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LIBERALISMO MÓDULO ÚNICO - LIBERALISMO Estamos no início de um curso sobre Doutrinas Políticas Contemporâneas: Liberalismo. Convém, assim, esclarecer alguns pontos sobre o significado do título e a forma do curso. O que são doutrinas políticas contemporâneas? Na perspectiva que aqui adotamos, são aquelas correntes de pensamento que inspiram e orientam os partidos políticos importantes em termos de influência, voto e acesso ao poder no mundo de hoje. Dito de outra maneira, aquelas correntes que definem os objetivos de partidos atuais e, em alguns casos, os meios recomendados para alcançar esses objetivos. O critério, portanto, é prático. Não vamos discutir correntes de pensamento que alimentaram partidos fortes no passado, mas insignificantes no presente. Não vamos discutir, por exemplo, uma corrente conservadora, uma vez que hoje nenhum partido de peso defende o retorno à ordem econômica, social e política pré-moderna. Pela mesma razão, não discutiremos a corrente anarquista, uma vez que os partidos dessa tendência perderam peso, nos países onde ainda eram importantes, no período entre as duas guerras mundiais. Um esclarecimento final é necessário. Grandes correntes de pensamento político não são objetos que possam ser estudados a partir de uma definição clara, unívoca, aceita por todos. Adversários e partidários têm interpretações diferentes de cada corrente, e mesmo no interior de cada uma delas encontramos divisões importantes. A seleção de assuntos e autores feita no

Doutrinas Políticas - Liberalismo

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Doutrinas Políticas - Liberalismo

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  • LIBERALISMO

    MDULO NICO - LIBERALISMO

    Estamos no incio de um curso sobre Doutrinas Polticas Contemporneas:

    Liberalismo. Convm, assim, esclarecer alguns pontos sobre o significado do

    ttulo e a forma do curso.

    O que so doutrinas polticas contemporneas?

    Na perspectiva que aqui adotamos, so aquelas correntes de pensamento que

    inspiram e orientam os partidos polticos importantes em termos de influncia,

    voto e acesso ao poder no mundo de hoje. Dito de outra maneira, aquelas

    correntes que definem os objetivos de partidos atuais e, em alguns casos, os

    meios recomendados para alcanar esses objetivos.

    O critrio, portanto, prtico. No vamos discutir correntes de pensamento que

    alimentaram partidos fortes no passado, mas insignificantes no presente. No

    vamos discutir, por exemplo, uma corrente conservadora, uma vez que hoje

    nenhum partido de peso defende o retorno ordem econmica, social e poltica

    pr-moderna. Pela mesma razo, no discutiremos a corrente anarquista, uma

    vez que os partidos dessa tendncia perderam peso, nos pases onde ainda

    eram importantes, no perodo entre as duas guerras mundiais.

    Um esclarecimento final necessrio. Grandes correntes de pensamento

    poltico no so objetos que possam ser estudados a partir de uma definio

    clara, unvoca, aceita por todos. Adversrios e partidrios tm interpretaes

    diferentes de cada corrente, e mesmo no interior de cada uma delas

    encontramos divises importantes. A seleo de assuntos e autores feita no

  • curso , portanto, necessariamente parcial. Escolhemos obras de autores

    consagrados que tratam de temas que a maior parte dos novos esquerdistas

    considera fundamentais. No entanto, outros temas e autores, talvez to

    importantes quanto esses, ficaram de fora. Vamos discutir, para dizer de forma

    mais precisa, uma seleo de temas e autores importantes para esta corrente.

    Assim, para que o aluno possa melhor absorver o contedo desse curso e

    atender aos objetivos a que se prope, encontra-se disponibilizado em PDF o

    livro Partidos polticos brasileiros. Programas e diretrizes doutrinrias,

    organizado por Nerione Nunes Cardoso Jnior, editado pelas Edies

    Tcnicas do Senado Federal.

  • Mdulo I - Liberalismo

    Ao trmino deste Mdulo, esperamos que voc possa :

    1) Compreender as relaes historicamente estabelecidas entre

    Liberalismo e Democracia.

    2) Discutir os argumentos favorveis e contrrios ao pensamento e

    prtica liberais.

    3) Distinguir o Liberalismo econmico do Liberalismo poltico.

    4) Analisar as diferentes formas de organizao democrtica.

    5) Defender a centralidade dos direitos humanos fundamentais no

    pensamento liberal.

    Liberalismo

    Vamos examinar o liberalismo nos trs prximos mdulos.

    No primeiro deles, procuramos uma definio geral da corrente e uma

    apresentao de alguns de seus temas mais importantes. Usamos para essa

    finalidade o livro de Norberto Bobbio, Liberalismo e Democracia, que, como

    indica seu ttulo, define o liberalismo por meio de sua comparao sistemtica

    com outra corrente de pensamento, com a qual muitas vezes confundido: a

    democracia.

  • Aps essa abordagem geral, examinaremos trs conjuntos de temas centrais

    para essa linha de pensamento, a partir de autores e obras considerados

    importantes por boa parte dos liberais. O primeiro conjunto refere-se ao papel

    do mercado, ou seja, ao liberalismo econmico. Nosso guia para a discusso

    ser o livro O caminho da servido, de Friedrich Hayek, publicado pela primeira

    vez em 1944.

    Logo depois, veremos o liberalismo poltico, a partir da argumentao de

    Robert Dahl desenvolvida em Prefcio a uma teoria democrtica.

    Finalmente, vamos estudar os argumentos que apresentam a garantia dos

    direitos individuais como o fundamento de toda a perspectiva liberal. Para esse

    assunto usaremos o livro de Ronald Dworkin, Levando os Direitos a Srio.

    Mais informaes sobre liberalismo como corrente de pensamento e seus

    autores representativos podem ser encontradas no livro de Jos Guilherme

    Merquior, O Liberalismo antigo e moderno.

    Na Biblioteca deste curso, voc encontrar discursos proferidos pelo senador

    Marco Maciel e palestras realizadas no "Frum Merquior" abordando a

    problemtica liberal.

  • Unidade 1 - Liberalismo e democracia

    Liberalismo e Democracia

    O propsito da primeira unidade do curso debater as caractersticas mais

    gerais constitutivas do liberalismo. Para tal, um dos caminhos mais

    interessantes acompanhar o roteiro que Norberto Bobbio, em Liberalismo e

    Democracia, nos oferece, uma tentativa de compreender o liberalismo a partir

    de sua contraposio a uma corrente definida como democrtica. A

    comparao entre liberalismo e democracia esclarece as afinidades e conflitos

    que, historicamente, tm permeado as relaes entre essas duas correntes,

    bem como abre caminho para pensar uma relao que se desenvolveu

    posteriormente: a do liberalismo com o socialismo, em todas as suas variantes.

    Seguiremos, portanto, a sequncia de tpicos que o autor prope para nossa

    discusso.

    Nesta unidade, estudaremos sobre liberalismo e democracia:

    a) Definies, pontos em comum e diferenas entre ambos;

    b) Direitos humanos fundamentais;

    c) Limitao do poder do Estado;

    d) Liberdade negativa;

    e) Elogio da diversidade;

    f) Democracia ontem e hoje;

    g) Liberalismo e democracia hoje;

    h) Liberalismo e democracia no sculo XIX.

  • Pg. 2 - Definies

    1. Definies

    O fato evidente de que as democracias mais slidas do mundo contemporneo

    reivindicam, simultaneamente, sua presena nas tradies liberais e

    democrticas induz crena de que ambas as tradies so idnticas. No

    fundo, liberalismo e democracia seriam sinnimos, e eventuais conflitos,

    tericos e polticos, entre ambas as doutrinas seriam apenas equvocos

    histricos passageiros.

    Benjamim Constant

    Na verdade, embora a confluncia entre liberais e democratas na atualidade

    seja fato, no se pode perder de vista a especificidade de cada tradio.

    Liberalismo e democracia so correntes definidas, e a relao entre ambas

    pode ser de afinidade, mas tambm pode ser de conflito, como veremos.

    Liberalismo e Democracia - o que caracteriza cada uma dessas correntes e,

    consequentemente, a diferena entre ambas?

  • Para o nosso autor, liberalismo uma concepo de Estado, de um Estado

    limitado. Seu trao principal, portanto, a convico de que o poder do Estado

    no pode ser exercido em todos os campos, mas que existem esferas sujeitas

    deliberao individual, classicamente os mbitos da economia e da vida

    privada.

    A democracia, em contraste, antes que concepo de Estado uma forma de

    governo. Caracteriza-se, desde a antiguidade, pela atribuio de poder

    maioria; o governo de muitos, em oposio ao governo de poucos e ao de um

    s.

    Para o liberalismo, portanto, o essencial limitar o poder; para a democracia,

    distribuir o poder. Trata-se de dois problemas diferentes, cuja soluo

    simultnea , s vezes, impossvel.

    Essa distino remonta, na verdade, conhecida separao de Benjamim

    Constant entre a liberdade dos antigos e a liberdade dos modernos. Para esse

    autor, na plis (cidade-estado) da Grcia antiga, liberdade era compreendida

    como participao no processo de deliberao. Era a possibilidade de

    comparecer assembleia que reunia os cidados e nela votar. Predominava

    ento uma concepo positiva de liberdade. Entre ns, modernos, pelo

    contrrio, a liberdade vista como a "segurana nas fruies privadas", ou

    seja, a garantia de que os direitos do indivduo no sero feridos pelo Estado.

    Essa concepo de liberdade pode ser descrita como negativa.

  • Pg. 3 - Os direitos do homem

    2. Os direitos do homem

    Mas qual a razo para o poder do Estado deter-se perante alguma esfera,

    algum limite?

    A resposta est na doutrina dos direitos humanos, pressuposto filosfico de

    grande parte das verses do Estado liberal.

    Conforme essa doutrina, h um conjunto de direitos inatos aos seres humanos,

    direitos que a associao poltica no pode violentar ao sabor de sua

    convenincia. O direito vida, liberdade, segurana, busca da felicidade,

    por exemplo, nascem com cada indivduo. Todos podemos agir de forma a

    efetiv-los e podemos, legitimamente, resistir a qualquer tentativa de sua

    violao.

    Esses direitos so naturais, portanto. No dependem de outorga da

    coletividade ou do governo. No podem, em consequncia, ser por eles

    revogados. Tm como fundamento uma concepo geral da natureza humana,

    que, como diz Bobbio, no precisa estar fundamentada em pesquisa emprica

    ou provas histricas. Podemos chegar a essa concepo com o uso exclusivo

    da razo.

  • Na verdade, essa ideia de um conjunto de direitos humanos j presentes em

    um hipottico Estado de natureza, anterior constituio da sociedade,

    justificao, no plano da ideologia, de um processo histrico determinado, de

    limitao do poder do rei. O marco inicial desse processo pode ser considerado

    o ano de 1215, quando o rei ingls Joo "outorga" uma carta, na qual

    determinadas "liberdades" dos nobres so garantidas contra o poder real.

