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E desaparecemos um no outro

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A trama concentra-se na revelação da paixão entre os adolescentes Aline e João, narradores do livro. O que começa como uma paixão platônica de João por Aline acaba concretizando-se em um namoro recheado de dramas e descobertas próprios de quem vive o primeiro amor.

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Sumário

1. Aline e o judô ................................................. 82. João, o teatro e a maionese ............................. 183. Aline e o liquidificador .................................. 264. João e a régua ................................................. 345. Aline e o perigo greco-romano ....................... 396. João e os limites da sinceridade ....................... 487. Aline e seu Batman ......................................... 568. João e o fato de não ser uma sardinha ............. 639. Aline e todo o reino animal ............................ 6910. João e a samambaia ...................................... 7911. Aline com ciúme do infinito ........................ 8712. João e seu rema-rema ................................... 9613. Aline e os mamíferos ................................... 10214. João e a alavanca .......................................... 11015. Aline e os globos terrestres ........................... 11516. João e o fato esmagador ............................... 12617. Aline na caça ............................................... 13618. João se desfazendo ....................................... 14619. Aline e seu tesouro misterioso ...................... 15620. Aline e João ................................................. 164

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ALINE e seu BatmanSaí da reunião com os pais praticamente correndo.João foi perfeito. Arrasou o pai do André. A reunião meio

que terminou ali. O assunto se espalhou, mas só pela galera da sala. Foi

outra coisa bacana. Eu achava que a escola inteira ia saber, mas não rolou. Eu sairia da escola. Mudaria de cidade. De país. Não sei se querem me preservar, ou têm medo de complicar a situação depois da suspensão. Devem ter concluído também que se espalharem pra outras turmas o Ruas acabará sabendo a verdade. Só sei que ficaram do meu lado. Viram como o Rena-to é um idiota, pra dizer o mínimo. Como é que um cara pode sair por aí dizendo pra todo mundo que transou com uma garota? Mesmo que fosse verdade já seria um absurdo. E como foi mentira... Quando penso nisso tenho vontade de cobrir o Renato de porrada sem parar. Imagino o infeliz contando as maiores mentiras sobre mim pra todo mundo, só pra se van-gloriar, contando os detalhes da nossa “transa”, descrevendo a situação, inventando montes! Ainda tô muito machucada.

Já não bastam minhas dificuldades, minhas barreiras, mi-nhas dúvidas, milhões de dúvidas, ainda por cima vem um cretino desses com mentiras a meu respeito. Tô com ódio dos

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homens. É melhor desistir. Morrer virgem. Juro. Mesmo. E eu me conheço. Tenho até medo de mim. Quando juro uma coisa...

A turma toda pensando que eu transei com aquele porco. E se eu transo? E se na casa do amigo tivesse uma câmera? E se ele tivesse colocado na internet nosso amasso? Fico até de ma-drugada entrando em tudo que é blog da galera e redes sociais, apavorada, mas não encontrei nada até agora.

Na terça de manhã pulei da cama, nem tomei café. Ia ter uma conversa com ele. No caminho foi me dando aquela raiva. Não, não ia dar pra conversar. Tinha passado a noite conversando com o Renato em pensamento, discutindo, xin-gando, tudo com palavras, as palavras foram inchando, vira-ram frases, frases enormes, cheias como balões, arrasando com ele, mas no ônibus o ódio foi furando os balões, esvaziando as frases, até que minha cabeça nem pensava mais, era só raiva e violência, e as palavras me deixaram na mão, eu tentava me lembrar delas pra falar e elas não apareciam mais, desci do ônibus e andei o quarteirão da escola rangendo os dentes, com os punhos fechados, caraca, entrei na escola como uma assas-sina serial, dane-se o diálogo, dane-se a civilização, eu era um animal ferido. Aí aconteceu o que todo mundo viu.

