DONADONI - O Homem Egipcio

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    OHOMEME

    GPCIO

    SRGIO

    DONADOMI

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    A jiroNonte cQleegaa gira sobre um eixo. fundamentalvo-Homem

    un iiimpo n n Histria. Assim se pretende estuciar e cr a donh-' ni ii um vasto publico as diferentes actividades e comportamen-inn i ni, o arloso, o escriba, o funcionrio, o sacerdote, o escravo," nuii nii(|iili11, oh rnortos, osldado, p fara: as flgjrag riiaiis:st^iflc^tiVisiilii Anilijii I iilplo ano aqui retratadas pelos estudiosos mais prestigiadosn /it inuiulliil, eoordenados por Sergio Donatoni. So perspectivasluminimi quii, ria globalidade, dSo ao leltor urna imagem compsita d.....Ini Un la i ti |i| teli i. Para alm da ideia. que nos habitumos a fazer doAiiiipi11ij ;>i:s, atrnvs dos restos materiate que deixou, o leitor tem agor',m timiii a piirupoctlvas convergentes que constituem urna interessante-11111i - 1111r111 ii o duqull que dever ter sido a vida quotidiana no tempo dsIntfii*hi, ilimcrovondo simultanoanente mentalidades e comportamentos,i inni niiniiliiiidm fascinante dentro das coordenadas metodolgicas mais/(niivintitutu, (filo contribu de forma notvel para um eonhecimento mais m,ii di il t

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    NDICE

    INTRODUO, por Srgio D orta doni............................................................................. 7

    I. O CAMPONS, por Ricardo A . Caminos......................................................... 13

    II. O ARTESO, por Dom inique Valbelle ................................................................... 37Introduo.............................. 39Os homens e a socied ade............................................................................................. 41O Antigo Im prio............................................................................................................ 42O Mdio Im prio ............................................................................................................ 44O Novo Im pr io .............................................................................................................. 46Os vrios ofcios artesanais ......................................................................................... 49A expiesso individual na vida quotidiana ............................................................ 53

    A expresso artstica ....................................... .......... .................................. 56

    III. O ESCRISA, por Alessandro R occa ti ..................................................................... 59

    IV. O FUNCIONRIO, por Oleg Berle v ........................................................ ............... 79A histria de J o s .......................................................................................................... 81O manual da hierarquia ............................................................................... 83O princpio de H ec ateu.......................... 83Os funcionrios-deuses......................................................................... ...................... 87A instruo ....................................................................................................................... 89A crise da classe dos funcionrios ............................................................................ 93

    A categoria dos funcionrios...................................................................................... 97A manuteno dos funcionrios ........................................................ .. . ................ 104Os funcionrios e a cultura do Egip to ..................................................................... 105

    V. O SACERDOTE, por Srgio Pernigotti................................................................... 107

    VI. O SOLDADO, por Skeihk Ibada a l-N ubi............................................................ 133

    VII. O ESCRAVO, por Antonio Lopriero ....................................................................... 161Introduo...................................................... 163O escravo e a literatura................................................................................................. 165

    O Antigo Imprio..................... 168O Mdio Im prio ........................................................................... 171O Novo Imprio..................... 175A poca ta r d ia ................................................................................................................ l g4Concluso ......................................................................................................................... 186

    VIII. O ESTRANGEIRO, por Edda Bresciani................................................................. 189

    IX. O MORTO, por Srgio D onadon i........................................................................ 215

    X. O REI,por Erik H ornung ........................................................................................ 237

    ESQUEMA CRONOLGICO .................................................................. 263

    REFERNCIAS BIBLIOGR FICAS.................................................................................. 265

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    -M MA TCNICA

    Ithilfi original: L 'U o m o E g iz ia n o

    AmImion: O. B erl ev, E . B rescia n i, R . A . C a m i n o s ,S . Dotu tdoni , E . Hornung, *Ib ad a al-N ubi,

    A , L oprie no , S. P e rn ig o tt i, A . R o cc a ti , D . V alb elle Dinvfln de: S rg io D o n a d o n i 'D 1 'o , CHus. Laterza & Figli Spa, Roma-Barihiuitlo Editorial Presena, Lisboa, 1994Ilmhiflo dc: M a ria Jo rg e V il a r d e F ig u eir edo ( 'npn: R a m ss I I R e le v o ( 'oniposflo: M ir a se te A r te s G r fic as , L d a .Impicssflo e acabamento: G u i d e A r te s G r fic as, L d a .1," edio, Lisboa, 1994Depsito legal n. 73969/94

    Reservados todos os direitospara a lngua portuguesa EDITORIAL PRESENARua Augusto Gil, 35-A 1000 LISBOA

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    INTRODUO

    No fcil remontar ilesos o fluir do tempo at universos que, sob aspectos por

    vezes familiares e simples, ocultam diferenas to profundas que se no fossem

    tidas em conta tornariam difcil qualquer compreenso. Por isso, essencial recor

    dar preliminarmente que, entre ns e o Egipto antigo, houve uma pro funda fractura.

    O desaparecimento da capacidade de leitura dos textos em que se exprimiu a

    sua obstinada e indmita vontade de transmitir, de gerao para gerao, a

    smula das suas experincias e dos seus memorandano deixa decerto de ter um

    motivo: bastante antes do perodo em que os ltimos hierglifos foram esculpi

    dos, em finais da poca imperial romana, o vigor da civilizao egpcia j se

    tinha tornado penosa sobrevivncia, lenta marginalizao das vias mestras da his

    tria em direco a uma mtica e exangue idealizao.

    Por isso, para a nossa civilizao, o Egipto constitui menos uma realidade doque um lugar ideal que possa servir de base para fantasias elogiosas ou depreciati

    vas, portanto, para concepes que no nasceram no seu seio. Alternadamente sbio

    ou cruel, opulento ou tirnico, mpio, supersticioso e avisado, infantil, politicamente

    exemplar, piedoso e cnico, o Egipto dos antigos (e at ao Iluminismo) tema fre

    quente de reflexes vrias, mas recusa-se fundamentalmente compreenso.

    A obra genial de decifrao levada a cabo por Champollion, no incio da

    poca romntica, alterou muito a situao; a possibilidade de estabelecer um con

    tacto directo com as fontes e os monumentos dava de novo ao mundo egpcio a

    oportunidade de usufruir do interesse por mundos diferentes do mundo clssico,

    interesse que tpico dessa poca (e, a propsito, bastar recordar a longa cartaque Champollion escreveu a von Humboldt para lhe apresentar o seu sistema e os

    primeiros resultados). Assim se facilitou a introduo da civilizao do Nilo nos

    quadros da historicidade: no seu primeiro encontro com os monumentos cuja voz

    era o primeiro a ouvir, Champollion saboreava o desenrolar de uma cronologia,

    o perfil de uma estrutura social, a organizao de uma linguagem e de uma ln

    gua, e dava incio a uma obra de recuperao que se encontra ainda e espera-se

    que continue infieri.A ruptura entre o mundo do Egipto antigo e a nossa pos

    sibilidade de conhecimento, a fractura de que falvamos atrs, parece assim ter

    sido colmatada pela leitura desses textos antes fechados e que passavam a revelar

    abertamente a sua mensagem.

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    ni nmdHimimw iri i .>t i um p mim mui de (rilu, 11 silmiilo c dife-h hlt' l >iifn>t< unlvcriori lilfilm ingi illtcns com o n histria roimtllll, grega OU

    mrilirvitl clregiiiii iil ns jrt eiiqiiiidrmlos niiiim longa tradio que revelou,ti'|M-ilrt r inrrDiiuil.rmcnle, a Nua orgimicldnde, interpretando factos e dados

    vohmlmltmrnlc selrccionados, por vezes em funo de um determinado valor, miiBiudutoN, rrlilmlos, rcinlcrpretndos e que constituem o depsito comum deuirni miilllvncn convivncia de pontos de vista, um esquema de referncia de basetpmbilvii ou npgnilvmnentc) para a nova pesquisa especifica ou para a narrao.

    i 'w Imtlro irimqiillizudor (c estabilizador) falta a quem se debruce sobre a his-t At In t'iilpi ln c sobre todas as outras cujo acesso se afigure idntico. No existeqitl um desenho orgflnico que tenha ao mesmo tempo as suas razes na contem-(Mitiiiifildnde l e aos lexlos literrios.

    Nflo deixa dc ser significativo o facto de, desde que comearam a efectuar-semi(munes no Egipto c sc recuperaram papiros das pocas grega e romana, a his-hulojpnilii do mundo clssico ter enriquecido as suas temticas e as suas tcnicasiIb pesquisa e ler mostrado aos historiadores do Egipto antigo o que esses material* dintimeulals significam, aproveitando-se da sua experincia mais longa emrilyfmdo a r serviudo-se da possibilidade de confrontar os resultados dessa autpsia imei llnta com os dados da tradio (dados que, neste caso, vo desde as narra-i dos historiadores at aos textos literrios e aos grandes compndios jurdicos).

    Ihdavla. essa confrontao com documentos e fontes que, no que se refere aoI tilpio antigo, so as inscries, os papiros e as reprodues, dificultada peloha to de rsses documentos e essas fontes chegarem at ns como fruto do acaso,Hiil. o laetor a que fica a dever-se a sua conservao e, posteriormente, a sua des-ohnia. Um papiro no se salva por ter estado guardado num arquivo, mas pormio ter sido colocado numa camada demasiado hmida, por ningum s ter servido dele para acender o lume, por no ter passado por perto uma cabra que o

    pudesse mordiscar ou por o responsvel pelas escavaes te r adop tado as tcnicasadequadas para o recuperar. No existe qualquer desgnio oculto que tenhaIrvudo a conserv-lo para o transmitir como documento especfico. O mesmo sepassa com as inscries, que nos fornecem uma infinidade de dados, referentesnos reis o aos homens comuns. evidente que as informaes que elas nos fornecem devero ser lidas tendo em conta a ideologia que lhes inerente; porm, frequente faltar-nos o ponto de referncia que nos permita detectar as diferenas.1or isso, h demasiados relatos de feitos soberanos ou outros textos aparente-meute narrativos que foram interpretados letra por historiadores modernos,quando um leitor egpcio teria instintivamente (ou melhor, baseando-se na sua

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    cultura) sabido avaliar o seu valor mais autntico de tipizao e de smbolo, emcomparao com a relativa insignificncia do facto especfico, evocado como oca-sio ou at como pretexto. ________________________________________

    Apesar de toda a sua irreprimvel necessidade de escrever, o Egipto antigo raramente muito raramente se sentiu tentado a descrever-se, a teorizar as suasestruturas, a reunir o seu patrimnio histrico e jurdico; deu testemunho de si atravs de um fluxo contnuo de informaes pontuais, personalizadas, num redemoinho de dados desgarrados que nos compete a ns tentar reunir. Por isso, temoscom o mundo egpcio uma intimidade que no possumos com outros muhdos antigos intimidade essa que o liga a ns por pormenores vividos e, ao mesmotempo, h em ns uma incerteza quanto ao ambiente geral, cujos contornos fugazes so desenhados segundo convenes historiogrficas posteriores e diversas.

