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Economia e Sociedade, Campinas, v. 17, Número especial, p. 575-611, dez. 2008. O endividamento do consumidor no cerne do capitalismo conduzido pelas finanças 1 Robert Guttmann 2 Dominique Plihon 3 Resumo Partindo de uma comparação entre a dinâmica de crescimento da União Européia e dos Estados Unidos, este artigo tem por foco a dívida dos consumidores norte-americanos. Embora a dívida dos consumidores tenha crescido em todo o mundo desenvolvido, em nenhum lugar o processo foi tão longe como nos Estados Unidos. O artigo explora as razões para isso. Uma análise das causas estruturais relaciona a explosão da dívida ao status privilegiado do dólar norte-americano como moeda internacional e às inovações financeiras decorrentes desse privilégio. Várias inovações associadas às hipotecas (securitização, refinanciamento, home-equity withdrawals) converteram os norte-americanos em “compradores em última instância”, permitindo a eles emitir mais e mais dívida contra o valor de seus imóveis, ao mesmo tempo em que garantiam que esses ativos se apreciassem. O artigo então examina por que tal padrão de crescimento não poderia prosseguir indefinidamente, assim fornecendo uma nova explicação para a crise corrente, enraizada nos desequilíbrios globais decorrentes de um sistema monetário internacional assimétrico. Palavras-chave: Endividamento das famílias; Economia norte-americana; Financeirização. Abstract Consumer Consumer Consumer Consumer debt at the ebt at the ebt at the ebt at the center of enter of enter of enter of finance inance inance inance-led ed ed ed capitalism apitalism apitalism apitalism Initially presented as a cross-regional comparison to highlight differences in the growth dynamic of the European Union and the United States, this article focuses on U.S. consumer debt. While households all over the developed world have come to use more debt, nowhere has this process gone further and reached deeper than in the United States. The article explores why this should have been so. A closer look at various structural causes traces the recent explosion of U.S. household debt to the privileged status of the US-dollar as the world’s vehicle currency and to the financial innovations flowing from this privilege. Various innovations pertaining to mortgage loans (e.g. securitization, refinancing, home-equity withdrawals) have turned Americans into the world’s “buyer of last resort” by letting them borrow more and more against their rising home values while making also sure that those assets appreciated in value. The article then examines why such a debt-financed growth pattern could not go on indefinitely, thereby providing a new contextual explanation for the ongoing crisis as rooted in global imbalances arising from an asymmetric international monetary system. Key words: Consumer debt; United States; Finance-led growth. JEL E42, E43, E 44, E58, E63, F32, F33, F34, G01, G15, G18, G21, H63. (1) Tradução do inglês por Marcelo Freire. Revisão técnica de Fabrício Pitombo Leite. (2) CEPN, Paris-Nord. (3) CEPN, Paris-Nord.

Economia e Sociedade Especial Artigo 3

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  • Economia e Sociedade, Campinas, v. 17, Nmero especial, p. 575-611, dez. 2008.

    O endividamento do consumidor no cerne do capitalismo conduzido pelas finanas 1

    Robert Guttmann 2 Dominique Plihon 3

    Resumo

    Partindo de uma comparao entre a dinmica de crescimento da Unio Europia e dos Estados Unidos, este artigo tem por foco a dvida dos consumidores norte-americanos. Embora a dvida dos consumidores tenha crescido em todo o mundo desenvolvido, em nenhum lugar o processo foi to longe como nos Estados Unidos. O artigo explora as razes para isso. Uma anlise das causas estruturais relaciona a exploso da dvida ao status privilegiado do dlar norte-americano como moeda internacional e s inovaes financeiras decorrentes desse privilgio. Vrias inovaes associadas s hipotecas (securitizao, refinanciamento, home-equity withdrawals) converteram os norte-americanos em compradores em ltima instncia, permitindo a eles emitir mais e mais dvida contra o valor de seus imveis, ao mesmo tempo em que garantiam que esses ativos se apreciassem. O artigo ento examina por que tal padro de crescimento no poderia prosseguir indefinidamente, assim fornecendo uma nova explicao para a crise corrente, enraizada nos desequilbrios globais decorrentes de um sistema monetrio internacional assimtrico.

    Palavras-chave: Endividamento das famlias; Economia norte-americana; Financeirizao.

    Abstract Consumer Consumer Consumer Consumer ddddebt at the ebt at the ebt at the ebt at the ccccenter of enter of enter of enter of ffffinanceinanceinanceinance----lllled ed ed ed ccccapitalismapitalismapitalismapitalism

    Initially presented as a cross-regional comparison to highlight differences in the growth dynamic of the European Union and the United States, this article focuses on U.S. consumer debt. While households all over the developed world have come to use more debt, nowhere has this process gone further and reached deeper than in the United States. The article explores why this should have been so. A closer look at various structural causes traces the recent explosion of U.S. household debt to the privileged status of the US-dollar as the worlds vehicle currency and to the financial innovations flowing from this privilege. Various innovations pertaining to mortgage loans (e.g. securitization, refinancing, home-equity withdrawals) have turned Americans into the worlds buyer of last resort by letting them borrow more and more against their rising home values while making also sure that those assets appreciated in value. The article then examines why such a debt-financed growth pattern could not go on indefinitely, thereby providing a new contextual explanation for the ongoing crisis as rooted in global imbalances arising from an asymmetric international monetary system.

    Key words: Consumer debt; United States; Finance-led growth. JEL E42, E43, E 44, E58, E63, F32, F33, F34, G01, G15, G18, G21, H63.

    (1) Traduo do ingls por Marcelo Freire. Reviso tcnica de Fabrcio Pitombo Leite. (2) CEPN, Paris-Nord. (3) CEPN, Paris-Nord.

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    Durante o vero de 2007 a crise imobiliria dos EUA transformou-se em um arrocho de crdito [credit crunch] global que est ameaando transtornar a economia mundial. Enfrentamos hoje (meados de 2008) a perspectiva de uma desacelerao significativa ou mesmo de uma recesso global. No importa qual desses cenrios por fim se revelar, o arrocho progressivo colocou em xeque a viabilidade a longo prazo de um padro de crescimento global que, nas ltimas dcadas, contou em grande medida com os Estados Unidos como o comprador de ltima instncia do mundo.

    Essa dramtica reviravolta coloca em risco a transio suave para um novo regime de acumulao conduzido pelas finanas [finance-led accumulation regime] e para um novo padro de crescimento multipolar. Se a crise ainda no sistmica, o surto atual de problemas nos principais mercados financeiros do mundo certamente sinaliza o primeiro grande teste de resistncia desse novo regime. Ns gostaramos de enfocar, nesse artigo, um pilar central do regime o endividamento das famlias americanas a fim de extrair algumas percepes plausveis sobre a natureza e implicaes da crise atual.

    1 Da economia do endividamento ao capitalismo conduzido pelas finanas

    Depois do colapso do padro-ouro e do sistema bancrio norte-americano no incio da dcada de 1930, o New Deal de Roosevelt introduziu reformas monetrias em especial o Glass-Steagall Act de 1933 e o Bank Act de 1935 que proporcionaram economia americana uma moeda elstica e um sistema bancrio seguro. O novo sistema tornou-se um pilar do boom do ps-guerra. Ao permitir a criao de moeda atravs da extenso do crdito, o sistema bancrio ficou em posio de financiar o rpido crescimento econmico. Uma parte desse funding assumiu a forma de emprstimos bancrios. Alm disso, os bancos auxiliaram mais indiretamente os devedores comprando seus ttulos do tesouro, municipais ou debntures. No obstante esses dois canais alternativos de funding, podemos caracterizar como economia do endividamento4 esse contnuo financiamento do gasto excedente a partir da emisso de dvida (e sua monetizao automtica) pelo sistema bancrio.

    necessrio distinguir a nossa noo de economia do endividamento da sua equivalente semntica em francs, a assim chamada conomie dendettement. Durante o boom do ps-guerra, conhecido na Frana como os trinta gloriosos (1944-1974), sistemas financeiros baseados em bancos foram um dos principais

    (4) Para uma explicao mais abrangente sobre a economia do endividamento, ver Guttmann (1994). preciso distinguir cuidadosamente esse conceito do seu equivalente semntico francs, economie dendettement que, em reflexo nfase que a Europa Continental no ps-guerra deu ao crdito administrado rigidamente regulado, atribuindo ao estado um papel importante ao determinar a alocao e condies de crdito, enfatiza um sistema de crdito baseado em emprstimos bancrios ao invs de em mercados financeiros.

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    pilares do desenvolvimento econmico na Europa continental. O estreito relacionamento entre bancos e indstrias, conhecido como conexo banque-industrie, considerado um dos principais fatores subjacentes ao rpido crescimento econmico europeu. As polticas pblicas tambm desempenharam um papel ativo na formatao do sistema financeiro na Europa. Na Alemanha, assim como na Frana, os bancos estatais (nacionais ou regionais) atuaram como protagonistas em suas economias nacionais. As regulaes foram importantes para controlar a distribuio dos emprstimos bancrios e as taxas de juros. As transaes no mercado de cmbio tambm estiveram sob rgido controle (contrle des changes) at o final da dcada de 1980. A desregulao ocorreu com a constituio do mercado nico europeu para servios financeiros no incio da dcada de 1990.

    Voltando nossa economia do endividamento do ps-guerra, a capacidade desse sistema de gerar uma oferta constante de crdito barato ajudou os governos a incorrerem em dficits oramentrios crnicos e as empresas a adotarem tecnologias de produo em massa. A extenso internacional da economia do endividamento, abordada na Conferncia de Bretton Woods em 1944, permitiu que outras naes industrializadas alcanassem os Estados Unidos por meio de uma transferncia sistemtica de capital deste pas para as primeiras durante as dcadas de 1950 e 1960. As taxas de cmbio fixas de Bretton Woods complementaram um vis domstico de baixas taxas de juros, oferecendo assim uma combinao de preos da moeda promotora do crescimento.

    As polticas macroeconmicas keynesianas expansionistas puderam florescer em tal regime monetrio, seja pela promoo de gastos governamentais mais elevados, pela diminuio dos impostos, pelo aumento dos gastos privados com investimento, ou por uma combinao desses. Foram fornecidos a ambos os setores, pbico e privado, fundos abundantes para manter a elevao contnua nos nveis de endividamento, sustentando a acelerao dos gastos. Em tal ambiente favorvel, no demorou muito para que a economia do endividamento se estendesse ao consumo das famlias, o maior componente de gasto da economia que absorve, tipicamente, dois teros da demanda agregada nas naes industrializadas. Como pode ser visto no Grfico 1, a prosperidade das dcadas de 1950 e 1960 revelou taxas crescentes de endividamento das famlias e das corporaes. Aproveitando o declnio contnuo do nus da dvida pblica em virtude dos dficits oramentrios muitos menores que se seguiram converso para uma economia de paz, o uso crescente de endividamento pelo setor privado ainda deixou a razo dvida agregada/renda estvel em um ambiente de rpido crescimento. Os dados mostram ainda que a dvida das famlias se elevou de uma razo de 0,37 em 1947 para mais de 0,80 no final da dcada de 1960, o que demonstra sua importncia para o crescimento ocorrido.

