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eBook Olhares Plurais

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Olhares plurais para o cotidiano: gnero, sexualidade e mdia

Olhares plurais para o cotidiano: gnero, sexualidade e mdia

Organizadores Luis Antnio Francisco de Souza Bris Ribeiro de Magalhes Thiago Teixeira Sabatine Larissa Pelcio

Marlia - 2012

UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA FACULDADE DE FILOSOFIA E CINCIAS Diretora Profa. Dra. Maringela Spotti Lopes Fujita Vice-Diretor Dr. Heraldo Lorena Guida Copyright 2012, Conselho Editorial Conselho Editorial Maringela Spotti Lopes Fujita (Presidente) Adrin Oscar Dongo Montoya Ana Maria Portich Antonio Mendes da Costa Braga Clia Maria Giacheti Cludia Regina Mosca Giroto Marcelo Fernandes de Oliveira Maria Rosngela de Oliveira Maringela Braga Norte Neusa Maria Dal Ri Rosane Michelli de CastroFicha catalogrfica Servio de Biblioteca e Documentao - Unesp - campus de Marlia 045 Olhares plurais para o cotidiano: gnero, sexualidade e mdia / Larissa Pelcio ... [et al.] (organizadores). - Marlia: Oficina Universitria ; So Paulo : Cultura Acadmica, 2012 184 p. Inclui bibliografia

ISBN: 978-85-7983-279-6

1. Sexualidade. 2. Relaes de gnero. 3. Comunicao e cultura. 4. Mdia. 5. Pluralismo cultural. I. Pelcio, Larissa. II. Souza, Luis Antnio Francisco de. III. Magalhes, Bris Ribeiro de. IV. Sabatine, Thiago Teixeira. V. Ttulo CDD- 306.7

Editora afiliada:

Cultura Acadmica selo editorial da Editora Unesp

SUMRIOAPRESENTAO.........................................09 CONEXES Jovens, mdia e globalizao: desafios para uma sociedade democrtica Heloisa Pait............................................................16 DESAFIOS A gramtica do armrio: notas sobre segredos e mentiras em relaes homoerticas masculinas mediadas digitalmente Richard Miskolci.....................................................35 Transmisso, fluxos e desejos: pensando Amores on line Iara Beleli................................................................56 DOCUMENTAES Pesquisa, tica e notcia algumas questes sobre o noticirio da violncia sexual contra crianas e adolescentes Tatiana Savoia Landini Luiz Fabiano Zanatta............................................74 Vinde a mim as criancinhas: pedofilizao e a construo de gnero nas mdias contemporneas Jane Felipe..............................................................90 Quem so os autores e as autoras...... 178 Atos de coragem.Territrios e tenses entre travestis, imprensa e polcia numa cidade do interior de So Paulo. Thiago Teixeira Sabatine, Lus Antnio Francisco de Souza Bris Ribeiro de Magalhes............................... 162 sexualidades juvenis, mdia e aids Tiago Duque........................................................ 132 Sin tetas no hay paraso?: hacia una tica corporal transLatina Marcia Ochoa..................................................... 151 Como pode a mdia ajudar na luta pelo respeito diversidade sexual e de gnero? Leandro Colling................................................... 112 As fronteiras: lugares mveis, de deslocamento dos sujeitos diferenciados Rompendo os limites, buscando o no hegemnico Lidia Maria Vianna Possas....................................99

ApresentaoNa ltima dcada assistimos a um perceptvel aumento de estudos na rea de gnero e sexualidade no Brasil. Pesquisas realizadas em vrias disciplinas tm apresentado temas e objetos diversificados, adensando o debate no nvel terico e metodolgico. O mesmo interesse temtico tambm visvel nos estudos sobre comunicao e mdia, terreno no qual as preocupaes relativas identidade, corpo, raa, a partir dos estudos culturais, tm aportado importantes contribuies prticas. Este contexto de ampliao numrica dos estudos e da visibilidade de novos sujeitos e culturas sexuais tem, por outro lado, demandado maior interlocuo entre reas prximas, exigindo intensificao do dilogo entre as cincias sociais e a comunicao social. No intuito de promover esse debate necessrio, a presente coletnea rene pesquisas de diferentes reas de conhecimento que utilizam o aporte terico das cincias sociais, da teoria feminista e dos estudos culturais, entre outros, para pensar o lugar das relaes de gnero e sexualidades na produo miditica contempornea. Estas pesquisas foram apresentadas no I Seminrio Internacional Gnero, Sexualidade e Mdia: olhares plurais para o cotidiano, organizado Departamento de Cincias Humanas (FAAC/UNESP Bauru), Programa de Ps-graduao em Comunicao (FAAC/UNESP Bauru), Departamento de Sociologia e Antropologia, Faculdade de Filosofia e Cincias (FFC/UNESP- Marlia), Programa de Ps-graduao em Cincias Sociais (FFC/UNESP- Marlia), Observatrio de Segurana Pblica da Unesp/CNPq e Observatrio da Imprensa na Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicao (FAAC/UNESP-Bauru), entre os dias 06 e 07 de outubro de 2011. Os textos reunidos neste livro sistematizam os debates que marcaram o Seminrio, oferecendo s leitoras e leitores um conjunto frtil para reflexes, inspiraes tericas e questionamentos metodolgicos sobre comunicao e cultura. Estes tm sido termos largamente usados, permeando discusses em diversos campos do saber. Comunicao quanto cultura compem tambm o vocabulrio de senso comum. Se por um lado, esse uso sinaliza a centralidade das questes que se rela-

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cionam com essa vasta temtica, por outro obnubila as especificidades que cercam esses debates em termos conceituais, tericos e metodolgicos. Em uma sociedade atravessada por essa maquinaria fundamental, que se amplie campos de reflexo e debate para pensar sobre o funcionamento dessa produo, da circulao das mensagens, da recepo e nas resignificaes possveis pelas quais passam as afirmativas criadas. A mdia, em todos seus desdobramentos, tem se mostrado um poderoso campo de produo de conhecimento, assim como de manuteno e reproduo das convenes sociais sobre masculinidades, feminilidades, orientao sexual, alm de raa, classe e gerao. Enfim, os meios de comunicao refletem as profundas ansiedades de gnero que caracterizam a poca atual e trabalham com essas ansiedades. (CARVALHO; ADELMAN; ROCHA, 2007, p. 124). Responsvel por um imenso volume de trocas simblicas e materiais em dimenses globais, as narrativas miditicas so tambm pedagogias culturais capazes de cristalizar ou desestabilizar noes de gnero e sexualidade. Por outro lado, imprescindvel reconhecer a ampliao dos espaos de produo discursivas e imagticas provocadas, por exemplo, pela intensificao do uso das diferentes plataformas disponveis na internet. Esse contexto exige que o poder das mdias em instituir verdades e moldar o imaginrio social seja relativizado e que, se tome esse espao produtivo como segmentado, multifacetado e plural, para, assim, escaparmos das armadilhas tericas que tendem a engessar esse campo. Como alguns estudos j apontaram o discurso meditico na sociedade contempornea no apenas um espao de reproduo, mas tambm se apresenta como um lugar privilegiado de contestaes de prticas sociais naturalizadas. Assim, sexualidade, gnero, identidade so termos polticos em disputa cada vez mais presentes na mdia. Nos anos de 1960 as feministas provocaram uma virada epistemolgica ao proporem que o pessoal poltico, deslocando definitivamente para o campo do poder os debates sobre relaes entre homens e mulheres, o feminino e o masculino, a violncia domstica e as questes relativas sexualidade e o prazer. Como elementos constitutivos das subjetividades contemporneas, gnero, sexualidade e mdia tm pautado inquietantes questes na arena pblica. O que vem demandando a elaborao de um arsenal terico acurado para que possamos aprofundar os termos do debate, refinar conceitos e propor novas perspectivas metodolgicas capazes de operar com as variadas tecnologias de comunicao hoje disponveis e com os usos que as pessoas fazem desses recursos. Conside-

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rando, ainda, indagar qual tem sido o papel das diferentes tecnologias discursivas frente s desigualdades nas relaes sociais de gnero e dos direitos sexuais. Iniciamos a coletnea com a seo Conexes, na qual podemos dimensionar o impacto das novas tecnologias de comunicao nas relaes intersubjetivas, na constituio das afetividades contemporneas, assim como no modo como as geraes mais novas tem lidado com o poltico, o criativo e o associativo. Os contatos mediados por computador, somados agora portabilidade, possibilitam (com suas particularidades e problemas) novas sociabilidades, ao mesmo tempo em que, reiteram antigos valores, como mostram os textos de Iara Beleli e Richard Miskolci. O crescimento significativo da centralidade dos meios de comunicao na formao de movimentos sociais, estilos de vida e tendncias comportamentais, tm encontrado nos jovens potenciais consumidores, mas tambm mostram sua capacidade de produtores de mensagens que, de forma nunca antes vista, se espraiam pela rede. Conexes abre com o texto de Heloisa Pait, Jovens, mdia e globalizao: desafios para uma sociedade democrtica. Pait procura mostrar o potencial criativo que vem emergindo com o estreitamento dos laos entre os jovens a partir dos uso intensificado de computadores conectados. Ao conferir protagonismo aos jovens, a autora questiona a premissa social que os coloca como ameaa ordem, apontando o carter reacionrio e essencializado desses temores. De maneira disruptiva, o texto vai conectando saborosamente, Facebook, Beatles e velhas estrias de famlia s tramas do presente, quando jovens, exatamente por sua facilidade em criar laos, como acredita Pait, se valem da rede para estarem juntos, disseminando ideias e, de forma otimista, mas nunca ingnua, possibilidades de mudanas. Os espraiamentos das sociabilidades mediadas por computadores e cada vez mais por celulares conectados, entre outros aparatos portveis de comunicao alimentam novas tenses e arranjos interativos entre as pessoas que, em face destas experincias, desenvolvem modos particulares de lidar com a intimidade, o corpo e o desejo. As conexes amorosas e sexuais eclodem nas plataformas da internet, e atraem pessoas que encenam seus anseios marcadas pela interpelao dos regimes de visibilidade da sexualidade. Assim, Richard Miskolci, em A gramtica do armrio: notas sobre segredos e mentiras em relaes homoerticas masculinas mediadas digitalmente analisa as particularidades das interaes entre homens que se engajam em relaes homoerticas e que em face de suas vidas pblicas buscam o sigilo em relao aos seus desejos.