    Para serem coerentes, estas cautelas preliminares deveriam desencorajar qualquer tentativa de abordagem do mundo do Nilo e, quando muito, levar-nos aaceitar, pelos inmeros valores supratemporais que possui, a experincia artstica

    despojada do seu carcter histrico. Todavia, demasiado pouco para quemtenha um mnimo de experincia egiptolgica.Antes do mais, o prprio volume das runas dessa civilizao to imponente

    que acaba, s por si, por ter um significado. Durante pouco menos de trinta ecinco sculos, acumularam-s resduos e depsitos de factos ligados entre si porum fio condutor bem identificvel, por vezes muito evidente, outras vezes maistnue, mas que se pode sempre detectar. seguindo esse fio ou melhor, essesfios porque h, naturalmente, mais do que um que esse mundo fechado podeser ordenado e revela maneiras de ser, problemas de devir.

    A avaliao de uma experincia to fechada acabou por ser dplice: por umlado, h a necessidade de traduzir para a linguagem de uma problemtica viva e

    actual (a nossa) o que est expresso numa lngua morta; por outro lado, realou--se a ntima diferena de valor que atribuda mesmo quilo que se nos apresentacomo indiscutvel e bvio. Perante estas duas atitudes opostas o que importa no tanto escolher uma ou outra, mas testar constantemente os resultados dessasabordagens e conferir assim a maleabilidade necessria quilo que, de outraforma, continua a ser mera documentao.

    certo que o mundo egpcio parece, em certos aspectos, singularmente moderno: a estrutura da famlia (fundamentalmente, pais e filhos) tem pouco pesoem comparao com o peso de uma estrutura tribal que liga por laos de sangueindivduos afastados* obrigando-os a uma solidariedade automtica; o sistemahereditrio divide os bens em partes substancialmente iguais, repartindo-os pelos

    cnjuges sobrevivos e pelos filhos; no domnio do direito privado, uma vontadelivre e documentalmente expressa tem valor autnomo, e a mulher possui umapersonalidade jurdica que lhe permite fazer testamento ou servir de testemunhasem necessitar de um tutor; no existe o conceito de satisfao pessoal atravs davingana (no existe sequer uma palavra que a designe) e mesmo na mitologia osconflitos entre os deuses so resolvidos perante um tribunal. Por outro lado, e

    passando a factos mais gerais, a estru tura do Estado com base territorial, a suanatureza potencial de imprio universal, a meticulosidade de uma administraoordenada numa escala hierrquica bem definida, o peso da vida civil colectiva

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    (incluindo os grevistas em defesa dos seus direitos) so factores que, nesta medidar com esta clareza, nos do um a imagem to compreensvel do Egipto que acabamos por perder a noo da individualidade especfica dessas caractersticas.

    Um exemplo: a centralidade do Estado na sociedade egpcia a justificaopara a potencial igualdade entre o homem e a mulher (e, mais em geral, entre os

    cidados), para a ausncia de uma mentalidade tribal, para a possibilidade deexecuo de grandes obras colectivas, para a organizao da actividade e produtividade agrcolas escala nacional, para a importncia da lei como elemento deresoluo dos conflitos, para a unidade lingustica e cultural, etc. Estes so algunsdos dados que nos revelam um mundo que, aparentemente, pode ser transferidopara o nosso modo de pensar e no ter em conta esta realidade de facto seria nofn'i Injusto mas tambm errado.

    'Ihdnvia, como no recordar, ao mesmo tempo, que, no Egipto, o Estado i cim rlamcnte o Fara, portanto um conceito que possui um valor mitolgiconsModado ao seu valor racional? A obrigao de ter em conta essas duas exign

    cias, a genericamente racional e a caracteristicamente mtica, equivale quilo queacontece ft quem traduz de um a lngua estrangeira para a sua lngua: tem de estaratra io e compreender (para depois o exprimir) o significado concreto do que estexpresso, tnas, acima de tudo, tem de sentir o valor e a autonomia expressiva dalngua original. Assim, estamos perante duas experincias opostas, mas igual-mruie vivas, que exigem que nos apercebamos de uma nica realidade, vista doexterior naquilo que pode significar e, do interior, naquilo que .

    No entanto, sob (ou sobre, de acordo com a atitude que se adoptar) este problema de compreenso e de interpretao, mantm-se, firme e basilar, a documentao, Fragmentria, casual, privada de um quadro de referncia, dspar: ser

    iimIihque a encontrar, e, repetimos, sem a ajuda de uma base tranquilizadora,quem ler os ensaios includos neste volume. Aperceber-se- da desigualdade daxuu espessura, mas tambm compreender com que objectivos e em que medidase pode confiar nela.

    I( evidente que seria arbitrrio (e dizemos mesmo que arbitrrio porque,nnliimt prevaricando, algo que acontece com frequncia) deduzir uma histriade acontecimentos da pontualidade dos factos seguramente identificveis. As doresde dentes de Amenfis III, confirmadas pelo exame necroscpico da sua mmia;a alegria de Pepi II quando, em criana, lhe anunciaram a chegada iminente deum ano bailarino oriundo da frica central, confirmada pelo texto da cairta escrita

    por clc prprio; as muitas outras pequenas curiosidades ou as notveis informaesque, pontualmente, chegam at ns no conseguem elaborar uma histria coerentedc factos, de to fragmentrias que so. E o mesmo se pode dizer dos relatos devitrias e de feitos includos nas autobiografias enaltecedoras que, porm, como referimos, superam o dado narrativo com uma inteno que no documental.

    Contudo, estas aparentes limitaes no significam que no possvel traarr compreender outra histria, a histria das estruturas, muitas vezes orgnica, eque cada vez mais se apresenta aos estudiosos como aquilo que , ao mesmo tempo,possvel e racional.

    Por isso, o mundo egpcio, feito de expresses e de testemunhos pessoais, transferido para um conjunto tipicamente coral, para nossa segurana e para

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    tranquilidade dos historiadores. o preo a pagar por um anedotrio divertido, epor vezes apaixonante, mas que acaba po r ser ineficaz se ultrapassar os seus limites.

    Os ttulos dos ensaios reunidos neste volume revelam, de facto, uma atitudeisoladamente tipificante; porm, se analisarmos mais de perto, veremos que o seuconjunto serve para revelar vrias facetas de uma mesma realidade, aquela que,

    na civilizao egpcia, tem de longe o maior peso: a estrutura do Estado. Acercade cada uma das personagens que do o ttulo aos vrios captulos no se pergunta quem ?, mas o que faz?. Funcionrios, camponeses, escribas, soldados, sacerdotes, escravos desempenham fundamentalmente uma actividade com

    plementar da actividade de outros, uma tarefa necessria pa ra o funcionamentoda estrutura social em que esto inseridos.

    Por conseguinte, o que temos diante de ns , de facto, a descrio de umanica realidade historiogrfica, que exclui forosamente muitas das mais profundas actividades egpcias: a arte, a especulao religiosa, a experincia moral saparecero em esboo, privilegiando-se o fio condutor da identificao da racionalidade e do laicismo (se que tem algum sentido utilizar estas palavras, nestecontexto) que regem as relaes entre os homens no antigo Vale do Nilo. Trata-sede um empobrecimento em relao a um quadro que poderia ser mais complexo,mas fiel a uma univocidade que proclamada no ttulo e no conduz o leitor

    para aventurosos devaneios.Assim, a ambio desta obra evidente: tornar o Egipto antigo o mais com

    preensvel possvel em relao ao mundo cultural em que vivemos, mantendo,porm, evidentes as diferentes perspectivas que lhes permitem ser, simultaneamente, anlogos e diferentes.

    Devo, porm, acrescentar que propus a mim prprio, como organizador, umaoutra experincia didctica muito subtil. Foram convidados a colaborar estudiosos de vrias procedncias e idades. As diferenas de formao cultural dos autores dos ensaios, a maneira diferente como utilizam o mesmo material e at as suasidiossincrasias talvez comprometam um quadro que se julga dever ser unitrio.Todavia, porqu ocultar que a nossa disciplina no reduz a pesquisa a uma nicaperspectiva, que cada estudioso imprime nela concepes, motivos de investigao, paixes que inevitavelmente do cor sua obra e que isso at um poucomais frequente do que noutros domnios, onde uma longa maturao da vulgataencerra em perspectivas mais rgidas pelo menos certas caractersticas gerais?

    No final desta srie de ensaios, espera-se que o leitor fique com um a noomais precisa do que foi a sociedade egpcia na sua evoluo como conjunto dehomens que tm por ideal agir em conjunto, e, ao mesmo tempo, a noo de quese pode analisar essa remota realidade para nela procurar coisas diferentes e que,se isso acontecer, ser sobretudo uma demonstrao da sua riqueza vital: contradies e incertezas so mais fecundas e verdadeiras do que concordncias perenese seguras. Com a condio de se querer super-las: o que confere um sentido nossa profisso.

    Srgio Donadoni

    i Ricorsi, Setembro de 1990

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    CAPTULO I

    O CAMPONS

    por Ricardo A . Caminos

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    Peasants are all those who live on th e land by th eir ow n labour

    Wa l t e r A. Ra l e ioh

    Desde tempos imemoriais at aos nossos dias, o Egipto sempre foi, acima detudo, um pas agrcola. A agricultura foi sempre a base da sua economia e, nodecorrer da sua longa histria, o seu bem-estar e a sua prosperidade sempredependeram dos produtos da terra. Foi o cultivo da terra ou, em ltima anlise,o constante, perseverante, duro, obscuro e, muitas vezes, desprezado e sempre malremunerado trabalho do agricultor que tomo u possveis todas as obras que deramao Egipto uma posio de primeiro plano entre as naes da Antiguidade pr--clssica. As pirmides de Giz, as syringaetebanas, as esttuas colossais, os obeliscos e os templos imponentes que surpreenderam os visitantes gregos e romanos,

    tal como surpreendem ainda hoje os turistas modernos, as jias finamente trabalhadas, os linhos finssimos, as alfaias e os utenslios de todo o gnero, hoje dis

    persos em coleces por todo o mundo, o conforto domstico da camada superior da populao, as conquistas militares, a expanso comercial, a influncia eo prestgio no exterior, em suma, toda a herana deixada pelo Egipto humanidade tem na sua base o suor do rosto do campons.

    Durante os trs milnios da histria do Egipto, o campons foi a espinhadorsal da nao. Tbdavia, conhecemo-lo e conhecemos a sua classe social deuma forma confusa, imperfeita e unilateral. Nada sabemos directamente, isto ,

    atravs de documentos redigidos na primeira pessoa que tenham chegado atns. um facto desagradvel, mas que no surpreende; na realidade, sendomaioritariamente analfabetos, os camponeses egpcios no nos deixaram testemunhos escritos da sua vida e das suas pessoas, das suas aspiraes, das suasesperanas e da sua opinio acerca da sua humilde condio e do seu infortunado destino. O campons situava-se no degrau inferior da escala social, erauma molcula da enorme massa de gente vulgar, indistinta, que constitua amaioria da populao egpcia. Lutava durante toda a vida com a misria, as privaes e o cansao fsico e desaparecia sem deixar no mundo vestgios de si pr

    prio: o seu cadver era abandonado no deserto ou, na melhor das hipteses, eralanado para uma estreita vala cavada na areia, sem qualquer pedra tumularcom o seu nome.