    No momento em que o soberano encontra limites sua vontade, a relao com

    o sdito adquire o carter de um pacto. Cabe ao rei o dever de proteo e ao

    sdito o de obedincia. Este ltimo, no entanto, no mais irrestrito, mas exclui

    certas esferas, definidas por consenso entre os sditos e entre esses e o

    soberano.

    Os marcos finais do processo encontram-se nas declaraes de direitos,

    afirmadas pela Revoluo Norte-Americana (1776) e pela Revoluo Francesa

    (1789).

    Para saber mais sobre a Revoluo Francesa clique aqui.

  • Para aperfeioar ainda mais os seus conhecimentos sobre a Revoluo

    Francesa, assista ao vdeo abaixo. (6min 26)

    Os direitos do homem (cont.)

    Enquanto o processo histrico real mostra uma situao inicial de poder

    absoluto do soberano, poder que sofre uma eroso progressiva, no plano das

    idias o movimento inverso. Parte-se de um hipottico ponto zero, o estado

    de natureza, no qual os indivduos so livres e no existe corpo poltico.

    Mediante um contrato social, esses indivduos abrem mo de parte de sua

    autonomia em troca das vantagens da associao, principalmente a

    segurana. Funda-se, ento, a sociedade poltica, que no pode ser desptica

    porque deriva seu poder dos indivduos que a formam.

    O pressuposto dos direitos naturais encontra-se, assim, estreitamente

    vinculado ao contratualismo, ideia de contrato social como origem da

    sociedade. O contratualismo postula que a sociedade no um fato natural,

    mas artificial, fruto da vontade humana; que a sociedade no um fim, ao qual

    os indivduos devem se devotar, mas um meio para a satisfao de

    necessidades e interesses individuais. Postula, enfim, a precedncia, histrica

    e lgica, dos indivduos sobre o coletivo: primeiro existem indivduos

    singulares com suas necessidades, depois a sociedade.

    A idia de direitos naturais do homem e a concepo contratualista de

    sociedade so inseparveis de uma posio individualista. O individualismo,

    segundo Bobbio, a condio do liberalismo.

    Assista ao vdeo abaixo com a entrevista do professor Celso Lafer, e observe

    os direitos humanos pela viso de diversos autores polticos.

    Direitos Humanos parte 1

  • Pg. 4

    3. O Estado limitado

    Vimos que o problema que define o liberalismo a limitao do poder do

    Estado. Essa limitao se d em dois aspectos diferentes:

    Primeiro: nos poderes do Estado;

    Segundo: nas funes do Estado;

    A limitao dos poderes do Estado d lugar ao chamado estado de direito,

    oposto ao estado absoluto. Estado de direito implica a limitao dos poderes do

    Estado em pelo menos dois planos distintos. No primeiro, dizemos que os

    poderes pblicos so limitados quando se encontram regulados por normas

    gerais, normalmente inscritas numa Constituio, e s podem ser exercidos de

    acordo com essas normas.

    Esse primeiro plano, no entanto, no suficiente, uma vez que as normas

    constitucionais podem descuidar da defesa dos direitos individuais. Pode

    haver, como de fato houve, despotismo consagrado pelas leis. O segundo

    plano se produz, portanto, quando as prprias normas incorporam o respeito

    aos direitos considerados fundamentais.

  • O Estado de direito implica tambm a vigncia de mecanismos de controle do

    poder. Normalmente, esses mecanismos enquadram-se num dos seguintes

    tipos: controle do Executivo pelo Legislativo, controle do Legislativo por uma

    Corte de Justia, autonomia local e autonomia do Judicirio frente aos demais

    poderes.

    A limitao das funes do Estado, por sua vez, desenha uma segunda faceta

    da utopia liberal: o Estado mnimo, cujo antnimo o Estado mximo (que

    considera legtimo agir em esferas reservadas pelos liberais para a iniciativa

    individual).

    Em sntese, o projeto liberal demanda um Estado com as seguintes

    caractersticas:

    Primeira: exerccio do poder regulado por normas gerais, normalmente

    reunidas em uma Constituio;

    Segunda: incorporao, nesse conjunto de normas, de garantias aos direitos

    considerados fundamentais;

    Terceira: presena de mecanismos efetivos de controle do poder; e

    Quarta: reduo da ao do Estado ao mnimo indispensvel.

  • Pg. 5

    4. A liberdade negativa

    A concepo de liberdade implcita no ideal de limitao do poder do Estado ,

    como vimos, a de liberdade negativa. Em sua anlise, liberdade e poder

    constituem termos que se excluem mutuamente. S h liberdade onde o

    indivduo no tolhido por determinaes externas a ele, como aquelas

    provenientes de um poder pblico. Em outras palavras, quanto mais as leis so

    amplas e numerosas, menos livres so os indivduos a elas sujeitos. Nessa

    perspectiva, os dois tipos de limites acima mencionados reforam-se um ao

    outro. Quanto menores as funes atribudas ao Estado, mais fcil ser o

    controle de seus poderes.

    No entanto, para os liberais h um limite a essa "minimizao" do Estado.

    Afinal, se o Estado um mal, no seu ponto de vista, um mal necessrio.

    Postular o Estado como um mal que pode ser eliminado a clssica posio

    anarquista, no a liberal. Conforme esta ltima, a emancipao do indivduo em

    relao ao Poder, da sociedade civil em relao ao Estado, obrigatria em

    certas esferas, mas sempre permanecero funes impossveis de serem

    efetuadas com o esforo exclusivo da iniciativa de particulares.

    Do lado dos campos reservados aos indivduos sobressaem o religioso e o

    econmico. A liberdade de conscincia considerada fundamental por todas

    as variantes do liberalismo. Iniciada com a conquista da liberdade religiosa, no

    sculo XVII, ampliou-se progressivamente para a esfera da opo poltica, dos

    costumes, do estilo de vida

    Para saber mais sobre a atual viso liberal dos limites de interveno do

    Estado, clique aqui.

  • Pg. 6

    A liberdade econmica, por sua vez, implantou-se contra os privilgios e

    vnculos feudais, que determinavam, no momento do nascimento, a profisso,

    o local de trabalho e as oportunidades de comrcio de cada um. As liberdades

    de escolher a profisso, o local de trabalho, de livre circulao de homens e

    mercadorias, consolidaram-se, na Inglaterra, no decorrer do sculo XVIII.

    Ambas as esferas so o terreno da primeira leva histrica de direitos, os

    direitos civis, na periodizao proposta por Marshall.

    Importa ressaltar a posio radicalmente antipaternalista assumida pelos

    liberais. Religio, estilo de vida, costumes, profisso, negcio, so todas

    esferas em que cada um o melhor juiz de seu interesse. A intromisso de

    regras externas, mesmo as da lei, que digam aos indivduos o que devem fazer

    e como devem comportar-se, resulta sempre em perdas para os interessados.

    O paternalismo, na viso de diversos expoentes do pensamento liberal, a pior

    forma de despotismo.

    Que papel resta ao Estado, nessa perspectiva?

    Cabe ao Estado prover as condies necessrias ao livre desenvolvimento dos

    indivduos. Na frmula clssica de Adam Smith, so suas funes exclusivas a

    garantia da segurana, externa e interna, e a realizao de obras pblicas que

    os agentes privados no possam realizar.

  • Pg. 7

    5. O elogio da diversidade

    Chegamos neste ponto a outro trao distintivo do pensamento liberal: o apreo

    pela variedade.

    Na verdade, na tica liberal, esse tema encontra-se estreitamente vinculado ao

    anterior. O propsito do governo sempre a produo da ordem e do bem-

    estar; dessa maneira, sua interferncia sobre esferas que deveriam reservar-se

    ao mbito do privado tende sempre a produzir efeitos homogeneizadores sobre

    os cidados. O Estado age por meio do poder administrativo, de regras

    impessoais, aplicveis a todos, regras cuja boa aplicao fiscalizada por

    estamentos burocrticos especializados. Quanto maior, portanto, o nmero e

    alcance dessas regras, mais o Estado estar exigindo dos cidados que se

    comportem de forma semelhante.

    Para os liberais, quanto mais avanam o Estado, as regras, a burocracia, sobre

    as esferas de deciso individual, menor o espao da liberdade. A grande

    tentao, no caso, o paternalismo, j citado: a tentao de converter o Estado

    em provedor da vida do cidado. A segurana, a ausncia de risco que a opo

    implica, tem, como contrapartida, a perda de autonomia, a uniformidade e a

    estagnao. Haveria, nesse caso, perda em eficincia, mas tambm perda em

    liberdade.

  • Abrir espao para a autonomia dos indivduos abrir espao para sua

    diversidade e seus conflitos. Ao contrrio das concepes holistas, que Bobbio

    denomina tambm organicistas, que prezam a harmonia e a concrdia e

    consideram o conflito sintoma de desordem e desagregao social, a

    perspectiva liberal aceita a diversidade e o conflito como fontes da inovao, da

    mudana e do progresso. O avano cientfico, o crescimento econmico, a

    seleo dos melhores lderes polticos, so processos de aperfeioamento

    continuado, que o conflito torna possveis.

    Para saber mais sobre os prejuzos que a interveno estatal pode causar

    sociedade, na viso liberal, clique aqui.

    Essa a origem da diferena, trabalhada pelo pensamento liberal desde seus

    primrdios, entre o dinamismo dos pases europeus livres e a estagnao

    prpria do despotismo oriental.

  • Pg. 8

    6. Democracia ontem e hoje

    Enquanto o liberalismo produto moderno, a democracia tem seu nascimento

    na antiguidade. No entanto, a democracia moderna difere da antiga em um

    aspecto fundamental: os antigos deliberavam na gora, praa de reunio dos

    cidados de Atenas; os modernos delegam a deliberao a seus

    representantes.

    claro que as dimenses dos Estados modernos tornam invivel a democracia

    direta. No entanto, os tericos do liberalismo levantaram argumentos outros,

    alm da viabilidade, em favor da democracia representativa. A manifestao

    direta da vontade do eleitor produziria decises excessivamente coladas aos

    interesses particulares dos cidados. Da a propenso ao facciosismo e

    demagogia, caractersticas da democracia antiga.

    Nas democracias modernas, a representao diminui esses efeitos da

    manifestao da vontade popular, ainda mais quando so tomadas precaues

    contra a prtica do mandato imperativo. Ou seja, no momento em que o

    mandatrio se considera representante de uma parte do povo, de um distrito,

  • por exemplo, e no do povo inteiro, estariam abertos os caminhos, de um ponto

    de vista liberal clssico, para a reproduo dos defeitos da velha democracia.

