em sua concepção, havia nas pessoas uma propensão social e
natural, quase como um senso de obrigação, a possuir sua própria existência, e esta como
um direito individual básico transferido do Todo Poderoso aos seres mortais. É nessa
perspectiva que ele vaticina,
Deus que deu o mundo aos homens em comum, também lhes deu a razão para que o utilizassem para maior proveito da vida e da própria conveniência.
Concedeu-se a terra e tudo quanto contém ao homem para sustento e conforto da
sua existência. [...] Embora a terra e todas as criaturas inferiores sejam comuns a
todos os homens, cada homem tem uma propriedade em sua própria pessoa; e
esta ninguém tem qualquer direito se não ele mesmo. O trabalho do seu corpo e a
obra das suas mãos pode dizer-se, são propriamente dele (LOCKE, 1978, p. 45).
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O Estado não poderia, portanto, estabelecer nenhuma restrição legal a este aspecto
da natureza da pessoa. Caso o fizesse estaria se insurgindo a uma instituição divina. O que
o mesmo deveria fazer segundo Locke, era prover os meios necessários para que o direito à
propriedade do cidadão fosse legalmente protegido e naturalmente exercido. É nessa
direção que ele defende a função do magistrado civil em relação às propriedades dos
indivíduos no interior da sociedade.
Parece-me que a comunidade é uma sociedade de homens constituída apenas
para preservação e melhoria dos bens civis de seus membros. Denomino de bens
civis a vida, a liberdade, a saúde física e a libertação da dor, e a posse de coisas
externas tais como terra, dinheiro, móveis, etc. É dever do magistrado civil,
determinando imparcialmente leis uniformes, preservar e assegurar para o povo em geral e para cada súdito em particular a posse justa dessas coisas que
pertencem a esta vida. Se alguém pretende violar tais leis, opondo-se à justiça e
ao direito, tal pretensão deve ser reprimida pelo medo do castigo, que consiste na
privação ou diminuição dos bens civis que de outro modo podia ou devia
usufruir (LOCKE, 1978, p. 5).
Para Bianchetti,
Uma derivação desta concepção de direito de propriedade é que este se converte
em um pressuposto originado na natureza e, portanto, direito de propriedade e
justiça se consideram sinônimos, antes da existência do contrato político. Se a
propriedade individual é a base do que é justo (já que não supõe relação de
conflito) a justiça da propriedade nunca pode ser posta em discussão (2001, pp.
50 e 51).
Está estabelecido, dessa forma, um dos fundamentos da filosofia liberal que
dominará os países centrais da Europa nos séculos seguintes. A defesa da propriedade do
corpo humano como algo que apenas lhe pertence, será o ponto de destaque original para a
nova ordem social que será instalada na Europa a partir das Revoluções Industrial e
Francesa. O indivíduo será teoricamente livre, para comprar ou vender a capacidade de
trabalho do corpo das pessoas. Esta liberdade intrínseca do indivíduo definirá a forma
como os seres humanos se relacionarão socialmente nos primórdios do capitalismo.
1.4 John Locke e a questão da educação a partir dos pressupostos liberais
Não podemos concluir a análise desse expoente do liberalismo histórico, sem nos
determos um pouco em sua concepção educacional, e, mais precisamente, nas relações que
podemos estabelecer entre o seu pensamento filosófico liberal e os fundamentos da
moderna educação burguesa, que será estabelecida no início do século XIX.
Seu ponto de vista era de que a educação deveria ter fins práticos, de preparar o
homem para a vida, e não para o deleite intelectual e para o êxito universitário. Como
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legado na área educacional, Locke deixou para a sociedade de seu tempo e para o futuro
pensamento educacional dois livros que podem ser considerados essenciais quanto à forma
liberal de se pensar a educação. São os seguintes: Thoughts concerning Education
(Pensamentos sobre a Educação) e Conduct of the Understanding (Condução do
Conhecimento). O primeiro encontra-se em processo de tradução para o português através
do trabalho dos professores Avelino da Rosa de Oliveira e Gomercindo Ghiggi, enquanto
que do segundo é desconhecida alguma tradução para o nosso vernáculo. Ambos os livros,
contudo, têm lugar de destaque na história da filosofia educacional, enfatizando neles o
valor da experiência, como elemento central no processo de aprendizado das crianças.
No sentido de objetivar a nossa análise, nos deteremos no livro Pensamentos sobre
a Educação que foi fruto das cartas escritas por Locke quando se encontrava exilado na
Holanda. Foi escrito a pedido do Senhor e Senhora Clarke que tinham o desejo de tornar o
seu único filho um excelente cavalheiro. Tais cartas de recomendação sobre a educação do
filho dos Clarke se transformaram num referencial para a época, fazendo com que, no ano
de 1693, a primeira edição do referido livro fosse publicada como a filosofia lockeana de
educação para todos os indivíduos, que politicamente defendiam o liberalismo em relação
ao domínio do soberano.
Em seu âmbito mais amplo, o texto em foco trata-se de uma obra que reflete a
constante preocupação de Locke com o desenvolvimento do caráter moral, mas sem perder
de vista a força da mente para a formação intelectual das crianças.
Depois de tomar as devidas precauções para conservar o corpo forte e vigoroso,
para que possa ser obedecer e executar as ordens do espírito, a próxima e
principal tarefa seguinte é a de tornar reto o espírito para que esteja sempre
disposto e não consentir a nada que não seja conforme com a dignidade e
excelência de uma criatura racional. (LOCKE,1999, p. 159).
No sentido de apresentar um projeto de educação para o futuro homem liberal,
Locke enfatiza o poder da construção moral do indivíduo como aspecto extremamente
necessário para a sociedade, afirma ele:
Se o que eu disse no início deste discurso for verdadeiro, como não duvido que
seja, a saber: que a diferença encontrada nas maneiras e habilidades dos homens
é devida mais a sua educação do que a qualquer outra coisa, temos razões para
concluir que há de ser tomado muito cuidado em formar as mentes das crianças e
dar-lhes cedo aquele tempero que influenciará toda a sua vida posterior. Pois que
quando eles fizerem o bem ou o mal, o mérito ou a culpa será lá assentada; e quando qualquer coisa for feita impropriamente, aplicar-se-lhes-à o dito comum
de que tal é devido a sua criação. (LOCKE, 2000, p. 165).
