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O Museu da RendiçãO incOndiciOnal

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Dubravka ugrešicO Museu da RendiçãO

incOndiciOnal

Tradução

Sofia castro rodrigues

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Título original: Musej bezuvjetne Predaje

© Dubravka ugrešic, 1996

© cavalo de Ferro editores, 2011

para a publicação em território português

Revisão: Maria aida Moura

Paginação: Finepaper

1.ª edição, Junho de 2011

iSbN: 978-989-623-152-1

Quando não encontrar algum livro cavalo de Ferro nas livrarias,

sugerimos que visite o nosso site: www.cavalodeferro.com

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Índice

ParTe uM Ich bin müde (estou cansada) ............................................. 11

ParTe DOiS Museu de família ......................................................... 25

ParTe TrÊS Guten Tag (bom dia) ........................................................... 147

ParTe QuaTrO arquivo: seis histórias com o discreto motivo de um anjo que parte ................... 169

ParTe ciNcOWas ist Kunst? (O que é a arte?) ......................................... 237

ParTe SeiSFotografia de grupo ..................................................... 257

ParTe SeTeWo bin ich? (Onde estou?) ................................................... 325

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Fotografia de banhistas desconhecidas. captada no rio Pakrac (Norte da croácia) no princípio do século.

Fotógrafo desconhecido.

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***

No jardim zoológico de berlim, ao lado da piscina que contém a morsa viva, há uma exposição invulgar. Num mostruário de vidro estão todas as coisas encontradas no estômago de roland, a Morsa, que morreu a 21 de agosto de 1961. Ou, mais precisamente:

um isqueiro cor-de-rosa, quatro paus de gelados (de madeira), um broche de metal em forma de poodle, um abre-garrafas, uma pulseira de senhora (de prata, prova-velmente), um gancho de cabelo, um lápis de madeira, uma pistola de água de plástico de criança, uma faca de plástico, óculos de sol, uma pequena corrente, uma mola (pequena), um anel de borracha, um pára-quedas (brinquedo infantil), uma corrente de aço com cerca de 46 cm de comprimento, quatro pregos (grandes), um carro de plástico verde, um pente de metal, um dis-tintivo de plástico, uma bonequinha, uma lata de cer-veja (Pilsener, 2,84 decilitros), uma caixa de fósforos, um sapato de bebé, uma bússola, uma pequena chave de carro, quatro moedas, uma faca com cabo de madeira, uma chucha, um molho de chaves (5), um cadeado, um saquinho de plástico com agulhas e linha.

O visitante fica de pé, diante da exposição invulgar, mais encantado do que horrorizado, como se estivesse perante achados arqueológicos. O visitante sabe que a sua sorte como exposição-de-museu foi determinada

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pelo acaso (o caprichoso apetite de roland) mas ainda assim não consegue resistir ao pensamento poético de que com o tempo os objectos adquiriram algumas liga-ções secretas, mais subtis. arrebatado por este pensa-mento, o visitante tenta então estabelecer coordenadas semânticas, reconstruir o contexto histórico (ocorre-lhe, por exemplo, que roland morreu uma semana após a construção do Muro de berlim), e por aí adiante.

Os capítulos e fragmentos que se seguem devem ser lidos de forma semelhante. Se o leitor sentir que não existem ligações significativas ou firmes entre eles, seja paciente: as ligações estabelecer-se-ão por si próprias de acordo com a sua vontade. e mais uma coisa: a ques-tão de saber se este romance é autobiográfico poderia, a certa altura hipotética, dizer respeito à polícia, mas não ao leitor.

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PaRTe uM

Ich bin müde(estou cansada)

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1. «Ich bin müde», digo a Fred. a sua cara triste e pálida alarga-se num sorriso. Neste momento, Ich bin müde é a única frase em alemão que eu sei. e para já não quero aprender mais nenhuma. aprender mais significa aber-tura. e eu quero ficar fechada durante mais algum tempo.

