120
1 Sergio Mendes de Freitas E O LÓGOS SE FEZ VÄDA POSSÍVEIS DIÁLOGOS COM O EVANGELHO SÂNSCRITO DE JOÃO Belo Horizonte Faculdade de Letras da UFMG 2011

E o logos se fez vada

Embed Size (px)

DESCRIPTION

Dissertação para obtenção do título de mestre em Estudos Clássicos Literários pela UFMG. O texto constitui um breve estudo comparativo entre a tradução sânscrita do Evangelho de João feita por William Carey a partir do texto referencial grego.

Citation preview

  • 1

    Sergio Mendes de Freitas

    E O LGOS SE FEZ VDA POSSVEIS DILOGOS COM O EVANGELHO SNSCRITO DE JOO

    Belo Horizonte Faculdade de Letras da UFMG

    2011

  • 2

    Sergio Mendes de Freitas

    E O LGOS SE FEZ VDA POSSVEIS DILOGOS COM O EVANGELHO SNSCRITO DE JOO

    Dissertao apresentada no Programa de Ps-graduao em Estudos Literrios da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais como requisito parcial para obteno do ttulo de mestre em Estudos Literrios. rea de concentrao: Estudos Clssicos Linha de pesquisa: Literatura, Histria e Memria Cultural. Orientador: Prof. Dr. Jacyntho Jos Lins Brando.

    Belo Horizonte Faculdade de Letras da UFMG

    2011

  • 3

    Dissertao intitulada, E o lgos se fez vda: possveis dilogos com o Evangelho snscrito de Joo, de autoria do mestrando Sergio Mendes de Freitas, submetida aprovao da banca examinadora composta pelos seguintes professores:

    Belo Horizonte, Av. Antnio Carlos, 6627 Belo Horizonte, MG 31270-901 Brasil tel.: (31) 3499-5492

  • 4

    Ao meu filho e aluno de snscrito, Abhay.

  • 5

    AGRADECIMENTOS:

    Em primeiro lugar, agradeo a Deus, que, misteriosamente, tem conduzido meus passos e

    me dado foras desde que aceitei o desafio de fazer este trabalho de pesquisa. Ele, desde

    ento, alm de enviar fora espiritual, manteve minha sade forte e estvel para conduzir

    meus estudos e compromissos pessoais nem sequer tive um resfriado nesses ltimos trs

    anos.

    Tva& ParMaer& NaMaaiMa | A ti, mestre supremo, eu sado.

    Uma vez que Deus pode aparecer sob diferentes rostos, agradeo tambm aos citados

    abaixo, que so considerados por mim como enviados.

    minha esposa, Mnica Paula Silveira, que, com esprito de desapego e amizade sincera,

    at mesmo antes de meu ingresso na universidade, contribuiu muito para que eu pudesse

    crescer profissionalmente. No que se refere a seu esprito abnegado, acredito que no seria

    exagero compar-la a Savit e Sukany, manifestaes arquetpicas de esposas no mythos

    snscrito.

    Ao meu orientador, Prof. Dr. Jacyntho Jos Lins Brando, que, com sua alegria de esprito

    caracterstica, humildade e sabedoria, possui o dom de despertar em seus pupilos o amor

    pelo conhecimento. Nesse sentido, o considero um guru.

    Ao meu co-orientador, Prof. Dr. Carlos Alberto Gohn, que tantas almas lanou no

    crescimento intelectual. Seu humanismo sempre ser para mim uma referncia.

    TVaa& GauMaev NaMaaiMa | s um mestre, de fato. A ti eu sado.

  • 6

    Profa. Dra. Eliana Loureno (FALE-UFMG), que acompanhou minha trajetria desde a

    graduao e me apoiou com bondade sincera em momentos delicados.

    Aos funcionrios da Biblioteca da Faculdade de Letras, pela gentileza e boa vontade.

    Ao Prof. Dr. Francisco Vinhosa (FAFICH-UFMG) pelo incentivo, pois j havia desistido

    algumas vezes de fazer exame de mestrado e, se no fosse por sua insistncia, acredito que

    no teria chegado at aqui.

    Ao Prof. Dr. Teodoro Renn Assuno, pela bondade, pelas crticas sinceras e desejo

    genuno por meu aprimoramento profissional.

    Ao Prof. Dr. Seung Hwan Lee, pelo incentivo e por ter me conduzido at meus

    orientadores.

    Aos funcionrios do POSLIT, pela pacincia e boa vontade que sempre demonstraram para

    comigo.

    Aos colegas Eduardo Cursino Faria Chagas, Mateus Rodrigues (FALE-UFMG) e Antnio

    Almeida (UFES), por suas preciosas sugestes no tocante a referncias.

    CAPES, pelo apoio financeiro para conduzir este trabalho. Muito obrigado.

    Ao meu sogro, Agostinho Silveira, pela compreenso e preciosa colaborao em momentos

    de dificuldades pessoais.

    Aos meus irmos Alessandro e Cesar pelas diversas formas de ajuda que no poderiam ser

    citadas aqui por falta de espao.

    Enfim, a todos que, anonimamente ou no, colaboraram para o sucesso deste trabalho.

    Gostaria de agradec-los sinceramente.

  • 7

    No vemos as coisas como elas so, as vemos conforme estamos (Anas Nin)

  • 8

    RESUMO

    O presente trabalho levanta questionamentos quanto questo interpretativa

    para um leitor hipottico de snscrito, motivada pela leitura de uma traduo snscrita do

    Evangelho de Joo.

    Contrapomos os textos grego e snscrito do Evangelho de Joo, o segundo

    vertido a partir do primeiro, levando em conta que o fazer tradutrio pode oscilar entre uma

    tendncia a privilegiar a alteridade do texto estrangeiro ou a buscar fluncia

    (domesticao), explorando exemplos dessas duas possibilidades. Em seguida,

    concentramos nossa ateno nas possibilidades de ressignificao do texto snscrito.

    Assim, a identificao das provveis ocorrncias de estrangeirizao ou domesticao no

    texto snscrito foi utilizada como critrio para seleo dos exemplos. Quanto s

    possibilidades de ressignificao ou interpretao, tecemos consideraes levando em conta

    a fuso de horizontes, um elemento do fenmeno interpretativo estudado por Hans Georg

    Gadamer.

    PALAVRAS-CHAVE: Evangelho de Joo em snscrito; William Carey; Fuso de horizontes; Traduo de textos sagrados.

  • 9

    ABSTRACT

    The present paper raises some questions about textual interpretation regarding a

    hypothetical Sanskrit reader. This interpretation is based on reading a Sanskrit translation

    of the Gospel of John, by comparing the Greek and Sanskrit versions to the Gospel of John,

    being the latter translated from the former

    Bearing in mind that the resulting translation can oscillate between the tendency

    of giving focus to text alterity (foreignization) or, diametrically opposed, to the pursuit of

    fluency (domestication), we have examined samples from these two possibilities, viz.,

    foreignization and domestication. Finally, as far as possibilities of re-signification of the

    Sanskrit text are concerned, which aimed at an implied reader, our assumptions took into

    account the notion of fusion of horizons, an element which belongs to the interpretative

    phenomena studied by Hans Georg Gadamer.

    KEY-WORDS: Sanskrit Gospel of John; William Carey; Fusion of Horizons; Translation of Sacred Texts.

  • 10

    SUMRIO APRESENTAO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 12

    CONVENES ADOTADAS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 14

    INTRODUO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 16 Captulo 1 CONTEXTUALIZAO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 20

    1.1. William Carey: De Paulerspury Serampore, ndia. . . . . . . . . . . . . . . 21 1.1.2. A Inglaterra William Carey. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 21 1.1.3. A formao lingstica de Carey e a criao da Sociedade Batista Internacional. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 22 1.1.4. Serampore, ndia. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 29 1.2. Professor de snscrito e tradutor . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 31

    Captulo 2 AS OPES DO TRADUTOR . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 33 2.1. Traduo e hermenutica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 37

    Captulo 3 O LGOS E O VDA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 40 3.1. Procedimentos de estrangeirizao . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 42 3.1.1. O divino . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 42 3.1.2. Os filhos de Deus . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 49 3.1.3. O filho unignito . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 53 3.1.4. Batizar na gua . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 56 3.1.5. Cordeiro de Deus . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 58 3.1.6. O esprito descendo como uma pomba . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 61 3.1.7. O filho do homem . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 63 3.1.8. Os sinais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 65 3.1.9. Nascer de novo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 69 3.1.10. A purificao . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 71 3.1.11. A circunciso . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 73 3.1.12. Nascer em pecado . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 77 3.1.13. Satans . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 70 3.2. Domesticao . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 82 3.2.1. Forma textual . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 82 3.2.2. O vinho . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 85

  • 11

    3.2.3. O po vivo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 88 3.2.4. Hosana . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 89

    CONSIDERAES FINAIS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 93 REFERNCIAS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 95 ANEXOS Cpias dos captulos dos textos gregos e snscrito usados para seleo dos exemplos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 99

  • 12

    APRESENTAO

    O presente trabalho que aborda uma traduo snscrita publicada em 1808, na

    ndia, pelo pastor batista William Carey foi motivado por um interesse pessoal, como

    estudante e leitor de snscrito, de propor uma leitura de um texto pouco conhecido e que, ao

    mesmo tempo, alm de ter o snscrito como objeto, remetesse tambm lngua grega. Tal

    iniciativa, seria uma resposta a um percurso que teve seu incio nos primeiros anos da

    dcada de noventa, quando ainda arriscava meus primeiros passos pelos labirintos da

    gramtica snscrita, estudando por conta prpria. A vivncia com o snscrito acabou me

    conduzindo ao curso de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais, onde tive

    oportunidade de sistematizar um entendimento da lngua snscrita. Embora estivesse

    cursando Letras com vistas a conseguir habilitao em lngua inglesa (licenciatura), meu

    passado snscrittico permitiu que me fosse dada a oportunidade de atuar como monitor da

    disciplina Introduo ao snscrito, oferecida na graduao, como optativa, pelo Prof. Dr.

    Carlos Gohn. A experincia como monitor na graduao pavimentou o caminho para que

    eu pudesse auxiliar no ensino do snscrito na extenso universitria, onde tive oportunidade

    de atuar como docente para um curso introdutrio que chegou a ser oferecido em dois

    nveis: snscrito I e II, coordenado tambm por meu co-orientador Prof. Dr. Carlos Gohn.