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A concepção de Locke sobre a educação se constituirá em uma marca indelével
para o processo educacional da sociedade burguesa dos séculos posteriores. Isso se deve ao
fato de defender, segundo Monroe (1979, p. 239), a educação disciplinar com base em três
fundamentos básicos: o físico, o moral e o intelectual. O vigor do corpo, a virtude e o
saber, demonstrarão que “os objetivos da educação são como diz em outra passagem de
sua obra, virtude, sabedoria, civilidade e instrução, nesta ordem de importância”
(MONROE, 1979, p. 239). A idéia de que um corpo saudável como fundamento inevitável
para um intelecto produtivo, será, para Locke a fonte do sucesso educacional. A criança
deverá possuir uma boa educação física, uma alimentação adequada e dura disciplina nos
compromissos com o cuidado com o corpo. A defesa que Locke faz da educação física
como fundamento para a virtude e a formação acadêmica é tão intensa que os trinta
primeiros parágrafos do livro Pensamentos Acerca da Educação são dedicados a este
fundamento (MONROE, 1979).
Locke defende a perspectiva de que o processo educativo não poderia ser feito de
forma impositiva, pelo contrário, às crianças não deveriam ser impostas obrigações
relacionadas ao aprendizado para que elas não se desgostassem da educação formal. É
seguindo este pensamento que o filósofo inglês afirma:
Observamos anteriormente que a variedade e a liberdade eram mais o que entusiasmava e seduzia as crianças em suas brincadeiras; portanto, os estudos, ou
qualquer outra coisa que desejássemos que aprendessem não lhes deveriam ser
impostos como obrigação. Os pais, os tutores e os professores tendem a esquecer
esse fato, e a impaciência em mantê-las ocupadas em ações que sejam
inconvenientes não os deixa usar quaisquer artifícios para persuadi-las.
(LOCKE, 2004, p. 228, itálicos nossos).
Quanto aos objetivos deste trabalho que é perceber as relações do pensamento
educacional do autor em destaque com os elementos presentes na formação pedagógica da
atualidade, voltada para a competição e para o individualismo, uma das suas asseverações
mais contundentes pode ser encontrada quando o mesmo defende o pressuposto da
liberalidade que as crianças devem ter nas suas relações com as outras crianças. Afirma
Locke:
Quanto ao ter e à posse das coisas, ensinai-os a partilhar fácil e livremente com
seus amigos o que têm e deixai-os descobrir pela experiência que o mais liberal sempre tem mais fartura, contando ainda com estima e distinção; e eles
rapidamente aprenderão a praticá-la. Imagino que isto tornará os irmãos e irmãs
mais gentis e corteses entre si e, conseqüentemente, para com os outros do que
vinte regras sobre boas maneiras com as quais as crianças geralmente são
sobrecarregadas e com as quais ficam perplexas. Sendo a inveja e o desejo de ter
sob nossa posse e domínio mais do que necessitamos a raiz de todo mal, cedo
devem ser cuidadosamente extirpados e deve ser implantada a qualidade
contrária da disponibilidade de partilhar com os outros. Isto deve ser encorajado
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através da confiança e de grande distinção, bem como pelo constante cuidado de
que ele não perca qualquer coisa com sua liberalidade. Fazei que todas as
recompensas que ele ofereça através desta liberdade sejam sempre
retribuídas, e com juros; e fazei-o perceber sensivelmente que a gentileza
que demonstra para com outros não é mau negócio para si, mas que lhe traz
um retorno em gentileza tanto daqueles que a recebem quanto dos que
vêem. Fazei disto uma competição entre os filhos que, assim, deverão
superar uns aos outros. Por estes meios, através de uma prática constante,
tendo os filhos tornado simples partilhar o que têm, esta boa disposição poderá
estabelecer-se como hábito e eles poderão sentir prazer e orgulhar-se de serem
gentis, liberais e corteses em relação aos outros (LOCKE, 2004, p. 225, grifos nossos e itálicos do autor).
Para Locke a liberalidade individual das crianças deveria ser encarada como um
negócio que renderia a elas o respeito e a gentileza das outras crianças. Dessa forma, ao
assumirem este pensamento, elas estariam participando de um processo competitivo no
qual superariam uns aos outros no decorrer da vida. Nesta mentalidade ficam evidentes os
princípios liberais da concorrência e da superação dos mais fracos diante das oportunidades
da vida. Assim, sem saberem, as crianças estarão se comportando conforme o modelo de
sociedade que seria estabelecida na base do sistema capitalista, que nos séculos seguintes a
Locke seria estabelecido como hegemônico até os dias atuais.
O filósofo inglês entendia que quando as crianças eram despertadas pela
curiosidade e metodologia dos educadores, elas mesmas iriam desejar o aprendizado. A
proposta de encarar tal processo de maneira recreativa e livre proporcionará uma
metodologia criativa e livre, sem imposições contrárias à livre natureza dos seres humanos.
Quando ele (o filho dos Clarke) puder falar, será hora de começar a aprender a ler. Com relação a este ponto, entretanto, concedei-me aqui a oportunidade de
novamente inculcar algo que facilmente tende a ser esquecido, a saber, que é
preciso muito cuidado para que a leitura nunca seja tornada uma obrigação, nem
que ele a veja como tarefa. Conforme já afirmei, amamos naturalmente a
liberdade, desde o berço, e temos, portanto, aversão a muitas coisas, não por
outra razão, senão porque nos são impostas. Sempre imaginei que o aprendizado
poderia ser transformado em brinquedo e recreação para as crianças e que elas
poderiam ser levadas a desejar ser ensinadas, uma vez que lhes fosse proposto
como algo que traz honra, confiança, prazer e recreação, ou como recompensa
por fazerem outra coisa, e ainda, se não fossem jamais censuradas ou corrigidas
por negligenciá-lo (LOCKE, 2005, p. 197, itálicos do autor).
Percebe-se nas citações acima como Locke valorizava de maneira exacerbada as
metodologias em detrimento dos conteúdos que deveriam ser aprendidos no processo
educativo. A filosofia liberal terá a partir das suas idéias uma caracterização extremamente
voltada para o „como aprender‟ deixando de lado o „que aprender‟. A visão liberal de
educação não se centrará mais na figura do professor, mas nas necessidades do educando,
como aprendiz que precisa ser valorizado e respeitado, conforme o seu ritmo de
aprendizagem, sem imposições autoritárias dos educadores. A metodologia passará a ser a
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grande arma dos educadores no sentido de despertar a capacidade de aprendizado do aluno.
Isto fica evidente quando Locke esclarece a função da metodologia preconizada por ele:
Quando, através desses métodos brandos, ele começar a ser capaz de ler, algum
livro fácil e agradável, adequado a sua capacidade, deve ser posto em suas
mãos, de tal modo que a diversão que encontre possa estimulá-lo e
recompensar-lhe o esforço da leitura, e que não seja algo que possa encher-lhe a
cabeça com ilusões perfeitamente inúteis nem deitar os princípios do vício e da tolice (LOCKE, 2005, p. 186, itálicos nossos).