2. a cara de Fred faz-me lembrar uma outra numa velha fotografia. Fred parece um jovem oficial impelido a jogar roleta russa por um amor infeliz. imagino-o há cerca de cem anos a passar noites inteiras em restaurantes em budapeste. O arranhar lamentoso de violinos ciganos não provoca um leve estremecimento sequer na sua cara pálida. apenas ocasionalmente os seus olhos brilham com o fulgor dos botões metálicos do seu uniforme.

3. a vista do meu quarto, o meu exílio temporário, está cheia de pinheiros altos. De manhã, corro as cor-tinas para revelar um cenário romântico. a princípio, os pinheiros estão envoltos em névoa, como fantasmas, depois a névoa dispersa em fiapos, e então o sol conse-gue entrar. Para o fim do dia os pinheiros escurecem. No canto esquerdo da janela, quase não se consegue ver um lago. À noite, corro as cortinas. O cenário é o mesmo todos os dias, a quietude da cena ocasionalmente que-brada por um pássaro, mas a única coisa que realmente se altera é a luz.

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4. O meu quarto enche-se de um silêncio tão espesso como algodão. Se abro a janela, o silêncio é despedaçado pelo pio dos pássaros. À noite, se vou do meu quarto para o átrio, ouço o som de uma televisão (do quarto de kira, no meu andar) e o som de uma máquina de escre-ver (o escritor russo do andar por baixo do meu). um pouco mais tarde, ouço a batida incerta de um pau e o raspar dos pequenos passos do invisível escritor alemão. vejo muitas vezes os artistas, um casal romeno (do andar por baixo do meu), passam silenciosamente como som-bras. Por vezes o silêncio é perturbado por Fred, o nosso empregado. Fred corta a relva no parque, afastando a dor do seu amor com o barulhento cortador eléctrico. a mulher deixou-o há pouco tempo. «a mulher é máluca», explicou Fred. É a única frase em inglês que ele sabe.

5. Na cidade próxima de Murnau há um museu, a casa de gabriele Münter e Wassily kandinsky. Sinto-me sempre um bocadinho perturbada pelos vestígios das vidas de outras pessoas, são ao mesmo tempo tão pessoais e no entanto impessoais. Quando lá estive, comprei um postal com um quadro da casa, Das Russen-Haus. Olho muitas vezes para esse postal. Por vezes sinto que a minúscula figura humana à janela, aquele ponto vermelho escuro, sou eu.

6. Na minha secretária há uma fotografia amarelada. Nela estão três banhistas desconhecidas. Não sei muito sobre a fotografia, apenas que foi tirada no início do século no rio Pakra. É um pequeno rio que corre não muito longe da pequena cidade onde nasci e passei a minha infância.

Levo sempre a fotografia comigo, como um pequeno objecto fetiche cujo verdadeiro significado desconheço.

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a sua superfície mate amarela atrai a minha atenção, hip-noticamente. Às vezes fico a olhar para ela durante muito tempo, sem pensar em nada. Às vezes mergulho atenta-mente nos reflexos das três banhistas na água, nas suas caras que olham directamente para a minha. Mergulho nelas como se estivesse prestes a desvendar um mistério, descobrir uma fenda, uma passagem escondida através da qual deslizarei para um espaço diferente, um tempo diferente. geralmente ponho a fotografia no canto esquerdo da janela, onde o fim do lago se consegue ver.

7. Às vezes tomo café com kira, uma professora de lite-ratura reformada, de kiev. «Ya kamenshchitsa»1, diz kira. kira é uma apaixonada por todo o tipo de pedras. conta-me que passa todos os verões na crimeia, numa aldeia onde o mar atira todo o tipo de pedras semipre-ciosas para a praia. Não está sozinha, diz ela, há outras pessoas que também vão para lá, todas elas kamenshchiki. Às vezes encontram-se, fazem uma fogueira, cozinham borsch e mostram umas às outras os seus «tesouros». aqui, kira passa o tempo a pintar cópias de vários temas. Fez uma cópia do arcanjo Miguel, embora, diz ela, prefira fazer colares. Pergunta se eu tenho algum colar partido, ela poderia consertá-lo, diz ela, voltar a enfiar as contas. «Sabes», diz kira, «gosto de passar fios entre as coisas.» Di-lo como se se estivesse a desculpar.