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    O que sabemos sobre o campons egpcio provm de fontes epigrficas, lit

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    os relatos de viajantes europeus no Egipto dos sculos x v n , XVIII e XIX e, porltimo, mas no menos importantes, as obras sobre os usos e costumes dosmodernos egpcios escritas por observadores ppr

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    campos e, depois de os ter irrigado, toma a baixar. Ento, cada um semeia o seucampo e nele introduz os porcos para que as sementes penetrem na terra; depois, stem de aguardar o perodo da colheita. Os porcos tambm lhes servem para debulhar

    - r_ojrigo, qne i

    Diodoro, por seu lado, declara que o Nilo supera todos os rios do m undo pelos

    benefcios que proporciona humanidade, e acrescenta que as guas d a cheia, que

    sobem lentamente, arrastam consigo lama fresca e frtil e impregnam os campos,

    tomando a tarefa do campons ao mesmo tempo leve e proveitosa. Mal as guas

    voltam ao seu nvel normal, os camponeses comeam a trabalhar o solo, que ficou

    mole e hmido com a cheia; a sementeira e a colheita eram bastante fceis:

    A maior parte deles lana apenas as sementes, leva os rebanhos para os campos

    e eles enterram as sementes: quatro ou cinco meses depois, o campons regressa e faza colheita. Alguns camponeses servem-se de arados leves, que removem apenas asuperfcie do solo humedecido e depois colhem grandes quantidades de cereal semgrande despesa ou esforo. De uma forma geral, entre os outros povos, todo o tipo detrabalho agrcola comporta grandes despesas e canseiras; s entre os Egpcios que acolheita se faz com poucos meios e pouco trabalho. (Diodoro Sculo, 1, 36.)

    Embora errada, esta viso cor-de-rosa da situao agrcola no Vale do Nilo

    tem uma explicao. Herdoto e Diodoro vinham de pases onde era necessrio

    trabalhar muito para se conseguir uma magra colheita de um solo hostil e

    rochoso. Portanto, ficaram impressionados com o que viram: uma terra frtil irri

    gada por um grande rio, bom clima, searas abundantes, diversidade de produtos

    agrcolas. Para eles, o Egipto era um Eldorado campestre. Todavia, na realidade,

    a situao era muito diferente e qualquer fellah antigo (e mesmo os modernos)

    poderiam desengan-los.O fenmeno natural da subida e descida das guas do Nilo ocorria, com um a

    regularidade previsvel, todos os anos e sempre na mesma poca. O que nem sem

    pre era idntico era o volume da cheia, facto de uma impor tncia fundamental

    porque implicava prosperidade ou catstrofe. Tanto a escassez da gua , o cha

    mado baixo Nilo, como o seu excesso, o alto Nilo, significavam anos difceis

    pura todo o pas. Quando as guas do rio no subiam o suficiente para irrigar a

    torra de cultivo, lavrava-se uma superfcie demasiado pequena, para a colheita da

    estao seguinte, o que provocava inevitavelmente carestias e dificuldades: era a

    situao que os Egpcios designavam por anos de fome. Pelo contrrio, quando

    a cheia era excessiva, acabava por ser ainda mais desastrosa, j que destrua a

    rede de diques e canais de irrigao, causando frequentemente perdas de vidas

    humanas, de searas e de gado; alm disso, como observa Plnio o Velho (5, 10,

    58), o excesso de gua exigia um perodo mais longo para o seu nvel voltar nor

    malidade, deixando pouco tempo para a sementeira, a germinao e a colheita

    antes da nova cheia. Os camponeses conheciam bem esta situao porque eram os

    primeiros a sofrer com a irregularidade do Nilo. Mesmo quando o nvel da cheia

    era ptimo (o que se designava por grande Nilo) e atingia a altura que, por

    experincia, se sabia ser geradora de maior produtividade, o trabalho dos campos

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    no podia ser deixado ao acaso. pis, a divina encarnao da cheia, fora generoso e trouxera prosperidade ao pas e por isso se entoavam hinos em seu louvor,agraHpppndo-lhe. flrm.t-iidn,-a sua-generosidade-e o-seu-favornfferannuificientes

    para que as searas crescessem. O rduo trabalho do homem nos campos continuava a ser preciso. Dii facientes adiuvant. O campons egpcio sabia-o melhor

    do que qualquer sbio da sua terra, dado que, enquanto os outros davam ordense emanavam directivas, era ele quem executava materialmente o trabalho.

    As semanas que se seguiam ao fim da cheia eram um perodo de grande trabalho. Canais, diques e regos obstrudos pela lama, destrudos ou arrastados pelasguas tinham de ser reparados ou reconstrudos, porque eram essenciais para o bomfuncionamento do sistema de irrigao por bacias. Para p r de novo a funcionaresse sistema, o campons tinha de trabalhar rdua e rapidamente; com efeito, a operao tinha de estar concluda o mais depressa possvel, antes de a terra secar; a cavae a lavra que, com a sementeira, constituam a primeira parte do ciclo agrcola, eram

    bastan te mais fceis quando a superfcie do solo ainda estava enlameada, mole e

    hmida, o que no se verificaria durante muito tempo sob o quente sol egpcio.A tpica enxada egpcia consistia num pedao de madeira desbastada, que ser

    via de lmina, introduzido transversalmente na extremidade de um cabo tambmde madeira e atado com uma corda: era um utenslio grosseiro e simples emforma de A, com uma perna mais curta do que a outra; havia tambm enxadasfeitas de uma s pea, construdas a partir de um ramo bifurcado. Derivado daenxada, o arado era to simples como a sua antecessora e de supor que, originalmente, no seria mais do que uma enxada que era arrastada pelo solo, primeiro por um homem, depois com a ajuda de uma corda e, finalmente, por bois.O arado normal do campons egpcio, que se manteve praticamente inaltervel

    durante todo o perodo dinstico, e mesmo depois, j era utilizado no AntigoImprio e era constitudo por uma relha, de madeira po r vezes revestida de metal,que penetrava na terra e cuja extremidade inferior estava ligada a uma compridaestaca de madeira, que tinha na outra extremidade um jugo igualmente demadeira, em forma de barra transversal, que era atado com um a corda aos chifresdos bois. s vezes, porm, o pesado trabalho de arrastar o arado era feito porhomens e no por animais de tiro. Posteriormente, o arado passou a ter umarabia ou, mais frequentemente, duas, fixadas extremidade inferior da estaca.Simples ou dupla, a rabia parece ter sido utilizada mais para fazer com que oarado penetrasse na terra do que para controlar a sua direco.

    Por vezes, o campons lavrava sozinho, mas era quase sempre auxiliado porum companheiro, que guiava os bois e os incitava com um basto, ou um chicote,e com gritos. Havia outros trabalhadores que preparavam a terra para a plantao, desfazendo com as enxadas os pesados torres de terra negra. Havia tambmum semeador, que ia extraindo punhados de sementes de uma bolsa ou de umacesta que transportava aos ombros e as ia lanando no solo hmido. Se seguia frente do arado, os bois iam enterrando as sementes na terra e a relha enterrava-asdepois ainda mais profundamente. Quando seguia ao lado do arado, ou atrsdele, a semente era enterrada por um rebanho de ovelhas que era conduzido atravs dos campos recm-semeados e obrigado a movimentar-se por um campons

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    que brandia um punhado de erva ou um a mancheia de cereal frente do focinhodos animais enquanto um outro instigava com um chicote a manada que balia.Raramente SP utilizavam bois ou burros p ara este fim: nn Delta, ferdntn viuporcos que pisavam as sementes.

    As cenas reproduzidas nos tmulos e que com tanta vivacidade retratam os

    trabalhos agrcolas, mostram tambm o proprietrio do tmulo, que podia serum funcionrio do fara inspecdonando os trabalhos nas terras pertencentes Coroa, o intendente de uma propriedade pertencente a um templo ou um proprietrio privado. Fosse quem fosse, era sempre reproduzido em tamanho muitomaior do que os homens e os animais que trabalhavam sob o seu controlo. Ou semantinha direito, numa atitude de majestosa dignidade, ou estava sentado numpavilho, ao abrigo do sol, tendo a seu lado um a mesa bem fornecida e um servoque lhe estendia alimentos e bebidas. As inscries referem que ele chegou aolocal para inspeccionar e controlar ou apenas para ver como prosseguia o trabalho nos campos. o grand seigneur.Podemos estar certos de que, em toda a sua

    vida, nunca pegou num arado.As cenas tambm incluem frequentemente breves textos que reproduzem, ou

    Ungem reproduzir, observaes feitas a propsito do trabalho dos camponeses,ordens e ditos trocados entre eles, comentrios relativos s condies do terrenoc no tempo, gritos e incitamentos dirigidos aos animais.

    lim frente, em frente!, grita aos bo.is jungidos o homem que os guia, e Iuni trs!, quando chegam ao extremo do campo; e, para o semeador:Iinteira as sementes, enterra as sementes com as mos! Um campons anima seu cansado companheiro, que traba lha a seu lado: Acorda, chefe, pa ra aI renlc com os bois. Cuidado! O patro est c e est a vr-nos. Quatro homens

    nrrastnm um arado diante do patro, que lhes recomendou, sem razo, para seapressarem, e murmuram entre eles: Olha para ns, estamos a trabalhar. No te

    preocupes com os campos, esto ptimos! O jovem campons que caminhajunto deles, lanando as sementes, completa o que eles dizem, afirmando:O nno bom, no trar misria, h todas as espcies de plantas em abundnciae os vitelos esto melhores do que tudo o resto. Um velho campons exprime am u i aprovao: O que dizes bem verdade, meu filho.

    M um campons que se gaba, enquanto, curvado para o solo como os seusdescendentes modernos, vai cavando a terra: (/Trabalharei ainda mais do queaquilo que o patro quer. O seu vizinho no to zeloso e ele diz-lhe: Amigo,

    despacha-te com o trabalho para poderes ir cedo para casa.Thl como os modernos fellahin, tambm os antigos camponeses egpcioscantavam durante o trabalho. Um grupo que anda a semear canta uma velhacano:

    (/Trabalhamos para o patro!O dia est bonito e ns estamos fresca,os bois v puxando, puxando,o cu est como o desejamos,trabalhamos para o patro!

