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1 DOUTRINA Augusto de Franco (2017) Edição especial para O QUE É DOUTRINA Há um problema com a palavra ‘doutrina’. É claro que as pessoas devem conhecer as teorias, que nascem de processos de observação- investigação-explicação realizados segundo certos critérios epistemológicos (isto é ciência) e também as explorações que tentam articular construções de pensamentos de sorte a torná-los claros e definidos (isto é filosofia, na acepção nua e crua de Wittgenstein). Mas doutrina é outra coisa. As doutrinas constroem conjuntos coerentes de ideias com o objetivo precípuo de serem ensinadas (apreendidas, o que não é a mesma coisa do que aprendidas). Em geral as doutrinas querem explicar o mundo para os outros de sorte que as pessoas saibam o que fazer (para se comportar de acordo com a explicação que contém sempre uma prescrição). No caso das doutrinas políticas, isso fica mais evidente. Elas inventam uma explicação para a realidade instituindo-a como um referencial extra- político para avaliar comportamentos políticos. Um comportamento (ou

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DOUTRINA Augusto de Franco (2017)

Edição especial para

O QUE É DOUTRINA

Há um problema com a palavra ‘doutrina’. É claro que as pessoas devem

conhecer as teorias, que nascem de processos de observação-

investigação-explicação realizados segundo certos critérios

epistemológicos (isto é ciência) e também as explorações que tentam

articular construções de pensamentos de sorte a torná-los claros e

definidos (isto é filosofia, na acepção nua e crua de Wittgenstein).

Mas doutrina é outra coisa. As doutrinas constroem conjuntos coerentes

de ideias com o objetivo precípuo de serem ensinadas (apreendidas, o que

não é a mesma coisa do que aprendidas). Em geral as doutrinas querem

explicar o mundo para os outros de sorte que as pessoas saibam o que

fazer (para se comportar de acordo com a explicação que contém sempre

uma prescrição).

No caso das doutrinas políticas, isso fica mais evidente. Elas inventam uma

explicação para a realidade instituindo-a como um referencial extra-

político para avaliar comportamentos políticos. Um comportamento (ou

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ação política) será bom se estiver de acordo com o que diz a doutrina. Ou

seja, a doutrina já está certa ex ante (para quem acredita nela), já avalia o

que foi, é ou será, o que deve acontecer ou não, antes da interação

política entre as pessoas. Assim, a doutrina cava um sulco para fazer

escorrer por ele as coisas que ainda virão. É um modo de trancar o futuro.

As doutrinas geram credos, o que é muito diferente das teorias

(científicas) e das elaborações sistêmicas de pensamento (filosóficas).

Quando alguém segue um credo, em geral, isso exclui – ou se erige como

contraposição a – todos os demais credos. As doutrinas são expedientes

usados em guerras de credos. Assim, o economicismo de von Mises (o

chamado liberalismo-econômico) é construído contra o economicismo de

Marx (o marxismo). E as doutrinas conservadoras são erigidas contra as

doutrinas revolucionárias.

A estrutura do credo é uma espécie de filtro para transformar caos em

ordem, mas uma ordem pré-existente, não emergente, uma ordem que

não será propriamente descoberta, senão replicada pelo ensino da…

doutrina. Ora, isso é diferente da ciência (sempre questionável e

falsificável) e da filosofia (que admite outras filosofias): está mais para

religião (e, como se sabe, cada religião está fundada sobre a ideia de que é

a única verdadeira, do contrário as pessoas – os fiéis – poderiam aderir a

outros credos, o que é vedado pela religião e quem o fizer será chamado

de infiel, kafir, assim como quem abandona uma organização fundada

sobre uma doutrina política é chamado de traidor). Uma teoria científica

pede para ser falsificada. Um sistema filosófico aguarda ser contraditado.

Uma doutrina odeia qualquer questionamento (que julga ser uma

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heresia). Os credos religiosos são doutrinas. E toda doutrina tem a

estrutura de uma religião (mesmo que seja laica).

Toda doutrina, portanto, é doutrinante. E o simples fato de ensinar a

alguém uma doutrina – qualquer doutrina – já é uma doutrinação.

Portanto, não se trata de ensinar todas as doutrinas para que os pacientes

da ensinagem escolham de qual “religião” querem ser escravos.

Na democracia as pessoas têm o direito de aderir a qualquer doutrina,

adotar qualquer credo, mas não devem usar essa sua “religião” para

avaliar os comportamentos políticos alheios. Nenhuma doutrina política

pode servir de referencial para julgar o que ocorre na esfera pública.