Entendemos, portanto, que, os argumentos acima esposados, são suficientes no
sentido de clarificar o pensamento de John Locke como uma das sementes essenciais para
as teorias neoliberais que assumem o controle da atual sociedade. O discurso do
individualismo pragmático tão presente nos vários aspectos sociais hodiernos, e
fundamentalmente, na questão educacional, demonstra as suas evidentes relações com as
idéias do pensador inglês do século XVII. Em nada difere, em essência, daquele, o discurso
que o neoliberalismo faz hoje em defesa da propriedade privada como elemento de
segregação social. Ou seja, a transformação do direito em um privilégio adquirido a partir
da superação dos mais fortes sobre os mais desfavorecidos financeiramente.
A seguir faremos uma breve análise de alguns aspectos relacionados à vida de
Rousseau como sendo, em nossa concepção, aquele pensador que contribuiu de forma
decisiva com a formação do Estado burguês e da teoria pedagógica de caráter liberal.
2. Jean Jaques Rousseau: as contradições da vida e a defesa da liberdade
Nascido em Genebra, Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) teve uma infância
conturbada em virtude do falecimento prematuro de sua mãe, Suzanne Bernard e da vida
intempestiva do seu pai, Isaac Rousseau. Aos sete anos de idade, alimentava-se
intelectualmente das leituras saudosas deixadas pelos romances escritos por sua mãe e pela
biblioteca deixada pelo pai de Suzanne. Entretanto, um conflito pessoal vivido pelo seu pai
com certo Gauthier, fez com que este abandonasse Genebra obrigando a viver em exílio
forçado e distante da educação do filho. Rousseau passa a viver uma adolescência nômade,
sendo enviado de um lugar para o outro, procurando de todas as formas encontrar meios
para enfrentar a luta pela sobrevivência, sendo que em uma delas abraçou a fé católica em
troca de abrigo, no Asilo do Espírito Santo em Turim, na Itália. O instinto da sobrevivência
fez o jovem Rousseau suportar os aspectos religiosos contrários aqueles ensinados pela sua
mãe em Genebra.
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Um dos aspectos mais criticados por aqueles que conhecem a vida de Rousseau um
pouco mais profundamente relaciona-se à sua vida familiar. Quando chega a Paris,
disposto a viver na cidade e desenvolver ali sua carreira de músico profissional, sem muito
sucesso, enamora-se de Thérèse Levasseur, com quem casa-se e tem cinco filhos, que
foram entregues por Rousseau para serem criados em orfanatos, com a desculpa de que ele,
o pai, era doente e sem condições financeiras suficientes para sustentá-los. Esta atitude
revelava a contradição do caráter do filósofo genebrino, que arvorou a escrever sobre a
educação infantil, mas que, de maneira irresponsável, procriava para internatos.
Certamente, o fato de ter vivido parte da infância e toda adolescência sem a segurança de
uma família emocionalmente estabilizada, pode ter sido uma das causas gerais para este
tipo de contradição educacional na vida de Rousseau.
Entretanto, para compreendermos o desenvolvimento intelectual do homem
Rousseau precisamos nos remeter ao ano de 1749, quando o mesmo sente-se desafiado a
participar de um concurso promovido pela Academia de Dijon para discorrer sobre o
seguinte tema: “Se o progresso das ciências e das artes contribuiu para corromper ou
apurar os costumes”. Propõe-se dessa forma, a responder negativamente à questão,
demonstrando de forma profunda como que o progresso científico contribuiu para o
aumento das desigualdades entre os seres humanos. É desse primeiro texto produzido por
Rousseau que surge o Discurso Sobre a Origem da Desigualdade, e também tem início a
sua carreira como filósofo, amante da liberdade natural dos seres humanos e de teórico
vinculado à Economia Política da classe burguesa, que ainda nesta época não tinha tomado
o poder de forma violenta como o fez no ano de 1789.
Os dois principais escritos de Rousseau foram publicados em 1762: O Contrato
Social e Emílio, ambos considerados livros subversivos pelas autoridades da época. Depois
de publicados Rousseau foi obrigado a sair da França antes que fosse preso. As autoridades
da França e a opinião pública estavam contra o filósofo de Genebra e este se refugia na
Prússia até 1765, quando tem que sair fugido mais uma vez em virtude da perseguição dos
protestantes daquela cidade, que entendiam a presença de Rousseau ali um problema
religioso irreparável, em virtude do histórico inconseqüente do filósofo. Vai para a
Inglaterra a convite de David Hume (1711-1776), onde tem um bom período de
tranqüilidade até a chegada de uma carta escrita por Frederico II (1712-1786), onde
criticava de forma irônica a sua conduta moral por onde passava. Convivendo com delírios
de perseguição mental, imaginado haver contra ele um grande complô internacional,
Rousseau se indispõe contra Hume saindo da Inglaterra e voltando para a França, em 1770,
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onde casa-se com aquela que fora a sua amante e mãe dos seus cinco filhos Thérèse
Levasseur. Ali permanece lutando contra seus inimigos imaginários e suas alucinações. Os
últimos dois anos de sua vida foram tranqüilos em ralação aos sintomas psicóticos de
perseguição, escrevendo de forma serena e dedicada a sua última obra, que pelo nome
resume de forma clara a vida do romancista Rousseau: Devaneios de um Caminhante
Solitário. No dia 2 de julho de 1778, Rousseau morre na cidade de Ermenonville e é
enterrado na ilha dos Choupos.
Apesar de discordar do pensamento filosófico de Locke em alguns aspectos como a
questão do exagero lockeano sobre o individualismo do ser humano, Rousseau soube
aproveitar as formulações teóricas do filósofo inglês no que diz respeito à defesa da pessoa
livre em sua relação ao Estado e à sociedade. Para ele a liberdade e o contrato social eram
os elementos fundantes da existência humana, e dessa forma entendida como direito e
dever. Em seus escritos, demonstra que a única base legal para uma comunidade viver em
plena liberdade é o contrato social, que os indivíduos livremente fazem entre si. A
liberdade, então, em sua concepção, se constituía no fundamento definitivo que qualificava
o ser humano, sendo assim um direito inalienável e exigência essencial da própria natureza
espiritual e social do homem.
