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Corso di Laurea magistrale in Lingue e Letterature Europee, Americane e
Postcoloniali
Tesi di Laurea
Edição e receção de autores angolanos em Portugal antes e
depois do 25 de abril: o caso de Ondjaki
Relatore Ch. Prof.ssa Vanessa Castagna
Correlatore Ch. Prof. Alessandro Scarsella
Laureanda
Federica Lupati Matricola 807949
Anno Accademico
2012 / 2013
2
Edição e receção de autores angolanos em Portugal antes e
depois do 25 de abril: o caso Ondjaki
INTRODUÇÃO
CAPÍTULO I
A literatura como instituição: problemas metodológicos
I.1 A literatura e as suas fronteiras: do fenómeno estético ao facto literário
I.2 A teoria dos campos e a teoria polissistémica
I.3 A formação do sistema literário lusófono
I.4 Os estudos literários entre estudos culturais e estudos pós-‐coloniais
CAPÍTULO II
A instância de legitimação na receção de autores angolanos em Portugal
II.1 As Academias
II.2 Os programas de ensino básico e médio e o Plano Nacional de Leitura
II.3 Os prémios literários, as revistas especializadas e os media
II.4 O cânone literário
II.5 A edição de autores angolanos antes do 25 de abril
II.6. A edição de autores angolanos depois do 25 de abril
II.7. Balanço editorial
CAPÍTULO III
O caso Ondjaki
III.1 Percurso de um jovem autor
III.2 Há prendisajens com o xão
3
III.3 Bom dia Camaradas e Os da minha rua
III.4 Quantas madrugadas tem a noite
III.5 Os Transparentes: a sua obra-‐prima
III.6 Mercado editorial e construção da imagem pública
III.7 Os prémios literários
III.8 Crítica e programas de ensino em Portugal
III.9 Entrevistas e colaborações artísticas
III.10 A presença nas redes sociais
APÊNDICE I
Entrevista inédita ao autor
APÊNDICE 2
Análise textual de Os da minha rua
CONCLUSÃO
BIBLIOGRAFIA
AGRADECIMENTOS
4
5
INTRODUÇÃO
O estudo das relações entre espaços culturais e da formação de identidades
independentes, sobretudo após a queda dos grande impérios coloniais, é um fator
comum a muitas áreas de investigação. Em particular, com o aparecimento dos
Estudos Pós-‐coloniais e o consolidar-‐se dos Estudos Culturais, revisitaram-‐se muitas
abordagens que, antigamente, impediram a correta perceção da real complexidade
de dinâmicas que vão realizando-‐se e modificando-‐se desde os primeiros contactos
entre áreas longínquas e diferentes. Desta forma, propuseram-‐se novas categorias
interpretativas e de análise, que hoje constituem a bagagem teórica de referência
da maior parte das novas propostas de pesquisa.
Para além disso, com o afirmar-‐se dos estudos de matriz social e a maior
aceitação do seus estatuto científico, mudaram também as abordagens ao conceito
e à análise em torno da literatura: assistiu-‐se, assim, a uma maior abertura teórica,
pela qual, ao lado da observação das componentes textuais das obras, começaram a
aparecer estudos de sistema e inspirados aos estudos sociais. A partir dos anos
sessenta, estes contribuíram a uma ampliação do conceito de literatura, indagando
as estritas relações que mantém com o ambiente histórico, social e ideológico à sua
volta. Neste sentido, ambos os sistemas – o literário e o social – são caracterizados
por uma natureza dinâmica, aberta e heterogênea, e é este dinamismo que lhe
permite sobreviver e adatar-‐se continuamente um ao outro.
À luz das teorias dos estudos desenvolvidos nas áreas mencionadas, os
espaços que hoje constituem a chamada Lusofonia, isto é, o conjunto político-‐
cultural dos falantes de português, também mostram um complexo mecanismo de
relacionamento uns com os outros. A observação das mudanças históricas e sociais
e do seu papel para com o aparecimento das ideologias que moldaram as
mentalidades, mostrou que hoje os canais interpretativos ligados ao passado
podem continuar a obstaculizar o avançar do diálogo entre Portugal e algumas
áreas que antigamente estavam sujeitas à sua administração, mas que hoje se
6
encontram numa fase já avançada de emancipação e de construção da identidade
nacional.
Dentro do vocabulário que o estudos pós-‐coloniais revisitaram, a dicotomia
centro/periferia revela-‐se muito útil para explicar em que tipo de dinâmica estas
áreas ainda se encontram: se se considerar a palavra “centro” a partir do seu
significado etimológico, isto é do latim centrum, que vem por sua vez do grego
kèntron, “pico/ponta”, particípio passado do verbo kentéo, “picar”, notar-‐se-‐á que
conceptualmente nasce relacionada à ponta dum compasso, à volta do qual se
constrói um outro espaço, uma periferia. Este segundo termo, por sua parte,
etimologicamente provém do grego peri + fèrein, “levar à volta de”, e representa
portanto uma área cuja existência está ligada à formação duma circunferência, a
partir dum centro.
Assim, a imagem da circunferência criada por estes dois termos resulta
bastante pertinente a uma possível definição da ampla área lusófona espalhada
pelo mundo, ao mesmo tempo oferecendo a muitos investigadores uma
oportunidade para explicar algumas relações de dependência que, historicamente,
até pela sua natureza, este espaço heterogêneo propõe. Contudo, o objetivo das
pesquisas que se concentram em áreas ainda pouco compreendidas deveria ser de
não contribuir à difusão de categorias demasiado fechadas, pois estas acabariam
por interferir com a perceção global dos mecanismos culturais, políticos,
económicos que os caracterizam.
Portanto, com a ideia da circunferência aqui proposta quer-‐se fazer
principalmente referência à circulação de bens materiais e culturais que este espaço
comum possibilita, condiciona, apresenta, sob as vestes mais diversas. Aliás, os
contatos que Portugal continua a ter com os seus ex-‐domínios africanos –
justificados pelo uso duma mesma língua e dum passado “comum” – podem
funcionar como ponto de partida para propor possíveis respostas a dúvidas e
perguntas sobre o papel desempenhado pela área ocidental frente à área oriental
desta extensão. Particularmente interessante é a observação da receção das obras
literárias de autores angolanos em Portugal, com especial releve da sua edição
7
antes e depois do 25 de abril, e das rupturas ou continuidades que a sua perceção
manifesta.
A organização desta pesquisa, portanto, prevê um primeiro capítulo, em que
são apresentados os recursos teóricos e metodológicos considerados de referência
para poder esclarecer alguns postulados fundamentais na análise do campo literário
enquanto microcosmo sociocultural, sujeito a lutas internas e a constantes câmbios
e adatações à sociedade, salientando alguns acontecimentos particularmente
relevantes na formação da identidade nacional portuguesa e na definição da sua
relação com o Outro. O segundo capítulo concentra-‐se numa observação mais
pormenorizada da receção de autores homeoglotas, considerando para isso as
reações das instâncias literárias que intervêm na sua legitimação, e a sua edição
antes e depois do 25 de abril. Para o terceiro capítulo, finalmente, escolheu-‐se
propor o estudo dum caso em particular, o do jovem angolano Ondjaki, considerado
interessante à luz das observações levantadas nos capítulos anteriores sobretudo
pela positiva receção da sua obra a que se assiste em Portugal, também através de
mecanismos legitimadores menos tradicionais, que facilitam a sua projeção
mediática, hoje tão determinante.
Fornecem-‐se, aliás, como material integrativo à pesquisa, duas apêndices: na
primeira transcreve-‐se a entrevista inédita ao autor, realizada por mim em fevereiro
de 2013, em que interroguei Ondjaki sobre o seu percurso editorial e pedi-‐lhe para
dar uma sua opinião sobre as relações editoriais existentes hoje dentro do mundo
lusófono; na segunda propõe-‐se uma análise textual de apenas uma obra, que se
destaca pela receção particularmente positiva recebida. O estudo inspirou-‐se num
tipo de interpretação desconstrutivista da generosa posição do autor, que, não
obstante isso, continua a estar exposto a contradições.
Em conclusão, nesta pesquisa tentou-‐se empreender uma crítica não
dogmática do material literário, das dinâmicas de mercado e do contacto cultural
que Portugal demonstra ter com Angola, tentando fornecer algumas hipóteses
interpretativas cujo objetivo é de participar da desconstrução do império de
categorias que ainda hoje continua muito presente nas diversas esferas da vida
8
social portuguesa. Com grande respeito pelos autores, pelos críticos e pelos
editores, o trabalho inspirou-‐se na forte vontade de ultrapassar os frágeis limites e
as evidentes contradições que os sistemas socioculturais portugueses ainda
manifestam, bem conscientes de que estes não são os único responsáveis pelas
dificuldades comunicativas relevadas entre os espaços tomados em consideração.
9
CAPÍTULO I
A literatura lusófona como instituição:
problemas metodológicos
I. 1 A literatura e as suas fronteiras: do fenómeno estético ao facto literário
Dada a sua complexa estrutura e a sua natureza volátil, a literatura tem tido
ao longo dos séculos e conforme as épocas e os observadores, interpretações e
enfoques muito diferentes. Na tentativa de estabelecer “as fronteiras que
delimitam o fenómeno literário; ou, por outras palavras, indagar o que cabe e o que
não cabe dentro do campo literário”1, é necessário partir do pressuposto que essas
“fronteiras” são fluidas, heterogéneas e até dinâmicas, permitindo desta maneira a
existência de situações híbridas e enriquecedoras. Os hibridismos povoam também
a própria estrutura interna da obra literária, pois esta, tendencialmente, invade e é
invadida por territórios alheios e contíguos, e é nesta ótica que serão apresentadas
as teorias de sistema.
Para se oferecer uma definição desta área de criação humana, segundo a
maioria dos pensadores e investigadores do século passado, é necessário ter em
conta um conjunto de componentes bem diferenciadas, que, por essa mesma
razão, estão ligadas entre si por relações dinâmicas. Tvetan Todorov começa a sua
reflexão acerca da noção de literatura duvidando da legitimidade dessa noção e
oferecendo uma brevíssima panorâmica do próprio termo:
Nas línguas europeias, a palavra “literatura”, no seu sentido atual, é
muito recente: data apenas do século XIX. Tratar-‐se-‐ia pois de um
fenómeno histórico e de modo algum “eterno”? Por outro lado,
1 C. REIS, O conhecimento da literatura. Introdução aos estudos literários, Coimbra, Livraria Almedina, 1995, p. 19.
10
numerosas línguas (de África, por exemplo) não conhecem o termo
genérico para designar todas as produções literárias.2
O que move o autor é a ideia de que não é por uma palavra existir, ou por
estar na base de uma série de instituições, que a sua noção se torna evidente,
sendo portanto necessário procurar as razões da sua existência algures. Neste
sentido ele afirma que “uma noção pode ter direito a existir, sem que uma palavra
precisa do vocabulário lhe corresponda”3, e no caso da literatura isso é dado pelo
emprego que as pessoas fazem dela:
[...] Parece incontestável, o facto de uma entidade “literatura”
funcionar ao nível das relações intersubjetivas e sociais. (...) O que é
que se prova com isso? Que num sistema mais vasto, que é esta
sociedade, esta cultura, existe um elemento identificável a que nos
referimos através da palavra literatura.4
Esta ideia “funcional” do texto literário indica que este vive graças ao uso
que as pessoas fazem dele: sem um leitor, o texto não existiria; sem um editor, uma
distribuição e uma certa crítica, as palavras acabariam por ser manchas e signos em
papéis brancos. A palavra escrita precisa de quem a lê, e põe-‐se em relação com um
conjunto de fatores que, na realidade, vivem fora dela. As teorias de Todorov
permitem portanto expor algumas considerações preliminares que antecipam as
teorias de sistema e introduzem a estrita interdependência entre produção literária
e sociedade.
Antes de passar às teorias mais recentes, é necessário tecer algumas
observações sobre a estrutura dos textos considerados literários e sobre a sua
patente e indubitável dimensão estética – reconhecida como tal também pelo
próprio escritor. Nela cabem uma particular produção de significados e de
mensagens, através do que é fundamentalmente um fenómeno de linguagem, isto
2 T. TODOROV, Os géneros do discurso, Lisboa, Edições 70, 1981, p. 13. 3 Ibid., p. 14. 4 Ibid., p. 14.
11
é, a chamada linguagem literária. Como obra de arte ela consegue vencer a lógica
referencial entre as palavras e a realidade, para se vestir daquela polissemia e
liberdade que lhe permitem alcançar o seu estatuto. Neste sentido, como atividade
intencional e finalística, a escrita literária tem potencialidades cognitivas e de
representação, e pode ser entendida como:
[...] prática dotada de um certo índice de especificidade técnica,
empreendida por um sujeito que a leva a cabo num contexto cultural a
que dificilmente é indiferente e assumindo uma atitude diversa da de
outros sujeitos quando enunciam outras linguagens.5
Nesta definição, muito geral, de prática literária, ao conceito de
“especificidade técnica” corresponde o uso consciente duma linguagem fortemente
conotada, rica em associações, ambígua, expressiva e pragmática ao mesmo tempo,
uma linguagem que se refere a um mundo de ficção, de imaginação, sendo a
“ficcionalidade” o seu traço distintivo. Esta definição pode resumir-‐se com as
palavras de Roland Barthes que, ao falar de estilo, afirma:
[...] Sob a forma de estilo, forma-‐se uma linguagem autárquica que já
mergulha apenas na mitologia pessoal e secreta do autor, nesta
hipofísica da fala, onde se forma o primeiro par das palavras e das
coisas, onde se instalam de uma vez para sempre todos os grandes
temas verbais da sua existência. Apesar do seu requinte, o estilo tem
sempre qualquer coisa de bruto: é uma forma sem destino, é o
produto de um impulso, não de uma intenção, é como uma dimensão
vertical e solitária do pensamento.6
O estilo representa uma das realidades da obra literária, a moldura
intangível que contorna todas a mensagens nela contidas e que assenta numa
linguagem vivida e construída de forma arbitrária. Pode ser entendido como a
marca de reconhecimento e diferenciação que dá a cada produto literário uma
5 C. REIS, op. cit., p. 105. 6 R. BARTHES, O grau zero da escrita, Lisboa, Edições 70, 1984, p. 18.
12
irrepetível unicidade e que o torna reconhecível como tal, e juntamente com ele o
seu autor.