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    O trabalho nos campos era ininterrupto e as vrias operaes iam-se sucedendo, com dificuldade e intensidade variveis, sem paragens nem fim.

    j_______ Depois da sementeira, comeava o processo de maturao. Em primeiro lugar.as terras mais afastadas do Nilo necessitavam de ser posteriorm ente irrigadas porque ficavam secas e para isso era utilizada a gua recolhida nas bacias, naturais

    ou cavadas mo pelo homem, e encam inhada para os campos que dela necessi-; tavam atravs de pequenos canais que saam dos canais maiores alimentados pelagua das bacias; o curso, a distncia a percorrer e a corrente eram regulados por

    barreiras e diques.Este sistema exigia uma ateno constante e um trabalho rduo. Com efeito,

    mesmo quando a gua corria livremente pelos canais, no p odia transpor as subidas, e a irrigao dos campos situados a um nvel superior tinha de ser feita pelo

    ij campons por meio de pesados cntaros de barro transportados aos ombros. Foij. o que se fez durante sculos, j que s durante o Novo Imprio que foi inven

    tado um engenho mecnico muito simples para tirar a gua, o shaduf, atestado

    pela pr imeira vez no sculo xv a. C. e desde ento utilizado no Egipto.O shaduf constitudo por dois pilares de cerca de dois metros, unidos emcima por um a curta haste de madeira. Sobre esta existe um a vara fina que temnuma das extremidades um recipiente para a gua e, na outra, um pesado torroque serve de contrapeso. Um homem colocado na margem mergulha o recipienteno rio ou no canal e depois, com a ajuda do contrapeso, ia-o at ao rego que

    I conduz aos campos o precioso lquido. O shaduf desempenhava bem a sua misso, mas acabava por ser um engenho cansativo e malso que tinha de ser descido, iado e esvaziado constantemente, durante todo o di, dia aps dia,enquanto o campons encarregado de o manobrar estava imerso no lodo at aostornozelos e coberto de lama da cabea aos ps.

    A nora ou roda de gua, saggiah em rabe, s aparece no Egipto durante operodo ptolomaico; chegou tarde, mas a sua vida seria longa. Gira lentamente,rangendo, puxada por um boi ou uma vaca, por vezes um camelo, que guiadoe obrigado a andar volta por um homem ou uma criana: a saggiahainda hoje um elemento caracterstico da paisagem rural egpcia.

    Quando as searas comeavam a germinar, o campons tinha outras preocupaes. O livro bblico do xodo fala de inesperadas tempestades que, no Egipto,

    podiam destruir o cereal que estava a despontar, seguidas de vagas de gafanhotosque devoravam tudo o que o granizo tinha deixado (cfr. xodo, 9, 22; 10,12).Contra a fria dos elementos e a voracidade dos insectos, o campons era total

    mente impotente, embora, certo, nunca fosse muito visitado por tais calamidades e nunca, pensamos ns, pelas devastadoras tempestades do gnero das que ovelho Jeov costumava desencadear sobre a terra dos faras. Seja como for, umapreocupao constante eram os pssaros que no cessavam de esvoaar sobre oscampos e as hortas cata de sementes, gros e fruta, em suma, de qualquer vegetal que pudessem debicar e comer. certo que os camponeses podiam desembaraar-se deles de uma forma mais ou menos radical: homens e crianas colocadosnos campos e nas hortas podiam afugentar os pssaros com gritos, fisgas ou agi-tanto paus e trapos e podiam captur-los com armadilhas e redes quando eles

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    pousavam n o solo, um a um ou aos bandos. Outra ameaa que pesava constante-

    mente sobre os campos cultivados eram as incurses de rebanhos vindos dos pra

    dos vizinhos procura de pasto. Quer entrassem num campo de trigo por sua

    livrejvcmtade-ou-para4-fossemrlevados por um qualquer pasto r manhoso de uma

    propriedade prxima, os animais destruam as searas, pisando-as e comendo-as.

    Para evitar essas incurses, o campons defendia o seu campo, por vezes com oauxlio de companheiros ou dos filhos. Em certas ocasies, tais medidas

    revelaram-se eficazes, mas nem sempre garantiam uma segurana total.

    Quando as espigas comeavam a adquirir um tom amarelo-dourado e se apro

    ximava a poca da colheita, outro flagelo, e no decerto o menor para o campo

    ns, surgia no horizonte: a inevitvel procisso dos inspectores de impostos, com

    0 seu squito de vigilantes, escribas e servos, que vinham m edir os campos e con

    trolar a quantidade de cereal, pa ra fixarem o montante do imposto que o campo

    ns teria de pagar ao proprietrio das terras por ele cultivadas, quer fossem da

    ( 'oroa, de um a instituio religiosa, quer de um particular.

    Por fim, chegava a poca da colheita, que era o perodo mais cansativo do ano

    para o campons. Os principais produtos da terra do Egipto eram o trigo, a espelta,

    a cevada e o linho. As colheitas do trigo e dos outros cereais revestiam-se de uma

    importncia especial porque se tratava de produtos utilizados na confeco do po

    c da cerveja, elementos basilares da dieta egpcia e pilares da economia do pas. Poroutro lado, o linho fornecia fibra txtil e sementes que eram utilizadas para vrios fins.

    As espigas eram ceifadas com uma foice de cabo curto que, no incio, era deinndelm e tinha uma lmina curta formada por pequenos slex colados uns aos

    outros. No Novo Imprio, a lmina era de bronze e, na poca tardia, foi substi-

    1u ida por uma lmina de ferro. Com u ma das mos, o ceifeiro, num a posio

    quase erecta, agarrava as esteias e, com a outra mo, cortava-as sob as espigas;

    depois, atirava ao cho as espigas cortadas e continuava o seu trabalho. A palhaera deixada no solo, provavelmente, para ser posteriormente colhida e usada

    como forragem ou na confeco de tijolos ou de cestos, ou para ser utilizada

    cflirio combustvel; dizemos provavelmente porque no possumos nenhuma

    informao directa sobre o destino que lhe era dado. Os ceifeiros eram seguidos

    pelos respigadores (nas pinturas e nos relevos tumulares, os respigadores so

    mulheres e crianas) que apanhavam as espigas do cho e as amontoavam numa

    das extremidades do campo, metendo-as depois em bolsas, cestos ou largas redes,

    que eram transportados para as eiras pelos camponeses ou por burros.

    A eira, provavelmente situada perto da aldeia, era uma rea circular mais ou

    menos ampla, em terra batida, onde as espigas eram espalhadas e depois pisadaspor manadas de bois ou de burros ou batidas com manguais e chicotes que sepa

    ravam o gro da casca.

    Era tambm na eira que se procedia ltima operao: joeirar o cereal.

    O gro pisado era metido em gamelas de madeira e atirado ao ar; a parte mais

    pesada caa de novo no cho, enquanto a casca era levada pelo vento.

    Nessa altura, chegava o inevitvel escriba com a paleta e a tabuinha e tomava

    notas para determinar a importncia do imposto, o montante do produto dos

    campos, que fora calculado na sua presena antes de o gro j limpo ser metido

    em sacos para ser armazenado nos celeiros.

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    A cultura do linho era a segunda mais importante, depois da cultura, funda

    mental, do trigo, da cevada e da espelta. O linho podia ser colhido em diferentes

    .perodos, -conforme-a-Utihzag&-ardardh&.-& qxie sg destinava chfecgcTd teci-

    dos finos era melhor quando colhido antes de estar totalmente crescido, com este

    ias verdes-escuras encimadas por flores vermelhas, porque, nessa fase, eram flex

    veis e macias, ao passo que, quando a planta atingia o seu crescimento mximoe adquirira um tom amarelo-acastanhado, as fibras eram mais grossas, prprias

    para a confeco de tecidos resistentes e grosseiros, cestos, cordas e redes.

    Ao colherem o linho, os camponeses no cortavam a planta, arrancavam-na

    do solo. As razes eram separadas e deixadas no local e as longas esteias eram ata

    das umas s outras e levadas para serem limpas e tratadas. Para separar as semen

    tes das esteias, utilizava-se um instrumento dentado em forma de pente que era

    colocado em ngulo sobre o terreno. Uma parte das sementes era deixada para a

    sementeira e a outra parte era utilizada em receitas mdicas e, provavelmente,

    tambm para delas se extrair o leo: de facto, tinha de se lavar as esteias para

    remover a parte lenhosa das fibras e depois bater, raspar e pentear de novo asfibras, para as limpar e tomar flexveis, prontas para serem fiadas.

    E agora, antes de o deixarmos, escutemos a voz do campons que colhe o

    linho quando, na poca da colheita, trabalha duramente:

    Belo o dia que desponta sobre a terra,uma brisa fresca sopra do Norte,o cu est de acordo com os nossos desejos,

    trabalhemos com vontade!

    Gritos de condutores de bois e de burros incitando os seus animais justifica-

    damente ou apenas por hbito: Em frente, o mais depressa que puderes!,

    Depressa, em frente, no andes s voltas!, ressoam nos campos egpcios na

    poca das colheitas, mas pouco nos dizem acerca da condio do campons: com

    efeito, so gritos intemporais e podem ser ouvidos na boca dos condutores de ani

    mais de todo o mundo. Um campons incita um burro que transporta uma

    pesada carga com gritos e bastonadas constantes, e o seu companheiro, que o

    segue conduzindo outros burros, parece contente com o que v e exclama: Muito

    bem, meu jovem amigo; s grande, grande, companheiro!

    Um campons idoso penteia o linho zelosamente e diz, gabando-se, ao jovem

    que transporta outro feixe: Traz-me 11 000 feixes, se quiseres, que eu penteio-os

    a todos! E o jovem responde: V, no fales tanto, campons velho e careca!J ouvimos trabalhadores rurais queixarem-se da severidade do patro. Eis

    mais algumas dessas queixas murmuradas entredentes. Uns camponeses carregam

    barcos com cevada e espelta que trazem dos celeiros em sacos transportados aos

    ombros. O patro, que os observa, incita-os a apressar-se. Eles lamentam-se:

    Vamos passar o dia todo a carregar cevada e espelta? Os celeiros j esto to

    cheios que os montes de cereal transbordam. Os barcos tambm j esto muito

    carregados e regurgitam de cereal. E ainda nos ordenam que nos apressemos. Os

    nossos coraes sero de ferro?

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    Regressamos eira e ouvimos cantar um rapaz enquanto vai guiando os boisque andam s voltas; o seu chicote, que cai ritmadamente no lombo dos animais,marca o compasso do duro trabalho dos animais e da cantiga do jovem boieiro:

    Debulhai, que para vosso bem,debulhai, que para vosso bem

    bois,debulhai, que para vosso bem.Comereis a palha,que o grSo para o vosso dono.No vos mostreis cansados, est fresco,

    bois, debulhai.

    um canto melanclico, que alude resignao do campons para com o seutriste destino: de facto, sabendo ns o que ser feito do gro e da palha, o queficar para o jovem boieiro?