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    Grfico 1 Razes dvida/renda (EUA)

    Fonte: Council of Economic Advisors (1973).

    1.1 Estagflao e a revoluo da poltica neoliberal

    Esse cenrio promissor desapareceu depois de 1969 quando a economia dos EUA enfrentou uma dcada de crescimento bem mais lento e de acelerao da inflao. Essa combinao, conhecida como estagflao, alimentou uma espcie de espiral dvida-inflao e exps a necessidade de mudanas regulatrias abrangentes nos sistemas monetrio e bancrio para conseguir colocar as presses inflacionrias sob controle no incio da dcada de 1980 notavelmente, um movimento em direo s taxas de cmbio flutuantes, depois de 1973, e desregulao das taxas de juros, depois de 1979.5 Essas mudanas na determinao dos preos da moeda foram apenas os primeiros passos de uma desregulao mais ampla do sistema bancrio, primeiro nos EUA (pelos Depository Institutions Deregulation and Monetary Control Act, de 1980, Depository Institutions Act, de 1982 e, finalmente, Financial Services Modernization Act, de 1999), depois tambm na UE (pela Second Banking

    (5) A segunda exploso do preo do petrleo, na esteira da Revoluo Islmica do Ir, foi parte de um conjunto mais amplo de foras perturbadoras que abalaram a economia mundial em 1979; notavelmente uma acelerao acentuada no declnio do dlar, a rpida propagao das presses inflacionrias ao redor do globo e a reviravolta espetacular na poltica monetria do FED, mudando a meta das taxas de juros para o controle dos agregados monetrios, o que triplicou (para mais de 20%) as taxas de juros dos ttulos denominados em dlares em poucas semanas.

    Dvida total / PIB Dv. Famlias / Cons. Dv. Empresas / Inv.

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    Directive de 1989). Comprometidos com a mudana na poltica monetria para uma nfase monetarista na estabilidade de preos, os governos dos EUA e UE tomaram uma deciso deliberada de alterar as relaes de poder no sistema de crdito de um vis pr-devedor para outro pr-credor. Ao mesmo tempo, essas reformas nos sistemas monetrio e bancrio impuseram uma dolorosa desinflao aos devedores sobre-endividados. O vetor essencial dessa mudana, taxas de juros reais (i.e. ajustadas pela inflao) recordes por mais de uma dcada, fomentou a reestruturao industrial em escala significativa. As altas taxas de juros compeliram as empresas a tomarem decises de investimento mais prudentes, reduziram seus horizontes de investimento (encorajando, em ltima instncia, a nfase na alta tecnologia e na acumulao de ativos financeiros), estimularam a gesto financeira centralizada, e colocaram mais presso na manuteno dos custos de mo-de-obra sob controle. Mudanas institucionais nas modalidades de determinao dos salrios, que culminaram no enfraquecimento dos sindicatos, dos procedimentos de negociao coletiva e das restries contratao e demisso nas leis trabalhistas, facilitaram para as empresas reassumir o controle dos custos de mo-de-obra e diminuir o ritmo dos aumentos salariais. Como esses esforos de reorganizao tiveram o efeito desejado de eliminar as presses inflacionrias, foi possvel que as taxas de juros cassem (no incio da dcada de 1990) e permanecessem baixas por aproximadamente 15 anos (ver o Grfico 2).

    Grfico 2 Taxas de juros nos EUA

    Fonte: Council of Economic Advisors (2008).

    T-bill (3m.) Fed funds Debntures

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    Essas mudanas ps-crise estabeleceram condies que, posteriormente, permitiriam o renascimento (e eventual extenso) da economia do endividamento nos EUA, em um ritmo ainda mais agressivo. Livres das pesadas restries reguladoras, os bancos americanos ganharam a capacidade de definir condies de emprstimo mais favorveis, acelerar a inovao financeira e ampliar dramaticamente o mbito de provedores de fundos. Por fim, a desregulao fomentou a integrao das atividades de banco comercial (i.e. tomar depsitos, originar emprstimos) com as de banco de investimento (i.e. organizar o mercado) em uma rede muito mais complexa de transaes financeiras e contratos entrelaados. No centro dessa rede esto os bancos transnacionais lderes do mercado mundial, que, na ltima dcada, transformaram-se em grupos financeiros multifacetados que combinam todo o espectro de atividades e servios financeiros (e.g. de bancos comerciais e de investimento, de gesto de fundos, de seguradoras). Em oposio aos antigos bancos universais to dominantes na Frana e Alemanha do ps-guerra, os grupos financeiros de hoje visam promover os mercados financeiros como fontes de rendimentos em vez de impedir seu desenvolvimento em favor das funes tradicionais de banco comercial. Tirando proveito da desregulao precedente e com uma maior prtica na combinao de diferentes funes financeiras, os bancos europeus estiveram, por um momento, frente de seus pares norte-americanos nessa transformao da atividade bancria.

    1.2 O capitalismo conduzido pelas finanas e suas foras subjacentes Tais grupos financeiros esto no centro de um tipo qualitativamente novo

    de sistema econmico, que os economistas heterodoxos, particularmente os Regulacionistas franceses e os Economistas Polticos Radicais americanos, tm chamado de capitalismo conduzido pelas finanas [finance-led capitalism].6 Diferentes caractersticas desse novo regime foram enfatizadas. Uma delas refora a dominncia de motivos financeiros, especialmente o da maximizao dos valores acionrios, como o objetivo primrio da empresa e princpio bsico da governana corporativa (Krippner, 2004; Plihon, 2004). Relacionada a isso, est a nfase na posio estratgica dos investidores financeiros, uma classe ressurgida de rentistas alada recentemente dominncia numa espcie de capitalismo patrimonial (Aglietta, 1998), e na sua capacidade de pleitear uma fatia maior da renda nacional por meio de uma variedade de fontes de rendimentos do capital, como juros, dividendos, taxas e comisses por servios, e ganhos de capital (Epstein, 2004). Cada vez mais, economistas heterodoxos esto usando o termo financeirizao

    (6) As principais contribuies da Escola de Regulao Francesa a esse respeito foram Aglietta (1998), Orlean (1999), Boyer (2000), Plihon (2004), e Coriat, Petit, e Schmeder (2006). Entre os radicais americanos que enfatizam a dominao do capitalismo contemporneo pelo capital financeiro, observar especialmente Epstein (2004) e a edio especial vindoura da Review of Radical Political Economics sobre A financeirizao do capitalismo global: anlise, criticas e alternativas, prevista para o incio de 2008.

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    [financialization] para realar as diferentes dimenses da importncia crescente das finanas e as implicaes macroeconmicas dessa tendncia (Stockhammer, 2007), muitas vezes questionada pelos seus efeitos restritivos sobre a distribuio e o crescimento (Stockhammer, 2004; Hein; Van Treeck, 2007).

    A financeirizao foi um processo global iniciado primeiro nos EUA e Reino Unido, no final da dcada de 1970, de onde se disseminou com ritmos diferentes para os outros principais pases industrializados. A desregulao, a globalizao e as inovaes financeiras atuaram como protagonistas nesse processo de convergncia global rumo ao capitalismo conduzido pelas finanas. Certamente, a Frana foi um dos pases europeus onde as alteraes foram mais rpidas e profundas. As privatizaes e reformas financeiras conduzidas por sucessivos governos (inclusive os socialistas) desde meados dos anos 1980 levaram a uma rpida transio do capitalismo de estado para a insero francesa no capitalismo global conduzido pelas finanas. Os maiores bancos e empresas franceses so de propriedade de investidores institucionais, mormente, estrangeiros (EUA). O que vemos aqui uma dialtica interessante entre uma heterogeneidade contnua resultando numa variedade de diferentes capitalismos (Amable, 2005) e uma convergncia sistmica mundial causada pela desregulao e pelo papel cada vez mais dominante das finanas.

    Quaisquer que sejam as caracterizaes especficas do capitalismo conduzido pelas finanas, ponto comum que o novo regime coloca motivos, instrumentos e mercados financeiros no centro do processo de crescimento. No entanto, como permitimos que a busca por ganhos pecunirios fosse dirigida to fortemente para os canais financeiros em vez dos comerciais ou produtivos? Em nossa opinio, h trs foras inter-relacionadas por trs dessa alterao fundamental no modus operandi do capitalismo: a dependncia aumentada do endividamento em todos os ramos de atividades econmicas, a facilitao de tal financiamento via endividamento pela inovao financeira, e a globalizao financeira como a fora mais transcendental na internacionalizao do capital.

    evidente que o capitalismo contemporneo conduzido pelas finanas, uma vez que , em grau sem precedentes, controlado por uma comunidade sempre crescente de investidores financeiros suprindo fundos a devedores que buscam acelerar seu crescimento por meio de endividamento adicional. Ao sinalizar o acesso a fundos de terceiros, o endividamento permite que seus usurios separem o gasto da renda e operem em uma escala maior do que fariam de outro modo. Nossa crescente dependncia do financiamento via endividamento bastante facilitada pelo ritmo acelerado da inovao financeira. Menos limitada pela tecnologia do que a inovao industrial, a inovao financeira depende mais da capacidade humana de engendrar novas promessas, torn-las reivindicaes legalmente exeqveis de parte da receita futura de algum e, finalmente,

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    organizar mercados onde possam ser negociadas com ganhos. Esse tipo de atividade (planejamento e levantamento de fundos) tem baixos custos irrecuperveis, porm, pelo mesmo motivo, pode ser facilmente copiado por outros. Seu ciclo de vida relativamente curto viabiliza tanto um ritmo acelerado quanto um vis para customizao, o que torna tais inovaes no sistema de crdito menos facilmente copiveis, como est especialmente manifesto hoje nos produtos financeiros estruturados ou na gesto da riqueza privada. As principais inovaes financeiras, notavelmente os derivativos (e.g. contratos futuros, opes) e produtos de securitizao (e.g. ttulos lastreados em hipotecas, obrigaes colateralizadas por dvidas), nos levaram a empregar dez, doze, talvez quinze dlares em transaes puramente financeiras para cada dlar do comrcio e da produo por trs das mesmas. Essa multiplicao de registros acomoda uma ampliao igualmente impressionante da comunidade de investidores, conseqncia da acumulao de riqueza por parte de mais agentes e testemunho adicional da atrao irresistvel que as fontes de receita financeira exercem por serem de obteno mais fcil que os lucros industriais, aluguis, ou quaisquer outros rendimentos provenientes da propriedade do capital. A propagao de investidores e mercados financeiros um acontecimento global. Em relao s instalaes e equipamentos usados como meios de produo ou ao trabalho, muito mais fcil movimentar dinheiro internacionalmente. Assim, o capital financeiro inerentemente a forma mais mvel de capital, especialmente quando grande parte da transferncia de fundos e das atividades de negociao de ttulos for movimentada on-line, no ciberespao. A organizao cada vez mais transnacional das instituies e mercados financeiros a ponta de lana do processo de globalizao mais amplo que j remodelou fundamentalmente nosso sistema econmico.