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As tecnologias miditicas possibilitam interaes sociais que pem em evidencia novos atores sociais, assim como reorganizam antigos estigmas relativos s prticas sexuais, mas que, incontestavelmente tm permitindo experimentaes da sexualidade em moldes diversificados. Neste sentido, questionando as conexes e as parceiras afetivas, amorosas e sexuais, Iara Beleli discute em Amores on line a maneira como as mulheres e os homens que procuram parceirias em sites de relacionamentos idealizam e constroem uma narrativa de si. A publicao de perfis pessoais em plataformas de encontros, redefinem suas aspiraes e desejos em relao s demandas preexistentes por intimidade. A autora percebe que na busca pelo par perfeito, h produo de um mercado amoroso que intersecta marcadores de diferena na valorizao e desvalorizao de sujeitos. Na seo Documentaes esto reunidos artigos que trabalham com diversos tipos de mdias como importantes fontes de pesquisa para se pensar as mudanas e permanncia, as reprodues e reinscries dos temores sociais relativos a expresso da sexualidade. Tatiana Savoia Landini e Luiz Fabiano Zanatta, no artigo Pesquisa, tica e notcia algumas questes sobre o noticirio da violncia sexual contra crianas e adolescentes, travam discusso a respeito da representao da violncia sexual contra crianas e adolescentes na mdia impressa. O texto sublinha a forma sensacionalista e, por vezes, pouco confivel pela qual alguns setores da imprensa vm tratando casos que envolvem violncia sexual contra crianas e/ou adolescentes. Da a preocupao dos autores com o uso pouco crtico dessas fontes acionadas para subsidiar pesquisas acadmicas. Mais que reproduzir nmeros e estatsticas fragilmente construdas o artigo sugere que nos procuremos em entender o porqu dessa produo e reproduo. A partir da nalise de farto material, Landini e Zanatta mostram que a produo de algumas manchetes e a reverberao de dados pouco consistentes, nestes casos, atendem aos temores cada vez mais presentes relativo a agresses de carter sexual contra menores. Se os discursos miditicos condenam a violncia sexual, refletindo anseios coletivos frente sexualidade infanto-juvenil, a mdia tambm quem ajuda a explorar a experimentao do desejo das crianas e adolescentes, sobretudo das meninas, estimulando-as a moldar seus corpos eroticamente, argumenta Jane Felipe no artigo Vinde a mim as criancinhas: pedofilizao e a construo de gnero nas mdias contemporneas. O artigo problematiza os jogos de internet disponveis para meninos e meninas, e como estas tecnologias oferecem cenrios e roteiros

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que colaboram para a construo de relaes de gnero que tornam estes corpos vulnerveis, e ao mesmo tempo, instiga novas representaes e experimentaes do corpo infanto-juvenil. Um dos problemas das anlises das relaes de gnero e do enfoque na imprensa como fonte documental para desvelar o cotidiano, a restrio a ideia de papis coerentes e estveis na qual faz supor uma clara fronteira entre homens e mulheres. A pesquisadora Ldia Maria Vianna Possas no artigo As fronteiras: lugares mveis, de deslocamento dos sujeitos diferenciados. Rompendo os limites, buscando o no hegemnico assinala a necessidade de desnaturalizar a ideia de uma identidade fixa de gnero, que refora esteretipos e prticas de excluso. A autora analisa narrativas de imprensa que circulam no sculo XX numa cidade do interior de So Paulo, com respeito s mulheres que enfrentam a viuvez e seu cotidiano. Assim, traz o desafio de pensarmos nas mltiplas identidades femininas em uma dimenso da cultura, em posicionamentos mveis e enfrentamentos, e no esgaramento das fronteiras de sujeitos diferenciados. Os textos reunidos na seo Desafios discutem os formatos narrativos empregados em diferentes meios de comunicao, procurando destacar em que medida esses textos expressam o modo como nossa sociedade tem transmitido e perpetuado sua cultura quando se trata de temas como sexualidade e gnero. Um dos acendimentos possveis nesse sentido tem sido, justamente, problematizar as formas como se tem abordado esses temas e pensar os novos espaos disponveis para a construo do nosso senso de estar no mundo. Se vivemos em uma era imagtica e de imperativo ptico como algumas vertentes da teoria da comunicao tm proposto, torna-se necessrio aprofundar nossas reflexes sobre produo e recepo de produtos culturais diversos que, mais do que divertir, tambm atuam como tecnologias pedaggicas. O debate enfrentado nessa sesso procura, ainda, considerar as possibilidades desconstrutivas e transgressivas que a produo, apropriao e resignificao dessas narrativas podem proporcionar. Assim, Leandro Colling, lana a questo, Como pode a mdia ajudar na luta pelo respeito diversidade sexual e de gnero?. O autor assiste programas de televiso e nos oferece uma anlise dos diferentes caminhos que os estudos da comunicao mantm com a produo e pesquisa dos mesmos. Olhares desatentos elogiariam estas produes como convergentes na construo do respeito s diferenas, entretanto, a crescente visibilidade da luta das chamadas minorias, demanda outras metodologias de anlide crtica dessas produes. Colling mostra

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que os modelos clssicos de anlise no oferecem ferramentas capazes de desvelarem as perspectivas heteronormativas que orientam, ao fim, as produes mdiaticas. Buscar novos caminhos metodolgicos nos ajudaria a fazer estudos mais atendos s liberdades e ao potencial emancipatrio da politizao da sexualidade e do gnero. Temas como gneros/sexualidades, estigma/abjeo, adolescncia/juventude, desejos/prazeres, veem pautando as produes e os processos de comunicao de servios pblicos que investem na preveno das DST/Aids. A fim de compreender as potencialidades e limites das abordagens de preveno, Tiago Duque, em Transmisso, fluxos e desejos: pensando sexualidades juvenis, mdia e aids trata de elaboraes miditica junto aos jovens, realizadas no Programa Municipal de DST/Aids de Campinas (SP), apontando os processos de criao e construo de aes preventivas voltadas para o pblico em questo. Duque analisa a forma como esse tipo de mensagem lana feixes de poder sobre o corpo, regulando as verdades sobre os sujeitos, e indicando condutas seguras para uma vida produzida por seus preceitos. Assim, o autor problematiza o desejo como potencial agenciador da comunicao, eos limites das abordagens tradicionais que buscam dirigir essa clientela a partir de uma racionalidade tcnica que parece desconsiderar a densidade das vivncias cotidianas. A apropriao e resignificao das narrativas miditicas tambm podem proporcionar a incorporao e tica em vrios locais contemporneos. Marcia Ochoa no artigo Sin tetas no hay paraso?: hacia una tica corporal transLlatina, mostra como um produto cultural, como a novela colombiana que d nome ao artigo, pode sofrer inesperadas apropriaes, gerando instigante campo para estudos de recepo. Ochoa encontra nos/nas Translatinas, uma ONG sediada em So Francisco (EUA) que atende s necessidades de travestis/transexuais imigrantes sua comunidade interpretativa. Assistindo com esse pblico os 28 episdios da srie, a autora desloca o olhar etnogrfico do campo da epidemiologia, das questes sanitrias e se prope a diversificar as polticas de conhecimento nos estudos das experincias de mulheres trans latino-americanas. Percebendo que o prazer da audincia e das discusses geradas a cada encontro tinha estreita relao com as trajetrias de vida daquelas pessoas, e o quanto podemos aprender sobre esse universo, alargando o campo dos estudos de recepo e de gnero/sexualidade. Por fim, Thiago Teixeira Sabatine, Lus Antnio Francisco de Souza e Bris Ribeiro de Magalhes analisam, em Atos de coragem. Territrios e tenses entre travestis, imprensa e polcia numa cidade do interior de So Paulo, como os dis-

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cursos das mdias, o poder de polcia e a arena poltica mais ampla de uma cidade do interior de So Paulo interagem com as travestis, e o modo como na perspectiva dos prprios sujeitos, estas relaes criam agenciamentos e resistncias pelos espaos da cidade. Lanar olhares plurais para o cotidiano significa no contexto desta publicao expressar inquietaes frente s questes de gnero e sexualidade, politizao do desejo, demandas por direitos e a relao de todas estas questes com as mdias. Significa tambm pensar nos imbricamentos dos processos de comunicao com o cotidiano. Esta coletnea manifesta nosso desejo de estreitar e compartilhar conhecimentos e resultados de pesquisa apostando na interdiciplinaridades, em abordagens crticas, mas profcuas, a fim de alargar e adensar esse campo de estudos. Neste contexto, a coletnea amplia a sensibilidade de todo o complexo meditico aos influxos de novas ideias, a fim de propor um novo referencial para pensarmos nossa relao com as mdias. Por fim, esta coletnea se torna possvel graas ao importante apoio das instituies que financiaram o seminrio, como a Fundao de Amparo a Pesquisa do Estado de So Paulo (FAPESP) Fundao para o desenvolvimento da Unesp (Fundunesp) e, sobretudo Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior (CAPES), que custeou a edio deste livro. Alm do inestimvel envolvimento das pesquisadoras e dos pesquisadores, grupos de estudos e os Programas de Ps-graducao em Cincias Socias (Unesp - Marlia) e Comunicao (Unesp Bauru) que estiveram direta ou indiretamente presentes no evento. Por outro lado, esta publicao no seria possvel sem a inestimvel colaborao do Laboratrio Editorial e do Escritrio de Pesquisa da FFC. Larissa Pelcio Luis Antnio Francisco de Souza Bris Ribeiro de Magalhes Thiago Teixeira Sabatine (Organizadores)

RefernciasCARVALHO, Marlia Gomes de; ADELMAN, Miriam; ROCHA, Cristina Tavares da Costa. Apresentao. Revista Estudos Feministas, Florianpolis, v. 15, n. 1, p. 123-130, 2007.

