Doutrinas Políticas - Socialismo

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Parte do curso sobre política do Senado brasileiro.

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  • SOCIALISMO

    MDULO NICO - SOCIALISMO

    Estamos no incio de um curso sobre Doutrinas Polticas Contemporneas:

    Socialismo. Convm, assim, esclarecer alguns pontos sobre o significado do

    ttulo e a forma do curso.

    O que so doutrinas polticas contemporneas?

    Na perspectiva que aqui adotamos, so aquelas correntes de pensamento que

    inspiram e orientam os partidos polticos importantes em termos de influncia,

    voto e acesso ao poder no mundo de hoje. Dito de outra maneira, aquelas

    correntes que definem os objetivos de partidos atuais e, em alguns casos, os

    meios recomendados para alcanar esses objetivos.

    O critrio, portanto, prtico. No vamos discutir correntes de pensamento que

    alimentaram partidos fortes no passado, mas insignificantes no presente. No

    vamos discutir, por exemplo, uma corrente conservadora, uma vez que hoje

    nenhum partido de peso defende o retorno ordem econmica, social e poltica

    pr-moderna. Pela mesma razo, no discutiremos a corrente anarquista, uma

    vez que os partidos dessa tendncia perderam peso, nos pases onde ainda

    eram importantes, no perodo entre as duas guerras mundiais.

    Um esclarecimento final necessrio. Grandes correntes de pensamento

    poltico no so objetos que possam ser estudados a partir de uma definio

    clara, unvoca, aceita por todos. Adversrios e partidrios tm interpretaes

    diferentes de cada corrente, e mesmo no interior de cada uma delas

    encontramos divises importantes. A seleo de assuntos e autores feita no

  • curso , portanto, necessariamente parcial. Escolhemos obras de autores

    consagrados que tratam de temas que a maior parte dos novos esquerdistas

    considera fundamentais. No entanto, outros temas e autores, talvez to

    importantes quanto esses, ficaram de fora. Vamos discutir, para dizer de forma

    mais precisa, uma seleo de temas e autores importantes para esta corrente.

    Assim, para que o aluno possa melhor absorver o contedo desse curso e

    atender aos objetivos a que se prope, encontra-se disponibilizado em PDF o

    livro Partidos polticos brasileiros. Programas e diretrizes doutrinrias,

    organizado por Nerione Nunes Cardoso Jnior, editado pelas Edies

    Tcnicas do Senado Federal.

    Socialismo - Objetivos

    Ao trmino deste estudo, esperamos que voc possa relacionar:

    as condies histricas do socialismo;

    ideias centrais da doutrina, segundo Marx: materialismo, evoluo social e

    classes sociais

    utopia socialista e;

    ascenso, crise e queda do socialismo real.

  • Unidade 1 - Socialismo: conceitos

    Nesta unidade, vamos apresentar um breve histrico das ideias socialistas. Em

    seguida, examinaremos alguns conceitos fundamentais do sistema socialista

    de maior influncia histrica, aquele desenvolvido por Karl Marx: materialismo,

    evoluo e classes sociais. Finalmente, vamos expor e debater algumas

    reflexes do mesmo autor sobre a transio de uma sociedade capitalista para

    o socialismo.

    Veremos, portanto, nesta unidade:

    histrico das ideias socialistas;

    conceitos marxistas: materialismo, evoluo e classes sociais;

    reflexes de Marx sobre transio do capitalismo para o socialismo.

    Para os fins do nosso curso, socialismo entendido como o conjunto de

    doutrinas polticas que contestaram, em primeiro lugar, a ordem do capitalismo

    nascente.

    Criticaram essa ordem desde um duplo ponto de vista:

    no plano tico, como injusta e desigual;

    no plano dos resultados, como irracional, por dilapidar, periodicamente,

    recursos

    materiais e humanos.

    Da haverem proposto uma nova forma de organizar a sociedade, ao mesmo

    tempo mais justa e mais eficiente, mais equitativa e mais abundante. Da seu

    endereamento preferencial ao ator poltico excludo da ordem capitalista e, por

    esse mesmo motivo, interessado em super-la: a classe operria.

  • A social-democracia, que ser debatida em unidade prpria, constitui uma

    diferenciao desse padro clssico de socialismo, uma tentativa de dar

    resposta s mudanas por que o sistema capitalista havia passado at a virada

    do sculo XIX para o XX.

    Entre as diferentes correntes socialistas destaca-se, inegavelmente, por sua

    relevncia no plano terico e poltico, o marxismo. Por essa razo, os conceitos

    bsicos fundamentais doutrina sero analisados a partir do enfoque da obra

    de Marx.

    Pg. 2 - Histrico

    1. Histrico

    O socialismo surge como reao s consequncias indesejveis da Revoluo

    Industrial, iniciada na Inglaterra no comeo do sculo XVIII. Importa, assim,

    relacionar, ainda que de forma sumria, as principais dentre essas mudanas e

    seus efeitos mais evidentes na sociedade.

    A mudana mais visvel e imediata ocorreu no campo da tecnologia. O

    desenvolvimento de uma srie de mquinas e o uso da fora motriz do vapor

  • permitiram elevar a produtividade do trabalho a nveis nunca antes alcanados.

    Uma quantidade enorme, para os padres da poca, de mercadorias passou a

    ser produzida em tempo e custo unitrio menores, desencadeando um

    processo de intenso crescimento econmico, principalmente na Inglaterra,

    centro da revoluo. A disponibilidade de importantes jazidas de carvo e ferro

    produtos fundamentais nova forma de produzir assegurou a continuidade

    dessa posio de vanguarda do pas.

    A revoluo no se deteve no plano da tecnologia. Procedeu igualmente

    substituio das relaes estabelecidas tradicionalmente entre os homens no

    processo produtivo, por outras, mais adequadas s novas tcnicas. A relao

    mestre-aprendiz, centro da produo artesanal, cedeu espao livre

    contratao e dispensa de trabalhadores assalariados, ao sabor da

    convenincia daqueles que dispunham de recursos para a compra das

    mquinas. O treinamento demorado num ofcio tornou-se desnecessrio, face

    desqualificao do trabalho promovida pela mquina.

    Para saber mais sobre os avanos tecnolgicos, clique aqui.

  • Pg. 3 - Progresso e revoluo industrial

    A percepo do tempo, produzida pela sociedade, foi tambm profundamente

    alterada.

    A sociedade tradicional, centrada na produo agrcola, tendia a gerar uma

    idia cclica de tempo, uma espcie de repetio do ciclo produtivo que rege,

    da mesma maneira a cada ano, a produo agropecuria. A nova atividade

    econmica, decorrente da Revoluo Industrial, apresentava como

    caracterstica bsica a progressividade. Os atores econmicos e a sociedade

    como um todo passaram a encarar a progressividadecrescente do processo de

    acumulao como natural. As crises, antes espordicas e claramente derivadas

    de anomalias naturais, passaram a ser peridicas, ocasionadas pela

    descoordenao das aes dos diversos atores. Enfim, o tempo passou a ser

    linear e progressivo.

    H que assinalar tambm a intensidade do processo de urbanizao e suas

    consequncias. Antes da revoluo industrial, a grande maioria da populao

    residia no campo e as cidades eram centros principalmente comerciais e

    burocrticos. No decorrer da revoluo, a Inglaterra experimentou o afluxo

    continuado da populao aos centros urbanos que centralizavam a nova forma

    de produzir. Evidentemente, a infraestrutura urbana pr-existente no se

    encontrava preparada para acolher um crescimento populacional to rpido e

    intenso, e diversos problemas, inclusive no que diz respeito sade, afloraram.

    Leia os depoimentos e os registros da poca da Revoluo Industrial (clique

    sobre cada um dos itens abaixo para ler os textos):

    Processo de

    urbanizao

    Avanos na

    agricultura

    Trabalho

    infantil nas

    fbricas

    Defesa dos

    trabalhadores

  • Pg. 4 - Fases da revoluo industrial

    A quebra das redes familiares e tradicionais de sociabilidade, a aglomerao

    em cidades carentes de servios bsicos, a jornada de trabalho excessiva, a

    contratao massiva de mulheres e crianas, tudo isso trouxe o declnio dos

    valores tradicionais muito antes do surgimento de um novo sistema de valores

    adequado s novas circunstncias. Criou-se uma situao de vazio de normas,

    que a sociologia nascente chamou de anomia, caracterizada por, entre outros

    indicadores, maior incidncia de suicdio, alcoolismo, criminalidade e divrcio.

    Finalmente, o conflito torna-se frequente na nova ordem. Conflito a respeito da

    jornada e das condies de trabalho, da repartio do produto entre salrios e

    lucro, da preservao dos postos de trabalho face s ameaas decorrentes do

    avano tecnolgico. Conflito que se manifesta em greves e destruio de

    mquinas, mas que tende constantemente a repetir-se na arena poltica.