8. em Murnau, há um museu comemorativo de Odön von Horváth. Odön von Horváth nasceu a 9 de Dezembro de 1901 em rijeka, às 16h45 (de acordo com alguns outros documentos terá sido às 16h30). Quando atingiu

1 «adoro seixos.»

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cerca de 16 quilogramas de peso, saiu de rijeka e pas-sou algum tempo em veneza e algum tempo mais nos balcãs. Quando atingiu 1 metro e 20 de altura, foi para budapeste e viveu lá até ter 1 metro e 21. De acordo com o próprio relato de Odön von Horváth, eros despertou-o quando tinha 1 metro e 52. O interesse de Horváth por arte, e em especial pela literatura, surgiu quando tinha 1 metro e 70. Quando a primeira guerra mundial começou, Odön von Horváth media 160 cm, e quando a guerra acabou, já tinha 180 cm. Odön von Horváth parou de crescer quando atingiu uma altura de 184 cm. a biografia de Horváth medida em centímetros e pontos geográficos é confirmada por fotografias do museu.

9. Há uma história que se conta sobre o criminoso de guerra ratko Mladic, que passou meses a bombardear Sarajevo a partir das montanhas circundantes. certa vez, notou que o alvo seguinte era a casa de um seu conhecido. O general telefonou ao seu conhecido e informou-o de que lhe dava cinco minutos para reu-nir os seus «álbuns» porque decidira fazer explodir a casa. Quando disse «álbuns», o assassino queria dizer os álbuns de fotografias da família. O general, que des-truía a cidade havia já alguns meses, sabia justamente como aniquilar a memória. essa é a razão pela qual concedeu «generosamente» à vida do seu conhecido o direito à lembrança. a vida, pura e simples, e algumas fotografias de família.

10. «Os refugiados dividem-se em duas categorias: aqueles que têm fotografias e aqueles que não têm nenhuma», disse um bósnio, um refugiado.

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11. «aquilo de que uma mulher mais precisa é de ar», diz a minha amiga Hannelore enquanto nos dirigimos para o mosteiro de andechs, perto de nós.

«aquilo de que uma mulher mais precisa é de um mordomo», respondo eu a Hannelore, enquanto compro uma bola de plástico barata com um anjo da guarda lá dentro, na loja de recordações do mosteiro.

Hannelore ri-se inaudivelmente. Quando a bola é ligeiramente abanada, cai neve sobre o anjo da guarda. O riso de Hannelore sussurra como neve de poliestireno.

12. antes de vir para cá, passei alguns dias no adriático, numa casa ao lado do mar. Ocasionais banhistas vinham à pequena praia. Da varanda, podia vê-los e ouvi-los. um dia, o riso ostensivamente alto de uma mulher cha-mou a minha atenção. Fui investigar e vi três banhistas idosas no mar. Nadavam de peito nu, mesmo na costa, num pequeno círculo, como se estivessem sentadas a uma mesa redonda, a beber café. eram bósnias (a julgar pelo sotaque), provavelmente refugiadas, e enfermeiras. como é que eu sei? estavam a recordar os longínquos tempos de escola e a coscuvilhar sobre uma quarta que confundira as palavras «anamnese» e «amnésia» no seu exame final. a palavra «amnésia» e a história do exame foi repetida várias vezes e em todas as vezes provocava salvas de riso. ao mesmo tempo, as três mexiam as mãos como se afastassem migalhas invisíveis de uma mesa ine-xistente. De repente, caiu um aguaceiro, um daqueles aguaceiros de verão curtos e súbitos. as banhistas conti-nuaram dentro de água. Da varanda, vi os grandes e bri-lhantes pingos de chuva e as três mulheres: as suas garga-lhadas eram cada vez mais ruidosas, com intervalos cada vez mais curtos, agora estavam dobradas de riso. Nos

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intervalos, consegui perceber a expressão «a cair» que repetiam, referindo-se, presumo, à chuva… abriam os braços, batiam na água com as mãos, agora as suas vozes eram como grasnidos de pássaro, como se estivessem a competir pelo título de voz mais gutural e mais alta, e a chuva também, como se tivesse enlouquecido, era cada vez mais forte e quente. entre a varanda e o mar, caiu uma cortina húmida, molhada, salgada. De repente, a cortina absorveu todos os sons e os três pares de asas con-tinuaram a bater magnificamente no silêncio brilhante.