Estilo, linguagem, mensagem, textos, são alguns dos diferentes estratos que
constituem a obra de arte literária, cujo valor estético funciona como elemento
aglutinador, e cuja estrutura é constituída pelas unidades de sentido, i. e., as
palavras. Roman Ingarden esclarece bem a sua estruturação:
A estrutura específica da obra de arte literária reside, a nosso ver,
no facto de ser uma produção constituída por vários estratos
heterogéneos. Os estratos singulares distinguem-‐se entre si:
primeiro, pelo respectivo material característico, de cujas
particularidades resultam qualidades especiais de cada estrato;
segundo, pela função que desempenha cada um deles, quer em
relação aos outros estratos, quer à estruturação de toda a obra.7
Segundo a teoria de Ingarden, esta multiestratificação prevê um conjunto de
elementos fundamentais e absolutamente necessários para que se conserve a sua
unidade intrínseca e se mantenha o seu carácter fundamental. O autor identifica
quatro estratos em particular: o das formas significativas verbais e das produções
fónicas de grau superior erguidas sobre elas; o das unidades de significação de
diverso grau; o dos múltiplos aspetos esquematizados, as continuidades e as séries
de aspetos; e, finalmente, o estrato das objetividades apresentadas e os seus
destinos. Estes elementos de base, dotados de funções e peculiaridades, conferem
às obras, juntamente com os que com eles se relacionam, a sua qualidade estética e
criam aquele valor polifónico tão caraterístico desta tipologia de produtos. Como
diz o mesmo autor:
[...] A diferença do material e dos papéis (ou funções) dos
estratos singulares é, ao mesmo tempo, a razão por que a obra na
sua totalidade não é um produto monótono mas possui carácter
polifónico essencial. [...] Por sua vez, cada um destes estratos tem
7 R. INGARDEN, A obra de arte literária, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1965, p. 45.
13
a sua própria multiplicidade de qualidades que levam à
constituição de qualidades específicas de valor estético com que
se constitui uma qualidade de valor polifónica e todavia una do
todo.8
Embora ainda esteja muito ligada à dimensão textual da obra literária, a
teoria formulada por Ingarden patenteia claramente que a própria obra é o
resultado da relação entre vários elementos e que estes lhe conferem uma
estrutura pouco estática e com certeza não monótona: as características
predominantes do texto literário parecem mesmo ser a polifonia e
multiestratificação, inseparáveis do seu elemento central, as palavras.
Ultrapassadas as teorias e as posições que se concentravam exclusivamente
no texto e na coleção positivista de dados, e com o avançar dos estudos de matriz
social, também a interpretação do conceito de literatura se viu alargada em direção
a visões sistémicas mais amplas, que a põem em estrito contacto com os contextos
que a produzem e para os quais é produzida. Roland Barthes, numa das suas muitas
intervenções, propõe uma definição de literatura em que sinteticamente mostra a
sua dupla natureza, isto é, o seu ser ao mesmo tempo obra e instituição:
A literatura apresenta-‐se-‐nos como instituição e como obra. Como
instituição, congrega todos os usos e práticas que regulam o circuito da
coisa escrita numa dada sociedade: estatuto social e ideológico do
escritor, modo de difusão, condições de consumo, sanções da crítica.
Como obra, é essencialmente constituída por uma mensagem verbal,
escrita, dum certo tipo.9
Com esta definição, Barthes põe em destaque a necessidade de uma revisão
e até revolução das posturas ditas tradicionais, dada a sua natureza multifacetada: a
retórica, ou poética, permite analisar a obra de arte através da sua mensagem
verbal para colher a sua essência e originalidade, mas também podem ser utilizadas
8 Ibid., p. 45. 9 R. BARTHES, A análise retórica, in AA.VV., Literatura e sociedade, Editorial Estampa, Lisboa, 1973, p. 39.
14
perspetivas teóricas de matriz sociológica para estudar o produto literário e a sua
fruição.
A este propósito, Carlos Reis oferece uma pragmática definição de literatura,
entendida como instituição:
Falar de literatura como instituição corresponde inevitavelmente a
projetar, sobre o fenómeno literário, conotações (nem todas positivas)
que envolvem o termo. De facto, a expressão “instituição” [...] pode
sugerir mentalidades e comportamentos eminentemente estáticos,
fortemente hierarquizados e pouco propensos à inovação; por outro
lado, também é certo que a feição institucional de certas entidades
confere-‐lhes solidez histórica, bem como reconhecimento público,
fatores decisivos para a sua afirmação no plano social. (...) Quando
mencionamos o carácter institucional da literatura ou quando falamos
em instituição literária estamos desde logo a remeter para práticas e
para sujeitos que asseguram ao fenómeno literário a sua feição de
estabilidade e de notoriedade pública.10
São portanto os canais de transmissão, tais como as revistas, os júris, as
universidades, etc. que fazem parte da instituição literária. Estes canais são as
entidades que consagram as obras como sendo literárias e que participam na sua
transmissão ao grande público, e é nesta ótica que são evidenciados alguns
mecanismos sociais que contribuem para a sua legitimação a fim de que estas
mesmas fiquem na memória coletiva. Carlos Reis identifica nas academias e na
mentalidade académica um primeiro fator importante de institucionalização da
literatura, na medida em que lhe assegura uma certa estabilidade, notoriedade e,
através da escolha e da análise de determinadas obras em lugar de outras, difusão.
Outro mecanismo que à sua maneira procura exercer uma função de
validação institucional das obras literárias é constituído pelos prémios literários, que
adquiriram outra dimensão e alcance quando, com o estabelecimento da
propriedade literária no século XIX, a literatura passou a ter também um certo valor
10 C. REIS, op. cit., p. 25.
15
de troca. Todavia, hoje os prémios literários “podem ser entendidos como uma
extensão das instituições que os concedem”11, estando ao mesmo tempo sujeitos a
forças e a interesses que transcendem a simples função judicativa das obras.
A crítica literária e quem a pratica também desempenham um papel
importante, dado que este tipo de atividade acaba por exercer alguma influência,
particularmente hoje em dia, sobre o devir da literatura, sobretudo quando quem
fala tem certa autoridade e peso institucional. O autor explica como esta é uma
atividade relativamente recente e estritamente ligada aos mecanismos do mercado
e à sua interferência na produção literária, sobretudo na configuração dos gostos,
afirmando por fim que com a crescente especialização metodológica e graças ao
rápido avançar dos estudos literários, a atividade crítica e, consequentemente, o
seu papel e o seu peso na sociedade, sofreu alterações.
No que diz respeito à especialização metodológica, o sistema de ensino é uma
forte instância de validação institucional. A literatura representa um apoio na
transmissão de conceitos e saberes, e é neste sentido que nascem os chamados
textos “normativos”, escolhidos porque representam a identidade cultural que se
pretende veicular e difundir. Este discurso está estritamente relacionado com a
dimensão sociocultural do fenómeno literário e portanto
Os programas escolares, enquanto documentos com força normativa
que o Estado estipula, constituem em princípio testemunhos
reveladores de uma consciência cultural e nacional que procura
afirmar-‐se como legítima.12
Ao falarmos de literatura como instituição ou, por outras palavras, ao
observarmos os diferentes fatores que institucionalizam as obras literárias, não
podemos deixar de mencionar Robert Escarpit, que, nos anos 70, contribuiu de
forma substancial para o desenvolvimento dos estudos da chamada sociologia da
literatura. Este particular campo de investigação nasce em meados do século
11 Ibid., p. 29. 12 Ibid., p. 38.
16
passado, quando se começou a processar uma verdadeira revisão crítica do saber
sociológico, que até àquele momento tivera um sentido enciclopédico e não se
especificara em relação aos diferentes objetos de estudo. Com o avançar das
técnicas e dos métodos adotados, alguns dos campos de investigação foram-‐se
tornando autónomos, abrindo caminho a estudos como o estudo em questão;
pode-‐se, aliás, afirmar que isso depende do facto de o século XIX ter estado mais
interessado na dimensão social da literatura, enquanto o século XX apresentou um
maior interesse pela dimensão sociológica. De facto, segundo Roland Barthes:
Existem, evidentemente, duas sociologias da literatura. Uma delas é a
sociologia digamos da comunicação, da difusão, da aceitação, da
influência no leitor das instituições culturais [...]. A outra é uma
sociologia da criação, do facto estético.13
Alguns sociólogos, portanto, endereçaram os eixos das suas pesquisas para
outros campos e delinearam dentro destes a possibilidade de ter diferentes
perspetivas de observação. Robert Escarpit iniciou os seus estudos no campo da
literatura comparada, mas empreendeu e orientou pesquisas sociológicas,
interessando-‐se sobretudo pela sociologia do leitor. Assim o autor esclarece as
razões da sua escolha:
[...] Pessoalmente fui para a sociologia da literatura para me
desembaraçar das próprias noções de obra e de criador que bloquearam
o pensamento literário durante demasiado tempo. É por isso que
substituí, na minha terminologia, a noção de obra pela noção de facto
literário. O facto literário é a troca, a comunicação, é o movimento do
autor ao público.14
13 R. BARTHES, op. cit., p. 26-‐27. 14 Intervenção de R. ESCARPIT no debate transcrito em AA.VV., Literatura e sociedade, Editorial Estampa, Lisboa, 1973, p. 29.
17
Ao introduzir a noção de facto literário, Robert Escarpit recolhe todas as
dinâmicas e os papéis que constroem uma obra literária e a põem em comunicação
com a sociedade real a que se dirige, afirmando que:
Todo o facto literário pressupõe escritores, livros e leitores, ou, de uma
maneira geral, criadores, obras e um público. Constitui um circuito de
trocas que, por meio de um sistema de transmissão extremamente
complexo, dizendo respeito ao mesmo tempo à arte, à tecnologia e ao
comércio, une indivíduos bem definidos numa colectividade mais ou
menos anónima.15
O facto literário, desta forma, constitui um dos meios pelos quais uma
sociedade pode até tomar consciência de si mesma, uma consciência, contudo, que
na maioria dos casos é desestruturante e que pode ser uma ameaça à sua ordem e
ao seu equilíbrio, sendo por isso difícil observá-‐la. Finalmente, ele refere:
O facto literário apresenta-‐se-‐nos segundo três modalidades principais: o
livro, a leitura e a literatura. Na linguagem corrente empregam-‐se
frequentemente estes termos como equivalentes. No entanto, as três
noções apenas em parte se podem confundir e os seus limites são muito
imprecisos.16
O que interessa a Robert Escarpit é o circuito de trocas que subjaz ao produto
literário, isto é, o sistema de produção da obra e os seus participantes. No seu livro
Sociologia da literatura, após esta divisão do facto literário em livro, leitura e
literatura, procede à sua descrição e a uma análise histórica das mudanças sofridas
pelos três ao longo dos séculos. Contudo, o propósito de Escarpit é traçar as linhas
metodológicas de referência para quem se interessa por estes estudos, úteis na
altura da sua publicação dado o seu estado ainda pouco avançado e as muitas
dúvidas sobre a sua cientificidade. Todavia, estamos ainda perante uma tentativa de
15 R. ESCARPIT, Sociologia da literatura, Lisboa, Arcádia, 1969, p. 9. 16 Ibid., p. 29.
18
sistematizar um saber instável e pouco alcançável, cuja mobilidade cria muitos
desafios, até que, segundo Giovanni Ricciardi:
As diferentes tentativas científicas têm confirmado a dificuldade e a
quase impossibilidade de constituir uma ciência da sociologia da
literatura.17
Falar de “facto literário” é referir-‐se ao contínuo e incessante fluir de
estímulos e reações entre autor-‐obra-‐público e ambiente social, estrutura política e
económica, dado que está efetivamente sempre em comunicação com o resto dos
agentes da sociedade, traduzindo as suas mensagens e vivendo sob a sua influência.
Por outras palavras:
a expressão “facto literário” acentua as relações entre literatura e
sociedade, tornando-‐se, portanto, facto sociológico, objeto de análise e
campo de pesquisa.18
Consoante o interesse de cada autor, de M.me de Staël a Goldmann,
passando por Adorno, Escarpit e Silbermann, o campo de pesquisa da sociologia da
literatura tem sido delimitado de maneiras diferentes. Escarpit prefere sublinhar o
nexo autor-‐público e portanto concentrar-‐se na fruição da obra, enquanto
Goldmann, por exemplo, sempre se interessou pelos problemas estruturais, que
fornecem uma definição limitada e não totalmente exaustiva. O que se pode
estabelecer, contudo, sobre a sociologia da literatura, são as suas tarefas e
objetivos, e estes correspondem à tentativa de colher as relações entre literatura e
sociedade, mantendo-‐se num delicado equilíbrio entre as duas componentes para
que nenhuma se sobreponha ou ofusque a outra.
O que se pode concluir é que o fenómeno literário é um fenómeno social que
passa pelo objeto-‐livro. A atividade artística não é algo que está a mais, mas é uma
atividade necessária e complementar como todas as outras atividades humanas 17 G. RICCIARDI, Sociologia da literatura, Lisboa, Publicações Europa-‐América, 1971, p. 44. 18 Ibid., p. 53.
19
significativas que, no conjunto, constituem a sociedade global. Entre arte e
sociedade existe um nexo real, dialético, vivo, certamente não estático: um nexo de
recíproco condicionamento cuja análise permite evidenciar toda a riqueza das suas
implicações.
I. 2 A teoria dos campos e teoria polissistémica
Abandonando uma abordagem ao objeto literário centrada exclusivamente
no texto – que acaba por considera-‐lo uma realidade totalmente autónoma – e
abrindo caminho aos estudos literários de matriz social, é impossível não fazer
referência às noções sobre o campo literário teorizadas por Pierre Bourdieu.
A noção de “campo” nasce da exigência do sociólogo francês de tomar em
consideração de forma metódica o facto que, nas sociedades complexas e por
efeito da divisão do trabalho, as diferentes atividades humanas têm tendência a
organizar-‐se como “campos de produção” relativamente autónomos. Para indicar as
divisões internas do corpo social, Bourideu utiliza um termo cujas multíplices
interpretações semânticas oferecem a oportunidade de condensar os diversos
aspectos dos seus paradigmas teóricos: em primeiro lugar, o conceito de “campo”
remete para a ideia de campo magnético, campo de força, e faz referência ao facto
de o campo social ser um espaço em que as forças operantes tendem ao
mantimento ou a subversão dos equilíbrios dominantes existentes; em segundo
lugar, remete para a ideia de campo de batalha, espaço de conflitos para a
hegemonia vinculados a regras específicas aceites por todos os que neles
participam.
