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LEGISLAÇÃO Empresários têm dúvidas sobre eficácia da reforma da justiça Governo e troika dão reforma como concluída. Ministério da Justiça diz que "já está a dar frutos". Mas os empresários ainda têm reservas Na teoria a concordância é abso- luta: a justiça portuguesa preci- sa de ser mais rápida, simplifica- da e aproximada da realidade empresarial. A evidência é subli- nhada por juristas, economistas e gestores, que reconhecem mé- ritos em algumas das iniciativas previstas na reforma da justiça, que o Governo e a troika deram na última semana por concluí- da. Mas entre a teoria e a práti- ca um espaço que alimenta também críticas, dúvidas e incer- tezas sobre os reais efeitos das alterações introduzidas no siste- ma judicial. O objetivo da reforma inscrita no memorando assinado com a troika assentava em três pilares: assegurar o cumprimento de con- tratos e de regras da concorrênci- a; aumentar a eficiência através da reestruturação do sistema ju- dicial; e reduzir a lentidão do sis- tema através da eliminação de pendências e facilitando mecanis- mos de resolução extrajudiciais. Os problemas da justiça portu- guesa estavam muito identifi- cados e o presidente do banco BIC, Mira Amaral, diz mesmo que a situação que se vive é insus- tentável. "O facto de criarmos tri- bunais arbitrais para contornar a morosidade dos processos é a prova de que estamos a pagar por um sistema de justiça que não funciona", aponta. "Se uma empresa ganha um processo dez anos depois de ele chegar ao tri- bunal, que ganho tem a empre- sa? Às tantas até pode ter fe- chado as portas". "A justiça portuguesa é lenta, cara e imprevisível, condicionan- do, assim, as decisões e estratégi- as das empresas", sentencia o presidente da CIP - Confedera- ção Empresarial de Portugal, António Saraiva. ESTADO GANHA MAIS PROCESSOS FISCAIS Inversão de tendência Em 2013, o Estado conseguiu confirmar a tendência de inversão na "situação de histórica desvantagem face ao contribuinte" no desenlace de processos fiscais de valor superior a €1 milhão. Segundo dados do Ministério das Finanças, no último ano "a vantagem, medida em termos do valor processual associado aos processos acima de €1 milhão decididos em tribunal, foi de 52% contra 25%", a favor da Autoridade Tributária. Menos processos Segundo os dados do Ministério, "a quantidade de processos do contencioso tributário instaurados tem vindo a diminuir, desde que em 2011 se iniciou o programa de recuperação de pendências judiciais". No primeiro semestre de 2013 houve 5532 processos, quando no período homólogo se tinham registado 5928. Entre 2011 e 2012 tinha ocorrido uma tendência de decréscimo de 12.008 para 10.516 processos.

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Page 1: dúvidas sobre eficácia da reforma da justiça€¦ · As dúvidas do mercado Feito o diagnóstico, o Governo atuou, empurrado pela troika. E o Ministério da Justiça aponta que

LEGISLAÇÃO

Empresáriostêm dúvidassobre eficáciada reformada justiçaGoverno e troika dão reforma comoconcluída. Ministério da Justiça diz

que "já está a dar frutos". Mas os

empresários ainda têm reservas

Na teoria a concordância é abso-luta: a justiça portuguesa preci-sa de ser mais rápida, simplifica-da e aproximada da realidade

empresarial. A evidência é subli-nhada por juristas, economistase gestores, que reconhecem mé-ritos em algumas das iniciativas

previstas na reforma da justiça,que o Governo e a troika deramna última semana por concluí-da. Mas entre a teoria e a práti-ca há um espaço que alimentatambém críticas, dúvidas e incer-tezas sobre os reais efeitos das

alterações introduzidas no siste-

ma judicial.O objetivo da reforma inscrita

no memorando assinado com atroika assentava em três pilares:assegurar o cumprimento de con-

tratos e de regras da concorrênci-

a; aumentar a eficiência atravésda reestruturação do sistema ju-dicial; e reduzir a lentidão do sis-

tema através da eliminação de

pendências e facilitando mecanis-mos de resolução extrajudiciais.