Fiz um «clique» interior e gravei a cena, embora não saiba porquê.

13. «aquilo de que uma mulher mais precisa é de água», diz Hannelore enquanto descansamos depois de nadar na atmosfera luxuriante dos Müllersche volksbads.

14. Desde o início que a vida de S., minha conhecida, correu sempre mal. ainda assim, conseguiu acabar o seu curso de enfermagem e arranjar um emprego num hospital de crianças atrasadas mentais nos confins da cidade. «Não vai acabar bem. absorvo a infelicidade das outras pessoas como papel mata-borrão», dizia ela. No hospital, encontrou a sua pequena felicidade pessoal, um enfermeiro, muito mais novo do que ela, um homem excepcionalmente pequeno (quando o conheci não con-segui afastar os olhos dos seus sapatinhos de verniz) que até tinha um apelido que era um diminutivo. Numa idade relativamente avançada, ficou grávida. Decidiu ir em frente com a gravidez apesar de ambos serem diabé-ticos. Levou a gravidez até ao fim (gémeos!) e depois, na véspera da data prevista para o parto, os bebés ainda não nascidos sufocaram. a minha conhecida ficou desfeita

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como papel mata-borrão. Passou algum tempo na ala psiquiátrica, recuperou e mudou-se, com o marido, para uma cidade mais pequena. um dia, apareceu subi-tamente em minha casa. estava tudo «normal», falá-mos sobre o trabalho dela, sobre o marido, sobre isto e aquilo, e depois a minha conhecida tirou um saquinho de plástico da carteira e espalhou os seus «tesouros» à minha frente. estes eram dois ou três pequenos objectos brilhantes e insignificantes, tão insignificantes que não me lembro do que eram. remexeu as suas minudências durante muito tempo. Depois, reparando num pequeno arranjo de flores secas na minha estante, disse que gos-tava mesmo daquele arranjo, que era maravilhoso, sim-plesmente maravilhoso, e pediu-me para lho dar. enfiou o pequeno arranjo no saco de plástico e depois partiu com o seu patético tesouro de gralha.

15. ao café, kira diz-me qualquer coisa sobre os outros moradores do prédio. «Sabes, de certa forma somos todos iguais, estamos todos à procura de alguma coisa… como se tivéssemos perdido alguma coisa…», diz ela.

16. um exilado sente que o estado de exílio é uma sensi-bilidade constante, especial para o som. assim, por vezes sinto que exílio não é senão um estado de procura e recolha de som.

em Munique, onde eu fora para me encontrar com igor, parei por momentos perto de Marienplatz, atraída pe- lo som da música. um cigano idoso estava a tocar can-ções ciganas húngaras num violino. captou o meu olhar de passagem, fez-me um sorriso que era simultanea- mente deferente e descarado, reconhecendo-me como «um dos seus». Sentindo uma coisa presa na garganta,

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não conseguia respirar e então baixei os olhos e estu-guei o passo, percebendo um segundo depois que avan-çara na direcção errada. alguns passos mais adiante, vi uma cabine telefónica de emergência e juntei-me à fila, fingindo que tinha de fazer um telefonema, que mais podia fazer?