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ConexesJovens, Mdia e globalizao: Desafios para uma sociedade democrtica Heloisa PaitLembro aqui os jovens Pietro Roveri, colaborador da Wikipdia, e Ilya Zhitomirskiy, fundador do Diaspora, que faleceram antes de completar sua contribuio comunicao global democrtica. INTRODUO

A grande pergunta presente ao longo deste artigo a seguinte: o que devemos fazer para que os jovens de hoje possam realizar seu enorme potencial, possibilitado pelas transformaes nos meios de comunicao e pelo estreitamento de laos entre culturas diversas? De que forma o poder associativo e desbravador dos jovens pode se tornar algo produtivo, que no agrida instituies democrticas nem se esvaia em lutas contra poderes opressivos? Quais os obstculos que nossas sociedades encontram para que usemos plenamente esse momento de transformao? Para isso, abordamos os desafios democrticos de trs ngulos distintos: o da sociabilidade jovem, o dos meios de comunicao globais e, finalmente, o das tenses polticas geradas por transformaes contemporneas. Na primeira parte do artigo, examinamos as relaes entre linguagem, sociabilidade e transformao, destacando a capacidade dos jovens de criar teias sociais que se sobrepem s relaes sociais preexistentes. Os movimentos jovens colocam para os cidados e instituies dilemas ticos importantes: que mudanas devem ser bem recebidas? Que prticas devem ser reprimidas? preciso uma reflexo sobre o que est em jogo nas novas sociabilidades jovens para que possamos dar respostas coerentes e respeitadas. Na segunda parte, resgatamos algumas reflexes dos estudos da comunicao para melhor compreender a natureza dos novos meios de comunicao, seu

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potencial catalizador de idias e prticas e seu papel na construo de novos espaos. Destacamos a importncia dos jovens no apenas em usufruir esses novos espaos, mas tambm em sua construo. Tambm fazemos um breve histrico das relaes entre meios de comunicao, globalizao e protesto, usando exemplos icnicos como a Semana de 22 e o Maio de 68 onde uma cultura jovem global mediada j aparecia, ainda que no to ampla como a de hoje. Finalmente, exploramos algumas tenses originadas pelo intenso processo social descrito. Relacionamos as tentativas de controle da imprensa, no Brasil e no exterior, com um profundo desconforto com a construo de redes sociais que no passem pelos poderes constitudos, sejam poderes polticos ou simblicos. Abrimos um parntese para falar de casos de censura concretos, que tiveram como alvo a imagem do jovem global e autnomo - na verdade, da jovem autnoma -, revelando assim as paixes por detrs de muitos discursos contrrios mdia ou globalizao. Identificando na universidade um lugar privilegiado para estimular inovaes e acolher conflitos, afirmamos que essa instituio, no Brasil, poderia fazer muito mais. Terminamos o artigo com uma breve reflexo sobre os protestos jovens globais e colocando uma pergunta para o caso brasileiro: ser que o descompasso entre as possibilidades abertas aos jovens hoje e suas efetivas realizaes gerar frustrao ou aquele incmodo saudvel que os impulsionar - e a todos ns - mais alm?

Criando linguagens

Brincadeira de criana Li uma vez a tese de que as crianas que criaram a linguagem humana, brincando. Passamos dos grunhidos palavra por causa de umas traquinagens infantis. No uma idia to estranha, pois senso comum que as crianas tm facilidade com lnguas e que so mediadores naturais entre famlias imigrantes e a cultura local. Independentemente de essa ser apenas uma idia interessante ou um fato cientfico, pensemos nessa imagem. Em tempos remotos, um grupo de crianas os meninos da Rua Paulo de ento - teria usado sons que seu aparelho fonador j permitia para ir dando literalmente nome aos bois. No romance de Ferenc Molnr (MOLNR, 2011), dois grupos de meninos hngaros vivem os dilemas morais de uma guerra que tambm travaro como adultos...

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Mas a inveno da linguagem seria uma brincadeira, algo que d prazer, que faz rir, que permitiria criar brincadeiras mais complexas ainda. Algo, digamos, at repreensvel, pois com tanta coisa a fazer as crianas a se divertindo com palavras. Imagino os pais as censurando, com um vocabulrio talvez mais restrito, mas um brao mais pesado, esses meninos e meninas de ontem. Hoje em dia, vemos pais que captam palavras de seus filhos: a palavra gupt e suas variaes - guptar, guptante - fazem parte do vocabulrio de meu irmo, aprendido com minhas sobrinhas. Mas tambm vemos uma preocupao com os perigos da internet, entre os quais se incluem no s o medo da exposio excessiva, mas tambm o medo de novas grafias e novos ritmos de comunicao. E assim honramos, de um modo ou outro, nossos antepassados remotos, que tambm se encantavam ou sentavam a mo nos primeiros falantezinhos humanos. Eu prefiro olhar essas prticas infantis com alguma deferncia. O que esto tramando as crianas quando brincam no quarto, especialmente quando no fazem barulho, docinhas e comportadinhas? Que mundos nos inventam? Que linguagem criam hoje rindo e que amanh, quando adultas, nos ensinaro? No quero, hoje, aprender com elas ou obedecer-lhes. Nisso concordo com Arendt (1972); nossa obrigao de adultos ensinar o mundo como ele . Sem guptar. Nada de novas escolas onde se invertem os papis. Quero ensinar a histria dos antepassados e a gramtica de hoje. Sei que h vrios verbos em gestao nas falas infantis, mas apenas tomo nota, respeitosamente. Sem me curvar nem sentar o brao.

Vivendo em rede J o forte dos jovens no essa capacidade impressionante de criar coisas novas. De ver coisas onde no vemos. De pensar de um jeito simples e brutal, prprio das crianas. O forte deles a capacidade de associao: de se ligar a outros, de buscar alm de seu crculo familiar elos que possam durar pela vida toda. Difcil depois de uma certa idade ter essa abertura to despreocupada ao outro, essa aceitao sem julgamentos de modos de pensar distintos. Por isso uma sociedade democrtica deve ter escolas, lazer, servio militar e cvico o mais abrangentes possvel. Quando construmos nossa vida adulta tendemos a nos fechar em nosso prprio meio, o que no mau em si se tivermos tido no passado a exposio ntima ao outro e aos seus modos de ver. Ou seja, se as bolhas onde escolhemos viver como adultos forem permeveis.

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Mesmo que os jovens no tenham mais a capacidade bruta das crianas de ver e criar - claro que alguns preservam isso at a idade adulta e a velhice, mas no a maior parte de ns - essas suas teias sociais lhes permitem agir, propor formas novas de vida, moldar a sociedade. Ou seja, criam coisas novas a partir do estoque de novidades disponvel catalisado por novos laos. Do lugar, em novas relaes sociais, s personalidades distintas com que emergem da infncia. O modo como os jovens exploram a cidade ilustra isso: fazem percursos diferentes do usual, conectam bairros que para ns esto em universos paralelos. Encontram-se e exploram territrios, mantendo a individualidade, ao contrrio de ns que buscamos sempre nos adequar a frmulas sociais, tais como o almoo de trabalho ou o passeio com a famlia. Esse ensaio trata da criao destas redes e de seu papel na sociedade contempornea global.

Nossas expectativas Os jovens muitas vezes so vistos como ameaa. Contou-me um professor italiano, da gerao do ps-guerra, que alguns de seus prprios professores nunca se recuperaram dos protestos dos anos 60 e 70, quando estudantes ocuparam os campi universitrios, chocaram-se com a polcia e demandaram reformas no ensino. A concepo que esses professores tinham de si enquanto mestres, ou mesmo enquanto gente, quebrou-se diante dos questionamentos da juventude italiana da poca. No Brasil a fratura entre as geraes foi mitigada pelo opressor comum, o regime militar, e a limitada autoridade docente foi menos questionada. Minha me tinha uma verso cmica e resignada desses descompassos. Ela dizia que sua gerao passou a vida sem comer peito de frango; quando era jovem, a iguaria era para os mais velhos, e quando entrou na vida adulta, o direito passou aos jovens. A melhor argumentao sobre a ameaa jovem que conheo a do historiador britnico Niall Ferguson (PAIT, 2004), que v no desequilbrio etrio no mundo muulmano uma ameaa estabilidade poltica. Muitos jovens, muito desemprego, muita energia sem vazo levaria ao radicalismo. Engraado comparar com a anlise etnogrfica de Shahram Khosravi (KHOSRAVI, 2007) sobre os jovens iranianos na primeira dcada do sculo XXI. Para o antroplogo iraniano baseado na Sucia, o resultado da mesma equao uma vida cultural ativa e marginal que expressa a insatisfao com o regime opressivo. No vou desconsiderar completamente Ferguson, pois os exemplos histricos que evoca so muito fortes. Vou

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apenas notar que essa energia jovem, que vem da grande capacidade e disponibilidade para a associao, algo complexo e com efeitos difceis de prever. Talvez os modelos matemticos das redes, explicados por Albert-Lszl Barabsi (BARABASI, 2003; PAIT, 2002), digam algo sobre isso: por que um vrus fica encubado numa populao isolada durante sculos, e em meses vira uma epidemia? possvel monitorar e identificar pontos de inflexo do comportamento das redes, mas no prever exatamente. Essa virada, de situao letrgica a comoo, a prpria ao, que Hannah Arendt (ARENDT, 2004) via como imprevisvel. Aquele momento em que as pessoas que j esto juntas num espao - ela imagina um espao urbano, concreto - se renem como cidados, com o intuito deliberado de fazer algo umas juntas com as outras. Se h um inimigo a ser derrubado secundrio; a ao comum o central. Arendt tambm fala de certo falso pblico - uma farsa que acoberta a massa isolada, amedrontada e incapaz de pensar. um conceito difcil de definir; eu mesma s o compreendi vivenciando uma situao que s poderia ser por ele explicada. Se um movimento poltico construir regras democrticas ou dar poder a regimes autoritrios algo que talvez nem os seus participantes saibam no calor dos acontecimentos. O que nos importa aqui notar que os jovens, exatamente por sua facilidade em criar laos, potencializam esses movimentos, para um lado ou outro, inspirando temor em uns e esperana em outros. Criam redes densas, na linguagem matemtica. Ainda seguindo Arendt, se uma sociedade depende dos muito jovens para se transformar politicamente, algo vai errado, pois as transformaes ou no viro ou sero destrutivas. Agora, sempre interessante olh-los para saber em que direo estamos indo, que comportas devem ser abertas. Uma represso excessiva aos jovens, como s crianas, revela incapacidades nossas. inspirador ver um octogenrio como o presidente Fernando Henrique tentando criar regras possveis para o uso das drogas. Tentando, como prope Dewey (1979), dirigir a ao e dar-lhe sentido humano.