Eu não imaginava que ia fazer aquilo, mas fiz, e não me arrependo. Até entrar na sala, eu ainda acreditava, lá no fun-do, que as palavras iam voltar, iam aparecer como o Batman salvando a mocinha no último minuto, mas assim que vi o Renato lá, sentado ao contrário numa cadeira, olhando uma re-vista estúpida, como se a vida estivesse tranquila, tudo correndo bem, as palavras sumiram de vez e eu bati a porta com força, e toda a turma me olhou e parou, e eu avancei pro babaca sem

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nenhuma palavra no meu pensamento, eu era toda raiva, raiva da cabeça aos pés, e ele me viu chegando e riu. Riu! Que delícia o primeiro tapa! A mão explodindo no rosto dele, apagando aquele sorriso. A revista voando. O tombo. A cadeira caindo. Que cena! Nem acreditei na minha força. Mas fiquei assustada também. O segundo tapa foi de susto. Ele se levantou e veio pra cima de mim, xingando, aí me toquei do que tinha feito, mas era tarde demais. O segundo tapa foi de defesa. Mas que delícia o segundo tapa! Acertei outro em cheio. Ele não esperava nada daquilo. Ficou com a cara vermelha do lado direito. Ele achou que eu ia conversar. Mesmo depois do primeiro tapa, ele ainda achou que eu ia conversar. Ficou ainda mais surpreso com o segundo tapa. Ele apanhou na cara sem acreditar que aquilo tava acontecendo. Duas vezes. Mas aí ele se tocou. A turma toda olhando. Três tapas seriam demais. Partiu pra cima de mim. Ele é forte pra caramba. E precisava se mostrar pros outros. Os tapas tinham esfriado um pouco a minha raiva. Acho que ele ia me chutar. Aí apareceu o João.

João.Penso nele e sinto uma coisa estranha.Passei o resto da semana muito mal. O que eu tinha feito

ficou batendo na minha cabeça sem parar. Nem sei como con-sigo continuar indo à escola, olhar pra cara daquele imbecil. Quero morrer todo dia de manhã. É insuportável.

No dia da reunião com os pais, ia começar a chorar, e sabia que quando isso acontecesse não ia parar mais, ia chorar um Amazonas inteiro, um oceano todo, ia chorar por toda a minha vida, por todos os meus problemas, chorar por existir sem ninguém ter me perguntado se eu queria isso, chorar por

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meu pai não estar ali, chorar, chorar. Aí aparece o João e me defende. De novo.

Àquela altura eu já tava num estado cataléptico, meu cérebro era uma papa de farinha mofada, já não servia pra nada, eu só queria fugir dali. Saí tão abalada, confusa e apres-sada que nem agradeci ao João. Algumas amigas me cercaram, falando ao mesmo tempo, eu me livrei delas, queria ir embora, voltar pra casa, me enfiar na cama, desaparecer entre o lençol e o edredom. Continuava com medo, muito medo, se os pais vissem aquelas garotas me cercando podiam desconfiar de al-guma coisa. Saí do colégio andando rápido. Na calçada senti uma mão pesada no meu ombro. Era o Renato, todo humilde, risonho, tentando ser agradável:

‒ Aline, desculpa aí... vacilo meu, era pra ser só um papo bobo entre os homens... vamos esquecer essa história toda e continuar a...

Quase dei outro tapa nele. Arranquei aquela mão do meu ombro como se fosse uma aranha cabeluda e olhei bem pra cara dele:

‒ Você só não é totalmente indiferente pra mim porque ainda sinto um pouco de nojo.

Aquilo foi melhor do que os tapas.Dei as costas e fui embora pra casa.Decido ligar pra agradecer ao João. É o mínimo. Ele me

salvou duas vezes! Mas devia ter me preparado. Quando ele atende não sei o que dizer e acabo chamando o coitado pra uma festa horrível de criança, no play aqui do prédio, com o Batman e o Robin! Maior mico. É domingo, o João tá lendo um livro. Atrapalho. Ele é um carinha inteligente, tem mais o

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que fazer. Droga, me arrependo, mas já é tarde. Ele tá vindo.Fico supernervosa, andando de um lado pro outro, arre-

pendida da besteira, era só pra ter agradecido, pelo telefone, pronto, e não paro de me sentir ansiosa, até que me ligam da portaria dizendo que ele tá lá embaixo esperando. O que a gente vai fazer a tarde toda no play? E o Batman e o Robin ali, meu Deus! Desço pelo elevador de serviço e quase nem tenho co-ragem de chegar perto dele, fico atrás de um vaso na portaria, pensando no que dizer. Acho estranho. Ele tá de boca aberta o tempo todo, como se estivesse cantando sem som, ou com algum problema no queixo, sei lá, e quando chego ele leva um susto, finge que é um bocejo e fecha a boca. Não entendo nada, finjo que não entendi que ele fingiu que é um bocejo e peço desculpas por ter demorado muito, pra que o bocejo faça sen-tido, ele sentiu até sono, e no final acho que nenhum dos dois entende nada e nunca vou saber por que diabos ele tava de boca aberta olhando pro elevador social.