Na autocracia, não. Sempre há uma doutrina correta, um credo válido e

autorizado ao qual as pessoas devem aderir para se conformar ao que é

correto e delas esperado. É uma espécie de compliance. Por isso, via de

regra, as religiões que não coincidem com a religião oficial são proibidas

em ditaduras, o mesmo valendo para as doutrinas políticas. Não se pode

ser sufi na teocracia dos aiatolás iranianos, onde a Fé Bahá’í também é

perseguida pelo regime autocrático. A rigor, não se pode ser ateu em

teocracias (o que já levou a muitas condenações à morte ao longo da

história). Não se pode ser xiita na Arábia Saudita sunita. Não se podia ser

muçulmano na corte de Isabel de Castela, nem judeu. Não se podia ser

anarquista (ou trotskista) na União Soviética stalinista.

Quando há uma doutrina oficial, seja religiosa ou laica, não pode haver

esfera pública. Porque a esfera pública só existe se houver liberdade de

crença e de não-crença para as pessoas que, privadamente, podem aderir

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ou não a qualquer doutrina. Ou seja, ao contrário do que se pensa, a

esfera pública está assentada no direito individual privado de não fazer

parte, compulsoriamente, de qualquer rebanho, assim como no direito

individual privado de entrar, voluntariamente, em qualquer rebanho.

Por isso que esfera pública só existe na democracia, que convive com

qualquer doutrina, mas não tem, como regime, uma doutrina específica a

partir da qual se possa avaliar comportamentos políticos.

POR QUE A DEMOCRACIA É SEM DOUTRINA

A democracia, portanto, não é mais uma doutrina. É apenas um modo

não-guerreiro de regulação de conflitos (que, ao se exercer, desconstitui

autocracia) e não importa para nada, do ponto de vista coletivo, as

convicções privadas dos agentes políticos que nela interagem. O que

importa é que, acreditando no que quiserem, não se comportem de modo

guerreiro (o que levará à autocratização da democracia).

Isto é o que significa dizer que a democracia é sem doutrina.

Se você desqualifica algum argumento dizendo que ele é um argumento

do inimigo, não há mais possibilidade de conversação e de debate

racional. Não haverá entendimento, polinização mútua de ideias e

cocriação de nada.

É como conversar com um fiel de uma religião militante que, por princípio,

está fundada no pressuposto de que é a única verdadeira. Por isso um

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kafir (infiel) jamais conseguirá entrar em acordo com um jihadista do

Hamas ou do Hezbollah.

Mas isso vale também para as religiões laicas, baseadas em visões de

mundo totalizantes, que têm narrativas para explicar tudo e mais um

pouco, sejam essas visões consideradas de esquerda ou de direita,

revolucionárias ou conservadoras, não importando muito a origem de

suas doutrinas.

Visões doutrinárias são sempre obstáculos para a apreensão da

democracia, porque colocam barreiras à livre interação e à miscigenação

cultural entre os diferentes.

Se se trata de combater uma visão estabelecida com outra visão também

estabelecida, não há como ensejar o surgimento de novas visões. Ou seja,

não há possibilidade de inovação e ficamos congelados em algum lugar do

passado. Tudo vira uma guerra cultural, onde o principal é desqualificar e

deslegitimar o inimigo.

Todas as doutrinas que se erigem no combate a outras doutrinas rivais

precisam do inimigo para crescer e conquistar adeptos. Por isso, qualquer

seita que pretenda revelar ao mundo a verdadeira doutrina tem um

comportamento semelhante e incompatível com a democracia na medida

em que se constitui na dinâmica da guerra contra outras doutrinas

(consideradas como falsas) enquanto que a democracia é um modo não

guerreiro de regulação de conflitos (que não precisa de doutrina, quer

dizer, que não precisa reafirmar a prevalência de nenhuma doutrina sobre

as demais para se exercer).

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Quando se diz que a democracia é sem doutrina, isso não significa que as

pessoas não possam acreditar nas doutrinas que quiserem e sim que elas

não podem exigir a adesão prévia a uma doutrina como condição para

praticar a política, adotando critérios extra-políticos para validar alguma

ação política como correta, verdadeira ou boa, antes da interação.

Tomando uma metáfora da física contemporânea: como podemos explicar

a um codificador de doutrina que o ato de medir destrói um possível

emaranhamento quântico e literalmente cria a realidade

experimentalmente mensurada? Não é que não possamos. É que não

devemos. Porque é inútil. Porque não adianta explicar.