Tendo dedicado grande parte das suas pesquisas e análises à cultura, aos
seus agentes e aos seus produtos, a teoria dos campos sociais representa o ponto
final dum longo percurso investigativo. Na sua obra emblemática As regras da arte,
a sua análise sociológica alarga-‐se à própria génese da obra de arte, acabando por
conter todas as ferramentas necessárias à compreensão dos seus postulados. Desta
20
maneira o autor desmantela um amplo conjunto de estereótipos relativos à
“sagrada” figura do artista (pintores, escritores, filósofos, cineastas, etc.) afirmando
que este nunca está completamente livre nos seus atos criativos, mas que as suas
escolhas estão diretamente ligadas à posição que ocupa dentro do seu campo
específico. Esta análise sociológica, portanto, diferencia-‐se da crítica militante e de
denúncia porque não toma “uma posição” mas diz respeito às “tomadas de
posição”.
Conceitos chave da teoria dos campos, o de “posição” e o consequente de
“tomada de posição”, são também os princípios na base da preservação ou da
transformação da ordem estabelecida. A primeira é “objetivamente definida pela
sua relação objetiva com as outras posições”19 e depende da distribuição das
espécies de capital (ou de poder) dentro do campo, cuja posse determina a
obtenção dos ganhos específicos postos em jogo. Assim, às diferentes posições
correspondem tomadas de posição homólogas e
cada tomada de posição (temática, estilística, etc.) define-‐se
(objectivamente e por vezes intencionalmente) por referência ao
universo das tomadas de posição e por referência à problemática
como espaço dos possíveis que nele se acham indicados ou
sugeridos.20
É portanto necessário entender cada campo como um “espaço de posições e
de tomadas de posições atuais e potenciais (“espaço dos possíveis ou
problemática” 21 ), que gera esquemas de perceção e de avaliação, tradições,
técnicas, hierarquias de “legitimação”, regras do jogo e instituições próprias dele,
que por sua vez funcionam graças a interesses específicos comuns. Por outras
palavras: cada campo é um microcosmo cultural animado por conflitos e
determinado pelo contexto histórico, sobre o qual agem forças internas e externas.
19 P. BOURDIEU, As regras da arte. Génese e estrutura do campo literário, Lisboa, Editorial Presença, 1996, p. 264. 20 Ibid., p. 266. 21 Ibid., p. 265.
21
Segundo Bourdieu, em todas as sociedades as relações de força entre as
diferentes posições dependem da distribuição das principais formas de capital,
cujas três tipologias fundamentais são o capital económico, o capital social e o
capital cultural: estas três tipologias atuam dentro da sociedade e a sua posse é
legitimada pela mediação do capital simbólico. Enquanto o capital social é
constituído pelas relações que incrementam a capacidade de um ator de avançar
nos seus interesses e representa um recurso fundamental nas lutas que se realizam
dentro dos campos, o capital cultural indica as informações assimiladas pelo corpo
social, i.e. o conjunto de recursos, competências e apetências disponíveis e
mobilizáveis em matéria de cultura dominante ou legítima; este pode ser
incorporado, quando faz parte do habitus22 dos agentes, ou objetivado, quando é
certificado através de títulos escolares. O capital, por fim, não é uma coisa, uma
substância, um objeto concreto, mas uma relação (de poder) correspondente a um
determinado estado de forças dentro dos diferentes campos sociais.
Nesta perspetiva, também é necessário considerar o campo literário como
um microcosmo social dotado de leis e estrutura próprias, um espaço de relações
objetivas entre posições em que cada posição existe em relação às outras. As
circunstâncias políticas, sociais, económicas e culturais afetam a estrutura do
campo, exercendo pressão nos seus agentes, i.e. os produtores, e nas suas lutas
para o mantimento ou a transformação da ordem dominadora. Tal como os outros
campos sociais, também o literário estabelece um sistema de relações com o campo
do poder, definido pelo autor como sendo
o espaço das relações de força entre agentes ou instituições que têm
em comum possuir o capital necessário para ocuparem posições
dominantes nos diferentes campos (económico ou cultural
nomeadamente).23
22 O conceito de habitus teorizado por Bourdieu refere-‐se ao estilo de vida, aos valores, às disposições e às expectativas do grupo social que são adquiridas ao longo das suas atividades e das suas experiências de vida. O habitus pode ser entendido como uma estrutura da mente caracterizada por um conjunto de esquemas, sensibilidades, disposições e gostos adquiridos, que são o resultado da objetivação a nível subjetivo da estrutura social. 23 Ibid., p. 247.
22
A ideia do sociólogo francês é que, dentro do campo do poder, o campo
literário ocupa uma posição dominada, como, de resto, os campos da produção
cultural em geral. Mas, não obstante esta indubitável realidade, a ordem literária
parece representar um “verdadeiro desafio a todas as formas de economismo”
dado que se apresenta “como um mundo económico às avessas”24: os que aí
entram têm interesse no desinteresse, pois a criação em si, em princípio, não tem
em vista qualquer remuneração.
Contudo, isso não é suficiente para alcançar uma verdadeira independência
frente às inúmeras forças do atual mercado e aos interesses nele envolvidos, e por
muito emancipada que possa estar a sua posição em relação às imposições e
exigências externas, os campos de produção cultural continuam a ocupar uma
posição dominada. Bourdieu reconhece que:
[os campos da produção cultural] continuam a ser atravessados pela
necessidade dos campos englobantes, a do ganho, a económica ou
política.25
Não obstante isso, e apesar da autonomização progressiva do sistema de
relações de produção, circulação e consumo de bens simbólicos (i.e., os objetos
artísticos ou culturais aos quais é atribuído valor mercantil, e que são consagrados
pelas leis do mercado ao estatuto de mercadorias), a natureza destes últimos é
sempre a de “realidades de dupla face, mercadorias e significações”26. Apesar do
processo de especialização ter levado ao aparecimento de uma produção cultural
exclusivamente destinada ao mercado e de outra – a das chamadas “obras puras” –
destinada à apropriação simbólica, Bourdieu afirma que
os campos de produção cultural organizam-‐se [...] segundo um
princípio de diferenciação que não é outra coisa senão a distância
24 Ibid., p. 248. 25 Ibid., p. 248. 26 Ibid., p. 168.
23
objectiva e subjectiva das actividades de produção cultural em
relação ao mercado e à procura expressa ou tácita[...].27
Para desmantelar a convicção segundo a qual a acumulação de capital
económico e poder são as únicas formas conhecidas para adquirir valor social,
Bourdieu utiliza toda uma terminologia económica – que resulta de propósito
ambígua – para ilustrar os mecanismos da “economia dos bens simbólicos”,
concluindo, além disso, que todas as tipologias de capital tendem a funcionar como
capital simbólico.
Por ser dependente do “mercado” e da “procura”, o campo literário
funciona como os outros microcosmos sociais, e os seus agentes baseiam-‐se nas
regras procedentes do habitus incorporado: cada escritor manifesta a sua história
social e particularmente a sua posição dentro do campo e a trajetória que os
conduziu até lá; as suas escolhas de género, de estilo e de conteúdo, as suas
relações com os outros escritores ou com os editores e os críticos, são o resultado
dos condicionamentos do sistema de que fazem parte, e em que estão imersos. E,
em relação aos seus ganhos, o sociólogo francês afirma que:
O capital “económico” só pode garantir os lucros específicos
proporcionados pelo campo [...] se se converter em capital simbólico.
A única acumulação legítima, para o autor como para o crítico [...],
consiste em criar um nome, um nome conhecido e reconhecido,
capital de consagração implicando o poder de consagrar objectos [...]
ou pessoas [...], e portanto de conferir valor e de extrair os lucros que
se ligam a essa operação.28
Não é possível prescindir, portanto, da estrita relação que existe entre a
posição dum autor dentro do campo e o capital simbólico por ele adquirido, e por
ele representado, pois estes estão ligados de tal forma que até o capital económico
está sujeito a eles. A verdadeira “riqueza” está na aquisição, ao longo do tempo e
27 Ibid., p. 169. 28 Ibid., p. 177.
24
através de estratégias adequadas, duma posição que legitime quem fala a mover-‐se
em liberdade dentro do seu campo.
Com Pierre Bourdieu a literatura torna-‐se num espaço de relações que
envolvem agentes e elementos procedentes de diferentes esferas sociais. A
observação abre-‐se de uma vez por todas à ideia de que o texto é só uma parte do
produto literário, e que para uma correta compreensão deste último é necessária
uma visão panorâmica dos fatores que contribuem para a formação de significados,
de interpretações, dos elementos que condicionam não só os seus produtores, mas
também os contextos a que se dirigem.
Paralelamente às teorizações do sociólogo francês, e como resultado da
evolução das teorias procedentes do Formalismo Russo, os postulados da
Polysystem theory de Itamar Even-‐Zohar também desempenham um papel
importante no processo de “abertura” das fronteiras da literatura. Esta teoria foi
criada em 1969 pelo professor israeliano, e aperfeiçoada em 1991, e desde então é
considerada uma teoria de referência nos estudos literários, sobretudo pela visão
dinâmica e de conjunto que oferece do sistema literário.
Como Pierre Bourdieu, também Itamar Even-‐Zohar concebe a literatura não
como um componente isolado dentro das sociedades e regulamentado por leis
particulares e diferentes daquelas a que estão sujeitas as restantes atividades
humanas, mas como um elemento central e poderoso, integrado nos outros. Além
disso, como todos os fenómenos semióticos, seria muito mais adequando
considerá-‐lo um “sistema” do que um agregado de entidades separadas e,
consequentemente, seria mais apropriado observar as relações que o distinguem.
A ideia de sistema procedente das pesquisas do Funcionalismo foi
interpretada segundo duas visões opostas dentro da mesma escola crítica: uma
primeira abordagem, que seguia as teorias “estruturalistas” de Saussurre e a Escola
de Genebra, concebia o sistema como uma rede estática (ou sincrónica) de relações
em que o valor de cada elemento era dado pela função desempenhada na relação
específica em que entrava; pelo contrário, a segunda perspetiva – representada
pelos formalistas russos e pelos estruturalistas checos – baseava-‐se numa ideia
25
dinâmica de sistema. Foi a partir desta ideia que Even-‐Zohar concebeu a
Polysystem theory, abordagem que parte do pressuposto de que “a semiotic system
can ben conceived of as a heterogeneous, open structure”29. Por outras palavras:
a polysystem – a multiple system, a system of various systems which
intersect with each other and partly overlap, using concurrently
different options, yet functioning as one structured whole, whose
members are interdependent.30
Segundo o teorizador, o termo “polissistema” é muito mais do que uma
convenção terminológica. Este termo foi escolhido com o claro propósito de tornar
logo explícita a conceção dinâmica e heterogénea de sistema, enfatizando a
multiplicidade das possíveis interseções e portanto a maior complexidade da sua
estruturação. Em suma, o termo sublinha que a uniformidade, decerto, não
contribui para um coreto funcionamento de qualquer sistema.
Portanto, ao observar a literatura está-‐se sempre perante um sistema aberto
e é necessário estar sempre preparados para conduzir análises cujo nível de
exaustividade será mais baixo, tendo em conta que “more room will be given to
‘disorders’”31 e que não será possível usar critérios de valor para uma seleção a
priori dos objetos de estudo. Também é necessário partir do pressuposto que,
quando fala de heterogeneidade, Itamar Even-‐Zohar considera que os elementos
constitutivos do sistema se relacionam uns com os outros não como componentes
(ou funções) individuais, mas como outros sistemas parcialmente alternativos de
opções igualmente válidas. Estes
are not equal but hierarchized within the polysystem. It is the
permanent struggle between the various strata [...] which
constitutes the (dynamic) synchronic state of system. It is the
29 I. EVEN-‐ZOHAR, Polysistem studies, Durham, Duke University Press, 1990 p. 11. 30 Ibid., p. 11. 31 Ibid., p. 12.
26
victory of one stratum over another which constitutes the change
on the diachronic axis.32
Devido ao movimento que se gera, as forças centrífugas chocam com as
forças centrípetas e alguns fenómenos são empurrados desde o centro até a
periferia, ao mesmo tempo que outros da periferia acabam por ocupar o centro do
sistema. Contudo, é necessário ter um conta que não existe apenas um centro e
uma periferia.
Embora diferentes, o que se pode evidenciar como ponto de vista comum
entre a teoria de Bourdieu e a de Even-‐Zohar, é o papel central da luta interna dos
sistemas (ou campos) em questão: esta constante é determinante na preservação
da existência dos mesmos e garante o dinamismo que tanto os caracteriza; torna
possível a sua evolução e explica as contínuas trocas nas relações internas e a sua
capacidade de “comunicar” com o sistema social de que fazem parte.
A literatura, portanto, é um sistema formado por um complexo conjunto de
outros sistemas, dinâmicos e heterogéneos, e é esta peculiaridade que garante a
sua vitalidade perante as novas normas e os novos modelos introduzidos pelas
classes dominadoras e as instituições literárias. Os numerosos sistemas que a
constituem encontram-‐se historicamente ligados, e continuam a poder ser
interpretados, revisitados e retomados em consideração.
Também é interessante o que o professor israeliano afirma sobre a relação
entre a cultura oficial e as suas periferias:
since in practice, the (uni-‐)system has been identified with the central
stratum exclusively (that is, the official culture as manifested inter
alia in standard language, canonized literature, patterns and
behaviours of the dominating classes), peripheries have been
conceived of (if at all) as categorically extra-‐systemic [...].33
32 Ibid., p. 15. 33 Ibid., p. 14.
27
Dois erros comummente cometidos são evidenciados nesta afirmação: o primeiro
tem a ver com a convicção de que a cultura é um “unissistema”, isto é, um espaço
uniforme, unitário e homogéneo, formado exclusivamente pelos componentes
estandardizados escolhidos pela classe dominadora; esse primeiro erro de avaliação
conduz ao segundo, ou seja, não considerar as tensões internas entre os vários
estratos, e ignorar a existências de muitos seus elementos. Enfim, cada sistema
semiótico e sociocultural é um polissistema movido por lutas internas.