    Em princpio, minha ocupao com o snscrito na extenso universitria, bem como meu

    vnculo com a universidade terminariam com a concluso do curso de graduao, pois,

    naquele momento, ainda no cogitava sequer a possibilidade fazer um mestrado. No

    entanto, aps sucessivas conversas com meus professores, o trabalho com um texto

    snscrito, na condio de mestrando, foi se tornando uma realidade cada vez mais prxima.

    Ainda assim, devido peculiaridade de um futuro projeto que teria como objeto um texto

    snscrito, para facilitar sua aprovao, optamos pela via da comparao. Ou seja, uma vez

    que o texto snscrito de Carey poderia ter sido vertido a partir do grego, uma comparao

    dos dois textos poderia despertar algum interesse na academia.

  • 13

    Dessa forma, com a aprovao do projeto, que se desdobraria na presente

    dissertao, pudemos cumprir o duplo propsito de dar uma contribuio para ampliar os

    estudos comparativos no campo das lnguas indo-europias, abrindo um precedente que

    possa viabilizar futuros estudos snscritos, pois, at onde temos notcia, um pr-projeto de

    mestrado envolvendo um texto snscrito como objeto de estudo foi um evento pioneiro na

    Universidade Federal de Minas Gerais.

    Ao optarmos pela comparao, o passo seguinte foi aprender grego, pelo menos o

    suficiente para cotejar os textos em lngua grega e snscrita, pois meu conhecimento era

    praticamente nulo. Atravs da freqncia de disciplinas optativas da lngua grega veio o

    instrumental lingstico para explorar o texto do Evangelho de Joo, com o qual j tinha

    alguma familiarizao, pois, durante as aulas de snscrito no curso oferecido na graduao,

    do qual fui monitor, tivemos oportunidade de utilizar em sala o prlogo de Joo em

    snscrito (para felicidade de alguns alunos da habilitao em grego, que freqentavam o

    curso como disciplina optativa, e j conheciam o texto naquela lngua).

    Sendo assim, ao examinarrmos a traduo de William Carey, foi confirmado,

    atravs de nossos levantamentos, que o texto snscrito do Evangelho de Joo foi vertido a

    partir do grego1, dando respaldo a nossas suspeitas.

    1 Brother Marshman and I compared with the Greek or Hebrew, and brother Ward reads every sheet. Three of the translations, - viz., the Bengalee, the Hindoostanee, and Sanscrit I translate with my own hand; the two last immediately from the Greek (). (MYERS, 107).

  • 14

    CONVENES ADOTADAS

    TRANSLITERAO DO SNSCRITO

    Para representao do corpus snscrito do Evangelho de Joo, bem como para

    citaes em snscrito, empregamos a transliterao romnica segundo a conveno criada

    pelo Congresso de Orientalistas de Viena (1894). Exemplo:

    dau vda st, sa ca vda varbhimukhas st | sa ca vda vara st |

    A representao devangar corresponde para o trecho :

    AadaE vad AaSaqTa( , Sa c vad wRrai>aMau%SaaSaqTa( ) Sa c vad wRr AaSaqTa( ) QUADRO COM GUIA DE PRONNCIA PARA A TRANSLITERAO ROMNICA Pronncia dos grafemas distribudos por pontos de articulao possveis correspondncias

    Guturais Palatais Cerebrais Dentais Labiais

    a = como u em but, = conforme o a anterior, porm, com o dobro de tempo e = fechado, como em medo ai = a com adio de i k = como em casa kh= como em work hard g = como em gato gh = como dig-hard = como em ngulo h = como em carro = semelhante ao anterior, porm, com surdez

    i = como em amigo = conforme o i anterior, porm, com o dobro de tempo c = como em tchau ch = aspirado, como em staunch heart j = como em jail jh = como em hedgehog = como em Pantcho y = como em yes = como em chave

    = como em porta (sul de minas, tringulo mineiro e interior de So Paulo) = como no exemplo anterior, porm com o dobro de tempo t = como em porta (sul de minas e reas de influencia) th = como no exemplo anterior, porm, com aspirao d = como em tarde (sul de minas e rea de influncia) dh = como no exemplo anterior, porm com aspirao n = como em berne (sul de minas e rea de influncia) r = (tepe) como em raio (pampa gacho)

    = como lry em revelry - t = como em terra th = como em at home d = como em dia (capital pernambucana) dh = como em red hot n = como em navio

    u = como em uva = como em rule o = como em olho au = a com adio de u l = como em l s = como em sal p = como em pai ph = como em paper b = como em bala bh= como em rub hard m = como em me v = como em ver

  • 15

    ABREVIATURAS DE OBRAS CITADAS EM REFERNCIAS DE P DE PGINA AV. = Atharva-veda BhP. Bhgavata-pura (dicionrio de snscrito MONIER-WILLIAMS) BhG. = Bhgavata-pura (dicionrio de snscrito BHTLINGK/ ROTH) BRAHMA-P. = Brahma-pura CHND. Up. = Chndogya Upaniad DaivBr. = Daivata-brhmaa DHRTAS. = Dhrtasamgama Sch. AK. = Escoliasta Amarakoa H. = Hemacandra IW. = Indian Wisdom (Sir Monier-Williams) M. = Macdonell MBh. = Mahbhrata MED. = Medinikoa N. = Nalopkhyna Nir. = Nirukta (Yska) P. = Pini PACAT= Pacatantra PR. GHY= Ghyastri de Prasmara RAGH. = Raghuvaa RJA-TAR. = Rja-taragi RTL. = Religious Though and Life in India (Sir Monier-Williams) RV. = g-veda TBr. = Taittirya-brhmaa VARH. = Bhajjtaka de Varhamihira VOP. = Vopadeva VS. = Vagasanejisahit UMA ABREVIAO EMPREGADA EM TRECHOS CITADOS EM NOTA DE P DE PGINA (o) Em trechos citados de dicionrio, mantendo a mesma conveno comumente empregada em textos snscritos, tambm utilizamos o smbolo o aps uma palavra composta para indicar a parte restante. Ex.: dhanao (para dhana-jaya), visto que dhana-jaya uma subentrada do verbete jaya, o sendo utilizado para indicar a supresso de jaya.

  • 16

    INTRODUO

    A traduo do Evangelho de Joo constitui apenas uma entre as muitas feitas pelo

    pastor William Carey. Como tradutor, ele tornou a Bblia disponvel para um nmero

    significativo de lnguas vernculas indianas, dentre as quais, o bengals, o hindi, o ori, e o

    marata. Entendia ele que, sua misso na ndia, era tornar a Bblia acessvel em tantas

    lnguas vernculas quantas fosse possvel, o seu texto snscrito sendo a matriz referencial

    para as verses subseqentes em lnguas vulgares2. Porm, a publicao do texto snscrito

    no constitua um expediente inocente de difuso do Evangelho em lngua culta, mas parte

    de uma agenda proselitista, visando como leitores aos brmanes da sociedade hindu, dele

    contempornea. Ele acreditava que, se esses brmanes dessem uma boa acolhida sua

    traduo, a populao mais simples ficaria mais favorvel ao trabalho evangelizador. Alm

    disso, sendo o snscrito considerado por unanimidade a lngua cannica para o povo hindu,

    uma traduo do Novo Testamento para ela atrairia a simpatia de pessoas educadas:

    Ele sabia que os brmanes desdenhariam de um livro escrito na lngua vulgar. O que?, disse um

    deles quando recebeu uma verso em hindi, mesmo se esses livros tratassem do conhecimento

    divino, eles no representam nada para ns. O conhecimento de Deus contido neles, para ns, como

    leite dentro de recipiente feito com couro de cachorro, completamente poludo. Mas, o analista da

    Biblical Translations na ndia escreveu que a verso snscrita de Carey foi bem recebida pelos

    brmanes.3

    Se o objetivo da boa recepo fosse alcanado, a converso do povo hindu ao

    cristianismo seria facilitada, conforme acreditava Carey. De fato, ele notou que o snscrito 2 "the work could now be extended to all the languages of which Sanskrit is the parent" (NEILL, 1985:195). 3 He well knew that the Brahmans would scorn a book in the language of the common people. "What," said one who was offered the Hindi version, "even if the books should contain divine knowledge, they are nothing to us. The knowledge of God contained in them is to us as milk in a vessel of dog's skin, utterly polluted." But, writes the annalist of Biblical Translations in India, Carey's Sanskrit version was cordially received by the Brahmans. (SMITH, 2004: 190).

  • 17

    possua o mesmo status ocupado pelo latim na idade medieval, enquanto lngua de cultura e

    at mesmo como lngua coloquial, ainda que restrita a uma elite sacerdotal. Conforme

    observa Macdonell:

    Assim, embora o snscrito clssico fosse, no princpio, um dialeto literrio e, num sentido, artificial, seria errneo descartar completamente seu carter de lngua coloquial. O snscrito, conforme j mencionado, at mesmo nos dias atuais falado na ndia, bem como escrito, por brmanes eruditos inclusive para propsitos comuns do cotidiano. A condio do snscrito, em resumo, tem sido (e continua sendo) semelhante do hebraico entre os judeus do latim na Idade Mdia. (McDonell, 1900, introduo).4

    Um fato curioso que, at onde temos conhecimento, a difuso do evangelho

    cristo teria sido, desde seu incio, um movimento popular e as tradues da Bblia no se

    destinavam a uma classe social especfica. De qualquer forma, o trabalho de Carey

    estabeleceu um modelo que grupos de missionrios posteriores, na ndia, adotariam no

    trabalho de traduo de textos sagrados5.

    Caractersticas gerais do Evangelho snscrito de Joo

    Em relao ao grego, que lhe serviu como texto referencial, o texto snscrito traz

    algumas novidades6. Uma novidade inicial observvel at mesmo por um leitor incipiente

    de snscrito a representao devangar, cujo trao visual marcante a disposio dos

    grafemas que d a aparncia de estarem pendurados em traos horizontais tais quais roupas

    penduradas num varal. Ainda no campo da forma, nota-se que o texto snscrito, em relao

    4 Thus, though classical Sanskrit was from the beginning a literary and, in a sense, an artificial dialect, it would be erroneous to deny to it altogether the character of a colloquial language. It is indeed, as has already been mentioned, even now actually spoken in India by learned Brahmans, as well as written by them, for every-day purposes. The position of Sanskrit, in short, has all along been, and still is, much like that of Hebrew among the Jews or of Latin in the Middle Ages. (A History of Sanskrit Literature). 5 HOOPER: A further consequence of the tradition established by Carey was the formation of the Bible Translation Society in 1840, as an important auxiliary of the Baptist Missionary Society. pgina 22, 2o. pargrafo. 6 O texto grego utilizado por ns o de Westcott e Hort (1949). Embora no se trate de uma edio crtica, houve necessidade de consultar outra edio apenas com relao ao exemplo de nmero 3, devido a uma traduo inesperada de Carey, que discordava da edio grega utilizada por ns. Recorremos, ento, publicao que registra as variantes conhecidas de algumas passagens do Evangelho de Joo (SWANSON, 1995: 08). O texto snscrito o publicado por The Bible Society of India, em 1808, que utiliza o sistema de escrita devangar, o qual tem sido o mais adotado para representao do snscrito desde a segunda metade do sculo dezenove (HOOPER, 1963: 24).