    Alis, democracia antiga e liberalismo moderno so claramente incompatveis.

    A primeira desconhecia limite ao poder da sociedade sobre os indivduos. O

    segundo, historicamente, desconfia do voto popular.

    A confluncia entre liberalismo e democracia a que nos referimos

    anteriormente implica um grau elevado de consenso acerca do significado da

    igualdade que a democracia busca. A igualdade que o liberalismo aceita,

    aquela compatvel, a seu ver, com o princpio da limitao do poder, a de

    cunho jurdico-formal, no aquela tica; a procedimental, no a substantiva;

    a de regras igualmente aplicveis a todos, no a que procura uma situao de

    igualdade ao fim do processo.

    A confuso entre os dois tipos de igualdade levou a polmicas reiteradas entre

    liberais e socialistas acerca da comparao entre uma situao de democracia

    formal, sem igualdade material, e outra, na qual a igualdade das situaes de

    cada um era obtida ao preo das liberdades.

  • Pg. 9

    A divergncia, segundo Bobbio, insolvel. Liberdade e igualdade, no campo

    da produo material, da economia, so dois valores excludentes. De um lado

    temos os liberais, que prezam o individualismo, o conflito, a diversidade. Para

    eles, o fim principal o desenvolvimento dos indivduos, mesmo que o

    desenvolvimento daqueles "mais capazes" se faa em detrimento dos demais.

    De outro lado, temos os igualitaristas, partidrios de uma viso holista, que

    valorizam a harmonia. Seu ideal o desenvolvimento equnime e no conflitivo

    da coletividade como um todo.

    Para os liberais, a igualdade compatvel com a manuteno da liberdade a

    igualdade perante a lei, no sentido de no existirem privilgios, e a igualdade

    no gozo dos direitos fundamentais, reconhecidos a todos os seres humanos. O

    igualitarismo democrtico, por sua vez, procura realizar, com o auxlio do

    Estado, a igualdade no fim do processo, a igualdade substantiva, uma situao

    na qual no s as oportunidades sejam iguais para todos, mas as condies de

    vida dos cidados sejam semelhantes.

    Pg. 10

    7. Liberalismo e democracia hoje

    Do exposto decorre que a democracia poltica, entendida como a vigncia do

    sufrgio universal, compatvel com o liberalismo. No entanto, essa

    compatibilidade longe de ser bvia. Muitos dos clssicos liberais

    preocuparam-se em desenvolver argumentos a favor do voto censitrio. Para

    eles, fundamentalmente, o governo lida com a despesa pblica e no deve

    estar aberto opinio de quem no contribui para a receita pblica. No sculo

  • XIX, alis, o sufrgio universal era exceo e os Estados liberais tendiam a ser

    no democrticos, por esse critrio.

    Hoje no fcil imaginar um Estado democrtico que no seja liberal, nem

    tampouco um Estado liberal no democrtico. Em favor dessa simbiose, dois

    argumentos so levantados.

    Em primeiro lugar, a salvaguarda dos direitos fundamentais exige a regra

    democrtica. A garantia da vigncia desses direitos ser to mais eficaz quanto

    maior o nmero de interessados com possibilidade de se manifestarem, por

    meio da voz e do voto. Consequentemente, a garantia mxima dos direitos est

    numa situao de sufrgio universal.

    Em segundo lugar, o voto s eficaz como instrumento de medida da vontade

    popular se os votantes so livres, ou seja, se votam com a proteo a seus

    direitos fundamentais assegurados. Do contrrio, o voto mediria apenas o

    medo da retaliao de poderosos ou a submisso ao poder econmico. Da

    que, hoje, democracia e liberalismo precisem um do outro.

  • Pg. 11

    8. Liberalismo e democracia no sculo XIX

    No sculo XIX, contudo, como vimos, essa relao de afinidade no era

    evidente por si mesma. Examinando os dois grandes laboratrios polticos da

    poca, vemos, na Inglaterra, uma situao de progresso da liberdade que se

    estende do fim do sculo XVII ao incio do sculo XX. o processo de

    desdobramento dos direitos individuais: primeiro conquistam-se os direitos

    civis, num segundo momento os direitos polticos e, finalmente, os direitos

    sociais. Trata-se de um progresso suave, sem grandes perturbaes polticas,

    mas que se processou no interior de uma sociedade eminentemente

    aristocrtica. Em outros termos, com a manuteno de um grau elevado de

    desigualdade social.

    Na Frana, em contraste, o percurso foi mais acidentado, apresentando

    retrocessos no plano da liberdade, simultaneamente a progressos no da

    igualdade. Basta lembrar o perodo do terror na poca da Revoluo e o golpe

    do segundo Bonaparte, imediatamente aps a implantao do sufrgio

    universal.

  • Esse quadro ensejou a diviso dos dois grandes campos. Os liberais tenderam

    a se dividir em radicais, aqueles que aceitavam a democracia, e

    conservadores, contrrios ao sufrgio universal. Os democratas, por sua vez,

    dividiram-se em liberais e no liberais, conforme sua posio face s garantias

    individuais. Evidentemente, liberais radicais e democratas liberais tenderam

    indistino. O liberalismo conservador foi a matriz de uma srie de

    agrupamentos polticos influentes em vrios pases europeus. Por sua vez, os

    democratas no liberais deram origem a diversos partidos radicais, de posio

    vizinha a dos socialistas.

    Pg. 12

    Da experincia e reflexo do sculo XIX, possvel construir um quadro das

    relaes possveis entre democracia e liberalismo.

    A primeira relao de possibilidade. Sob esse aspecto a democracia e o

    liberalismo so compatveis, embora sejam tambm possveis Estados liberais

    no democrticos e Estados democrticos no liberais.

    A segunda relao a impossibilidade. Liberalismo e democracia so

    excludentes e, nesse ponto, teriam razo tanto os liberais conservadores

    quanto os democratas no liberais.

    A terceira relao a necessidade. No existe um dos termos na ausncia do

    outro. Esta , como vimos, a opinio prevalecente nas democracias modernas.

  • Dois dos principais tericos do liberalismo do sculo XIX representam bem as

    vertentes conservadora e radical do movimento: Alexis de Tocqueville e John

    Stuart Mill.

    Tocqueville tinha como preocupao maior a manuteno da liberdade no

    mundo moderno. A seu ver, o progresso da igualdade, no sentido de condies

    sociais semelhantes, era inevitvel. Processo iniciado na Idade Mdia,

    expandia-se irresistivelmente desde ento. A igualdade era, para ele,

    providencial, era uma necessidade histrica.

  • Pg. 13

    A liberdade, no entanto, era contingente. Poderia ou no se realizar, uma vez

    que a igualdade absoluta to possvel na liberdade quanto no despotismo. A

    experincia inglesa preservara a liberdade com o sacrifcio da igualdade. Na

    Frana, por sua vez, o avano da igualdade ocorre na perda da liberdade. A

    experincia americana parecia a nica a conciliar de forma harmoniosa os dois

    valores. Cumpria ento estud-la e dela extrair as lies pertinentes.

    No seria possvel apresentar uma viso razovel do pensamento de

    Tocqueville nesse espao limitado. Abordaremos um tema, um dos fantasmas

    do pensamento liberal, por ele explorado com genialidade: a tirania da maioria.

    Mesmo no experimento americano viu o autor sintomas do despotismo. A

    maioria ali reinava absoluta e no havia instncia a que se pudesse recorrer

    em caso de uma deciso tirnica do maior nmero. Executivo e Legislativo

    obedecem maioria, o jri integrado por cidados eleitos, a fora policial a

    maioria em armas, os rgos da opinio pblica expressam o seu pensamento.

    Em suma, um cidado prejudicado por uma deciso injusta da maioria no tem

    a quem recorrer.

    Mais grave ainda, o poder da maioria se exerce sobre o pensamento, de

    maneira que a livre discusso cessa no momento em que se forma uma

    opinio majoritria slida sobre ela. A partir desse momento, ningum ousa

    divergir, sob pena de converter-se em pria na sociedade. O tema de

    Tocqueville, no fundo, o da dificuldade da dissidncia, do dissenso, nas

    democracias de massa, tema retomado por diversos pensadores, liberais e no

    liberais, deste sculo.

  • Pg. 14

    John Stuart Mill , o expoente da vertente radical do liberalismo, merece

    registro por vrias caractersticas de sua obra. Em primeiro lugar, por filiar-se a

    uma tradio filosfica, o utilitarismo, que prescinde do jusnaturalismo como

    fundamento de uma posio liberal.

    Para os utilitaristas, a ideia de direitos naturais, inalienveis, do ser humano

    no passa de uma fico. A limitao do poder deve obedecer a outro critrio,

    este sim, emprico, verificvel: a utilidade, ou seja, a maior felicidade do maior

    nmero de cidados. Nessa perspectiva, felicidade igual presena de

    prazer e ausncia de dor e constitui o nico critrio capaz de limitar,

    legitimamente, a liberdade. Precisamos de poder, de governo, apenas para

    impedir danos aos outros e manter o nvel de felicidade timo da sociedade.

    Contra a ameaa da tirania da maioria, Mill defende a adoo do sufrgio

    universal. O voto de todos impede a ocupao da "maioria" por apenas uma

    camada da sociedade. Alm disso, o voto pedaggico, e seu exerccio torna

    as minorias conscientes dos possveis atentados a seus direitos. Como

    segunda preveno, o autor recomenda o voto proporcional, que permite a

    representao de grupos minoritrios, excludos pela sistemtica do voto

    majoritrio.

    Vale lembrar que o sufrgio universal no inclua, para Mill, os falidos, os

    devedores fraudulentos, os analfabetos e os indigentes. Inclua, sim, as

    mulheres, que, a seu ver, precisavam mais das leis, por serem fisicamente

    mais fracas que os homens. Propunha tambm o voto plural, cabendo um

  • nmero maior de votos aos cidados mais instrudos, conforme verificado em

    exames pblicos.

    Pg. 15

    Nesta primeira unidade, examinamos as definies de liberalismo e

    democracia, os direitos humanos e as doutrinas contratualistas, a limitao do

    Estado, a importncia da diversidade e do conflito, assim como as relaes

    possveis entre liberalismo e democracia.

    Todos esses temas so fundamentais na tradio liberal. Estamos agora em

    condies de passar para o assunto da nossa segunda Unidade: O Argumento

    Neoliberal.

    Parabns! Voc concluiu a primeira unidade. Vamos prosseguir?

  • Unidade 2 - Argumento neoliberal

    Para o exame do argumento neoliberal, usaremos como guia a obra mais

    conhecida de Friedrich Hayek, O Caminho da Servido. O livro data de 1944 e

    constitui uma das exposies mais coerentes dos argumentos levantados pelos

    liberais contra a economia planejada e a favor da livre iniciativa individual

    nesse campo. O autor considerado precursor da onda neoliberal que se

    apossa dos governos europeus e norte-americano a partir dos ltimos anos da

    dcada de 1970.