O ato de criar uma narrativa doutrinária é um modo de evitar possíveis

nuvens interativas, formadas ao léu, criando uma realidade baseada em

uma ordem pré-formada que só é vista desde os clusters de medidores

que são criadores de (suas próprias) realidades. Se você pertence a um

desses clusters não conseguirá ver nada diferente do que eles veem, não

porque não queira e sim porque está, de certo modo, produzindo o que

vê. O papel da doutrina não é explicar a realidade, mas criar uma

realidade.

Por isso a democracia não é bem coisa de professores. Por isso não se

aprende democracia na academia. Não se trata de ensinar um conteúdo

específico (para que alguém possa conhecê-lo) e sim de um deixar-

aprender.

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AS DOUTRINAS POLÍTICAS

Na verdade só existem três grandes troncos de doutrinas políticas hoje: o

marxismo, o conservadorismo e o liberalismo-econômico.

São troncos, não doutrinas específicas, na medida em que existem vários

marxismos (os marxianismos do jovem e do velho Marx, o marxismo-

leninismo, o marxismo-gramscismo e uma infinidade de variantes como as

inventadas pelos filósofos franceses – como o foucaultismo), existem

vários conservadorismos (dos laicos aos religiosos e teosóficos: aqueles

que adotam uma visão esotérica da história) e existem vários liberalismos-

econômicos (os da chamada Escola Austríaca, como o von-misesismo e o

hayekismo, os libertarianismos e os individualismos à la Ain Rand et

coetera).

O anarquismo original e as diversas formas de libertarianismo não-

marxista estão quase extintos ou são vestigiais ou marginais.

Os fascismos são comportamentos políticos que podem ser adotados por

quaisquer estatistas, sejam conservadores ou revolucionários. E há várias

combinações de conservadorismo com liberalismo-econômico.

Pois bem. Afirmamos aqui que todas essas doutrinas são conservadoras

no sentido de que não são inovadoras.

Não raro, revolucionários (marxistas), conservadores (de qualquer matiz) e

até uma parte dos liberais-econômicos costumam ter posições

conservadoras (no sentido de não-inovadoras). Examinemos dois

exemplos:

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Conservadores e liberais-econômicos costumam ser contra a doutrinação

marxista nas escolas. Tudo bem. Mas a escola (como burocracia do

ensinamento, baseada na separação de corpos docente x discente) vai

continuar doutrinando – seja qual for o conteúdo hegemônico que está na

cabeça dos professores da vez – basicamente infundindo noções de

ordem, hierarquia, disciplina, obediência, punição e recompensa e

fidelidade impostas top down e matando a criatividade? Ah! Mas isso é

necessário, dirão todos. E até mesmo os marxistas (revolucionários) – que,

por óbvio, não são contra a doutrinação marxista nas escolas – não

concordariam em adotar uma posição contra a escola (visto que nos

países onde têm hegemonia a escola continua sendo, basicamente, a

mesma escola doutrinadora dos países capitalistas, como já havia

percebido, em 1970, o maldito Ivan Illich).

Parte dos liberais-conservadores e quase todos os revolucionários

marxistas são a favor do casamento gay (ou de quaisquer combinações

formadas por pares LGBT) com a adoção de filhos e tudo mais.

Conservadores são contra. Mas a família (como cluster fechado, que

privatiza capital social) vai continuar existindo e doutrinando – seja qual

for a ideologia de gênero dos pais ou mães – basicamente infundindo

noções de ordem, hierarquia, disciplina, obediência, punição e

recompensa e fidelidade impostas top down e matando a criatividade?

Pronto! Agora todos (ou quase todos) estão novamente juntos para dizer

que não se pode criticar a família.

Eis que, quando a questão é o padrão civilizatório (ou a cultura patriarcal),

marxistas (revolucionários), conservadores (contrarrevolucionários) e

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liberais-econômicos (quer se digam ou não libertários), não são

inovadores. Os inovadores fazem questionamentos como os dos dois

exemplos acima, os conservadores e os liberais-econômicos (ditos de

direita) e os revolucionários (ditos de esquerda) não fazem.

Em uma sociedade-em-rede, que está estilhaçando o mundo único – e,

pela primeira vez, tornando possível o questionamento da multimilenar

cultura patriarcal – não cabem mais narrativas totalizantes, que expliquem

tudo. Em primeiro lugar, pelo simples motivo de que elas não podem mais

explicar tudo (posto que o todo social que precisavam explicar por meio

de uma descrição única, se desfez). Em segundo lugar porque descobriu-se

que o comportamento coletivo não pode mais ser explicado a partir do

que pensam os indivíduos: independentemente das crenças (ou da adesão

à doutrinas ou credos por parte) dos sujeitos, eles se comportam sempre

de acordo com os fenômenos interativos que estão ocorrendo nos

emaranhados sociais onde estão e são.