Subimos pro play. No elevador é um constrangimento só, os dois com aquele ar de “o que eu tô fazendo nesse filme?”. O mais longe possível do Batman e do Robin, sentados numas cadeiras de plástico, ofereço guaraná e pipoca pra ele, comple-tamente sem graça, afinal eu é que meti a gente nessa situação idiota, guaraná, e pipoca, mas aí tudo muda. Começamos a falar, a falar sem parar.

Tanto tempo na mesma turma do colégio e descobrimos que não nos conhecemos. Conversamos sobre tudo. Rimos muito. Esquecemos a festa de aniversário besta, as musiqui-nhas cretinas da Xuxa, o Batman barrigudo e o Robin visivel-mente de mau humor.

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É como se tivesse uma bolha em volta da gente, nos isolando do resto do mundo. O assunto é interminável. Um emenda o pensamento do outro e no final parece um pensa-mento só. Eu só tenho um diálogo assim dentro da minha cabeça. Ou, às vezes, com alguma amiga. Como a Lídia. Sau-dade daquela besta.

Só não falamos da história do Renato. Ele não pergunta nada. Acho lindo da parte do João não tocar no assunto.

Então faço umas perguntas... ele dá respostas lindas... aí não aguento e boto minha mão em cima da dele! Não sei como tenho coragem, pego na mão dele, como aconteceu na reunião com os pais... preciso sentir aquilo de novo. E sinto!

Tamos bem próximos, quase colados, de mãos dadas! Conversando coisas bem íntimas, falando de sentimentos. Rola um climão. Alguém tem de tomar a iniciativa. Ele parece meio envergonhado. Eu também tô, muito. Começamos a falar de instinto, de fazer as coisas sem pensar. Então faço sem pensar.

Dou um beijo nele. Na boca.Posso jurar que aquilo tudo é amizade. Estou tão grata a

ele por ter me defendido na briga, por ter me salvado na reu-nião, quero demonstrar que gosto muito dele, que o admiro, a gente tá tão perto, de mãos dadas, então um selinho é uma coisa até natural e aí... aí ele enfia os dedos entre os meus cabe-los, segura minha nuca, mas com carinho, e o beijo fica muito mais longo do que eu esperava.

Eu me armo toda, já procurando me defender.Mas ele não enfia a língua, não me agarra à força, nada.É ele quem se afasta, com uma delicadeza incrível, passa

a mão pelos meus cabelos, tira uma pipoca e sorri.

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Continuamos a conversar, como se nada tivesse aconte-cido. Rimos.

Ele não tenta mais nada! Lindo! Lindo! Fofo!Quando a noite cai ele vai embora, me deixando comple-

tamente confusa.

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JOÃO e o fato de não ser uma sardinha

No dia seguinte encontro Aline na praia. Nos esticamos na areia. Nos beijamos. Dessa vez pra valer. Um looooongo e úmido beijo de língua. Mergulhamos no mar calmo, continu-amos nos beijando na água, longe dos olhares das pessoas. Os corpos colados. Ela pede “me beija, me beija”, eu mordo seu pescoço, ela solta gritinhos.

‒ João! ‒ minha mãe grita.Depois de um beijo que dura hoooras, Aline pergunta se eu

quero ir até o apartamento dela, os pais tão viajando, então vamos pra lá e...

‒ João! João! Assim que a gente chega no apartamento, assim que a

porta é fechada, ela...‒ João! Acorda! Já são seis horas!Continuo deitado na cama, olhando pro teto, pensando

no que havia acontecido no dia anterior. Só pode ser um so-nho. Não acredito que uma menina linda e inteligente como a Aline queira alguma coisa comigo. É. Eu se fosse ela não ia querer. Que motivos pode ter uma menina pra gostar de mim?