Meios de comunicao

S um telefone Jovem, claro, um conceito histrico. Ulisses chegou velho e irreconhecvel, aos 40 anos, de volta a taca (HOMERO, 2010). Hoje, quando falamos de jovens temos

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em mente pessoas entre 16 e 24 anos, apenas para delimitar um grupo, mas antes da penicilina essa fase no era mais de preparao, formao e tomadas de deciso: era a prpria vida. Sustentar que os jovens do passado foram responsveis pelas grandes mudanas sociais no faz sentido se at pouco tempo quase todo mundo era jovem em termos etrios. Fiquemos apenas com o conceito, ento: os jovens tm uma flexibilidade social que lhes permite criar teias de relacionamento melhor do que os adultos e, portanto, agir mais, no sentido arendtiano. De qualquer forma, os meios de comunicao potencializam essa atuao jovem, uma vez que ela eminentemente relao social, poder de associao. freqente, embora cada vez menos, que se fale dos meios de comunicao como um bloco: a mdia. E, ainda, um bloco com vontades autnomas: a mdia quer..., a mdia faz... A mdia aparece como atriz de um processo social (ADORNO; HORKHEIMER, 1986), quando ela apenas... um telefone (WILLIAMS, 2003). Um meio de comunicao que estica nossas prprias capacidades comunicativas, possibilitadas por nosso aparelho fonador, nossas expresses faciais e nossos gestos. Um cantor lrico ou uma bailarina clssica usam ao mximo essas capacidades, mas ir alm delas exige um amplificador, um instrumento musical. Alguma tecnologia que leve uma certa expresso humana at onde ela no poderia com os recursos dos nossos corpos. Tinta e papel. O alfabeto (GUMBRECHT; PFEIFFER, 1994). A estrutura do correio inca ou londrino. Como explicou McLuhan (1996), cada meio gera uma comunicao distinta, uma forma nova de pensarmos e de estarmos em contato uns com os outros. Mas aqui ressalto no tanto a forma da comunicao, mas o fato puro de estarmos em contato (PAIT, 2007), a distribuio espacial ou temporal que o meio sugere. Pense na antiga vitrola, que agora retomada como vintage. Ela um objeto da casa, grande, um mvel central. Isso por algumas dcadas; ela logo se reduz, barateia, e vai para o quarto dos jovens, nos Estados Unidos em primeiro lugar. O papel que essa migrao teve no movimento jovem dos anos 60 j foi estudado por autores que, como Carey (1992), se preocupam com a relao entre meios de comunicao, cultura e espao. O espao privado dos jovens se conecta a outros espaos privados de outros jovens, nacionalmente mas tambm ao redor do mundo: os mesmos discos, sons, aparelhos, sensaes, rituais. Um chefe que tive no Unibanco me contou o que foram para ele os tais discos: A primeira vez que eu peguei o lbum Branco na mo... Eu: Que lbum branco? Ele, indignado: O lbum Branco dos Beatles! Voc no conhece?!? Ah, no sei descrever... Ele ter pego na mo aquele disco, assim, com artigo definido, era como pegar na mo de todos os outros jo-

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vens do planeta, deste lado e do outro da Cortina de Ferro. Um primo americano que viveu intensamente aqueles anos me contou que as pessoas se conheciam, iam para a casa de um ou de outro, botavam um disco na vitrola, fumavam e a comunicao era essa. Ouviam msica juntos. Claro que as explicaes dos protestos de 1968 so muitas. Razes sociais afluncia, baby boom, oportunidades de estudo -, polticas - ditaduras de vrias inclinaes, guerras, opresses culturais -, e outras ainda. Mas sem uma cultura comum os jovens no teriam se articulado, encontrado um discurso comum, e ido s ruas. Sem esse espao de encontro - dos shows, da universidade - mas tambm da msica, das vitrolas nos quartos, eles nem saberiam que passavam pelas mesmas experincias. A vitrola um lugar de encontro e dela que vem a autorizao para brigar com os pais, com os professores, at com o exrcito. Eu me pergunto se no estou usando hiprboles, mas fato que jovens brasileiros, americanos, tchecos, lutaram contra seus exrcitos. No se trata apenas de meios para marcar passeatas; o sentimento de estar junto que importa. desta perspectiva que vejo os meios de comunicao, com muito carinho. Eles evocam comunho ou comunidade, conceitos tratados por Nancy (1991) e Blanchot (1988). Mas resgato principalmente a idia que Arendt tem de linguagem para falar de nossa comunicao moderna: uma mesa ao redor da qual nos reunimos, mas que tambm nos separa, resguardando nossas humanas diferenas;. Nunca estaremos em total comunho.

Valores da internet Os jovens no esto simplesmente respirando o oxignio dos meios de comunicao. Eles esto produzindo isso. Ao final do sculo XIX, os magnatas eram pessoas adultas; no sei qual a idade que tinham, mas se deixavam fotografar como patriarcas, pessoas slidas. Quando eu era estudante, nos anos 80, vinham dar palestra no Brasil, lanavam livro, gerentes de grandes empresas, Lee Iacooca, da Chrysler. Em termos literrios, eram os homens do terno cinza, do romance americano dos anos 50 (WILSON, 2005). Homens que tinham liderana e algum esprito inquieto, mas cuja fama se devia a terem passado a vida dentro de burocracias que compreendiam. Ou seja, podem ter tido origens variadas, mas projetam-se como pessoas experientes, conhecedoras de seu cl corporativo. Eu olhava para as fotos de Lee Iacooca e me perguntava: por que esse cara est na capa de um livro? O que ele fez? Agora, olho livros com Steve Jobs na capa e compreendo exatamente o que o fundador da Apple fez.

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Hoje o presidente dos Estados Unidos bajula um garoto desajeitado que criou um site de relacionamento (BBC, 2011). Site de relacionamento: um modo enviar torpedos como os bilhetes que as pessoas mandam em festas, provavelmente uma gria dos anos 50. Mark Zuckerberg criou um destes sites, se tornando um dos homens mais ricos do mundo. Ilya Zhitomirskiy, o jovem russo-americano que homenageamos no incio do artigo, criou, junto com colegas da New York University, um site de relacionamento que promete respeitar a privacidade dos membros, num projeto carregado de idealismo. Steve Jobs continuou revolucionando a comunicao depois de adulto, mas teve grandes sacadas no comeo da vida que, propaganda parte, mudaram o modo como a gente se comunica. Claro que no so apenas jovens e idealistas que se lanam em projetos tecnolgicos: Bloomberg, um businessman americano mais tradicional, inventou algo muito simples - transmisso de dados financeiros em tempo real - e tambm se tornou um dos homens mais ricos dos Estados Unidos. Mas ele acredita tanto nos novos Jobs e Zhitomirskiys que apostou na fundao de uma universidade novaiorquina voltada para inovaes tecnolgicas (MAYORS OFFICE, 2011). A internet em si, que possibilita o Facebook, o ensino distncia e outras coisas mais que mencionamos aqui, no comea de um jeito nem banal nem jovem. Mas ela se abre para usos impressionantemente jovens. Em suma, os jovens no apenas navegam na onda da internet e da tecnologia. Eles a fazem, a concebem. Um projeto como a enciclopdia colaborativa Wikipedia, por exemplo, atrai os jovens, sejam leitores, editores ou administradores. Os jovens no apenas jogam os games na internet, mas tambm os desenham e produzem, como explica o livro Youthscapes (MAIRA; SOEP, 2005), que trata dessa presena jovem no mundo contemporneo de modo muito interessante. A internet o meio ideal se voc quer, dito resumidamente, criar seu mundo com poucos recursos, que o desejo jovem por excelncia. Ter seus seguidores, publicar seus valores. Conceitualmente, no vejo tanta diferena com relao vitrola no quarto. Mas na internet cabe tudo, no s msica. E cabem formas de associao as mais variadas, e tambm variantes, pois a cada ano estamos migrando de uma plataforma para outra. Quando a internet sai da esfera militar e acadmica e se abre comercialmente ela torna possvel que essas ideias inovadoras nela se expressem, criando um crculo virtuoso. Em outras palavras, o carro est para o homem assim como a internet est para o jovem. O carro encarna valores tradicionalmente masculinos como potncia e autonomia; a internet encarna valores jovens como a sociabilidade e a mudana.

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Culturas globais Essa expanso da sociabilidade, bandeira dos jovens, se coloca tambm no nvel global. Claro que o desenvolvimento global dos meios de comunicao no vem de ontem. Na Idade Mdia e mesmo antes o Mediterrneo j formava uma grande banda larga por onde passavam textos, tradues, matemticas, filosofias, leis e comentrios, protegidos e encorajados pela ordem muulmana vigente. Mas inegvel que no sculo XX a velocidade das mudanas nas comunicaes aumentou. Pensemos nos nossos jovens, que fizeram a Semana de Arte Moderna de 1922. No era a internet ainda, nem as vitrolas, mas esses jovens cresceram numa poca de mudanas estonteantes, como explica o historiador Nicolau Sevcenko (SEVCENKO, 1992). As conquistas do sculo anterior, como o telgrafo, telefone, fotografia, alm da ferrovia e do navio a vapor, no transporte, j haviam se consolidado, e j despontavam os novos avanos, como o cinema e o rdio. nesse contexto que os jovens Tarcila, Oswald, Anita e outros vo Europa trazer novidades. Coloco aspas pois Oswald pe na mala uma ideia especial: a antropofagia, esse olhar particular que devora tanto o que de dentro quanto o que de fora. Sem entrar nos detalhes do modernismo brasileiro, s noto a abertura daqueles jovens para novas formas de expresso e de sociabilidade que circulavam pelo globo no momento - provavelmente j podemos falar de uma sociabilidade global nessas primeiras dcadas do sculo. Ela est restrita a um grupo reduzido de jovens artistas e intelectuais urbanos, mas que j constri valores e ideais comuns, entre os quais uma viso igualitria das relaes de gnero e uma moral sexual tolerante. Circulavam globalmente, tinham conhecidos comuns como Blaise Cendras, ainda segundo Sevcenko, mas talvez houvesse outros globetrotters culturais menos famosos. Ideias comuns passavam de manifesto em manifesto, em todas as lnguas. A ironia e a experimentao formal apareciam em novas revistas de cidades provincianas da Amrica Latina ou multiculturais da sia Central (SLAVS AND TARTARS, 2011). Claro que o centro de tudo ainda era a Europa: l todos se conheciam, se visitavam, se apaixonavam e se intrigavam, como aparece poeticamente num filme recente de Woody Allen (ALLEN, 2011). Os anos 30, como sabemos, com seus ideais nacionalistas, polticas econmicas fechadas e meios de comunicao a servio do Estado interrompem essa festa global, que s vai se repetir dali a 40 anos. Nos anos 60, nossos jovens retomam a herana antropofgica. O rock global, a guitarra eltrica e a vitrola ultrapassam fronteiras. Mas o papel dos meios de comunicao vai alm da cultura. Na televiso,