    Depois do diagnstico inicial e das definies bsicas com que o autor

    trabalha, vamos examinar o conjunto de argumentos que a obra apresenta:

    primeiro, a refutao dos argumentos em favor do socialismo; e, em segundo

    lugar, a exposio dos argumentos contrrios ao socialismo, que dariam

    justificativa alternativa liberal.

    Sobre o argumento neoliberal, estudaremos, portanto, na Unidade 2:

    1. diagnstico do momento histrico poca da Segunda Guerra Mundial;

    2. definies de socialismo e liberalismo.

    3. Argumentos do autor:

    A favor do socialismo

    Inevitabilidade

    Racionalidade

    Contra o socialismo

    Dficit democrtico

    Fim do Estado de direito

    A favor do liberalismo

    Justia

    Segurana

    Moral

  • Pg. 2

    1. Diagnstico

    preciso, em primeiro lugar, fazer meno s circunstncias polticas

    presentes no momento em que a obra foi escrita, com clara influncia sobre o

    seu desenvolvimento. O texto foi elaborado nos anos da Segunda Guerra

    Mundial, o que implica dizer que o nazismo e as diversas formas de fascismo

    constituam opes polticas de grande importncia prtica. O perodo entre as

    duas guerras mundiais, de 1918 a 1939, foi, alis, bastante desfavorvel ao

    iderio liberal, acossado simultaneamente pelas extremas esquerda e direita.

    Essa realidade reflete-se na obra e explica seu tom geral, de polmica e

    proselitismo.

    O campo poltico em que o autor se encontra esse: um mundo em que trs

    grandes correntes - liberalismo, fascismo e comunismo - disputam a

    hegemonia, poltica, intelectual e at blica. No entanto, o seu diagnstico

    sobre a prpria poca parte de uma viso das relaes entre essas correntes

    muito diferente da que prevalecia no senso comum da poca e tambm de

    hoje. Em vez de postular uma oposio radical entre os extremos da esquerda

    e da direita, entre nazistas e comunistas, deixando aos liberais um espao no

    centro poltico, Hayek sustenta que a verdadeira oposio se d entre liberais,

    de um lado, e totalitrios, de outro, estes ltimos divididos nas faces de

  • esquerda e direita. Para ele, portanto, o nazismo no foi uma reao ao

    comunismo, com base nas classes mdias empobrecidas, alimentada pelos

    capitalistas temerosos da revoluo. Foi, sim, um resultado poltico especfico

    da mesma tendncia geral que produzia, na poca, o fortalecimento do

    socialismo.

    O argumento explorado ao longo de todo o livro. Supe, no entanto, uma

    viso da histria exposta, em poucas palavras, no diagnstico apresentado de

    incio. Liberalismo um desdobramento poltico e econmico de uma idia

    maior: o individualismo, no sentido de respeito pela pessoa, por suas

    preferncias e opes. Essa atitude mais ampla tem seu marco histrico inicial

    na Renascena. Ali as amarras que tolhiam a espontaneidade humana

    comeam a ser retiradas e a coero sobre os indivduos comea a retroceder.

    O resultado foi um perodo de enorme criatividade artstica, cientfica e

    tecnolgica, com efeitos sobre a economia e a poltica.

  • Pg. 3

    2. Definies

    Antes da exposio sistemtica de seus argumentos, Hayek procede a

    definies mnimas dos dois sistemas que ir contrapor: o socialismo e o

    liberalismo.

    O socialismo tem por fins manifestos, assumidos por seus adeptos, a

    promoo da justia social, da igualdade entre os cidados e a garantia de um

    mnimo de segurana econmica para eles. No entanto, para o autor, mais

    importantes que esses objetivos so os meios que se pretende usar para

    alcan-los. No caso dos socialistas, o instrumento a ser utilizado a

    interferncia do Estado na vida econmica. A interferncia pode ser completa e

    radical, como no experimento sovitico, ou gradual e localizada, como

    propunha a maioria dos socialistas britnicos poca. Mas o fator comum s

    duas vertentes era a interveno do Estado para dar ordem economia e

    direcion-la busca de um determinado fim.

    O emprego desse meio, o planejamento econmico em suas diversas

    dimenses, caracterizaria uma espcie mais geral, da qual o socialismo seria

    apenas um dos gneros: o coletivismo. Toda tentativa de substituir o

    mecanismo impessoal e annimo das foras de mercado por alguma conduo

    coletiva das foras sociais em direo a objetivos previamente determinados

    constitui, para Hayek, uma forma de coletivismo. O tipo de coletivismo, o

    gnero, no caso, seria definido pelos objetivos de cada um: a igualdade, no

    caso do socialismo; a supremacia de uma raa, no caso do nazismo.

  • Por outro lado, no liberalismo, o sistema da livre iniciativa, o Estado nunca

    procura definir objetivos comuns para o conjunto da sociedade. Sua meta

    criar uma estrutura, legal e material, que permita a cada indivduo perseguir os

    objetivos que julgue mais adequados.

    A grande vantagem desse sistema seria prescindir da ao da autoridade, ou

    seja, de um controle social consciente das aes individuais no plano da

    economia. No se trata absolutamente de um laissez-faire, de uma postura

    passiva de simples absteno, de deixar os atores agirem livremente no

    mercado. A tarefa do Estado agir no sentido de potencializar ativamente os

    mecanismos de concorrncia e supri-los, mediante ao planejada, nos setores

    em que no so adequados.

  • Pg. 4

    claro que o Estado deve zelar pela liberdade de produo, compra e venda,

    abstendo-se de intervir nesses processos. Deve zelar, consequentemente, pela

    livre formao dos preos, tomando todo cuidado para no influenci-los, por

    meio de subsdio ou de impostos excessivos e diferenciados. Mas deve

    tambm garantir ativamente, com aes positivas nesse sentido, a sanidade da

    moeda, a liberdade dos mercados e a preveno do monoplio, a livre

    circulao das informaes. Importncia especial cabe liberdade no processo

    de formao de preos, uma vez que os preos so os indicadores que

    informam, automtica e constantemente, aos atores as variaes da

    disponibilidade de cada bem, possibilitando a tomada de decises racionais.

    Deve o Estado, alm disso, agir, de forma planificada, em todos os setores nos

    quais a concorrncia seja impossvel ou incua. O recurso ao plano, portanto,

    no excludo de maneira absoluta por Hayek, mas ganha um carter

    complementar concorrncia e no substitutivo a ela.

    Importa lembrar tambm que, na viso do autor, no toda interferncia do

    Estado que distorce a concorrncia. Medidas que afetam por igual a todos os

    atores, como a legislao trabalhista ou ambiental, no introduzem vis algum

    no processo. Sua pertinncia, portanto, deve ser avaliada segundo um clculo

    simples de custos e benefcios.

  • Pg. 5

    3. Primeiro argumento a favor do socialismo: a inevitabilidade

    Uma vez apresentado o diagnstico e as definies fundamentais, o autor

    passa a examinar os argumentos favorveis e contrrios ao socialismo. claro

    que, para ele, destruir os argumentos favorveis ao socialismo e mostrar, por

    outro lado, a correo daqueles contrrios a esse sistema argumentar a favor

    do sistema alternativo, o liberalismo.

    O primeiro argumento analisado pelo autor, a favor do socialismo, a suposta

    inevitabilidade histrica da economia centralmente planejada. O argumento,

    apresentado, entre outros, por Marx, postula que o progresso tecnolgico exige

    unidades de produo cada vez maiores para a obteno dos ganhos de

    escala timos. Quanto mais avanada a tecnologia, maiores seriam as

    unidades mnimas de capital necessrias ao investimento, maiores as fbricas,

    maiores as empresas. As empresas menores, incapazes de conseguir o

    mnimo de capital necessrio aos investimentos que as novas tecnologias

    demandam, estariam condenadas falncia, deixando espao aberto para

    poucas e grandes empresas. Num mercado dominado por poucas empresas, a

    tendncia inexorvel, portanto, seria a substituio, com o tempo, da

    competio entre os grupos empresariais por acordos, por uma economia de

    monoplios e cartis.

  • Alcanado esse estgio, o passo natural seria a substituio do monoplio

    privado pelo pblico. Afinal, se os benefcios da concorrncia desaparecem,

    no h razo para permitir a imposio de lucros extraordinrios por agentes

    privados em prejuzo dos consumidores. Melhor do que deixar as empresas

    gigantes explorarem a populao seria estatizar a produo e transferir a

    definio de preos e lucros ao planejamento racional.

    Pg. 6

    Os socialistas, portanto, no aceitam a acusao de que seu objetivo dar fim

    concorrncia na economia. Para eles, o prprio capitalismo est fazendo

    esse trabalho e caber ao socialismo apenas a substituio do monoplio

    privado, que tem como objetivo o lucro de poucos, pelo monoplio pblico, que

    tem por fim a perseguio, racional, do bem comum.

    Para Hayek, a falha desse argumento consiste em supor que os resultados do

    desenvolvimento tecnolgico levam sempre a uma nica direo: a eficincia

    maior das grandes unidades. Para ele, o avano da tecnologia pode vir a exigir

    unidades de investimento maiores, mas esse no o nico resultado possvel.

    Ao contrrio, pode ser at previsvel que, em certos casos, a maior capacidade

    tcnica faa inclusive cair, em montante absoluto, o ponto timo, em termos de

    retorno, da escala de produo. O resultado, nesse caso, seria o contrrio:

    tornar viveis empresas menores, que antes no tinham como concorrer com

    as maiores.

  • Mas, se esse argumento procede, se no existe determinismo tecnolgico, qual

    seria a razo do progresso evidente dos monoplios nas economias

    capitalistas? Na opinio de Hayek, as causas desse fenmeno seriam

    essencialmente polticas. A ao do Estado, na forma de favorecimentos e

    facilidades variadas, principalmente tarifas protecionistas contra produtos

    estrangeiros, pe obstculos ao processo de concorrncia e cria, assim, as

    condies do surgimento e prosperidade dos monoplios. Grandes empresas

    s excluem sistematicamente as menores e substituem a competio pelos

    acordos quando o Estado cria as condies polticas para isso.

    Portanto, o primeiro argumento dos socialistas, a inevitabilidade da substituio

    da concorrncia pelo monoplio privado e, num segundo momento, pelo

    controle estatal, , na opinio de Hayek, falso.