Esses credos políticos não são mais necessários, senão apenas para os que

acham que precisam acreditar em alguma meganarrativa que explique o

mundo para se situar no mundo: são uma espécie de conforto espiritual

para os indivíduos, mas não têm poder de determinar o fluxo interativo da

convivência social. O problema é que alguns desses credos são claramente

avessos à democracia.

Sim, a democracia não precisa de credos e, além disso, falar sobre a

democracia não é “fazer” democracia (que pode se exercer, inclusive, com

pessoas que são contra a democracia ou que não têm capacidade de

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explicá-la: a imensa maioria dos atenienses que viveram no século 5 AEC,

não sabia justificar, com argumentos, por que a democracia seria

preferível, o mesmo valendo para os que vivem em países democráticos

atuais). Mas contingentes de pessoas conformados a partir de um

pensamento antidemocrático, têm influência negativa sobre a

democracia, não em razão do que eles pensam ou falam sobre a

democracia e sim das ações concretas de autocratização da democracia

que porventura pratiquem.

O liberalismo-político (como o de Spinoza) – essencialmente anti-

autocrático – não chegou a ser uma doutrina (no sentido de credo), senão

um conjunto de ideias capazes de inspirar (ou melhor, capazes de se

sintonizar com) comportamentos políticos compatíveis com a democracia

dos modernos, na medida em que não levou à formação de corpos de

militantes que praticam a guerra (quente, fria ou como política pervertida

como arte da guerra ou continuação da guerra por outros meios) como

modo de regulação de conflitos. Este é o ponto. A democracia é um modo

não-guerreiro de regulação de conflitos e por isso pode ser definida como

um processo de desconstituição de autocracia (já que guerra é

autocracia). Todos os que – esposando qualquer doutrina política – não

adotam modos guerreiros de regulação de conflitos, podem ser players

válidos da democracia. E todos os que – mesmo que sigam a vertente mais

anárquica do liberalismo-econômico – formam contingentes para

combater, em nome de suas ideias, os que adotam outros credos,

realizando ações práticas para tanto e criando lados em confronto,

desqualificam-se como atores democráticos.

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O liberalismo-político é compatível com a democracia porque está

baseado na ideia de que o sentido da política é a liberdade, não a ordem

geral que regeria o universo (a criação), a natureza, a sociedade ou o ser

humano e nem a ordem do Estado orientado por um conjunto de

princípios já estabelecidos ex ante à interação (sejam estes princípios

derivados de alguma instância transcendente ou imanente, revelados por

deus, desvendados por uma teologia, descobertos por uma filosofia da

história ou mesmo pela ciência ao investigar a natureza).

A validação extra-política de qualquer regime político é incompatível com

a democracia. Por que? Porque os princípios de qualquer validação extra-

política não estão submetidos à interação democrática: eles já valem

antes e sempre, independentemente dos fluxos interativos da convivência

social que mudam comportamentos e pensamentos. Ideias não mudam

comportamentos, só comportamentos mudam comportamentos e,

inevitavelmente, pensamentos (mas a recíproca não é verdadeira: se

fosse, bastaria doutrinar as pessoas seguindo um codex para construir a

boa sociedade, quando a experiência mostra que não é assim, do

contrário milênios de pregação religiosa e utópica sobre o bem, o belo e o

verdadeiro já teriam construído o paraíso na Terra).

Toda pregação, toda doutrinação, todo seguimento de credos e

constituição de corpos de fiéis (e, simultaneamente, de infiéis) são

conservadores na medida em que tentam conservar e reproduzir um

conteúdo determinado contra a mudança (desse conteúdo), contra o

contingente, contra o descoberto, contra o inventado, contra o feito por

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desejo e sem necessidade, contra o erro, a falha e o acaso que incidem na

sempre provisória e precária vida comum.

A democracia, toda vez que acontece (ou seja, toda vez que é ensaiada,

sejam quais forem as crenças mais profundas que estão nas cabeças dos

que a ensaiam), é inovadora. E é inovadora em relação ao que há de mais

antigo a ser conservado: a cultura patriarcal, hierárquica e autocrática, do

que chamamos de civilização. Não por ter uma outra cultura (como

transmissão não-genética de comportamentos inspirados em um conjunto

qualquer de ideias, ou melhor, em circularidades inerentes às

conversações que ocorrem no seio dessa cultura e que são capazes de

reproduzir um determinado modo de vida ou de convivência social) para

colocar no lugar da velha e sim porque é vazia de conteúdos determinados

imunes à interação.