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as imagens jornalsticas da Guerra do Vietn ou dos confrontos com a polcia nos quatro cantos do mundo legitimam embates locais. No precisa haver uma ordem explcita, um comando; a prpria imagem, at condenada pelo ncora careta, de um protesto estudantil num lugar diz aos jovens de outro: No s voc. Olha l, sua luta legtima. No contra um regime, contra um sistema. Martin Plot (PLOT, 2003) estuda a relao entre a tela e as ruas, a partir de eventos recentes da histria argentina: uma manifestao que aparece na televiso chama os participantes para ela, dando-lhe peso. O protesto no ocorre na TV ou nas ruas, mas nesse espao urbano complexo, reconstrudo pelos meios de comunicao (McQUIRE, 2008). Note que j tnhamos uma cultura amplamente mediada quando aparece a internet; as pessoas j sabiam o que era aprender com os outros distncia e vivenciar experincias remotas (CARPIGNANO, 1999). A internet permite que se transponham essas experincias todas, antes mais imaginadas que explcitas, para a tela. Sites de relacionamento, buscas de artigos acadmicos, compartilhamento de msica e imagens e colaboraes no-remuneradas tais como enciclopdias e aprendizado de lnguas: a lista infindvel. E, da tela, para a vida, pois assim como com a TV, a internet tambm transborda para os espaos reais. Um estudo recente mostrou que as pessoas com vida social online cheia tendem a ter muitos amigos reais... Os jovens s vezes usam esses meios para se comunicar com pessoas prximas, s vezes para romper barreiras geogrficas. E em outros momentos ainda para as duas coisas, sem nem se preocupar com as distncias reais. Talvez seja at melhor inverter a metfora anterior: hoje que estamos todos compartilhando o mesmo Mediterrneo. O discurso das mulheres sauditas que lutam pelo direito de dirigir muito parecido com o das mulheres ocidentais. Os indgenas brasileiros usam a internet para encontrar parceiros de modo semelhante a um novaiorquino. No CouchSurfing, site onde pessoas do mundo todo encontram anfitries em suas viagens, vi jovens dispostos a emprestar seu sof na cidade palestina de Ramallah e no assentamento de Ariel - suas razes para essa hospitalidade eram bem parecidas! Como os jovens de 1922, ou de 1968, tambm os jovens hoje tm valores comuns, expressos em formas culturais e modos de vida prprios. J a escala deste fenmeno distinta. Hoje esses jovens conectados esto espalhados pelo globo, indo do Extremo Oriente Patagnia, e no formam mais uma minoria. Como l atrs, sempre haver as vozes que dizem no. No aos meios de comunicao, no globalizao, no comunicao com o outro. Para Simmel (1983), um fenmeno social sempre resultado da tenso entre plos opostos. Se

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jovem aquele que quer abrir leques, ir alm do seu grupo original, isso necessariamente se contrape ao grupo original. Como que eu vou crescer sem ter com que me rebelar?, a gente cantava nos anos 80, quando no estava claro quem era o nosso adversrio. Se ele no est mais em casa, ento ns buscamos o adversrio em outro lugar... O grupo original vai reagir a essa nova conformao social de modo mais inteligente ou menos, mas alguma reao vai haver. E desta reao que tratamos a seguir.

Aes e reaes

Mulheres globais Lei Azeredo. SOPA americana. Muralha da China. So vrias as tentativas de frear essa nova sociabilidade (WEBINSIDER, 2011; WEISMAN, 2012; WIKIPEDIA, 2011). No Brasil, os projetos so variados e modestos. Um estado cria uma comisso de vigilncia, o governo federal tenta emplacar outra, um deputado apresenta uma lei, depois recua um tanto e assim caminhamos. Um jogo de futebol com passes curtos e muitas interceptaes do time da democracia, incrivelmente afinado. No h preconceito de idade: s vezes chutam a gol figuras antigas como Hlio Bicudo, mas o grosso do time de jovens. No apenas a Lei da Ficha Limpa em si mesma que amedronta; o fato de que se eles podem colocar na agenda algo assim, ento podem qualquer coisa! Por um lado, as iniciativas anti-democrticas pipocam, pois no temos no Brasil uma forte tradio liberal e um consenso claro de que a liberdade de expresso um bem superior, sendo que a censura tem uma histria herica (REIMO; ANDRADE, 2007). Por outro lado, tais iniciativas so afastadas por um debate pblico ferrenho e criativo do qual s podemos nos orgulhar. No caso da China, o Estado segue inclume sua estratgia de abertura econmica sem abertura poltica, usando a censura internet de modo amplo, impedindo de fato o acesso cotidiano informao, atravs de um programa estatal especfico, apelidado de Chinese Firewall, em referncia muralha chinesa e aos programas de proteo digital. O caso dos projetos de lei americanos de restrio internet, SOPA e PIPA, tambm preocupa, pois chegaram ao Congresso mesmo num pas com uma forte cultura de proteo liberdade de expresso. Claro que algumas novas prticas devem ser regulamentadas, mas a maior parte dessas iniciativas bate de frente no nosso desejo de troca de experincias, transparncia de informaes

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pblicas e questionamento de hierarquias. Contou-me um advogado que trabalha para empresas de venda direta que pases rabes e a China fazem de tudo para restringir a entrada destas empresas em seus pases. Medo da coleo vero de batons da Avon? Medo de mulheres com renda prpria, num caso, e de uma livre rede de informaes, no outro. So as novas redes que preocupam, virtuais ou reais. Mas no so apenas modos novos de se comunicar que assustam. Muitas vezes, no combate direto a imagens e narrativas que a fora repressiva revela seu carter e seus dios. Por isso, vou abrir nesse artigo um pequeno e ilustrativo parntese, para falar de dois casos onde o alvo da censura ganhou corpo, e corpo de mulher ainda por cima. Os casos, acredito, revelam algo que a argumentao legal dos projetos de lei pode deixar em segundo plano: os desejos humanos que os inspiram. O que estava em questo nos dois casos? Os produtos, cerveja e calcinha, so no apenas legais, mas so produtos de massa, presentes do cotidiano de todos os brasileiros. Alm disso, no havia nada agressivo ou indecente nos anncios; ao contrrio, eram bem-humorados e recatados para o padro nacional. Nos dois casos, o Conar agiu quando foi acionado por um rgo federal, a Secretaria Especial dos Direitos da Mulher. Ou seja, ao invs de fazer auto-regulao ele agiu como correia de transmisso do Estado. E justificou a censura alegando desrespeito mulher e incentivo ao consumo de lcool. Na verdade, ao contrrio de outros anncios, o anncio da cerveja no mostrava um monte de jovens felizes se empanturrando de lcool, ento podemos colocar esse argumento de lado. E quanto mulher? Quando vi o anncio com Paris Hilton na TV pensei: Puxa, pela primeira vez esses anncios de bebida mostram uma mulher com as rdeas na mo! Confesso que tenho uma certa simpatia pela superficialidade ingnua de Hilton. Que fazer? Eu gosto dela. Mas veja o anncio novamente, que est na internet. Aquele meio sorriso escolhe; no escolhido. Recebe a admirao de homens e mulheres, como uma pessoa de prestgio, e nos surpreende, at com uma certa ironia: Olha s quem est aqui... Tem prazer e nos diverte tambm. Gente, a Paris Hilton! Ela nunca apareceria de samambaia! E isso precisamente o que deve ser censurado: uma mulher segura de si, que no deve nada a ningum, dona de seu corpo e seus negcios. Global, recebida de portas abertas em todo o mundo. Herdeira dos Hotis Hilton. O caso Gisele Bnchen quase idntico. Como foi apontado durante a polmica, a Gisele aparecendo como esposa submissa uma grande ironia, uma sacada dos publicitrios. Os homens perdem a fala - no pedem satisfaes - diante dela. Para a censura, a mulher deve aparecer como uma coitada, incgnita e mendican-

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te, tendo ao lado o Estado como seu salvador capenga; como nos contos de fadas, apenas sem poesia. A mulher ideal a mulher-objeto de polticas pblicas. J a que ri dos antigos esteretipos, cosmopolita e confiante, essa mandada embora da TV e vai de castigo para a internet. Note que isso s engraado por no ser absoluto; a censura e a excluso mesmo so feias, humilhantes, dolorosas. Anita Malfatti, Chiquinha Gonzaga e Dercy Gonalves, agora celebradas, passaram maus bocados por representarem, em suas pocas, desejos de autonomia semelhantes s de nossas mulheres globais. Malfatti, por exemplo, foi execrada por ter tido acesso a ideias que os homens cultos de sua cidade no tiveram. A diferena que agora a censora pertence a um rgo de Estado que se apia na linguagem politicamente correta, enganando os que querem ser enganados. No trago esses exemplos para questionar essas proibies e legitimar outras; mesmo imagens que de fato no gostamos devem ser toleradas, a no ser que incitem crimes, como manda a lei. Gisele e Paris aparecem nesse texto para revelar os verdadeiros alvos da censura: jovens autnomas, com passaportes bem carimbados, que respeitam as leis e talvez at tenham seus projetos sociais, mas de qualquer modo no dependem nem so subservientes ao Estado. As meninas brasileiras buscam esse respeito, essa autonomia das modelos bem sucedidas - elas no querem largar os estudos e passar fome em passarela toa. Mas exatamente esse desejo muito legtimo de reposicionamento dos jovens em crculos sociais distintos tentam reprimir. No estou defendo a carreira de modelo: se a escola possibilitasse essa autonomia, esse passaporte para um mundo maior, no haveria tanta gente agentando a chatice das passarelas. E, a partir desse gancho, passamos a falar da escola, de seu potencial e de sua responsabilidade em lanar com segurana os jovens nesse mundo velho sem fronteiras.

Sonhos universitrios O que a sala de aula? um lugar de encontro de geraes, acima de tudo. Independente do que ensinamos, de que grau esto nossos alunos, na sala de aula somos em geral mais velhos e acima de tudo estamos representando um conhecimento humano acumulado. E isso independe do mtodo de ensino mais tradicional ou libertrio que empregamos; em qualquer caso, passamos adiante uma tradio, uma forma de pensar que se construiu ao longo dos sculos. Continuo aqui seguindo as reflexes de Arendt sobre poltica e educao. Nesta sala de aula

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dizemos aos alunos: Toma. O mundo esse. A continuamos com as disciplinas especfica: Isso o que sabemos sobre o planeta e sobre os homens e mulheres que j viveram aqui. Faa bom proveito, pois em breve ele ser seu. O bom professor no nem um visionrio nem um reacionrio; um sujeito que se encanta com o estado atual do conhecimento, que ainda busca reforo nos textos de ontem e se anima em pensar no que ainda pode ser descoberto. O bom professor est fincado no presente, e olha para os alunos com aquela respeitosa curiosidade que mencionei l atrs: que mundos esses jovens esto a criar? A sala de aula deve conter aquela sociabilidade jovem, pulsante, que descrevi antes. Conter nos dois sentidos: no sentido hospitaleiro de receber e tambm no sentido de dar alguma forma, alguma direo, como diz Dewey. Os jovens vo se organizar e vo criar coisas novas; isso fato. E no seria genial se fizessem isso a partir do conhecimento humano gestado em sculos e transmitido por gente que o ama? A questo que se coloca : a universidade hoje faz isso, no Brasil? Faz pouco. As razes so bvias, no vou me deter nelas: currculos engessados, teoria desconectada da realidade, instituies burocrticas e fechadas s oportunidades globais. Claro que h iniciativas pontuais interessantes e algumas bem sucedidas, mas no chegam a dar o tom da universidade brasileira. A expanso recente do ensino superior pblico, que poderia ter gerado uma mudana qualitativa, apenas fez o que o setor privado faria: mais do mesmo. Os alunos chegam s aulas, entretanto, cada vez mais pragmticos, interessados, abertos a novas ideias; so produto das transformaes recentes na sociedade brasileira. No geral, a no ser por um intenso esforo prprio, no encontram no ambiente universitrio um catalisador de novas idias, sociabilidades, processos. Alis, ocorre o contrrio: os jovens so muitas vezes desestimulados ao. Em entrevistas que fiz com jovens sobre o uso de meios de comunicao, notei que os alunos das concorridas universidades pblicas tinham adquirido, ao longo do curso, suspeita sobre sua prpria ao pblica (PAIT, 2012). A defesa do meio ambiente, lhes foi ensinado, apenas um modo de imposio de uma cultura imperialista. O ensino distncia deve ser combatido. O Twitter apenas um modo de reproduo de ideias. Minhas observaes no so incompatveis com o que vejo em aula: muitos alunos relatam que suas motivaes para entrar na faculdade so vistas como ingnuas quando chegam l. Procuro no falar dos meus objetivos para no ser questionada, me disse uma aluna recentemente. Os alunos de escolas tcnicas com quem falei, ao contrrio, eram otimistas quanto sua prpria atuao no mundo global, entusiasmados com os novos mo-