    2 A macrodinmica do financiamento da dvida

    O capitalismo conduzido pelas finanas possui uma dinmica prpria de acumulao, seu padro especfico de crescimento. Normalmente, usamos o arcabouo keynesiano de oferta e demanda agregadas, especialmente sua variante IS/LM, para prover uma estrutura multissetorial dos usos e fontes de fundos, como no caso da anlise do fluxo de fundos do FED. Ps-keynesianos trabalhando em conjunto no Levy Institute, como Godley (2002), Godley; Izurieta e Zezza (2004), ou Godley; Papadimitriou; Hannsgen e Zezza (2007), refinaram recentemente esse arcabouo a fim de realar os principais (des)equilbrios macroeconmicos que atuam como pilares da nossa moderna economia do endividamento. O argumento destes o seguinte:

    A renda nacional real (ajustada pela inflao) do pas, Y, definida como: Y = X M + G + A (1)

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    Admitindo que todas as variveis so fluxos deflacionados, G representa os gastos do governo, X as exportaes mais os rendimentos de propriedade e as transferncias do exterior, e M as importaes. Compreendendo o consumo C e o investimento empresarial I, a varivel A representa a absoro, significando o gasto privado total. Subtraindo T, definido como impostos e transferncias governamentais, de ambos os lados e reorganizando, temos:

    Y T = (X M) + (G T) + A (2) ou

    0 = (X M) + (G T) + (Y A) (3) A equao (1) descreve os trs principais saldos no nvel

    macroeconmico, i.e. o saldo fiscal do governo (G T), o saldo externo ou em conta corrente (X M), e a poupana lquida privada (Y A).

    Embora, em si mesmas, no passem de igualdades contbeis, essas equaes carregam importantes implicaes. A equao (3) nos informa que o supervit em conta corrente identicamente igual ao saldo do oramento governamental mais a poupana lquida privada. Cada saldo implica uma alterao equivalente numa varivel de estoque. Por exemplo, um dficit em conta corrente implica uma alterao no estoque de ativos estrangeiros, enquanto que um dficit oramentrio implica uma alterao no estoque de dvida pblica e um saldo privado implica uma alterao lquida na riqueza privada.

    A anlise da poupana lquida para o setor privado como um todo requer que o total seja desagregado nos setores pessoal e empresarial, visto que esses se comportam, muitas vezes, de modo totalmente diferente. A desagregao do setor privado leva a:

    0 = (X M) + (G T) + (Yh C) + (Yb I) (4) onde Yh a renda disponvel das famlias e Yb a renda do setor empresarial, de modo que Y = Yh + Yb, resultando na poupana lquida pessoal ser expressa por (Yh C) e a poupana lquida empresarial por (Yb I). A poupana lquida pessoal implica uma alterao lquida no estoque de riqueza das famlias, e a poupana lquida do setor empresarial acompanha uma mudana lquida no estoque de riqueza do setor empresarial.

    Cada um desses quatro saldos setoriais representa um fluxo que sai de circulao da economia domstica (vazamento), compensado pela entrada de outro (injeo). Ao medir os fluxos de gastos de entrada e sada do respectivo setor, sendo postos ou retirados de circulao na economia, cada saldo avalia o efeito do setor sobre a demanda agregada. De forma simtrica, cada saldo mede a entrada e sada de fluxos financeiros na economia a partir de um setor, ajudando a esclarecer como esses afetam a riqueza agregada na economia. As desigualdades

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    entre esses fluxos dobrados de entrada e sada definem se o setor especfico contribui para a poupana lquida ou, incorrendo em gastos deficitrios, se necessita captar recursos em fontes de fundos disponveis em outros setores. Se, por exemplo, o pas em questo apresenta um saldo positivo na poupana privada, pode incorrer num dficit oramentrio proporcionalmente grande e/ou num supervit em conta corrente que o tornar exportador de capital para o resto do mundo. Alternativamente, o modelo de Godley et alii nos permite especificar o que deve acontecer no resto da economia para acomodar uma mudana no saldo de um setor. Se, por exemplo, nosso pas sofrer uma reduo na poupana lquida pessoal, ter de aumentar a poupana lquida empresarial (talvez por um declnio do investimento, induzido por uma recesso), cortar proporcionalmente o dficit oramentrio, aumentar as importaes de capital (por meio de um maior dficit em conta corrente) ou, ainda, implementar ajustes que combinem vrias dessas respostas.

    Apesar de ser til para a identificao dos principais indutores macroeconmicos subjacentes a um padro particular de crescimento de uma economia nacional, o tipo de anlise apresentado aqui permanece essencialmente num arcabouo de esttica comparativa. Avalia a constelao prevalecente de (des)equilbrios em dois pontos (separados e congelados) do tempo, sem nos informar exatamente como caminhamos de l para c, ou de ento para agora. Embora a soma dos quatro saldos acima deva ser zero, compensando-se mutuamente de modo completamente interdependente, cada qual mais do que apenas um resduo dos demais. Cada saldo tem vida prpria. Quando um saldo muda, provoca a equivalncia necessria com os outros trs, para que permaneam compensados, atravs de determinadas alteraes nos nveis de variveis macroeconmicas tais como produto real, preos, taxas de juros e taxas de cmbio. Desde que o trabalho pioneiro de Godley e Lavoie (2006) nos forneceu um conjunto completo de modelos de consistncia entre fluxos e estoques (SFC [stock-flow consistent]), podemos traar o padro de crescimento da economia ao longo do tempo. Nesse modelo, os saldos financeiros de cada setor tm contrapartidas exatas nas alteraes das variveis de estoque, de modo que os estoques de ativos e passivos forneam o vnculo entre os diversos perodos para o traado preciso do tempo histrico. Uma vantagem adicional do modelo Godley-Lavoie que ele contm os fluxos do setor financeiro com relao aos outros setores e seus estoques de ativos e passivos, considerando o sistema de crdito como uma fora ativa na formatao do padro de crescimento da nossa economia.

    3 A centralidade emergente do endividamento do consumidor

    Ao examinar os quatro macro-indutores dos modelos ps-keynesianos, podemos perceber que, nas ltimas dcadas, todos eles desfrutaram de grande acesso ao financiamento atravs do endividamento.

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    3.1 Endividamento pblico no contexto da revoluo poltica neoliberal

    Por exemplo, os governos em toda parte incorreram em dficits oramentrios crnicos (G > T). Esse gasto excedente tipicamente financiado pela emisso de ttulos do tesouro e parte destes adquirida pelo sistema bancrio domstico para a monetizao parcial dessa dvida.7 Enquanto que as despesas deficitrias do governo acrescentam um estmulo estabilizador economia e financiam muitas atividades socialmente teis, que no podem ser adequadamente tratadas pela economia de mercado movida pelos lucros (e.g. investimento em infra-estrutura, educao, manuteno de renda para pessoas sem rendimentos regulares no mercado), o endividamento pblico excessivo e os nveis de monetizao continuamente elevados podem alimentar presses inflacionrias. Economias com dficits oramentrios cronicamente elevados sofreram graves crises fiscais durante a dcada de 1980 e incio da dcada de 1990, quando taxas de juros reais em nveis persistentemente acima das taxas de crescimento intensificaram o nus composto pela dvida pblica acumulada anteriormente. Nos principais pases industrializados do G7, a razo da dvida pblica medida como porcentagem do PIB subiu acentuadamente de 20,5% em 1980 para 30,8% em 1990 e 41,9% em 1995. Essa elevao ameaava o controle dos dficits oramentrios devido ao rpido crescimento dos encargos dos servios da dvida pressionando as despesas do governo, e essa ameaa foi o principal motivo pelo qual os governos tiveram de cortar gastos sociais nos anos recentes abaixo dos nveis previstos. Isso foi especialmente verdade nos Estados Unidos, nos anos 1990, durante a vigncia das limitaes de gastos do tipo pay-as-you-go de Clinton. Na Unio Europia, a presso pela disciplina fiscal talvez tenha sido at mais severa, graas capacidade de monetizao mais restrita do Banco Central Europeu (quando comparado com o FED americano) e aos limites nos dficits oramentrios e nveis de endividamento pblico impostos pelo chamado Pacto de Estabilidade e Crescimento, nos 15 pases integrantes da zona do euro. Os governos nas economias de mercado emergentes, em grande parte despojados, desde a grande crise de 1997-9, do acesso aos emprstimos bancrios domsticos que at ento estavam sob seu controle poltico, vem seus limites especficos de gasto deficitrio sendo atualmente determinados pela sua aceitao nos mercados internacionais de ttulos, com os quais foram forados a contar.

    3.2 Dbito corporativo nos EUA e na UE

    O dbito corporativo tambm teve ampla oportunidade de se expandir de modo estvel, quer para financiar despesas com capital de giro durante perodos de

    (7) Essa monetizao ocorre independentemente da nova moeda ser criada por bancos comerciais, gastando suas reservas excedentes para comprar securities, ou pelo banco central, aumentando seu estoque de ttulos do tesouro e pagando por tais aquisies atravs da injeo de mais reservas no sistema bancrio. A compra de ttulos governamentais tambm fornece uma injeo adicional de liquidez na economia que, desde que praticada com relativa moderao, torna a carga efetiva da dvida pblica menos onerosa.

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    lacunas no fluxo de caixa, em bases de curto prazo, quer para investimentos em larga escala na capacidade produtiva, baseados num endividamento de longo prazo. Empresas de pequeno e mdio porte, que no tm capacidade de emisso de ttulos nem aes, dependem inteiramente dos emprstimos bancrios para a obteno de financiamento externo. Nos ltimos 15 anos, com o mercado muito mais ativo para ofertas iniciais na bolsa (IPOs) e o sucesso do lanamento de um grande mercado especfico para ttulos de alto rendimento, o nmero de empresas com condies de se autofinanciar pela emisso de securities aumentou tremendamente, tornando-as menos dependentes dos emprstimos bancrios. Empresas europias, ao longo desse mesmo perodo, aumentaram dramaticamente a emisso de debntures, uma das repercusses positivas do papel internacional cada vez mais crescente do e da criao gradual de um espao financeiro nico atravs da Unio Europia, como resultado do Single European Act de 1987. Nos anos 1990, e ainda mais durante a recuperao de 2002-07, os setores empresariais dos EUA e UE colheram os frutos dos seus esforos de longo alcance de reestruturao corporativa realizados na dcada anterior, auferindo consistentemente taxas de lucro maiores e administrando taxas de autofinanciamento dramaticamente mais adequadas. Quando empresas de grande porte persistem em contrair novas dvidas de valores expressivos, estas so para atender s demandas do mercado financeiro (e.g. recompra de aes) e melhorar o controle societrio (fuses, aquisies, tentativas hostis de encampao, parcerias).