A natureza da democracia não é a de ser mais uma edificação para trancar

os fluxos ou condicioná-los a ficar rodando da mesma maneira na rede e

sim a de ser uma brecha no muro da cultura patriarcal.

Alguns acham que a democracia é assim como um tipo de construção

ideológica, que depende de um corpo de crenças teoricamente articulado

e do qual se possa inferir consequências. Eles têm uma apreensão

cognitivista – e não interativista – da democracia. Superavit de Platão ou

deficit de Protágoras.

Isso precisa ser desenvolvido e melhor explicado.

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A opção pela democracia não exige a adesão a um corpo de crenças como

filtro para transformar caos em ordem, mas em uma ordem estabelecida

pregressamente ou antes da interação propriamente política –

transcendente, natural ou imanente: seja porque estaria de acordo com

desígnios extra-humanos já estabelecidos (supra-humanos ou sobre-

naturais) por uma ordem pré-existente, seja porque derivaria da natureza,

seja porque se sintonizaria com a marcha da história ou com suas leis. Este

parágrafo é muito sintético, mas provavelmente contém tudo (ou quase).

Ou seja, nada de transcendente, natural ou imanente. Em outras palavras:

1) nada de visão esotérica ou religiosa;

2) nada de visão liberal-econômica (segundo a qual existiria algo

como uma natureza humana: e. g., a hipótese de que o ser humano

– tomado como indivíduo – seria inerentemente ou por natureza (?)

competitivo e faria escolhas racionais buscando sempre maximizar a

satisfação dos seus interesses ou preferências, ao fim e ao cabo

egotistas); e

3) nada de visão determinística (baseada em alguma imanência: a

história grávida que vomitaria – por meio das ações humanas – um

sentido já existente antes que os seres humanos escolhessem um

caminho ou simplesmente fossem para onde querem ir ou não.

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DEUS, NATUREZA E HISTÓRIA

Se essas noções – Deus, Natureza e História – forem reificadas para

fornecer à política alguma razão, não estamos mais no terreno da política

propriamente dita, quer dizer, da democracia (tal como a conceberam ou

experimentaram – no caso é a mesma coisa – os democratas atenienses).

É por isso que o único sentido compatível com a democracia que se pode

atribuir à política é a liberdade.

Do ponto de vista da democracia, liberdade significa que Deus não é capaz

de dar nenhum sentido à política, a Natureza (seja o que for) também não

é capaz de dar nenhum sentido à política e, ainda, que a História também

não é capaz de dar nenhum sentido à política.

Deus

A adesão confessional ou teologal a uma potência extra-humana (como

fazem as filosofias religiosas ou teosóficas) capaz de intervir nos assuntos

coletivos humanos (ou, mais exatamente, sociais) não pode fornecer uma

razão para a política e é por isso que povos como os hebreus (a turba dos

hapirus, quer dizer, dos sem-reino que invadiram ou se insurgiram em

Canaã na primeira metade do primeiro milênio AEC), que acreditavam

num plano divino para a humanidade (ou para o seu próprio povo,

tomado como povo de um deus: o seu deus IHVH), mesmo tendo todas as

condições objetivas para inventar a democracia (basta ler os relatos da

Assembleia de Siquem e 1 Samuel 8), não o fizeram. Isso não tem a ver

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propriamente com acreditar em deuses (ou em um deus) e sim com

contar com esses deuses (ou deus) para intervir nos conflitos humanos,

para regular esses conflitos ou para resolver os dilemas da ação coletiva.

Os democratas atenienses não aboliram os deuses (da cidade), pelo

contrário: conviveram com eles, mas sem deles esperar nada além da

proteção ao funcionamento das suas instituições democráticas nascentes

(como o Zeus Agoraios, nume tutelar das conversações na praça do

mercado) e de inspiração para as práticas (e procedimentos) democráticos

que experimentavam (como a deusa Peitho, a persuasão deificada). Mas

eles não substituíram essas instituições e práticas pela intervenção sobre-

humana ou sobre-natural (dos seus deuses).