    No plano da macropoltica, todo esse movimento se fez acompanhar de uma

    tendncia substituio dos regimes absolutistas por outros monarquias ou

    repblicas constitucionais. No modelo liberal dessa poca, no entanto,

    prevalecia a restrio do voto aos detentores de propriedade, num primeiro

    momento, e de um mnimo de renda, depois. Assim, os operrios encontravam-

    se excludos dos direitos polticos e sua manifestao nesse campo sempre se

    dava de forma paralela aos canais admitidos de participao. A presena dos

    operrios na cena poltica, quando acontecia, tendia, portanto, a ocorrer sob a

    forma de rebelio.

    Vdeo: Revoluo Industrial

  • Pg. 5 - Nova ordem

    A nova ordem contrastava fortemente, portanto, com a sociedade tradicional.

    Os socialistas reconheciam os ganhos dela decorrentes, principalmente o

    aumento da capacidade produtiva do homem, que abria, pela primeira vez na

    histria, a possibilidade de eliminao da pobreza, da carncia material, para

    todos os cidados. Por outro lado, o prprio sistema tolhia a realizao das

    possibilidades que criara. Sua dinmica interna gerava desigualdade e,

    periodicamente, a crise, com falncias, desemprego e misria.

    A propriedade privada era percebida como a raiz tanto da injustia quanto da

    ineficincia. Como base da livre iniciativa, era condio tanto da distribuio

    desigual dos recursos sociais quanto da ausncia de coordenao dos atores

    econmicos, que levava, a cada dcada, a uma crise de superproduo.

    A tarefa, portanto, consistia na abolio da propriedade privada e na sua

    substituio por um sistema centralizado de planejamento da economia, de

    responsabilidade dos prprios produtores. A essa mudana fundamental

    seguir-se-ia de imediato, segundo a verso anarquista; aps um perodo de

    transio, segundo a comunista o fim do Estado e da poltica tal como a

    conhecemos. Instituies caractersticas de uma sociedade de classes

    entrariam em processo de obsolescncia, uma vez finda a diviso em classes.

  • Pg. 6 - Ordem socialista

    De maneira semelhante, a ordem socialista implicaria a liberao do indivduo

    dos laos que a famlia, a religio e a nao fazem pesar sobre ele. Os

    interesses dos trabalhadores sobrepem-se naturalmente aos particularismos

    nacionais: o socialismo , por definio, internacionalista. Famlia e religio

    pertencem tambm ordem condenada do presente. Mesmo sob o

    capitalismo, representariam valores negados, na prtica, aos operrios.

    importante ressaltar a radicalidade dos propsitos socialistas, at para

    confront-los com os objetivos, mais modestos, da social-democracia posterior.

    Importa tambm assinalar sua aceitao pelas diversas correntes do

    socialismo e sua continuidade no tempo.

    A utopia de uma nova sociedade, na qual mercado e Estado sejam dissolvidos,

    na qual a economia e a poltica sejam substitudas por uma ordem racional,

    fundada na interao consciente dos indivduos, encontra-se ao longo de toda

    a obra de Marx, da juventude maturidade. Mas encontra-se tambm, antes

    dele, nos socialistas chamados utpicos, e depois, nos anarquistas e nas

    correntes que reivindicam a herana bolchevique, de Lnin e Trotski.

    Marcos no desenvolvimento dessa tradio so os nomes de Babeuf, que

    ainda no sculo XVIII reivindicou a partio equitativa da terra e da propriedade

    e desenhou o modelo de tomada do poder por um grupo pequeno e organizado

    de militantes; os socialistas utpicos Saint-Simon, Owen e Fourier Marx,

    principal terico da vertente comunista; Proudhon e Bakunin, formuladores do

    anarquismo.

  • Pg. 7 - Materialismo

    2. Conceitos fundamentais

    O materialismo

    O princpio do materialismo, ou o teorema da superestrutura, como Habermas

    o denomina, encontra sua sntese na conhecida expresso de Marx: no a

    conscincia que determina o ser, mas o ser que determina a conscincia. O

    enunciado implica a distino de dois tipos de fatos e a relao de

    determinao entre eles.

    A distino entre ser e conscincia significa estabelecer uma hierarquia dentro

    do mbito do ser, ou seja, de tudo que existe. H fatos observveis que so

    anteriores, e que nos fornecem a chave de o que os indivduos so. Outros

    fatos, englobados genericamente sob o rtulo de conscincia, so posteriores,

    distorcidos em relao ao padro observvel, e nos do a chave de o que os

    indivduos pensam que so.

  • H, evidentemente, como qualquer comerciante que vende a crdito sabe, uma

    diferena significativa entre o que um indivduo e o que ele pensa que .

    Esse desacordo sempre resolvido em favor do "ser" do indivduo, da

    observao externa dos fatos fundamentais de sua existncia. No caso do

    comerciante, a credibilidade do cliente ser determinada pelo seu

    comportamento, observado a cada dia, no pelas promessas de pagamento.

    Pg. 8 - Fatos

    Esse exemplo ilustra a relao de determinao que tudo engloba: mesmo o

    desvio da conscincia em relao ao ser, suas omisses e falseamentos, as

    promessas desmentidas pela observao, so por ela explicados. Em outras

    palavras, Marx quer dizer que a dinmica essencial de cada sociedade no nos

    ensina apenas as leis de seu desenvolvimento, mas as razes de a sociedade

    perceber-se daquela maneira especfica.

    O critrio tomado para a hierarquizao dos diferentes fenmenos a vida.

    Para Marx, o fato histrico fundamental a presena e continuidade da vida

    humana. Da que os fatos fundamentais, por ordem de anterioridade e

    determinao, sejam aqueles necessrios produo e reproduo dessa

    vida. Numa ordem esquemtica, apresentada por Marx, a hierarquia dos fatos

    seria a seguinte:

    Primeiro: produo dos meios necessrios manuteno da vida: alimento,

    moradia, vesturio;

  • Segundo: produo dos meios empregados naquela produo, os

    instrumentos de trabalho;

    Terceiro: produo de outros homens, ou seja, a reproduo da espcie,

    basicamente a cargo da famlia, cuja variedade de formas historicamente

    observadas estaria determinada pelos dois momentos anteriores;

    Quarto: relaes de cooperao que os homens estabelecem entre si no

    processo de produo da vida; e, somente ento, aparece.

    Quinto: a "conscincia", na forma de linguagem, e a partir dela, o conjunto das

    superestruturas poltica, artstica, religiosa e outras.

    Pg. 9 - Consequncias

    A superestrutura como um todo no dotada, nessa perspectiva, de uma

    histria prpria; sua histria reflexa, compreensvel apenas a partir da

    considerao daqueles fatos tidos como fundamentais.

    As consequncias desse princpio em termos de prtica poltica so evidentes.

    A transformao social, a revoluo, tem um foco central e prioritrio de

    atuao: superar as contradies emergentes do mundo desses fatos bsicos.

    Simplificando, a tarefa do movimento dar soluo ao plano da produo

    material. Problemas postos utopia no que respeita a valores legitimidade de

    uma ordem poltica, de critrios de distribuio dos bens que iro vigorar

    numa futura sociedade socialista so desqualificados. De um lado, so

    encarados como projees de questes relevantes na sociedade presente, que

    perdero significado no futuro. De outro, os problemas importantes que

    restarem tero soluo automtica, uma vez mudada a base fundamental

    sobre a qual se sustentam.

  • Pg. 10 - Evoluo

    A evoluo

    O princpio da evoluo est intimamente vinculado ao do materialismo. Se a

    produo material o solo sobre o qual toda a histria transcorre, o processo

    que determina, em ltima instncia, as demais esferas da sociedade, fcil

    perceber que esse processo encontra-se sujeito a uma dinmica interna,

    progressiva: o desenvolvimento tecnolgico.

    Componente do que Marx chama desenvolvimento das foras produtivas, o

    desenvolvimento tecnolgico inegavelmente acumulativo. Rege-se pelo

    critrio objetivo da eficincia, no qual procedimentos de maior economia de

    meios substituem os anteriores. Sob esse ponto de vista, possvel comparar

    etapas diferentes da histria e concluir pela superioridade, entendida como

    maior eficincia, das etapas posteriores.

    Se a histria real da sociedade a situada, lgico que a histria reflexa a

    histria da poltica, da cultura, do direito, da religio se conforme ao mesmo

    padro evolutivo, de modo imediato ou relativo. Numa das imagens de Marx, se

    o moinho movido gua produz o feudalismo, o moinho a vapor gera o

    capitalismo.

    Da evoluo decorre igualmente a concepo geral da histria como sequncia

    de modos de produo. De uma situao inicial de grupos humanos no

    organizados em classes sociais e Estado, mas segundo sistemas de

    parentesco (as sociedades tribais), passa-se a sociedades organizadas em

  • classes, de vrios tipos. Marx menciona os modos de produo antigo, feudal e

    asitico. De diferentes formas, essa multiplicidade de modos de produo

    converge em direo ao capitalismo, assentado em bases tecnolgicas

    superiores. Da tambm a previso de uma inevitvel etapa posterior, de

    superao do capitalismo: o surgimento e hegemonia do socialismo.