  • 18

    ao grego, prima por uma sistematizao maior no tocante disposio esttitica.

    Frequentemente, Carey d subttulos a algumas sees que, no texto grego, aparecem sem

    um aviso de seu contedo. Assim, ele fragmenta o captulo em subsees. Exemplo:

    yuviaye yohanasya skyadnam |

    Apresentao do testemunho de Joo em relao a Jesus.

    Este subttulo anuncia o versculo dezenove, sendo que, no texto grego, no h um

    anncio. Ao acrescentar um subttulo, Carey aparenta guiar o leitor para o teor da seo que

    se aproxima e, assim, antecipar um sentido atravs do anncio o testemunho de Joo. O

    subttulo, que poderia dar ao texto um charme de literatura indiana de expresso snscrita,

    reorganiza o texto do Evangelho e o transcria, por apresentar uma informao nova.

    Carey tambm modifica, por vezes, a forma textual, criando lokas dsticos

    formados por 32 slabas e que so tpicos da literatura de expresso snscrita em vez de

    manter a forma prosaica do original, expediente de que tratamos no exemplo nmero 1

    (ocorrncias de domesticao). Alm da mudana na forma de apresentao, nota-se uma

    sensvel mudana estilstica, relativa ordem dos elementos constituintes da orao (SOV,

    sujeito-objeto-verbo) que, no snscrito, adotada de forma mais regular, diferentemente da

    koin que prefere a ordem SVO. Dessa forma, ao passo que o texto grego tende a uma

    aproximao do portugus, pela semelhana na disposio dos sintagmas, o snscrito se

    distancia de ambos grego e portugus. Alm disso, de um modo geral, Carey tende a

    apresentar um texto com uma aparncia mais literria, com o emprego de construes

    participiais, caracterstico do snscrito clssico, o que colabora para tornar seu o texto mais

    formal. Finalmente, para dar conta de aplicar as desinncias de caso, bem como eliminar

    combinaes fonolgicas no previstas para o snscrito, Carey sanscritiza os nomes de

    origem hebraica, como exemplos: Yeus (< ), para Jesus; Nikdmas (<

    ), para Nikodemos; Moin (< ), para Moiss. s vezes, a

    sanscritizao de nomes hebraicos chega a criar palavras que poderiam ficar ininteligveis

    at mesmo para um leitor de snscrito proficiente que no estivesse familiarizado com

    nomes bblicos, conforme o adjetivo moita, mosaico (exemplo nmero 11).

    Finalmente, aps uma leitura guiada por nosso critrio de seleo, conforme

    exposto no prximo captulo, isolamos 17 exemplos como amostra para realizar nosso

  • 19

    trabalho. Na realidade, o nmero de exemplos seria sensivelmente maior. No entanto, para

    evitar a repetio de casos semelhantes, optamos por no apresentar todos, o que estenderia

    sem necessidade esta dissertao.

  • 20

    CAPTULO 1. CONTEXTUALIZAO

    Nesta seo objetivamos apresentar um panorama da trajetria de William Carey,

    tradutor de snscrito e autor do texto snscrito do Novo Testamento, objeto de estudo da

    presente dissertao. Embora o foco de nosso trabalho seja apresentar nossas reflexes a

    partir de um recorte do texto snscrito de Carey, juntamente com sua matriz referencial, o

    texto grego, julgamos pertinente localizar o autor historicamente.

    Uma apresentao de William Carey pode ser justificada pelo carter pioneiro at

    onde temos informao de nosso trabalho de pesquisa. Por um lado, corremos o risco de

    cometermos um sacrilgio, do ponto de vista imanentista, por dispensar algum tratamento

    figura do autor, quando, de fato, deveramos concentrar nossa ateno na produo deixada

    por ele. Por outro, a iniciativa pode ser vlida por estarmos lidando com um autor no

    muito conhecido e cuja produo ainda permanece carente de uma resposta crtica,

    sobretudo em lngua portuguesa, pois no encontramos abordagem crtica alguma sobre a

    traduo snscrita da Bblia, embora o texto tenha sido publicado h mais de dois sculos

    (1808). Dessa forma, uma contextualizao pode ajudar um leitor ainda no familiarizado

    com o trabalho de Carey, a conhecer as circunstncias nas quais o texto foi produzido e a

    quem era destinado.

    Alm disso, de se esperar que o anncio de um texto snscrito do Novo

    Testamento possa causar algum estranhamento, pois, quem tem uma noo do que a

    literatura de expresso snscrita, pelo menos em linhas gerais, poderia julgar que ela, assim

    como a grega ou outras literaturas clssicas, seria uma produo estagnada no tempo e

    limitada apreciao de geraes futuras. Normalmente, as lnguas clssicas, na academia,

    so abordadas sob a perspectiva de decodificao e de, no mximo, traduo e subseqente

    tratamento crtico. Partindo-se deste pr-juzo e levando-se em conta que a lngua snscrita

  • 21

    possui, tambm, seu carter clssico, a ideia de uma produo de literatura de expresso

    snscrita em pleno sculo dezenove poderia ser recebida, no mnimo, com alguma surpresa.

    1.1. William Carey: De Paulerspury Serampore, ndia

    O trabalho de traduo de Carey era parte integrante de um plano missionrio muito

    mais amplo, que inclua, at mesmo, a atuao missionria na implantao de profundas

    reformas sociais, uma necessidade que ele expressava abertamente em sua An Enquiry into

    the Obligations of Christians to use Means for the Conversion of the Heathens7. Com

    efeito, sua trajetria tambm marcada por sua atuao como educador e reformador

    social, pois, segundo sua viso, seria inevitvel provocar profundas transformaes sociais

    para sustentar o trabalho evangelizador.

    Inicialmente, faremos uma apresentao do autor explicitando sua origem,

    orientao religiosa e formao lingstica. A apresentao desses fatores importante para

    se ter uma noo das motivaes de Carey. Centraremos nossa apresentao na construo

    da imagem do Carey como tradutor, evidenciando seu comprometimento com uma misso

    evangelizadora que objetiva, a transmitir, sobretudo, o modo de vida civilizado europeu,

    considerado modelar naquele momento.

    1.1.2. A Inglaterra de William Carey

    Era o final do sculo dezoito e o Imprio Britnico ocupava um lugar de destaque

    no cenrio colonial, mantendo possesses na sia, frica e Amrica. A riqueza era

    racionalmente extrada das colnias, o imprio gozava de slida prosperidade e havia

    suficiente matria-prima, destinada a manter uma revoluo nos meios de produo, a qual

    estava para comear. No entanto, a Inglaterra de Carey ainda mantinha-se essencialmente

    rural, pois no havia estradas de ferro, por exemplo, as quais se tornariam elementos

    7 CAREY, William. In: An Enquiry into the Obligations of Christians to use Means for the Conversion of the Heathens. Impresso e distribudo por Ann Ireland. Leicester. 1792.

  • 22

    corriqueiros, integrantes da vida moderna, somente na segunda metade do sculo dezenove.

    A Primeira Revoluo Industrial, caracterizada pelas mquinas a vapor cones dessa etapa

    estava em estado embrionrio. A Inglaterra dependia sobremaneira de uma estrutura

    colonial a qual, no entanto, gradualmente, comea a se fragmentar, com a independncia

    das colnias, cujo marco seria a independncia dos Estados Unidos, em 4 de julho de 1776.

    Era um mundo que, visto desse modo, aos poucos, se desintegrava. Desintegrava-se, aos

    poucos, no plano poltico e tambm no religioso, pois, comeam a ganhar relevncia os

    dissidentes batistas, que exerceriam influncia decisiva sobre Carey, contribuindo para que

    ele se envolvesse com a causa missionria.

    William Carey nasceu em 17 de agosto de 1761, em Paulerspury, uma pequena vila

    no interior da Inglaterra, no Condado de Northamptonshire, durante o reinado de George

    III. Era o mais velho entre os cinco filhos de Edmund e Elizabeth Carey, que trabalhavam

    como teceles na citada localidade, a qual se tornaria famosa, principalmente, por ter sido a

    terra natal de Carey, o homem que lanaria as bases de uma atividade missionria

    sistemtica que tomaria propores internacionais e lhe renderia o epteto de O Pai das

    Misses. Portanto, tratava-se de um lugar singelo nas entranhas da Inglaterra de George III

    e, apesar da sensvel transformao que os meios de produo sofreriam com a chegada da

    Revoluo Industrial, ainda assim Paulerspury permaneceria como uma pacata vila de

    teceles at a chegada da Segunda Guerra Mundial.

    Desde ento, no aconteceram sensveis mudanas. Atualmente, Paulerspury

    mantm seu status de uma pequena vila, que conta com uma escola, um pub e um

    restaurante. Quem tiver a oportunidade de visit-la, poder conhecer a choupana onde

    Carey teria nascido, que foi demolida e substituda por um memorial construdo em sua

    homenagem8.

    1.1.3. A formao lingstica de Carey e a criao da Sociedade Batista Internacional

    Carey recebeu uma educao bsica em sua infncia, o que era uma realidade

    comum para algum oriundo de sua condio social e que vivia num momento histrico

    8 http://www.puryend.co.uk/history.html

  • 23

    caracterizado, sobremaneira, pela pouca mobilidade social. A tendncia natural era que os

    filhos nascidos na vila de Carey reproduzissem o papel ocupado pelos pais no cenrio

    profissional a que, normalmente, no exigia uma educao demorada. Se, por um lado,

    Carey estava limitado por um determinismo social e at mesmo histrico, sua condio de

    menino pobre foi compensada pelo esforo pessoal em adquirir mais educao. Ainda na

    infncia, j demonstrava interesse pelas cincias naturais, sobretudo a botnica, uma

    inclinao que o acompanharia pelo resto de sua vida, e uma marca dela est na criao do

    Jardim Botnico de Serampore, na ndia, que, durante mais de meio sculo, foi um dos

    mais importantes da sia Meridional (SMITH, 2004: 06).