    3.3 Endividamento do consumidor e estagnao dos salrios

    Evidentemente, o aumento na capacidade produtiva, que as empresas podem financiar alm das receitas por meio de emprstimos bancrios, debntures e novas emisses de aes, tem que ser acompanhado pelo aumento proporcional da demanda no outro lado da equao de mercado. Enquanto esse pode advir dos prprios gastos empresariais ou dos gastos governamentais, nos parece mais verossmil, especialmente quando olhamos para isso no agregado, considerar tal impulso pelo lado da demanda como originado no consumo das famlias (que representa, na maior parte das economias, de longe o maior componente da demanda, surpreendentes 72% do PIB total nos Estados Unidos). Todavia, durante as ltimas trs dcadas, presenciamos uma inflexvel estagnao dos salrios nas naes industrializadas. Essa tendncia se afigurou primeiro na dcada de 1970, quando os salrios da indstria no conseguiram acompanhar o passo da inflao galopante, foi intensificada durante a abrangente reestruturao corporativa dos anos 1980, e finalmente se estendeu ainda mais com a entrada repentina de 3 bilhes de pessoas na economia mundial em conseqncia do colapso do comunismo em 1991. A eroso concomitante da parcela de rendimentos do trabalho na maioria das naes industrializadas (ver o Grfico 3), combinada adicionalmente com a ampliao da desigualdade entre a minoria vencedora e a

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    maioria perdedora com o processo de globalizao, ameaou a estabilidade econmica domstica, fomentando a possibilidade de condies de superproduo que exigiam ajustes recessivos (para restabelecer o equilbrio entre oferta e demanda).

    Muitos pases, especialmente as economias de mercado emergentes e aquelas potncias industriais tradicionais como Japo ou Coria do Sul, conseguiram escapar de tal desequilbrio atravs de estratgias de crescimento voltadas exportao [export-led], muitas vezes alimentadas pela manuteno de uma moeda domstica subvalorizada por meio do controle ativo das taxas de cmbio. Obviamente, nem todos podem obter supervits em conta corrente (X > M). Alguns pases tm de absorver todos esses produtos dos pases superavitrios atravs de dficits na sua balana comercial. Os consumidores em tais pases podem, obviamente, contribuir para essa absoro mesmo por trs das rendas salariais estagnadas, poupando menos e/ou trabalhando mais (como aconteceu especialmente nos EUA e, em menor escala, tambm na Europa). Ao final, porm, ambas as respostas possuem limitaes fsicas. Nesse contexto, a facilitao dos gastos das famlias adequados, a despeito da renda estagnada, assegurada de modo mais efetivo pelo acesso ao endividamento do consumidor, de forma que o gasto das famlias possa ser descasado dos limites da renda.

    Grfico 3 Declnio da parcela do trabalho na renda das principais economias industrializadas

    Fonte: International Monetary Fund (2007).

    G7 Economias avanadas

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    possvel perceber que essa tendncia est se manifestando em todas as principais economias capitalistas avanadas. Em todo mundo industrializado, ao longo das ltimas poucas dcadas, pudemos ver a correlao entre parcelas de salrios estagnadas, ou mesmo em declnio, e o crescente uso do endividamento do consumidor. Suspeitamos que possa mesmo haver uma relao simbitica entre os dois, no sentido de que por meio da permanncia do consumo impulsionado pelo endividamento em nveis suficientemente altos, o crescimento do PIB pode ento ser incitado o bastante para sustentar, por sua vez, o crescente uso do endividamento pelas famlias por um longo perodo de tempo. A Tabela 1 mostra o aumento do endividamento do consumidor como uma porcentagem da renda disponvel nos Estados Unidos e Frana entre 1975 e 2006. Em ambos os casos essa razo dobrou, ainda que, em um lado do Atlntico, fosse duas vezes maior do que no outro lado.

    Tabela 1 Dvida das famlias como % da renda disponvel

    1975 2006 Estados Unidos 62 127 Frana 33 68 Fonte: OCDE.

    Essas constataes so adicionalmente confirmadas nos Grficos 4A e 4B, abaixo, que representam o aumento dos nveis de endividamento dos consumidores em todas as naes industrializadas especificadas, enquanto apontam, ao mesmo tempo, para o nvel comparativamente alto do endividamento das famlias nos Estados Unidos (ECB, 2007b). Isso suscita a pergunta sobre a razo das famlias americanas assumirem nveis significativamente mais altos de endividamento em relao a suas contrapartes na Frana, Alemanha ou Japo, por exemplo.

    Um modo de responder essa pergunta apontar para uma constelao de complementaridades institucionais nos Estados Unidos, as quais criaram conjuntamente esse vis em prol de nveis mais elevados de endividamento entre os americanos. Primeiro, h um consenso nacional, adotado rapidamente mesmo pelo mais recente imigrante almejando se integrar, sobre perseguir o Sonho Americano que, na prtica, acaba sendo traduzido pela satisfao de possuir a casa prpria e uma crescente capacidade de gastar. A mentalidade de enriquecimento rpido fortemente arraigada, timidamente contida pela religio organizada e/ou pelas tradies anticapitalistas encontradas aqui ou acol, permite que o rico dite as normas sociais de consumo para o restante dos Estados Unidos.

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    Grfico 4A Razo da dvida das famlias na Zona do Euro

    Fonte: Banco Central Europeu. Fonte: Banco Central Europeu e Eurostat.

    Grfico 4B Endividamento das famlias na Zona do Euro e em alguns pases selecionados

    EA=Zona do Euro; AU=Austrlia; CA=Canad; DK=Dinamarca; JP=Japo; NO=Noruega; NZ=Nova Zelndia; SE=Sucia; UK=Reino Unido; US=Estados Unidos. Fontes: Eurostat, BIS, OCDE, e Bancos Centrais Europeu, dos EUA, do Japo, da Nova Zelndia e da Sucia.

    As preferncias ideolgicas em prol de uma estrutura reduzida de governo tambm levaram os norte-americanos a confiarem determinadas necessidades, que no resto do mundo so providas como bens pblicos pelos prprios governos, regulao do mercado e, por isso, eles acabaram pagando muito por coisas como educao, sade, transporte, et cetera. Muito disso financiado por endividamento, como os emprstimos a estudantes e os financiamentos de carros. Tais canais de

    Emprstimos das Instituies Monetrias e Financeiras para as famlias e empresas no-financeiras (Variaes percentuais anuais)

    Razes dos Emprstimos das Instituies Monetrias e Financeiras / PIB para as famlias e empresas no-financeiras (Percentagens)

    famlias empresas no-financeiras

    famlias empresas no-financeiras

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    emprstimos especializados amplamente disponveis so uma expresso de um sistema de endividamento do consumidor altamente desenvolvido. Esse segmento popular do sistema de crdito dos EUA, impulsionado agressivamente pelos bancos comerciais e por prestamistas mais especializados (e.g. cooperativas de crdito, financeiras) em um ambiente muito competitivo, foi amparado por muitas dcadas at agora pelo governo americano, atravs de uma combinao de redues de impostos, afrouxamentos regulatrios, e de concessionrios de emprstimo de responsabilidade do governo encarregados de promover seus segmentos de endividamento do consumidor (e.g. Fannie Mae e Freddie Mac para as hipotecas, e Sally Mae para os emprstimos a estudantes). Afinal, os EUA construram toda uma economia em torno do endividamento do consumidor, incluindo agncias de anlise de crdito que avaliam a reputao de cada famlia americana, conselheiros de dbitos, agncias de cobrana e consultores financeiros. Os americanos tm unido cada vez mais sua propenso ao endividamento com uma baixa ateno poupana, o perfil de preferncia diametralmente oposto ao da maioria dos europeus e leste-asiticos.

    4 Inovaes financeiras e a bolha imobiliria americana

    A tendncia rumo a nveis mais elevados de endividamento estimulada por instituies financeiras procurando novos mtodos para atrair mais emprstimos e realizar o funding correlato. A inovao financeira, como j mencionamos na seo 1, um aspecto essencial do capitalismo conduzido pelas finanas. Uma fora endgena dentro de qualquer sistema de crdito iniciada pelas instituies financeiras em resposta s restries especficas para as quais buscam novas sadas e solues. Muitas inovaes visam, por exemplo, contornar restries reguladoras ou outros tipos de barreiras institucionais ao crescimento das transaes financeiras. E a maior parte dessa atividade acaba facilitando a extenso de crdito dos bancos.

    Esses comentrios gerais tambm se aplicam, evidentemente, ao financiamento de consumidores. Tomemos, por exemplo, a introduo de diversas novas fontes de financiamento bancrio de curto prazo no incio dos anos 1960, como certificados de depsitos negociveis (i.e. contas de depsitos de empresas que podem ser repassadas a terceiros), fundos federais (i.e. um mercado interbancrio de reservas), ttulos comerciais [commercial papers] (i.e. emisses de ttulos de curto prazo pelas matrizes dos bancos) ou depsitos em eurodlares (i.e. depsitos a prazo denominados em dlares mantidos fora dos EUA). Os assim chamados passivos emprestveis tornaram os bancos menos dependentes da base de depsitos tradicional para o funding dos emprstimos e, portanto, expandiram sua capacidade de emprestar muito mais agressivamente do que tinha sido o caso at o momento.

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    4.1 Inovao hipotecria

    Outra onda de inovao financeira, deflagrada pela desregulao dos bancos para que competissem mais efetivamente com os rivais no-bancrios menos regulados (e.g. fundos do mercado monetrio, depsitos em euromoeda, financeiras, instituies de depsito), tornou possvel que os bancos oferecessem toda uma nova gerao de tipos de depsito (e.g. contas NOW, certificados de depsito ao consumidor, contas de depsito no mercado monetrio) enquanto tambm renovavam radicalmente seus portfolios de produtos de emprstimos. Depois dos Deposit Institutions Deregulation and Monetary Control Act (DIDMCA), de 1980, e Depository Institutions Act, de 1982 (DIA), os bancos americanos comearam a introduzir hipotecas com taxas ajustveis nas quais o risco de preo ficaria ao encargo do muturio ao invs de do prestamista. Para torn-las mais apelativas, os bancos cobrariam taxas de juros artificialmente baixas no incio do contrato de emprstimo, as quais seriam reajustadas para nveis mais altos posteriormente. Desse ponto, restava apenas um pequeno passo para o balo das hipotecas, que adiava a maioria dos encargos dos servios da dvida para bem mais tarde, ou para os emprstimos com amortizao negativa, onde uma parte dos pagamentos de juros era includa no principal em vez de liquidada naquele momento.