  • Pg. 7

    4. Segundo argumento a favor do socialismo: a racionalidade

    O argumento da racionalidade recorrente na tradio socialista. Aponta a

    irracionalidade do funcionamento do mercado como consequncia da falta de

    coordenao das aes dos diferentes agentes econmicos. Num regime de

    livre iniciativa, no qual a propriedade dos meios de produo pulverizada nas

    mos de capitalistas individuais, no existe mecanismo de coordenao

    eficiente das decises de produtores e consumidores. O ajuste para solucionar

    qualquer descompasso entre produo e consumo feito posteriormente, pelo

    mercado. Se algum bem falta, o preo sobe e sua produo estimulada. Se

    existe sobra de outro, seu preo cai e a produo diminui.

    O problema do ajuste pelo mercado era a ocorrncia de crises econmicas

    peridicas. Os capitalistas individuais aumentavam sua produo sempre que

    podiam, a economia passava por um ciclo de expanso at o momento em

    que os mercados saturavam-se, ou seja, havia mais mercadoria que

    consumidores. Tinha incio ento um ciclo recessivo, com retrao da

    atividade econmica e a proliferao de falncias.

  • Pg. 8

    Nessas condies, o argumento socialista diz que sem uma forma de

    coordenao prvia, que s o planejamento central poderia garantir, o

    descompasso entre as decises de vendedores e compradores apresenta

    efeitos acumulativos, que culminam na ecloso de uma crise, no decorrer da

    qual boa parte das foras produtivas destruda e o desemprego e a misria

    so multiplicados.

    Na percepo dos socialistas, um sistema como esse, que alterna momentos

    de expanso e crise, representa um desperdcio enorme de recursos materiais

    e humanos. O planejamento, adequando periodicamente produo e consumo,

    permitiria um crescimento econmico continuado, na medida das necessidades

    sociais. Para tal bastaria substituir a iniciativa de um grande nmero de

    capitalistas pela iniciativa do Estado, transferindo a propriedade de mos

    privadas para o controle pblico.

    Para Hayek, o argumento deve ser invertido. O nus da irracionalidade deve

    pesar no sobre o mercado, mas sobre o planejamento centralizado. Numa

    economia complexa, a quantidade de informaes em circulao necessrias a

    seu bom funcionamento enorme e sua atualizao, constante. impossvel

    um nico agente gerir a totalidade dessas informaes, sempre em mudana.

    Qualquer tentativa de faz-lo tem como consequncia, portanto, alguma

    medida de ineficincia econmica.

  • Pg. 9

    Apenas o mercado teria condies de operar essas economias complexas. Em

    primeiro lugar, as decises, no sistema de mercado, so descentralizadas, de

    responsabilidade de uma multiplicidade de agentes econmicos. Em segundo

    lugar, a coordenao de suas aes se d de maneira impessoal e automtica,

    por meio do sistema de preos. Os preos constituem os mostradores que

    sinalizam as informaes necessrias aos agentes. Por isso to importante

    sua formao livre: qualquer interferncia do Estado distorce a formao de

    preos e leva os agentes a tomarem decises com base em informaes

    equivocadas.

    A concorrncia , portanto, dotada de racionalidade maior que qualquer tipo de

    planejamento. Aciona, automaticamente, mecanismos de correo de todos os

    desequilbrios momentneos que provoca. O planejamento, por sua vez, seria

    tanto mais ineficiente quanto maior fosse a complexidade da economia.

    Na avaliao de alguns autores, o argumento de Hayek no tinha fundamentos

    empricos na poca em que foi elaborado. Afinal, at a dcada de 1950,

    economias centralmente planificadas, como a sovitica, mostraram

    desempenho superior, em termos de crescimento, ao do mundo capitalista. No

    entanto, a evoluo tecnolgica recente teria aumentado em muito a

    complexidade dos ambientes econmicos, de maneira a conferir, hoje, validade

    ao argumento.

    Em sntese, Hayek descarta, tambm, o segundo grande argumento

    apresentado em defesa do socialismo.

  • Pg. 10

    5. Primeiro argumento contrrio ao socialismo: o dficit democrtico

    A seguir, Hayek desenvolve os argumentos contrrios ao socialismo. O

    primeiro a ser abordado sustenta a existncia, em algum grau, de um dficit

    democrtico em toda forma de socialismo.

    A razo, para o autor, simples. A eficincia de todo planejamento decorre da

    adequao entre os fins procurados e os meios empregados. Portanto, o

    sucesso do planejamento centralizado da economia exigiria uma clara definio

    dos fins pretendidos pelo conjunto da sociedade e a mobilizao de todos os

    esforos sociais para o seu alcance. De uma maneira ou outra, trata-se de

    definir um objetivo, supostamente mais relevante que os demais, e imp-lo

    sociedade. Com a promessa de reduo da incerteza, do risco, procura-se

    conseguir uma maior uniformidade entre os cidados, pelo menos no que diz

    respeito a esse objetivo primeiro.

    Alguns poderiam argumentar que no se trata de produzir a uniformidade em

    todos os objetivos e finalidades que os cidados possam ter. Apenas os

    objetivos maiores, como a igualdade e a prosperidade, seriam definidos

    previamente e exigiriam a aprovao de toda a sociedade. Abaixo desses,

    todos os fins da atividade humana seriam definidos livremente.

  • Pg. 11

    Para Hayek, no possvel sustentar que apenas o fim maior, o objetivo mais

    importante seria predefinido pelo plano. A eficincia do planejamento ser to

    mais completa quanto maior for a possibilidade de previso posta disposio

    do planejador. Da que, uma vez definido o objetivo maior a ser perseguido,

    todos os objetivos secundrios devem passar a hierarquizar-se entre si, de

    uma nica maneira, vlida para todos. Na verdade, o controle por meio do

    plano supe um cdigo moral completo, aceito pela sociedade. Nesse sentido,

    o planejamento centralizado supe um Estado "moral", que persegue

    determinadas formas de vida consideradas "boas" e reprime ou desvaloriza

    aquelas outras consideradas "indesejveis". Um Estado moral que tenderia

    sempre, por conseguinte, ao fundamentalismo. Um estado liberal, por sua vez,

    seria neutro em relao s diferentes formas de vida presentes na sociedade,

    seria no moral, mas "laico".

    Num contexto de sociedades complexas, a possibilidade de se obter, pela

    persuaso, consenso sobre um cdigo moral completo, qualquer que seja ele,

    nula. O plano exige, portanto, um grau de consenso maior do que o existente

    e do que seria possvel nas sociedades contemporneas. O dficit necessrio

    de consenso deve, portanto, sempre ser suprido por algum grau, maior ou

    menor, de coero.

    Isso pode ocorrer de diversas formas. A coero pode ser aberta, como nos

    regimes autoritrios, ou velada, como acontece em muitas democracias. Nesse

    ltimo caso, uma das maneiras mais frequentes de implementar alguma

    estrutura de objetivos hierarquizados consiste em retir-la da apreciao do

    parlamento. Conjuntos de decises relevantes so delegadas pelos

    parlamentares regulamentao posterior. Deixam, assim, o mbito da poltica

    e passam ao da simples "tcnica".

  • Pg. 12

    Para o autor, esse processo, que ocorre todos os dias em vrios pases,

    perfeitamente lgico. A forma de governo adequada a uma sociedade que

    adota coletivamente alguns objetivos como mais importantes no passa pela

    representao dos cidados, mas por equipes de peritos, encarregadas da

    produo dos meios mais eficientes, subordinadas a um lder, guardio dos

    objetivos ltimos da coletividade. Mesmo quando o autoritarismo no aberto,

    uma situao como essa representa um passo no caminho da servido.

    importante lembrar que, para Hayek, uma situao de fim da democracia ou

    de risco alto de sua perda, no exige o controle estatal da totalidade da

    economia. Altos percentuais de controle pblico so suficientes para pr em

    risco a democracia. Numa situao como a que vivia a Alemanha em 1928, na

    qual o Estado controlava diretamente 53% da vida econmica, as decises

    privadas nos 47% restantes dependiam sempre de alguma deciso no mbito

    do monoplio pblico. O caminho estava aberto para o sacrifcio completo da

    democracia, que veio a ocorrer somente em 1933, com a ascenso dos

    nazistas.

  • Pg. 13

    6. Segundo argumento contrrio ao coletivismo: o fim do Estado de

    direito

    No entanto, o controle da economia por meio de planos centralizados no seria

    incompatvel apenas com a democracia, mas com o prprio Estado de direito.

    Em outras palavras, Hayek afirma que a adoo de toda inclinao socialista

    no apenas leva o Estado a tomar decises fora das instncias democrticas,

    mas o leva, tambm, a uma tendncia a violentar os limites da lei.

    Num regime que respeita a concorrncia, o Estado limitado. As leis tm como

    caracterstica principal seu aspecto formal. Em outras palavras, definem formas

    e procedimentos necessrios consecuo de uma ao.

    No momento em que o Estado ultrapassa esse limite e pretende definir

    objetivos a serem alcanados e as aes necessrias para tanto, adquire, na

    legislao, mais importncia seu aspecto material. A pretenso de incidir sobre

    casos particulares, de previso impossvel em seus pormenores, deixa

    necessariamente margem para decises arbitrrias por parte do Poder Pblico.

    Maior margem de arbtrio do Estado equivale a imprevisibilidade maior de suas

    aes e, consequentemente, menor liberdade para o cidado. Conforme o

    exemplo extremado do autor, no Estado limitado as leis so comparveis a um

    cdigo de trnsito: dizem como o cidado deve se locomover; no Estado

    intervencionista, as leis dizem aonde o cidado deve ir.

  • Segundo o autor, portanto, a interveno do Estado na economia, em busca de

    objetivos previamente fixados, gera perdas perigosas, em termos de

    democracia e de legalidade.

    Pg. 14

    7. Argumento a favor da concorrncia: a justia

    A favor da concorrncia, Hayek levanta, em primeiro lugar, o argumento da

    justia. O processo seria justo por ser impessoal e automtico. Nenhum dos

    agentes envolvidos dispe da possibilidade de conferir um vis de maneira a

    prever o resultado final de uma operao, ou seja, concretamente, quem ser

    beneficiado e quem ser prejudicado. O resultado depende da quantidade de

    recursos com que conta cada um dos envolvidos, do seu desempenho e de

    uma dose varivel de sorte. A concorrncia, portanto, fundamentalmente no

    discriminatria.

    certo que no h igualdade de oportunidades. A propriedade privada

    requisito do processo e sua distribuio desigual. No entanto, a escassez

    relativa de oportunidades compensada, segundo o autor, pelo maior grau de

    liberdade que beneficia a todos, ricos e pobres. Da que o pobre ingls seja,

  • para ele, mais livre que um empresrio de pequeno porte ou o executivo de

    uma grande empresa em um pas como a Alemanha nazista.

    O direito de herana, responsvel por desigualdades de recursos que no

    dependem do mrito individual, no indispensvel ao bom funcionamento do

    sistema. O direito propriedade privada, contudo, seu fundamento. Na sua

    ausncia, as decises sobre rendimentos individuais diferenciados poderiam

    caber apenas ao Estado, o que bastaria para nos mergulhar no mundo da

    servido.