Um dos traços mais significativos da teoria de Rousseau é a sua praticidade para
que os seres humanos possam alcançar a felicidade, tanto no que se refere ao indivíduo
quanto no que diz respeito à sociedade. O caminho para a felicidade passa por um contrato
racional e livre que os seres humanos fazem entre si, na tentativa de construírem um
mundo diferente, pleno de justiça e distante das desigualdades. Por outro lado o homem
que constituirá esse tipo de sociedade deverá ser educado conforme os ditames da lógica
natural, para que dessa forma possa contribuir significativamente com aquela sociedade
por ele idealizada. Para traduzir a sua perspectiva de felicidade no âmbito da sociedade,
escreve Do Contrato Social, conhecido como Contrato Social, e para apresentar o seu
modelo de homem para a sociedade do Contrato escreve Emílio ou Da Educação,
conhecido popularmente apenas como Emílio, onde sistematiza o seu pensamento
pedagógico. Assim,
A idéia central de Rousseau é uma e a mesma, tanto em sua pedagogia como em
sua política. Trata-se de um problema delineado pela razão, enfocado
teoricamente a partir do ponto de vista quanto às finalidades. E assim é como no
Contrato Social ele intenta estabelecer as condições de uma sociedade que quer
regular-se segundo as exigências da razão, e o mais perto possível do ideal, em
Emílio apresenta o ideal de homem racional para o qual deve oferecer toda a
educação: o homem da natureza, que supõe uma formação centrada
exclusivamente na constituição da natureza humana (ZULUAGA, 1972, p.295).
13
A seguir, portanto, passaremos à análise das principais idéias discutidas por
Rousseau no Contrato Social, para depois nos debruçarmos sobre o Emílio e assim
compreendermos as relações políticas e pedagógicas do pensamento filosófico do
iluminista de Genebra com o pensamento liberal.
2.1 A legitimidade política do contrato social entre os indivíduos: uma associação
fundada na liberdade.
Como ponto de partida argumentativo estabelecido por Rousseau no qual defende a
liberdade natural dos seres humanos como aspecto decisivo da sua plena humanidade o
autor abre seu primeiro capítulo do livro Do Contrato Social, com as seguintes palavras: “o
homem nasce livre, e por toda a parte encontra ferros” (1978, p. 22). Parece que a idéia
central do filósofo é demonstrar como que a liberdade natural dos seres humanos é
impedida pelas prerrogativas sociais. A condição natural de liberdade irrestrita dos
impulsos humanos é cerceada pelos impedimentos sociais.
Em defesa da liberdade humana e em confronto político e aberto contra o
pensamento absolutista francês, Rousseau reafirma que, “quando um povo é obrigado a
obedecer e o faz, age acertadamente; assim que pode sacudir esse jugo e o faz, age melhor
ainda, porque, recuperando a liberdade pelo mesmo direito por que lhe arrebataram, ou tem
ele o direito de retomá-la ou não o tinham de subtraí-la” (1978, p. 22). Para ele os seres
humanos possuíam uma liberdade natural comum que deveria ser preservada a qualquer
custo e esta seria conseqüência da natureza intrínseca da humanidade. É nesse sentido que
afirma:
Essa liberdade comum é conseqüência da natureza do homem. Sua primeira lei
consiste em zelar pela própria conservação, seus primeiros cuidados são aqueles
que se deve a si mesmo, e, assim que alcança a idade da razão, sendo o único
juiz dos meios adequados para conservar-se, torna-se, por isso, senhor de si
(ROUSSEAU, 1978, p. 23).
Vale à pena pontuar que Rousseau não defende a liberdade para manter os seres
humanos afastados dos ditames da soberania absolutista francesa e reforçar o
individualismo traçado por Locke. Sua defesa da necessidade de manutenção da natureza
livre dos indivíduos tem como objetivo a sua argumentação da criação do contrato social.
Em sua concepção, a criação de um pacto social entre os homens e construído por eles
14
mesmos, seria estabelecido com base na liberdade que cada um deles tem no âmbito da
natureza.
A liberdade, portanto, deve ser advogada como pré-requisito para o contrato social,
e é através dele que a sociedade é organizada. Para Rousseau, era através do pacto social
que os próprios homens subsistiriam, buscando assim a auto-conservação. Na sua forma de
ver a sociedade, esta seria constituída a partir de um somatório de forças, “sendo, porém, a
força e a liberdade de cada indivíduo os instrumentos primordiais de sua conservação”
(1978, p. 32).
Ao associar mais uma vez a liberdade como prerrogativa fundamental para a
constituição do Estado burguês fundado no contrato social, o autor em questão define que a
tarefa para resolver os problemas conflitantes da civilização, encontra-se na seguinte
tarefa:
Encontrar uma forma de associação que defenda e proteja a pessoa e os bens de
cada associado com toda a força comum, e pela qual cada um, unindo-se a todos,
só obedece, contudo a si mesmo, permanecendo assim tão livre quanto antes.
Esse o problema fundamental cuja solução o contrato social oferece. [...] Enfim,
cada um dando-se a todos não se dá a ninguém e não existindo um associado
sobre o qual não se adquira o mesmo direito que se lhe cede sobre si mesmo,
ganha-se o equivalente de tudo que se perde, e maior força para conservar o que
se tem. (ROUSSEAU, 1978, p. 32 e 33).
Para o filósofo genebrino a sociedade precisava se libertar dos grilhões do
absolutismo, e, como caminho mais curto para a criação de um novo modelo societário, um
conjunto de leis organicamente criadas pelos próprios membros da sociedade, o faria, o
que de fato aconteceu após a Revolução Francesa. O soberano para Rousseau, é o Estado,
constituído pela coletividade, ao qual cada indivíduo deve obediência, e não um indivíduo
com prerrogativas divinas. É nessa direção que considerava a pessoa moral representada
pelo Estado como um ente da razão, e não um homem, e como tal, desfrutará dos direitos
do cidadão sem querer desempenhar os deveres de um súdito (1978, p. 35).
Delineando o caráter coletivo do soberano submisso ao contrato social, o autor
esclarece mais uma vez:
Mas o corpo político ou o soberano, não existindo senão pela integridade do
contrato, não pode obrigar-se, mesmo com outrem, a nada que derrogue esse ato
primitivo, como alienar uma parte de si mesmo ou submeter-se a um outro
soberano. [...] Ora o soberano, sendo formado tão só pelos particulares que o
compõem, não visa nem pode visar a interesse contrário ao deles, e
consequentemente, o poder soberano não necessita de qualquer garantia em face
de seus súditos, por ser impossível ao corpo desejar prejudicar a todos os seus
membros (ROUSSEAU, 1978, pp. 34 e 35).