    O ritmo acelerado da inovao relacionada s hipotecas levou os bancos, em meados da dcada de 1990, a fazerem duas alteraes cruciais nos procedimentos de financiamento de imveis. Com as taxas de juros finalmente descendo dos seus nveis elevados dos anos 1980, os banqueiros simplificaram e baratearam o refinanciamento. Foi dada a milhes de proprietrios de imveis americanos a oportunidade de substiturem uma hipoteca antiga antes do vencimento por outra portando taxas de juros menores e, correspondendo ao valor aumentado do imvel servindo como garantia subjacente, tambm um principal maior. A outra alterao se refere introduo dos emprstimos sobre o saldo da valorizao imobiliria [home-equity loans], uma espcie de segunda hipoteca que podia ser usada para gastos de qualquer natureza, oferecendo ainda aos muturios a vantagem de pagamentos de juros dedutveis para fins fiscais. Ambas as inovaes tornaram possvel para os proprietrios de imveis americanos faturar com a valorizao de seus saldos imobilirios. O incio do boom imobilirio, em meados dos anos 1990, deu um estmulo extra ao consumo das famlias, o que impulsionou a economia americana para uma trajetria de crescimento maior por anos a fio.8

    (8) Consultar McConnell; Peach e Al-Hashimi (2003) para detalhes adicionais sobre os efeitos do refinanciamento e dos emprstimos sobre o saldo da valorizao imobiliria aumentando o gasto dos consumidores e derrubando a taxa da poupana pessoal.

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    4.2 Securitizao

    A rpida disseminao dos refinanciamentos e emprstimos sobre o saldo da valorizao imobiliria resultou em um deslocamento macio da oferta de fundos em direo aos investimentos imobilirios, at que outra inovao financeira importante revolucionasse o financiamento da casa prpria nos EUA, no incio dos anos 1990. A inovao a que nos referimos a securitizao dos emprstimos, particularmente a emisso de ttulos lastreados em hipotecas [mortgage-backed securities MBS]. Esses MBS so criados quando tipos similares de hipotecas so reunidos e usados como garantia para a emisso de ttulos. Os investidores em tais ttulos recebem pagamentos do principal e dos juros dos emprstimos subjacentes ao pool, que so passados adiante, menos as taxas pelos servios e garantia. Esse re-empacotamento de emprstimos hipotecrios em ttulos negociveis permitiu que os bancos recuperassem rapidamente os fundos emprestados e realizassem emprstimos adicionais, ao invs de ficarem presos a um ativo de emprstimo ilquido por diversos anos. A rotatividade muito acelerada tornou possvel aos bancos aumentar bastante o volume de emprstimos ao transferir os riscos de default para os investidores e ganhar toda sorte de taxas associadas securitizao. Lanado inicialmente no comeo dos anos 1980 por entidades de responsabilidade do governo (GSE [government-sponsored entities]) como Freddie Mac, Fannie Mae e Ginnie Mae, demorou um pouco at que esse novo produto financeiro casse no gosto popular. Em meados da dcada de 1990, contudo, os MBS comearam a atrair uma comunidade muito maior de investidores por causa dos rendimentos relativamente altos em um ambiente de juros baixos, especialmente quando levamos em conta a percepo amplamente difundida de seu baixo risco devido garantia governamental implcita.9 Enquanto o total de emisses anuais de MBS girou em torno de US$ 500 bilhes durante a dcada de 1990, essa mdia triplicou para US$ 1.500 bilhes depois de 2002 uma cifra implicando a securitizao de cerca de 80% de todas as novas hipotecas americanas nos ltimos cinco anos.

    4.3 Retiradas dos saldos de valorizao imobiliria

    Combinado com as baixssimas taxas de juros mantidas pelo FED no incio da dcada 2000, o amplo financiamento provido pela securitizao de hipotecas estabeleceu um grande boom imobilirio nos Estados Unidos. Conforme o boom se firmava depois de 2002, os refinanciamentos e emprstimos sobre o

    (9) Em 2006, trs quartos dos quase US$ 5.000 bilhes em ttulos MBS em circulao foram emitidos pelos prestamistas de responsabilidade do governo Freddie Mac ou Fannie Mae, e muitos deles portavam a garantia da Ginnie Mae ou o seguro da FHA [Federal Housing Administration]. Esses tipos de MBS contavam nesse momento com um rendimento de 1,5% a 2% acima do retorno de 4,5% auferido em uma nota do tesouro americano de 5 anos, enquanto que o MBS mais arriscado, composto por subprimes e totalmente sem seguro, podia alcanar at 15% no pico de 2006.

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    saldo da valorizao imobiliria permitiam que os proprietrios de imveis fizessem emprstimos com base nos valores elevados de suas residncias e, desse modo, aumentassem consideravelmente sua capacidade de gastar. Correspondendo a 9% da renda disponvel e figurando cerca de US$ 840 bilhes p.a. no auge, essas retiradas aumentaram o consumo em 3% p.a. de 2002-05, equivalente a um aumento anual nos gastos de quase US$ 300 bilhes, comparadas com 1,1% p.a. nos anos 1990 (Greenspan; Kennedy, 2005).

    vidas por expandir os mercados, as instituies financeiras aceleraram o boom depois de 2004 ao promoverem novos produtos hipotecrios como os piggy-backs, que prescindiam da exigncia de entrada (efetivamente 0% de autofinanciamento), os emprstimos Alt-A, que continham maiores taxas de retorno pelo abrandamento da verificao de renda e de outras exigncias de reputao quanto ao crdito, e os subprimes para muturios com histricos de problemas de crdito. Esses emprstimos no-tradicionais eram atraentes, visto que portavam taxas muito mais altas e proporcionavam aos analistas de crdito comisses maiores. Os bancos, agora envolvidos de forma muito mais intensa na securitizao de emprstimos e emitindo mais da metade de todos os novos MBS depois de 2004, empacotaram esses produtos hipotecrios no-tradicionais (incluindo as chamadas hipotecas jumbo, muito grandes para seguros da FHA) em combinaes de pools de emprstimos de alto rendimento cuja securitizao ainda obteria classificaes de investment-grade, se mostrando assim, irresistveis aos investidores. Esses MBS extra-oficiais de alto rendimento emitidos pelos bancos foram tambm devorados pelos investidores estrangeiros, atingindo os US$ 500 bilhes somente em 2005.10

    5 A dinmica do crescimento global conduzido pelos EUA e os desequilbrios globais

    O que vemos aqui revelado um padro de crescimento conduzido pelo consumidor [consumer-led] nos Estados Unidos, onde o consumo das famlias comps recentemente impressionantes 72% do PIB, bem mais alto do que em qualquer outra parte. Com a parcela dos salrios e ordenados norte-americana flutuando entre 65%-68% durante as dcadas de 1990 e 2000, tais nveis de consumo proporcionalmente altos exigiram um declnio acentuado da taxa de poupana pessoal (de uma mdia de 8% da renda disponvel no incio desse perodo para 2% negativos quinze anos depois, em 2006), bem como uma crescente dependncia do endividamento do consumidor. Este ltimo sofreu um aumento significativo quando os proprietrios de imveis americanos puderam tomar emprstimos maciamente e a baixos custos diante do rpido crescimento do capital imobilirio. As retiradas sobre o saldo da valorizao imobiliria proporcionaram mais da metade do crescimento nominal do PIB norte-americano

    (10) Ver Simon; Haggerty e Areddy (2005) para maiores detalhes.

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    durante a recuperao ps-2001. A capacidade de impulsionar o consumo financiado por endividamento, alinhada com os preos crescentes dos imveis, tornou menos premente o ato de poupar. Podemos observar um declnio sustentado da poupana lquida das famlias nos Estados Unidos, desde o incio dos anos 1980. Nossa hiptese que h uma ntima relao entre o aumento do dficit em conta corrente dos EUA e a queda na poupana lquida das famlias, conforme pode ser observado no Grfico 5.

    Grfico 5 Poupana lquida das famlias e desequilbrios em conta corrente

    Fonte: World Economic Outlook do FMI. Fonte: OCDE.

    Embora ambos os setores, governamental e empresarial, possam contribuir para o declnio geral da poupana domstica, parece que o papel destes tem sido menos preponderante no longo prazo. A evidncia emprica sugere que o vnculo entre a poupana lquida das famlias e o saldo em conta corrente, mais provavelmente mediado pela evoluo dos preos dos ativos (particularmente imobilirios), no se limita aos EUA, mas prevalece em vrios outros pases da OCDE (ECB, 2007a).

    O impulso no consumo dos Estados Unidos advindo do boom imobilirio trouxe consigo importantes efeitos de transbordamento para o resto do mundo. Voltando ao modelo de Godley et al., discutido na seo 2, a economia americana, que se deparou novamente com significativos dficits oramentrios depois de 2001, teve de compensar o crescente desequilbrio na poupana liquida privada (Yh C) com um dficit implacavelmente progressivo nas exportaes lquidas (X < M) que, prximo a 2006, havia crescido para mais de US$ 800 bilhes ou 7% do PIB. Em outras palavras, os Estados Unidos gastaram coletivamente 7% a mais do que ganharam em um dado perodo, com essa lacuna sendo amplamente

    Poupana lquida das famlias e o saldo em conta corrente (EUA) (Como percentagem do PIB)

    Poupana lquida das famlias e o saldo em conta corrente nas economias avanadas (Mdia para 2001-05, como percentagem do PIB)

    poupanas pessoais menos investimentos residenciais das famlias saldo em conta corrente

    eixo x: saldo mdio poupana-investimento das famlias eixo y: saldo mdio em conta corrente

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    Economia e Sociedade, Campinas, v. 17, Nmero especial, p. 575-611, dez. 2008. 595

    financiada por importaes de capital de naes que obtinham supervits constantes em suas contas correntes, notavelmente os pases exportadores de petrleo da OPEP, o Japo, e as economias de mercado emergentes (EMEs), sobretudo na sia (i.e. China, ndia). A reciclagem desses supervits ocorreu mais ou menos automaticamente na ltima dcada, na medida em que esses pases atrelaram suas moedas subvalorizadas ao dlar, o que os obrigou a comprar ativos denominados em dlares (no processo de venda de suas prprias moedas), ao protegerem suas cotaes das presses pela apreciao da moeda induzidas pelo supervit.