    Pg. 11 - Classes sociais

    As classes sociais

    A diviso da sociedade em classes sociais o fato crucial para a compreenso

    de sua dinmica. As classes e seus conflitos expressam, no mundo da poltica,

    as contradies fundamentais da sociedade, que emergem do plano da

    infraestrutura. Por isso, a clebre passagem do Manifesto Comunista: "a

    histria de todas as sociedades que existiram at nossos dias tem sido a

    histria da luta de classes".

    Uma sntese da teoria marxista das classes sociais excede os limites deste

    trabalho. Indicaremos apenas alguns de seus aspectos mais importantes.

    Em primeiro lugar, embora numa leitura mais complexa seja possvel identificar

    as determinaes das classes sociais em todos os planos econmico, poltico

    e ideolgico parece claro que, para Marx, o fator determinante a relao

    com os meios de produo. As relaes particulares que estabelecem com

  • esses meios propriedade, posse, excluso determinam a existncia de

    pares de classes, cada qual caracterstica de um modo de produo

    determinado.

    Assim, a parelha escravo/senhor caracteriza o modo de produo antigo; o par

    servo/senhor, o modo de produo feudal; e o binmio operrio/capitalista, o

    modo de produo capitalista.

    Examinemos, a ttulo de exemplo, as relaes desse ltimo par de classes. A

    relao dos capitalistas com os meios de produo de propriedade e

    controle. Os operrios esto deles desvinculados e dispem apenas de sua

    fora de trabalho como fonte possvel de subsistncia. So, por conseguinte,

    obrigados a vend-la a um capitalista, em troca de um salrio. O excedente

    econmico produzido no processo ser disputado pelo capital e pelo trabalho e

    dividir-se-, em partes variveis, entre lucro e salrio.

    Observamos, nesse caso, algumas das caractersticas das classes. Existem

    aos pares, so antagnicas no sentido de que seus interesses no so

    conciliveis e, em cada par, sempre h uma classe dominante, aquela cuja

    relao com os meios de produo a deixa em condies de apropriar-se do

    produto excedente. classe dominada resta a subsistncia.

    Para saber mais sobre as classes sociais, clique aqui.

  • Pg. 12 - Classes

    A classe dominante tem interesse na conservao do estado de coisas, na

    preservao de sua posio privilegiada. A classe dominada tem interesse,

    pelo contrrio, na subverso desse estado de coisas em seu proveito. No caso

    do proletariado, como a estrutura de classes havia alcanado no capitalismo

    sua simplificao e polarizao maior, seria impossvel aos trabalhadores

    libertarem-se sem libertar toda a sociedade da prpria existncia das classes.

    Os trabalhadores seriam o agente histrico da passagem da pr-histria do

    homem para a sua verdadeira histria, nos marcos de uma sociedade sem

    classes.

    Como a fora motriz da histria o desenvolvimento das foras produtivas, nos

    momentos de ruptura revolucionria o nvel dessas foras existentes entra em

    conflito com as relaes de produo estabelecidas, e passam a existir as

    condies objetivas da mudana, encontrando-se as classes dominadas em

    condies de assumir seu papel transformador.

    No caso especfico do capitalismo, Marx observava no interior de sua dinmica

    as tendncias inexorveis a sua superao. Em primeiro lugar, o carter

    anrquico da produo levava a esse resultado. Aps um ciclo de expanso, a

    economia entrava, a cada dcada, em perodos de retrocesso, com a chegada

    de uma crise de superproduo.

    Na crise, observava-se um processo de destruio enorme de foras

    produtivas. Empresas menores e menos aparelhadas faliam; o desemprego e a

    misria de massas de trabalhadores se alastravam. Os empresrios maiores

    incorporavam as empresas falidas e, aps um perodo de purgao, tinha incio

    um novo perodo de crescimento.

  • Pg. 13 - Capitalismo

    O resultado acumulado de crises desse tipo era a simplificao constante da

    estrutura social. De um lado, um nmero cada vez menor de capitalistas mais

    ricos, contrapostos a parcelas cada vez maiores da populao, mais pobres.

    Um segundo processo, vinculado ao primeiro, refere-se ao incremento

    constante do nmero de operrios. O capitalismo no poderia crescer sem

    aumentar o nmero de proletrios. A idia comum era que os trabalhadores

    iriam constituir, em algum momento, a maioria ampla da populao e que as

    camadas intermedirias, como artesos e camponeses, iriam submergir na

    massa operria.

    No apenas a polarizao da sociedade tornaria o conflito de classes mais

    simples e visvel. Operava tambm uma tendncia no sentido de reduzir os

    rendimentos do trabalhador ao nvel da subsistncia. Entendida como absoluta,

    a hiptese do empobrecimento implica afirmar que os salrios reais manter-se-

    o constantes apesar do crescimento econmico. Na sua verso relativa, diz

    apenas que, mesmo que o salrio aumente, sua diferena em relao ao

    incremento do lucro tende a ser maior.

    A diferena crescente entre salrios e lucros constituiria mais um estimulante

    da conscincia poltica dos operrios e tornaria insustentvel a continuidade

    dessa situao.

    Analogamente, a concentrao progressiva da produo em poucas mos

    evidenciaria cada vez mais seu carter social e a contradio entre esse

  • carter e a apropriao privada do lucro. Nesse sentido, o surgimento das

    sociedades por aes, a separao entre a propriedade do capital e o controle

    administrativo do empreendimento, era lido por Marx como uma comprovao

    de sua hiptese sobre o carter suprfluo da classe capitalista.

    Finalmente, num plano mais geral, Marx postulava a existncia, no capitalismo,

    de uma tendncia constante queda da taxa de lucro. O lucro provinha do

    trabalho vivo, dos operrios em ao. medida que o progresso tecnolgico

    possibilitava a reduo do trabalho vivo e sua substituio pela maquinaria,

    pelo trabalho morto, a margem em que se move a taxa de lucro tenderia a se

    reduzir, o que leva a prever a manifestao de uma nova fonte de crises, de

    intensidade e frequncia superiores capacidade de resposta do sistema.

    Marx chegou a analisar o processo de transio na direo de uma nova

    sociedade, de carter socialista.

  • Pg. 14 - Comuna de Paris

    3. A Comuna de Paris: um caso de transio

    Finalmente, vale lembrar que Marx chegou a testemunhar uma insurreio

    operria vitoriosa, ainda que por pouco tempo. O experimento da Comuna de

    Paris, em 1870/71, foi lido por ele como a comprovao emprica de sua teoria,

    o primeiro ensaio de uma futura revoluo proletria capaz de uma vitria mais

    duradoura. O carter nitidamente operrio do movimento e sua ao na direo

    do Estado, contrastavam com a direo burguesa da revolta de 1848,

    derrotada na Frana.

    O incio da guerra franco-prussiana, em 1870, determinou a convocao da

    Guarda Nacional para auxiliar o exrcito francs regular a enfrentar o inimigo

    externo. A rpida derrota e aprisionamento do exrcito na batalha de Sedan

    deixou a Guarda Nacional frente da resistncia na cidade de Paris, sitiada.

    No grau de conflito de classe ento existente, armar o povo significava

    convocar a insurreio. Uma primeira revolta efetivamente ocorreu, em

    setembro daquele ano, resultando na proclamao da Repblica. medida que

    as tratativas de paz avanavam, o governo republicano tentou retomar o

    controle sobre Paris, o que implicava, basicamente, desarmar a Guarda

    Nacional.

    As tentativas falharam e levaram a uma segunda insurreio, dessa vez de

    inspirao social, que proclamou, em maro de 1871, a Comuna de Paris.

    Seguiu-se um perodo de guerra civil, encerrado com a derrota da revoluo

  • em maio, aps a libertao das tropas francesas prisioneiras do exrcito

    alemo.

    .

    Pg. 15 - Medidas adotadas

    Quais as medidas adotadas pela Comuna, em sua curta histria, que levaram

    Marx a retrat-la como a confirmao emprica de suas teses?

    No plano econmico, alm de medidas favorveis a devedores e inquilinos, a

    Comuna entregou as fbricas abandonadas pelos empresrios a cooperativas

    constitudas pelos operrios que nelas trabalhavam. Encontrava-se prevista a

    criao de federaes de cooperativas desse tipo e, para Marx, a tarefa de

    coordenao de suas atividades necessariamente caberia a um organismo

    central encarregado da planificao. O fato de esse esboo de economia

    planejada haver sido implementado por militantes de tendncias anarquistas,

    opositores ferrenhos do planejamento centralizado, sublinhava, no entender de

    Marx, o carter "necessrio" dessas medidas.

  • No plano poltico, a Comuna estabeleceu a separao entre o Estado e a

    Igreja. O ensino passou a ser laico e os sacerdotes deixaram de ser

    funcionrios pblicos. O Exrcito foi abolido, por desnecessrio, uma vez que

    toda a populao estava armada.