    Em seu quarto ele mantinha uma modesta biblioteca formada com uma quantidade

    razovel de livros, se considerarmos as dificuldades daquele tempo, sendo muitos deles

    emprestados. Um exemplo de seu esforo registrado por Smith:

    "Eu preferia ler livros de cincias, histria, expedies, etc., invs de outros. Romances e peas no me agradavam e eu os evitava assim como fazia com os livros de religio, talvez pelo mesmo motivo. Gostava mais de narrativas de aventuras e isso me fez ler o Progresso do Peregrino com avidez, embora sem um propsito definido.9.

    Naquela poca, uma educao prolongada ainda era privilgio de poucos

    aristocratas que podiam, por exemplo, contratar algum tutor (ou alguns) para educarem seus

    filhos. Concomitantemente, a educao, de uma forma ou de outra, tambm era um encargo

    deixado para instituies religiosas, como as igrejas e mosteiros, os quais abriam uma

    possibilidade para quem desejasse alguma educao, embora limitada a noes de latim e

    treinamento para canto em coral, segundo Williams10. De qualquer forma, apesar de alguma

    facilitao oferecida pela igreja, a educao ainda continuava no limite do elementar e, em

    lugares afastados como a vila de Carey, quem possua um treino acima da mdia, poderia

    ocupar a posio de professor de alguma escola da congregao local, o que deixava um

    espao para a atuao de religiosos autnomos como educadores. De modo geral, a

    educao era marcada pela presena de instituies religiosas que contavam com clrigos

    9 Para esta citao em portugus segue abaixo o texto referencial, em ingls. Assim como esta, as outras tradues a partir do ingls sero de nossa autoria: I chose to read books of science, history, voyages, etc., more than any others. Novels and plays always disgusted me, and I avoided them as much as I did books of religion, and perhaps from the same motive. I was better pleased with romances, and this circumstance made me read the Pilgrim's Progress with eagerness, though to no purpose." (SMITH, 2004:07). 10 Williams, Raymond. In: The Long Revolution. Page 129. London, 1961.

  • 24

    educados para a funo de schoolmasters, um papel social que Carey ocuparia durante doze

    anos, paralelamente ao seu trabalho como sapateiro, ofcio em que se iniciou aos dezesseis

    anos, pela interferncia do pai, e no qual se manteria at os vinte oito anos, dividindo o

    tempo entre o ensino, os sermes e o trabalho noturno na sapataria.

    Aos vinte anos, aps a morte de seu patro, T. Old (o dono da sapataria), Carey se

    casa com Dorothy Placket, irm da viva de T. Old, acumulando a responsabilidade de sua

    nova famlia e o negcio da sapataria.

    Ele no vivia mais em Paulerspury, tendo transferido seu negcio para a vila de

    Piddington, juntamente com sua famlia. Ao lado das responsabilidades, Carey mantinha

    seu estudo regular de grego, latim e hebraico na oficina onde trabalha, qual Smith se

    refere como Careys College. Seu aprendizado de grego, por exemplo, era marcado por

    uma compreenso, talvez emprica, de que era necessrio criar situaes de exposio para

    melhorar sua proficincia e ele o fazia diligentemente. Antes de fazer seus sermes, por

    exemplo, ele tinha o hbito de estudar o mesmo trecho da escritura em grego, latim e, s

    vezes, em hebraico, o que causava grande impacto em sua audincia e dava um ar de

    autoridade ao seu discurso. Smith nota:

    O segredo de seu poder, que cativava aldees e artesos de Northamptonshire, vinha de seu hbito de estudar um trecho da Escritura, que era lido todas as manhs em suas devoes dirias. Ele estudava cada trecho em hebraico, grego e latim. Esta era a faculdade de Carey.11

    Apesar de ser reconhecido e respeitado por sua erudio, Carey ainda passava por

    dificuldades pessoais, pois o que recebia da comunidade batista local para ensinar na escola

    da regio onde morava, no era suficiente para manter sua famlia (SMITH, 2004: 30).

    Apesar disso, ele continuava aproveitando seu tempo na oficina para o estudo de idiomas.

    Ao sentar-se em sua mesa para trabalhar com calados, tinha o costume de, segundo

    registra Smith, manter algum livro aberto sua frente:

    Ele nunca se sentava em sua oficina sem um livro diante dele. Depois de carregar malas cheias com sapatos recm fabricados para entregar aos clientes nas cidades vizinhas, quando retornava, com mais couro para fazer sapatos, ainda retomava seus estudos, de forma organizada, no final do dia.12

    11 The secret of his power which drew the Northamptonshire peasants and craftsmen to the feet of their fellow was this, that he studied the portion of Scripture, which he read every morning at his private devotions, in Hebrew, Greek, and Latin.This was Careys college. (SMITH, 2004:20).

  • 25

    No entanto, Carey no estudava absolutamente sozinho, porque, nos arredores onde

    vivia, ocasionalmente encontrava clrigos que possuam uma educao mais avanada do

    ele e tirava proveito, dirimindo suas dvidas. Entre esses homens educados, h a figura de

    Thomas Scott, famoso pelo trabalho entitulado A Commentary On The Whole Bible. Carey

    havia conhecido Thomas Scott no tempo em que trabalhava na sapataria de T. Old, seu

    segundo patro. pertinente notar que, foi sob a influncia de nomes como Thomas Scott,

    que Carey aprofunda sua convico de que deveria tomar para si o compromisso de usar

    seu talento lingstico no servio religioso.

    No entanto, o trabalho missionrio foi um campo de atuao no qual Carey foi se

    envolvendo apenas gradualmente, a partir de sua converso, e a atuao como pregador

    marcando a fase inicial de sua vida. Na poca, os membros da Igreja Batista eram

    conhecidos como dissidentes e, nascido em famlia calvinista, Carey no era um religioso

    ativo, at que aderiu ao grupo batista, aos dezoito anos, quando desenvolve interesse pelo

    servio missionrio. A partir da e do conseqente envolvimento com a Igreja Batista, ele

    passa a organizar sua vida intelectual considerando a possibilidade de atender a ao

    compromisso cristo de levar o Evangelho aos povos considerados pagos. O compromisso

    de evangelizao era uma responsabilidade que Carey freqentemente colocava em pauta

    quando se reunia com seus colegas batistas. Para apoiar suas intenes, que eram

    assumidamente proselitistas, Carey costumava fazer referncia Grande Comisso13

    12 He never sat on his stall without his book before him, nor did he painfully toil with his wallet of new-made shoes to the neighbouring towns or return with leather without conning over his lately-acquired knowledge, and making it for ever, in orderly array, his own. (apud SMITH, 24 e 25). 13 Entende-se como Grande Comisso uma instruo que teria sido dada por Cristo no momento de sua apario, aps a ressurreio, aos seus discpulos. Tratar-se-ia de um apelo que se estenderia a todo membro da f crist para levar o Evangelho a todos os povos do mundo e tal apelo tambm tem se tornado um princpio essencial do evangelismo. (MCQUERRY, Maureen Doyle. In: Some Terms of Evangelical Christianity. American Speech, Vol. 54, No. 2 (Summer, 1979), pp. 148-151. Duke University Press.) A passagem mais conhecida sobre a Grande Comisso aparece no Evangelho de Mateus:16 , 17 , . 18 ,.19, , 20 . 16 E os onze discpulos foram para uma montanha na Galilia, que Jesus lhes havia indicado, 17 e vendo-o, o adoraram, mas ficaram em dvida. 18 E se aproximando Jesus, disse-lhes, foi dada a mim toda a autoridade

  • 26

    porque no havia consenso, at mesmo entre os religiosos dissidentes, os batistas ingleses

    daquele tempo, de que uma misso internacional, conforme Carey vislumbrava, deveria ter

    lugar. Tal nfase num ativismo religioso, notadamente, proselitista, uma marca

    caracterstica de movimentos ps-mileniaristas14. Carey costumava apresentar propostas,

    aos seus correligionrios, de enviar misses de evangelizao para alm do mundo cristo,

    o que, no entanto, era recebido com ceticismo e freqentemente era desencorajado. Uma

    declarao de um dos membros da Igreja Batista com influncia hiper-calvinista, segundo

    Smith, d uma ideia das dificuldades que Carey encontrava:

    s um pobre entusiasta por fazer tal pergunta. Com certeza, nada pode ser feito antes de outro Pentecostes, quando uma efuso de dons milagrosos, incluindo o dom das lnguas, colocar em movimento a comisso de Cristo, assim como aconteceu na primeira vez.15

    No entanto, se, por um lado, a desaprovao por parte dos conservadores

    paradoxalmente batistas dissidentes causava desnimo, por outro, atravs da resistncia da ala conservadora, Carey sentiu a necessidade de desenvolver uma argumentao e

    mostr-la de forma elaborada, atravs de um documento que publicaria posteriormente, em

    1792. Ele o apresentaria to logo fosse oportuno, para conseguir alguma simpatia para uma

    causa que lhe parecia, at ento, solitria, e atrair o interesse de membros influentes da sociedade batista, objetivando conseguir o apoio institucional para um trabalho missionrio

    em terras estrangeiras. O documento foi intitulado An Enquiry into the Obligations of

    que h no cu e sobre a terra. 19 Sendo enviados [por mim], portanto, ensinai a todos os povos, imergindo-os nas guas em nome do Pai, do Filho e do Esprito Santo. 20 Ensinando-os a manterem tudo que ordenei a vs: e eu estou entre vs todos os dias at a consumao do mundo.Optamos por fazer a traduo do grego com o propsito de mant-la, tanto quanto possvel, mais prxima do original. Outras tradues do texto grego, alm dos exemplos do corpus, tambm sero de nossa autoria. 14 "Postmillennialists believe that the Kingdom of God will be realised in the present age by the preaching of the Gospel and by the saving influence of the Holy Spirit in the hearts of individuals, and that at an unknown time in the future, the whole world will be Christianised. They also believe that Christ will return at the end of the so-called Millennium, an epoch of unknown length, marked by justice and peace ... The Millennium, according to the Postmillennialist view, is a Golden Age at the end of the present dispensation, the Age of the Church " (BOETTNER, Loraine. Die Sicht des Postmillennialismus. In: Das Tausendjhrige Reich: Bedeutung und Wirkichkeit. Vier Beitrge aus evangelikaler Sicht. Hg. von Robert Clouse. Margurg: Francke Buchandblun, 95 ff. (retranslated from the German). 1984; similar Loraine Boettner, The Millennium, op. cit., pp. 4 (and 14). P & R Publishing 1957. 15 You are a miserable enthusiast for asking such a question. Certainly nothing can be done before another Pentecost, when an effusion of miraculous gifts, including the gift of tongues, will give effect to the commission of Christ as at first. (Smith, 2004:31).