    Mesmo no caso de concorrncia fraca ou inexistente, como a que se verifica

    numa economia dominada por monoplios, a propriedade privada seria

    prefervel, do ponto de vista da liberdade, ao monoplio pblico, na viso do

    autor. Num mundo dominado por um nmero pequeno de corporaes, a

    margem de autonomia dos indivduos, embora pequena, ainda maior que

    numa situao de controle absoluto da vida econmica em seu todo por um s

    agente: o Estado. Um sistema em que os ricos so poderosos prefervel a

    outro, em que s os poderosos so ricos.

    O centro do argumento est na impessoalidade da concorrncia. Ao contrrio

    do Estado, o mercado, quando opera em condies livres, no pode ser

    apropriado por indivduos e posto ao servio de seus interesses. A liberdade

    dos atores e a justia do resultado est no carter indeterminado do processo.

  • Pg. 15

    8. Os argumentos da segurana

    No que respeita questo da segurana individual, liberais e coletivistas

    afirmam a superioridade de suas propostas. Evidentemente, este debate funda-

    se, na maior parte das vezes, em concepes distintas do que seja a

    segurana do indivduo.

    Para Hayek, o coletivismo promete a segurana do indivduo contra as

    vicissitudes do mercado. A garantia da manuteno de seu emprego, em

    qualquer circunstncia, e, mais ainda, a da manuteno de sua renda, de seu

    salrio, mesmo que as condies que tornavam seu trabalho mais valorizado

    tenham desaparecido.

    Ambas as garantias, quando implementadas, geralmente por fora das

    corporaes sindicais, redundam, para os liberais, em prejuzo dos

    consumidores e dos trabalhadores menos protegidos: os desempregados e

    aqueles integrantes de categorias no organizadas.

    As tentativas de manter artificialmente empregos tornados obsoletos pelo

    progresso tecnolgico privam a sociedade dos benefcios econmicos desse

    progresso. Bens e servios que poderiam ser ofertados a custo menor, passam

    a onerar desnecessariamente o consumidor. O efeito acumulado de decises

  • dessa ordem traduz-se em perda de competitividade e de crescimento

    econmico, em perda de novos empregos, portanto. Do outro lado da balana,

    os ganhos da deciso concentram-se na categoria beneficiada pela deciso de

    preserv-la.

    Da mesma forma, mudanas que reduzam o custo do trabalho de alguns

    setores no devem ser reprimidas. Se o salrio puder refletir, nesses casos,

    exatamente o que a sociedade est disposta a pagar por ele, esses

    trabalhadores passaro a ganhar menos, mas outros podero conseguir, por

    sua vez, emprego ou salrios melhores.

    Pg. 16

    O problema punha-se com toda atualidade poca do livro de Hayek, em

    razo dos empregos criados pela economia de guerra que iriam desaparecer

    ou pagar salrios menores depois da paz. Alguns socialistas propunham a

    continuidade da economia de guerra mesmo em tempo de paz. O autor

    defendia, coerentemente, o exerccio exclusivo da concorrncia para a

    definio dos novos patamares de salrios.

    Os defensores do liberalismo, por sua vez, apresentavam um conceito mais

    restrito de segurana. O Estado liberal no ofereceria proteo contra o

    mercado, mas poderia garantir toda forma de segurana compatvel com o

    sistema de seguros; a segurana previdenciria, custeada pelos beneficirios;

    a assistncia social em casos de calamidade pblica; e alguma forma de

  • auxlio para sobrevivncia, no caso de desemprego. Nenhuma dessas medidas

    fere, segundo o autor, os princpios do liberalismo. A questo a ser discutida,

    na sua opinio, se esses cidados, enquanto durasse a situao de

    dependncia para com o Estado, poderiam dispor de seus direitos polticos. Em

    outras palavras, o problema, clssico para os liberais, est em saber se a

    pessoa que no prov a prpria subsistncia pode emitir um voto autnomo ou

    no.

    Depois de negar a necessidade histrica do socialismo, de negar sua validade

    em nome da racionalidade, da democracia, da legalidade e da justia, Hayek

    ataca o conceito de segurana individual compatvel com o socialismo e o

    contrape ao entendimento liberal de segurana.

  • Pg. 17

    9. Os argumentos morais

    preciso esclarecer, de incio, o que se entende, neste curso, por argumentos

    morais, uma vez que o autor estudado no utiliza essa expresso em sua obra.

    Inclumos neste tpico os argumentos que dizem respeito ao tipo de cidado e

    de sociedade que uma economia regida pelo planejamento centralizado

    produz. Todos eles esto fundados em premissas valorativas a respeito do que

    constitui, para o autor, o ideal de cidado e de sociedade.

    Em primeiro lugar, temos o tipo de cidado que cada sistema produz, em sua

    aplicao continuada. Uma sociedade liberal, em que o Estado cria as

    condies para o exerccio da livre iniciativa do cidado, preza um tipo

    especfico de virtudes: a autonomia, a responsabilidade e a tolerncia. O

    reconhecimento social devido ao cidado que exerce sua autonomia, toma

    decises, assume os nus e benefcios delas decorrentes.

    Uma sociedade regida por uma ideologia coletivista, por sua vez, preza outro

    tipo de qualidades: o altrusmo, o desprendimento individual, especialmente se

    em benefcio do coletivo; a obedincia; o respeito hierarquia; a segurana. O

    prottipo do indivduo digno de respeito o burocrata, o servidor pblico que

    tem seus honorrios assegurados para sempre, cujo cdigo de valores exige a

    obedincia cega e impessoal norma.

  • Esse tipo de valores adequado a algumas instituies, cuja prpria finalidade

    incompatvel com o regime da concorrncia, como as burocracias civil e

    militar. No entanto, diz Hayek, o ponto liberal consiste justamente em resistir

    organizao da sociedade como um todo em moldes militares ou burocrticos.

    O segundo argumento diz respeito ao tipo de militante que os partidos de

    iderio coletivista recrutam. Convencidos da superioridade dos fins por que se

    batem, esses partidos se organizam maneira militar. Buscam criar fileiras de

    partidrios numerosas, homogneas e disciplinadas. Seu apelo maior junto

    aos menos instrudos, para quem a homogeneidade de idias mais palatvel;

    aos mais dceis e simplrios, que aceitam com mais facilidade a disciplina

    rgida; aos mais particularistas, que respondem aos apelos de mobilizao

    contra os pretensos inimigos da causa; e aos mais intolerantes.

    Pg. 18

    O tipo humano que faz carreira partidria nessas organizaes o pior que se

    pode encontrar na sociedade, na opinio do autor. Alm disso, a prpria lgica

    do cdigo moral completo e absoluto deixa pouco espao para consideraes

    sobre regras de comportamento situadas acima dos fins perseguidos. A

    tendncia , enfim, a de todo e qualquer meio ser julgado vlido, se eficaz em

    termos dos fins procurados. A liderana desses partidos seria selecionada

    entre aqueles que melhor percebessem e aplicassem essa mxima.

  • Finalmente, uma sociedade em que a planificao econmica haja substitudo

    por completo a iniciativa individual, com todas as consequncias polticas

    desse fato, assistiria ao fim da verdade. Para o autor, a verdade, na cincia

    como na poltica, resulta do contraditrio, da oposio de argumentos entre

    dois atores, entre ego (eu) e alter (outro). Uma sociedade sujeita a uma nica

    escala de valores, indiscutvel, uma sociedade onde s h ego e no existe

    alter. Sem possibilidade de dilogo, de crtica, a verdade passa a ser uma

    questo de propaganda. estatizao da produo segue-se a estatizao da

    conscincia.

    Pg. 19

    Nesta unidade, examinamos o diagnstico que o autor apresenta da

    conjuntura poltica em que a obra apareceu; as definies que oferece de

    socialismo e liberalismo; as refutaes que apresenta aos argumentos mais

    importantes em defesa do socialismo, a saber, a sua inevitabilidade e

    racionalidade superior; e, finalmente, os argumentos que levanta contra o

    socialismo e a favor do liberalismo, relativos democracia, legalidade,

    justia, segurana e moralidade.

    Parabns! Voc concluiu a segunda unidade. Vamos prosseguir?

  • Mdulo II - Para uma teoria da democracia

    Vimos, na ltima unidade, uma srie de argumentos levantados, de um ponto

    de vista liberal, a favor da liberdade econmica, da livre iniciativa individual

    nesse campo. No entanto, a discusso da democracia poltica, sua

    possibilidade e formas de realizao, ocupa um espao igualmente importante

    no iderio liberal. Acompanharemos o debate a respeito dessa questo a partir

    de um trabalho do cientista poltico norte-americano Robert Dahl , publicado em

    1956: "Um Prefcio Teoria Democrtica".

    Constaro desta unidade, sobre democracia:

    modelo madisoniano;

    modelo polirquico;

    modelo populista.

    O autor parte da constatao da precariedade das teorias sobre a democracia

    em discusso at aquele momento, seja do ponto de vista de sua capacidade

    descritiva, seja do ponto de vista de sua capacidade normativa. Em outras

    palavras, as teorias disponveis no conseguiam descrever de forma adequada

    as democracias realmente existentes, nem apontar caminhos para outras

    formas de democracia entendidas como superiores.

  • Na tentativa de sanar essas deficincias, o autor agrupa esse conjunto de

    teorias sobre a democracia em dois grandes modelos gerais, de influncia mais

    profunda, terica e prtica: a democracia madisoniana e a democracia

    populista. Procede, em seguida, a sua anlise e, a partir das lacunas e

    inconsistncias neles localizadas, constri um modelo alternativo de

    democracia, que denomina poliarquia.

    Pg. 2

    1. A Democracia Madisoniana

    O modelo tem esse nome em homenagem a um de seus primeiros e mais

    lcidos proponentes, James Madison, membro da Conveno que redigiu a

    Constituio norte-americana. Na verdade, as premissas aceitas por esse

    modelo permearam todos os trabalhos daqueles constituintes e presidiram,

    portanto, a arquitetura da Constituio dos Estados Unidos da Amrica. Mais

    ainda, ganharam de tal maneira o senso comum do cidado que essa

    concepo especfica de democracia equivale, para os norte-americanos de

    hoje, democracia em geral.

    A idia fundamental a necessidade de conciliar dois princpios aparentemente

    contraditrios: o poder de deciso da maioria e o poder das minorias de vetar

    algumas decises dessa maioria, quando consideradas injustas ou tirnicas.

    Essa vertente tenta abrigar simultaneamente as regras da igualdade poltica e

    da limitao do poder. apresentada por Dahl na forma de uma sequncia de

    seis hipteses, sequncia que iremos seguir.