    A estrutura do Estado foi radicalmente alterada. O sistema representativo

    tradicional, fundado na separao de poderes, foi substitudo por um sistema

    de conselhos, as comunas. Paris foi dividida em distritos, cada qual com seu

    conselho eleito, que acumulava as funes executivas e legislativas. Cada

    conselho enviava representantes comuna maior, representativa do conjunto

    da cidade. Previa-se a ampliao do sistema a todas as localidades da Frana.

    Todos os funcionrios, inclusive os juzes, eram eleitos e demissveis pelos

    eleitores no momento em que no mais correspondessem sua confiana. O

    maior salrio pago equivalia ao de um operrio especializado.

    Aos olhos de Marx, esse conjunto de medidas significava o desmantelamento

    do estado burgus, consolidado ao tempo de Napoleo I, e sua substituio por

    outra forma de Estado. No bastava, portanto, classe trabalhadora, uma vez

    vitoriosa, simplesmente utilizar, para seus fins, os instrumentos criados pela

    burguesia. Cumpria-lhe criar os prprios instrumentos, aptos para efetuar a

    transio nova sociedade.

    Examinaremos, com mais detalhe, as ideias de Marx sobre a transio e seu

    ponto de chegada na prxima unidade. preciso registrar, contudo, que no

    sculo que se seguiu Comuna, o modelo de democracia baseado em

    assembleias voltou a brotar, espontaneamente, como observou Hannah

    Arendt, onde tenha ocorrido uma sublevao popular. Foi assim com os

    sovietes em 1905 e 1917, com os conselhos operrios nas revolues

  • europeias posteriores primeira Guerra Mundial, particularmente na Itlia, e foi

    assim com a insurreio hngara de 1956, contra a dominao sovitica.

    Pg. 17 - Concluso unidade 1

    .

    Esta unidade apresentou um pequeno histrico das ideias socialistas e discutiu

    trs de seus conceitos fundamentais, a partir da obra do autor mais influente

    dessa corrente, Karl Marx. Analisamos as premissas do materialismo e da

    evoluo e debatemos o conceito de classe social. Finalmente, discutimos

    algumas ideias relativas transio do capitalismo para o socialismo. Estamos

    em condies de passar para a prxima unidade, na qual veremos com mais

    detalhe o horizonte utpico do socialismo, ou seja, de que maneira era

    pensada a sociedade que iria substituir o capitalismo.

    Parabns! Voc concluiu a primeira unidade. Vamos prosseguir?

  • Unidade 2 - A utopia socialista

    Analisaremos aqui, basicamente, trs pontos:

    1. Introduo ao pensamento socialista utpico;

    2. Justia e justia distributiva;

    3. possvel uma sociedade alm da justia?

    Pg. 2 - Introduo

    1. Introduo

    A curta experincia da Comuna de Paris havia deixado indicaes, para Marx,

    dos rumos que tomaria a nova sociedade em seus primrdios. Poucos anos

    depois, produziu o nico texto em que suas hipteses sobre a constituio

    dessa nova sociedade so apresentadas com mais clareza: Crtica ao

    Programa de Gotha.

  • O texto faz diversas referncias s disputas internas ao movimento operrio

    alemo. Importa aqui recuperar as idias sobre a transio de uma sociedade

    capitalista para uma sociedade socialista, particularmente no que se refere

    questo dos critrios de distribuio dos bens produzidos, ou seja, questo

    da justia distributiva.

    Antes de iniciar a discusso desse tema, dois pontos levantados por Marx,

    nessa obra, merecem destaque.

    Em primeiro lugar, o internacionalismo. Para o autor, a luta da classe operria

    tem incio sob uma base nacional simplesmente porque a forma de Estado que

    se lhe depara o Estado nacional burgus. Vitoriosa, a nova sociedade ter o

    mesmo impulso universalista que o capitalismo demonstra, impulso que se

    realizar, no entanto, tambm, no plano da organizao poltica. No limite, as

    fronteiras divisrias entre os diferentes Estados sero abolidas. Como diz o

    Manifesto Comunista, o operariado no tem ptria, ou, na forma positiva da

    afirmao, sua ptria a humanidade.

  • Pg. 3 - Movimento operrio

    O segundo ponto diz respeito forma de Estado por que luta o movimento

    operrio. Marx se posiciona contra a incluso de bandeiras democrticas na

    plataforma dos socialistas alemes. A forma que o Estado adota est

    determinada pelo modo de produo. No capitalismo, sua forma mais evoluda

    a repblica democrtica, que seria, para ele, apenas a arena poltica em que

    se dariam os combates finais entre a burguesia e o proletariado. Essa

    repblica, em sua forma plena, no existia na Alemanha de sua poca, mas

    sim em outros pases, como os Estados Unidos e a Sua.

    Reivindicaes do tipo por um Estado livre, usuais entre os socialistas, so,

    para Marx, uma contradio em termos. A posio clara, no demaggica,

    isenta de supersties democrticas, seria simplesmente reconhecer que, no

    perodo de transio entre a ordem capitalista e a socialista, o Estado s

    poder assumir a forma de uma ditadura revolucionria do proletariado.

    Essa postulao revela os ensinamentos da Comuna de Paris. Ali, a vitria da

    reao, das foras da ordem, foi seguida por uma represso dura, na qual

    milhares de militantes foram mortos, presos e deportados. O processo de

    transformao social foi interrompido. Na verdade, s poderia haver continuado

    seu curso se a ao dos interesses vinculados conservao da velha

    sociedade tivesse sido eficientemente reprimida. Da que a forma do Estado,

    nessa conjuntura, seja a de uma ditadura, embora seus beneficirios

    constituam a maioria da populao.

    sobre a Comuna de Paris.

  • Pg. 4 - Justia e justia distributiva

    2. Justia e justia distributiva

    Os comentrios de Marx a respeito desse tema esto apresentados sob a

    forma de crtica reivindicao, constante do programa, de repartio

    equitativa dos resultados do trabalho. Afinal, o que significa exatamente

    equitativo? A atual repartio no equitativa, do ponto de vista da burguesia?

    possvel demandar outra forma de distribuio no interior de uma sociedade

    capitalista?

    Para responder a essas questes, necessrio fazer valer o princpio

    materialista: no so as relaes jurdicas que determinam as relaes

    econmicas, inclusive as de distribuio, mas as relaes econmicas que

    determinam as jurdicas. Segue-se, ento, que a distribuio do produto no

    capitalismo obedece lei da troca de equivalentes. O operrio receber a ttulo

    de salrio o estritamente necessrio sua sobrevivncia reproduo de

    sua fora de trabalho e o capitalista embolsar a totalidade, sempre

    progressiva, do excedente.

    Na transio para o socialismo, por sua vez, o que ser equitativo? Quais os

    critrios de distribuio do produto entre os indivduos participantes da

    produo?

  • Em primeiro lugar, Marx chama a ateno para o fato de que no a totalidade

    do produto que ser objeto de repartio. H dedues a fazer, dedues que

    no tm relao com o princpio da equidade.

    Pg. 5 - Processo produtivo

    De imediato, toda sociedade, qualquer que seja a sua forma, necessita repor o

    desgaste dos meios de produo consumidos no processo. Alm disso, uma

    parcela deve ser separada para fins de investimento. Uma terceira frao do

    produto total anual da sociedade ser carreada cobertura de acidentes de

    todo tipo, inclusive naturais. O montante dessas dedues vai depender do

    grau de depreciao das mquinas, da taxa de crescimento desejada e do

    clculo da probabilidade dos acidentes segurados.

    necessrio ainda cobrir os gastos relativos administrao do processo

    produtivo. Para Marx, esses gastos tenderiam a diminuir consideravelmente na

    nova sociedade, com a reduo progressiva da burocracia. Por outro lado, a

    previso de gastos com as necessidades coletivas, como escolas e centros de

    atendimento sade, tem sua origem tambm no produto total, devendo ser

    separada antes da repartio. Essa parcela tenderia a crescer no socialismo.

    Finalmente, as despesas com o sustento dos incapacitados para o trabalho, a

    previdncia e assistncia social, devem ser tambm subtradas previamente.

    .

  • Pg. 6 - Produo coletiva

    Sintetizando, segundo Marx, deveriam ser aplicadas as seguintes seis

    dedues ao conjunto da produo coletiva, antes de proceder sua diviso

    entre os trabalhadores:

    Primeira: reposio do desgaste dos meios de produo;

    Segunda: parcela para investimento em novo meios;

    Terceira: cobertura de acidentes, inclusive naturais;

    Quarta: administrao do processo produtivo;

    Quinta: gastos com necessidades coletivas (educao e sade, entre outros);

    Sexta: previdncia e assistncia social.

    Pg. 7 - Karl Marx

    Apenas ento pode-se processar a repartio individual do produto. Para Marx,

    o critrio numa sociedade recm-egressa do capitalismo s pode ser ainda a

    troca de equivalentes. Cada indivduo recebe proporcionalmente a sua

    contribuio sociedade. A palavra de ordem a cada um de acordo com a

    sua capacidade.