Os problemas da justiça portu-guesa estavam há muito identifi-cados e o presidente do banco

BIC, Mira Amaral, diz mesmo

que a situação que se vive é insus-tentável. "O facto de criarmos tri-bunais arbitrais para contornar amorosidade dos processos é a

prova de que estamos a pagarpor um sistema de justiça quenão funciona", aponta. "Se umaempresa ganha um processo dez

anos depois de ele chegar ao tri-bunal, que ganho tem a empre-

sa? Às tantas até pode já ter fe-chado as portas".

"A justiça portuguesa é lenta,cara e imprevisível, condicionan-

do, assim, as decisões e estratégi-as das empresas", sentencia o

presidente da CIP - Confedera-

ção Empresarial de Portugal,António Saraiva.

ESTADO GANHA MAISPROCESSOS FISCAIS

Inversão de tendênciaEm 2013, o Estado conseguiuconfirmar a tendência deinversão na "situação dehistórica desvantagem face aocontribuinte" no desenlace de

processos fiscais de valor

superior a €1 milhão. Segundodados do Ministério das

Finanças, no último ano "a

vantagem, medida em termosdo valor processual associadoaos processos acima de €1

milhão decididos em tribunal,foi de 52% contra 25%", a favorda Autoridade Tributária.

Menos processosSegundo os dados do Ministério,"a quantidade de processos docontencioso tributárioinstaurados tem vindo adiminuir, desde que em2011 se iniciou o programa de

recuperação de pendênciasjudiciais". No primeiro semestrede 2013 houve 5532 processos,quando no período homólogo se

tinham registado 5928. Entre2011 e 2012 já tinha ocorridouma tendência de decréscimode 12.008 para 10.516 processos.

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As dúvidas do mercado

Feito o diagnóstico, o Governoatuou, empurrado pela troika. Eo Ministério da Justiça apontaque as medidas "começam a darfrutos", salientando a redução donúmero de ações executivas cí-veis (basicamente ações de co-

brança de dívidas) pendentes. Nofinal de 2012 ultrapassavam 1,25milhões e no terceiro trimestrede 2013 tinham diminuído para1,15 milhões.

A \\.- avaliação da troika dá areforma como fechada, mas há

quem questione este pragmatis-mo. "É curioso ter sido dada porencerrada a reforma da justiçapois, ainda na semana passada,quando estivemos com a troika,falámos de várias reformas emcurso, com por exemplo na áreada energia, mas ninguém mencio-nou a questão da justiça", nota Jo-ão Machado, presidente da Confe-

deração dos Agricultores de Por-

tugal (CAP). E lamenta não ter si-

do informado do que foi feito, "a-

pesar dos insistentes pedidos pa-ra que a senhora ministra da Justi-

ça se deslocasse às reuniões da

concertação social".Reis Campos, presidente da

Confederação Portuguesa da

Construção e do Imobiliário, tam-bém desconhece que reformas fo-

ram feitas, para além do novo ma-

pa judiciário de que teve conheci-mento pelos media. Mas adianta

que "a descrença sobre a eficáciadesta reforma é total". "O proble-ma não está na falta de leis masno seu incumprimento. Muitas ve-zes até são as próprias empresaspúblicas e as autarquias a dar o

mau exemplo, em matéria de me-canismos ligados à construção e

obras públicas".Na Confederação de Comércio e

Serviços (CCP), João Vieira Lo-

pes diz que é prematuro anteci-

par a eficácia das medidas, masadmite que "o código de insolvên-

cias, por exemplo, teve algunsefeitos positivos". "É óbvio que so-

mos a favor da criação de condi-

ções para a recuperação de em-

presas antes da sua insolvência.Mas não sei se estas medidas con-

seguirão ultrapassar a cultura his-tórica do nosso sistema judicial",diz o líder da CCP.