15
O domínio ideológico da classe burguesa sobre a sociedade, e especificamente
sobre as questões educacionais, tem sua origem, portanto, no surgimento do novo Estado
burguês do direito. Entendemos que um dos principais fundamentos desse modelo estatal
está na teoria do Contrato Social de Rousseau, a mesma que servirá como ponto de partida
para o modelo educacional criado por este teórico. Nesse sentido, torna-se evidente que a
ascensão da burguesia ao poder político na França determinou uma nova maneira de se
perceber a educação da população, que antes estava centrada nas mãos da igreja e, de
maneira excludente, como um privilégio apenas para os filhos da nobreza.
Os iluministas burgueses, portanto, tinham como uma das principais estratégias no
novo regime criarem um sistema educacional que estivesse de acordo com as novas idéias
libertárias. O liberalismo iluminista em seus primórdios precisava libertar-se das amarras
religiosas e monárquicas, defendendo o fato de que os seres humanos são essencialmente e
naturalmente livres para estabelecer os seus próprios caminhos na vida e na sociedade. É o
que veremos a seguir na análise da educação de Emílio.
2.2 Rousseau, e a revolução educacional: o estabelecimento do pensamento liberal
na educação
Como pressuposto essencial da sua formulação filosófica, Rousseau entendia que
os seres humanos eram em essência iguais e naturalmente bons. Nessa concepção
filosófica de homem, a humanidade não será desigual a partir de sua origem, mas uma,
única em essência, permeada de uma bondade inerente e igualitária.Pensando em uma
sociedade perfeita e baseada na bondade natural dos seres humanos, exemplificada no
comportamento dos primeiros índios, o iluminista Rousseau criou um personagem para o
pensamento pedagógico do seu tempo: Emílio. No romance criado em torno de Emílio,
Rousseau deixará claro que este deverá “educar-se sem nenhum contato com outros
homens, nem com religião alguma: apenas pelo convívio com a natureza. Privado do
contato dos pais e da escola, Emílio permanece nas mãos de um preceptor ideal, o próprio
Rousseau”. (GADOTTI, 2005, p. 88).
De forma sintética, o livro é a história da educação de um menino, Emílio, e de
uma menina, Sofia. “Dos cinco livros, os quatro primeiros tratam da educação de Emílio, e
o último, das necessárias diferenças na educação das meninas. Todavia quase todos os
princípios que se aplicam no caso de Emílio, aplicam-se igualmente no caso de Sofia”
(GILES, 1987, p. 177). No livro I a ênfase está na infância e na primeira fase da criança, o
16
livro II trata da criança, de maneira específica, o livro III aplica-se ao processo educativo
dos primeiros anos da adolescência. Os livros IV e V se concentram na “última fase da
adolescência e do início da idade adulta, o que, conforme Rousseau corresponde às etapas
do crescimento e do amadurecimento da pessoa e das correspondentes formas adequadas
de educação” (GILES, 1987, p. 177).
O alvo de Rousseau ao escrever Emílio era demonstrar que, através de sua
estratégia educacional a formação plena de um ser humano deveria ser realizada conforme
a ordem natural da condição humana. O educador ou preceptor deveria colaborar de forma
significativa com a natureza, não devendo o mesmo adiantar-se ao desenvolvimento
natural da criança. Nesse sentido, na introdução do seu livro, ele vaticina:
Na ordem natural, sendo os homens todos iguais, sua vocação comum é a
condição de homem, e quem quer que seja bem educado para tal condição não
pode preencher mal as outras relacionadas a ela. Pouco me importa que destinem
meu aluno à espada, à igreja ou à barra. Antes da vocação dos pais, a natureza o chama para a vida humana. Viver é o ofício que quero ensinar-lhe. Ao sair de
minhas mãos, concordo que não será nem magistrado, nem soldado, nem padre;
será homem, em primeiro lugar; tudo que um homem deve ser, ele será capaz de
ser, se preciso, tão bem quanto qualquer outro (ROUSSEAU, 1995, p. 14).
Com efeito, perceberemos que os aspectos educacionais refletidos nas páginas de
Emílio, e destacados por nós a seguir no presente trabalho, estarão em consonância com o
pensamento liberal em educação, e por isso coerentes com o objetivo central deste
trabalho. Demonstraremos que as influências teóricas do pensamento educacional liberal
na atualidade estão totalmente alicerçadas nas prerrogativas teóricas de Rousseau e de
Locke como já vimos em argumentos anteriores. O discurso contemporâneo quanto à
formação de professores encontra nas orientações liberais de Locke e de Rousseau as
âncoras fundantes para a sua materialização, fazendo com que a radicalização neoliberal do
pensamento educacional da atualidade afete de maneira significativa a prática educativa e a
formação acadêmica dos futuros professores.
2.3 Elementos centrais do pensamento educacional de Rousseau em Emílio e a sua
relação direta com a filosofia liberal.
Três são os aspectos escolhidos por nós e delineados em Emílio que fazem relação
direta com o pensamento pedagógico liberal. A escolha deles é certamente emblemática
pois tem como objetivo plasmar a perspectiva educacional que nos dias atuais se configura
17
como hegemônica na prática educativa. Dessa forma, não foram escolhas aleatórias, pelo
contrário, intencionais e relacionadas aos objetivos desse texto.
O primeiro elemento educacional que permeia a e educação de Emílio, considerado
por Rousseau como norma a ser seguida por todos os educadores interessados no
desenvolvimento das crianças, é a questão da importância da educação natural e
progressiva como ferramenta básica para o desenvolvimento correto das
crianças.Conforme o seu pensamento, o educador deveria deixar que a própria natureza se
encarregasse de produzir sobre o educando as capacitações naturais necessárias para que
este recebesse, em tempo oportuno, os conteúdos necessários para a vida em sociedade.
Interferir na ação da natureza seria um atentado contra o genuíno processo educacional. O
preceptor deveria descansar no sábio poder da natureza, pois é através dela que a criança
aprenderá os segredos da tenra idade. É assim que Rousseau aconselha os educadores:
Deixai a natureza agir bastante tempo antes de resolver agir em seu lugar,
temendo contrariar suas operações. Dizeis que conheceis o valor do tempo e não
quereis perdê-lo. Não vedes que o perdeis muito mais empregando-o mal do que
não fazendo nada, e que uma criança mal instruída está mais distante da
sabedoria do que aquela que não foi absolutamente instruída. (ROUSSEAU,
1995, pp. 112 e 113).
O segundo elemento educacional que deve orientar a educação de Emílio e de todas
as crianças tem a ver com o empirismo educacional ou em outras palavras, a educação a
partir dos sentidos. A educação deverá aguçar as percepções sensoriais do educando para
que a mesma seja efetiva. A primeira etapa da educação deve ser totalmente dedicada ao
aperfeiçoamento dos órgãos sensoriais, já que as primeiras necessidades das crianças são
essencialmente físicas e objetivas e não intelectuais e subjetivas. Para Rousseau, a criança
por ser incapaz de abstrações, deveria ser orientada a entrar em contato com o mundo
exterior através dos sentidos, fazendo ela mesma contato com as coisas concretas do
mundo exterior.