Aquilo que é ou não é canonizado no sistema cultural constitui um exemplo
das tensões universais que se podem criar no seu interior. Estas estão presentes em
todas as culturas humanas a partir do momento em que uma sociedade humana
não estratificada não existe. O que acontece é que os sistemas culturais precisam
de um certo equilíbrio regulador para não colapsar, que é dado pelas oposições
entre os diferentes estratos: apesar de os sistemas educativos estarem
centralizados e promoverem a ideia de que a única cultura aceitável é a chamada
“cultura oficial”, sem o estímulo duma forte “sub-‐cultura” qualquer atividade
canonizada tenderia a estagnar.
A heterogeneidade é, portanto, a condição necessária para que um sistema
sociocultural seja capaz de funcionar sem depender dos sistemas de outras
comunidades, e neste sentido, a “lei de proliferação” parece ser universalmente
válida: “in order to fulfil its needs, a system strives to avail itself of a growing
inventory of alternative options”34. Se a proliferação de opções parar, ocorrerá
aquilo que Even-‐Zohar define como “petrification”, que se manifesta logo através
do “high degree of boundness and growing stereotypization of the various
repertoires”35.
Para um sistema, a “petrificação” representa um forte elemento de
perturbação, dado que, no longo prazo, não lhe permite estar ao passo com as
mudanças necessárias à sociedade, favorecendo o seu colapso. No caso da
literatura, isso não significaria um total desaparecimento – dado que é um dos
principais sistemas de organização da cultura humana – mas poria em discussão o 34 Ibid., p. 26. 35 Ibid., p. 17.
28
seu grau de “adequação” e a sua posição no interior da cultura. Portanto, a
literatura é ao mesmo tempo autónoma e sujeita a leis alheias a ela, sendo
simultaneamente autorregulamentada e condicionada por outros agentes.
Itamar Even-‐Zohar propõe também um esquema explicativo de tudo isto, em
que insiste no diagrama da comunicação e da linguagem de Jackobson adaptando-‐o
à sua ideia de literatura: o sistema literário, segundo esta abordagem, consiste de
todos os fatores que são envolvidos nas atividades ditas “literárias”, e o texto deixa
de ser o seu único produto, e não é necessariamente o mais importante. Aliás, esse
esquema não precisa de hierarquias de importância estabelecidas a priori entre os
elementos e, em vista disso:
a CONSUMER may “consume” a PRODUCT produced by a
PRODUCER, but in order for the “product” (such as “text”) to be
generated, a common REPERTOIRE must exist, whose usability is
determined by some INSTITUTION. A MARKET must exist where
such good can be transmitted.36
Nenhum destes fatores funciona individualmente, pois é mesmo a
interdependência entre todos que torna possível o seu funcionamento. Com a
Polysystem theory os produtores surgem estritamente ligados aos outros agentes
que operam dentro do sistema como forças condicionantes e condicionadas, e o
texto é só oficialmente a maior “mercadoria”, pois a mercadoria efetiva assenta
numa esfera sociocultural completamente diferente. A produção de textos é,
portanto, apenas uma das tarefas que pertencem aos produtores, dato que
frequentemente estes são inteiras comunidades sociais, ou grupos de pessoas
encarregadas da produção e da sua organização, entrando a fazer parte quer da
instituição literária quer do mercado.
Por sua parte, o consumidor, ao qual é comummente associado o ato da
leitura, participa em muitos mais níveis nas atividades literárias. Segundo Itamar
Even-‐Zohar, “the direct consumption of integral texts has been, and remains,
36 Ibid., p. 34.
29
peripheral to the largest part of ‘direct’, let alone ‘indirect’ consumers of literary
texts”37, o que significa que os indivíduos consomem realmente apenas uma certa
quantidade de fragmentos literários, que, aliás, lhe são transmitidos pelos
diferentes agentes culturais como partes integrantes dos seus discursos. Os
consumidores diretos, isto é, as pessoas que intencionalmente e deliberadamente
estão interessadas nas atividades literárias, são uma minoria dentro da
comunidade, o que confirma a ideia de que
consumers’ of literature [...] often consume the socio-‐cultural
function of the acts involved with the activity in question [...] rather
than what is meant to be the product.38
Por outra parte, o termo “instituição” indica o conjunto de fatores
envolvidos no mantimento da literatura como atividade sociocultural, através do
controlo das normas em vigor. Como parte da cultura oficial, a instituição determina
também quem e que produtos ficarão na memória coletiva, apesar de não atuar
como um corpo homogéneo e harmónico: no seu interior, como dentro de todos os
sistemas, existem lutas e tensões para a dominação, com grupos diferentes que se
alternam no seu domínio. A instituição literária não é portanto um sistema
uniforme, e qualquer decisão tomada por um dos seus agentes depende da
legitimação e das restrições procedentes dos outros.
Por fim, segundo a Polysystem theory, todos os fatores envolvidos na venda
e na compra dos produtos literários, bem como os que atuam para promover o seu
consumo, fazem parte do sistema chamado mercado. Também fazem parte deste
sistema alguns agentes ligados à instituição literária, como as escolas e os
professores, sendo que ambos têm o poder de condicionar os gostos e as perceções
dos alunos segundo as vontades da classe dominadora (que administra e determina
as escolhas das instituições). O que é fundamental, porém, é que sem um mercado
37 Ibid., p. 36. 38 Ibid., p. 36.
30
não existiria outro espaço sociocultural para a manifestação das atividades
literárias.
Para concluir, é necessário fazer referência a outra particularidade do
sistema literário evidenciada por Even-‐Zohar, que, na realidade, tem a ver com
todos os sistemas em geral: a interferência. Esta pode ser definida como “a
relation(ship) between literatures, whereby a certain literature A (a source
literature) may become a source of direct or indirect loans for another literature B
(a target literature)”39 e pode ser unilateral ou bilateral, o que significa que pode
funcionar apenas para uma literatura ou para ambas. Naturalmente, este tipo de
relação toma corpo só caso haver um contacto entre as duas literaturas e depende
estritamente do estado dos sistemas envolvidos. Com base nas leis de interferência,
por fim, é possível classificar os sistemas literários como independentes e
dependentes.
A literatura, estudada como um constructo social e observada através das
lentes das teorias de sistema, mostra as complexas relações que envolvem os
autores, os editores, os tradutores, os críticos, os leitores e os vendedores , que
atuam como agentes de (re)produção e consagração com a sua escolha e leitura de
determinados textos em lugar de outros.
I. 3 A formação do sistema literário lusófono
Graças às teorias de Pierre Bourdieu e Itamar Even-‐Zohar é possível afirmar
que as transformações políticas, económicas e sociais ocorridas em Portugal antes
da ditadura e após a sua queda, e nos primeiros anos do século XXI, moldaram e
modificaram o campo ou sistema literário português, o seu cânone e o universo de
leitores, facilitando ou impedindo o aparecimento de novas ideologias
determinantes na produção, difusão e receção das obras literárias.
39 Ibid., p. 54.
31
Apesar de António Costa Pinto considerar que “Portugal chegou à ‘era das
massas’ sem alguns dos factores de perturbação que marcaram [...] muitos regimes
democráticos”40, referindo-‐se às poucas mudanças sofridas a nível de fronteiras
políticas – que hoje são quase completamente iguais às da baixa idade média – e à
quase ausência de minorias nacionais ou étnico-‐culturais, o impacto de algumas
importantes transformações, quer a nível social, quer a nível cultural, é indubitável.
A longa duração do regime ditatorial, a eclosão e o fim da Guerra Colonial, o
processo revolucionário de 1974-‐75 e a integração de Portugal na União Europeia,
foram particularmente relevantes a nível histórico, social e ideológico. Outros
acontecimentos, menos radicais mas igualmente influentes relacionados com estes
últimos (como a diminuição do analfabetismo, a mudança da geografia social do
país, e o avançar do processo globalizador, entre outros) desempenharam por sua
vez um papel importante na transformação dos comportamentos e das
mentalidades da comunidade em questão.
O contexto histórico condicionou as ideologias que marcaram a perceção da
identidade nacional e a consequente relação com a alteridade. No últimos anos, o
tema da identidade nacional portuguesa tem estado mais presente nos interesses
dos historiadores, e isso levanta reflexões mais adequadas ao assunto. Poderia
dizer-‐se, com as palavras de Eduardo Lourenço que “o horizonte próprio onde
melhor se apercebe o que é e o que não é a realidade nacional [...] revela o
irrealismo prodigioso da imagem que os Portugueses se fazem de si mesmos”41 na
tentativa de “esconder de nós mesmos a nossa autêntica situação de ser histórico
em estado de intrínseca fragilidade”42.
De facto, segundo os historiadores, Portugal não escapou aos grandes
movimentos intelectuais e políticos da viragem do século XIX para o século XX, e foi
mesmo nesse período que se redefiniu e consolidou o imaginário nacional, e,
sobretudo, que este se dotou de instrumentos de difusão destinados a difundi-‐lo ao
conjunto da sociedade. 40 A. COSTA PINTO, “Portugal contemporâneo: uma introdução” in A. COSTA PINTO (coord.), Portugal contemporâneo, Lisboa, Dom Quixote, 2004, p. 11. 41 E. LOURENÇO, O Labirinto da Saudade, Lisboa, Gradiva, 2010, p. 23. 42 Ibid., p. 25.
32
Um peculiaridade detectada por Nuno G. Monteiro e António Costa Pinto
em relação à realidade nacional portuguesa é a “inexistência de correntes
centrífugas (designadamente, identidades regionais ou étnicas minoritárias)”43, e
portanto a falta de forças que dificultassem a afirmação da identidade nacional e
dos seus temas centrais.
Estes temas, numa primeira fase (que corresponde à primeira metade do
século XIX) centravam-‐se na decadência e regeneração, na Idade Média e nos
descobrimentos, no Império e na relação com a Inglaterra, muito determinante e
conflitual, e é possível detetá-‐los já nos textos dos autores românticos de algumas
décadas anteriores (Garrett e Herculano), que
se haviam empenhado em lançar tradições da história medieval os
fundamentos do presente, mas ainda o sentido clássico de amor
cívico pelo bem comum, e a não sentimental adesão ao Estado.44
A literatura e a sociedade, a construção identitária e a criação de temáticas
recorrentes, viveram, portanto, umas ao lado das outras no contínuo processo
formativo da nação portuguesa desde o seu começo.
A doutrinação e a propaganda republicana, que de facto produziu os
ingredientes fundamentais do nacionalismo português, foi verdadeiramente
fundamental neste processo de construção e consolidação sociocultural. Teófilo
Braga, o seu grande teorizador, com o seu “republicanismo de raiz positivista”45,
construiu um conjunto doutrinário coerente cuja condição fundamental era a
construção cultural da nação: Teófilo Braga desenvolveu uma teoria sobre a
produção dos símbolos e dos rituais nacionais, que se concretizou no triunfo
republicano de 1910. A cultura política dominante que da maior parte das correntes
políticas caracterizava-‐se por “um nacionalismo de feição imperial”46.
43 N.G. MONTEIRO e A. COSTA PINTO, “A identidade nacional portuguesa” in A. COSTA PINTO (coord.), Portugal contemporâneo, Lisboa, Dom Quixote, 2004, p. 55. 44 Ibid., p. 57. 45 Ibid., p. 58. 46 Ibid., p. 59.
33
Com os republicanos realizou-‐se a nacionalização das massas, em torno de
temas como a decadência de final de século, a sacralização das colónias africanas, a
utilização duma nova liturgia cívica laica. Todas estas temáticas foram revisitadas
pelo Estado Novo, que marcou uma segunda fundamental fase de construção da
identidade nacional.
Com o Estado Novo, a transcendência da nação e a interpretação dos seus
interesses passaram a estar no centro do discurso político e ideológico, sobretudo
em relação às opções internacionais. Os temas mais relevantes do nacionalismo
historicista foram desenvolvidos pelo Integralismo Lusitano, que se movia em torno
do princípio de “reaportuguesar Portugal” e cujo maior teorizador, Luís de Almeida
Braga, interpretando o recém-‐implantado regime republicano como uma nova
etapa no processo de decadência, advogava que a regeneração só seria possível
através de um retorno à integralidade do espírito católico que fizera Portugal.
O Integralismo Lusitano, portanto, ofereceu ao discurso oficial e à difusão do
aparelho da propaganda e do aparelho escolar do Estado Novo as suas ideias
principais, que remetiam para “a reinvenção de uma nação moldada historicamente
pelo império e pelo catolicismo, [...] para uma nação hierarquizada e coesa em volta
de uma chefia forte”47. A isso seguiu-‐se a depuração dos herois – que se refletiu na
eliminação de quase todos os manuais escolares que remetiam para ideologias
diferentes da dominante – e a divinização dos símbolos medievais e dos
descobrimentos.
Nesta época complicada, tornou-‐se clara a consolidação da fusão entre
nacionalismo e colonialismo se estivesse a consolidar na cultura política portuguesa,
dado que o Estado Novo se apropriou deste binómio, transformando-‐o num dos
seus dogmas mais duráveis e sólidos. Aliás, tinha começado a aparecer nos textos
oficiais dos anos 30 o discurso sobre a “especificidade” do colonialismo português,
legitimado pelas teorias do “luso-‐tropicalismo” de Gilberto Freire que explicavam a
presença lusitana no mundo com a “miscigenação espontânea” e a existência duma
entidade “luso-‐tropical”.
47 Ibid., p. 60.
34
Esta teoria foi ideada pelo sociólogo brasileiro para definir e distinguir os
traços caraterísticos do colonialismo português, partindo da consideração de que,
dado o clima mais quente do país, a vizinhança com África e os numerosos e muito
antigos contactos com outras culturas, o povo português tinha uma maior
capacidade de se adaptar ao clima tropical (nem sempre fácil) e de se misturar com
as povoações locais. Todavia, durante o Estado Novo, o conceito foi utilizado por
Salazar para justificar e legitimar a presença portuguesa sobretudo nos domínios
africanos, numa época da história em que se estava a assistir à libertação das
colónias dos diferentes países europeus. É importante sublinhar, contudo, que
inicialmente Salazar não apoiara as posições de Freire, provavelmente por causa da
valorização da predisposição à mestiçagem típica do povo português, que
obviamente contradizia a firme defesa da “portugalidade” do antigo ditador. As
teorias de Freire foram, por fim, um elemento fundamental de legitimação do
projeto colonial salazarista.