  • Na prtica, na ausncia de mercado, no haveria concorrncia nem preos. As

    demandas seriam encaminhadas gesto da produo sob a forma de petio

    direta. Os trabalhadores receberiam algo como um vale-trabalho que lhes

    permitiria retirar dos armazns coletivos bens at o equivalente quele

    montante de trabalho.

    Observe-se que a regra a materializao do direito burgus: tratar a todos

    igualmente. O indivduo entrega um montante de trabalho e recebe o mesmo

    montante de volta, aps as dedues referidas. As limitaes inerentes a esse

    direito permanecem, contudo.

    Trata-se de aplicar uma medida igual, no caso o trabalho, a todos os

    indivduos. Mas os indivduos no so iguais, e o tratamento igual s tem como

    resultado a sua diferenciao. Assim, alguns so mais produtivos, por

    habilidade, resistncia ou motivao; outros so menos. Alguns indivduos so

    casados e tm filhos, e portanto suas necessidades so maiores, mas

    recebero talvez menos que um celibatrio. A regra igual produz desiguais na

    sua aplicao. A diferenciao com base na classe desaparece, mas persistem

    aquelas fundadas nas diferenas individuais.

    Curiosidades sobre Karl Marx

  • Pg. 8 - Horizonte utpico

    Com tais problemas, essa etapa inevitvel. Recorrendo uma vez mais ao

    princpio do materialismo, o direito no pode ser superior estrutura econmica

    da sociedade.

    Na fase superior da sociedade comunista, no entanto, quando o fim da diviso

    social do trabalho for fato; quando a abundncia material for a regra; quando,

    nas palavras de Marx, jorrarem em caudais os mananciais da riqueza

    coletiva, o critrio de distribuio ingressar, em consequncia, numa etapa

    superior. A regra ser contemplar cada qual no mais segundo sua

    capacidade, mas segundo sua necessidade.

    Como corolrio do desenvolvimento das foras produtivas, portanto, ser

    possvel considerar cada indivduo em sua singularidade. A sociedade gerar o

    montante de riquezas suficiente para a satisfao de todas as necessidades

    individuais.

    A questo que um horizonte utpico desse tipo levanta no a da possibilidade

    de sua realizao, hiptese na qual a utopia se converteria em realidade, como

    pensava Marx. A questo pertinente a da possibilidade de essa utopia ser

    pensada de maneira racional. Se a resposta afirmativa, uma utopia desse tipo

    pode cumprir sua funo: orientar a ao poltica no sentido da aproximao

    progressiva desse ideal normativo. Se a resposta negativa, essa utopia

    especfica dificilmente poder ser empregada, de forma consequente, como

    norte da prtica poltica.

  • Pg. 9 - Sociedade alm da justia?

    3. possvel imaginar uma sociedade alm da justia?

    Vamos apresentar nesta seo uma srie de argumentos crticos posio de

    Marx, tal como desenvolvidos pela pensadora de origem hngara Agnes Heller,

    em torno da possibilidade mesma da utopia por ele formulada. Em outras

    palavras, se a utopia socialista, em sua radicalidade, configura-se como uma

    sociedade alm da justia, na qual o tratamento igual para todos substitudo

    pelo tratamento singular, possvel conceber racionalmente uma sociedade

    desse tipo?

    Para responder a essa questo necessrio especificar qual o conceito de

    justia com que operamos. Para a autora, trs so as modalidades possveis

    de justia:

    justia no plano formal; justia no plano poltico; justia no plano tico.

  • Em primeiro lugar, a justia formal, caracterizada pela consistncia na

    aplicao das normas. Nessa definio, h justia quando todas as regras

    aplicam-se a todos os casos, ou seja, todos so alcanados pela lei.

    Um segundo plano de justia o poltico. Aqui, h justia quando os valores

    que informam as regras a serem observadas, na condio de justas, so

    consensuais ou majoritrios.

    Finalmente, o terceiro, o plano tico da justia, que considera o prprio

    contedo desses valores, analisado a partir do prisma da soma total de

    virtudes aplicadas a outras pessoas.

    Pg. 10 - Plano da justia

  • Como analisar, com a distino assinalada, os postulados de Marx? Vimos

    que, para Marx, a distribuio depende da produo; logo, no podemos

    esperar do capitalismo nada alm do que observamos. Demandar mais

    equidade iluso, assim como tambm fantasioso chamar essa distribuio

    de injusta.

    Com efeito, a regra do capitalismo, a troca de equivalentes, aplica-se

    indistintamente a todos. Formalmente, portanto, a distribuio justa, exceto

    nos casos de lucros extraordinrios ou de salrios inferiores ao normal.

    Politicamente, a distribuio tambm justa, uma vez que h consenso, at

    entre os socialistas, a respeito da dependncia da distribuio com respeito

    produo. Se a produo capitalista, no faz sentido chamar distribuio

    tambm capitalista de injusta.

    Porm, na anlise de Marx encontra-se ausente o conceito tico de justia.

    Nada se diz sobre a avaliao substantiva dos valores. Essa ausncia

    necessria coerncia da obra marxiana, pois sua considerao implicaria

    admitir padres valorativos que transcendem os modos de produo, de um

    lado, e a liberdade autntica da sociedade socialista, de outro.

    Pg. 11 - Critrio de distribuio

  • No entanto, parece claro que se a produo um fator determinante na forma

    de distribuio, no o nico. Outros valores tambm tm seu peso,

    proporcionam outras normas e critrios, e podem fazer variar a distribuio no

    interior de um mesmo modo de produo. Vimos, no sculo XX, que, a partir do

    momento em que determinados valores foram institucionalizados, o Estado

    passou a interferir na distribuio dos bens, segundo critrios independentes

    da troca de equivalentes. Pessoas sem trabalho, sem contribuio anterior,

    passaram a ter direito a uma parte do produto social sem qualquer proporo

    sua contribuio. Toda a experincia do Estado do bem-estar social pode ser

    resumida dessa maneira.

    Vejamos o critrio de distribuio proposto por Marx para a etapa superior da

    sociedade comunista. O princpio a cada qual segundo suas necessidades

    situa-se claramente alm da justia. Satisfao de necessidades individuais

    matria qual no se aplicam, por definio, normas e regras impessoais,

    igualmente vlidas para todos. Certamente devemos utilizar princpio desse

    tipo em nossas aes e julgamentos. Agnes Heller argumenta, contudo, que

    esse princpio, isoladamente, em todos os seus contedos possveis, tal como

    proposto por Marx, inadequado para reger a distribuio em qualquer forma

    de organizao social.

    Pg. 12 - Necessidades dos indivduos

    Uma primeira significao do enunciado pode ser a simples afirmao de que

    todas as necessidades de todos os indivduos sero satisfeitas. Necessidades

    so criadas pela produo, certo, mas tambm o so pelos valores. Marx

  • parece subordinar as necessidades ao valor da liberdade: todos tero

    satisfeitas todas as necessidades que escolham. No entanto, se o valor

    liberdade no sofre, por sua vez, a limitao de outros valores, deixa-nos numa

    situao de necessidades ilimitadas e, necessariamente, insatisfeitas.

    Afinal, a prpria vida humana limitada e a satisfao de uma necessidade

    implica o sacrifcio de outras. A escassez constitutiva da condio humana e,

    nas palavras de Weber, na modernidade o homem morre de insatisfao.

    A satisfao de uma necessidade impede a de outra, de forma que uma

    situao de satisfao de todas as necessidades de todos os indivduos no

    faz sentido. Uma segunda leitura do princpio marxista, no entanto, pode dizer

    que a escolha das necessidades a serem satisfeitas cabe a cada indivduo e s

    a ele. Ningum tem o direito de impor uma determinada hierarquia de

    necessidades. A determinao apenas interna, nunca externa.

    A questo posta a essa interpretao a forma como se do as hierarquias de

    preferncias individuais. Os indivduos escolhem conforme seu gosto pessoal?

    A sociologia sabe que falar de necessidades e de preferncias individuais por

    essas necessidades implica falar de valores, integrados em vises de mundo

    coerentes, materializados em instituies sociais. Sem isso, no vazio, no h

    preferncias individuais. Em outras palavras, as escolhas de cada indivduo se

    do no marco de um modo de vida particular, que inclui grupos e coletividades,

    nunca apenas indivduos.

  • Pg. 13 - Liberdade

    Pensar uma sociedade situada alm da justia implica pensar a sociedade

    como um conjunto de tomos, cada qual dotado de autonomia moral absoluta.

    Marx criticava a fundamentao da economia na atividade de seres humanos

    isolados, como Robinson Cruso, sempre citado como exemplo pelos

    economistas clssicos. No plano moral, dos valores, no entanto, incorreria num

    tipo semelhante de equvoco.