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dos de conhecer o que de novo se faz fora do pas, em sua rea, e tambm de mostrar suas produes nessa nova arena. Tive a impresso de que nas escolas tcnicas a cultura que v a globalizao e os meios de comunicao como ameaas e no oportunidades no tem a fora que tem na universidade, o que possibilita uma ao mais livre e aberta. Mas ser o suficiente? A universidade um local privilegiado de formao de uma cultura cvica em qualquer sociedade. Quais so ento as opes dos alunos de graduao que encontram um ambiente intelectual abafado? Desanimar; projetar os sonhos em objetivos de consumo; aceitar e reproduzir o discurso reacionrio; mergulhar no aspecto tcnico da profisso; e atuar fora do mbito universitrio. No h nada de errado com as duas ltimas alternativas, apenas que infelizmente elas no usam o potencial da universidade. Ns professores, em larga medida responsveis por essa situao, somos prejudicados, pois perdemos a chance de orientar essas novas geraes, de dar palpite em seus novos projetos. Ficamos como a censora, mandando a Gisele botar roupa: ela vai para a internet e ns ficamos falando sozinhos.

Quando menos se espera... Estamos vivendo um novo 68: sociologicamente, esse o melhor modo de pensar sobre o momento presente. Nem todos os jovens de hoje se vestem de acordo com o figurino da minissrie da Globo, o que angustia os comentaristas, mas em 1968 os jovens eram vistos como sujos, baderneiros e perigosos. realmente deplorvel que hoje invadam as reitorias de nossas universidades, mas o que havia de to digno em seqestrar o cnsul de pas amigo em plena Praa Buenos Aires? Cada pas tem sua realidade prpria, mas possvel identificar hoje, como em 1968, um trao comum: um descompasso entre as possibilidades abertas aos jovens e o que efetivamente conseguem alcanar. No Brasil, nos anos 60, uma palavra ilustrava bem esse descompasso: os excedentes, jovens que passavam nas provas de admisso para a universidade, para os quais no havia vaga. Alm desse descompasso, tanto ontem como hoje, temos um acelerao no ritmo pelo qual compartilhamos nossos anseios e frustraes, em escala global. As revoltas no mundo rabe pegaram quase todos de surpresa; alguns poucos comentaristas tinham visto a panela de presso no fogo. Olhando em retrospecto, no difcil ver que os jovens rabes tinham horizontes largos, possibilitados por uma certa melhora econmica e por desenvolvimentos j consolidados nos

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meios de comunicao, como os canais de TV a cabo e a internet. Entretanto, as conquistas efetivas, especialmente no plano da realizao pessoal, continuavam remotas. Como disse, cada pas tem seu contexto. Nos pases rabes, os regimes no conseguiram acomodar democraticamente as reivindicaes, e caram ou as enfrentaram com a fora. J em Paris ou Londres, os protestos dos jovens das periferia, em 2005 e 2011 respectivamente, foram reprimidos apenas com o poder de polcia; o regime no questionado. Os casos dos Estados Unidos e de Israel so interessantes: o governo e o establishment adotaram com paternalismo os manifestantes, e depois gentilmente decidiram que a festa acabou, sem nenhuma resposta palpvel. Seria importante entender melhor o caso chileno, mais prximo de ns e portanto com maior chance de se reproduzir aqui. Os estudantes chilenos, de segundo grau e universitrios, realizaram em 2011 protestos de rua e ocupaes, como j haviam feito em 2006. Como os jovens chilenos mantm tamanho grau de ativismo? Por que razes suas reivindicaes no so atendidas ou o dilogo estabelecido? A relao entre os jovens e o poder estabelecido l parece girar em falso, sem choque, cooptao ou conversa produtiva... Algumas demandas jovens so bem concretas: o fim do autoritarismo no mundo rabe, a questo da moradia em Israel, os investimentos na educao no Chile, a crtica aos valores de Wall Street nos EUA. Mas muitas vezes tambm aparecem um pouco vagas, sem partido, fluidas, indeterminadas. Jovens, ora. Como disse uma israelense durante os protestos do vero de 2011, a funo dos governantes consertar as coisas; ela est l para expressar a insatisfao. Mas essa fluidez me preocupa. Ser que nossa sociedade adulta est preparada para dar uma vazo construtiva insatisfao jovem? Em especial, ser que a universidade cumpre seu papel, de ser um laboratrio seguro de experimentao para novas ideias? E como vo os jovens brasileiros? Nesse aspecto, o bordo do presidente Lula muito verdadeiro, sendo obra dele ou no: nunca antes nesse pas os jovens tiveram tantas chances na vida (BOX1824, 2011). A economia vai muito bem: h algumas incertezas no mdio prazo, mas no curto prazo h uma oferta de emprego maior que a demanda em muitos setores. A reduo da taxa de natalidade no perodo recente traz equilbrio demogrfico e menos presso em vrios servios pblicos. Podemos ser crticos s polticas para a educao, mas o aumento de vagas nas universidades pblicas impressionante. As mulheres e os gays ainda enfrentam desafios, mas a liberdade que os jovens tm hoje para definir sua vida pessoal no tem precedentes no Brasil e nem na maior parte do globo. A questo no , entretanto, apenas estar bem; hoje os horizontes do jovem

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brasileiro so muito amplos. A ideia de que ele possa ser o prximo Jobs ou Zuckerberg certamente lhe passa na cabea. Ou que um filho seu seja - a classe mdia baixa tem investido muito na educao dos filhos. Deste descompasso, at positivo, alguns protestos jovens aparecem aqui e ali no Brasil como o Slut Walk (a Marcha das Vadias), e outros que combinam ativismo na internet e presena nas ruas. de entusiasmar ver jovens no s protestando, mas articulando projetos transformadores, tais como os da Open Knowledge Foundation Brasil, que incorporam o melhor das oportunidades globais. Entretanto, no meio acadmico stricto sensu, vejo condescendncia em relao ao conjunto de manifestaes e aes jovens no Brasil. Que caminho vo tomar essas aes? No vejo os jovens se ressentindo muito da falta de apoio de estruturas mais formais. Se o ensino ainda apresenta todos os problemas que Feynman (2006) j viu h 60 anos, parece que isso no chega a lhes impedir de agir. Mas posso estar errada; pode ser que haja frustrao se acumulando. Talvez uma pequena freada na economia os coloque em situaes difceis; talvez o avano tecnolgico deixe muitos jovens sem boa formao secundria de fora do ganho material nacional. Tambm possvel que ns tenhamos um retrocesso poltico na forma de um retorno ao capitalismo tutelado que infelizmente parte de nossa tradio. Pode ser que simplesmente, por falta de viso nossa, o potencial destes jovens no se realize plenamente, impedindo o pas como um todo de ocupar seu lugar na arena mundial, seja no plano poltico, cultural ou tecnolgico. Mas no custa imaginar que os jovens consigam nos fazer ver, de modo criativo e a partir de sua prpria perspectiva, que caminho devemos tomar, para termos uma sociedade justa, culta e divertida.

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A Gramtica do Armrio: notas sobre segredos e mentiras em relaes homoerticas masculinas mediadas digitalmente1 Richard Miskolci

Introduo

As relaes pessoais na era digital

O uso contemporneo das mdias digitais o captulo mais recente de uma longa histria de dessacralizao das relaes pessoais, ou seja, do borramento das fronteiras entre o privado e o pblico que comeou, provavelmente, com a popularizao do uso do telefone na segunda metade do sculo XX. Num processo inicialmente paralelo, tambm se desenvolveram os computadores pessoais na dcada de 1980. Essas invenes tecnolgicas se disseminaram e se aproximaram, na dcada seguinte, por meio da articulao telefone e computador pessoal que tornou possvel a expanso e o uso comercial da internet a partir do final da dcada de 1990. No tardou para que, no incio do sculo XXI, o uso de celulares, dos computadores portteis e da internet convergissem na experincia j cotidiana da mobilidade de acesso s mdias digitais. As relaes mediadas digitalmente, portanto, so um fenmeno recente, mas que conquistou adeso rpida e massiva sem deixar tambm de suscitar temores como o de conhecer, ou pior, envolver-se com algum perigoso. Manchetes sobre crimes digitais, vazamento de e-mails, fotos e dados pessoais, s vezes, ainda se somam a casos de sequestro e morte. Haveria algo intrnseco s novas mdias digitais, um espao novo e com regras prprias que precisaramos aprender a explorar para sentir segurana em seu uso? Inicialmente, na primeira onda de estudos sobre as relaes mediadas digitalmente, predominou um compreensvel fascnio pelo que muitos chamaram de cyberespao, termo que de forma geral aludia a uma nova fronteira para a comunicao e o conhecimento humano alocada fora da esfera j existente e conhecida. O espao cyber seria um local regido por demandas e leis prprias, nas quais as subjetividades poderiam experimentar e se reinventar. De certa maneira, seria1 Este artigo apresenta resultados parciais de minha pesquisa Desejos em Rede: uma etnografia sobre as formas contemporneas do armrio em relaes homoerticas masculinas criadas online financiada pelo CNPq por meio de bolsa Produtividade em Pesquisa.