Se há deuses (ou um deus) que intervém nos assuntos propriamente

humanos (quer dizer, na rede social), então para nada serve a política

como modo de auto-regulação ou de comum-regulação (e nem ela teria

surgido no entre-os-humanos, já que o Zoon Politikon – o animal político –

é uma invenção de Aristóteles incompatível com a democracia), como

uma forma específica de interação (a política). Onde há deuses (ou um

deus) intervindo, não pode haver lugar para a liberdade, que é sempre a

liberdade de ser infiel a um desígnio, de não seguir um plano (já traçado

por qualquer potência humana ou extra-humana), de não se conformar a

uma ordem (preexistente, ex ante à interação). Deuses (ou um deus)

podem existir, desde que não nos obriguem a ser fiéis a eles (ou a ele) ou

aos seus desideratos. A democracia é coisa de kafirs (e por isso lhe é tão

avessa a cultura islâmica), é uma desobediência ao que já está disposto, à

obrigação de seguir um rumo: porque a liberdade é, fundamentalmente,

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poder sempre escolher um novo rumo e mudar de rumo, ou melhor,

poder não ter rumo, como disse o poeta – Manoel de Barros (2010), em

Menino do Mato – “Livre, livre é quem não tem rumo”.

Se há uma ordem, uma hierarquia, uma fraternidade ou sociedade

encarregada de conduzir ou orientar coletividades humanas (grupos,

cidades, nações, povos) em uma determinada direção, para cumprir algum

plano cósmico (engendrado ou não por um deus que apenas quer se

reconhecer no espelho da existência ou por vários deuses ou, ainda, por

seres superiores não-humanos, autóctones ou alienígenas, do passado, do

presente ou vindos do futuro), é a mesma coisa. Todas essas visões

esotéricas levam à autocracia, não à democracia. Pois como alguém, na

condição humana, poderia ser infiel à vontade ou às leis estabelecidas por

esses seres superiores sem violar algum tipo de moral? E como os direitos

humanos poderiam se equiparar (ou se contrastar) aos direitos desses

seres mais evoluídos ou melhores, mais puros ou mais perfeitos?

Quando Ésquilo (472 AEC), em Os Persas, escreveu que os atenienses

(democráticos) “não são escravos nem súditos de ninguém”, ele estava

dizendo que eles (como povo, quer dizer, coletivamente) não eram

escravos nem súditos de ninguém mesmo: nem de humanos, nem de

deuses. E, poderíamos acrescentar, nem de leis naturais. Isso nos leva ao

próximo ponto.

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Natureza

O estudo da natureza ou os modos de observação-investigação-explicação

dos fenômenos naturais que chamamos de ciência (a partir do século 17,

mas especialmente na passagem do século 19 para o século 20, quando

entraram em cena os epistemólogos racionalistas que acreditaram que a

filosofia da ciência era uma espécie de ciência ou de ciência da ciência),

também não pode fornecer uma razão para a política. O assunto é difícil

porque fomos acostumados a olhar a ciência como uma espécie de

pansofia. Mais do que a ciência, a ciência autorizada pela filosofia da

ciência foi, por sua vez, autorizada a fornecer uma explicação válida para

tudo. E se seus métodos são válidos para tudo, por que não o seriam

também para a política?

Ocorre que, se existe uma ciência aplicável à política ou, a rigor, uma

ciência política, então não pode haver democracia. Pois neste caso os que

possuem a ciência (política) ou agem de acordo com seus métodos válidos

(quer dizer, validados por algum tribunal epistemológico válido) não se

situarão no mesmo patamar dos demais. Haveria uma desigualdade (não

sócio-econômica, mas política) levando diretamente à desliberdade. Como

a matéria da política não é a episteme (o conhecimento filosófico ou

científico), nem a techné (o conhecimento – ou know how – técnico) e sim

a doxa (opinião), então algumas opiniões seriam mais válidas do que

outras (aquelas proferidas por quem tem mais conhecimento reconhecido

como válido). No limite isso levaria ao governo dos sábios de Platão,

baseado numa diferença de conhecimento convertida em separação entre

sábios e ignorantes. Os ignorantes seriam governados pelos sábios,

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independentemente da justeza de suas opiniões e, o que é pior, ao largo

do processo interativo de formação da vontade política coletiva. Não

haveria propriamente opinião pública, composta por emergência (pois se

alguém já pode saber o que é correto, de que valeria o entrechoque e a

polinização cruzada de uma variedade de opiniões?) e, assim, também não

haveria esfera pública (em termos sociais, quer dizer, geração de

commons). Ora, sem isso, não pode haver democracia.