    A grande maioria dos camponeses egpcios era utilizada no cultivo dos produ

    tos rendosos para o pas: em primeiro lugar, os cereais, depois, o linho. Havia,porm, outro tipo de cultura que era bastante praticado: muitos lotes de terreno,grandes e pequenos, eram destinados viticultura. A vinha era conhecida e cultivada no Egipto desde os tempos mais remotos. Os vinhedos principais ficavam noDelta e nos osis ocidentais de Kargha e Dakhla, mas tambm havia vinhas emherdades e hortas. frequente encontrar-se cenas de vindimas pintadas nas paredes dos tmulos, sobretudo durante o Novo Imprio: mostram o camponscolhendo, pisando e espremendo os cachos, fazendo escorrer o sumo para vasilhas de barro, onde ficava a fermentar, e depois transportando aos ombros paraa cave os pesados cntaros cheios de vinho.

    Na poca da vindima, em Agosto e Setembro, os cachos maduros eram colhi

    dos mo e levados em cestos de vime para uma grande vasilha de madeira oude pedra, onde eram pisados por cinco ou seis homens. Atravs de finos feitos navasilha, o sumo escorre para um recipiente que o recolhe. Os restos viscosos dascascas, sementes e cachos que ficam no fundo da vasilha so recolhidos e metidosnum grande saco, que depois torcido para espremer o sumo remanescente.Finalmente, o sumo fica a fermentar e a clarear naturalmente, em grandes vasilhas de barro sem tampa. Depois de concluda esta fase, o sumo era vazado para

    jarros altos, de bico, que eram selados e etiquetados com o local e o ano da vindima c, no caso de o vinho no se destinar ao consumo imediato, guardados.Nessa altura, mais uma vez, o odiado escriba, que j tinha contado os cestos deuvas trazidos da vinha pelos vindimadores, podia ser visto de novo a anotar,

    perante o mudo terror do campons, o nmero dos jarros de vinho que iam parao cobrador dos impostos.

    Debrucemo-nos agora sobre outra ocupao caracterstica do campons nasua luta pela vida.

    Enquanto os privilegiados, entre os quais se inclua o fara, iam para os terrenos hmidos e pantanosos para se dedicarem ao desporto da caa e da pesca, o

    pobre campons pescava e caava pssaros nas maremas para sobreviver e para

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    encher a dispensa dos seus superiores com os produtos do seu trabalho. Por vezes,

    pescava com a lana e o harpo, mas considerava mais proveitoso utilizar umanassa on uma armadilha He_vim&.(uma^armadllha entrapadar-em-forma-de-tar-

    rafa, que enchia de pedras para a tornar mais pesada), ou servia-se de uma rede de

    formato mais ou menos cnico ligada a um tringulo de madeira, que podia ser

    manobrada com a mo. Para se conseguir resultados ainda melhores, podia usar-se

    uma rede de arrasto, accionada por vrias pessoas. Uma parte da pescaria era ime-

    diatamente levada para o mercado mais prximo e a outra parte era oferecida ao

    patro; todavia, a maior poro era amanhada no prprio local: os peixes eram

    abertos, esventrados, espalmados e pendurados em paus para secarem. Depois,

    eram conservados e consumidos durante a poca em que era proibido pescar.

    Os ricos desdenhavam do grosseiro equipamento do pescador comum e utiliza

    vam apenas o harpo. Do mesmo modo, quando iam caar, actividade que as ciasses mais abastadas tambm praticavam apenas por desporto, serviam-se de um bas

    to de arremesso ou boomerang, que, a acreditar nas pinturas tumulares,arremessavam contra a presa com uma habilidade sempre infalvel, mantendo-se

    em elegantes poses sobre os leves barcos de papiro. No entanto, tambm neste caso.o caador humilde, que tinha de procurar a caa para a mesa do patro, capturavaas aves selvagens de uma forma menos elegante, mas mais eficaz. Por vezes, usava

    armadilhas com laos, mas normalmente recorria a grandes redes de arranque oude estico. Para se obter um bom resultado com a rede de arranque, que era esten

    dida no solo pantanoso onde se pensava que as aves iriam pousar, eram precisoscinco ou seis homens, e por vezes mesmo dez ou doze, fortes e lestos. De uma s

    vez, podiam ser capturadas de vinte a quarenta aves, sobretudo gansos. Iim

    seguida, eram tiradas, uma a uma, da rede: a maior parte era metida em gaiolas

    quadradas e enviada para o mercado da aldeia ou para o galinheiro do patro; aoutra parte era morta no local, depenada, amanhada e levada para a cozinha.

    Nas hmidas faixas de terra que ladeavam os pntanos, a erva crescia, cambe

    rante, e o gado pastava, guardado por pastores que, indubitavelmente, eram os tmbalhadores que mais mal viviam. Tratava-se de pessoas semi-selvagens, rudes, rir

    aspecto desagradvel; uns eram calvos, outros tinham cabeleiras e barbas hirsutas;devido s deficincias alimentares, uns eram barrigudos, outros eram magros

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    e da sua vida: no muito, decerto. O leitor no deve esperar nada do gnero deOs Trabalhos e os Diasde Hesodo, ou dos tratados agrcolas de Cato, Varroe Columela, As fontes literrias referentes a este assunto so extremamente escas-sas e, excepo da histria, de que falaremos a seguir, de um sacerdote despro

    movido que se converte em campons, esto repletas de preconceitos que as adulteram, dado pertencerem ao gnero literrio denom inado literatura tendenciosaou literatura motivada. So textos escritos com uma finalidade oculta, mas

    bastante bem definida: exaltar o ofcio de escriba e depreciar todos os outros,para incitar o jovem estudante a ser traba lhador e a converter-se em escriba comorecompensa dos seus esforos.

    a esse gnero literrio que pertence a Stira dos Ofcios, que data do MdioImprio (2150-1750 a. C.) ou mesmo de pocas mais remotas. Um tal Dua, ouDuaf-Khety (designado, neste livro, apenas por Khety), acompanha o filho capital, onde ir frequentar a escola governamental de escribas e, durante a viagem, descreve-lhe a vida desafortunada daqueles que desempenham outros cargos. Referindo-se ao sofrimento dos camponeses, afirma o seguinte:

    O campons passa a vida a lamentar-se,tem a voz rouca como a do corvo.Tbm feridas ftidas nos dedos e nos braos.Est farto de estar na lama,e veste-se de farrapos e de trapos. como se vivesse entre os lees;quando adoece, jaz no solo hmido.Quando abandona o campo e regressa a casa, tardinha,

    fica exausto com o caminho.[-]O caador sente-se mal quando espia os pssaros.Quando os enxames voam perto dele,comea a dizer Se tivesse uma rede!Mas Deus no lha d,e ele zanga-se consigo mesmo.UDeixa que te fale tambm do pescador,que est numa situao ainda pior.

    Trabalha na margem, rodeado de crocodilos elamenta-se constantemente.E nem consegue dizer: Crocodilo!

    porque o medo cegou-o.Ao sair da gua, que corre veloz,exclama: Esta a vontade de Deus!

    certo que o quadro nos descrito com cores demasiado sombrias, mas,embora contenha uma b oa dose de exagero retrico, existe nele uma par te de verdade; em todo o caso, revela a antipatia de Duaf para com os camponeses e o seu

    profundo desprezo por essa pobre gente, cujo trabalho incansvel permitia queele e todo o povo egpcio vivessem na abundncia. H boas razes para crer que

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    estes sentimentos desfavorveis fossem partilhados pelos pares de Duaf e por aqueles que lhes eram superiores (Duaf era um representante tpico da classe mdia), jque a condico do campons antigo era muito semelhante do modernofellahque,at abolio da monarquia, em 1952, era desprezado pelos patres e pelos seus superiores, que o colocavam ao mesmo nvel do gado e o tratavam de um modo semelhante.

    Do antigo Egipto chegaram at ns vrios papiros com clectneas de textosdidcticos utilizados, durante o Novo Imprio, na instruo dos escribas. Tratam deassuntos diversos e insistem com frequncia nas vantagens da carreira de escriba enas canseiras e dificuldades de todos os outros ofcios e profisses, mas a ns interessam-nos apenas os avisos que so feitos aos candidatos acerca das misrias da vidade um campons. O trabalho nos campos era extremamente duro; as doenas podiamdestruir as searas; os bois podiam morrer de cansao ou enterrados na lama; os impostos, porm, eram inexoravelmente cobrados. Ouamos o que diz o pedagogo antigo:

    S escriba. No ters canseiras e ficars preservado de outros tipos de trabalho.

    No ters de transportar a enxada, a picareta e o cesto. No ters de guiar o arado esers poupado a todos os tipos de canseira.

    Deixa que te recorde o estado miservel do campons quando chegam os funcionrios para fixar a taxa da colheita e as serpentes levaram metade do cereal e o hipoptamo comeu o resto. O pssaro voraz uma calamidade para os camponeses. O trigoque restava na eira desapareceu, os ladres levaram-no. No pode pagar o que devepelos bois que pediu emprestados: alm disso, os bois morreram de tanto lavrarem edebulharem. B j o escriba atraca margem do rio para calcular o imposto sobre acolheita, com um squito de servos armados de bastes e de nbios com ramos de palmeira. Dizem: Mostra-nos o trigo! Mas no h nenhum trigo e o campons espancado sem d nem piedade. preso e lanado de cabea para baixo num charco,

    ficando ensopado em gua. A mulher presa na sua presena e os filhos so agrilhoados. Mas o escriba manda em todos. Quem trabalha escrevendo no paga impostos;no obrigado a pagar. Lembra-te bem disto.

    Outro mestre repisa monotonamente o mesmo assunto:

    Deixa tambm que te explique como vive o agricultor, outro duro ofcio.Durante as cheias, anda sempre encharcado, mas tem de continuar a trabalhar. Passa

    o dia a fabricar e a reparar as alfaias e passa a noite entranando cordas. Tambm passaa hora da refeio do meio-dia a trabalhar no campo. Para ir para os campos, equipa--se como se fosse um guerreiro. A terra, j liberta da gua, est sua frente, e ele vai

    buscar os bois. Depois de ter seguido o pastor durante dias e dias, regressa com elese arranja-lhes um espao no campo. De madrugada, desce para ver os bois e j no osencontra onde os deixou. Anda trs dias procura deles e encontra-os enterrados nalama, mortos; e j nem sequer tm os arreios: os chacais tambm os comeram!

    Passa muito tempo a cultivar o trigo, mas a serpente segue-o e come a semente, malela cai na lama. E isso sucede-lhe com trs sementeiras de trigo que pedira emprestado.

    Apesar da sua natureza nitidamente tendenciosa, estes textos no podem serconsiderados como meros exerccios de escribas, sem qualquer ligao com a realidade. Para o campons, a vida era de facto uma canseira constante, era pobreza,

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    doena e extrema incerteza. Estava merc de foras que no podia controlar e

    muito menos compreender: cheias excessivas ou demasiado escassas, invases,

    guerras intestinas, alteraes polticas e, last but not the least, dependia inteira-

    -mente d&isatro-ourPior-ainctaTTios agentes d patro que, como muitos dsua

    classe, nessa poca como hoje, se comportavam tiranicamente com os seus subor

    dinados, como ilustra bem esta carta do Novo Imprio.

    Um feitor escreve ao seu patro, Amenemope, administrador de terrenos daCoroa, e informa-o da situao nos campos, durante a poca das colheitas.