    5.1 O dlar americano como moeda do mundo

    Pases superavitrios um agrupamento de produtores de commodities, economias de mercado emergentes, e pases industrializados (ver o Grfico 6) tm sido capazes de adotar estratgias de crescimento voltadas exportao, baseadas em moedas deliberadamente subvalorizadas, e sustent-las a partir do emprstimo de seus supervits ao nico pas apto e disposto a assumir o papel de consumidor de ltima instncia do mundo. Os Estados Unidos, por sua vez, tm conseguido viver persistentemente alm de seus meios com a ajuda das poupanas das naes superavitrias, acabando por absorver 75% dos desequilbrios comerciais agregados do mundo. digno de nota que essa relao simbitica, subjacente dinmica de crescimento global das ltimas poucas dcadas, tem sido sustentada por uma assimetria decisiva na economia mundial, decorrente do uso da moeda nacional da potncia dominante como moeda internacional nas transaes entre pases. Essa moeda (desde 1945, o dlar) criada dentro do sistema bancrio do pas dominante e transferida por meio de fluxos contnuos lquidos de sada do pas emissor para o resto do mundo. Em outras palavras, a criao da liquidez internacional apia-se nos dficits constantes no balano de pagamentos dos Estados Unidos, financiados automaticamente pelos outros pases na medida em que mantm reservas em dlar ou usam dlares na circulao internacional. Os Estados Unidos, para colocar a mesma vantagem em termos diferentes, constituem o nico pas capaz de tomar emprstimos externos na sua prpria moeda e de fazer isso indefinidamente. So capazes, portanto, de acumular dvidas externas maiores sem sentir o mesmo tipo de carga com o servio da dvida e, desse modo, de adotar polticas econmicas muito mais expansionistas e por muito mais tempo do que poderiam outros pases. Esse afrouxamento de suas restries externas permitiu aos Estados Unidos acumular dficits imensos em conta corrente, t-los financiados com baixo custo pelos pases superavitrios, e conviver com uma taxa de poupana negativa apesar de ser o pas mais rico do mundo.

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    Grfico 6 Desequilbrios em conta corrente em pases e regies selecionados

    Em bilhes de dlares

    Fonte: Banco Central Europeu.

    5.2 O excesso de poupana de Bernanke

    Ignorando a posio privilegiada dos Estados Unidos na economia mundial e o uso que tem sido feito dessa vantagem, o presidente atual do FED, Bernanke (2005), colocou a responsabilidade pela ampliao dos desequilbrios em conta corrente diretamente nos ombros dos pases em desenvolvimento. Ele alega que as crises financeiras das dcadas de 1980 e 1990 reverteram o sentido dos fluxos de capitais, que agora fluem dos pases em desenvolvimento para os industrializados. As EMEs em particular, especialmente aquelas na sia, aumentaram suas reservas cambiais para se protegerem de uma potencial fuga futura de capitais (ver o Grfico 7).

    Fazendo isso, os governos dessas naes acabaram por canalizar a poupana domstica para os mercados internacionais de capitais. Summers (2006), que foi economista chefe do Banco Mundial antes de se tornar Secretrio do Tesouro do governo Clinton, observou, na mesma linha, que as reservas nos pases em desenvolvimento tinham atingido um nvel muito superior a qualquer critrio previamente enunciado de reservas necessrias proteo financeira.

    Amrica Latina China Japo Outros pases asiticos Pases exportadores de petrleo Estados Unidos Zona do euro Europa Central e Leste Europeu

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    Economia e Sociedade, Campinas, v. 17, Nmero especial, p. 575-611, dez. 2008. 597

    Grfico 7 Ativos de reserva internacionais

    Ativos de Reserva Excluindo o ouro, como percentagem do PIB

    Notas: (a) Hong Kong, Indonsia, Malsia, Filipinas, Cingapura, Coria do Sul, Tailndia e Vietn; (b) Arglia, Ir, Kuwait, Mxico, Nigria, Noruega, Rssia, Arbia Saudita, Emirados rabes Unidos e Venezuela. Fontes: FMI, IFS e Banco Mundial.

    De acordo com Bernanke, essa poupana excedente exerceu uma presso de baixa nas taxas de juros reais, estimulando o emprstimo e, conseqentemente, a inflao de preos dos ativos nas economias desenvolvidas. Enquanto seguramente verdade que a manuteno de moedas subvalorizadas, por parte das EMEs, leva as mesmas a financiarem o florescente dficit em conta corrente norte-americano numa escala crescente, a hiptese de excesso de poupana de Bernanke, Summers, e outros influentes economistas americanos, absolve convenientemente os Estados Unidos de qualquer responsabilidade pela acumulao de grandes desequilbrios globais. Pior ainda, esse argumento ignora inteiramente a vantagem monumental de senhoriagem auferida pelos Estados Unidos como emissor da moeda mundial.

    5.3 Bretton Woods II?

    Uma discusso mais ponderada sobre os desequilbrios globais correntes foi proposta por aqueles, como Bordo e Flandreau (2001) ou Dooley;Folkerts-Landau e Garber (2003), que caracterizam a configurao em vigor como Bretton Woods II. Hoje em dia, como foi o caso do sistema de taxas fixas do ps-guerra, do final dos anos 1950 ao incio da dcada de 1970, os pases perifricos novamente buscam manter moedas subvalorizadas com taxas fixas para obter um crescimento por via das exportaes, e, nesse processo, acabam por sustentar o dficit externo das naes centrais. Essa analogia histrica foi criticada mais

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    recentemente por Eichengreen (2007), que destaca a importante diferena entre os supervits em conta corrente acumulados pelos EUA durante a vigncia de Bretton Woods e os gigantescos dficits em conta corrente atuais. De acordo com este autor, esse dficit provm inteiramente do modo como o padro dlar funciona atualmente, colocando os Estados Unidos como o centro ativo da economia mundial e inteiramente responsvel pelos seus desequilbrios. Sua anlise oportuna termina com a pertinente questo sobre se esses desequilbrios simbiticos podem persistir indefinidamente e, caso contrrio, quais seriam os cenrios de ajustamento mais provveis.11

    Qualquer eventual processo de ajuste que promovesse o realinhamento da economia mundial exigiria um aumento significativo sustentado das exportaes lquidas norte-americanas ao longo dos prximos cinco anos. Desde a suspenso de Bretton Woods, realizada por Nixon em 1971, sucessivos governos norte-americanos mostraram-se propensos a deixar o dlar se depreciar a fim de impulsionar suas exportaes lquidas (tornando as exportaes americanas mais baratas no exterior e as importaes para os Estados Unidos mais caras para seus cidados). O problema com esse tipo de ajuste que, com movimentaes de preos mais rpidas do que alteraes de volume, qualquer depreciao aumenta inicialmente a conta das importaes e, portanto, piora o dficit comercial antes de melhor-lo (a assim chamada curva J). Alm da reao defasada, h tambm o problema, que j se manifestou violentamente uma vez em outubro de 1979, de uma desvalorizao excessivamente grande do dlar tornar-se retro-alimentadora ao ponto de colocar seriamente em risco o status do dlar como moeda mundial, justo agora que est enfrentando pela primeira vez, com a emergncia do euro em 2002, um rival de peso. Essa crise pode tornar impossvel para os Estados Unidos cobrirem seus dficits gmeos ou, pelo menos, exigir taxas de juros americanas muito mais elevadas para manter os investidores estrangeiros atrados.

    Certamente, os Estados Unidos ainda tm alguns atributos inerentes para evitar tais conseqncias potencialmente desastrosas. Ainda , apesar de tudo, a maior economia do mundo e, ademais, muito flexvel e competitiva nesse contexto. A desvalorizao significativa do dlar dos ltimos poucos anos tem tambm tornado seus produtos muito competitivos em preo nos mercados globais. Seria melhor, evidentemente, se a maior parte desse realinhamento dos preos das moedas tambm envolvesse as moedas asiticas com taxas fixas que necessitam de uma valorizao significativa (iuan, iene, won, rial, etc.), seguido de um incentivo a nveis mais altos de consumo domstico em tais economias de

    (11) Essa questo tambm chegou a preocupar os economistas ps-keynesianos reunidos em torno de Wynne Godley no Levy Institute (www.levy.org), e C. Fred Bergsten no Peterson Institute for International Economics (www.iie.com). Ver tambm o interessante relatrio do Banco Central Europeu (2007a) sobre essa questo.

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    mercado emergentes. Alm do mais, a economia dos EUA possui duas vantagens comparativas adicionais que impedem que seus dficits em conta corrente fiquem fora de controle. Uma delas a forte presena americana na maioria dos setores de servios, a ponto de incorrerem em supervits constantes nesse item do balano de pagamentos, no momento em que o comrcio de servios est explodindo. Outra vantagem o fato de que, apesar de terem acumulado uma imensa dvida externa que superou US$ 3.000 bilhes nas ltimas poucas dcadas, a renda de investimentos lquida na conta corrente norte-americana essencialmente equilibrada, o que implica taxas de retorno sobre investimentos americanos no exterior muito mais altas do que as auferidas pelos estrangeiros em seus investimentos nos EUA.12

    6 O arrocho de crdito global iniciado em 2007

    Visto que os Estados Unidos no tiveram que enfrentar uma restrio externa como os demais pases e as EMEs no tm nenhum interesse em permitir que suas moedas se apreciem muito, ou desacelerariam o ritmo trrido de sua expanso, tem-se permitido que os desequilbrios globais persistam e evoluam at o ponto de deflagrarem condies crticas de crise global. Depois de um perodo de dois anos de aperto persistente por parte do FED entre 2004-06 (i.e. dezessete altas de juros consecutivas), a bolha imobiliria americana estourou durante a segunda metade de 2006, quando as vendas, a construo, e mesmo os preos dos imveis comearam a cair. Nesse ponto, hipotecas no-tradicionais, especialmente subprimes, comearam a ver suas sedutoras taxas inicialmente baixas (de 1,5% a 3%) sofrerem reajustes para nveis bem mais elevados (normalmente entre 10% e 15%, mas atingindo 18% em alguns casos), o que fez com que muitos daqueles muturios de risco mais alto enfrentassem, imediatamente, srios problemas com o servio da dvida. Na primavera de 2007 ficou claro que at um tero de todas as hipotecas subprime poderiam acabar em default, uma vez que os reajustes programados das taxas de juros estivessem sendo concludos em meados de 2009, deflagrando, nesse processo, talvez at 5 milhes de execues hipotecrias e, assim, assegurando um aprofundamento continuado do declnio no mercado imobilirio por, pelo menos, dois anos. Essa dura constatao colocou em xeque as classificaes de investment-grade de um grande nmero de MBS que continham subprimes em seus pools. Em conseqncia disso, as agncias de classificao, sob a presso de reconhecerem seu erro, comearam a rebaixar a classificao de muitos MBS para nvel inferior ao investment-grade, o que os

    (12) Esse diferencial investimento-retorno, que vai evidentemente muito alm das diferenas bvias na composio dos direitos e obrigaes na conta de capitais dos EUA (e.g. aquisies estrangeiras proporcionalmente maiores de ttulos do tesouro de baixo rendimento, mais investimento direto estrangeiro das multinacionais americanas em outros pases), tem sido objeto de muita discusso nos ltimos anos. Ver, por exemplo, Bank for International Settlements (2007) ou Curcuru; Dvorak e Warnock (2007).