  • 27

    Christians to use Means for the Conversion of the Heathens, aborda, principalmente, trs

    pontos.

    O primeiro constitui um mapeamento do estado religioso do mundo, de acordo com

    fontes disponveis. Os nmeros sugeriam que havia considervel campo, sobretudo na sia

    foco do interesse de Carey para a converso de novos adeptos. Como um missionrio empenhado em sua convico, era natural que, em momento algum, Carey considerasse que

    o povo em perspectiva de converso estivesse numa condio melhor, diferente daquela

    que seria proporcionada pelo abrigo da f crist16. Ele escreve:

    Na verdade, o estado incivilizado dos pagos, ao invs de ser uma objeo contra a apresentao do evangelho a eles, acaba sendo um argumento a favor. Ns podemos, como homens, como cristos, ouvir que uma grande parte de nossos semelhantes cujas almas so to imortais quanto as nossas e capazes, assim como ns mesmos, de embelezar o evangelho e contribuir atravs do discurso, escrita ou prtica para a glria do nome de nosso redentor e o bem de sua igreja esto cobertos pela ignorncia e o barbarismo? Podemos ouvir que eles esto sem o evangelho, sem governo, sem leis, sem artes, sem cincias, e no nos mobilizarmos para introduzir entre eles sentimentos de homens e de cristos?

    O segundo ponto do documento recorda o sucesso obtido por evangelizadores do

    passado, o que poderia contribuir como uma fonte de motivao17. Finalmente, ressalta a

    viabilidade de futuros empreendimentos evangelizadores. Ele nota que, devido intensa

    relao comercial existente entre a Inglaterra e as terras colonizadas, onde residiam os

    brbaros, haveria toda possibilidade de conseguir passagens gratuitas em navios

    cargueiros. Afinal, havia uma relao comercial com a ndia viabilizada por navios

    construdos para serem cada vez mais velozes e bem equipados, proporcionando viagens

    seguras para terras cada vez mais distantes. Indiscutivelmente, j se tratava de um mundo

    que se globalizava lentamente e que, ainda marcado pelas relaes coloniais,

    concomitantemente, oferecia facilidades tambm para um trabalho missionrio nessas terras 16 After all, the uncivilised state of the heathen, instead of affording an objection against preaching the gospel to them, ought to furnish an argument for it. Can we as men, or as Christians, hear that a great part of our fellow-creatures, whose souls are as immortal as ours, and who are as capable as ourselves of adorning the gospel and contributing by their preachings, writings, or practices to the glory of our Redeemers name and the good of his church, are enveloped in ignorance and barbarism? Can we hear that they are without the gospel, without government, without laws, and without arts, and sciences; and not exert ourselves to introduce among them the sentiments of men, and of Christians? (Smith, 2004: 36) 17 SECONDLY, As to their uncivilised and barbarous way of living, this can be no objection to any, except those whose love of ease renders them unwilling to expose themselves to inconveniences for the good of others. It was no objection to the apostles and their successors, who went among the barbarous Germans and Gauls, and still more barbarous Britons! (Smith, 2004: 34)

  • 28

    distantes. Para concluir, Carey cita um trecho de uma carta do apstolo Paulo aos Romanos

    (Romanos, 12-15)18, no qual insiste na necessidade de enviar missionrios a terras

    estrangeiras ainda no convertidas ao cristianismo, a citao constituindo um artifcio que

    dava um ar de autoridade proposta.

    Havia, com efeito, incutida no programa evangelizador, uma agenda civilizatria a

    ser implementada. No se tratava de um trabalho inocente de salvao de almas. Este

    trabalho religioso tencionava, paralelamente, ao plano de converso de nativos, uma

    transformao profunda no cenrio social, pois a atuao noutras esferas daria legitimidade

    aos grupos missionrios, gerando aceitao e algum poder poltico para eles entre os futuros

    convertidos. pertinente notar que, nesse momento histrico, se acreditava que, de forma

    mais veemente, se comparada contemporaneidade, que o homem branco europeu,

    sobretudo o homem branco cristo, possua o compromisso de levar os valores

    considerados civilizados ao mundo no-cristo, que, por coincidncia, inclua o mundo j

    colonizado e, portanto, j submetido a algum controle19. Assim, o estabelecimento de

    sistemas coloniais, certamente era um fator que facilitava o trabalho de expanso da f

    crist. Munidos desta convico, que pressupunha tambm uma crena no compromisso

    civilizador do homem europeu, Carey e seus colegas estenderam seus trabalhos alm do

    escopo religioso. Trataremos desse assunto mais adiante.

    Enquanto a partida para a ndia no era uma realidade, Carey tratava de reunir o

    mximo de informao possvel sobre aquela regio, j possuindo um mapeamento

    considerado detalhado, levando em conta as facilidades disponveis no final do sculo

    dezoito para produzir-se informao. Ao consultar a Northampton Mercury, provavelmente, 18 For there is no difference between the Jew and the Greek...How shall they preach except they be sent? (SMITH, 2004:32 ).

    19 Thomas Macaulay, o ento membro do Conselho do Governador Geral na ndia, teria exercido considervel influncia no sistema de educao indiano, como pioneiro no estabelecimento da lngua inglesa como lngua de educao. Ele escreve: In one point I fully agree with the gentlemen to whose general views I am opposed. I feel with them that it is impossible for us, with our limited means, to attempt to educate the body of the people. We must at present do our best to form a class who may be interpreters between us and the millions whom we govern, a class of persons Indian in blood and colour, but English in tastes, in opinions, in morals and in intellect. To that class we may leave it to refine the vernacular dialects of the country, to enrich those dialects with terms of science borrowed from the Western nomenclature, and to render them by degrees fit vehicles for conveying knowledge to the great mass of the population. (MACAULAY, Thomas. In: Minute on Education. 2nd February 1835. Bureau of Education. Selections from Educational Records, Part I (1781-1839). Edited by H. Sharp. Calcutta: Superintendent, Government Printing, 1920. Reprint. Delhi: National Archives of India, 1965, 107-117).

  • 29

    uma das revistas geogrficas mais antigas de publicao semanal da Inglaterra20, ele teria

    ficado ciente, atravs das representaes grficas, as quais destacavam a extenso do

    domnio cristo, que era sinalizado atravs de legendas de mapas polticos que apareciam

    na revista, o que ressaltava, naturalmente, um espao ainda no dominado pelo

    cristianismo.

    A essa altura, aps a publicao de seu texto (An Enquiry), o prximo passo para

    concretizao do plano missionrio seria a criao de uma instituio para apoiar a

    empreitada. Embora o prprio Carey estivesse se preparando para conduzir o trabalho,

    ainda assim precisava de apoio institucional. Este apoio veio como resposta,

    principalmente, ao seu texto. A publicao do documento teria causado uma impresso

    considervel entre os membros de sua congregao e, em 2 de outubro de 1792, em

    Kettering, Northamptonshire, aps uma reunio entre os dissidentes batistas, formada a

    The Particular [Calvinistic] Baptist Society for Propagating the Gospel among the

    Heathen. Um passo significativo, que alavancaria a partida de Carey para a ndia21 havia

    sido dado.

    1.1.4. Serampore, ndia.

    Carey e John Thomas, um mdico que tambm participava da misso de

    evangelizao, conseguem passagens em um navio mercante dinamarqus e, em junho de

    1793 partem de Copenhagen, acompanhado o primeiro de sua esposa, Dorothy Plaket, e

    dois filhos, chegando em novembro do mesmo ano costa indiana. Dessa forma, Carey foi

    o primeiro religioso da misso batista a dar incio a um trabalho de expanso da f crist e

    no possua um predecessor sua espera. Apesar disso, ele j havia delineado alguns

    princpios, os quais foram minuciosamente apresentados em An Enquiry e seriam tomados

    20 WALKER, Frank Deaville. In: William Carey. Pginas 22-23, 50-51; Ernst A. Payne, "Introduction", op. cit., p. xii. 1980. 21 Seguem os dois pargrafos iniciais da ata da reunio: 1. Desirous of making an effort for the propagation of the gospel among the heathen, agreeably to what is recommended in brother Careys late publication on that subject, we, whose names appear to the subsequent subscription, do solemnly agree to act in society together for that purpose. 2. As in the present divided state of Christendom, it seems that each denomination, by exerting itself separately, is most likely to accomplish the great ends of a mission, it is agreed that this society be called The Particular [Calvinistic] Baptist Society for Propagating the Gospel among the Heathen. (SMITH, 2004:52).

  • 30

    como uma referncia para outros empreendimentos missionrios cristos em todo mundo.

    Dentre esses princpios, dois so apontados por Smith como cardeais:

    Um missionrio deve ser um companheiro e portar-se como um assemelhado do povo para o qual ele foi enviado; e (2) um missionrio deve tornar-se, o mais depressa possvel, nativo, autossuficiente, empreendedor e identificado com o servio da misso e dos convertidos.22

    A princpio, ele se estabelece com a famlia em Malda, uma rea rural que ficava

    nas proximidades de Calcut e era administrada pela Companhia Britnica das ndias

    Orientais. Porm, aps cinco anos, retiram-se para Serampore, que ficava em territrio

    dinamarqus. Inicialmente, Carey tentara fixar-se com sua famlia em Malda, onde

    pretendia cultivar a terra e iniciar uma comunidade composta por famlias de missionrios,

    um princpio que ele prprio apresentara em An Enquiry. Porm, a situao fundiria local

    que se aproximava de moldes medievais europeus, devido concentrao da propriedade

    o levou a ter um trabalho assalariado para assegurar sua manuteno23. Sem alternativa para manter sua famlia, acaba aceitando o trabalho de administrador de uma fbrica de

    tintas para tecido. Assim, enquanto se encarrega da fbrica de tintas, seus colegas se

    dedicavam ao trabalho de evangelizao, cujo principal ponto de apoio passou a ser a

    remunerao recebida por Carey. Chegam a fundar escolas que correm paralelas com

    alguma atividade de evangelizao, onde era permitido.