Além disso, numa segunda fase, devido ao início da descolonização, o
discurso oficial sentiu a necessidade, dada pelo início da descolonização, de difundir
uma ideia de Portugal e das suas colónias que os designasse como uma entidade
única, transformando assim a o país numa nação “pluricontinental e plurirracial” e
tornando a nacionalidade portuguesa o cimento unificador da civilização cristã. De
facto
o Estado Novo lançava as primeira pedras institucionais de uma
Comunidade Portuguesa e de um espaço económico integrado com
as colónias [...].48
O Estado Novo pôs portanto as bases daquilo que Agostinho da Silva definiu como
Lusofonia, isto é, o conjunto político-‐cultural dos falantes de português e a
divulgação da língua portuguesa no mundo.
48 Ibid., p. 61.
35
Segundo Eduardo Lourenço, com a sua ficção oficial, a sua exemplaridade, a
sua aparente ausência de problemas e a sua sociedade harmoniosa, o salazarismo
concretamente
redundou na fabricação sistemática e cara de uma lusitanidade
exemplar, cobrindo o presente e o passado escolhido em função da
sua mitologia arcaica e reaccionária que aos poucos substituiu a
imagem mais ou menos adaptada ao país real dos começos do Estado
Novo por uma ficção ideológica, sociológica e cultural mais irrealista
ainda do que a proposta pela ideologia republicana [...].49
Este controlo ideológico total e totalizador corresponde ao que Itamar Even-‐
-‐Zohar definiria uma fase de “petrificação” do sistema literário e, na realidade,
também dos outros sistemas socioculturais: condicionou a venda de livros, os seus
conteúdos, a sua difusão, direcionando fortemente a sua receção.
Após a queda da ditadura e com a implantação da democracia e do regime
republicano, e a consequente “opção pró-‐europeísta”, verificaram-‐se algumas
mudanças, como “a crescente litoralização da população e da urbanização” e a
“desagregação da sociedade rural tradicional”50, sem contudo alterar radicalmente
a perceção da identidade nacional. Além disso, com a conclusão definitiva do
processo de descolonização e a abertura do mercado cultural, o discurso oficial
sobre os territórios ultramarinos sofreu algumas mudanças, sem porém abandonar
o caminho aberto pelas ideologias veiculadas pelo conceito de Lusofonia de
Agostinho da Silva.
Com a inversão dos poderes políticos e sociais – situação em que se verificou
uma sucessão de governos de esquerda com a participação de militares
revolucionários – , foi finalmente fundado um regime democrático e parlamentar e
começaram a ser repostas gradualmente as normas legais de garantia aos direitos
fundamentais, o que permitiu também o regresso de todos os que durante a
ditadura se tinham exilado. A instalação dum regime democrático foi, certamente, a 49 E. LOURENÇO, Op. Cit., p. 33. 50 N. G. MONTEIRO, A. C. PINTO, Op. Cit., p. 63
36
transformação com maior impacto na população, na organização da sociedade e na
administração dos diferentes poderes.
A rápida descolonização, por exemplo, e o drástico corte dos vínculos
ultramarinos do país, afetou fortemente a população portuguesa, dado que “cerca
de 650.000 expatriados de África”51 voltaram para o seu país natal; desapareceram
ao mesmo tempo as perspetivas de emigração para aquelas zonas, que
representaram durante muito tempo um recurso fundamental para a população, e
o poder político do Estado ficou drasticamente reduzido ao seu território europeu.
Uma das consequências imediatas da revolução, aliás, foi a nacionalização
de vastos sectores produtivos e de numerosas empresas, que se concretizou numa
reforma agrária de estampo colectivista pela qual foram nacionalizadas e ocupadas
muitas terras cultiváveis do país, provocando o desmembramento de grupos
económicos privados e uma consequente reorganização da riqueza.
A entrada na União Europeia, efetiva desde 1986, também representou um
forte impulso para a economia do país. Atualmente, os fundos da União Europeia
constituem três quartos da balança comercial e as empresas nacionais estão
estritamente ligadas às multinacionais e aos grupos económicos europeus. Hoje me
dia Portugal é uma das economias mais abertas da Europa, dada a relação entre o
seu comércio externo e a produção nacional. Culturalmente, esta abertura pôs o
país em comunicação com padrões “ultra-‐nacionais”, debates, questões, dinâmicas
de interferência e tácita dominação que anteriormente não lhe competiam (devido
também ao regime que dominava o país).
Assim, assistiu-‐se a uma aproximação do país aos padrões europeus no que
diz respeito às estruturas sociais. A escolaridade universalizou-‐se e o analfabetismo
juvenil terminou, pois a expansão do sistema escolar atingiu grandes proporções,
conseguindo chegar a todo o território e a toda a população. O sistema público,
infelizmente, ainda hoje parece incapaz de responder à procura dos estudantes,
tendo em conta que, num arco de quinze anos, foram criadas pelo menos seis
universidades privadas e uma dezena de escolas superiores igualmente privadas, 51 A. BARRETO, “Mudança social em Portugal: 1960-‐2000” in A. COSTA PINTO (coord.), Portugal contemporâneo, Lisboa, Dom Quixote, 2004, p. 140.
37
sendo isto o resultado duma certa falta de organização e de experiência,
juntamente com uma real escassez de recursos. E estes são apenas alguns exemplos
dos acontecimentos que fizeram de pano de fundo histórico e político às mudanças
sociais que afetaram a população portuguesa no processo de transformação
gradual e geral do país.
O que sucedeu, paralelamente e como consequência de tudo isso, em
primeiro lugar, foi que a população passou de ser a mais jovem da Europa (há cinco
décadas) a ser uma das que envelhece mais rapidamente. Não obstante isso, a
esperança de vida aumentou consideravelmente, sobretudo a partir dos anos
setenta, sem porém alterar esta situação: em Portugal, a composição da população
é pouco equilibrada e no país existem muitos mais idosos do que jovens, devido
também às poucas oportunidades de trabalho que obrigam os jovens a emigrar
para outros países.
Apesar desta situação, tal como nos outros países, desenvolveu-‐se a “cultura
jovem”, e juntamente com a categoria social “jovem” nasceu um novo segmento
social ativo, eleitor, consumidor e produtor; os estabelecimentos de ensino superior
cresceram em número e em dimensão, e os jovens hoje são uma marca indelével
das cidades, embora estejam quase completamente ausentes no interior do país.
Os fluxos migratórios também mudaram, e Portugal transformou-‐se num
país de emigração para outros países europeus, principalmente a França, a
Alemanha, a Bélgica, o Luxemburgo e a Suíça. Assistiu-‐se, ao mesmo tempo, na
década de 80 e de 90, à consolidação gradual duma corrente de imigração com
origem no Brasil e nas antigas colónias, na Europa central e do Leste, que
obviamente afectou a composição étnico-‐cultural da população (sobretudo da
capital).
Até há pouco tempo, grande parte do país vivia com um ritmo diferente do
da capital e das principais áreas urbanas, enquanto hoje se pode considerar
completa a integração nacional, administrativa, territorial e social. Para esta
situação contribuíram vários fenómenos, como “a mobilização para as guerras
coloniais, a generalização da televisão, a expansão dos serviços de saúde e de
38
segurança social e o estabelecimento de redes escolares, postais e bancárias”52 que,
finalmente, hoje se encontram em todo o país. As facilitações a nível comunicativo
ajudaram na difusão das informações, o que revela também uma certa
homologação dos gostos e das personalidades, dada a mais rápida e ampla
circulação dos condicionamentos culturais.
Com o começo do novo milénio, consolidou-‐se a sociedade de consumo e de
massa e desenvolveram-‐se definitivamente as classes médias; alargaram-‐se, ao
mesmo tempo, as desigualdades sociais. Apesar disso, a sociedade de hoje está
muito mais aberta ao mundo, os costumes foram liberalizados, a permissividade
progrediu e afirmou-‐se a laicização da sociedade e dos comportamentos: a
sociedade de facto passou por um processo de diversificação cultural, étnica e
religiosa, pelo que se pode afirmar que se encontra num clima de pluralismo
linguístico e religioso.
Apesar de o país se ter aberto em direção a um caminho comum ao dos
restantes países europeus, a sua posição periférica e a rapidez dessas mudanças,
juntamente com a pobreza geral de recursos, fazem com que Portugal se encontre
ainda hoje numa situação difícil, com uma produtividade sempre muito baixa e uma
forte falta de bens financeiros públicos. As desigualdades sociais não param e
continua a aumentar o número de pobres, desempregados, sem-‐abrigo e o número
de empresas estrangeiras que intervêm no país, ameaçando cada vez mais a
sobrevivência das pequenas atividades locais e, em definitiva, a independência
económica geral. Portugal, em suma, conseguiu evoluir muito se se tiver em conta a
longa ditadura que manteve o país económica e culturalmente fechado durante
tanto tempo; contudo, ainda não alcançou um nível de desenvolvimento suficiente
para confrontar-‐se com as reais potências europeias e mundiais, como por exemplo
o seu ex-‐domínio, o Brasil.
O habitus dos portugueses, portanto, tem sofrido, como consequência das
transformações sociais, algumas modificações, e não se pode prescindir dos
acontecimentos acima mencionados para estabelecer quais são as tendências mais
52 Ibid., p. 145.
39
comuns. Com base na ideia de continuidade histórica evidenciada por Itamar Even-‐
Zohar quando fala das características dos sistemas socioculturais, pode-‐se dizer que,
apesar das mudanças, persistem sobretudo a nível ideológico algumas visões
dependentes das divulgadas no passado mais próximo, particularmente em matéria
de Lusofonia e ex-‐Império colonial.
O sistema ou campo literário transformou-‐se com a sociedade e os
diferentes regimes. Após uma fase de “petrificação” causada pelo estrito controlo
da ditadura, que deixou muito pouco espaço aos produtos de “oposição”, com a
instauração da democracia voltou-‐se à produção diversificada. Todavia, os sistemas
de ensino não sofreram as modificações esperadas e desejadas, e continuaram
muito parecidos aos impostos pelo regime salazarista. Hoje, com certeza a situação
pode ser considerada melhor e mais atualizada. Contudo, se comparado cm os
ritmos de produção de outros países europeus, Portugal revela-‐se um país atrasado
e ancorado no passado.
I.4 Os estudos literários entre estudos culturais e estudos pós-‐coloniais
A contribuição dos estudos culturais no debate sobre a natureza e a função
da literatura levou os estudiosos e pensadores a reconsiderar algumas questões
importantes, como por exemplo a relação entre literatura de consumo e literatura
mais culta, o papel da crítica literária, a atenção à proveniência de género, classe,
etnia e religião. Além disso, atualmente as questões debatidas pelos estudos
culturais são tratadas em muitas universidades e não somente nos departimentos
específicos de Cultural Studies, contribuindo com esta sua difusão para o
alargamento do horizonte de reflexão e das interconexões com os outros campos
de pesquisa. Segundo Andrew Milner:
British cultural studies become the site for a sustained encounter
between an earlier English tradition of ‘literary’ cultural criticism on
one hand, and a variety of French structuralist and more generally
40
‘continental’ western marxist (and sociological) traditions on the
other.53
Todavia, certa resistência ainda provém dos investigadores que continuam a
não aceitar a abordagem cultural ao “tradicional” campo dos estudos literários, e a
sua acusação mais frequente tem a ver com a perda da “originária sensibilidade
etnográfica e antropológica”54 em favor duma abordagem puramente teórica e da
“desconstrução pós-‐moderna”55.
Apesar destes limites, a partir dos anos setenta os estudos culturais
conseguiram ultrapassar as fronteiras norte-‐americanas e europeias inserindo-‐se
num debate global sobre a literatura, chegando em seguida a cruzar-‐se com os
chamados estudos pós-‐coloniais. Estes últimos, entre as muitas problemáticas que
encaram, partilham algumas características com os estudos culturais, tais como a
observação das estratégias de resistência dos subalternos, ou o questionamento da
legitimidade duma ideia elitista de cultura e do etnocentrismo, entre outros, com o
objetivo de identificar continuidades ou fraturas entre o período colonial e o
período que lhe seguiu. Pode-‐se afirmar que ambos os discursos, o da crítica
cultural e o da crítica pós-‐colonial,
become self-‐consciously theoretical, which is another way of saying
that they become self-‐reflective, [...] when their subject matters
become in some significant sense problematic.56
O ato de pôr em causa o próprio sujeito ocidental parece, assim, representar o
verdadeiro elemento aglutinante entre as duas abordagens críticas e investigativas.
A crítica pós-‐colonial tem-‐se dedicado principalmente ao estudo das
propostas teóricas e dos procedimentos de análise e representação do mundo
produzidos nas últimas décadas pela tradição europeia, submetendo-‐os a uma
crítica radical, questionando a sua legitimidade e, simultaneamente, oferecendo
53 A.MILNER, Contemporary cultural theory: an introduction, Sydney, Allen & Unwin, 1991, p. 2. 54 G. BENVENUTI, R. CESERANI, La letteratura nell’età globale, Bologna, Il Mulino, 2012, p. 105. 55 Ibid., p. 105. 56 A. MILNER, Op. cit., p. 3.
41
uma leitura alternativa. De facto, o campo dos estudos pós-‐coloniais, fortemente
globalizado, tem como objetivos principais “provincializar a Europa”, que é ao
mesmo tempo indispensável e inapta para fornecer os elementos úteis à
compreensão das experiências políticas e sociais das modernas nações não
ocidentais.
Todavia, o pensamento europeu representa hoje em dia uma herança
comum, impossível de elidir, e marginalizando o seu papel permitir-‐se-‐á às
verdadeiras “periferias” renovar, com o seu aporte, esse pensamento comum. As
literaturas pós-‐coloniais constituem, de facto, uma superação do papel
centralizador da cultura europeia, uma conquista da palavra por parte dos sujeitos
colonizados, que se apropriaram das línguas metropolitanas e hoje falam por si,
sem intermediários.
Estes textos migrantes são também lugares de negação identitária que põem
novamente em jogo e em movimento as “convicções” e os estereótipos das nações
europeias, as suas construções identitárias; mostram a fragilidade da estrita relação
que se estabeleceu entre línguas e nações, demonstrando que não são “uma
estática propriedade ou habitação identitária”57 mas que nascem já espúrias e
contaminadas.