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uma esfera virtual, distinta quando no oposta ao real, este circunscrito ao mundo concreto das relaes pessoais tradicionais.2 Um olhar mais atento permite considerar o cyberespao um mito assim como sua caracterstica oposio virtual-real derivada de um desconhecimento da dinmica das relaes humanas mediadas pela tecnologia, as quais se do dentro de uma dinmica articulada e interdependente. Nancy Baym (2010) explica a origem do mito do cyberespao como produto de uma perspectiva incapaz de perceber que o on-line sempre foi usado para facilitar o contato off-line, portanto como parte de um mesmo processo de comunicao e no a inveno de um mundo ou dimenso comunicativa parte, o que o uso do termo virtual definia em um contraste duvidoso com a realidade, circunscrita ao que vivido sem mediao digital. Hoje em dia, quase impossvel compreender nossas relaes sem mediao tecnolgica, pois vivemos em uma cultura digitalizada, sempre presente, j que nos comunicamos por elas, vivemos em referncia aos seus contedos e aprendemos a fruir um grande prazer na indita experincia da comunicao com vrias pessoas ao mesmo tempo, ou seja, na participao em redes que constituem uma espcie contempornea de comunidades, o que alguns, como o socilogo Ray Oldenberg, afirmam serem as verses atuais dos antigos cafs, centros comunitrios ou sales de cabelereiro (BAYM, 2010, p. 76). Essas redes so uma espcie de ponte de sociabilidade entre o trabalho e o lar, da trazerem a sensao de conforto e comodidade. A discusso sobre se a internet constitui um lugar polmica. Referimo-nos a sites (stios, portanto locais) devido nossa necessidade de localizao na esfera da comunicao digital, o que se expande para a associao entre eles e locais criando um paralelo que pode se revelar enganoso entre rede e local. A tese de que a internet seria a verso contempornea de centros comunitrios ou cafs se fragiliza diante de seu funcionamento seletivo e em rede. Em locais no temos controle sobre os vizinhos e somos obrigados a interagir com pessoas que no escolhemos, mas nas mdias digitais constitumos redes baseadas em critrios de seleo personalizados assim como bloqueamos ou deletamos sujeitos com os quais no queremos (mais) contato. Assim, as relaes mediadas constituiriam em si mesmas uma zona de conforto nova, com critrios prprios e muito distintos dos que regiam as experincias em grupo ou comunitrias no-mediadas.2 O termo cyberespao foi criado por William Gibson em seu livro de fico cientfica intitulado Neuromancer (1984) e popularizado na dcada seguinte, em especial a partir da obra de Pierre Lvy, um filsofo que escreveu diversos livros e artigos sobre tecnologia da informao.

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Em outras palavras, uma das novidades das relaes mediadas digitalmente a criao de sociabilidades moldadas pela experincia de constituio de redes por meio da busca e seleo de contatos de forma impensveis para geraes anteriores. Assim, o antigo territrio definidor das comunidades do passado passa a ser substitudo pelos valores e cdigos culturais que criam e delimitam as redes nas quais nos inserimos. Mesmo que muitos, talvez at a maioria, ainda se refiram internet e aos aplicativos de celular como lugares, talvez seja mais profcuo em termos analticos pens-los como contextos culturais devido sua existncia mais autnoma em relao ao territrio (HINE, 2009, p. 7). A partir da compreenso dessa nova realidade de nossas vidas em rede, no de se estranhar que um nmero crescente de pessoas tenha passado a buscar parceiros amorosos ou sexuais online. H vrias razes para isso, como a certeza de que em um site de busca de parceiros todos procuram algum, o que atrai quem prefere evitar incertezas sobre as intenes de pessoas no cotidiano. Um segundo atrativo da busca online est na praticidade, a qual se desdobra na comodidade de poder paquerar de casa ou do trabalho, a qualquer hora. Mas, provavelmente, o maior atrativo reside na possibilidade de entreter paqueras mltiplas e simultneas ampliando suas probabilidades de encontrar algum sem se expor da mesma forma que na vida offline. Afinal, em um site, se algum no te d ateno, voc pode partir para o/a seguinte enquanto em uma festa ou boate, por exemplo, isto pode atrair olhares reprovadores e at mesmo a recusa do novo paquera. Plataformas como sites de relacionamento ou bate-papos permitem no apenas superar as dvidas sobre se o interlocutor busca ou no parceiros, algo ressaltado principalmente por mulheres heterossexuais, mas tambm auxiliam, no caso de quem busca parceiros do mesmo sexo, a ter a certeza de que naquele espao todos/as sero receptivos aos seus desejos. Nesse aspecto, estes sites so um verdadeiro radar e, no por acaso, Gaydar a expresso inglesa usada para batizar o mais bem-sucedido e antigo site de busca de parceiros do Reino Unido. Para mulheres, estes sites tornam aceitvel sua busca de parceiros e, para homens gays, lhes d uma sensao nova de normalidade na paquera. Se para homens heterossexuais esses sites parecem apenas expandir as possibilidades de busca de parceiras, para mulheres e homossexuais eles representam a criao de um espao realmente indito para a expresso de seus desejos, vivenciar a experincia prazerosa em si mesma de ser desejado e cortejado e constituir relaes de uma forma aparentemente muito mais fcil do que antes. Mas o que rege esta nova esfera amorosa e sexual em rede? No geral, a busca online de parceiros marcada pelas mesmas expectativas e demandas que mar-

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cam estas relaes no cotidiano offline, por isso a possibilidade de comunicar-se com outro sem dividir o mesmo espao no eliminou nossa necessidade de situ-lo nele, o que explica opredomnio do carter geograficamente circunscrito dessas interaes. Desde o advento do telefone celular a principal questo passou a ser onde voc est? e isso no mudou na era das redes sociais, dos chats e sites de busca de parceiros. Posicionar o outro e a si mesmo no mundo questo-chave para iniciar e aprofundar um contato, pois tendemos a buscar interao com pessoas que podemos conhecer face a face (BAYM, 2010, p. 102). As mdias digitais trouxeram algumas novidades na esfera amorosa como a possibilidade de visualizar, pela primeira vez,o universo de parceiros em potencial, ampli-los numericamente e, sobretudo, essas mdias tambm acenam por meio dos mecanismos de busca com a possibilidade de escolher como nunca antes.3Em uma era obcecada com a corporalidade, basta observar um destes sites e ler alguns perfis para constatar a centralidade do corpo nas interaes. A comear pelas descries literalmente numricas e precisas apresentadas, passando pelas fotos e o uso da cmera ou ainda pelos formulrios dos mecanismos de busca que permitem escolher quase tudo do possvel parceiro: idade, altura, peso, cor de pele, cabelos, olhos, grau de pilosidade e, nos sites para um pblico apenas masculino, at tamanho do rgo genital. No caso de homens que buscam parceiros do mesmo sexo, um critrio de fita mtrica se torna um filtro de seleo impensvel nas relaes offline. Os perfis de busca de parceiros com frases como: no respondo a ningum com menos de 1,80m, nem entre em contato se no for malhado ou ignoro mensagens de caras com mais de 25 anos deixam claro que as interaes online, ao menos entre esses homens, tendem a ser muito mais regidas por padres corporais do que as offline. Em uma festa, algum pode despertar atrao em outra pessoa apesar de no ser alto ou malhado, o que tende a ser mais difcil em uma interao digital, constantemente marcada por filtros e avaliaes padronizadas. Isto incentivado por componentes dos sites e aplicativos, a comear pelos formulrios detalhados no preenchimento de perfis, pelos mecanismos de busca disponibilizados por eles ou ainda pelos filtros que alertam algum sobre a existncia de perfis que atendem suas demandas ou at mesmo determinam quem poder entrar em contato com ele ou ela. Esta demanda de corporalidade claramente frvola pode ter tido origem me3 Eva Illouz (2006) enfatiza esse aspecto da escolha na experincia online, o qual, em sua viso, insere de forma indita as vidas amorosas ou sexuais no universo do consumo.

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nos superficial, no fato de que sem imagem ou som as pessoas no confiam em seus interlocutores, o que o avano das plataformas e programas buscou solucionar passando do texto puro, em meados da dcada de 1990, para a incorporao de fotos at chegar ao vdeo em tempo real com som, cerca de dez anos depois. Vrias pesquisas indicam que trocar fotos, conhecer-se pela cmera, mas, principalmente, falar ao telefone, aumenta as chances de se encontrar pessoalmente. Segundo investigao de Mckenna et al., de 2002, 62% das pessoas que se conheciam online falaram tambm ao telefone, 56% trocaram fotos e 54% se encontraram pessoalmente (BAYM, 2010, p. 129). Se atualizarmos isto para o contexto tecnolgico presente, provavelmente estas porcentagens saltaram. Curiosamente, o mesmo tipo de contato que aumenta a confiana para um encontro face a face, a conversa telefnica, tambm um dos meios pelos quais as pessoas mais podem manipular informaes. Assim, no seria demais especular que a confiana no contato telefnico derive menos de sua eficincia e mais da familiaridade e confiana que historicamente - aprendemos a ter neste meio de comunicao. A possibilidade de ver e ouvir o outro diminuiu parte das desconfianas que surgem no contexto de conhecer algum online, mas no as extinguiu por completo. Ainda forte o medo de que por trs da tela esteja algum completamente distinto do que descreve, mas especialistas em relaes mediadas, como Baym, observam que difcil criar um self online muito distinto do corporificado e se a internet permite mentir, ela tambm permite ser mais honesto por causa da suspenso dos dados identificadores ou, em outros termos, do relativo anonimato em que as relaes se iniciam ou mesmo se consolidam. A maioria das pesquisas sobre a forma como usurios constroem perfis e interagem online indicam uma tendncia maior busca de autenticidade do que de mentir. Na perspectiva da sociloga Vassela Misheva (2011), em uma vertente interacionista da teoria social, isto guia a construo de um eu online de forma que a autenticidade buscada pode ser interpretada por outros como uma verso idealizada de si prprio. Em outras palavras, em qualquer tipo de plataforma online as pessoas tendem menos a mentir e mais a construir imagens estilizadas e/ou melhoradas de si mesmas. O que no impede o surgimento de sentimentos contrastivos entre a imagem online e a offline da pessoa. Estes sentimentos emergem no tanto em funo de mentiras, antes do procedimento que tericos contemporneos veem marcar a criao de perfis online: a busca de construo de uma imagem autntica de si mesmo. Segundo Sharif Mowlabocus, criao de um perfil online segue a questo: Como eu quero ser visto? Os perfis so construdos sob a perspectiva do usurio e, por isso,