    Para Agnes Heller, a nfase na liberdade individual que uma sociedade

    socialista acolher no a libertao completa do indivduo em relao ao

    coletivo, o que seria uma tarefa impossvel. A alternativa, mais modesta, seria

    oferecer ao indivduo a possibilidade de escolha entre um leque de modos de

    vida diferenciados.

    Persistem problemas ainda na construo de Marx. A sociedade, seja ela qual

    for, uma vez que num modelo robinsoniano essa questo complicada, no

    satisfaz diretamente as necessidades de cidado algum. O que est a seu

    alcance o provimento dos meios para tal. O exemplo evidente o da sade.

    O Estado prov hoje, ou deveria faz-lo, os meios para que cada cidado

    mantenha-se saudvel. A sua utilizao de responsabilidade de cada um. No

    entanto, a disponibilidade dos meios, a que a sociedade procede, exige para

    sua distribuio critrios de justia, isto , igualmente aplicveis a todos.

    .

  • Pg. 14 - Justia

    Mesmo o requisito da abundncia material pode ser discutido. Se as estruturas

    de necessidades so simbolicamente definidas, com o recurso a valores,

    abundncia e escassez so categorias relativas. Numa situao de pluralidade

    de modos de vida, cada qual com a sua prpria definio de abundncia, o

    princpio a cada qual segundo suas necessidades pode funcionar como

    princpio regulador, ou seja, deve indicar no que todas as necessidades sero

    satisfeitas, mas que todas devem ser igualmente consideradas e reconhecidas

    como legtimas.

    Retornemos ao princpio reitor da primeira fase: a cada qual segundo sua

    capacidade. Conforme Marx, esse princpio, como todo princpio de justia,

    gera injustia. Mas Marx demonstra apenas que esse princpio no equitativo,

    no que injusto. No entanto, essa diretriz compatvel com a aplicao,

    corretora, do critrio da necessidade. o que parece haver realizado o estado

    do bem-estar social.

    Em sntese, para Marx toda aplicao da justia equivalia a uma situao de

    injustia. Os homens so nicos e incomensurveis, de forma que todo padro

    de justia igualmente aplicvel a todos constrange a liberdade humana, alm

    de produzir desigualdade. Da que a igualdade e com ela a justia tenha

    sido localizada numa primeira fase da transio para o socialismo.

    A segunda fase, com a realizao da liberdade absoluta, prescindiria da justia.

    No haveria igualdade nem a aplicao de qualquer padro comum a todos os

    indivduos.

  • Pg. 15 - Concluso unidade 2

    Que a liberdade deva ser um dos valores constitutivos da justia aceitvel. J

    a eliminao simples da justia numa sociedade futura no , como vimos, uma

    imagem racional, a menos que aceitemos a possibilidade de uma sociedade

    constituda por tomos, uma associao de indivduos isolados.

  • Numa sociedade sem classes, na qual a liberdade integre efetivamente como

    valor o contedo da justia, os indivduos podero exercer a liberdade positiva

    de deliberar constantemente a respeito das regras que regero suas

    atividades. As deliberaes podero ser diferenciadas, conforme o modo de

    vida em questo. Mas tero tambm, conforme cada modo, um grau variado de

    liberdade negativa, em que normas comuns no vigoram para todos.

    Vimos, nesta unidade, as idias de Marx a respeito dos critrios de justia

    distributiva numa sociedade socialista. Discutimos, tambm, as crticas que,

    nesse ponto, Agnes Heller dirige ao modelo marxista. Encerramos, assim, a

    apresentao dos conceitos mais importantes da doutrina socialista e

    estamos em condies de analisar, na prxima unidade, a tentativa de

    implementao prtica desse sistema, no sculo XX: a experincia do

    socialismo real.

    Parabns! Voc concluiu a segunda unidade. Vamos prosseguir?

    Unidade 3 - O Socialismo real

    Nesta unidade, buscaremos percorrer a trajetria socialista desde a sua

    implantao num regime duradouro, com a Revoluo Russa de 1917, at o

  • desmantelamento do sistema, nos episdios que culminaram com a queda do

    Muro de Berlim, investigando as possveis principais razes da falncia desse

    modelo.

    Nesta unidade, examinaremos sobre a trajetria socialista:

    1) a migrao de uma revoluo proletria para o totalitarismo;

    2) as razes dos diversos apoios URSS;

    3) as principais causas para sua queda, do perodo do ps-guerra extino

    da

    URSS, em 1989.

    Pg. 2 - Da Revoluo ao Totalitarismo

    1. Da Revoluo ao Totalitarismo

    Em 1917, ocorre a Revoluo Russa, primeira experincia continuada que

    tentou pr em prtica as idias que Marx havia adiantado a respeito da futura

    sociedade. difcil, hoje, decorridas mais de duas dcadas do fim desse

    processo com o desmantelamento da Unio Sovitica em 1989 , avaliar

  • plenamente a significao histrica desse evento. No entanto, patente que o

    mundo em que vivemos, no decorrer de todo o sculo XX, foi conformado pela

    presena de uma alternativa vivel ao capitalismo.

    O prprio sistema capitalista se modificou, atenuou seus traos "selvagens",

    permitiu o incremento das condies de vida de seus trabalhadores em funo

    da presena de um sistema alternativo, capaz de competir pela adeso dos

    trabalhadores de pases centrais e perifricos. Essa a razo de Hobsbawn

    delimitar o breve sculo XX entre o incio da primeira grande guerra, em 1914,

    que marca o fim da belle poque, e a queda do comunismo nos pases do leste

    europeu, em 1989. O fim da guerra fria, da diviso do mundo em duas grandes

    esferas de influncia, viu surgir um mundo to diferente que aos nossos olhos

    contemporneos parece marcar uma diviso de eras.

    A revoluo russa deu seus primeiros passos nos rumos previstos por Marx.

    Em termos econmicos, teve incio o processo de transferncia dos meios de

    produo das mos dos capitalistas para o Estado, e a consequente

    substituio do mercado como mecanismo regulador pelo planejamento

    centralizado.

    Para melhor compreender a Revoluo Russa, assista ao vdeo.

  • Pg. 3 - Revoluo

    Esse processo no avanou de maneira uniforme. At o incio da dcada de

    1920, vigorou a "Nova Poltica Econmica", que concedia alguma margem de

    manobra iniciativa privada, fundamentalmente a pequenos produtores, rurais

    e urbanos. Na dcada seguinte, no entanto, voltou a prevalecer o eixo de

    eliminao da propriedade privada. Foram os anos da coletivizao forada do

    campo. Os camponeses abastados, os kulaks, desapareceram como classe e

    suas terras foram agrupadas em fazendas estatais ou cooperativas de

    explorao coletiva. Milhes de pessoas perderam a vida no processo, seja

    pela represso direta, seja em decorrncia da fome que se seguiu

    desorganizao da produo.

    No plano da poltica, a revoluo teve incio com a supresso do aparelho

    estatal e sua substituio pela democracia estruturada em torno das comunas

    russas: os sovietes. No entanto, a represso estendeu-se progressivamente.

    Em primeiro lugar, aps a revoluo de fevereiro, as organizaes

    monarquistas foram proibidas. Aps outubro, os partidos da base de apoio do

  • governo derrubado, liberais e mencheviques, tambm foram objeto de

    perseguio. Nos primeiros anos do novo regime, foi a vez dos aliados dos

    bolcheviques, os anarquistas e socialistas revolucionrios. Finalmente, aps a

    morte de Lenin e na esteira da luta que se seguiu pela sucesso, a prpria

    velha guarda bolchevique foi sendo progressivamente expurgada, presa,

    submetida a julgamentos encenados e eliminada fisicamente.

    Pg. 4 - Lnin

    A essa altura, a democracia conciliar existia apenas formalmente. O centro do

    poder deslocara-se dossovietes para o aparelho partidrio. Cumpriu-se, dessa

    forma, o prognstico que o velho lder anarquista, Kropotkin, fizera a Lnin no

    incio da revoluo: os bolcheviques haviam dado vida a um monstro que os

    devoraria no futuro.

    A partir de ento, o regime aproxima-se cada vez mais de um modelo

    totalitrio. O expurgo passa a ser necessrio, a fazer parte da lgica da poltica.

    Toda possibilidade de discordncia, na poltica, na arte, mesmo na cincia,

    abortada. Exemplar do controle do poder poltico sobre todas as esferas da

    sociedade foi o caso protagonizado pelo bilogo Lisenko.

    Segundo a teoria por ele desenvolvida, caracteres adquiridos, ao contrrio do

    que afirmava a gentica tradicional, "burguesa", eram passveis de transmisso

    descendncia. Essa verso "dialtica" de uma cincia foi imposta, com o

  • beneplcito de Stlin, aos cientistas soviticos, constituindo o pretexto para

    inmeros expurgos e prises. Da mesma maneira, os cientistas comunistas dos

    pases ocidentais foram submetidos a profisses de f, amplamente

    divulgadas, na nova "biologia revolucionria".