  • Pg. 3

    Hiptese 1

    Na ausncia de controles externos, quaisquer indivduos ou grupos de

    indivduos tentaro tiranizar os demais.

    Controle externo significa basicamente recompensa ou punio aplicada por

    outra pessoa. Tirania, por sua vez, entendida como grave privao de um

    direito natural. Pe-se, evidentemente, a questo: que um direito natural?

    Trata-se de um conjunto de direitos inviolveis por qualquer parte da

    sociedade, mas como defini-los? Por outro lado, quo grave deve ser a

    privao para resultar em tirania? Aparentemente, um critrio possvel deve

    ser o da presena ou ausncia de consentimento dos atores envolvidos. De

    toda maneira, dessas lacunas fundamentais derivam inconsistncias lgicas

    que o autor explorar posteriormente e considerar na elaborao de seu

    modelo alternativo.

    Hiptese 2

    A acumulao dos trs poderes (Legislativo, Executivo e Judicirio) nas

    mesmas mos equivale ausncia de controle externo. Da que, numa

    situao como essa, podem ocorrer as Hipteses 3 ou 4.

    Hiptese 3

    A maioria tiranizar a minoria.

    Hiptese 4

    A minoria tiranizar a maioria.

  • Como comprovar esse conjunto de hipteses? A de nmero 1 uma

    proposio emprica e os proponentes do modelo levantavam a seu favor

    exemplos histricos, da antiguidade clssica, ou axiomas psicolgicos

    derivados de Hobbes; os homens sempre so guiados por seus desejos e na

    busca de sua satisfao s se detm diante de obstculos externos.

    Pg. 4

    Cabe assinalar tambm que o grande perigo contra o qual se volta o modelo

    a hiptese 3 (a maioria tiranizar a minoria), uma vez que a simples aplicao

    do princpio republicano, a tomada de decises por maioria de votos, torna

    difcil a manuteno de uma tirania de um grupo minoritrio. H que se criar,

    ento, mecanismos de preveno da tirania da maioria, ou seja, de

    salvaguarda dos direitos da minoria.

    Na sequncia da argumentao, o modelo fornece uma definio de repblica

    como o sistema no qual o poder deriva do povo e administrado por

    mandatrios eleitos pelo povo, por um perodo determinado. A repblica tida

    como condio necessria, porm no suficiente, de uma situao de ausncia

    de tirania. Alternativas como a monarquia constitucional so, portanto,

    excludas a priori por essa vertente.

    Se os direitos naturais devem ser respeitados, se a ausncia de tirania o

    estado desejvel, se a repblica condio necessria mas no suficiente, o

  • problema a ser enfrentado o da criao de uma repblica no tirnica. Quais

    as condies para a existncia de uma repblica desse tipo?

    Pg. 5

    Hiptese 5

    So condies para uma repblica no tirnica:

    a separao de poderes; e

    o controle das faces.

    No entanto, h uma hiptese implcita no enunciado anterior que deve ser

    explicitada. Uma repblica implica controle do povo sobre o governo e a eleio

    peridica dos mandatrios. Dizer que condies adicionais so necessrias

    para no haver tirania implica dizer que as condies presentes na definio

    so insuficientes para prevenir a tirania. Segue-se, portanto, que:

    Hiptese 6

    Eleies frequentes no criam controles externos suficientes para evitar a

    tirania.

  • Se a simples prtica do voto no basta, mecanismos constitucionais que criem

    controles externos sobre os centros de poder devem ser criados. A

    Constituio americana se fundamenta em toda uma rede de pesos e

    contrapesos, que dividem o exerccio do poder e impem controles mtuos

    entre as partes. Entre outros mecanismos, podem ser lembrados a separao

    de poderes, o federalismo, o bicameralismo, o veto presidencial o controle

    judicial da legislao, a nomeao de alguns funcionrios por um poder e sua

    confirmao por outro, a existncia de eleitorados separados.

    Pg. 6

    Como atender, no entanto, ao segundo requisito, o controle das faces?

    Faco, no enfoque madisoniano (James Madisom), todo grupo de cidados

    que se rene com objetivos que impliquem a violao dos direitos de outros

    cidados ou o prejuzo dos interesses da coletividade. Num regime

    democrtico, a diferenciao das opinies natural e no pode ser evitada. A

    faco no deve ser controlada em sua formao, o que chegaria perto da

    tirania, mas nos seus efeitos indesejveis e prejudiciais.

    Na lgica do modelo, como vimos, as faces minoritrias so controladas pelo

    princpio republicano. As faces majoritrias, por sua vez, veriam a sua ao

    dificultada ou mesmo impossibilitada numa das seguintes situaes previstas

    pelo modelo: quando o eleitorado numeroso, quando variado em

  • composio e quando diversificado em interesses. Ou seja, o nmero e a

    diversidade dos cidados tornam difcil a formao de maiorias organizadas em

    torno de objetivos tirnicos sobre a parte minoritria do eleitorado

    Pesam, no entender de Dahl contra essa teoria, diversas objees, de carter

    lgico e emprico, de difcil refutao. Em primeiro lugar, a nfase nos freios

    constitucionais obscurece a importncia dos chamados controles internos.

    Trata-se aqui do que consideramos hoje as bases da cultura democrtica de

    uma sociedade. Sabemos que, quando a democracia est ausente dos hbitos

    e da cultura de um povo, de nada valem os dispositivos constitucionais e

    legais. Diversos pases do mundo adotaram estruturas legais inspiradas no

    modelo norte-americano e nem por isso garantiram uma histria de

    desenvolvimento democrtico.

    Pg. 7

    Os madisonianos podem argumentar que os controles internos so importantes

    mas no infalveis e os mecanismos constitucionais de pesos e contrapesos

    estariam presentes para resolver os casos que escapam aos controles

    internos. Mas, nesse caso, os controles externos de cunho social antes que

    constitucional, dos quais o mais importante o voto, no so mais eficientes?

    No plano emprico, est claro que existem diversas democracias, todas as que

    adotam o sistema parlamentarista, a comear pela Gr- Bretanha, nas quais a

    separao de poderes no vige. Pelo contrrio, a regra a subordinao

    integral do Executivo ao Legislativo.

  • Do ponto de vista lgico, a teoria falha ainda em oferecer uma definio

    plausvel do que sejam os direitos naturais. Excludo o apelo a uma

    determinao de ordem transcendente, como a divindade, por exemplo, quem

    define quais so esses direitos? Se cabe maioria faz-lo, a prpria idia de

    uma tirania da maioria perde sentido e, com ela, a razo de toda a arquitetura

    constitucional que caracteriza o modelo.

    Analogamente, como distinguir uma faco de um agrupamento legtimo de

    cidados? Nenhum grupo declara ser seu propsito violentar os direitos de

    outros cidados ou os interesses da coletividade. A impossibilidade de definir o

    que seja faco leva a que os mecanismos de limitao disposio das

    minorias sirvam para impedir qualquer deciso da maioria, justa ou injusta. A

    aplicao consequente do sistema de pesos e contrapesos leva simplesmente,

    portanto, limitao do poder da maioria, em qualquer caso, por algum tipo de

    minoria. um sistema em que as decises no dependem apenas da vontade

    da maioria, mas da inexistncia de vetos por parte daquelas minorias em

    condies de imp-los.

  • Pg. 8

    2. A Democracia Populista

    Vimos que a teoria madisoniana consiste num esforo para conciliar dois

    princpios contraditrios: poder da maioria e poderes limitadores das minorias.

    Se o princpio do poder das minorias tornado absoluto, samos do campo da

    democracia e ingressamos no terreno dos diversos regimes oligrquicos. A

    segunda alternativa, a maximizao da regra da maioria, ou seja, postular que

    a regra da maioria aplicada em todos os casos e sempre tem a ltima

    palavra, nos leva ao segundo modelo analisado: a democracia populista.

    Importa lembrar que o modelo no defende o poder absoluto e imediato da

    maioria. evidente que sobre esse poder pesam controles internos, presentes

    na cultura poltica do cidado, controles sociais recprocos e, tambm aqui,

    controles de carter constitucional. O modelo no nega a existncia desses

    controles, simplesmente reconhece seu fundamento, imediato ou no, na

    vontade da maioria.

    Pg. 9

    Tal como no caso anterior, o autor apresenta a teoria a partir de uma

    sequncia de definies.

  • Definio 1

    Duas so as condies da democracia:

    Primeira: a soberania popular; e

    Segunda: a igualdade poltica.

    Definio 2

    H soberania popular quando a alternativa escolhida a preferida da maioria.

    Definio 3

    H igualdade poltica quando o voto de cada pessoa tem o mesmo valor.

    Da aplicao conjunta das trs definies precedentes, chega-se regra

    democrtica, que chamaremos doravante simplesmente regra:

    Definio 4

    A regra democrtica aplicada quando, entre duas alternativas, a escolhida

    a preferida pelo maior nmero.

    Finalmente, uma proposio importante, como veremos, diz que a regra deve

    ser aplicada como ltimo recurso, esgotadas as possibilidades de obteno de

    um consenso pela via argumentativa.

  • Pg. 10

    Em primeiro lugar, no que se refere ao aspecto tcnico, h a considerar a

    questo dos eleitores indiferentes. Como computar o posicionamento

    indiferente para alcanar uma deciso majoritria? Normalmente esses votos

    so desconsiderados, como abstenes, e a maioria procurada entre os

    votos definidos, a favor ou contra. Essa soluo permite, contudo, a definio

    de decises que no contam com a preferncia da maioria dos cidados, mas

    apenas da maioria dos cidados definidos.

    Em segundo lugar, h o problema do empate. A regra no nos oferece uma

    soluo para o caso de o nmero de votos favorveis e contrrios a uma

    alternativa determinada ser igual. O voto de Minerva violenta a regra de forma

    clara. Sem soluo, esses casos conduzem ao impasse e, no limite,

    secesso do corpo poltico e guerra civil. O exemplo histrico mais evidente

    no caso norte-americano foi a deciso de no permitir a escravido nos novos

    territrios do oeste, que levou o pas guerra civil.

    O autor lembra que, quanto mais uma deciso aproxima-se de uma diviso de

    opinies em 50%, mais perde a regra legitimidade. Se as posies, alm de

    opostas, so defendidas com intensidade, so percebidas como relevantes

    pelos atores, a separao do corpo poltico parece ser a nica sada.

    A simples inao no resolve situaes como essa, dado que, normalmente,

    uma das opes em jogo. A polarizao d-se entre propostas de mudana do

    status quo e outras, que buscam sua conservao. No fazer algo representa

    normalmente tomar partido por um dos lados da disputa.

  • Pg. 11

    A maioria das pessoas no quer realmente a liberdade, pois liberdade envolve

    responsabilidade, e a maioria das pessoas tem medo de responsabilidade.