À minha frente, estava um homem novo. De casaco de cabedal preto e justo, jeans justos, botas de tacão alto, uma espécie de insegurança e, ao mesmo tempo, impu-dência na cara, como cores atropelando-se. um segundo depois percebi que ele era «um de nós», «meu compa-triota». a forma como ele marcava persistente e lenta-mente o número — sem olhar para lado algum, como um empregado num restaurante barato — encheu-me de uma mistura de raiva e pena e pôs-me do lado das pessoas na fila. e então o homem novo conseguiu final-mente ligação (sim, «um de nós», claro!). O hábito dos meus compatriotas de falar durante muito tempo, sobre nada, como se estivessem a fazer festinhas, a dar mimos, a dar palmadinhas nas costas uns dos outros e a dizer coisas simpáticas o tempo todo, voltou a encher-me de uma súbita mistura de raiva e pena. O violino ainda cho-ramingava, lamentoso, o homem novo estava a falar com uma certa Milica, e na minha cabeça, tal como numa mesa de edição, eu misturava o lamento com a conversa mole do homem. O violinista de olhos negros olhava persistentemente na minha direcção. Por instantes, pen-sei abandonar a fila mas não o fiz, isso ter-me-ia denun-ciado, pensei. Por isso, quando o homem novo acabou a sua conversa e alisou o cabelo com a mão (um gesto que, tal como antes, me encheu dos mesmos sentimen-tos misturados, pelo seu carácter inesperado), telefonei a Hannelore, que era a única pessoa a quem eu podia ter

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telefonado, inventando uma qualquer questão prática e urgente.

eu estava atrasada para o meu encontro com igor. Fomos a um restaurante chinês e, enquanto conversáva-mos animadamente à espera de sermos servidos, notei que estava inquieta, ausente, que os meus olhos vaguea- vam, senti-me como se estivesse coberta por uma pelí-cula fina, como um par de óculos num dia de inverno. e então tomei consciência de um som que, a princípio, não registara. Havia música pop chinesa ou coreana a tocar, ou em qualquer caso música pop daquela parte do mundo. era uma canção suave, elegíaca, doce, uma canção de amor provavelmente, que podia ser do meu país, ou do país de igor, a rússia. Precisamente nesse momento, uma chuvada repentina escorreu pela janela do restaurante, por trás de igor, e eu quebrei por fim, deixei-me ir, reagi adequadamente, precisamente, seguindo um reflexo antigo e bem praticado, do qual eu não tivera consciência até então. Numa palavra, salivei ao som da campainha, aquele lamento universal, doce, o mesmo lamento viesse de onde viesse… Debati-me interiormente, resisti, resmunguei, quase contente por estar sob o seu poder, quase fisicamente satisfeita, debi-litada, suavizada, chapinhei no invisível e quente lago de lágrimas…

«O que é que está a acontecer, igor…?», perguntei-lhe, como se pedisse desculpa.

«O brilho do botão da tua blusa está a fazer brilhar os teus olhos», disse o meu amigo, um judeu russo de chernovitsa, um exilado.

baixei devidamente os olhos para o botão. era de uma cor opaca, um dourado-plástico.

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17. «Não tenho qualquer desejo de ser espirituoso. Não tenho qualquer desejo de construir um argumento. vou escrever sobre coisas e pensamentos. compilar cita-ções», escreveu um exilado temporário, há muito tempo. chamava-se viktor Shklovsky.

18. «Ich bin müde», digo a Fred. a sua cara triste e pálida alarga-se num sorriso. Neste momento, Ich bin müde é a única frase em alemão que eu sei. e para já não quero aprender mais nenhuma. aprender mais significa abertura. e eu quero ficar fechada durante mais algum tempo.

No silêncio do meu quarto, com o cenário romântico nas janelas, arrumo as minhas coisas, algumas trouxe comigo, sem saber verdadeiramente porquê, algumas encontrei aqui, todas ao acaso e sem significado. uma pequena pena que apanhei quando passeava no parque brilha à minha frente, uma frase que li algures ecoa na minha cabeça, uma velha fotografia que amarelece olha para mim, o con-torno de um gesto que vi algures acompanha-me, e não sei o que quer dizer ou quem o fez, a bola que contém o anjo da guarda brilha à minha frente, com o seu fulgor de plástico. Quando a abano, cai neve sobre o anjo. Não com- preendo o significado de tudo isto, sinto-me deslocada, sou um espécime humano exausto, um seixo, fui atirada pelo acaso para uma costa diferente, mais segura.