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    600 Economia e Sociedade, Campinas, v. 17, Nmero especial, p. 575-611, dez. 2008.

    desqualificava para a aquisio ou reteno por parte dos fundos mtuos ou de penso.

    6.1 A crise dos subprime

    Em agosto de 2007, essa situao em deteriorao explodiu repentinamente em um arrocho de crdito global plenamente maturado. Uma vez que o pico de defaults dos subprime comeou a transbordar para o mercado de MBS, foi propagado o sentimento de pnico para vrias outras camadas de securitizao. O prximo mercado a entrar em colapso foi o de obrigaes colateralizadas por dvidas (CDOs [collateralized debt obligations]), que colocava lado a lado diferentes tipos de dvidas, incluindo debntures, ttulos lastreados em hipotecas, e dvidas de carto de crdito.13 Um nmero de investidores pesadamente envolvidos com o mercado de CDOs agora paralisado, em especial fundos hedge, fundos private-equity, veculos de investimento estruturados, e outras entidades de propsito especfico gerenciadas pelos bancos que estavam sendo mantidas fora dos registros, repentinamente percebeu que no tinha mais acesso aos fundos de curto prazo mobilizados pela emisso de ttulos comerciais lastreados em ativos (ABCP [asset-backed commercial paper]), a terceira camada de securitizao a entrar em colapso no outono de 2007. Isso os obrigou a sacar maciamente a partir de emprstimos bancrios de emergncia reservados precisamente para essas eventualidades. O aumento inesperado na demanda por tais fundos colocou muita presso sobre o mercado interbancrio, qual os bancos, agora subitamente apreensivos quanto s perdas prospectivas, no estavam propensos nem aptos a responder expressivamente. Como mesmo as taxas interbancrias de prazo mais curto (overnight) moveram-se rapidamente para muito acima das metas do banco central, uma vez que a demanda por fundos comeou a superar a oferta consistentemente, os principais bancos centrais do mundo tiveram que intervir repetidamente com grandes injees de liquidez para impedir que o mercado interbancrio, o centro nervoso da economia global, ficasse paralisado.

    6.2 Arrocho de crdito global

    Estamos agora no meio de um arrocho de crdito global nunca visto. As intervenes coordenadas e sem precedentes como emprestadores de ltima

    (13) Esses pacotes so ento divididos em fatias [tranches] que representam graus variados de risco de default e diferentes classificaes correspondentes, as quais, quando vendidas como ttulos, tambm portam retornos maiores ou menores. Esses produtos financeiros estruturados" concederam aos investidores uma grande possibilidade de escolha sobre como gerenciar suas preferncias de comparao entre risco e retorno. O problema nessa crise tem sido que os investidores, uma vez atingidos pelo pnico e prevendo o pior, tm evitado todas as fatias de CDOs, mesmo as classificadas como supostamente prova de falhas. Para mais sobre o colapso das diversas camadas de securitizao, ver Guttmann (2007).

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    instncia, do ECB, FED, Banco da Inglaterra, e outras autoridades monetrias, impediram at agora a estagnao do mercado interbancrio. No entanto, essa assistncia nada fez seno reanimar um sistema bancrio alternativo, edificado sobre diversas camadas interdependentes de securitizao, que havia entrado em colapso. Nos poucos anos subseqentes, os bancos se depararo com centenas de bilhes de dlares em perdas com a reavaliao dos preos dos ativos, sendo que algumas delas j comearam a ser reconhecidas. E esse pesado golpe em seus lucros lquidos e nveis de capitalizao os tornar bem menos propensos e aptos a conceder emprstimos em nveis adequados. O golpe mais duro atingiu os Estados Unidos, onde a crise imobiliria e o arrocho de crdito em cmara lenta esto interagindo para levar a economia domstica americana recesso. Evidentemente, em vista do papel dominante dos americanos como consumidores de ltima instncia, qualquer desacelerao na economia dos EUA prejudicar tambm diversas outras regies. possvel que as EMEs faam uma conduo voltada a uma maior dependncia de seus crescentes mercados internos, alimentada por nveis maiores de consumo domstico, ou aumentem o comrcio entre elas. Tambm possvel que a Unio Europia esteja pronta para assumir o papel de locomotiva da economia mundial, desafiando os Estados Unidos pelo status de superpotncia econmica.

    Ainda que essas ou outras foras de realinhamento ajudem a evitar o pior, elas no podem avanar rpido o bastante para neutralizar os velozes efeitos em cascata da exploso da bolha imobiliria americana ou do colapso da securitizao. O processo de ajuste necessrio para corrigir os desequilbrios globais ser agora imposto um tanto brutalmente por um arrocho de crdito global, restringindo acentuadamente a capacidade americana de consumo excedente.

    7 Capitalismo de crise em crise

    O processo contemporneo de globalizao financeira conheceu trs fases distintas ao longo das ltimas trs dcadas. Cada uma delas foi impulsionada por grandes inovaes financeiras e terminou numa grave crise. A primeira fase, iniciada na dcada de 1960 e intensificada durante os anos 1970, foi aquela do mercado de euromoeda. Ela terminou com a crise da dvida dos pases subdesenvolvidos, de 1982-89, durante a qual mais de cinqenta pases em desenvolvimento enfrentaram defaults de-facto nos seus emprstimos soberanos nesse mercado. A segunda fase foi deflagrada pela generalizao da liberalizao financeira ao redor do globo, de norte a sul, durante os anos 1980 (representando tambm uma conseqncia da crise da dvida dos subdesenvolvidos). Esse processo corresponde a uma grande inovao financeira (Boyer, Dehove, Plihon, 2004), que terminou com as recorrentes graves crises financeiras entre as economias de mercado emergentes durante a dcada de 1990 (Mxico em 1994,

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    Leste Asitico em 1997, Rssia em 1998, Brasil em 1999, Argentina em 2001). Estamos agora, no incio de 2008, no final da terceira fase, cujas conseqncias no esto ainda claras, com a sua mais aguda manifestao nos Estados Unidos, onde a grande inovao da securitizao impulsionou uma economia do endividamento do consumidor que, por fim, se degenerou, durante o vero de 2007, na crise dos subprime.

    7.1 Trs fases com crises causadas por inovaes

    Fase I Os eurodlares e a crise da dvida dos pases subdesenvolvidos: O mercado de eurodlares uma das principais inovaes financeiras do sculo XX. Essa rede bancria global, envolvendo emprstimos e depsitos denominados em dlares fora dos Estados Unidos, floresceu em resposta a uma necessidade de liquidez monetria internacional que o sistema bancrio dos EUA por si s no podia mais suprir, apesar do contnuo crescimento dos dficits norte-americanos no balano de pagamentos. Os dois choques no preo do petrleo da dcada de 1970 sinalizaram dramaticamente o papel dos chamados petrodlares, os lucros da OPEP que os bancos da City de Londres, eficientemente, passaram a reciclar a partir dos pases produtores para os importadores de petrleo, ajudando assim a conter declnios globais subseqentes. Esses eurobancos ajudaram a mobilizar dessa maneira uma importantssima transferncia de poupana, principalmente de Sul a Sul, por meio de operaes bancrias comerciais ao invs de subsdios (como ocorrera no Plano Marshall). Contudo, esse novo sistema financeiro internacional estava sujeito a dois grandes empecilhos. Um era o escopo inadequado da regulao prudencial dos mercados de euromoeda. O outro era o fato de que a evoluo desses mercados dependia, em ltima instncia, fundamentalmente do andamento da poltica monetria dos EUA, cujos objetivos eram primariamente orientados para as condies internas americanas. Quando Paul Volcker enrijeceu a postura poltica do FED para encarar as presses inflacionrias decorrentes do segundo choque do petrleo de 1979, a alta nas taxas de juros americanas e a subseqente apreciao do dlar provocada por essa mudana de poltica, deflagrou, em 1982, srios problemas com o servio da dvida entre a maioria dos pases em desenvolvimento que havia contrado emprstimos no euromercado, denominados em dlares, no decurso da reciclagem de petrodlares.

    Fase II Liberalizao financeira e crises dos mercados emergentes: A fim de superarem suas crises de estagflao dos anos 1970, as principais naes industrializadas decidiram, sob a liderana determinada de Reagan e Thatcher, adotar as chamadas polticas do lado da oferta com base em significativas redues de impostos para as empresas e os ricos, bem como na desregulao dos mercados de capitais e de trabalho. A Unio Europia tomou o mesmo rumo em

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    1987 com o seu projeto de mercado nico de bens, pessoas e capitais. Nos anos 1990, esse estmulo ao livre mercado se estendeu aos pases em desenvolvimento sob os auspcios do FMI, que administrou a crise da dvida dos pases subdesenvolvidos impondo, aos devedores que precisavam de ajuda, programas de ajustes estruturais baseados no mantra desregulao, privatizao, estabilizao do assim chamado Consenso de Washington.14 Desse modo, foi criada uma nova categoria de pases chamada de economias de mercado emergentes, no sentido de terem sido recentemente abertas para o mercado financeiro internacional. Inicialmente, fluxos macios de capitais para esses pases ajudaram seu desenvolvimento financeiro e econmico. Logo, porm, tais polticas de livre mercado revelaram seus efeitos perversos. No nvel microeconmico, os bancos das EMEs acabaram se tornando mais frgeis no rastro da sua abertura internacional. Seus balanos patrimoniais tornaram-se desestabilizados devido s operaes cambiais que resultaram num perigoso descasamento de moedas [currency mismatch], medida que passivos de curto prazo em dlares e outras moedas chave eram acumulados para financiar a criao de moeda domstica dirigida para ativos de longo prazo denominados em moeda local, o que logo acabou por alimentar bolhas especulativas de ativos e presses inflacionrias internas. No nvel macroeconmico, as moedas locais das EMEs sofreram presses de apreciao que, junto com as crescentes presses inflacionrias, colocaram em risco sua competitividade e posio externa.