    Vale a pena reproduzir na ntegra a sua missiva, porque no s revela a forma

    como um agente excepcionalmente zeloso e astuto se comportava com os

    camponeses, mas tambm fornece um quadro vivo das tarefas que eram confia

    das aos trabalhadores rurais de uma grande propriedade e de como tudo se pas

    sava.

    O escriba comea por manifestar a sua dedicao ao patro e o seu zelo na

    execuo das tarefas que lhe competiam; depois, no mesmo tom, garante-lhe que

    toda a propriedade, a casa, as terras, os empregados e os animais esto em pti

    mas condies, dando implicitamente a entender que essa situao devida suaboa administrao:

    Estou a executar, com extremo zelo e uma dureza de ferro, todas as tarefas que omeu senhor me confiou. No deixarei que o meu senhor encontre em mim um erro.A casa do meu senhor est bem, os seus servos esto bem, o gado nos campos estbem e os bois nos estbulos esto bem; comem forragem todos os dias e os pastores

    trazem erva para os alimentar. Os cavalos do meu senhor esto bem e eu velo para que

    a rao de cereal lhes seja dada todos os dias, enquanto os moos da estrebaria lhesdo a melhor erva dos pntanos. Dou-lhes erva todos os dias e, uma vez por ms, douaos moos unguento para os ungirem; e o encarregado da estrebaria manda-os esfregarde dez em dez dias.

    Isto apenas a introduo. O escriba prossegue, elogiando tacitamente os seus

    talentos:

    A colheita da terra da Coroa que est sob a autoridade do meu senhor foi ceifadacom o maior zelo e o maior cuidado. Anoto todas as cargas de cereal que ceifadodiariamente e darei instrues para que o transportem para a eira. A eira j est preparada e provindenciarei para que esteja pronta uma superfcie para quarenta cargas decereal. Depois do meio-dia, quando o cereal est quente, mando todos os ceifeiros res

    pigar, excepo dos escribas e dos teceles, que levam a sua quota diria de cerealrespigado que se poupou dos dias anteriores.

    E conclui, de novo, com palavras de evidente auto-satisfao:

    rflbdos os dias dou po aos homens que colhem a seara, e dou-lhes leo para seungirem trs vezes por ms, nenhum deles me pode denunciar ao meu senhor quanto comida e ao unguento. Esta carta para informar o meu senhor.

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    Ser escusado dizer que, naqueles tempos, no havia contratos bilalcmix

    que fixassem os termos do emprego e as relages entre patro e trabalhadores.

    Por conseguirne,-O-campons-estava totalmente-r-mere-do patrOT~e~estc podia,

    ou no, sentir-se responsvel pelos seus humildes servidores e ter um procedi

    mento humano para com eles.

    Humano e responsvel era Amenemhet, que, por volta de 1950 a. C., gover-

    nou durante dez anos a provincia do Origes, no Mdio Egipto, e foi urna vcrdu-

    deira bngo para todos os seus sbditos, conforme reza a mensagem que eie dci-

    xou gravada para a posteridade nas paredes do seu tumulo em Beni Hasan, que

    citamos parcialmente:

    Era gentil, benigno e sempre louvado, um senhor adorado pelos seus sbditos. Nunca

    ofendi a filha de um homem do povo, nunca oprimi urna viuva, nunca repeli um minpons, nunca mandei embora nenhum pastor. No havia pobres na minha comunidndr.

    no meu tempo ningum era necessitado.'Quando vieram anos de carestia, mandei Inviartodos os campos da minha provincia at s fronteiras meridionais e setentrionais, c mantive vivas as pessoas, providas de alimentos, e ningum tinha fome na minha provlm ia.Dava tanto viva corno mulher casada e, no que dava, no fazia distingo entre grandee pequeno. Depois vieram grandes Nilos, portadores de trigo e de espelta, cheios de todasas coisas boas, mas no cobrei os impostos atrasados sobre a colheita.

    Vemos homens com posiges de primeiro plano regozijarem-se por tercm

    dado po ao esfomeado, gua ao sedento, roupas ao nu e por terem sido

    irmo para a viva, pai para o rfo, homem amado por todos os seus subdi

    tos. U m dignitrio declara: Transportei no meu barco quem no tinha barco.

    Todavia, at que ponto se pode dar crdito a estas declaragoes de um compoi

    tamento benvolo e caridoso? No sabemos. Nunca o saberemos. Com efcito, as

    boas intenfes de um senhor consciencioso e benemrito podiam ser annidila:;

    pelos seus agentes e vigilantes, que adulavam os superiores e se vingavam no:,

    inferiores: o feitor de Amenemope era um deles.

    O salrio do campons era pago em espcies porque a moeda metlica s pus-

    sou a ser utilizada no Egipto com a chegada dos Gregos. Tratava-se urna amen

    tica esmola e mal chegava para sobreviver: um pouco de trigo, dado por nulo par

    cimoniosa e, por vezes, urna medida de leo; o campons podia considerai :

    afortunado se, de vez em quando, lhe davam um jarro de cerveja nos dia:; tirfesta. Um pequeno feixe por dia o que recebo do meu trabalho, di/, um vrlim

    campons enquanto vai ceifando as longas estelas de trigo. Com um sabbio ni,,

    reduzido, o campons e a sua familia mal podiam sobreviver, sempre oscilamlo

    entre a triste pobreza e a mais negra misria; evidente que lhe era imposslvi I

    fazer poupangas que pudessem melhorar o seu miservel nivel de vichi. Ali-m

    disso, ainda tinha de por de parte urna quantidade do trigo to duramente ganlm,

    para pagar os impostos. Portanto, no de admirar que, frequentemente, n.io

    fosse capaz de satisfazer as suas obrigagoes fiscais.

    Os cobradores dos impostos castigavam duramente os camponeses que no

    podiam pagar. Eram espancados, presos e atirados gua, o mesmo acontecendo

    sua familia. Nas paredes dos tumulos h inmeras reproduges dos castigo*

    29

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    doenfa e extrema incerteza. Listava merc de forgas que no podia controla r e

    muito menos compreender: cheias excessvas ou demasiado escassas, invases,

    guerras intestinas, alterapdes politicas e, last but not th least, dependia inteira-

    -mente d& ^tr oG ni-p ior-a ind a, doT agnTs do patro que, como multos da sim

    classe, nessa poca corno hoje, se comportavam tiranicamente com os seus subor-

    dinados, corno ilustra bem est carta do Novo Imprio.

    Um feitor escreve ao seu patro, Amenemope, administrador de terrenos da

    Corea, e informa-o da situago nos campos, durante a poca das colheitas.

    Vale a pena reproduzir na integra a sua missiva, porque no s revela a forma

    corno um agente excepcionalmente zeloso e astuto se comportava com os

    camponeses, mas tambm fomece um quadro vivo das tarefas que eram confia-

    das aos trabalhadores rurais de urna grande propriedade e de corno tudo se pas

    sava.

    O escriba comesa por manifestar a sua dedicaeo ao patro e o seu zelo na

    execufo das tarefas que lhe competiam; depois, no mesmo tom, garante-lhe que

    toda a propriedade, a casa, as terras, os empregados e os animais esto em pti-

    mas condiges, dando implicitamente a entender que essa si tu a lo devida suaboa administrago:

    Estou a executar, com extremo zelo e urna dureza de ferro, todas as tarefas que o

    inni scnlior me confiou. No deixarei que o meu senbor encontre em mim um erro.

    A casa do meu senhor est bem, os seus servos esto bem, o gado nos campos est

    imi c os bois nos estbulos esto bem; comem forragem todos os dias e os pastores

    irn/rm erva para os alimentar. Os cavalos do meu senhor esto bem e eu velo para que

    ii mvilo de cereal lhes seja dada todos os dias, enquanto os mofos da estrebaria lhes

    ilo a melhor erva dos pntanos. Dou-lhes erva todos os dias e, urna vez por ms, dou

    aos mogos unguento para os ungirem; e o encarregado da estrebaria manda-os esfregar

    de dcz em dez dias.

    Isto apenas a ntrodugo. 0 escriba prossegue, elogiando tacitamente os seus

    tnlcntos:

    A colbeita da terra da Corna que est sob a autoridade do meu senhor foi ceifada

    min o iunior zelo e o maior cuidado. Anoto todas as cargas de cereal que ceifado

    i li in imneiUc e darei instruges para que o transportem para a eira. A eira j est prepa-

    imlii c provindenciarei para que esteja pronta urna superficie para quarenta cargas de

    rimi. Depois do meio-dia, quando o cereal est quente, mando todos os ceifeiros res-

    pk iu , A exccpgo dos escribas e dos teceides, que levam a sua quota diria de cereal

    nviplnmlo que se poupou dos dias anteriores.

    I' condil i , de novo, com palavras de evidente auto-satisfago:

    i/Ibdos os dias dou po aos homens que colhem a seara, e dou-lhes leo para se

    ungirem trs vezes por m6s, nenhum deles me pode denunciar ao meu senhor quanto

    comida e ao unguento. Est carta para informar o meu senhor.

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    Sera escusado dizer que, naqueles tempos, no havia contratos bilateraisque fixassem os termos do emprego e as relages entre patro e trabalhadores.Por conseguinte. jQ-eampons-estava-tetalmcntc merce do patro. e este podia,ou no, sentir-se responsvel pelos seus humildes servidores e ter um procedimento humano para com eles.

    Humano e responsvel era Amenemhet, que, por volta de 1950 a. C., govcr-nou durante dez anos a provincia do Origes, no Mdio Egipto, e foi uma vcrda-deira bSnqao para todos os seus subditos, conforme reza a mensagem que eie dei-xou gravada para a posteridade nas paredes do seu tumulo em Beni Hasan, que

    citamos parcialmente:

    Era gentil, benigno e sempre louvado, um senhor adorado pelos seus si'itulnm. Nmiofendi a filha de um homem do povo, nunca oprimi urna viliva, mnu-u icprli um ......

    pones, nunca mandei embora nenhum pastor. No havia pobres u inuliu rninimi.1,1,1.,no meu tempo ningum era necessitado.'Quando vieram anos de carc-siiu, mmulri im un

    todos os campos da minha provincia at s fronteiras meridionais e sci culi iomiin,, mitive vivas as pessoas, providas de alimentos, e ningum tinha fome mi iiiinlin piovili, InDava tanto viuva corno mulher casada e, no que dava, no fazia distintilo cube p.iuntl.

    Tbdavia, a t que ponto se pode d ar crdito a estas declara?6es de uni minimitamento benvolo e caridoso? No sabemos. Nunca o saberemos. Com eU-iu,, u-,boas intenfdes de um senhor consciencioso e benemrito podiam sn iimu Iih la-ipelos seus agentes e vigilantes, que adulavam os superiores e se vingavnm uosinferiores: o fetor de Amenemope era um deles.