19. «aquilo de que uma mulher mais precisa é de ar e água», diz Hannelore num tom instrutivo enquanto esta-mos sentadas num bar, a soprar a espuma das cervejas nas nossas canecas.

20. O exilado sente que o estado de exílio tem a estru-tura de um sonho. Num único momento, de repente,

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como num sonho, aparecem caras que havia esquecido, ou talvez nunca tivesse conhecido, lugares que vê, indubi-tavelmente, pela primeira vez mas que sente conhecer de algum lado. O sonho é um campo magnético que atrai imagens do passado, do presente e do futuro. De repente, o exilado vê realmente caras, acontecimentos e imagens atraídos pelo campo magnético do sonho; de repente dir--se-ia que a sua biografia foi escrita muito tempo antes de ser vivida, que o seu exílio não é, portanto, o resultado de circunstâncias exteriores nem de uma escolha sua mas uma mistura de coordenadas que o destino há muito dese-nhara para ele. apanhado neste pensamento sedutor e aterrador, o exilado começa a decifrar sinais, cruzes e nós e, de repente, é como se começasse a ler em tudo isto uma secreta harmonia, uma lógica redonda de símbolos.

21. «’Nanizivat’, ya lyublyu nanizivat»2, diz kira como se se desculpasse, e sorri, com o sorriso pálido de um convalescente.

22. No estúdio envidraçado ao fundo do nosso parque, o casal romeno está a preparar uma exposição. a mulher jovem usa um machado para esculpir peças de madeira que apanhou no parque durante vários dias. entretanto, o homem prende pedacinhos de papel fino, quase trans-parente, num enorme quadro branco. em cada um deles foi pintada uma cabeça de pássaro em aguarelas suaves, brilhantes e cinzentas. a mulher jovem bate ritmicamente na madeira com o machado. a princípio, os pedacinhos de papel estão quietos, e depois uma corrente invisível agita-os. as cabeças de pássaro estremecem como se fossem cair.

2 «Passar fios, gosto de passar fios.»

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ia POÉTica dO ÁlbuM

Os tempos que correm são nostálgicos, e os fotógrafos promovem activamente a nostalgia. a fotografia é uma arte elegíaca, uma

arte do crepúsculo. a maior parte dos temas fotografados é, pelo simples facto de ser fotografada, tocada pelo pathos. um tema feio ou grotesco pode ser comovente porque foi dignificado pela aten-ção do fotógrafo. um tema belo pode ser objecto de sentimentos de pesar, porque envelheceu ou decaiu ou já não existe. Todas as fotografias são memento mori. Tirar uma fotografia é participar na mortalidade, vulnerabilidade, mutabilidade de outra pessoa (ou

coisa). Precisamente ao cortar e congelar este momento, todas as fotografias testemunham a fusão inflexível do tempo.

Susan Sontag, Da Fotografia

— O que é que Slavica e branko estão aqui a fazer? — diz ela, tirando-me o álbum das mãos e escrutinando a foto-grafia de um jovem casal sorridente.

— Quem são Slavika e branko?— Não os conheces… eras muito pequena… — diz ela,

encolhendo os ombros. — Se ao menos eu soubesse porque é que os pus no álbum — murmura ela para si mesma, enfa-tizando «os» e olhando cuidadosamente para a fotografia como se se tratasse de um qualquer espécime botânico raro.

De repente — com o movimento rápido de uma mão que tira uma fita aderente, ela afasta a capa de celofane, tira a fotografia e rasga-a em bocadinhos. Os sons da exe-cução do papel cortam o ar.

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— Pronto — diz ela. — Também já morreram há sécu-los — acrescenta num tom comemorativo-conciliatório, devolvendo-me o álbum.

O princípio desta história está escondido numa carteira de senhora de pele de porco que ela trouxe consigo, jun-tamente com a mala de viagem de conteúdo modesto naquele ano longínquo de 1946. assim que a primeira oportunidade (pós-guerra) lhe permitiu comprar uma nova carteira, a velha foi arrumada num canto do guar-da-fatos e, a partir desse momento, serviu de depósito de memórias. Houve novas carteiras mais tarde, mas esta, a primeira, ficou no canto do guarda-fatos.