    Visto que poderia prejudicar as relaes comerciais, o trabalho missionrio era

    proibido na ndia britnica (HOOPER, 1963: 17). Afinal, uma mudana nas prticas

    religiosas da populao nativa poderia implicar tambm uma mudana de hbitos de

    consumo, o que no era interessante para as relaes comerciais. Assim, o empreendimento

    era feito em nome de um grupo religioso particular, sem nenhum apoio governamental ou

    de qualquer outra instituio, o que implica que deveria ser auto-sustentvel e justifica, por

    22A missionary must be one of the companions and equals of the people to whom he is sent; and (2) a missionary must as soon as possible become indigenous, self-supporting, self-propagating, alike by the labours of the mission and of the converts. (apud SMITH, 2004: 79) 23Experience soon taught him that, however correct his principle, Malda is not a land where the white man can be a farmer. So he became, in the different stages of his career, a captain of labour as an indigo planter, a teacher of Bengali, and professor of Sanskrit and Marathi, and the Government translator of Bengali. (SMITH, 2004: 80).

  • 31

    exemplo, o negcio com a fbrica de tintas, alm da fundao de escolas que seriam pontos

    de apoio para manuteno da atividade missionria.

    1.2. Professor de snscrito e tradutor

    Estabelecido em Serampore graas hospitalidade dinamarquesa, em 1798 Carey j

    estava na ndia por tempo suficiente para ter um domnio satisfatrio do idioma local, o

    bengals, e havia contratado um pita24 para aprimorar sua proficincia no snscrito, j

    sendo capaz de ler os textos no original e discuti-los com os brmanes (SMITH, 2004:

    220). Assim, conforme registra Smith, naquele ano Carey dedicava uma considervel parte

    de seu tempo ao aprendizado de snscrito:

    Em 1798 escreve: Constantemente, tarde me ocupo de assuntos seculares; leitura tarde, escrita, estudo de snscrito, etc.; e, noite, da traduo das escrituras, com o auxlio de uma lamparina... s vezes, saio para pregar, o que mais comum. Nunca me desvio dessa regra.25

    Dessa forma, no comeo do sculo dezenove, ele j havia alcanado tamanha

    proficincia no idioma que, alm de Colebrooke, segundo Smith, seria o nico ocidental

    capaz de manter uma conversa em snscrito com os brmanes locais, um fato que chamou a

    ateno das autoridades britnicas da Bengala, de modo que, em meados de 1801, ele

    convidado para preencher o posto de professor de snscrito e bengals no Fort Williams

    College,26 um fato que lhe conferiu respeitabilidade e lhe permitiu focalizar seus esforos

    no campo lingstico. Ele ocuparia esse posto por trinta anos, durante os quais se dedicaria

    tambm traduo de clssicos da literatura snscrita, como os picos Rmyana e

    Mahbhrata, alvos de seu interesse por conterem fundamentos do imaginrio hindusta:

    24 Homem erudito ou professor. 25 In 1798 he wrote:--I constantly employ the forenoon in temporal affairs; the afternoon in reading, writing, learning Sanskrit, etc.; and the evening by candle light in translating the Scriptures...Except I go out to preach, which is often the case, I never deviate from this rule. (SMITH, 2004: 220). 26 O Fort Williams College foi fundado pelo ento Governador-geral da ndia. Objetivava o ensino das lnguas indianas aos jovens cadetes do exrcito britnico e a projeo da ndia na modernidade atravs do avano nas cincias e artes. (HOOPER, 1963: 15).

  • 32

    J li considervel parte do Mahbhrata, um poema pico escrito no mais belo estilo e, com toda razo, equiparado a Homero; como a Ilada deste, ele era considerado apenas uma grande conquista do talento humano eu poderia t-lo como uma das primeiras criaes literrias do mundo; mas, infelizmente, ele a base da f de milhes dos filhos dos homens e, enquanto tal, s pode produzir o mximo de desgosto.27

    Dessa forma, a nomeao para o posto de professor proporcionou-lhe um auxlio

    financeiro significativo e disponibilidade de tempo, permitindo que pudesse impulsionar o

    trabalho de traduo que tambm coordenava. Assim, atuava em duas frentes de trabalho

    que lidavam com traduo de textos. Uma era constituda por uma pequena equipe com

    base no Fort Williams, que se ocupava da traduo de textos clssicos snscritos para o

    ingls e da elaborao de gramticas e dicionrios. Em Serampore havia outra equipe,

    formada por seus companheiros ingleses, que se concentrava na traduo da Bblia. Ele

    tambm empregava paita(s) locais no trabalho de traduo e, embora o grupo de

    Serampore contasse tambm com elementos nativos, ele, pessoalmente, acompanhava a

    edio, revisando-a minuciosamente a partir dos originais (SMITH, 2004: 257). A principal

    conquista dos tradutores de Serampore foi a publicao da Bblia em bengals, no ano de

    1801, e em snscrito, em 1808, ambas realizadas por Carey (HOOPER, 1963: 25).

    Embora o seu objetivo no tenha sido alcanado, a saber, uma converso em massa

    do povo indiano, facilitada por uma boa recepo da traduo snscrita, o texto teve uma

    boa repercusso e, em 1907, conforme registra Hooper, houve uma proposta para uma

    edio revisada, devido crescente demanda, com permisso da Bible Translation Society

    (HOOPER, 1963: 24).

    27 I have read a considerable part of the Mahabarata, an epic poem written in most beautiful language, and much upon a par with Homer; and it was, like his Iliad, only considered as a great effort of human genius, I should think it one of the first productions in the world; but alas! it is the ground of faith to millions of the simple sons of men, and as such must be held in the utmost abhorrence. (SMITH, 2004: 101).

  • 33

    CAPTULO 2

    AS OPES DO TRADUTOR

    No processo tradutrio podemos assumir que o tradutor lida constantemente com

    duas tendncias: faz a traduo respeitando a alteridade do texto, deixando sinalizado que o

    texto em leitura trata-se de um texto estrangeiro e, quando houver necessidade, acrescenta

    informaes extras, como notas de p de pgina, por exemplo. Neste caso, segundo Venuti,

    o texto constitui uma traduo estrangeirizante. Outra tendncia privilegiar a fluncia,

    que pode proporcionar um conforto ao leitor, diminuindo seu esforo intelectivo e

    tornando, conseqentemente, a presena da intermediao do tradutor, praticamente,

    imperceptvel. As duas tendncias tm provocado, ao longo da histria da traduo, uma

    reao da crtica especializada e Venuti, por exemplo, ao criticar tradutores modernos, faz

    uma defesa de uma traduo estrangeirizante (Venuti, 1986: 190). Segundo Venuti, a

    estrangeirizao do texto traduzido, evidenciada por escolhas lexicais ou por um recurso

    semitico, pode permitir ao leitor identificar as peculiaridades culturais presentes no texto

    estrangeiro:

    A traduo deve ser vista como um tertium datum, que soa estrangeiro para o leitor, mas que possui uma qualidade opaca que a impede de aparentar como que uma janela transparente para o autor ou texto original: esta opacidade um uso da lngua que resista uma leitura fcil de acordo com padres contemporneos que deixar visvel a interveno do tradutor, seu confronto com a natureza aliengena do texto estrangeiro.28

    Dessa forma, uma traduo estrangeirizante pode demandar um esforo maior da

    parte do leitor, o que pode tornar a leitura menos confortvel. Se, por vezes, a traduo 28 Translation must be seen as a tertium datum which sounds foreign to the read but has an opaque quality that prevents it from seeming as transparent window on the author or original text: it is that opacity a use of language that resists easy reading according to contemporary standards that will make visible the intervention of the translator , his confrontation with the alien nature of a foreign text. (VENUTI, 1986: 190).

  • 34

    resulta na diminuio da transparncia do texto no que tange ao acesso da informao

    rpida e disponvel, ao mesmo tempo pode deixar transparente a figura do outro,

    permitindo uma apreciao de nunces culturais. Portanto, um texto tratado dessa forma

    pelo tradutor, conforme sustenta Venuti, pode permitir uma troca entre duas culturas, a

    saber, a cultura do autor e a cultura de um dado leitor. Por outro lado, uma traduo

    domesticadora, pode dificultar uma troca possvel. Embora a domesticao, na contramo

    da estrangeirizao, seja um recurso frequentemente utilizado para tornar o texto mais

    inteligvel e, assim, abrandar os espaos vazios nele presentes, que so naturais no processo

    intercultural de traduo, pode servir uma agenda ideolgica mantida pela cultura

    domesticadora, a qual objetivaria evitar a interao com uma cultura estrangeira

    impregnada no texto. Dessa forma, embora, obviamente, a traduo seja um recurso de

    representao, e, como tal, pode correr o risco de beirar a condio de metfora, quando

    domesticada, a distncia entre o leitor e o texto pode ficar ainda maior. Afinal, um texto

    domesticado pode transmitir a impresso de que o texto estrangeiro deixou de existir,

    perdendo seu charme ou ar de estrangeiro, preteridos por uma suposta necessidade de

    conforto e transparncia (VENUTI, 2002: 17).

    A crtica de Venuti s tradues domesticadoras, no entanto, direcionada,

    principalmente, s tradues feitas para o ingls a partir de lnguas ditas minoritrias. Com

    efeito, em termos quantitativos, os nmeros indicam uma desproporo entre o volume

    sensivelmente inferior de tradues feitas para o ingls a partir de lnguas minoritrias e o

    caminho inverso, do ingls para lnguas minoritrias, ficando evidente a predominncia,

    segundo o volume traduzido, de uma indstria cultural anglfona. O quadro abaixo, que

    abrange a quantidade de ttulos traduzidos em quatro dcadas, ilustra essa desproporo

    (VENUTI, 1995: 13):

    01000020000

    3000040000

    500006000070000

    1950 1960 1970 1980 1990

  • 35

    Neste trabalho, embora, tenhamos utilizado as noes de domesticao e

    estrangeirizao propostas por Venuti, no percorremos o mesmo caminho em defesa de

    uma abordagem estrangeirizadora ou que ficasse sensvel dignidade do texto estrangeiro,

    uma vez que temos como objeto de anlise um texto snscrito traduzido no comeo do

    sculo dezenove, a partir do grego e direcionado para um leitor especfico. Dessa forma, os

    provveis sinais de domesticao ou estrangeirizao encontrados no texto snscrito de

    Carey no aparentam servir a uma indstria cultural local, que ficaria vigilante em relao

    entrada de valores estrangeiros pela leitura. No nos parece haver tal monitoramento em

    relao ao texto de Carey.

    Por outro lado, apesar de no haver uma viglia, da parte indiana, que interrompesse

    um fluxo de informaes vindas de uma cultura estrangeira, ou que, melhor dizendo,

    articulasse uma filtragem ideolgica do texto, h a presena, no entanto, de um esprito

    colonizador na figura do ativista religioso. Este pode, por vezes, conduzir o texto, de forma

    tendenciosa, para atrair empatia de um dado leitor. Nesse sentido, a traduo de Carey

    poderia mostrar sinais de domesticao que, conforme j explicamos, suavizaria a sensao

    da presena do tradutor.