António Saraiva também desta-

ca o trabalho feito em matéria deinsolvências e recuperação de em-

presas, até pelo "ponto de vista so-

cial, face às consequências que o

encerramento de empresas temno emprego". Mas elenca algunspontos negativos na reforma: a li-

mitação no recurso ao processoespecial de revitalização impede"que empresas economicamenteviáveis possam beneficiar de ummecanismo célere de recupera-ção". E a criação de equipas espe-ciais de juizes para resolver pro-cessos fiscais de mais de €l mi-lhão "cria uma justiça desigual" e

"potência uma perceção geral de

que os mais fortes detêm regimesespeciais".

Reforma certa ou avulsa?

A coordenadora do Observató-rio Permanente da Justiça, Con-

ceição Gomes, lamenta que as

medidas previstas no memoran-do visem "sobretudo uma maiordimensão do sector económico",ignorando "a grande maioria da

litigação que mais afeta os cida-

dãos", como na área da famíliaou da justiça administrativa. Mes-mo no plano económico, emboraadmita que "houve algum des-

congestionamento no volume de

ações executivas" e que se tenha

conseguido eliminar "boa partedas falsas pendências", defende

que é "demagógico" extrapolaros efeitos dessa medida "para ga-nhos de eficiência no sistema"."São medidas, em geral, positi-vas, no plano da ação executiva,mas não traduzem impactos posi-tivos em outras áreas da litiga-ção económica. Para que a mé-dio e longo prazo o possam tra-duzir exige-se uma visão sistémi-

ca, que as reformas avulsas nãotêm", diz.

João Tiago Silveira, ex-secretá-rio de Estado da Justiça e profes-sor da Faculdade de Direito da

Universidade de Lisboa, tambémé muito crítico: "Em geral, a políti-ca do Governo em termos de Jus-

tiça foi aprovar um novo Códigode Processo Civil e um novo Códi-

go de Processo Penal. Não é estarevisão de códigos que trará mais

rapidez à Justiça, nem terá gran-de impacto para as pessoas e paraas empresas". Por isso defende,em contraponto, "uma reformados procedimentos dos tribunais,que atrasam o decorrer dos pro-cessos". E aqui, "nada foi feito".

Nuno Líbano Monteiro, sóciocoordenador da equipa de con-tencioso da PLMJ, tem uma posi-

ção diferente sobre a reforma da

Justiça: "Os passos dados foramimportantes e tendem a tornar

os processos mais rápidos". Tam-bém o novo mapa judiciário rece-be parecer positivo, "na medidaem que procura aumentar a es-

pecialização, o que traz mais ce-leridade e melhores decisões

aos processos". Critica, contu-do, "pouco se ter mexido na áreada citação, ou seja, no chama-mento das partes para os proces-sos, que tem regras complexase onde se perde 40% do tempo".

Para João Afonso Fialho, sócioda Miranda, a reforma do Códigode Processo Civil e o novo mapajudiciário "eram medidas neces-

sárias", que permitem "a obten-

ção de decisões mais rápidas, porjuizes mais preparados nas diver-sas áreas do direito". Reconhe-cendo que "nenhuma reforma éisenta de críticas", o advogadoconsidera que as medidas "forampensadas e bem preparadas".Resta saber "se operacionalmen-te provarão ser o que prome-tem". A resposta vai "dependerdos recursos que o Governo deci-

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dir afetar à justiça". "Diminuir adespesa pública com a justiça pa-ra mínimos históricos, quando se

exige mais e melhor qualificaçãodos recursos humanos não pare-ce bom prenúncio, dado que se

corre o risco de afastar da admi-

nistração pública os melhores

quadros e de não se conseguiratrair sangue novo", remata.

ADRIANO NOBRE, SÔNIA M.