Mais tarde, haveria também nova mobília: novos guarda-fatos, cómodas, armários. Haveria até malas e sacos mais adequados, mas aquela carteira de pele de porco castanha adquiriu um lugar permanente no canto do guarda-fatos, onde continuou a ser um tesouro de memórias.

Na minha infância empobrecida do pós-guerra, privada de coisas, a carteira da Mãe era um substituto para uma cave ou sótão, uma casa de bonecas, uma arca de brin-quedos inexistentes. eu costumava tirar o seu conteúdo modesto, entusiasmada, sentindo-me como uma partici-pante iniciada num qualquer Mistério. Não podia saber que era exactamente isso que eu era. uma participante no simples mistério da vida.

Para começar, a carteira escondia fotografias (da minha mãe, sobretudo), algumas cartas (do meu pai), uma moeda de ouro, uma cigarreira de prata, um lenço de seda pura e… uma madeixa de cabelo.

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as fotografias da Mãe eram excitantes: em algumas, usava chapéus invulgares, noutras, «fatos de marinheiro» e bonés da escola, noutras, fatos de banho (a Mãe num barco, um mar desconhecido a brilhar atrás dela, uma visão que eu ainda não tinha tido). Também havia foto-grafias de um casal mais velho, que deviam ser os meus avós; uma mulher jovem, que devia ser a minha tia; e a filha pequena dela, minha prima. como não conhecia nenhuma daquelas pessoas, as fotografias não tinham grande significado para mim.

Para além das fotografias da Mãe (atadas com um laço bonito), havia algumas do Pai; depois, minhas (recém--nascida); e algumas nossas, juntos; Mãe, Pai e eu em cenas idílicas de brincadeiras na neve.

as cartas tinham sido escritas em 1948, na letra do meu pai, a partir de um sanatório («Nessa altura ainda estavas na minha barriga, ainda não eras nascida», costumava dizer a minha mãe). assim que aprendi a ler, li aquelas car-tas em segredo. eram sobre coisas bastante incompreen- síveis: sobre senhas do pós-guerra («Tens senhas suficien-tes?»); sobre estreptomicina (alguém conseguira obter estreptomicina salva-vidas); sobre toucinho (alguém tinha adquirido um precioso bocado de toucinho); e sobre amor («vejo o teu rosto para onde quer que eu olhe»).

a moeda de ouro pertencera à família da Mãe e ela conservá-la-ia toda a sua vida. Mais tarde, um anel de ouro em forma de amêndoa (um presente do meu pai) e um pequeno quadrado de ouro, para os dentes, seriam acrescentados a este tesouro doméstico. estas eram as únicas coisas valiosas que ela possuía.

a cigarreira era de prata e tinha pertencido ao meu avô, pai da Mãe. Havia um cavalo a trote gravado na tampa («é um cavalo a trote», costumava dizer a minha mãe).

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Passei os meus dedos pela superfície prateada seguindo o contorno do cavalo a trote, abri a cigarreira e inspirei o cheiro do tabaco do meu avô desconhecido.

O lenço de seda pura (a Mãe enfatizava sempre a pala-vra «pura») tinha sido enviado pela minha avó numa carta. aquele pequeno corte de seda contrabandeado numa carta vulgar abriu uma fenda na porta para o des-conhecido. as palavras «seda pura» funcionavam como um íman para atraírem outras palavras de significado obscuro, como a palavra «esmeralda», entre outras. eu costumava gostar de fazer rolar a invulgar palavra «esmeralda», redonda na minha língua, como se esti-vesse a fazer rolar na boca um rebuçado duro e verde de mentol.