    A deteriorao das condies econmicas e financeiras colocou a maioria dos mercados emergentes, um aps o outro do Mxico em 1994 Argentina em 2001 em devastadoras crises financeiras gmeas, que afetaram seus sistemas bancrios e foraram ajustes radicais nos regimes de taxas de cmbio. Essas crises foram o resultado da liberalizao financeira excessivamente rpida e mal administrada para a qual esses pases estavam precariamente preparados. Nem as organizaes internacionais, notavelmente o FMI, nem os governos compreenderam que o processo de liberalizao financeira constitua uma grande inovao financeira que produziria frutos positivos apenas em um contexto institucional corretamente adaptado (Boyer; Dehove; Plihon, 2004). Na maioria das EMEs, este estava longe de ser o caso.

    Fase III Endividamento do consumidor, securitizao e a crise dos subprime: A securitizao de emprstimos uma importante inovao financeira que, como no caso dos mercados de eurodlares algumas dcadas antes, introduziu uma nova forma de intermediao financeira. uma atividade especialmente bem adaptada

    (14) O Consenso de Washington se reporta s tendncias da poltica de livre mercado da Casa Branca de Reagan, do Fundo Monetrio Internacional, e do Banco Mundial, todos com sede em Washington, D.C. Para uma boa crtica desse vis ideolgico desbalanceado exclusivamente a favor das solues de livre mercado, ver Stiglitz (2002).

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    s operaes de emprstimo padronizadas de grandes volumes, especialmente aquelas relacionadas ao endividamento das famlias. A securitizao um instrumento eficiente de transferncia de risco, do mesmo grupo dos derivativos. Todavia, como as demais inovaes financeiras, apresenta efeitos ambivalentes, bons e maus. Projetada para melhorar a gesto de riscos, a securitizao, na verdade, acaba estimulando os bancos a assumirem muitos riscos, na medida em que sabem que possvel transferi-los para terceiros (i.e. risco moral). Nesse sentido, a securitizao tornou-se vtima do seu prprio sucesso. Por um lado, ao simplificar o financiamento das famlias, alimentou o acmulo (excessivamente) rpido de dvidas entre estas. Por outro lado, por incentivar a disperso dos riscos, contribuiu para a diluio da responsabilidade ao longo da cadeia de gesto de riscos, agravada pela natureza obscura dos mercados de balco nos quais os produtos securitizados so normalmente negociados. Por isso, como instrumento de transferncia de risco, a securitizao provou ser um poderoso vetor na propagao internacional da crise. Nesse sentido, justo questionar se a crise dos subprime no basicamente o resultado dos efeitos perversos da securitizao. Sua extenso e intensidade totalmente surpreendentes podem ser explicadas pelo fato de que essa crise atinge, ao mesmo tempo, as razes profundas do capital financeiro e a sociedade americana do endividamento do consumidor.

    A crise atual dos subprime pode ser classificada como uma crise sistmica na medida em que atinge trs pilares fundamentais do capitalismo conduzido pelas finanas: um padro de crescimento global centrado nos EUA, carente de diversificao para plos alternativos de crescimento; o paradigma das finanas modernas, que enfatiza a gesto de riscos; e a pretensa estabilizao do padro de crescimento outrora cclico.

    7.2 O padro de crescimento global

    At agora, a economia dos EUA tem desempenhado o papel de consumidora de ltima instncia do resto do mundo, servindo, desse modo, como uma locomotiva que arrasta, para o seu imenso mercado interno, diversas outras economias extremamente dependentes de exportao. Tm ocorrido efeitos de transbordamento importantes da economia americana para outras partes do mundo (Europa, Japo, Amrica Latina, Leste Asitico), confirmando o ditado de que se a economia dos EUA espirrar, o resto do mundo fica resfriado. Como j ressaltamos, em vista do papel dominante dos americanos como consumidores de ltima instncia, qualquer desacelerao na economia dos EUA pode prejudicar tambm diversas outras regies.

    Ao mesmo tempo, contudo, h indicaes de que o padro de crescimento global pode estar mudando (IMF, 2007). A recente desacelerao na economia norte-americana ainda no apresentou qualquer efeito significativo em outras

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    economias, o que sugere que pode estar havendo algum desacoplamento entre o resto do mundo e os Estados Unidos. A economia dos EUA totaliza cerca de 20% do PIB global, quando calculado com base na paridade do poder de compra, comparada a uma parcela de 25% das cinco maiores economias de mercado emergentes. Certamente, h indicaes de que o resto do mundo est se tornando menos dependente da economia dos EUA a longo prazo, no devendo ser desconsiderada a importncia crescente da integrao regional na Europa, sia e Amrica Latina. No longo prazo, estamos gradualmente nos movendo em direo a um padro de crescimento global multipolar, levado adiante pelo aprofundamento da integrao regional. No entanto, como assinalado acima, ao passo que essas (ou outras) foras de realinhamento podem ajudar a evitar o pior no curto prazo, provavelmente no avanaro rpido o bastante para neutralizar os velozes efeitos em cascata da exploso da bolha imobiliria americana ou do colapso da securitizao.

    7.3 O paradigma da gesto de riscos das finanas modernas

    A crise dos subprime revelou que as finanas modernas no so mais capazes de cumprir com uma das suas funes essenciais, a da gesto dos riscos. E nesse sentido essa uma crise profunda, que afeta sobremaneira todos os atores das finanas internacionais: banqueiros, investidores, agncias de classificao, bancos centrais, reguladores bancrios.

    A securitizao e os derivativos privaram os bancos da sua funo tradicional como intermedirios financeiros e os transformaram em corretores de mercados financeiros. Dessa forma, os bancos no mais carregam eles mesmos os riscos, mas os transferem para os mercados financeiros uma tendncia ainda mais acentuada pelo novo regime regulatrio para os bancos, conhecido como Basilia II.15 Sabendo que revendero grande parte dos seus ativos, os bancos no esto mais preocupados com a avaliao correta dos riscos, os quais esperam ser assumidos por terceiros. Isso provoca a eroso gradual da qualidade dos riscos, uma inclinao para subestimar riscos na busca por maiores retornos.

    Os bancos de investimento encarregados da securitizao combinam todos os tipos de emprstimos nos pools a serem securitizados, o que dificulta a avaliao adequada do risco. Adicionalmente a isso, h a proliferao de tcnicas de transferncia de risco especialmente obscuras em mercados de balco no-regulados (e.g. derivativos de crdito, garantias de passivos contingentes), o que

    (15) O assim chamado Basilia II, uma reviso do Acordo de Basilia de 1988 atualmente em implementao sob os auspcios do Bank for International Settlements (BIS), permite que os bancos ao redor do globo determinem seus prprios nveis de capitalizao em funo do xito que obtm ao calcular e gerenciar seus riscos (de crdito, de mercado, operacionais e outros).

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    deixa todos os tipos de atores financeiros mais vulnerveis medida que assumem riscos ocultos, desconhecidos para eles.

    Nesse novo contexto, as instituies financeiras no querem assumir os riscos de crdito e de mercado dos seus compromissos, mas, em vez disso, preferem transferi-los por todo o percurso at o poupador final uma tendncia que explica a construo de vrias camadas de securitizao, onde os produtos securitizados so combinados em pools para ulterior securitizao. Nesse ponto, o sistema financeiro no desempenha mais seu papel primordial de avaliao e gesto dos riscos.

    As agncias de classificao (Moodys, Standard & Poors, etc.) tambm pararam de fazer apropriadamente seu trabalho de avaliao da reputao de crdito dos muturios, uma vez que acreditam que todos os emprstimos podem ser transformados em ttulos e vendidos a investidores.

    E no meio de todas essas falhas sistmicas da gesto apropriada de riscos, os bancos centrais se viram obrigados a socorrer bancos passando por srias dificuldades. Eles tiveram de intervir, com receio de que uma crise de confiana no mercado interbancrio desencadeasse uma crise sistmica que paralisasse o sistema de crdito. Embora os bancos centrais estejam totalmente cientes de que tais operaes de salvamento induzem os bancos a ignorar ou dar menos ateno ao nvel de risco dos seus compromissos (o problema do risco moral), eles no podem arcar com as conseqncias de no intervir. Ao injetar quantidades macias de liquidez no sistema bancrio hoje, o banco central pode estar pavimentando o caminho para mais uma crise financeira amanh.

    7.4 Fragilidade financeira de Minsky

    O capitalismo conduzido pelas finanas, com sua ampla proviso de crdito a baixas taxas de juros, tem a vantagem de separar os gastos da renda. Essa separao permite que a demanda agregada seja mantida em nveis suficientemente altos para evitar ajustes recessivos. Desde o ltimo declnio importante no incio dos anos 1980, a economia mundial, notavelmente a americana como sua principal componente, enfrentou apenas dois declnios relativamente superficiais e de curta durao (1990-1991, 2000-2001). Ambos foram superados com relativa rapidez devido atuao agressiva da poltica monetria, empurrando as taxas de juros para baixo; elevao acentuada dos dficits oramentrios, aumentando os gastos; e s fontes ininterruptas de crdito, sustentando os gastos do setor privado a despeito da estagnao ou mesmo queda dos rendimentos.

    Esses longos perodos de estabilidade, todavia, semearam as sementes de sua prpria destruio ao produzirem, como H. Minsky (1964) afirmou de modo

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    to convincente, estruturas financeiras cada vez mais frgeis que culminariam, eventualmente, em uma grande crise. Como as unidades deficitrias de gastos (i.e. empresas, famlias) obtiveram xito com suas aes anteriores, elas se tornaram mais propensas a assumir um risco maior em seus compromissos subseqentes. Pode-se observar o mesmo vis entre seus prestamistas. Na ausncia de qualquer ajuste recessivo significativo, os agentes econmicos deixam de perceber a possibilidade de falha. Tornam-se muito otimistas, inclinados a subestimar os riscos na busca por maiores retornos. Essa euforia socialmente construda, logo amplamente compartilhada. Ao longo do tempo, normalmente em questo de poucas dcadas ou um quarto de sculo sem nenhuma desacelerao importante, as posies financeiras dos devedores e credores ficaro progressivamente mais precrias em virtude de uma assuno de riscos aumentada. Nesse contexto, Minsky distinguiu entre trs posies de financiamento: hedge, onde a posio lquida dos fluxos monetrios dos devedores suficientemente positiva para nunca pr em risco o pagamento do servio da dvida; especulativo, onde as posies lquidas dos fluxos monetrios podem ser, s vezes, inadequadas para honrar os compromissos de pagamento medida que chegam seus vencimentos; e financiamento Ponzi, quando necessrio endividamento adicional para atender aos encargos do servio da dvida existentes. Na ausncia de qualquer ajuste recessivo que elimine os devedores mais vulnerveis e relembre a todos sobre os perigos de assumir riscos excessivos, a estrutura financeira torna-se cada vez mais frgil, contendo uma proporo crescente de unidades espec