    A proibio formao de faces no interior do Partido Comunista, ainda na

    dcada de 1920, marca o fechamento do nico espao ainda relativamente

    aberto ao debate. A partir de ento a dinmica dos expurgos ganha fora e, em

    poucos anos, a gerao partidria que havia feito a revoluo encontrava-se

    presa ou executada.

    Momento crucial da mudana foi o julgamento e execuo, em 1936, de

    Bukharin, obrigado a confessar, entre outros crimes, a colaborao com as

    potncias capitalistas ocidentais. Nesses mesmos anos se verificava a

    ascenso, cpula do Partido, de Beria, promotor de todos os expurgos

    futuros.

    Inmeras so as razes aduzidas para a progresso do regime sovitico no

    rumo do totalitarismo. Alega-se a necessidade de enfrentar a guerra civil,

    apoiada por potncias estrangeiras, o isolamento da revoluo aps a derrota

    dos movimentos revolucionrios na Europa ocidental, entre outros. No se

    pode desconhecer, no entanto, a lgica imanente da revoluo de encarar todo

    e qualquer conflito poltico como expresso da oposio de classe contra

    classe, passvel, portanto, de emprego de meios de represso.

  • Pg. 5 - Apoio e aplauso ao socialismo

    2. Apoio e aplauso ao socialismo

    Questo igualmente interessante o apoio amplo e militante que o novo

    regime recebeu dos movimentos operrios e de libertao nacional e da

    intelectualidade ao redor do mundo. Quais as razes desse apoio e de sua

    persistncia no tempo? Que levava cientistas de renome a compactuar com a

    fraseologia de Lisenko? Que levava militantes experimentados a "acreditar" nas

    farsas judiciais que incriminavam como traidores os heris da vspera? A

    propaganda era constante, mas por que acreditar na propaganda?

    Em primeiro lugar, necessrio lembrar que a democracia passava por um

    perodo de intenso descrdito. Identificada com o liberalismo e, por tabela,

    com os interesses britnicos, seu apelo era reduzido. O perodo entre as duas

    Guerras assistiu ao fortalecimento das opes antidemocrticas, esquerda e

    direita, comunistas de um lado e fascistas e assemelhados do outro.

    Em segundo lugar, preciso ter em mente o sucesso econmico inicial do

    modelo, particularmente quando contrastado com um capitalismo abalado por

    uma persistente crise. A partir de 1929, enquanto os pases de livre mercado

    estagnavam, a Unio Sovitica crescia todo ano a taxas muito elevadas. O

    planejamento centralizado parecia haver provado sua superioridade sobre a

    irracionalidade da livre iniciativa.

    Em terceiro lugar, havia o evidente sucesso social, entendido como a

    incluso de toda a populao a padres de vida considerados dignos. O

  • acesso sade e educao tornou-se universal, e uma sociedade igualitria,

    em termos de distribuio de renda, comeou a ser construda.

    Evidentemente, tratava-se de uma sociedade austera, de nvel de vida mdio

    inferior ao das classes altas ocidentais. No entanto, o padro de vida

    alcanado, alm de suficiente e equitativamente distribudo, superava o da

    classe trabalhadora dos pases capitalistas.

    Pg. 6 - Progresso

    Decorrente do progresso educacional, destacava-se o sucesso no plano

    cientfico. A massificao da educao superior resultou numa das maiores

    taxas de doutores por habitante do planeta, com produo cientfica relevante

    em diversos campos, segundo todos os indicadores utilizados. Importante

    lembrar que esse poderio cientfico jamais se traduziu em avano tecnolgico,

    exceto naquelas esferas excludas da produo de mercadorias, como a

    indstria blica e a corrida espacial.

    Finalmente, a posio da Unio Sovitica no plano internacional angariava as

    simpatias dos movimentos de libertao das colnias, bem como do conjunto

    das foras progressistas do terceiro mundo. O papel do pas na derrota do

    nazi-fascismo, a participao dos comunistas na resistncia, deixaram um

    importante estoque de legitimidade no ps-guerra. Posteriormente, o apoio aos

    movimentos de libertao ao redor do mundo desempenhou um papel similar

    na sua manuteno.

  • Embora possa ser argumentado que esse apoio subordinava-se diviso do

    mundo em esferas de interesse das duas grandes potncias, ou seja, tornava-

    se apenas formal nos casos ocorridos na rea de ao dos norte-americanos,

    ou mesmo que se tratava de um apoio interessado, de uma subordinao dos

    interesses dos movimentos progressistas ao interesse nacional sovitico,

    parece clara a ocorrncia de apoios de forte base ideolgica. Como assinala

    Hobsbawn, difcil encontrar um componente interessado no apoio continuado

    a organizaes como a OLP ou o Congresso Nacional Africano.

    Face a esse rol de razes, a posio do partidrio do regime no mundo

    capitalista tendia a desqualificar as denncias como simples propaganda da

    "imprensa burguesa". Mesmo que contivessem verdades parciais, o dficit em

    democracia era visto como temporrio, imposio da guerra fria, e amplamente

    compensado pelos supervits em igualdade, justia social e solidariedade

    internacional.

    Pg. 7 - URSS

    3. A URSS do ps-guerra derrocada

  • O fim da Segunda Guerra Mundial marcado pela expanso do sistema para

    fora das fronteiras da Unio Sovitica. A Europa oriental, mediante doses

    variadas de coero e participao popular, define-se pelo sistema a partir de

    1948. Seguem-se China, Coria do Norte e Vietnam do Norte. Nos anos 50

    vem o ingresso de Cuba. Na dcada seguinte, a Indochina, e, nos setenta,

    alguns pases da frica. O ltimo e malogrado degrau dessa escalada foi a

    invaso do Afeganisto, j nos anos 80.

    O fato que o mundo do ps-guerra caracterizou-se pela bipolaridade. A

    guerra fria ditou a dinmica das relaes internacionais, em alguns momentos

    com a vantagem aparente para o bloco sovitico.

    Talvez o momento de otimismo mais intenso para os soviticos tenha ocorrido

    ao final da dcada de 1950, aps a denncia, por parte de Krushev, dos crimes

    cometidos por Stlin. Apesar da crise que se abateu sobre o movimento

    comunista afinal as mentiras da imprensa burguesa revelavam-se verdades

    uma expectativa de democratizao foi criada. Esperava-se que a reforma

    fosse alm da eliminao das caractersticas mais claramente totalitrias do

    regime, no rumo de uma nova ordem poltica democrtica.

    Alm disso, a economia continuava a crescer a taxas expressivas, o que levou

    aquele lder sovitico a prognosticar a ultrapassagem da economia americana

    no espao de duas ou trs dcadas. Finalmente, a Unio Sovitica havia

    iniciado a corrida espacial, aparentando estar na vanguarda tecnolgica do

    planeta.

    Krushev derrubado em 1964. No prolongado governo que se seguiu, liderado

    por Breshnev, todas as expectativas alimentadas no perodo anterior foram

    sendo frustradas. A economia entrou num perodo de estagnao e a

    perspectiva de ultrapassar os americanos tornou-se uma quimera. A corrida

  • espacial logo mostrou ntida vantagem americana, e o nvel de vida da

    populao sovitica comeou a crescer de forma muito mais lenta que o de

    seus vizinhos capitalistas.

    Para saber mais sobre a queda da Unio Sovitica, clique aqui.

    Pg. 8 - Por que o sistema estagnou?

    Por que o sistema estagnou, aps dcadas de crescimento?

    Uma explicao plausvel supor que os limites da planificao central, como

    instrumento preponderante de coordenao econmica, haviam sido

    alcanados. Conforme essa hiptese, chegou um momento em que a

    economia e a sociedade se tornaram demasiado complexas para a capacidade

    de resoluo de um nico plano. Nesse momento, as ineficincias pontuais

    comearam a somar-se e a potencializar seus efeitos. A produo entra em

    declnio, manifesto na escassez, democraticamente (com a importante exceo

    das cpulas partidrias) distribuda nas filas.

    Questo mais intrigante a persistncia da situao de estagnao por mais

    de duas dcadas, sem sinais de tentativas de alterao de rumos. A posteriori

    relativamente simples diagnosticar a falta de mecanismos de correo do

    sistema.

  • Um primeiro tipo de mecanismo de mercado permitiria a localizao imediata

    dos pontos de estrangulamento da economia, os bolses de ineficincia,

    primeiro passo para sua extirpao. Na falta de mercado, a crise era

    camuflada, o desempenho falseado nos informes burocrticos encaminhados

    s instncias superiores e as responsabilidades diludas no coletivo.

    Um segundo mecanismo possvel de controle tambm se encontrava ausente:

    a democracia. O livre debate e crtica dos resultados econmicos poderia levar

    a uma correo de rumos. No entanto, a desestalinizao apenas removera o

    mecanismo totalitrio, remanescendo um Estado fortemente ditatorial. No

    havia mais expurgos, prises, confinamentos e execues como antes, mas a

    liberdade de expresso e organizao no se restaurara.