Segundo Edward Said, o dever da crítica é reler as obras canónicas segundo
a técnica do contraponto , tendo em conta que
Abbiamo a che fare con la formazione di identità culturali intese
non come essenze date (nonostante parte del loro perduto fascino
è che esse sembrino e siano considerate tali), ma come insiemi
contrappuntistici, poiché si dà il caso che nessuna identità potrà
mai esistere per se stessa e senza una serie di opposti, negazioni e
opposizioni.58
O crítico tem de deixar-‐se interrogar por estes textos da migração, reconhecendo o
seu papel no processo de renovação da língua e da cultura em direção à formação
57 Ibid., p. 107. 58 E. W. SAID, Culture and imperialism, London, Vintage Books, 1994, p.
42
de literaturas transnacionais e transculturais, ou até contribuindo para a sua
emancipação.
Não obstante a emancipação da voz dos subalternos, contudo, continuam a
determinar-‐se relações de força entre as várias áreas culturais, tendo em conta que
todas partilham a mesma língua de expressão (na maioria dos casos é a única que
chega a ser língua escrita): isso traduz-‐se em dinâmicas de mercado, editoriais e
críticas entre as quais é possível encontrar, ainda hoje, as sombras das antigas
vicissitudes, as heranças do passado colonial.
Neste sentido, parece que em Portugal e no seu mercado, sobretudo no que
trabalha com os produtos culturais, ainda hoje se podem entrever as marcas do que
antigamente houve: o império, a colonização, as vontades civilizadoras, as
mestiçagens, as guerras, os desafios, a pobreza, tudo isto mantém-‐se na geografia
emocional, urbana, económica e cultural deste espaço pouco homogéneo.
Partindo deste tipo de reflexões, que unem a maioria dos países que
antigamente estavam organizados como impérios coloniais, os estudos pós-‐
coloniais têm organizado as suas pesquisas principalmente segundo dicotomias.
Uma das mais aplicadas é a dicotomia Ocidente/Oriente: com este binómio muitos
investigadores têm tentado explicar as novas realidades e a maneira diferente com
que estas se enfrentam, interpretando-‐se, após as grandes mudanças da
modernidade.
Porém, tanto antigamente como hoje, estes termos são meios através dos
quais toma corpo o raciocínio humano e o seu poder interpretativo, sem deixar de
fazer sempre referência ao que acontece na realidade tangível. Em relação aos
conceitos de Oriente e Ocidente, Edward Said afirma que:
[...] O Oriente não é um facto inerte da natureza. Não está ali, do
mesmo modo que o Ocidente também não está exatamente ali [...]:
esses lugares, regiões e setores geográfico que constituem o
Oriente e o Ocidente, enquanto entidades geográficas e culturais –
para já não dizer históricas – são criações do homem. Por
conseguinte, tanto como o Ocidente, o Oriente é uma ideia que
tem uma história e uma tradição de pensamento, de imagens, e um
43
vocabulário que lhe deram uma realidade e uma presença no e
para o Ocidente. As duas entidades geográficas, pois, apoiam-‐se, e
até certo ponto refletem-‐se uma na outra.59
Por um lado, o Ocidente e o Oriente têm uma relação de dependência,
vivem conceptualmente ligados um ao outro e produzem significados que refletem,
reciprocamente, um sobre o outro. Por outro lado, a relação hodierna entre estes
espaços conceptuais e físicos não é só o resultado da interpretação que é proposta
pelo investigadores, mas é sobretudo o resultado dos contactos e das conexões que
vigoravam antigamente. É, portanto, necessário ver como é que esta relação toma
forma na época contemporânea, partindo do pressuposto que os meios
interpretativos normalmente se adaptam aos tempos e aos fatores atualmente em
vigor.
Já não se pode, pois, falar de colónias, de exploração, de centralização do
poder administrativo; a natureza das relações que ligam Portugal aos seus antigos
domínios mudou, apesar de essas não terem desaparecido e darem azo a diferentes
interpretações, mantendo, todavia, uma certa continuidade com o que foram, com
as interpretações do passado.
Outro binómio fundamental dentro das reflexões pós-‐coloniais é o de
centro/periferia. Na revisão das dinâmicas coloniais e na reinterpretação das
consequências que deixaram no mundo contemporâneo, esta dicotomia acabou por
ser uma das mais difusas linhas interpretativas. Contudo, hoje é preciso
desestabilizar a ideia dum centro estático e relativizar a subordinação a que as
periferias sempre foram submetidas; desta maneira, o que provém dos espaços que
eram chamados periféricos pode tornar-‐se na manifestação dos limites e das
fraturas menos visíveis das histórias dos impérios que ainda hoje parecem persistir
sob outras formas, e pode até incentivar a formação de novas interpretações. Aliás,
neste processo de relativização e de mudança que caracteriza a atual modernidade,
Roberto Vecchi sublinha que:
59 E. SAID, O Orientalismo. Representações ocidentais do Oriente, Lisboa, Cotovia, 2004, p. 5.
44
Assistiamo a una dissoluzione della polarità centro-‐periferia, ma alla
perdita di centro, che è una caratteristica del moderno, non
corrisponde l’affermarsi pieno delle periferie, ovvero del margine, del
limite, o della periferia all’interno di una nuova regione.60
A esta dissolução, porém, não parece corresponder uma verdadeira
mudança nas relações que põem em comunicação as diferentes áreas do mundo.
Assiste-‐se, sim, com a modernização, a uma revisitação conceptual do que era
periférico, da ideia de limite e de margem – que hoje em dia se tornaram nos
espaços onde “habitar ao mesmo tempo o próprio e o impróprio, o mesmo e o
outro, o raciocínio e o corpo, a periferia e o centro”61 –, mas isso não alcança uma
verdadeira revolução nas dinâmicas e nos mecanismos económicos existentes.
Roberto Vecchi afirma ainda que:
È la modernizzazione che ha creato, attraverso le sue asimmetrie,
centri, periferie e semiperiferie. [...] Infatti è necessario un
conglomerato molto ampio, un sistema-‐mondo, per produrre
differenze, modernità che procedono a passo variato di marcia che,
oggi, la globalizzazione tende ad occultare, ma che in verità non fa
che seminare in ogni contesto, [...] attraverso l’azione di una
“economia-‐mondo” che si organizza in centri e periferie, la cui
gerarchia di rapporti è condizionata da forme di accumulazione e
relazione di scambio e di dominio disuguali.62
As desigualdades, portanto, não deixaram de existir, nem os desequilíbrios.
O que acontece com a globalização, de facto, é que estas diferenças são muito bem
ocultadas e é proposta a visão dum sistema onde aparentemente as dicotomias não
encontram razão de persistir. Desta forma, infelizmente, alimenta-‐se uma série de
ilusões e de erros na observação, que impedem a real perceção do mundo de que
todos nós fazemos parte.
60 S. ALBERTAZZI, R. VECCHI (a cura di), Abbecedario postcoloniale. Venti voci per un lessico della postcolonialità, Macerata, Quodlibet, 2004, p. 223. 61 Ibid., p. 223 (tradução nossa). 62 Ibid., p. 224.
45
Mas na visão proposta pelo professor italiano, não obstante a ação
homologativa do sistema hodierno, estritamente conexa com a economia, do ponto
de vista conceptual, assiste-‐se ao aparecimento de uma nova categoria, a de
semiperiferia. Segundo Vecchi, após as transformações sofridas pelo sistema
hodierno, esta categoria desempenha agora um papel crucial, dado que são as
semiperiferias que hoje desenvolvem uma função decisiva na manutenção do
sistema: dinamizam-‐no e preveem, ao mesmo tempo, as “polarizações conflituais”
entre centros e periferias, contribuindo, de certa forma, à criação de uma perceção
mais harmoniosa do conjunto de relações que o caraterizam.
Na dimensão semiperiférica, ou pós-‐colonial, “elementos pré-‐modernos
[misturam-‐se] com elementos modernos, traços defensivos ou residuais misturam-‐
se ou confundem-‐se com programas renovadores”63, os contornos das dicotomias
realçam-‐se e o processo modernizador é revisitado a partir de uma perspetiva
diferente: construído como produto mestiço, torna impossível raciocinar com base
em oposições e antíteses, permitindo, pelo contrário, a coexistência de algumas
contradições e paradoxos, antigamente inexplicáveis. Com o termo semiperiferias,
os espaços que em tempos passados eram tratados como marginais e
marginalizados, encontram a possibilidade de ter uma dimensão própria, de não
serem excluídos das reflexões e das investigações atualmente em voga e tornam-‐se
na mistura de fatores e atores da qual, de facto, provêm.
A observação, entre os muitos âmbitos à disposição, das relações culturais –
frequentemente relacionadas com as relações económicas – pode ajudar na análise
destes espaços pós-‐coloniais, oferecendo-‐se, além disso, como ocasião para uma
revisão da época em que vivemos. Nesta ótica, é possível afirmar que muitas vezes
é possível entrever dinâmicas, vontades, poderes e condicionamentos dentro desta
área de difícil definição, a da cultura, e é necessário ter em atenção as formas com
que se confrontam, se interpretam e continuam a dominar-‐se umas às outras. Daí a
importância dos estudos culturais em âmbitos literários e a sua conexão com os
estudos pós-‐coloniais.
63 Ibid., p. 225.
46
Apesar do espaço hodierno ser tão pequeno, a cultura portuguesa, bem
como a identidade deste povo que tanto se espalhou pelo mundo, apresenta um
conjunto complexo de fatores que se relacionam entre si. Complexos são também
os poderes que se geraram ao longo dos séculos devido a estes fatores e aos
contactos com outras culturas. Pode-‐se afirmar que alguns destes poderes se
conservam até hoje, apesar de o antigo centro já se ter tornado, de certa forma,
num espaço marginal, reduzido às suas dimensões continentais. Finalmente,
também são complexas as contradições e os falsos mitos que crescem nos
interstícios, nos vazios, nas zonas aparentemente francas do saber e que alimentam
os preconceitos.
Portugal, portanto, é muito mais que um espaço geográfico ou linguístico. É
uma área cultural que dialoga com o resto das culturas, é um país globalizado, é
uma das muitas faces daquela que pode ser considerada a cara europeia do mundo.
Portugal é, sim, de certa forma o espaço periférico dum continente, pois ocupa o
último pedaço de terra antes do grande oceano, mas é ao mesmo tempo o centro
propulsor de tendências, gostos e poderes, que continuam a afetar outros espaços,
longínquos, alheios.
De facto, a área linguística do português é uma das mais amplas e
descontínuas que se podem desenhar num mapa. A língua portuguesa chegou
longe, muito longe, e permaneceu como língua oficial na maioria dos países conde
chegou. Assim, veiculou a cultura que trazia no seu interior, transportando poderes
e conflitos de um ponto a outro do globo, impondo dinâmicas e relações que nem
sempre fizeram sentido, ou atuaram positivamente. A língua, porém, é só a ponta
dum icebergue que se propaga em profundidade, e é preciso ter cuidado ao avançar
na descoberta dos abismos que atravessa.
De qualquer as forma, este tipo de observação pode tornar-‐se numa boa
oportunidade para rever o papel europeu na perceção daquilo que sempre foi
considerado marginal, com o objetivo de alcançar o desmantelamento do império
de categorias que tende a fechar e condicionar o olhar e o comportamento do
ocidente sobre o oriente. Nas palavras de Serge Latouche:
47
Con la decolonizzazione, […] il bianco è rimasto dietro le quinte e tira
i fili. Questa apoteosi dell’Occidente non è più quella di una presenza
reale, di un potere umiliante per via della sua brutalità e arroganza.
Essa si basa su forze simboliche il cui dominio astratto è più insidioso,
ma anche meno contestabile. Questi nuovi agenti di dominazione
sono la scienza, la tecnica, l’economia e l’immaginario sul quale si
basano: i valori del progresso.64
A presença ocidental hoje é menos evidente e aparentemente menos “real”,
sobretudo se comparada com a violência com que antigamente se relacionava e
chegava a dominar outras áreas do mundo. Hoje, as forças do ocidente têm outras
feições, tornaram-‐se mais simbólicas e mais abstractas, encontrando uma maneira
mas “apta” para realizar-‐se igualmente. Decerto não são menos presentes ou
menos dominantes, e necessário observar as hodiernas relações entre estes
espaços a partir destas mudanças. Segundo Serge Latouche:
Flussi “culturali” a senso unico partono dai paesi del Centro e inondano
il pianeta: immagini, parole, valori morali, norme giuridiche, codici
politici, criteri di competenza si riversano dalle unità creatrici sul Terzo
mondo tramite i mezzi di comunicazione di massa (giornali, radio,
televisione, cinema, libri, dischi, videocassette). L’essenziale della
produzione mondiale di “segni” è concentrata nel Nord oppure viene
fabbricato in officine da esso controllate, secondo le sue norme e
modalità.65
Ainda hoje, a maior parte da produção de signos e significados está concentrada na
mesma área que antigamente os impunha com a força e que negava a possibilidade
aos outros de crias as suas linguagens e os seus vocabulários. É necessário detetar
através de quais canais esta dominação continua e, sobretudo em Portugal, não
64 S. LATOUCHE, L’occidentalizzazione del mondo. Saggio sul significato, la portata e i limiti dell’uniformazione planetaria, Torino, Bollati Boringhieri, 2006, p. 25. 65 Ibid., p. 29.
48
para de interferir na definição das relações com os espaços que antigamente
administrava.
49
CAPÍTULO II
As instâncias de legitimação na receção de autores angolanos em
Portugal
A edição literária tem constituído objeto privilegiado no âmbito da produção
sociológica e historiográfica das práticas editoriais. Contudo, a posição cimeira da
literatura no espaço simbólico do mercado do livro, correlativa também do primeiro
lugar no número de títulos publicados, não é acompanhada da sua relevância
económica.
O estudo do mercado editorial com particular atenção à edição dos autores
angolanos é tarefa difícil. Como diz Manuel Ferreira, “a complexa e contraditória
troca de material literário demonstrou-‐se sempre difícil de controlar” 66 , e,
consequentemente, de estudar: em primeiro lugar porque os dados efetivos
disponíveis, numéricos, são realmente exíguos e portanto é complicado oferecer
uma panorâmica apurada da situação atual com base nos “factos”; em segundo
lugar porque, sendo os dados pouco acessíveis, a pesquisa tem que ter uma base
“empírica” e pessoal, de recolha de dados materiais através da experiência direta e
de opiniões críticas, e por isso não pode ir além de sugerir uma visão da situação
atual.