    (Sigmund Freud)

    Em terceiro lugar, h objeo no que diz respeito existncia de mais de duas

    alternativas em jogo. Nesse caso, a apurao da maioria depender sempre de

    uma regra que confira peso s segundas opes de cada eleitor, com alguma

    forma de segundo turno, ou recuse esse peso, possibilitando a formao de

    maiorias inferiores metade do eleitorado. Segue-se que a regra funciona bem

    em situaes relativamente simples, em que as alternativas so apresentadas

    aos pares aos votantes.

    Um segundo grupo de objees discute as limitaes do contedo da regra.

    A primeira diz que a regra incapaz de resolver a questo da intensidade das

    preferncias dos eleitores. A situao relevante aqui a de uma maioria

    pequena e aptica quanto a uma posio qualquer prevalecer, conforme a

    regra, sobre uma minoria significativa que opta, intensamente, pela alternativa

    oposta. Exemplificando: 51% dos membros de um determinado colgio opta

    pela alternativa A num problema que no to significativo para eles, mas vital

    para os 49% que preferem a alternativa perdedora. Trata-se de uma nova

    verso do problema da tirania da maioria, discutido a seguir com mais

    pormenores pelo autor. Em todo caso, importante assinalar que esse tipo de

    problema ganha hoje um significado que no apresentava na poca da

    publicao do livro. Nesse mais de meio sculo as sociedades ganharam em

    diversidade cultural, de maneira que a heterogeneidade de valores tende a

    tornar prtica e frequente essa questo outrora rara ou terica.

  • Pg. 12

    Conforme uma segunda crtica, a democracia populista maximiza apenas dois

    valores: a igualdade poltica e a soberania popular. A pergunta : est o

    cidado sempre disposto a optar por esses dois valores, sacrificando

    sistematicamente todos os demais quando se apresentem como contraditrios

    queles? At que ponto estamos dispostos a sacrificar, por exemplo,

    prosperidade material e segurana democracia? H um ponto em que

    possvel optar por restringir a democracia em nome de algum outro objetivo?

    Se esse ponto existe, a teoria no nos diz nada sobre ele.

    Um terceiro grupo de crticos alega que o governo da maioria impossvel.

    Sempre as elites governam de fato, mesmo quando, de direito, o poder

    pertence ao povo. Embora a tirania da maioria seja impossvel, nessa

    perspectiva, o modelo madisoniano seria mais interessante, por prever alguma

    forma de diviso do poder entre parcelas dessa elite e seu controle mtuo.

    Finalmente, os partidrios da democracia populista no informam o que fazer

    quando a vontade da maioria se inclina para a supresso do prprio sistema

    democrtico. Quando a democracia populista tenta cometer suicdio elegendo

    candidatos e partidos declaradamente autoritrios, que fundamentam sua

    campanha na supresso das eleies, por exemplo, qual o mecanismo de

    preservao proposto? Cabem, nesse caso, mecanismos de veto de minorias,

    como no modelo anterior, na forma de clusulas ptreas na Constituio ou de

    controle judicial das decises legislativas por uma corte especfica?

  • Pg. 13

    O autor faz questo de lembrar que a experincia norte-americana indica,

    contudo, que a ao da Suprema Corte, nos casos de declarao de

    inconstitucionalidade de leis sempre (at 1956, pelo menos) dirigiu-se no

    sentido de restringir direitos do cidado, no no de ampli-los. As seis decises

    relativas a leis sobre os direitos civis dos negros contrariaram decises

    legislativas que ampliavam os direitos dessa parcela da populao. A principal

    crtica que o modelo merece, na viso do autor, contudo, seu carter

    abstratamente normativo. A teoria diz o que deve ser uma democracia, mas

    no nos oferece instrumentos para reconhecer quando e como uma

    determinada organizao social opera democraticamente.

    Veremos a seguir como o autor tenta superar as imperfeies dos dois

    modelos analisados com a elaborao de uma terceira alternativa: a poliarquia.

    Pg. 14

    3. A democracia polirquica

    A maior preocupao do modelo elaborado pelo autor encontra-se justamente

    na dimenso emprica. Quais as condies necessrias e suficientes para

    maximizar a democracia no mundo real? Ou seja, que conselho daramos a

    uma coletividade que pretendesse operar democraticamente? Quais os

    eventos que temos que observar para concluir pela existncia de um regime

    democrtico? Trata-se, enfim, da busca de marcadores adequados, uma vez

    que a simples realizao de eleies peridicas no suficiente para nos dizer

    algo a esse respeito.

  • Para responder a essas perguntas o autor elabora uma relao de oito

    condies necessrias existncia de democracia no mundo real. Trata-se de

    um tipo ideal, ou seja, de uma situao de democracia tima que no se

    encontra, em sua forma pura, em nenhuma organizao existente. Como ideal,

    serve tambm para medir o grau de aproximao ou distanciamento das

    democracias existentes e, consequentemente, para compar-las entre si.

    As oito condies so:

    Primeira: todos votam;

    Segunda: todos os votos tm o mesmo valor;

    Terceira: a alternativa majoritria declarada vencedora.

    Pg. 15

    At o momento no superamos ainda a regra que define as democracias

    populistas. No entanto, sabemos todos, as eleies realizadas em regimes

    totalitrios cumprem igualmente essas regras, sem conformarem democracias

    de fato. Algo mais necessrio, portanto:

  • Quarta: todos os participantes podem inserir alternativas na eleio; e

    Quinta: todos os participantes tm acesso s mesmas informaes sobre as

    alternativas.

    Alm disso, a democracia exige alguns procedimentos no perodo

    imediatamente posterior s eleies:

    Sexta: as alternativas mais votadas substituem as menos votadas;

    Stima: as ordens dos servidores eleitos so obedecidas;

    Oitava: as decises nos intervalos eleitorais so subordinadas s decises

    tomadas na eleio ou seguem as mesmas regras da eleio.

    Fcil verificar que o conjunto das regras no vale em sua integridade em

    nenhuma democracia conhecida no mundo. Nos Estados Unidos da Amrica, a

    segunda, terceira e sexta regras funcionam bem. A primeira est ausente, pois

    a absteno atingia, na dcada de 1950, a 50% dos eleitores. A quarta no

    existe em sua plenitude em nenhuma organizao estatal, uma vez que a

    capacidade de incluir alternativas encontra-se desigualmente distribuda. A

    quinta tambm de difcil aplicao, dado que o acesso igual informao

    meta ainda no atingida, mesmo nos pases em que vigora uma relativa

    liberdade de imprensa.

  • Pg. 16

    Na verdade, as oito regras constituem os eixos de uma escala que permite

    comparar as democracias reais em termos de sua aproximao a um ideal

    democrtico normativo. Formam algo como uma rgua oitavada, em que cada

    face permite medir o grau de democracia em uma das dimenses. Atribuindo

    valores, em cada eixo, entre 0 e 1 e combinando as notas de alguma maneira,

    poderamos encontrar organizaes que o autor denomina hierarquias (com

    pontuao ente 0 e 0,25), oligarquias (entre 0,25 e 0,50), poliarquias (entre

    0,50 e 0,75) e poliarquias igualitrias (entre 0,75 e 1).

    Uma vez que tornou-se possvel a identificao das poliarquias, resta indagar

    das condies que permitem ou favorecem seu surgimento e estabilidade. A

    primeira e mais importante o grau de consenso existente entre os cidados a

    respeito da regra e da aplicao das oito condies assinaladas.

    Trata-se de um problema de cultura poltica de uma determinada populao.

    Quanto mais democrtica for essa cultura, maior a possibilidade de

    desenvolvimento contnuo de regimes democrticos.

    No entanto, a cultura no imutvel. Pesquisas clssicas apontavam uma

    cultura poltica autoritria entre os alemes na dcada de 1950, em contraste

    com os pendores democrticos que os britnicos apresentavam. Duas dcadas

    mais tarde a repetio da pesquisa indicava uma reduo acentuada das

    diferenas antes observadas entre os dois pases, com uma aceitao

    crescente da democracia entre os alemes.

  • Pg. 17

    Ocorre que esses vinte anos haviam sido de treinamento democrtico para os

    alemes, fortalecendo a aceitao das oito condies. O treinamento, portanto,

    relevante, e no apenas aquele que se observa na esfera poltica no sentido

    estrito. Tambm conta aquele ministrado nas instituies no estatais, como a

    famlia, o sindicato e todo tipo de associao.

    Alm do consenso procedimental, relativo s condies, um certo consenso em

    relao aos fins perseguidos necessrio. A heterogeneidade excessiva

    quanto a valores leva a situaes de divergncias intensas, prximas da

    diviso da coletividade em metades iguais. Nessas situaes, como vimos, a

    aplicao da regra torna-se problemtica.

    Finalmente, a poliarquia parece ser tambm funo da atividade poltica de

    seus membros. Quanto maior a atividade, a participao, maior o treinamento

    democrtico e maior o consenso quanto s condies da regra.

    O autor finaliza analisando o caso norte-americano, particularmente sua

    capacidade de lidar com as situaes de "tirania da maioria" em sua definio

    moderna: imposio da vontade de uma maioria indiferente sobre a de uma

    minoria ardorosa.

    O sistema de vetos de minorias que a Constituio norte-americana prescreve

    divide-se em trs grandes vertentes: a reviso judicial, o Senado e a rede de

    relaes que o eleitorado, o presidente e as duas casas legislativas

    estabelecem entre si. A anlise do autor detm-se nos dois primeiros casos.

  • Pg. 18

    Na reviso judicial, a declarao de inconstitucionalidade de uma lei pela

    Suprema Corte significa a recusa, a no validade, de uma deciso majoritria

    do Legislativo. Vamos supor que a maioria, presente no Legislativo, queira

    persistir na sua vontade, contra a posio da Suprema Corte. A nica

    possibilidade a mudana da Constituio. Ocorre que para a mudana da

    Constituio a maioria no suficiente, mas exigido um qurum qualificado.

    No caso dos EUA, dois teros das duas Casas, Cmara e Senado, e trs

    quartos dos Estados membros da Unio, cuja posio definida pelas

    Cmaras estaduais. Esse dispositivo habilita a minorias sucessivas de um tero

    mais um dos integrantes de cada Casa e de um quarto mais um dos Estados a

    vetarem, durante algum tempo, a vontade da maioria, expressa na Cmara, no

    Senado e na sano presidencial.

    O exemplo citado de retardo na implementao da vontade majoritria o da

    legislao nacional sobre o trabalho infantil. Entre a aprovao da primeira lei

    protegendo o trabalho infantil no Congresso e a declarao final de

    constitucionalidade por parte da Suprema Corte, transcorreram 25 anos.

    Durante um quarto de sculo a proteo ao trabalho inf