    Pg. 9 - Gorbachev

    A conscincia da necessidade das mudanas comea a infiltrar-se nos quadros

    partidrios. Obedecendo a uma ordem lgica, aqueles setores com mais

    informao sobre os acontecimentos do mundo exterior ou seja, a diplomacia

    e o servio de informaes , convenceram-se em primeiro lugar da

    necessidade de reformular radicalmente o sistema sob pena de derrota

    imediata. Em outras palavras, se o objetivo era manter uma alternativa real,

    competitiva, ao sistema capitalista, o socialismo real deveria ser

    completamente alterado.

  • Essa proposta, que ganhou o poder, em primeiro lugar com Andropov,

    posteriormente com Gorbachev, foi sintetizada nas palavras glasnost

    (transparncia econmica e poltica) e perestroika (reestruturao).

    Sabemos que o projeto de auto-reforma do sistema fracassou. A intensidade

    dos conflitos encobertos em setenta anos de socialismo ultrapassou os meios

    disponveis para levar a transio a bom termo. A transparncia na economia e

    a aceitao tmida de mecanismos de mercado no resultaram em aumento

    imediato da produo, mas num momento de desorganizao produtiva.

    Alm disso, introduziu, desde o primeiro momento, a presena do risco,

    fazendo perigar a segurana econmica, embora num padro limitado, que o

    sistema garantira at ento a todo cidado sovitico. A mudana parecia

    conduzir a um mundo com todos os males do capitalismo e nenhuma de suas

    vantagens. Embora no fosse reversvel, dificilmente seria possvel a

    permanncia no poder do grupo que iniciara o processo.

    Leia aqui curiosidades sobre Mikhael Sergueievich Gorbachev

    Pg. 10 - Ps-Segunda Guerra Mundial

  • Mesmo assim, pode-se afirmar que o colapso era inevitvel? Mesmo a tentativa

    de auto-reforma era indispensvel? Afinal, por que no prosseguir no mesmo

    rumo, com mais vinte anos de estagnao? A tentativa de resposta a essas

    questes exige um exame das mudanas que ento ocorriam no mundo

    capitalista.

    Aps a Segunda Guerra Mundial, tem incio um perodo de crescimento

    econmico continuado que perdura por trs dcadas. Essa "era de ouro" do

    capitalismo apresentava a particularidade de dispensar mudanas tecnolgicas

    de monta, de maneira que o desemprego manteve-se relativamente baixo nos

    Estados Unidos e na Europa ocidental.

    Para os marxistas, essa situao era considerada evidncia do fato de a

    contradio entre as relaes de produo capitalistas e o desenvolvimento

    das foras produtivas haver alcanado seu estgio final. Sob o capitalismo os

    avanos cientficos no mais conseguiam ser transpostos para tecnologias

    aplicveis produo. Quando muito, eram revertidos para o desenvolvimento

    de foras destrutivas, como no caso evidente da energia nuclear.

    Esse perodo tem o seu final nos primeiros anos da dcada de 1970. A

    desvinculao do dlar em relao ao ouro e o choque dos preos do petrleo

    iniciaram um perodo de turbulncia econmica, com fortes implicaes

    polticas.

  • Pg. 11 - Mudanas

    A mudana de fundo, no entanto, j se encontrava em curso. Uma sequncia

    de inovaes cientficas e tecnolgicas, nos campos da informtica, da

    robtica, da qumica fina, dos novos materiais, da biotecnologia, comeava a

    acontecer. A articulao entre essas inovaes potencializava seus efeitos e

    acelerava o ritmo da mudana. O resultado dessas mudanas, denominadas

    genericamente de revoluo cientfico-tecnolgica, foi a reduo do tempo

    necessrio locomoo de bens e pessoas. O mundo encolheu e a informao

    passou a circular em tempo real.

    Todas essas mudanas ocorreram no mbito do capitalismo. sintomtico o

    fato de a estrutura de produo cientfica do socialismo, comparvel

    capitalista, no haver conseguido incorporar-se ao processo de inovao de

    tecnologia. Pelo contrrio, a nova economia que surge dessa revoluo parece

    necessitar de mercado, ou seja, de decises econmicas automticas e

    descentralizadas e de algum grau de democracia, de circulao plena das

    informaes. A ausncia de ambas as condies havia levado, como vimos,

    situao de estagnao do mundo sovitico. Nas novas condies, a carncia

    se tornava mais grave, pois sinalizava a impossibilidade de o sistema sovitico

    alcanar e superar o capitalismo ocidental.

  • Pg. 12 - Queda do socialismo real

    A estagnao em si j estava abalando a legitimidade do regime, pois, nesse

    perodo, alguns pases capitalistas menores haviam superado os soviticos at

    nas reas que constituam ponto de honra do socialismo: a sade e a

    educao. Segundo Hobsbawn, o simples fato de a expectativa de vida do

    sovitico haver sido ultrapassada por pases capitalistas europeus

    representava um forte abalo na legitimidade do sistema, principalmente para

    seus operadores polticos, a burocracia partidria.

    A revoluo cientfico-tecnolgica soma-se a esse quadro. A perspectiva

    passou a ser o salto em produtividade, riqueza e qualidade de vida dos pases

    capitalistas desenvolvidos, com o consequente aumento da distncia em

    relao a um bloco comunista, no seu conjunto, estagnado. Tornava-se difcil,

    seno impossvel, manter a lealdade do povo com qualquer combinao de

    persuaso e coero que se empregasse.

    Em suma, na perspectiva da avaliao aqui apresentada, a queda do

    socialismo real deveu-se incapacidade que o sistema mostrou de cumprir as

    promessas que o sustentavam. O dficit em liberdade e democracia era

    tolervel enquanto percebido como temporrio, como prprio de uma etapa de

    conflito intersistmico, anterior vitria socialista que instalaria a abundncia e

    a igualdade.

  • Pg. 13 - Salto tecnolgico

    O salto tecnolgico do capitalismo mostrou a insuficincia do experimento

    sovitico para suplant-lo. A etapa posterior de vitria desapareceu do

    horizonte, e as mazelas at ento aceitas e justificadas num clculo ilusrio de

    perdas e ganhos de longo prazo passaram a ser compreendidas apenas como

    mazelas, a serem eliminadas com a maior rapidez possvel.

    Outras avaliaes da queda do socialismo real do nfase a momentos

    pontuais da histria, a decises polticas equivocadas, s potencialidades

    abandonadas pelo sistema, em razo do resultado das disputas intrapartidrias

    em vrios instantes cruciais. Todas afirmam, em ltima anlise, a viabilidade do

    sistema, mesmo sob novas condies, no caso de decises polticas corretas.

    Hobsbawn, para citar um exemplo, d grande importncia ao fato de os

    soviticos haverem se beneficiado dos aumentos do preo do petrleo,

    entrando no mercado como vendedores, abastecendo-se assim das divisas de

    que precisavam. A dependncia de um resultado comercial favorvel com o

    Ocidente teria sido fatal no mdio prazo para o regime. Postula-se,

    implicitamente, com essa posio, a hiptese de isolamento, com sucesso, do

    bloco. O mundo comunista poderia, nas novas condies, manter-se austero e

    igualitrio, independentemente do que estivesse ocorrendo nos pases

    capitalistas.

  • Pg. 14 - Concluso

    Acompanhamos neste curso, a ascenso e o declnio do sistema conhecido

    como socialismo real. Examinamos as razes de seus sucessos parciais, assim

    como as causas de sua estagnao, aps um expressivo perodo de

    crescimento acelerado. Vimos, em sntese que a economia centralmente

    planificada revelou suas limitaes, a medida que a sociedade foi tornando-se

    mais complexa. A revoluo tcnico-cientfica, ocorrida no mbito do sistema

    capitalista, decretou a impossibilidade de o socialismo competir e, em ltima

    analise, de subsistir.

    Para finalizarmos, sugerimos a leitura do livro 'Hannah Arendt e o Declnio da

    Esfera Pblica' de Nerione Cardoso Jnior (2007). Para ter acesso ao texto na

    ntegra, clique aqui!

    Muito bem, voc chegou ao final do curso de Doutrinas Polticas

    Contemporneas: Socialismo!

    Esperamos que os conhecimentos aqui adquiridos sejam importantes para sua

    vida pessoal e profissional. E que voc os multiplique, pois assim estar no s

    aprimorando e consolidando seu aprendizado, mas tambm ajudando a

    construir uma coletividade mais consciente e cidad.

    Parabns! Voc chegou ao final do curso Doutrinas Polticas Contemporneas:

    Socialismo.

  • Como parte do processo de aprendizagem, sugerimos que voc faa uma

    releitura do mesmo e resolva os Exerccios de Fixao. O resultado no

    influenciar na sua nota final, mas servir como oportunidade de avaliar o seu

    domnio do contedo. Lembramos ainda que a plataforma de ensino faz a

    correo imediata das suas respostas!

    Porm, no esquea de realizar a Avaliao Final do curso, por meio dela

    que voc pode receber a sua certificao de concluso do curso.