O objetivo desta observação é sobretudo considerar a receção de certos
escritores do antigo “além-‐mar” na ótica de alguns conceitos discutidos nos estudos
pós-‐coloniais, não estando ainda bem claro se certas atitudes em voga na hodierna
Europa reproduzem ou não as antigas relações de poder: o intuito é ver até que
ponto estas atitudes são reais, fruto de ideologias, ou se porventura tendem a
tornar-‐se em mitologias e não têm um impacto tão grande como os que as
difundem querem fazer crer.
66 M. FERREIRA, “Desbloqueamento para a produção, edição e circulação do livro africano em Portugal após o 25 de abril” in IDEM, O discurso no percurso africano I (contribuição para uma estética africana), Lisboa, Plátano Editora, 1989, p. 270.
50
É possível afirmar que as escolhas editoriais em Portugal têm uma estrita
relação com a perceção da diversidade dentro da própria sociedade portuguesa,
diversidade que sempre foi objeto de reflexão, motivo de afastamento, ou até de
exploração por parte de alguns administradores do poder, mas que hoje em dia se
oferece como oportunidade para a observação da relação com o Outro, apesar de
Alfredo Margarido afirmar que “o discurso português, fracção do discurso europeu,
é sempre organizado contra o Outro”67.
O mercado editorial português sofreu, ao longo dos anos e das mudanças
sociais, grandes transformações, com o fim do Estado Novo e a reconstrução da
democracia, e esta metamorfose envolveu um largo conjunto de esferas da vida e
da estrutura do estado, refletindo-‐se, pois, nas mentalidades.
Além disso, às mudanças específicas do país são de acrescentar as
provocadas pelos novos sistemas económicos e políticos em vigor, que impuseram
as suas vontades globalizantes e massificadoras, atingindo a maioria das pessoas e
dos sistemas em que estas viviam. O mercado editorial, portanto, foi envolvido
neste processo e a obra literária, entendida como livro, literatura e leitura, também,
e hoje, para a observar, é necessário considerar os novos sistemas de valores e de
finalidades comerciais.
No contexto das literaturas africanas, aliás, é possível deduzir que através de
algumas dessas mudanças passa uma parte da (complicada) relação que Portugal
sempre tentou manter com os ex-‐domínios. O problema é que não se sabe se a
publicação de determinados autores, e a divulgação e promoção a que são
submetidos por meio das grandes editoriais “metropolitanas”, está isenta de uma
série de recíprocos interesses que acabam por veicular e direcionar a receção da
inteira produção literária destas nações pós-‐coloniais que oficialmente falam
português.
Antes disso, é fundamental considerar a situação geral dos Estudos Africanos
em Portugal, através da observação das instâncias de legitimação que atuam dentro
do sistema literário, favorecendo ou obstaculizando a divulgação de certos 67 A. MARGARIDO, A Lusofonia e os Lusófonos: novos mitos portugueses, Edições Universitárias Lusófonas, Lisboa, 2000, p. 55.
51
produtos em lugar de outros, e difundindo os padrões interpretativos e culturais
que determinam a receção dos autores procedentes de determinadas áreas
geográficas (particularmente de Angola).
2.1 as Academias
A propósito da legitimação das obras de autores angolanos em Portugal
pode-‐se construir um discurso parecido com o referido em relação ao mercado
editorial, sobretudo porque as instâncias de legitimação e o mercado influenciam-‐se
e comunicam reciprocamente. Nesse jogo de influências e condicionamentos, o
papel das Academias, isto é, das Universidades portuguesas, é fundamental dado
que são responsáveis pela formação dos futuros críticos e representativas do
pensamento culto, determinante na aceitação e interpretação dos produtos
literários.
Em Portugal, existem três grandes centros de estudos de literaturas
africanas, nomeadamente a Universidade de Coimbra, a Universidade de Lisboa e a
Universidade do Porto. Em Lisboa, aliás, encontra-‐se o Centro de Estudos Africanos,
fundado em 1990 e baseado no Instituto Universitário de Lisboa, que inclui a
associação sem fins lucrativos com o mesmo nome, e a unidade de investigação e
desenvolvimento CEA-‐IUL.
O objetivo do Centro é a realização e o apoio da investigação interdisciplinar
em Ciências Sociais incidindo sobre o continente africano, a cooperação com o
ensino pós-‐graduado na área, a promoção de atividades ligadas à África, a
divulgação da investigação e do conhecimento através de conferências, seminários
e publicações e a realização de projetos de consultoria nesta área de especialização.
O CEA afirma-‐se como um dos principais centros nesta área, com mais de trinta
investigadores doutorados e a criação da Biblioteca Central de Estudos Africanos;
edita também regularmente a Occasional Paper Series, a revista científica Cadernos
de Estudos Africanos e a coleção África em Perspetiva.
52
Os projetos de investigação em curso, coordenados por investigadores do
CEA, distribuem-‐se em quatro temas: as mudanças globais e económicas e o
desenvolvimento em geral, com particular enfoque sobre África; as dinâmicas
sociais e culturais através de uma perspetiva comparatista para a análise dos
campos da educação, da saúde e da cultura; as políticas e os problemas sociais em
África, e o seu papel no desenvolvimento dos países africanos; e, por fim, a difusão
do conhecimento interdisciplinar em estudos africanos através da publicação das
revistas acima mencionadas.
A observação do interesse que as academias hoje revelam pelos assuntos
africanos e a atitude intelectual que se manifesta, determinam também o lugar
simbólico que as obras irão ocupar no imaginário coletivo, e, consequentemente, as
ideologias que o desmistificarão ou confirmarão. Como recorda Lourenço do
Rosário:
Tendo entrado em Portugal pela via académica, graças à persistência e
voluntariedade de Manuel Ferreira, desde logo ela [a literatura
africana] ficou ligada às circunstâncias que definem, em cada
momento, o olhar dos portugueses em relação a África [...].68
A partir dos anos 80, porém, o mercado editorial ganhou peso e importância,
e a dinâmica que caracterizara a introdução das obras africanas em Portugal, que
dantes as via passar da Academia ao grande público, inverteu-‐se, e hoje parece ser
o mercado a decidir quais são os autores legitimados. O papel normativo da
universidade, portanto, viu-‐se necessariamente alterado, apesar de continuar o seu
trabalho de dignificação das obras e dos escritores de língua portuguesa mas de
outras nacionalidades.
Dado que a universidade é o único lugar onde é possível gerar uma nova
visão para romper de vez com o sistema de dependência injusta e crónica a que
estão submetidas as literaturas africanas, é necessário propor programas que não
secundem as leis do mercado editorial, dada a sua dúbia estruturação: se as 68 L. DO ROSÁRIO, “Literatura Africana em Portugal: uma Literatura Imigrante”, in IDEM., Singularidades. Estudos Africanos, Edições Universitárias Lusófonas, Lisboa, 1996, pp. 74-‐75.
53
Academias não divulgam o que o mercado ignora, é impossível chegar a um
conhecimento aprofundado dos autores africanos lusófonos; se “não se estuda o
que não se conhece, não se convida quem não é publicado e não se reconhece o
que não se conhece”69, a troca de material cultural nunca será homogénea.
Isto, contudo, não se pode considerar suficiente para que se modifique a sua
perceção na sociedade, e o que muitos evidenciam é a tendência a considerar a
existência de textos escritos em língua portuguesa como suficiente para legitimar o
facto de pertencerem a um mundo no qual, de uma forma essencial, os portugueses
se podem sempre reconhecer, dificultando assim a possibilidade de determinar
racionalmente o que une ou separa culturas que antigamente se encontravam
entrelaçadas.
Por isso, inicialmente o papel das Universidades foi essencial na aceitação e
divulgação dos autores africanos, embora Lourenço do Rosário evidencie que
naquela altura “as escolhas eram feitas com base nas paixões que a conjuntura
histórica tinha despoletado”70: de facto, muita da atenção que os críticos dos anos
80/90 dedicaram a estes autores estava ligada a uma experiência direta e pessoal
nas colónias, devido à Guerra Colonial ou à emigração das suas famílias que, com a
independência, se viram obrigadas a voltar para Portugal.
O que não se pode negar, é que na sociedade portuguesa sempre
coexistiram e conviveram sentimentos contraditórios, de sedução e repulsa,
relativamente a estas literaturas e que foi também com base nestas contradições
que o interesse académico por estas aumentou ao longo dos anos, modificando-‐se
e influenciando a sua receção.
Contrariamente a certas visões otimistas, Inocência Mata afirma que
no actual jogo de forças cultural, as literaturas africanas de língua
portuguesa ocupam um lugar periférico. [...] Decorre, pois, essa
perifericidade, das esferas e instâncias de legitimação da literatura que
tendem a relegar a produção literária africana para o estatuto de
69 I. MATA, “A utopia cosmopolita na recepção das literaturas africanas” in Mulemba, volume 1, n°4, julho 2011, p. 7. 70 Ibid., p. 75.
54
subliteratura. [...] Por uma confluência de factores [...] essa literatura
passa, então, a agir como contra-‐literatura.71
No campo das contra-‐literaturas, segundo a definição de Bernard Mouralis,
entram “todos os textos que não são percebidos ou transmitidos como
pertencentes à ‘literatura’”72, embora seja a fruição do texto a determinar o seu
estatuto real. Nestas obras são representados outros homens, outras paisagens,
outras sociedades que já não podem ser definidos apenas como “exóticas” e
portanto no seu conjunto as literaturas africanas são consideradas textos “não
literáris” porque nem sempre são identificáveis com um código preestabelecido e a
sua dignificação ainda está em fase de consolidação.
É evidente que, entre os críticos e os especialistas, existem visões muitos
diferentes da situação atual dos estudos africanos. Alguns especialistas acreditam
que essas literaturas lograram obter certa “dignidade” e que a sua apreciação hoje
pode contar com certa “objetividade”. Outros, mais céticos, perpetuam a ideia de
que ainda não se desfez o estatuto periférico que sempre lhes pertenceu e as
identificou, e que isso não depende exclusivamente das diferenças culturais que
veiculam.
Num plano geral, também os chamados estudos pós-‐coloniais podem estar
sujeitos a uma série de críticas, a primeira das quais tem a ver com a própria
designação de “pós-‐coloniais”: continuar a definir as novas teorias na base de um
passado que assim nunca se afasta, embora o presente mostre nações cuja “fase de
construção” se pode considerar terminada, que se regulam e se autodeterminam,
manifesta veladamente certa perspetiva eurocêntrica e ainda imperialista. O estudo
das literaturas de países não europeus parece ter sempre que estar relacionado
com a sua condição de colónias e não se consegue encontrar uma definição isenta
71 I.MATA, “Periferia da periferia – o estatuto periférico das literaturas africanas de língua portuguesa” in IDEM, Literatura angolana: silêncios e falas de uma voz inquieta, Ed. Mar além, Lisboa, 2001, pp. 35-‐36. 72 B. MOURALIS, Le contro letterature. Istituzioni letterarie e comunicazione di massa, Ed. Vallecchi, 1978, p. 35.
55
de ideologias, apesar do desenvolvimento de todas as novas teorias e perspetivas
adotadas.
O termo post-‐colonialism desenvolveu-‐se a partir dos anos 70 para definir o
discurso intelectual que analisava, explicava e respondia à herança cultural do
colonialismo e do imperialismo ingleses, com o objetivo de reinventar as
modalidades de perceção cultural e libertá-‐las das conotações ideológicas ainda
muito presentes. A “teoria pós-‐colonial” é assim um conjunto aberto de teorias
filosóficas, literárias e ligadas aos estudos anglo-‐saxónios que se ocupa dos
conceitos de identidade social e nacional, raça, etnicidade, entre outros, através da
observação de como é produzido e utilizado hoje o saber pelos subalternos73.
Este conjunto de teorias, portanto, trata principalmente das consequências
do colonialismo inglês e é preciso ter cuidado com a sua aplicação às restantes
realidades resultantes da dominação europeia. Referindo-‐se a Portugal, Ana
Mafalda Leite afirma que “falar de pós-‐colonialismo e lusofonia ou da adequação
das teorias pós-‐coloniais às literaturas africanas de língua portuguesa ainda é área
não muito conceptualizada”74: apesar das tentativas em ato para reler e revisitar as
obras procedentes da África lusófona, a situação hodierna mostra que ainda muitos
esforços devem ser feitos para tornar aplicáveis alguns dos conceitos-‐chave das
teorias em questão.
Para além das dificuldades na aplicação de teorias que nasceram em relação
com outras realidades coloniais, outros limites estão patentes quando se
consideram algumas dessas mesmas teorias aplicadas, pois tendem a universalizar
as categorias interpretativas embora observem elementos de culturas diferentes
(como, por exemplo, as literaturas africanas de expressão portuguesa e a cultura
73 O termo, utilizado pela primeira vez por Antonio Gramsci como sinónimo de proletariado, nos campos da crítica pós-‐colonial, identifica e descreve as pessoas ou os grupos sociais que viviam fora das estruturas dos poderes hegemónicos das colónias e das metrópoles coloniais. Hoje também indica as classes mais baixas e os grupos sociais na margem da sociedade, isto é, os que não recebem representação política e que, por isso, ficaram longamente “sem voz”. O conceito foi muitas vezes problemático e Geyatri Spivak evidenciou como em termos pós-‐coloniais tudo o que tem acesso limitado ou nulo ao imperialismo cultural é definido “subalterno” ou “oprimido”, e como isso confirma a euro-‐centralidade dos métodos críticos no estudo das populações africanas, asiáticas ou médio-‐orientais. 74 A. M. LEITE, Literaturas africanas e formulações pós-‐coloniais, Lisboa, Edições Colibri, 2003, p. 14.
56
portuguesa). A história do desmantelamento dos impérios coloniais trouxe consigo
a necessidade da redefinição dos conceitos (e uma utilização mais adequada dos
instrumentos à disposição) com que as realidades africanas se identificam e estes
avanços teóricos infelizmente ainda são muito conotados ideologicamente.