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so fontes ricas para compreender os processos de auto-representao em nossa sociedade miditica. O perfil um mecanismo de identificao e autopromoo, portanto, uma forma de comodificao de si, o que, na esfera de busca de parceiros/as, j se d naquilo que configura como um verdadeiro mercado amoroso (ILLOUZ, 2006). Qualquer que seja a plataforma, a identidade online comporta trs elementos principais: nome ou nickname, imagem (foto, vdeo ou cmera em tempo real) e linguagem (escrita ou falada). No por acaso, os perfis tendem a materializar apresentaes de si inspiradas pela publicidade atual: desde o uso de apelidos chamativos, o uso de fotos em poses similares s de comerciais, filtros e corretivos digitais como Photoshop e Instagram at textos que chegam a seguir critrios similares aos de comercializao de produtos. No Manhunt, por exemplo, encontrei vrios perfis nos quais as descries chegam a usar dados como data de fabricao para a data de nascimento e prazo de validade para se referir ao tipo de relao procurada. O que, em alguns casos, ironia, em outros adotado sem qualquer reflexo, o que constatei por meio de entrevistas com os usurios. A reclamao de que muitos tentam enganar as pessoas a partir de seus perfis online recorrente entre os usurios desses sites, mas, algumas vezes, enganar mais sobre apresentar uma verso idealizada de si mesmo do que uma fictcia ou falsa, em outros termos, o resultado do que Walther (1996) chama de comunicao hiper-pessoal, aquela em que se d uma idealizao da afinidade. Segundo Walther, h trs razes principais para gostarmos mais de uma pessoa que conhecemos online: as poucas pistas que temos da pessoa do margem imaginao; como a relao surge a partir de algum interesse em comum, tendemos a imaginar que temos mais em comum ainda e, por fim, os mdia e seu espao neutro permitem que as pessoas foquem mais na produo das mensagens. No encontro face a face entre aqueles que se conheceram primeiro online, isso pode gerar contraste negativo, decepes e at mesmo acusao de que o outro mentiu sobre si mesmo. Mas basta ver o perfil de uma rede social de um amigo que conhecemos pessoalmente e compar-lo com esta pessoa no cotidiano para notarmos como, mesmo de forma parcial, estamos todos enredados nessa busca de autenticidade, de estilizao de si, a qual gera um self online que pode contrastar com o offline. Assim, deparamo-nos com a forma como uma nova tecnologia muda nossa forma de ver o mundo, nossa comunidade, nossas relaes e, por ltimo, mas no por menos, at como compreendemos a ns mesmos. Segundo Eva Illouz (2006), a construo de um perfil um processo de autoreflexo que converte o eu privado em uma performance pblica (p. 6), em

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um ideal de si mesmo que agrade a potenciais parceiros que podem comparar e escolher. Assim, o self se transforma em uma espcie de mercadoria na vitrine, em competio com outras, o que explica como a cultura do consumo e da moda influencia e at mesmo define a forma como as pessoas tentam, por meio de textos e imagens, criar uma impresso que agrade e seduza emulando poses e referncias comerciais (p. 8). Isto leva a um processo de hiper-conscientizao sobre a prpria aparncia fsica, da centralidade do corpo neste mercado altamente competitivo. Segundo a sociloga, um dos resultados mais perceptveis um processo de homogeneizao dos perfis, das descries e, acrescento algo a ser investigado, das prprias pessoas, de seus corpos e subjetividades. Este trabalho de estilizao ampliaria ansiedades sociais j existentes sobre o que significa ser a si mesmo e sobre os riscos de se relacionar com pessoas com valores distintos daqueles nos quais fomos criados (2010, p. 48). No comeo do sculo XX, o socilogo alemo Georg Simmel (2010) j refletia sobre como a sociedade contempornea, resultado da urbanizao e da crescente impessoalidade no trato entre as pessoas, criara uma maior demanda de confiana com relao a quem nos relacionamos. Hoje, inegvel que vivemos em um cenrio em que o notado por Simmel se aprofundou, pois a comunicao em espaos digitais nos expe a um borramento ainda maior das fronteiras sociais ao nos colocar em contato com pessoas de outros lugares, classes sociais, valores, etc. Da no ser estranho que, mesmo partindo de alguma afinidade, a desconfiana vigore, ao menos inicialmente, e essas relaes se desenvolvam seguindo um roteiro de construo de intimidade, compreendida como partilhamento de informaes pessoais que permitam um aumento da confiana. Afinal, como demonstrou Simmel, a confiana uma hiptese sobre a conduta futura do outro (2010, p. 42), em outras palavras, uma previsibilidade que nos d segurana no trato com ela. Partindo do contato digital, conhecer algum gera inseguranas tpicas de nossa era como o medo de que uma mesma pessoa tenha duas ou mais personalidades. Temor com razes concretas, j que temos a experincia comum de criar perfis distintos e segmentados, por exemplo, um profissional para o site de nosso empregador, outro familiar em uma rede social ou, ainda, um para lidar com um de nossos hobbies. Qual deles verdadeiro e qual falso? Somos uma juno deles ou algum no identificvel quando os justapomos, somamos ou comparamos? Segundo Nancy Baym, os dilemas da autenticidade evocados pelo uso de mdias digitais no cabem na dade do verdadeiro/falso (2010, p. 34). Sherry Turkle (2011), por sua vez, aprofunda a discusso mostrando que em busca de autenticidade

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somos treinados pelas novas tecnologias a similar ou emular o que esperado de ns. A simulao de uma identidade esperada, mesmo que buscando autenticidade entre o que mostramos e o ideal que fazemos de ns mesmos, gera comportamentos contraditrios aos olhos alheios, os quais tendem a ser associados dissimulao e mentira. Trata-se, portanto, de uma problemtica contempornea radicalizada pelas mdias digitais e que a chave da busca de autenticidade no exime de ser percebida e/ou julgada como mentira, disfarce e tentativa de enganar ao outro. Baym afirma que at possvel que algumas pessoas sejam, online, mais verdadeiras ou francas do que no offline. Apenas nada garante isso tampouco temos parmetros confiveis para reduzir ou eliminar a insegurana sobre quem est por trs de um perfil. Tememos que, online, estejamos mais expostos mentira e ao perigo, mas importante ter em mente que a mentira compreendida como a manipulao da informao oferecida ao outro sobre si mesmo pode acontecer tanto online quanto offline. Tambm, no que toca s mdias digitais, a mentira ou a omisso de informaes sobre si prprio chega a ser incentivada at mesmo pelos pais ou pela mdia como forma de proteo para quem se sente mais vulnervel pelo contato facilitado pela internet. Compreender que vivemos em uma sociedade em que as mdias digitais tm um papel cada vez mais central e generalizado mais desafiador em termos analticos porque essa tecnologia no apenas media, mas molda subjetividades e as articula no processo incessante de (re)constituio de nossa vida coletiva. Vivemos em uma cultura crescentemente digitalizada desde o advento da internet comercial, mas mal comeamos a compreend-la em seus prprios termos. Este artigo, portanto, apenas um ensaio e uma tentativa de refletir sobre um dos aspectos desta nova realidade social. Partindo dessas reflexes gerais sobre as relaes pessoais na era digital passarei para o contexto brasileiro. A cultura digital diretamente associada offline, em particular forma como certos segmentos sociais usam as mais recentes tecnologias de comunicao. Neste texto, focarei em como homens buscam articular, por meio de mdias digitais, uma vida pblica heterossexual sobretudo na famlia e no trabalho - com relaes homoerticas em sigilo. Isto exigir explorar as transformaes histricas do armrio, o regime de visibilidade que rege o binrio hetero-homossexualidade para, por fim, tentar explorar a lgica que rege relaes homoerticas masculinas brasileiras.

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O Armrio na Era Digital Em vrios contextos nacionais h estudos focados na forma como certos grupos usam as mdias digitais, mas eles tendem a circunscrever o universo de anlise a partir do pblico alvo das plataformas ao invs de explor-las a partir dos usurios. No Brasil, alguns estudos scio-antropolgicos permitem notar que os usurios frequentemente fazem uso das plataformas de formas diversas das propostas por elas, ultrapassando seus limites classificatrios. Em minha pesquisa etnogrfica sobre o uso das salas de bate papo constatei que o mesmo usurio entra em salas classificadas como dirigidas a heterossexuais, bissexuais, gays e, inclusive, para travestis e crossdressers. De forma surpreendente, e ainda um pouco enigmtica, a prpria emergncia das mdias digitais contemporneas constituiu o terreno de minha investigao, pois permitiu o acesso a experincias que, at pouco tempo atrs, eram vividas de forma altamente individualizada, silenciosa e invisvel. Refiro-me s vidas amorosas e sexuais constitudas em segredo, as quais, quando associadas ao desejo por pessoas do mesmo sexo, tm no armrio seu regime de visibilidade clssico. Segundo Eve Kosofsky Sedgwick (1990), o armrio estrutura a experincia da homossexualidade ocidental desde fins do sculo XIX. Trata-se de um regime de visibilidade intrinsecamente articulado com a criao, por meio de discursos e prticas mdico-legais, do binrio homo-heterossexualidade nas primeiras dcadas do sculo XX. Assim, o armrio adquiriu sua forma clssica quando a compreenso dominante da esfera da sexualidade tornou-se a de que seria constituda por meio de identidades auto-excludentes: as pessoas seriam heterossexuais, portanto normais, ou homossexuais, algo considerado anmalo, motivo de vergonha e, durantes dcadas, passvel de tratamento psiquitrico ou punio legal. O armrio articulava a busca de segurana por parte de homossexuais com os interesses de construo da hegemonia heterossexual. Em busca de segurana, homens e mulheres que se interessavam por pessoas do mesmo sexo passaram a articular uma vida pblica hetero a uma privada contnua ou episdica homo, contribuindo para a construo e manuteno da viso de que a heterossexualidade seria universal, mesmo porque a nica visvel e reconhecida. A despeito do uso indiscriminado do termo, o armrio um regime de visibilidade circunscrito historicamente e que, de forma geral, se insere em uma poca marcada por maior rigidez na manuteno de relaes amorosas. No mero acaso que o segredo constitutivo do armrio suscite paralelos com outras formas

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de relaes ilcitas, mesmo heterossexuais, pois ambos tm em comum a lgica de manter em segredo e na esfera privada as relaes que no atendem s expectativas coletivas. Assim, seriam produto de uma moralidade inflexvel sobre a esfera das relaes amorosas e sexuais, marcada por formas de reprovao moral e retaliaes as mais diversas para aqueles que ousassem transgredir as normas e convenes culturais de seu tempo. Produto de uma gramtica relacional que dividia as relaes em lcitas e ilcitas distribuindo reconhecimento e punio, o armrio tinha um status especial, pois, ao contrrio do que pode parecer, ele nunca foi exatamente apenas um regime de opresso homossexual, antes de disciplinamento e normalizao de um amplo espectro de sexualidades. Seus mltiplos binrios (hetero-homo, visvel-invisvel, pblico-privado, socialmente reconhecido-estigmatizado) servem para alocar experincias amorosas e sexuais em classificaes aparentemente fixas e estanques. Dentro de sua lgica, algum ou hetero ou homo e as relaes que podem ser visveis, pblicas e reconhecidas so entre pessoas do sexo oposto, monogmicas e, preferencialmente, reprodutivas. Em suma, o armrio, como parte de um imaginrio heterossexista, era um dos mais importantes meios de manuteno do que hoje j compreendemos com