Digno de nota que para Rousseau a compreensão dos seres humanos tem seu ponto
de partida no uso adequado dos sentidos, fazendo do empirismo um dos fundamentos
necessários ao processo educativo. Para ele os sentidos e não os livros deveriam ser a base
do processo educativo. No segundo livro de Emílio ele assevera:
Como tudo o que entra no entendimento humano vem pelos sentidos, a primeira
razão do homem é uma razão sensitiva; é ela que serve de base para a razão
intelectual: nossos primeiros mestres de filosofia são nossos pés, nossas mãos,
nossos olhos. Substituir tudo isso por livros não equivale a nos ensinar a
raciocinar, mas sim a nos ensinar a nos servimos da razão de outrem; equivale a
nos ensinar a creditar muito e a nunca saber nada (ROUSSEAU, 1995, p. 141).
18
O terceiro elemento educacional que gostaríamos de destacar quanto à formação
pedagógica de Emílio, e que se relaciona aos anseios deste artigo, diz respeito à prioridade
que o educador deve ter quanto às necessidades individuais da criança. Um dos elogios
feitos por educadores que hoje abraçam a concepção educacional de Rousseau, diz respeito
ao fato de que o livro Emílio constitui-se em uma forma bastante inteligente de demonstrar
amor pelas crianças, e aos filhos, especificamente. As crianças são priorizadas e
respeitadas de tal forma na sua individualidade que o intuito é fazer delas cidadãos
autônomos e livres da tirania das opiniões humanas dos adultos. Para ele as crianças devem
ser estimuladas a buscar coisas que correspondam às suas necessidades e desejos e não
porque são obrigadas a tê-las.
Retorno à prática. Já disse que vosso filho nada deve obter porque pede, mas
porque precisa, nem fazer nada por obediência, mas somente por necessidade.
Assim as palavras obedecer e mandar serão proscritas de seu dicionário, e mais
ainda os termos dever e obrigação, mas as palavras força e necessidade, impotência e constrangimento devem nele ocupar grande espaço. Antes da idade
da razão, não se poderia ter qualquer idéia sobre os seres morais ou sobre as
relações sociais. Assim, devemos evitar na medida do possível empregar
palavras que exprimam, por medo de que a criança relacione a essas palavras de
início falsas idéias que não conheceremos ou que não poderemos mais destruir
(ROUSSEAU, 1995, pp. 83 e 84, itálicos do autor).
Longe de qualquer ação impositiva, a prática professoral deve dar às crianças
suficiente liberdade de ação para que as mesmas se desenvolvam em direção às suas
necessidades básicas. A idéia de Rousseau era gerar em Emílio uma auto-suficiência
quanto à vida imediata dele, fazendo com que por si mesmo ele descobrisse que as suas
necessidades estavam acima dos seus desejos. Parece que está em jogo nas palavras do
pedagogo de Genebra é fazer com que o seu Emílio amadureça o suficiente a partir de uma
vida autônoma e independente, sem obrigatoriedade advindas de fora, mas como uma
decisão pessoal.
Está em jogo uma concepção não-diretiva de educação muito própria ao modelo
pedagógico liberal burguês que será apropriado pelos teóricos educacionais do século XIX
e também, até aos dias de hoje. O respeito à individualidade infantil como uma das
exortações básicas da teoria educacional de Jean Jacques Rousseau se tornará uma das
prerrogativas necessárias de demonstração de um genuíno amor pelas crianças.
Fica evidenciada a utilidade desse pensamento de Rousseau sobre a concepção
pedagógica dos dias contemporâneos quando lemos uma citação feita por Duarte advinda
do livro publicado no Brasil no ano de 1959, com o título de A Educação Nova, de autoria
do educador francês Roger Cousinet. Apesar de extensa, a citação abaixo se constitui em
19
uma „pérola‟ esclarecedora para as intenções do presente trabalho, de demonstrar os
vínculos da teoria do autor de Genebra com as práticas pedagógicas de cunho liberal
predominantes sobre a educação contemporânea.
O elemento primordial da educação intelectual da criança é constituído por sua
atividade pessoal. A criança não deve aprender ciência, deve inventá-la. Cumpri
deixá-la “tocar em tudo, manejar tudo”, usar incessantemente essa experiência
que se “antecipa às lições”, deixá-la pensar em lugar de pensar por ela. [...] A
aprendizagem não é nem imitação mais ou menos servil, nem repetição, nem
mesmo exercício de imitação (como os temas do mesmo nome); é uma atividade
que não precisa ser provocada nem mantida pelo educador, porque se exerce e
se desenvolve naturalmente sempre que a criança julgue interessantes e úteis por si mesmos os objetos que se exercita. [...] Aí está a verdadeira educação, que
não tem necessidade de lições de mestres ou de livros. Basta colocar a criança
num meio suficientemente nutritivo do ponto de vista intelectual, para que
espontaneamente ela se mova e empregue a atividade que lhe permite conhecê-lo
sem qualquer intervenção do educador. Observa, experimenta e, a um tempo,
adquire, assim, conhecimentos científicos e forma em si mesma (o que é muito
mais precioso) um espírito científico. Aprende a conhecer o mundo que a cerca
imediatamente, e não segundo um programa estabelecido pelo mestre, que
decide tal ou qual fenômeno deve ser observado, mas de acordo com o seu
interesse. Interesse, observação científica, estudo do meio, tudo isso se encontra
na pedagogia de Rousseau (COUSINET apud, DUARTE, pp. 34 e 35, aspas do autor e itálicos nossos).
Rousseau tinha a consciência da importância dos pensamentos educacionais de
Locke para a constituição das suas idéias, e por isso em determinada altura do seu livro o
reverencia através das seguintes palavras, enfatizando o seu propósito de ampliar o
pensamento de Locke:
Todos os que refletiram sobre a maneira de viver dos antigos atribuem aos
exercícios da ginástica esse vigor de corpo e alma que os distingue mais claramente dos modernos. [...] O sábio Locke, o bom Rollin, o douto Fleury, o
pedante de Crouzas, tão diferentes entre si em tudo o mais, concordam todos
neste único ponto: exercitar bastante o corpo das crianças. É o mais judicioso
dos seus preceitos, é e será sempre o mais desdenhado. Já falei o bastante sobre a
sua importância, e, como não podemos dar a este respeito razões melhores nem
regras mais sensatas do que as que encontramos no livro de Locke
[provavelmente o livro “Pensamentos Acerca da Educação”], contentar-me-ei
com remeter a ele, depois de ter tomado a liberdade de acrescentar algumas
observações às suas (LOCKE, 1978, p. 142, itálicos e colchetes nossos).