    O salrio do campons era pago em espcies porque a moeda metlica s pussou a ser utilizada no Egipto com a chegada dos Gregos. Tratava-se urna aulicitica esmola e mal chegava para sobreviver: um pouco de trigo, dado por uno parcimoniosa e, por vezes, uma medida de leo; o campons podia considerai -a-afortunado se, de vez em quando, lhe davam um jarro de ccrveja nos dius dr

    festa. Um pequeno feixe por dia o que recebo do meu traballio, di/, um vi tu.!campons enquanto vai ceifando as longas estelas de trigo. Com um ............. .. >reduzido, o campons e a sua familia mal podiam sobreviver, ,sempir ,, il.m,|,.entre a triste pobreza e a mais negra misria; evidente que lhe- em impn-r.iv, Ifazer poupancas que pudessem melhorar o seu miservel nlvcl de vide AlPndisso, ainda t inha de p6r de parte uma quantidade do trigo to duramenie gmilii,,

    para pagar os impostos. Portanto, no de admirar que, frequcntcmenlr, minfosse capaz de satisfazer as suas obriga?5es fiscais.

    Os cobradores dos impostos castigavam duramente os camponeses que miopodiam pagar. Eram espancados, presos e atirados gua, o mesmo aeontcccndo

    sua familia. Nas paredes dos tximulos h inumeras reprodufes dos castigo*

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    Ii

    infligidos a quem no pagava os impostos. Ve-se o pobre campons, nu, estendidono chao ou preso para ser chicoteado e, depois, espancado e deixado, literalmente,

    mais morto do que vivo. Por vezes, para d ar maior vivacidade cena, reproduz-se

    tambm-a-mulher der infoitu tradoTqu, de joelhos, implora misericrdia.

    Os extremos de crueldade a que podem chegar os cobradores so assim descri-

    tos por urna testemunha ocular, nos primeiros tempos da d o m in a lo romana:

    H pouco tempo, nomearam um cobrador de impostos no nosso distrito. Quandonlguns devedores, que estavam atrasados nos pagamentos, naturalmente por serem pobres,liigiram com medo das terriveis consequncias de um castigo insuportvel, eie apode-rou-se forpa das suas mulheres, dos filhos, dos pais e de outros parentes, e, para queeie dissessem onde se tinham refugiado os seus parentes ou para que pagassem as suasdlvklus, espancou-os, pisou-os e fS-los passar por todo o gnero de ultrajes e tratou-osile um modo ignominioso. Mas eles no podiam fazer o que eie queria porque no sabiamonde eles estavam e porque eram to pobres como os fugitivos. Por isso, o cobradorcoiillmiou a castig-los e a tortur-los e, por firn, matou-os, utilizando mtodos de exe-

    l'iipflu recentemente inventados. Bncheu grandes cestos com areia e, depois de lhes teriirmlmmlo ao pescopo esses enormes pesos, mandou-os colocar no meio da prapa domnnulo, ao ar livre, de modo que, enquanto eles caiam mortos sob o cruel tormentodn imiiIoncastigos, ou seja, os pesos pendurados ao pescopo, o sol e a vergonha de seremvIniiw por qnem passava, todos os que observavam o castigo sofriam antecipadamente lumini que lhes estavam reservadas. Alguns deles, cujas mentes imaginavam os facio nirllmr do que os olhos, sentindo-se torturados nos corpos dos outros, apressavam- tuninr-se com a espada, ou com veneno, ou enforcavam-se, considerando que, na

    imitrtglcn sltimpSo, era uma enorme sorte morrer sem sofrer. Os outros, que no tinhamdri ldlilo imitar-se, foram colocados em fila, como se faz aquando da entrega de umalinrniipit, piimciro os que eram parentes em primeiro grau, depois os de segundo grau,ilnpols o de terceiro e assim por diante, e por essa ordem foram mortos. E quando noImvln parentes, o severo castigo estendia-se aos vizinhos e, por vezes, s aldeias e cida-iIr, que logo se tornaram desoladas e vazias de habitantes, que abandonavam as suasiirm c Inni para locais onde esperavam escapar detenpo.

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    edifcios, templos, pirmides, ou para misses de carcter militar, trabalhos nas

    pedreiras e nas minas, quando era necessria uma mo-de-obra supranumerria.

    Nos trabalhos executados_nos-incios-da-histria do Etriplo i era utilizada a cor-

    veia,que foi imposta sempre com o mesmo rigor at ser abolida, pelo menos no

    papel e no decerto por razes humanitrias, mas apenas por oportunidade

    poltica , em 1889.Os nicos camponeses, e tambm outros trabalhadores de todos os tipos, que

    eram isentos da corveia (em teoria, sempre, mas nem sempre na prtica) eram os

    que prestavam servio em certos templos que, por decreto real, gozavam de privi

    lgios especiais e de imunidades: a iseno pessoal da corveiaera um deles.

    Decretos de imunidade deste tipo foram emanados pelos faras do Antigo

    Imprio (a comear por Sneferu, fundador da 4.a dinastia, por volta de 2600

    a. C.), do Primeiro Perodo Intermdio, do Novo Imprio e da poca tardia.

    TOdavia, esses decretos reais permaneciam muitas vezes letra morta e as suas dis

    posies quanto iseno do pessoal dos templos em grande parte formado

    por camponeses referente a impostos e servios de corveia tambm eramamide violadas por funcionrios e agentes da Coroa.

    Um dos objectivos do decreto emanado pelo rei Horemheb (por volta de 1300

    a. C.) era acabar com o comportamento arbitrrio, ilegal e violento de agentes da

    corte e de oficiais do exrcito que, em proveito prprio e em nome do fara, exi

    giam ilegalmente impostos e requisitavam cidados livres para servios de cor

    veia, Ignoramos se o decreto foi respeitado mas, tanto quanto sabemos, pode ter--se transformado em letra morta no preciso momento em que era assinado.

    Quando o excesso das exigncias fiscais, as constantes requisies para as cor

    vetas,a crueldade dos senhores, os salrios miserveis e as terrveis condies de

    vida se tomavam intolerveis, o campons, desesperado, abandonava as suas

    alfaias, esquecia a famlia, a casa e os campos, e fugia. Anachresis ou secessio,

    a fuga dos campos e o abandono do trabalho agrcola, era o ltimo refgio do

    infortunado agricultor egpcio. Podemos encontrar vestgios disso no incio da

    12.a dinastia (c. 2000 a. C.) e era algo a que se recorria muito durante o Novo

    Imprio e a poca tardia, com diferentes graus de intensidade e frequncia, deacordo com as circunstncias; tornou-se muito frequente na poca os Ptolomeus

    e atingiu propores alarmantes no Egipto romano, quando os habitantes de

    algumas comunidades rurais ficaram reduzidos a um exguo nmero de pessoas,

    na sua maioria velhos, mulheres e crianas, que a custo substituam os fugitivos

    no cultivo da terra; havia tambm aldeias completamente abandonadas. A admi

    nistrao, quer a nvel local quer a nvel nacional, recorreu repetidamente a negociaes e a violncias para combater a anachresis,mas raramente conseguiu su

    primi-la. A preocupao do Governo era plenamente justificada. Tais fugns

    constituam um grande prejuzo para as foras trabalhadoras egpcias, e o aban

    dono dos campos significava que ficavam por cultivar reas de terra frtil e pro

    dutiva, o que acarretava graves consequncias para a economia do pas. A ana

    chresis tinha tambm repercusses sociais, j que alguns dos fugitivos

    procuravam refgio nos pntanos e no deserto, ou andavam de aldeia em aldeia,

    formando bandos de salteadores que saqueavam as zonas isoladas e privadas de

    proteco e roubavam os viajantes, sobretudo nas reas menos povoadas do pas.

    31

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    Por firn, muitos fugitivos iam para as cidades, pequenas e grandes, esperando que0 seu rasto desaparecesse na enorme massa annima de pobres e deserdados queexislin sempre nesses centros urbanos, onde depressa se convertiam em andraio-;ios mendlgos e nunca mais eram apanhados.

    ( 'hegndos a este ponto, seri oportuno ver corno era o lugar e quem eram asque o desgragado campons abandonava.

    Pnilin ter vivido como pastor, sozinho, num casebre de canas nos confins doilrwrln, junlo da terra que cultivava. Todavia, mais provvel que vivesse, cornoii iiinioi lii dos seus semelhantes, num casebre feito de lama ou de tijolos crusvim no noi, mima pequena e desolada aldeia situada, corno era frequente, a urnailinifliii ln cmisidervel dos campos.

    'IbiliiN ii s nldcias de camponeses eram idntica.? e deviam diferir muito pouco

    ibis qiip r,si,stelli no Egipto dos nossos dias. Eram um aglomerado de casebres cin-,'rulli,nr desordenados, no meio de um emaranhado de estreitas, sinuosas e som-

    in Imi virili,s o de becos sem salda. Chamar casas s habitages urna hiprbole,|i\ que, mi renlidnde, no passavam de srdidos tugurios de um unico piso, comni limimi pnrtidns e sem janelas. Na sua maioria, constavam apenas de urna divi-uno r num poucns as que tinham duas, contiguas. O telhado, feito de ramos e

    folliti dr pulmeira, ou de canas e palha, era to leve e to baixo que, se umIn nurui dr mini uni mdia se levantasse de repente, podia abrir um buraco com a

    1ntir\n Nilo linvia soalho, s a terra batida, muito raramente seca e permanente-tiunilr In'iiiildii, que empestava o ar com um cheiro insuportvel, porque umannuir miniem de homens, mulheres, criangas e animais, todos juntos, se amon-

    hmvittii iliumile a noite no pequeno e sujo tugrio: Herdoto ficou surpreendido

    i oni a pminiscuidade entre homens e animais que existia no Egipto (cfr. 2, 36).Nrssus clioiipanas nao havia mobilirio propriamente dito: no havia cadei-

    imi, rumas mi mesas, mas apenas urna ou duas velhas esteiras de palha, onde sedm mia, um jarro de barro para a gua, vasilhas toscas e um cesto para manter

    (unii sempre cficazmente) o po e o gro afastados dos enxames de ratos e rata-/ luiiiN i [u infestavam a casa e loda a aldeia. Era o suficiente para o campons,ou uiclliov, era tudo o que eie conseguia possuir, e tinha to pouco valor que alimili, (|inuido existia, ficava aberta de dia e de noite, j que a extrema pobrezados urus Imis terrenos bastava para afastar os ladres.

    Unni Inje de pedra colocada no cho, no angulo da parede posterior, era a

    Ini nini, e o fumo saia por um orificio feito no tecto. O cho estava coberto de resimi niiiofi e de dejectos de animais, e tambm de fezes humanas, como refendopoi llerdoto, que afirmava que os egipeios faziam as suas necessidades dentrodi' cusu; loda essa mals e ftida sujidade atraia enxames de moscas, que, alias,ufio inportunavam mais os camponeses do que importunam ainda hoje os fel la-hln. fosse corno fosse, a atarefada dona de casa nem sempre podia interromperii sua lida diria para varrer o lixo do cho e atir-lo para o caminho; quando olii/.ia, tinha de separar antes os exerementos, que eram utilizados corno combustivel.