O apelo à natureza ou a introdução de um corpo de crenças derivadas do

conhecimento sobre os fenômenos naturais – pouco importa se validadas

ou não pela ciência – como recurso para validar uma visão da política, traz

problemas semelhantes aos da ideia de um ou vários deuses com papel

regulador dos dilemas da ação coletiva. Se a natureza (quer dizer, o

conhecimento dos fenômenos naturais) pode dizer o que deve ou não ser

feito em termos políticos, então para nada vale a democracia.

Um exemplo de imposição de um corpo de crenças – de “como as coisas

são” – pode ser fornecido pelo liberalismo-econômico (sobretudo o da

chamada Escola Austríaca: Carl Menger, Eugen von Böhm-Bawerk, Ludwig

von Mises, Henry Hazlitt, Israel Kirzner, Murray Rothbard e Friedrich

Hayek, dentre outros). O individualismo metodológico desses pensadores

é tomado como uma ciência, ou seja, é um conhecimento, um saber sobre

o indivíduo portador de uma mente (que seria o ser humano) e sobre a

ação humana, que seria, por sua vez, capaz de explicar o comportamento

coletivo a partir dos comportamentos dos indivíduos. Ora, se existe essa

ciência, se é possível adquirir esse conhecimento, então os que são nela

versados (nessa ciência) ou possuem tal conhecimento, estão mais

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preparados do que os demais para entender os processos de regulação de

conflitos (a política propriamente dita) e, por decorrência, para intervir de

forma correta (ou mais correta) nesses processos. Isso é um cognitivismo

(com raízes bem fincadas no meritocratismo e no platonismo), não um

interativismo.

Assim, a ideia de uma natureza humana, a ideia de que o ser humano é,

por natureza (ou inerentemente) competitivo, a ideia de que é possível

explicar o comportamento coletivo a partir do comportamento dos

indivíduos, a ideia de que os indivíduos se movem buscando sempre

melhorar a sua vida, ou tentando maximizar a satisfação de seus

interesses ou, ainda, buscando realizar plenamente suas preferências – ao

fim e ao cabo egotistas – todas essas ideias, sejam ou não validadas pela

ciência (e boa parte delas não o são, se considerarmos, por exemplo, as

ciências da complexidade e a chamada nova ciência das redes, e pelo

menos Hayek teve lampejos de presciência – ou seria pré-ciência? – sobre

isso), são ideias que em nada favorecem, quando não dificultam, a

apreensão da democracia. Em primeiro lugar porque são absolutamente

desnecessárias para a opção pela democracia. Em segundo lugar porque

erigem uma instância de validação extra-política. Novamente, se há um

conhecimento que explica “como as coisas são”, inclusive em termos

políticos, quem possui tal conhecimento não se iguala aos que não o

possuem – o que gera necessariamente desliberdade.

Não há nada natural na política. A política é um tipo de interação (social).

O social não é natural. Não há uma natureza humana, a não ser para

descrever características da espécie biológica Homo Sapiens (ou, com boa

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vontade, do gênero Homo) – que é apenas humanizável, não o humano

consumado: com perdão pelo mau-jeito do neologismo, há uma

“socialeza” humana (isto é, precisamente, o que significa dizer que não

existe nada como o Zoon Politikon aristotélico: não há uma substância

política original associada à condição da espécie, mas uma fenomenologia

que se manifesta na entreidade, porquanto só se revela quando os

humanos interagem uns com os outros).

Os seres humanos tornados políticos (quando interagem coletivamente

para regular seus conflitos) não precisam ser fieis a características

herdadas da sua suposta natureza, não estão subordinados a qualquer

epigênese (como as 8,7 milhões de espécies de seres vivos que existem no

planeta Terra), podem ser – na sua esfera propriamente política de ação –

infiéis à natureza (no sentido mais ampliado do conceito, de como as

coisas são). Do ponto de vista da democracia, assim como os seres

políticos não são escravos nem súditos de seres humanos, de deuses ou

de leis naturais, também não o são de leis da história. Isso nos leva ao

terceiro e último ponto.

História

As visões de que há uma história, de que a história tem leis que podem ser

conhecidas por quem tem o método correto de interpretação da história,

de que há uma ciência, ou melhor, uma filosofia da história, de que a

história vai para algum lugar, em razão de uma imanência (alguma

substância que carregaria em seu ventre) e, portanto, de que a história

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tem um sentido que pode ser apreendido antes dos eventos (que ainda

não aconteceram), também leva diretamente à autocracia, não à

democracia.