Rousseau assume, portanto, a prerrogativa lockeana de que um corpo fisicamente
bem cuidado proporcionará uma mente sã. Ele entende, assim como Locke, a necessidade
de criar estratégias na infância para que as crianças possam exercitar os seus corpos da
melhor maneira possível, pois esse seria a primeira fora de educar a mente.
3. Breve análise crítica sobre os desdobramentos políticos e sociais do pensamento
liberal burguês em educação para a atualidade.
20
O tipo de educação humanista, centrada na individualidade da criança foi um dos
fundamentos filosóficos da educação nova ou da “Escola Nova”, que permeará o
pensamento educacional das futuras sociedades burguesas. As idéias de Locke e de
Rousseau serão desdobradas e associadas ao pensamento liberal econômico do sistema
capitalista. A educação se tornará na ferramenta mais preponderante para a formação desse
novo homem burguês, forjado para atender às demandas da sociedade capitalista. O
indivíduo autônomo e competente diante do novo maquinário moderno capitalista será
fruto dessa nova educação burguesa orientada por Rousseau e Locke, dentre outros.
A filosofia social burguesa implantada na sociedade européia dos séculos XVIII e
XIX, como fruto da revolução política ocorrida na França, delineava-se como a alternativa
mais transformadora de todos os tempos, tendo como carro chefe da mudança social, as
novas relações econômicas capitalistas. A nova ordem republicana advinda do processo
revolucionário burguês contra as forças da monarquia confirma a nova postura do estado
burguês em relação à educação, e, em especial a sua luta contra a igreja. Laval aborda essa
questão da seguinte maneira,
Sabe-se que o Estado se definiu, inicialmente, como um educador da Nação em
luta contra a igreja, para assegurar sua hegemonia simbólica e ideológica e que
não hesitou em retomar muito de seu adversário tanto no plano organizacional
quanto no plano pedagógico para realizar essa grande obra. No entanto, segundo
uma sutil combinação, a escola sempre manteve ligações mais ou menos diretas,
segundo as épocas e os domínios, com o universo do trabalho. (LAVAL, 2004,
p.6).
A educação, portanto, passou a ser utilizada como estratégia ideológica para a
implementação da nova mentalidade burguesa de ver as relações sociais e políticas. Dessa
forma, antes de ser utilizada como um mecanismo de treinamento da classe operária da
nova empresa capitalista de produção fabril, a escola terá essencialmente uma nova função
política e cultural: ser o canal ideológico e político para o novo pensamento liberal que se
estabelece na Europa, e, de maneira mais específica, na França do século XVIII.
Não apenas em termos históricos ligados ao século XVIII o pensamento
educacional de Rousseau e Locke teve o seu alcance verificado, tais desdobramentos de
cunho liberalizante para o processo de escolarização podem ser percebidos na análise feita
por Saviani sobre as transformações que o pensamento pedagógico de Rousseau trouxe
para os dias atuais.
Compreende-se, então, que essa maneira de entender a educação, por referência
a pedagogia tradicional, tenha deslocado o eixo da questão pedagógica do
intelecto para o sentimento; do lógico para o psicológico; dos conteúdos
cognitivos para os métodos ou processos pedagógicos; do professor para o aluno;
21
do esforço para o interesse; da disciplina para a espontaneidade; do diretivismo
para o não-diretivismo; da quantidade para a qualidade; de uma pedagogia de
inspiração filosófica centrada na ciência da lógica para uma pedagogia de
inspiração experimental baseada principalmente nas contribuições da biologia e
da psicologia. Em suma, trata-se de uma teoria pedagógica que considera que o
importante não é aprender, mas aprender a aprender (SAVIANI, 2006, p. 9).
À semelhança de Saviani entendemos que o pensamento educacional de Rousseau
produziu um modelo educacional circunscrito às crianças que, nos dias atuais, fazem parte
das famílias abastadas da sociedade capitalista, e por isso habilitadas a participar do tipo de
educação proposta por Rousseau e forjada em muitas escolas da atualidade. Em outras
palavras, a desigualdade social e econômica predominante nas sociedades capitalistas
contemporâneas é transferida de maneira acirrada para dentro das escolas, reproduzindo,
portanto, no modelo educacional a caracterização dualizada das sociedades capitalistas.
Uma das definições mais precisas sobre o caráter das sociedades dualizadas produzidas
pelo então sistema capitalista afirma que,
As sociedades dualizadas – sociedades de “ganhadores” e “perdedores” de
“insiders” e “outsiders”, de “integrados” e “excluídos” –, longe de
apresentarem-se como um desvio patológico do aparentemente necessário
processo de integração social que deveria caracterizar as sociedades modernas,
constituem hoje uma evidência indisfarçável da normalidade que regula o
desenvolvimento contemporâneo das sociedades competitivas. Embora seja certo
que no Terceiro Mundo este caráter dualizado (e dualizante) expressa-se com
inusitada selvageria, o apartheid social atravessa implacável a economia-mundo,
muito além das diferenças particulares com que se manifesta em cada cenário
regional (GENTILI, 2003, pp. 233 e 234).
Ao relacionar o caráter dualizante das sociedades capitalistas ao pensamento
educacional e político do liberalismo, contemplado nos pressupostos teóricos da
mentalidade escolanovista. Saviani deixa evidente que quando os teóricos da Escola Nova
criticavam a metodologia educacional da pedagogia tradicional, o fizeram com o intuito de
Aprimorar a educação das elites e esvaziar a educação das massas. Isto porque,
realizando-se em algumas poucas escolas, exatamente naquelas freqüentadas pelas elites, a proposta escolanovista contribuiu para o aprimoramento do nível
educacional da escola dominante. Entretanto, ao estender sua influência em
termos de ideário pedagógico às escolas da rede oficial, que continuaram
funcionando de acordo com as condições tradicionais, a Escola Nova contribuiu
pelo afrouxamento da disciplina e pela secundarização da transmissão de
conhecimentos, para desorganizar os ensinos nas referidas escolas. Daí, entre
outros fatores, o rebaixamento do nível de educação destinada às camadas
populares (SAVIANI, 2006, p. 67).