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Já tive umas três namoradas, beijo na boca, amassos, e foi sempre igual, mesmo depois de tudo ainda acho que a menina não tá muito a fim, que faz aquilo só pra me agradar, porque vê que eu tô querendo. Quando eu tô mal mesmo acho que elas têm pena. Não levo fé de que podem gostar de mim, com tanto sujeito muito mais forte e descolado por aí. Acho que é por isso que sempre fui lento demais, não arris-co nunca, a menina precisa literalmente se jogar em cima de mim, e é claro que isso não acontece com muita frequência, pra não dizer que não acontece nunca. E mesmo que eu esteja ficando com uma menina, numa festa, por exemplo, e vá ao banheiro, acho que na volta ela vai me dispensar. Quer dizer, eu tenho medo de ser rejeitado mesmo sabendo que não vou ser. O medo da rejeição é um programa instalado dentro de mim, nem precisa das outras pessoas pra funcionar. Isso me deixa tão medroso e voltado pra dentro que quando acon-tece alguma coisa do lado de fora eu demoro a perceber e aí quase sempre é tarde demais.

Com a Aline, então, eu tinha absoluta certeza de que não havia a menor chance.

Aí tomo um susto.Minha permanente baixa autoestima não me preparou

praquilo. A Aline não é nem muita areia pro meu cami-nhãozinho. É uma avalanche em cima do meu velocípede! Só pode ter me dado a mão no play pra me agradecer. E me beijou por amizade. Claro. Gratidão. Eu fui legal mesmo. Defendi do Renato. Defendi na reunião. Tô me especializan-do em defender a Aline. Não há nada de mais numa garota dar um selinho na boca de um amigo. É moderno. Só isso.

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Maldita modernidade. A gente quer um monte de coisas, deseja todo o universo, mas ganha só um selinho, tem de se contentar com um selinho, e ficar muito feliz. Um selinho no amigo. Obrigada, cara, você foi muito legal. Toma um selinho. Aí o idiota aqui, como sempre, entende tudo errado e faz bobagem. Seguro a cabeça da coitada, como se quisesse prender, não deixar escapar. Ainda bem que não fiz isso com força. Só coloquei a mão na nuca, os dedos entre os cabelos. Ela estremeceu, de susto. Eu me senti logo uma besta, era só um beijinho rápido, de amiga, e eu cheio de libidinagem, não, nem foi isso, coloquei a mão na cabeça dela por insegu-rança, porque achei que é o que um macho deve fazer numa hora dessas, sei lá, só sei que me arrependi no ato, mas era tarde demais, então disfarcei a besteira recuando, devagar, tirando a mão, passando as mãos nos cabelos dela, sem sa-ber o que fazer com aquele monte de dedos perdidos, acabo tirando uma pipoca e sorrio, amarelo, completamente sem graça. Com certeza ela agora me acha um panaca completo.

Ainda bem, e agradeço aos céus e à minha santa timidez estúpida, que não tentei fazer nada com a minha língua! Ela ficou quietinha, dentro da boca. Já bastou a mão na nuca. Imagina querer transformar o selinho da amiga num beijo de língua! Se a minha língua saísse toda animada e confiante e encontrasse uma boca fechada acho que me matava. No mí-nimo saía da escola. Da cidade. Do país. Minha língua não tá preparada pra uma rejeição.

Também não tentei mais nada depois daquilo. Não tinha a menor ideia do que fazer a respeito daquele selinho. Já tinha es-capado por pouco de estragar tudo, segurando a Aline pela nuca,

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não ia arriscar de novo. A iniciativa do selinho foi dela, se eu ficasse na minha ela não ia poder me acusar de nada.

Eu é que não arriscaria tomar uma iniciativa daquelas. Não mesmo. Pra uma menina linda como a Aline tomar a ini-ciativa de dar um selinho num cara não é nem arriscar. Qual o ser humano do gênero masculino que já viveu, vive ou vai viver sobre a face da Terra que recusaria um selinho dela? Era só ela querer dar um selinho que já podia dar, sem o menor risco de rejeição. Assim é fácil. Não precisa nenhuma espécie de pensamento entre querer e fazer. Não precisa nem de auto-estima elevada.