    No entanto, em nossa anlise, no encontramos, exclusivamente, provveis traos

    de domesticao voltada para, presumivelmente, atrair empatia do leitor. Apontamos nos

    exemplos selecionados provveis traos de domesticao, como tambm de

    estrangeirizao, os quais poderiam prejudicar a fuso de horizontes ou compreenso

    textual experimentada por um leitor de Carey. Dessa forma, constatamos a existncia de

    uma fora centrfuga que, provavelmente, impele o fazer tradutrio a oscilar entre o

    privilegiar a fluncia e a manter a alteridade do texto.

    No entanto, nem sempre o fazer tradutrio oscila entre a inevitvel tendncia de

    privilegiar a domesticao ou a estrangeirizao. Tal oscilao seria uma caracterstica da

    traduo que tem como objeto um texto literrio. Para textos de natureza tcnica exigido,

    um tratamento domesticador. Por exemplo, espera-se que um manual de instruo de um

    eletrodomstico seja o mais claro e fluente possvel. Neste caso, uma apreciao da

    alteridade do texto estrangeiro no seria algo produtivo. Observa Venuti:

    A traduo tcnica fundamentalmente artificial, devido s exigncias de comunicao: durante o

    periodo do ps-guerra, esse tipo de traduo serviu como apoio pesquisa cientfica, negociao

  • 36

    geopoltica e transaes econmicas, especialmente na medida em que corporaes multinacinais

    procuravam expandir o mercado estrangeiro e, requerendo, assim, tradues fluentes, rapidamente

    inteligveis de tratados internacionais, contratos, informao tcnica e manuais de instruo.29

    Ora, se com relao traduo de obras literrias existe alguma liberdade que

    permite que se produza um texto que se aproxime ou se afaste do referencial, preservando

    ou no sua alteridade, quando se trata de um texto religioso, existe uma defesa da fluncia,

    que implica na domesticao, como no caso do que se espera da traduo tcnica. Nida,

    consultor da American Bible Society, defende que:

    O tradutor precisa ser uma pessoa que possa afastar as cortinas das diferenas culturais e lingsticas, para que as pessoas possam ver claramente a relevncia da mensagem original30

    De uma perspectiva estritamente confessional, que privilegia a mensagem religiosa,

    o problema que a traduo desse tipo de texto levanta comparvel ao que cerca, por

    exemplo, a traduo de uma bula de remdio, pois do mximo de transparncia que

    decorre sua efetividade. No fundo, o original manifesta uma to elevada importncia que

    obscurece inteiramente a tarefa do tradutor.

    Entretanto, considerando que as religies so manifestaes inseridas em culturas

    particulares, no contexto das quais ideias, prticas e smbolos ganham sentido, no se pode

    pretender que seja possvel atingir um nvel de transparncia capaz de afastar as cortinas

    das diferenas culturais. Num certo sentido, as cortinas podem ser mais ou menos

    afastadas, mas jamais arrancadas, deixando o original inteiramente vista.

    No caso de culturas muito diferentes, ressignificar um texto religioso termina por

    ser um trabalho extremamente difcil. Tomando como exemplo o Novo Testamento, como

    faz-lo em relao s prticas judaico-crists como o batismo e a circunciso, ou conceitos

    como o de pecado? Se, de um lado, no se pode simplesmente domesticar todas as ideias e

    instituies estrangeiras presentes no texto de partida, sob o risco de descaracterizar a

    29 Tecnical translation is fundamentally constrained by the exigencies of communication: during the postwar period, it hs supported scientific research, geopolitical negotiation, and economic exchange, especially as multinational corporations seek to expand foreign markets and thus increasingly require fluent, immediately intelligible translations of international treatises, legal contracts, technical information, and instruction manuals (VENUTI, 1995: 41). 30 the translator must be a person who can draw aside the curtains of linguistic and cultural differences so that people may see clearly the relevance of the original message (VENUTI, 1995: 21).

  • 37

    prpria mensagem religiosa, a opo por uma estrangeirizao radical seria igualmente

    inadequada, pois se revelaria prejudicial para o proselitismo, que se impe como o objetivo

    da prpria traduo.

    Com relao traduo snscrita de Carey, acrescenta-se mais um desafio. Uma

    vez que ela se destina, como vimos, aos brmanes, familiarizados com uma alta, arcaica e

    respeitvel literatura religiosa, questes estilsticas tambm passam a ser relevantes, ou

    seja, o texto exige um tratamento especificamente literrio, em que a cortina no pode

    simplesmente ser afastada, mas precisa ser igualmente trabalhada.

    2.1. Traduo e hermenutica.

    O primeiro contato do leitor com o Evangelho snscrito de Joo, levando em conta,

    por exemplo, o carter polissmico do joanino (traduzido como vda, ato fala,

    palavra), pode apresentar uma considervel dificuldade que, inevitavelmente, leva ao

    terreno movedio da experincia hermenutica. Hans Georg Gadamer, em sua magna opus

    Verdade e Mtodo, parte da crtica a Schleimacher, por este ltimo propor uma

    possibilidade de recuperar as condies nas quais o autor teria produzido um texto e, de

    posse destas condies, recuperar sua inteno. Segundo ele, a tentativa de recuperar a

    inteno autoral nesses termos implicaria na necessidade de criar uma condio para

    comunho mstica de almas (GADAMER, 1999: 437-438).

    Para Gadamer, no haveria necessidade de recuperar a inteno do autor, o que

    tambm tornaria desnecessrio recuperar uma possvel interpretao de um leitor

    hipottico. Ele justifica sua posio defendendo que tanto autor como leitor estariam atados

    a uma historicidade e tanto que a produo do texto literrio, bem como sua contraparte, a

    ressignificao ou produo de um novo sentido por parte do leitor, sofreriam influncia da

    histria. Ou seja, quando o leitor fala e faz perguntas ao texto, haveria uma historicidade

    ou uma conjuntura de fatores histricos que determina o pensar, o que, indiretamente,

    falaria atravs do leitor e, por conseguinte, influenciaria sua compreenso de um texto

    literrio, uma pea teatral, uma escultura etc. Segundo esse ponto de vista, a capacidade

  • 38

    interpretativa humana que valeria tanto para autor como para leitor historicamente

    afetada (GADAMER, 1999: 451):

    A conscincia da histria efeitual em primeiro lugar conscincia da situao hermenutica. No entanto, o tornar-se consciente de uma situao uma tarefa que em cada caso reveste uma dificuldade prpria. O conceito de situao se caracteriza pelo fato de no nos encontrarmos diante dela e, portanto, no podemos ter um saber objetivo dela. Ns estamos nela, j nos encontramos sempre numa situao, cuja iluminao a nossa tarefa, e esta nunca pode se cumprir por completo.

    Portanto, o primeiro pressuposto que devemos ter em mente o abandono da

    pretenso de tentar recuperar a inteno do autor e formular hipteses quanto recepo do

    texto por parte de um leitor hipottico no caso de Carey, um indiano culto do incio do

    sculo dezenove. Por conseguinte, cumpre considerar o texto como uma entidade

    transcendental, que poderia possibilitar leituras e releituras novas, ressignificando a si

    mesmo ao longo da histria, alm do domnio do autor e leitor. A par da possibilidade de

    ressignificao do texto ao longo da histria fator que o torna o uma propriedade comum

    e legitima nossa condio de leitores de snscrito do texto de Carey, no podemos deixar

    de considerar a funo dos preconceitos como elementos da construo de significao e

    ressignificao, respeitando a alteridade ou at mesmo uma dignidade do texto. Entende-

    se pr-conceito, aqui, como um pr-entendimento sobre algo relativo ao texto, antes mesmo

    de iniciar sua leitura, o que implica em afirmar que um texto literrio, uma escultura ou

    uma pea de teatro so compreendidos na medida em que existe uma pr-compreenso

    sobre o objeto de compreenso. Quando se compreende, dessa maneira, o papel positivo do

    pr-conceito no fenmeno da compreenso possvel asseverar que ela seria determinada

    ou at mesmo delimitada por nossos pr-conceitos. Embora, no senso comum, a palavra

    preconceito remeta a uma ideia negativa, Gadamer, recuperando o sentido do vocbulo,

    relaciona-o com a jurisprudncia, que utiliza o pr-juzo em decises jurdicas

    (GADAMER, 1999: 407):

    Uma anlise da histria do conceito mostra que somente na Aufklrung que o conceito do preconceito recebeu o matiz negativo que agora possui. Em si mesmo, preconceito (Vorurteil) quer dizer um juzo (Urteil) que se forma antes da prova definitiva de todos os momentos determinantes segundo a coisa. No procedimento jris-prudencial um preconceito uma pr-deciso jurdica, antes de ser baixada uma sentena definitiva. Para aquele que participa da disputa judicial, um preconceito desse tipo representa evidentemente uma reduo de suas chances. Por isso, prjudice, em francs, tal como praejudicium, significa tambm simplesmente prejuzo, desvantagem, dano.

  • 39

    Na leitura do snscrito de Carey, nos servimos de nossos pr-conceitos para

    tecermos consideraes sobre as escolhas do tradutor e para agruparmos referncias de

    literatura snscrita que as corroborassem. De acordo com uma pr-leitura (ou familiaridade)

    dos termos, expresses snscritas e forma textual empregados por Carey, houve momentos

    em que concordamos ou no com as suas escolhas. Entende-se aqui a noo de

    concordncia como um momento durante o trato dialtico tomando a experincia da

    leitura como um dilogo com o texto , em que os horizontes de inteleco de autor e leitor

    se fundem, produzindo a fuso de horizontes. Os horizontes, para Gadamer, constituem

    possibilidades do ver e a fuso deles, seria o momento feliz da compreenso, que pode

    tomar lugar durante a experincia de leitura: as possibilidades tanto do autor como do leitor

    se coincidem, ampliando a viso. Para Gadamer, o processo de compreenso se constitui

    num dilogo e, assim como fazemos nele, deixamos o texto falar por si mesmo e vamos

    lanando mo de nossos pr-conceitos ou pr-leituras, contrapondo-os fala do texto,

    ficando espera do momento da concordncia (GADAMER, 1999: 555):

    A dialtica de pergunta e resposta que descobrimos na estrutura da experincia hermenutica nos permitir agora determinar mais detidamente a classe de conscincia que a conscincia da histria efeitual. Pois a dialtica de pergunta e resposta que pusemos a descoberto permite que a relao da compreenso se manisfeste como uma relao recproca, semelhante de uma conversao. verdade que um texto no nos fala como faria um tu. Somos ns os que o compreendemos, os que temos de traz-lo fala, a partir de ns. No entanto, j vimos que este trazer--fala, prprio da compreenso, no uma interveno arbitrria, nascida de origem prpria, mas est referida, enquanto pergunta, resposta latente no texto.