    Pelo mesmo motivo, embora os becos tortuosos e as tenebrosas vielas dasaldeias estivessem cheios de toda a espcie de restos, com pogas de gua lodosa

    c ptrida aqui e ali e com montes de lixo e de sujidade, s raramente se viam

    32

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    montes de estrume. Diariamente, os excrementos dos burros, bois, vacas e ovelhas

    so recolhidos nos caminhos, ainda quentes, hmidos e fumegantes, pelas crianas

    o outro, apanhando, com grande diligncia e deciso, os dejectos com as mos e

    metendo-os num cesto que levam cabea. Herdoto deve t-los visto e talvez pen

    sasse nessa cena quando escreveu que os Egpcios apanham o esterco com as mos

    (2, 36): com efeito, os dejectos dos animais so apanhados mo pelas crianas,

    nos caminhos, cena que se repete ainda no Egipto de hoje. Os dejectos domsticos

    e o esterco trazido pelas crianas eram depois misturados, batidos e transformados

    numa pasta que era moldada mo e convertida numa espcie de tortas que eram

    postas a secar ao sol: essas tortas eram o combustvel do campons.

    Todas as aldeias tinham um charco, o omnipresente birkah das regies egp

    cias modernas, lodoso espelho de gua cinzento-esverdeada, malcheirosa, total-

    mente insalubre, onde o gado bebia e de onde as mulheres tiravam a gua parauso domstico; perto desse charco havia sempre uma lixeira e outros montes de

    restos que eram revolvidos por falces, abutres, ces e porcos, que brincavam e

    vasculhavam em busca de um problemtico alimento.

    Nestas condies, e sem os mais elementares cuidados de higiene, as aldeias

    eram repugnantes focos de infeces. As prprias doenas endmicas que atormen

    tavam as classes mais elevadas pesavam mais sobre os habitantes dos campos.

    O campons era presa fcil das doenas, porque todo o seu sistema imunitrio

    estava gravemente minado pela dureza do trabalho, pela m alimentao, pela

    extrema pobreza, pelas preocupaes constantes, pela dura luta pela sobrevivncia,pela insalubridade d a habitao e pela sujidade d a aldeia onde passava a sua vida.

    A oftalmia, propagada pela areia finssima e pelo p que havia no ar, pela ter

    rvel luz do Sol, pelos enxames de moscas, pela porcaria omnipresente e pela

    ausncia da mnima higiene pessoal, fazia estragos entre os camponeses. A aldeia

    estava repleta de pessoas de olhos remelosos, zarolhas, cegas e por gente de todas

    as idades com as plpebras inflamadas e supuradas.

    A bilharziose era endmica: trata-se de uma doena que os camponeses con

    traem ao andar na lama, nos charcos ou nas guas estagnadas dos canais, sempre

    repletas de certas espcies de caracis de gua, portadores ou transmissores dos

    germes da infeco. A doena provoca uma debilidade crnica, anemia e apre

    senta uma srie de graves complicaes. No ano de 1950 da nossa era, 95% dos

    fe llahin sofriam de bilharzioze, e essa percentagem no devia certamente ser

    menor entre os camponeses da poca faranica, que ignoravam totalmentc as

    normas higinicas e sanitrias.

    A hepatite, ou inflamao do fgado, era tambm um a doena comum entre os

    camponeses; privando-os dos elementos essenciais que os converteriam em homens

    vigorosos, reduzia-os a um estado de prostrao quase constante e tomava-os pre

    sas fceis de toda a espcie de outras doenas, visto reduzir as suas defesas naturais.

    Tambm era frequente a dracunculose, ou doena do verme-da-Guin, que secontraa bebendo gua contaminada por pulgas-de-gua e produzia vermes que

    chegavam a atingir 80 cm, que se alojavam na pele, causando bolhas dolorosas e

    uma srie de infeces secundrias.

    33

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    O alimento principal, ou melhor, o alimento quase exclusivo dos camponesesera o po. A farinha com que era confeccionado ra desigual, grosseira, e conti-nha urna grande quantidade de p de areia trazida pelo vento e de outras impurezza. -G camponrriTrTnastigava delicadamente o po, triturava-o e retirava-o adisto das maxilas, como o gado fazia com a forragem. As impurezas que se tor-mivam abrasivas estragavam os dentes mais fortes e havia velhos com a dentadura

    lolda at s gengivas, corno os cavalos.Outro flagelo era a disenteria amibica que desde a Antiguidade continua

    nInda a grassar entre a popula?o u rbana e rural do Egipto. Tmbm se demons-imn ipic entre os camponeses egfpcios, que andavam quase sempre descalpos,liiivin lima grande quantidade de feridas e doenpas dos ps e das pemas.

    A l'alta de espago impede-nos de esgotar o longo e triste rol das afecges quepodlum atlngir o campons e o trabalhador rural.

    Niibemos que, por vezes, as equipas de trabalhadores das minas do Estado edas pedreiras tinham um mdico ou um especialista na cura das mordeduras deesemplilo. No entanto, no h a minima prova de que alguma autoridade, desde

    o larad at ao chefe da aldeia, tenha alguma vez pensado em proporcionar aosrampone,ses um minimo de cuidados mdicos; embora o argumentum e x silentioseia notoriamente inverosimil e pouco consistente, ousariamos sugerir que nuncanmln Ibi Icito nesse sentido e que, quando o campons adoecia ou tinha um aci-drnir, s podia recorrer a si mesmo. muito provvel que, na maioria dos casos,ilrhasse n natureza seguir o seu curso normal ou ento recorria a algum dos tia-ininenios imdicionais de origem desconhecida que, tal corno as superstifSes,enim, iirssii poca corno hoje, transmitidos oralmente de gerago em gera?o. Ourullio, se tinha posto de parte o suficiente para pagar, podia consultar o curan-ilnlro locai ou um curandeiro itinerante. Depois de terem consultado o seu livroile meillcnmcntos, tanto um como o outro lhe recomendariam que untasse urna

    lilecni purulenta com um unguento infalivel feito base de sementes de alcaraviarcxcicmcnios de gato, ou que bebesse urna po?o feita com a urina de um escribar a bllis de um boi, garantindo ao campons ingnuo que, como o moderno

    fellah, postava que lhe receitassem medicamentos que a eficcia do remdiol'ora iil demonstrada milhares de vezes.

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    gentileza e ad u la lo . O prprio chele no hesita m fazer promessas vs para pr

    firn s queixas. Ao povo so impostas restriges de todo o gnero; os pagamentos,

    em espcies, so escassos: alm disso. as autoridades exoloram _os_hahitantes_

    dividindo em minsculas partes as ragoes de trigo e pagando os salrios aos cam

    poneses com medidas falseadas: Wermai fala de urna medida que tinha sido

    encurtada e reduzida a um tergo da grandeza declarada.

    Os impostos so insuportveis e quem no consegue pag-los preso. Wermai

    tambm se ve em apuros por esse motivo: os impostos eram demasiado onerosos,

    no conseguiu pag-los a tempo. O prfido chefe levou-o perente o tribunal locai

    e f-lo condenar por no ter pago os impostos a tempo. A situago piora e os

    camponeses, desesperados, descuram as colheitas e abandonam mesmo as melho-

    res terras arveis, fugindo. O chefe da aldeia v reduzir-se o seu poder e no sabe

    o que fazer para tentar deter os fugitivos e induzir os grevistas a voltarcm a

    pegar no arado.

    Havia pocas de instabilidade social quando as classes trabalhadoras na pani

    ria, sempre oprimidas e desprezadas, j no podiam suportar os seus tormeniose se entregavam a vagas de violncia e de rapina, devastando a regio c invcriaulo

    as condiges do pobre e do rico:

    O Nilo transborda, mas ningum lavra,

    todos dizem: No sabemos o que sucedeu na regio.Os corages so violentos, a pestilncia dilacera a terra,

    por todo o lado h sangue, a morte predomina.

    O que no tinha propriedades agora rico;

    o que no tinha sandlias agora possui riquezas.

    Os nobres lamentam-se, os pobres regozijam.O que no tinha urna junta de bois agora tem a manada inteira.Tbdas as cidades dizem: Vem, libertemo-nos dos poderosos!J ningum usa chapue um homem de classe j no se pode distinguir do pobre.

    Se este quadro desolador no mera fiego literria, corno foi afirmado,

    pode legitimamente pensar-se que os camponeses se tinham unido sublevago

    geral e tinham feito causa cornum com os rebeldes. Seja corno for, semelhantes

    exploses, se alguma vez ocorreram, devem ter sido sempre to inteis corno os

    ultimos e desesperados esforgos de um homem que est prestes a afogar-se e que

    tenta salvar-se. No serviam para nada. Em devido tempo, o status quo antepre-valeceria quase o mesmo, e os camponeses continuariam a levar a mesma vida

    miservel.

    Trabalho rduo e incessante, salrios miserveis, necessidades, misria, fonie,

    doengas crnicas, condiges de vida srdidas, patres arrogantes, pesados

    impostos: qualquer urna destas tristes circunstncias, que afligiam o campons

    desde o bergo at ao tmulo, era por si s bastante dura e diflcil de suportar.

    Todas juntas, prostravam-no, em corpo e em espirito, e tornavam-no equivalente

    ao boi sob o seu jugo: submisso, paciente, humilde e nscio. Sabia que devia

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    lutar e trabalhar duramente para viver, e sofrer muito. Era esse o seu destino. No

    conhecia nenhum melhor. Para l do seu destino no tinha perspectivas, e no as

    procurava. Se o tivesse feito, teria esbarrado contra um muro.________________

    Recebendo urna misria pelo seu traballio, nunca possufa os meios, nem lhe

    ora dada a oportunidade, para melhorar a sua situafo, para encontrar processosmolliores de ganhar o po quotidiano e alterar a sua humilde posifo. Viver sem

    a menor esperan?a de dias mais propicios, inexoravelmente acorrentado ao

    ileurmi mais baixo da escala social, agrilhoado durante toda a vida: assim decor-

    i In a sua innrtirizada existncia. Todavia, aperceber-se-ia eie desse facto? Tndo

    mun ldo cumpons, estava marcado, e marcado ficava at ao firn dos seus dias: era

    l'timponfin, humilde escravo meio morto de fome, sem vontade prpria,'sujeito s

    imleiiN, cmpurrado de um lado para o outro, espancado. Desprezado por todos,

    iiliijiiiAin se compadecia dele.

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    CAPITULO II

    O ARTESO

    por Dominique Vaibele

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    I n t r o d u c o

    O nascimento de um arteso e, a fortiori,de urna arte, numa determinada cul

    tura, revela-se, em arqueologia, atravs de testemunhos materiais e, para o liixlo

    riador, atravs de manifestagoes de urna estrUtura social adequada a essa siluagao

    particular. Descobrem-se as obras antes de se comegar a conhecer os homens que

    as idealizaram e executaram. Essas obras, a que a nossa sensibilidade atribui um

    valor artistico, depressa adquirem urna qualidade de execugo que e