Bom, eu relaxei porque logo a gente continuou a conver-sar, como se nada tivesse acontecido, até soltamos a mão um do outro, porque eu também não sabia mais o que fazer com aquele fato, e isso foi ótimo, e tive certeza: um beijo de amiza-de. Beleza. Tudo tranquilo, resolvido, na paz. Agradecimento feito. Eu sou um cara bacana. Mereci um selinho.

Conversamos ainda bastante, falamos sem parar, não fal-tou assunto nem um segundo, a gente só parava pra ela reno-var a pipoca e o guaraná. Rolou também um cachorro-quente e batemos palmas em volta de um bolo.

No final nos despedimos com um abraço e beijos no ros-to e pronto. Só. E mesmo assim isso me deixou flutuando, e fui andando pra casa do meu pai sem encostar os pés no chão. Depois ele me levou pro apartamento da minha mãe, e eu continuei flutuando dentro do carro, o tempo todo pensando na Aline, e no selinho, o que devia ter feito, o que não devia ter feito, o que devia ter falado, o que não devia ter falado, e tudo girava em volta do selinho, e quanto mais o tempo passa

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mais eu acho que podia ter feito alguma coisa mais a respeito daquele selinho, não sei como nem o quê, mas com certeza me acho o sujeito mais estúpido e atado que já existiu.

Minha mãe para de gritar.Continuo na cama, olhando pro teto, sem nenhum mo-

tivo pra seguir vivendo. O telefone toca. E toca até eu lembrar que é segunda-feira, mas é feriado escolar, e minha mãe já saiu pro trabalho. Ela me acorda mais cedo do que é preciso pra ter certeza de que eu não vou perder as aulas, e ainda coloca um despertador pra meia hora depois, só que hoje esqueceu que eu não tenho escola. Anda esquecida. Esqueceu até de ir à reunião com os pais. Ainda bem. Corro pra atender o telefone. Pode ser a Aline. No caminho acerto a canela direita na quina da mesa de centro. Dói pra burro, vejo que chega a sair um pouco de sangue, mas seguro a onda e falo:

‒ Alô.‒ Oi, João.É a droga do Maurício.‒ Fala.‒ Tudo bem?‒ Mais ou menos.‒ O que foi?‒ Fala, Maurício. Foi você que ligou.‒ O que você tá fazendo?‒ Dando canelada em quina de mesa.‒ O quê?‒ Fala logo.‒ É que hoje é feriado.‒ Só contaram pra você. Por que não tá dormindo?

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‒ Não consigo. Todo dia acordo a essa hora. Olha, meus pais viajaram, então vou agitar um churrasco aqui hoje. Se quiser aparece, tipo hora do almoço.

‒ Legal.O Maurício é da turma do Renato, um puxa-saco. Tinha

dado uma gravata no Eduardo quando ele segurou o Renato, na briga. Se ele é amigo do Renato, é meu inimigo. Mas o Maurício mora numa cobertura. Não dá pra não ir numa festa da galera numa cobertura. Aceito automaticamente e depois, enquanto passo mertiolate na canela, fico me punindo, in-fernizando a mim mesmo, me achando o sujeito com menos dignidade que já viveu neste planeta. Um vendido. Por um churrasco numa cobertura vou confraternizar com um amigo do Renato. E com certeza com o próprio Renato. Mas é mais forte do que eu. A vontade de ir. O Renato também. Como eu posso ficar em casa sabendo que toda a galera tá junta, se divertindo? Não tenho estrutura emocional pra não estar lá. Simplesmente não posso ficar sozinho em casa num feriado.

Não tenho nenhuma dúvida de que todos vão. Porque to-dos são iguais a mim. Ninguém tem estrutura emocional pra se isolar. Ninguém tem dignidade. Mesmo sendo amigo do pior sujeito da face da Terra, a triste verdade é que a festa do Maurício vai bombar. E eu preciso estar nela. Não sou ninguém sozinho. Eu não sou uma sardinha, eu sou o cardume.