Também havia uma pequena cauda sedosa capturada como uma mosca num embrulho de celofane — um caracol meu. eu costumava gostar de erguer o celofane contra a luz para apanhar os raios do sol.

com o tempo, a carteira envelheceu, desgastou-se, esfar-rapou-se nas extremidades. Já não era possível fechá-la, as fotografias caíam da carteira uma a uma, cirandando pelo guarda-fatos. Juntámo-las, atámo-las com um cordel e voltámos a pô-las na carteira, num esforço para criar ordem. Também apareceram caixas de sapatos ao lado da carteira. atirámos as fotografias para dentro dessas caixas ou enfiámo-las em livros e gavetas. a carteira da Mãe permaneceu como armazém central das memórias.

a minha mãe resmungava frequentemente que devíamos ser mais arrumados, que um dia deitaria fora todas as fotogra-fias, que todas as pessoas decentes guardavam as suas foto-grafias em álbuns, que era vergonhoso ter todo este lixo no

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guarda-fatos, que os guarda-fatos tinham sido feitos para a roupa e não para todo o género de fotografias mas, apesar de todos os resmungos, nada mudava: nem o canto do guarda- -fatos, nem a carteira ao canto, nem a função desta.

em 1973, o meu pai morreu. eu gostava dele mas acei-tei a sua morte de uma forma bastante calma e repreen-di-me por ser tão fria.

um mês depois da sua morte, uma fotografia dele, uma daquelas pequenas fotografias tipo passe, escorre-gou de algures e apareceu silenciosamente aos meus pés. um olhar rápido para aquela pequena imagem, para aquele pequeno, silencioso facto, puxou um cordelinho dentro de mim e fui abanada por um soluço repentino e poderoso que me deixou sem fôlego. Fechei-me no meu quarto e chorei, achei que nunca iria parar.

Quando finalmente acalmei, a minha mãe entrou no meu quarto e proferiu uma frase cujo verdadeiro sentido eu só compreenderia muito mais tarde.

— Devíamos comprar uns álbuns — disse ela.

comprámos. a carteira de pele de porco castanha, aquela que ela trouxera consigo naquele longínquo ano de 1946, foi arrancada ao guarda-fatos. uma pilha de vida fortuita, desordenada, explodiu para a luz do dia. Olhei para as caras, sorrisos, corpos, aquelas cenas ama-relo-acastanhadas, a preto e branco, aquelas manchas de luz em rectângulos de papel — e senti-me pouco à von-tade, como se tivesse visto qualquer coisa embaraçosa.

um dia, encontrei-a rodeada por pilhas de fotografias, com uma careta de impotência trágica na cara.

— Queres que te ajude? — perguntei.— Não — disse ela, — são os meus álbuns.

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a carteira desapareceu, as caixas de cartão também. as fotografias já não espreitavam das gavetas ou caíam dos livros, agora estavam a salvo — entre as capas de tela dos álbuns. uma pilha arrumada de uma dúzia de álbuns repousava agora na mesinha-de-cabeceira da minha mãe, sugerindo pelo número e aparência um substancial arquivo de vida.

— e a carteira, onde está? — perguntei.— Foi-se. Deitei-a fora — disse ela.

Folheei os álbuns. Faziam-me lembrar a carteira: as foto-grafias estavam em ordem, supostamente, mas não era possível adivinhar qualquer espécie de princípio de «organização do material». até as fotografias da minha própria mãe, que haviam sempre sido mantidas separa-damente, atadas com um laço ciumento, estavam agora misturadas com todas as outras.

Ou havia poucos álbuns ou fotografias a mais. ela não se conseguia decidir ou não sabia como organizá-las. Desistira da batalha com o género logo ao início.

um dia, reorganizou os álbuns, tentando estabelecer uma cronologia de acontecimentos, mas por uma qual-quer razão desconhecida também aí o princípio falhou. como resultado, uma fotografia minha dos meus dias de estudante apareceu ao lado de Slavica e branko, o jovem casal desconhecido.

No meio daquela cronologia etérea, tentou estabele-cer uma qualquer forma de hierarquia, mas se ela deci-disse apagar os irrelevantes Slavica e branko do arquivo da sua vida, as caras sorridentes de uns igualmente irre-levantes branka e Slavko ainda assim lá estariam.

Os princípios de uma cronologia de eventos e do seu significado na vida dela foi destruído, ao que parece, pelo