Considerações finais
A crítica que se faz ao pensamento liberal e pedagógico burguês é aprofundada ao
se pensar nas limitações da atividade docente e, conseqüentemente, nas funções da escola
22
no seu todo. Nessa perspectiva o trabalho docente é secundarizado em detrimento das
carências e anseios dos discentes privilegiando-se os mecanismos psicoeducacionais. Em
certo sentido a atuação do professor em sala de aula será o mais útil possível na medida em
que ele dominar as estratégias pedagógicas voltadas o conhecimento individualizado do
aluno, abrindo mão de aspectos disciplinares e voltados para a priorização dos
conhecimentos necessários ao desenvolvimento acadêmico e intelectual do aluno.
Esta prática educativa que se constitui como hegemônica no atual contexto
educacional, certamente, reflete de maneira mais ampla a maneira liberal de se perceber a
realidade social atualmente. A filosofia que predomina na atual fase da sociedade
capitalista é de cunho liberal e é esta que se vê refletida nas relações educativas na escola
em todos os seus níveis. Como elemento presente no âmbito da sociedade, a escola, sofre
as determinações sociais, políticas, culturais e econômicas que predominam sobre o escopo
social, e por isso mesmo apresenta em sua prática interior os mesmos elementos liberais
experimentados socialmente.
Nessa perspectiva, entendemos como fundamental estabelecer no contexto da
escola algumas estratégias de embate que podem ser encaminhadas pelos educadores que,
em certo sentido, estão lutando contra o pensamento pedagógico liberal. Entendemos que a
prática docente é parte essencial de uma luta maior que busca a superação do modelo de
sociedade liberal predominante. Tais estratégias devem ser vistas como uma forma de luta
política e tremendamente necessária no atual estágio em que se encontra o processo
educativo.
A primeira seria o estudo aprofundado dos aspectos liberais históricos que, desde a
sua raiz, norteiam a formação da sociedade burguesa. Não resta alternativa mais
consistente aos educadores do que o estudo dos mecanismos formativos do pensamento
liberal. É preciso conhecer de maneira detalhada contra quem se está lutando, ou seja,
saber como se desenrolou na história da humanidade uma forma de pensar que após três
séculos permanece como grande capilaridade hegemônica.
Sem o conhecimento dos fundamentos liberais que formataram a nossa sociedade
será muito difícil perceber na prática educativa contemporânea as estratégias pedagógicas
liberais que, de maneira „camaleônica‟ se transmudam em cada período. Sugerimos para
isso que se formem grupos de estudo e de discussão em torno dos teóricos clássicos do
liberalismo político e que se perceba quais os desdobramentos pedagógicos manifestos na
prática educativa contemporânea.
23
Infelizmente, muitos educadores já não querem mais estudar e, por conseguinte,
conhecer os fundamentos históricos e filosóficos que justificam a prática deles nos dias
atuais. Estão envolvidos num turbilhão ativista contínuo que se esquecem de que um dia
devem ter ouvido que a prática sem a teoria é cega. Nesse sentido, aceitam o apelo
pragmático filosófico tão comum no pensamento pedagógico hodierno, que repele a teoria,
exigindo que os cursos de formação de professores sejam mais práticos e menos teóricos.
Nesta onda de pragmatismo educativo, portanto, os fundamentos históricos e filosóficos
são abandonados, sendo essa uma norma formativa em muitos cursos vinculados à
licenciatura acadêmica.
Na esteira desse processo de estudo científico dos autores liberais, a segunda
atitude prática seria a apropriação, por parte dos professores, de uma ferramenta de análise
crítica da sociedade capitalista que estivesse na contramão do pensamento pedagógico
liberal clássico. Entender como o pensamento liberal funciona desde a sua raiz não é
suficiente, faz-se necessário apropriar-se de uma ferramenta política e pedagógica que o
confronte de maneira objetiva.
Nesse sentido, uma perspectiva crítica de combate pedagógico ao pensamento
liberal encontra no materialismo histórico dialético o seu oponente mais correto e vigoroso,
já que tal perspectiva desde a sua gênese se constitui em uma forma crítica de combate ao
liberalismo clássico. Assim, na medida em que os docentes estudem esta concepção de
análise e de entendimento do real para a construção de uma proposta pedagógica de caráter
antiliberal coerente com os interesses da emancipação humana em todos os seus níveis,
eles terão condições de dar o seguinte passo em direção à terceira estratégia.
Cumpre referenciar em tempo que este processo de conscientização pode ser feito a
partir de duas ações concretas: o estudo das teorias marxianas e o estudo da pedagogia
histórico-crítica. Tais aprofundamentos teóricos, certamente, instrumentalizarão os
professores de maneira séria na produção de ações coletivas pedagógicas antiliberais
A terceira estratégia como decorrência direta da segunda, é viabilizar ações
coletivas intencionais dos professores com o objetivo de confrontar em sala de aula
manifestações pedagogicamente liberais. Os professores quando se dispõem a agir
coletivamente podem muito mais do que quando têm atitudes solitárias. Na verdade, eles
deveriam saber o quanto o potencial deles se multiplica na medida em que atuam em torno
de propostas comuns e não fragmentadas.
As ações pedagógicas não liberais de caráter coletivo devem ser discutidas pelos
professores, a partir de fundamentos teóricos não liberais, mas emancipatórios. Elas devem
24
seguir os teóricos que se aliem a discutir a função social da escola e que tenham como
finalidade a superação do modelo de sociedade liberal que se mantém no atual momento do
capitalismo contemporâneo.
Longe de ser uma proposta utópica, as ações pedagógicas não liberais levadas a
efeito pelos docentes, podem exercer o caráter de ação dialética contrário na relação
determinada/determinante. Em outras palavras, a escola ao mesmo tempo em que sofre as
determinações do todo social sobre ela, pode também, na medida em que os professores se
unam também, exercer uma ação de força sobre a sociedade. Ela sofre influência como
pode e deve também influenciar. A escola não é apenas um aparelho inerte de reprodução
ideológica do Estado, ela tem potencialidades para agir na contramão do discurso social,
desde quando saiba se utilizar dos mecanismos que ela dispõe. Para isso a ação dos
docentes é fundamental.
Referências
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Cortez, 2001.
CUNHA, Fátima. Filosofia da escola nova: do ato político ao pedagógico. Rio de
Janeiro: Tempo Brasileiro; Niterói: Universidade Federal Fluminense/EDUFF/PROED,
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DEWEY, John. Liberalismo, liberdade e cultura. São Paulo: Editora Nacional, 1970.
DUARTE, Newton. Vigotski e o “aprender a aprender” – crítica às apropriações
neoliberais e pós-modernas da teoria vigotskiana, 4ª ed. Campinas, SP: Autores
Associados, 2006.
GADOTTI, Moacir. História das idéias pedagógicas, 8. ed. São Paulo: Ática, 2005.
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