Embora filosofias da história tenham aparecido na antiguidade e na idade

média, por exemplo, com Joaquim de Fiore (c.1132-1202), com sua teoria

dos três tempos (do Pai, do Filho e do Espírito Santo), inspirando talvez o

Sebastianismo e, no Renascimento, com pensadores como Giambattista

Vico (1725) e sua Scienza Nuova e ainda que haja sempre uma forte raiz

hegeliana na construção posterior de qualquer ontologia da história, o

marxismo foi o principal responsável pela difusão de um corpo de crenças

que tem como postulado fundamental (evidente por si mesmo, que

dispensa provas – só corroborações discursivas) a ideia de que a luta de

classes é o motor da história. Daí saem todos (ou quase todos) os

marxismos (do marxianismo do primeiro Marx, passando pelo Marx de

1859, ao marxismo-leninismo, ao marxismo-gramscismo e a praticamente

todos os outros).

A luta entre grupos sociais (chamados de classes) que move a história

pressupõe uma filosofia da história. A história passa a ser, nessa filosofia,

uma consequência de algo imanente guardado em seu corpo, que a leva

para um lugar (e não para outro). Mas a história (supondo que se possa

falar de “a” história, no sentido de uma história – e não se pode) não vai

para lugar nenhum. Nós é que vamos, ou não vamos. E vamos ou não

vamos escorrendo por creodos que estão presentes no campo social e que

dependem das configurações dos fluxos interativos da convivência social.

Se acreditamos que existe uma história com um mecanismo embutido que

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lhe dá sentido, também podemos acreditar que o conhecimento desse

mecanismo será capaz de nos revelar as suas leis. E aí já estabelecemos

uma distinção geradora de poder, separando os que conhecem essas leis

dos que não as conhecem. Os que não as conhecem devem ser então

conduzidos pelos que as conhecem para que possa se cumprir o

desiderato histórico. Note-se aqui que não é uma interação de opiniões

que conduz a história (seja o que for) e sim um saber sobre a história que

confere a alguns agentes a capacidade distintiva de orientar os demais. O

agente tem a episteme que o coloca num patamar diferente da massa que

só possui a doxa. Isto é, rigorosamente falando, um platonismo que, como

todo platonismo, só pode levar à autocracia, não à democracia.

Dizendo o mesmo de outra maneira para resumir. Se a história tem um

sentido antes dos seres humanos atribuírem-lhe tal sentido com suas

ações, então não pode haver liberdade (que é sempre liberdade de

atribuir sentidos e de mudar a atribuição de sentidos). Se a história tem

um sentido e se esse sentido puder ser conhecido de antemão, então

alguns (que conhecem tal sentido) estarão sempre mais corretos do que

outros por razões extra-políticas.

É tudo a mesma coisa

Tanto a ciência de deus (ou o conhecimento de desígnios supra-humanos),

quanto a ciência da natureza (ou o conhecimento de como as coisas são),

quanto a ciência da história (na verdade de qualquer filosofia que lhe dê

sentido) são corpos de crenças colocados como filtros para transformar o

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caos da experiência humana comum em ordem autocrática. É por isso que

a adesão à democracia não pode depender dessas crenças (sejam

teológicas, teosóficas, científicas ou filosófico-ideológicas). Não pode

haver conteúdo a ser assimilado como condição para alguém preferir a

democracia à autocracia. Se houver, essa pessoa que se transformou em

seguidor de uma visão, será um fiel, não um infiel. E, como tal, será um

agente – ou uma peça – de um sistema autocrático.

Eis as razões pelas quais os seguidores de vertentes míticas, sacerdotais e

hierárquicas do chamado ocultismo ocidental, assim como os fiéis

religiosos do catolicismo tradicional e de outras religiões, sobretudo de

religiões políticas como o islamismo, têm tanta dificuldade com a

democracia. Embora suas elaborações – e visões de mundo – sejam muito

diferentes entre si, de um ponto de vista interativista essas razões são as

mesmas pelas quais seguidores de von Mises e de Marx têm dificuldades

com a democracia. Em primeiro lugar porque são seguidores e a

democracia é para não-seguidores: é um erro (no script da Matrix), não

um acerto, quer dizer, um trilhar por um caminho certo. Em segundo lugar

porque, todos eles, colocam a adesão a um codex como condição para se

fazer (a correta, a boa, a desejável) política. Mas a democracia não é a

política ideal, não é a utopia da política: é justamente o contrário. A utopia

da democracia é uma topia: é a política feita pelos seres humanos que

erram, aprendem com seus erros e continuam errando e aprendendo

quando não há ninguém – ainda bem – para lhes dizer, a partir de

qualquer instância extra-política, o que é certo.

2017