LOURENÇO e VÍTOR ANDRADE

[email protected]

Reforma"poucosensível"à questãosocial

Relatório do CES sobreo impacto económico dareforma da justiça lamentaa prevalência excessivada visão economicista

Boa parte das preocupações ex-

pressas pelo mercado tem acolhi-mento num relatório que será en-

tregue na próxima semana aoConselho Económico e Social

(CES) sobre o impacto económi-co da reforma da justiça. VítorRamalho, relator do documento,admite que a "necessidade de mu-dança existia" e que "é óbvio queos ritmos da justiça precisavamde ser acelerados". "Mas houve

pressa excessiva e não se deu o

tempo necessário de adaptaçãopara preparar os agentes parauma mudança tão profunda, o

que pode gerar problemas".A título de exemplo, recorda

que a primeira grande alteraçãoao Código do Processo Civil de

1939 aconteceu em 1962, mas

entrou apenas em vigor em1965. "Agora o período de adap-tação foi de apenas três meses",diz, convicto de que este timing"não permite a maturação paraque os agentes económicos e da

justiça possam aferir se os no-vos mecanismos vão contra a sal-

vaguarda de direitos".Além disso, a "pressão da troi-

ka" para a execução das medi-das previstas no memorando le-vou o Governo a "colocar o pla-no económico acima de todos os

outros". E apesar de a morosida-de dos processos judiciais serum problema incontornável emPortugal, "a justiça económicanão se restringe" a esse fator.

Ou seja, se por um lado mere-cem aplauso as medidas de re-forço de arbitragem e mediaçãofora dos tribunais ou o combateà litigância de má-fé e aos proce-dimentos dilatórios que atrasa-vam a resolução de processos,por outro lado é criticável a "au-sência absoluta de sensibilidadesocial ao nível do impacto de al-

gumas alterações". Exemplo dis-

so são as novas regras que per-mitem facilitar ações de despejocom a nova lei das rendas ou o

fecho de tribunais em zonas dointerior do país, que Ramalhodiz terem sido adotadas de for-ma "pouco sensível" e até "qua-se ofensiva" para as populações.

PRINCIPAIS MEDIDAS

Recuperação de empresas¦ Reorientação do Código daInsolvência e da Recuperação de

Empresas para a recuperaçãode empresas em detrimento dasua liquidação. Foi criado o

Processo Especial de

Revitalização (PER)

Administradores judiciais¦ O novo estatuto dosadministradores judiciais coloca

a ênfase na recuperação de

empresas

Auxiliares de Justiça¦ Foi criada a Comissão de

Acompanhamento dosAuxiliares de Justiça, reforçandoo acompanhamento, afiscalização e a disciplina dosadministradores judiciais e dos

agentes de execução

Código de Processo Civil¦ O novo Código de ProcessoCivil está em vigor desdesetembro de 2013. Define maisclaramente os prazos a observardurante os processos e impõenovos deveres aosintervenientes, procurandoafastar expedientes queatrasavam os processos. O novo

código também modernizou e

agilizou a cobrança de dívidas,destacando-se a possibilidade de

penhorar saldos bancários porvia eletrónica

Mapa judiciário¦ Foi definido um novo mapajudiciário, que arranca a 1 desetembro deste ano. O país ficadividido em 23 comarcas a quecorrespondem 23 grandestribunais judiciais, com sede emcada uma das capitais dedistrito. Dos 311 tribunaisexistentes, 20 encerram, 27 sãoconvertidos em secções de

proximidade (funcionam comoextensões locais dos tribunais) e

os restantes são transformadosem secções de instância centralou local. Aumenta a

especialização. Na justiçaeconómica, passa-se de apenasdois tribunais de comércio (emLisboa e no Porto) para 20

secções de competênciaespecializada

Resolução alternativade litígios¦ Foi aprovado um novo regimejurídico da arbitragemvoluntária, bem como dos

Julgados de Paz e da Mediação

Custas judiciais¦ O regulamento das custas

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processuais foi revisto, nosentido de proceder à

padronização do regime de

custas judiciais, que se

tornaram mais elevadas (taxade cerca de 2% sobre o valoreconómico do processo). Visouaumentar as receitas e

desincentivar a litigância de

má-fé, em particular a sucessãode recursos

Novos tribunais¦ Procedeu-se à instituição dostribunais da PropriedadeIntelectual e da Concorrência,

Regulação e Supervisão

Jurisdição fiscal¦ Foram implementadasmedidas excecionais na

jurisdição fiscal, sendo criadas

equipas especiais de juizesvisando diminuir as pendênciasna área tributária, com

prioridade para os processos devalor superior a €1 milhão