    No prximo captulo, nossas consideraes dos exemplos selecionados, foram

    norteadas, principalmente, por: a) a possibilidade de ressignificao do texto atravs da

    histria, o que pode legitimar nossa posio enquanto leitores do texto snscrito, destinado

    inicialmente ao brmane contemporneo de Carey; b) o entendimento do papel dos pr-

    conceitos e c) a noo da fuso de horizontes. Esta ltima determinou, em alguns

    momentos, nossa avaliao se a escolha do tradutor teria ou no produzido um

    entendimento provavelmente apropriado.

  • 40

    CAPTULO 3

    O LGOS E O VDA

    Ao nos debruamos sobre os textos grego e snscrito do Evangelho de Joo,

    vislumbramos a possibilidade de levantar, obviamente, questionamentos na direo da

    questo interpretativa, pois, pelo fato do texto snscrito ser uma traduo e, portanto, uma

    representao, seria natural que surgisse desconfiana quanto viabilidade de uma

    interpretao produtiva, visto que William Carey, ao publicar o texto snscrito, tentava

    fazer uma ponte entre dois mundos, a saber, o mundo cristo e o mundo da cultura

    hindusta. Com efeito, o Evangelho de Joo, parte da literatura crist de expresso grega,

    acarreta problemas devido s camadas de sculos desde sua produo e transmisso,

    interpretao, interpolaes, alm das possibilidades de ressignificao do texto atravs da

    histria.31 O segundo, o mundo constitudo pela cultura hindusta, carregado de

    peculiaridades que, por vezes, soariam exticas ao olhar cristo, principalmente ao de

    Carey, a comear, inclusive, pelo prprio conceito de Deus.

    O passo seguinte foi iniciar uma leitura detida da traduo snscrita do Evangelho

    de Joo, sublinhando trechos que poderiam, segundo as noes de aproximao ou

    distanciamento da alteridade do texto estrangeirizao ou domesticao , compor um

    corpus de anlise.

    Foi feita uma seleo inicial e isolamos possveis objetos de considerao. Cada

    exemplo que pode conter um perodo ou mais do corpus grego e snscrito foi editado

    em dois momentos. Num primeiro momento, dispusemos as sentenas, fragmentadas em

    sintagmas menores, dentro de tabelas, com traduo interlinear abaixo de cada sintagma.

    31 Toda atualizao na compreenso pode compreender-se como uma possibilidade histrica do compreendido. Na finitude histrica da nossa existncia est o fato de que sejamos conscientes de que, depois de ns, outros compreendero cada vez de maneira diferente. (GADAMER, 1999: 549).

  • 41

    Em seguida, dispusemos uma traduo para cada exemplo, que fosse a mais prxima

    possvel dos textos grego e snscrito, sem prejudicar a clareza.

    Organizado dessa maneira, o corpus de que nos ocupamos ficou composto por

    dezessete ocorrncias que nos parecem significativas dos problemas enfrentados por Carey.

    Evidentemente, trata-se de um conjunto limitado, que, todavia, aborda as questes que

    podem ser consideradas as mais difceis do ponto de vista das diferenas culturais e das

    possibilidades de, na traduo, prover a referida fuso de horizontes interpretativos.

    Neste ponto, portanto, passamos ao cerne de nossa proposta. Aps a seleo, edio

    dos exemplos e isolamento dos objetos de considerao, procedemos ao levantamento de

    questionamentos quanto questo interpretativa.

    Cada objeto foi isolado do exemplo devido aparente preservao ou no de uma

    alteridade do texto grego, percebida pelas escolhas do tradutor ao gerar o texto snscrito.

    Partindo dessa premissa, procedemos problematizao que tange questo interpretativa.

    Dessa forma, percorremos o momento grego que teria determinado o uso de um termo ou

    expresso pelo autor de Joo, acessando a literatura crtica que contextualiza o emprego

    desses termos ou expresses32. Em seguida, foi considerado o momento snscrito, a partir

    das escolhas do tradutor Carey.

    Em princpio, houve necessidade de delimitar, a partir do momento snscrito que

    implica propor possibilidades de leitura do texto , as pretenses de nossa proposta, porque

    notamos que haveria dificuldade para coletar referncias devido insuficincia

    praticamente absoluta de material crtico sobre a traduo snscrita ao Evangelho de Joo.

    Em vista dessa limitao, recorremos aos pressupostos tericos antes expostos da teoria

    interpretativa, para sustentar nossas consideraes sobre escolhas de Carey.

    32 Informao sobre a contextualizao das escolhas do autor de Joo foi colhida, principalmente, do dicionrio teolgico do Novo Testamento (BROMILEY, Geoffrey W. In: Theological Dictionary of the New Testament. WM.B. Eerdmans Publishing Company Grand Rapids, Michigan, 1965.)

  • 42

    3.1. Procedimentos de estrangeirizao

    Os exemplos foram selecionados de acordo com provveis ocorrncias de

    estrangeirizao, seguidos de consideraes quanto a provveis conseqncias no tocante

    ressignificao do texto snscrito por parte de um leitor de snscrito.

    3.1.1. O divino

    ,

    ,

    .

    No comeo era o logos e o lgos estava

    junto de Deus

    e o lgos era Deus.

    No princpio, havia o lgos e o lgos estava junto de Deus; e o lgos era Deus. (Joo, 1:1)

    dau vda st, sa ca vda varbhimukha st | sa ca vda vara st | No princpio

    a fala era, e esta fala em harmonia Deus

    estava; e esta fala Deus era.

    No princpio, havia a fala e esta fala estava harmonizada com Deus; e a fala era Deus. Objeto de considerao: o snscrito vda (< vdas), palavra, ato de fala, em vda st,

    vertido a partir do grego .

    Antes de adentrarmos na considerao do termo snscrito e sua possibilidade de

    ressignificao, levando em conta o horizonte de um leitor de snscrito, convm apresentar,

    um panorama do contexto no qual se encaixavam o discurso joanino e sua escolha lexical

    por.

    Levando em conta a especulao helenstica em torno do , a produo

    intelectual sobre seu emprego no Novo Testamento, faremos um resumo da noo

    predominante em Flon de Alexandria, que, provavelmente teria influenciado o discurso

    joanino. Em seguida, apresentaremos pontos de distanciamento e aproximao entre o

    lgos joanino e o de Flon. Finalmente, analisaremos a proposta de traduo por vda,

  • 43

    palavra, uma noo predominante na leitura crist, e suas provveis impresses para um

    leitor de snscrito.

    Ocorrncias da palavra registram acepes de:

    a) conjunto, conforme ;

    b) contagem, clculo: , renda total;

    c) narrativa, fala: o satisfez com fala (BROMILEY, 1965:

    73, 74); e

    d) catlogo , [] soldados de uma lista 33.

    Afora esses sentidos ordinrios para , a especulao em torno deles encontra

    seu ponto de aproximao com o termo empregado pelo autor de Joo em Flon de

    Alexandria, um judeu helenizado, que fartamente lana mo do termo para interpretar a

    Torah, a tal ponto que o uso de em sua obra ultrapassa a cifra de mil e trezentas

    vezes (BROMILEY, 1965: 88), o que faz de Flon, provavelmente, o mair divulgador do

    entre judeus leitores de grego. Ao faz-lo, Flon rompe com a noo de

    predominante no mundo grego, que remetia ao movimento da razo humana que imprime

    seus efeitos no mundo, seja falando ou pensando. Assim, o grego tinha uma

    dimenso profana, em contraste com o de Flon ou , enquanto a palavra

    de Deus que dirigida ao ser humano (BROMILEY, 1965: 90).

    Provavelmente, movido por uma necessidade de apresentar um modelo que desse

    conta de conciliar Deus com o mundo manifesto, material ou , Flon

    encontra uma soluo notadamente dualstica, isto , que ainda mantm Deus, o ser

    transcendente, como entidade impoluta, portanto, distinta e separada de sua criao, aceita

    por Flon como inferior e inconcilivel com a pureza de Deus. E a criao, que abrange

    todos os seres vivos ( ), aceita como material e inferior a Deus, no poderia,

    segundo esse modelo, estar relacionada ao Deus transcendente e inatingvel. Assim, a

    imanncia de Deus manifestar-se-ia somente atravs de uma entidade em posio

    33 LIDDELL & SCOTT para o verbete .

  • 44

    intermediria, um elo entre Deus e . Este elo ,o de

    Deus, uma forma de anjo ou mensageiro divino, mediador entre Deus e os homens. Ao

    mensageiro divino caberia manter a harmonia csmica, o que coincide com a noo estica

    de (BROMILEY, 1965: 89). Porm, tanto no estoicismo, como no

    neoplatonismo, no h um personificado, conforme prope Flon. De fato, uma

    personificao do que se aproximasse do antropomorfismo no era uma

    ideia grega e tampouco judaica. Ainda que se especulasse, no mundo grego, sobre um

    princpio harmonizador e integrador, este ainda era apresentado como difuso em muitos

    . Tratava-se, pois, para os gregos, de um sem personalidade.

    Para Flon, o deveria ser um ente intermedirio, que unificasse todas as

    coisas criadas por Deus ao prprio Deus, o que sugere uma proposta de apresentar um

    unificador entre os mundos ideal e real. Provavelmente, ele teria sido influenciado pela

    ideia platnica que distinguia a matria imperfeita da realidade ideal perfeita. Dessa forma,

    os anjos que aparecem no Antigo Testamento so reconhecidos por Flon como o

    por Flon34.

    Portanto, o de Flon, antes presente na especulao grega enquanto elemento

    unificador e responsvel pela harmonia e integridade do , sofre uma metamorfose

    quando se personifica no , embora Flon no cogitasse haver um

    contato do com o mundo material e sensvel. O , que unificaria

    o Deus transcendente e o imanente, ainda permanece, paradoxalmente, transcendente ao

    mundo material sensvel. Dito de outra forma, o de Flon ainda no tocaria no

    mundo sensvel.

    Flon, no entanto, no estava isolado no mundo judaico ao especular sobre o

    , pois a ideia da palavra divina, enquanto princpio criador que teria originado o

    , j era conhecida entre os judeus35. Provavelmente, uma considerao tardia entre

    34 COPLESTON, Frederick. In: A History of Phlosophy. Volume 1, Continuum, 2003, pp. 458462. 35 Indeed, t