Neste sentido, é curioso que tenham sido os estudos pós-‐coloniais a propor
e a avaliar as dicotomias que hoje regulam a interpretação e a valorização dos
produtos procedentes dos espaços fora da Europa, como, por exemplo, a de
centro/periferia, ou o conceito de subalternidade, entre outros, de maneira que em
lugar de trabalhar em direção ao desmantelamento dos impérios de categorias que
caracterizaram os antigos mecanismos de relação, se criam outros conceitos através
dos quais essas mesmas antigas categorias podem ser aceites.
A sua aplicação em Portugal não é suficiente para que os estudos africanos e
das suas literaturas superem a condição periférica, pois
a divulgação da cultura africana está sujeita a graves lacunas e
distorções que radicam na sua condição periférica e marginal em
Portugal, e, por sua vez, no igual estatuto da cultura portuguesa face à
europeia e norte-‐americana.75
O que surpreende é o duplo estatuto periférico a que estão relegados a
cultura africana e os seus produtos. Para além disso, em Portugal existe uma certa
consciência da situação semiperiférica da sociedade em relação à Europa e as
potências hegemónicas e, portanto, surpreende ainda mais a atitude geral perante
as literaturas africanas, dado que se perpetua uma ideia errada de centralidade com
matizes imperialistas e se reproduz uma condição da qual são vítimas ao mesmo
tempo. Esta condição, contudo, não depende das Academias mas de todo um
conjunto de instâncias sociais que intervém na divulgação das informações
necessárias para que se adquira uma adequada consciência do material diferencial
que representam.
75 J. L. PIRES LARANJEIRA, “A recepção das literaturas africanas e o exemplo de Pão & Fonema, de Corsino Fortes” in IDEM, De letra em riste. Identidade, autonomia e outras questões na literatura de Angola, Cabo Verde, Moçambique e S. Tomé e Príncipe, Porto, Ed. Afrontamento, 1992, p. 79.
57
Em relação às Academias, pode-‐se problematizar a designação
generalizadora de “Literaturas africanas de expressão portuguesa”, designação que
as aglutina e minimiza as suas diferenças internas. Para além disso, Inocência Mata
mostra que
[...] A designação da cultura e da literatura nacionais africanas como
sendo lusófonas ou de expressão portuguesa tem vindo a ser matéria
de cada vez maior problematização, que considero necessária, embora
eu compreenda a funcionalidade desse termo num plano puramente
de economia linguística. Com efeito, se aproximarmos estas
designações dos seus possíveis sinónimos “representação” ou
“manifestação”, torna-‐se evidente que surgem como representações
ou manifestações lusas, acontecendo que a identidade diferencial
desses sistemas fica secundarizada.76
Essa definição dos cursos académicos não é totalmente fiel à realidade, até
porque se está a falar de cinco países distintos entre eles, com histórias, identidades
e caminhos diferentes, com condicionantes, em suma, que originaram percursos
muito diversos. Seria, portanto, mais sensato designar cada literatura com o seu
nome, para não contribuir para a propagação duma confusão interpretativa já bem
espalhada e ainda ligada a valores que deveriam estar ultrapassados.
No curso da variante de Português, de todas as formas, esta é uma cadeira
obrigatória, embora tenha menos espaço do que é dedicado à Literatura brasileira,
mais uma vez demonstrando os esforços que são necessários para a sua
dignificação completa.
Em adição a estas reflexões de matriz teórica, com base na observação
direta na Universidade de Coimbra pode-‐se afirmar que as aulas de Literatura e
Cultura Africanas contam principalmente com a participação de estudantes
brasileiros, interessados e atentos, que são com certeza os que mais animam os
debates. Os estudantes portugueses frequentemente demonstram uma atitude
desinteressada e superficial, que se manifesta com intervenções que patenteiam
76 I. MATA, Op. Cit., p. 32.
58
uma ideia completamente errada do que foi o conflito e das dinâmicas de relação
dos dois países, pois ainda se duvida da autonomia dos espaços africanos e ainda se
considera Portugal o grande benfeitor da história destes países. Isto, porém, não a
ver exclusivamente com a realidade académica em se encontram, mas com a
preparação que recebem ao longo de todo o percurso de estudo, que não lhe
fornece as ferramentas necessária à produção dum pensamento livre e
“descolonizado”77.
Isso reflete-‐se também na análise dos textos, tanto que Pires Laranjeira
testemunha que, ao empreender o seu estudo
os alunos costumam efetuar uma primeira leitura caseira, individual,
sequencial e silenciosa. Essa virgem aproximação ao livro revela-‐se
sempre problemática porque frustrante: muitos dos poemas são pura e
simplesmente incompreendidos. Podemos supor que [...]o leitor do 3o
ano do curso de línguas e literaturas modernas está mais habilitado
com instrumentos teóricos para a hermenêutica simples mas eficaz. A
leitura do livro é imposta pela escolha do professor, não só porque se
trata de uma prática institucionalizada (ser o professor a elaborar o
programa e nunca o contrário), mas também, neste caso das literaturas
africanas, por os alunos de modo nenhum conseguirem alvitrar
qualquer hipótese de leitura, salvo raríssimas excepções.78
Os alunos, portanto, chegam ao ensino superior sem terem uma noção geral
das produções em língua portuguesa e sem terem aprofundado pelo menos o
estudo das obras fundamentais das suas literaturas, e não é admissível hoje que em
dia à atenção ideológica que é dada a essas realidades na formação de mitologias
imperialistas não correspondam programas de ensino onde tenham mais
visibilidade.
77 As intervenções aqui relatadas, juntamente com as observações propostas, são ambas fruto do contacto direto com o ambiente académico da Universidade de Coimbra, particularmente nas aulas do professor Pires Laranjeira. A minha estadia na cidade foi em março de 2013. 78 Ibid., pp. 80-‐81.
59
As Academias, por fim, no caso dos autores africanos, desempenham um
papel legitimador não só na definição dos autores que merecem ser lidos e
conhecidos, mas também na definição daqueles que mais facilmente são
publicados. Sem querer levantar questões demasiado polémicas, podemos destacar
das biografias dos autores angolanos mais em voga um facto em comum: muitos
estudaram em Portugal. É o caso de José Eduardo Agualusa, João Melo e Ondjaki,
ex-‐estudantes na capital portuguesa, e que desta forma podem ter entrado em
estrito contacto com a suposta cultura europeia, os seus gostos, as suas
preferências. Aliás, a sua presença em Portugal terá certamente facilitado o
contacto com os editores e os outros agentes implicados na sua publicação, e parte
do seu êxito estará relacionado com isso.
II.2. Os programas de ensino básico e médio e o Plano Nacional de Leitura
A propósito de sistemas de ensino, é necessária uma observação dos
programas de ensino básico e médio para perceber de que forma os percursos
didáticos primários contemplam as “outras” literaturas escritas em língua
portuguesa. Os programas de ensino estão ligados ao Plano Nacional de Leitura,
que escolhe e sugere as obras fundamentais do percurso didático.
É sabido que a leitura direta dos textos é a maneira mais eficaz de os alunos
poderem ter contacto com as diferentes realidades culturais que encontram a sua
divulgação através da literatura, e, segundo Lola Geraldes Xavier
os Programas de Português do Ensino Básico não esqueceram esta
questão e para além de não desprezarem a concepção da língua como
património e factor identitário, não olvidaram também que se, por um
lado, esta língua é factor de singularidade, por outro, mostra a
diferença entre os falantes do espaço alargado da língua portuguesa.79
79 L. GERALDES XAVIER, “Os Programas de Português do Ensino Básico e as literaturas de países de língua portuguesa” in Máthesis, n.20, 2011, p. 131.
60
A leitura duma obra, porém, para ser eficaz, precisa de ser contextualizada,
isto é, colocada num tempo histórico, social e cultural específico. É necessário,
portanto, fornecer aos alunos os meios e os conhecimentos adequados a um
percurso didático em que se tem consciência de que uma mesma língua, a
portuguesa neste caso, pode veicular singularidades e diferenças. A leitura crítica
deveria, pois, entrar cedo na escola, proporcionando aos alunos a possibilidade de
extrapolarem os significados apropriados e identificarem contextos diferentes dos
seus.
Para poder formar gerações de bons leitores, é necessário que a escola
proponha não só um amplo conjunto de obras diferentes, mas também o contacto
através destas últimas com contextos diversificados, para que os alunos aprendam
logo a identificar cultural, social e historicamente, as obras que lhes são propostas.
O Programa de Português do ensino básico, de facto, enfatiza esta
necessidade de contactos culturais e com textos de diferentes géneros a fim de que
o aluno saiba distinguir os contextos geográficos e sociais que estão na origem de
diferentes variedades do português. O contacto com a cultura angolana, portanto,
realiza-‐se através da leitura de duas obras em prosa, respetivamente de José
Eduardo Agualusa e de Ondjaki, durante o primeiro ciclo do ensino básico, segundo
o que refere o Programa Nacional de Leitura. Os outros autores angolanos
contemplados são Pepetela, Germano de Almeida e Baltazar Lopes, mas não no
ensino básico. Curiosamente, João Melo é sugerido como autor de poesias, apesar
de escrever principalmente em prosa e o que é ainda mais curioso é o facto de é
leitura das obras de Agostinho Neto, sem dúvida um dos autores mais
representativos da realidade angolana do século XX, não ser sugerida.
No segundo ciclo do ensino básico não é contemplada a leitura de nenhum
autor angolano, nem sequer de autores africanos, criando assim um vazio
significativo que de certa forma continua com as leituras sugeridas para o terceiro
ciclo (apenas quatro). Os autores angolanos reaparecem por volta do sétimo e nono
anos, e as obras escolhidas são outra vez de José Eduardo Agualusa e Ondjaki. A
pausa na leitura sugere que as literaturas africanas de língua portuguesa precisam
61
de competências que se adquirem apenas em certos níveis, mas esta visão retarda
o contacto do leitor com essas obras, e por conseguinte, com outras culturas e
variedades linguísticas.
Segundo o PNL, o critério em que assenta a escolha das obras é o da
representatividade e o da qualidade, questão que apresenta desde logo evidentes
limites, dados pelas implicações ideológicas implícitas à sua definição e que
intervêm na avaliação de tais características: o estético é universal na sua perceção
mas não na sua substância (isto é, existem os mesmos topoi narrativos mas
diferentes maneiras de os narrar), e portanto é necessário relativizar estas
representações, que quase sempre têm raízes culturais.
Além disso, outras dúvidas levatam-‐se após a observação das leituras
propostas, e Lola Geraldes Xavier tem razão quando afirma que:
Se o corpus apresentado no PNL pretende ser representativo, não
se percebe, por exemplo, porque não há nenhuma referência a José
Luandino Vieira (angolano, prémio Camões 2006) [...].80
O que o PNL parece confirmar é uma certa predileção pelos autores
consagrados pelo mercado ou correspondentes aos valores estéticos que os tornam
muito mais “internacionais” ou “ocidentais” e através dos quais as diferenças
culturais ficam atenuadas. No panorama dos escritores angolanos, nomes como o
de Manuel Rui, por exemplo, são muito pouco contemplados, embora as suas obras
não apresentem grandes dificuldades linguísticas e de compreensão, como por
exemplo, Quem me dera ser onda (que é sugerida exclusivamente como leitura
autónoma).
Pelo contrário, são difundidas quase exclusivamente as obras de Ondjaki ou
José Eduardo Agualusa, que do ponto de vista cultural podem ser considerados
menos representativos do sistema de que fazem parte. Não surpreende, à luz
destas informações, que os alunos cheguem à universidade sem possuirem os
meios intelectuais e interpretativos necessários para um correto entendimento do
80 Ibid., p.136.
62
material literário com que entram em contacto ou que tenham uma ideia parcial
das produções africanas, uma vez que as noções difundidas são generalizadoras e as
obras apresentadas não são suficientes.
II.3 Os prémios literários, as revistas especializadas e os media
Os prémios literários são outra importante instância de legitimação. No caso
dos autores africanos, os dados confirmam igualmente os limites desta complexa
relação. É sabido que, hoje em dia, a atribuição de um prémio a um autor em lugar
de outro tem a ver com uma longa lista de interesses, históricos e económicos por
exemplo, que vão para além da qualidade literária das suas obras: frequentemente,
os júris têm compromissos com as editoras, pois sabe-‐se que a obtenção deste tipo
de reconhecimento aumenta exponencialmente as vendas dos livros, para além de
consagrar o autor.
Relativamente aos autores angolanos, não é só este mecanismo de
consagração (que vale para todos os autores, não só para os angolanos e/ou os
africanos) a ser questionado; é sobretudo o facto de os prémio serem atribuídos
apenas aos (poucos) autores já “escolhidos” pelas editoras como produtos aptos ao
público europeu a gerar perplexidades.
O prémio literário mais prestigioso em Portugal, e sem dúvida o mais valioso
também (prevê um galardão de cem mil euros), é o Prémio Camões. Instituído pelos
governos brasileiro e português em 1988, é atribuído a autores que tenham
contribuído para o enriquecimento do património literário e cultural da língua
portuguesa e, ao longo dos anos, só dois autores angolanos lograram obtê-‐lo,
nomeadamente Pepetela, em 1997, sendo o primeiro angolano a ganhá-‐lo, e José
Luandino Vieira, em 2006. Este último, conhecido pela sua personalidade esquiva,
anunciou logo após a sua nomeação que rejeitava esse reconhecimento por “razões
íntimas, pessoais”, demonstrando uma profunda coerência com os seus ideais.
63
Só outros dois autores africanos foram premiados com este insigne
reconhecimento, enquanto a lista desde o primeiro ano até hoje mostra uma certa
predileção por autores brasileiros e portugueses, ou seja, por autores procedentes
dos dois países fundadores e financiadores do prémio.
Outro prémio importante em Portugal é o Grande Prémio do Conto Camilo
Castelo Branco, instituído em 1991 e que também se destina a uma obra em língua
portuguesa de um autor português ou procedente de um dos países africanos de
expressão portuguesa. Os angolanos vencedores do Prémio foram José Eduardo
Agualusa em 1999, e Ondjaki em 2007, sendo também os únicos africanos
presentes na lista dos premiados.
Os restantes autores nomeados dentre os mais conhecidos foram
recompensados e galardoados também com outros prémios, menos importantes
mas não menos válidos: José Eduardo Agualusa obteve o Grande Prémio da
Literatura RTP, o já mencionado Grande Prémio do Conto Camilo Castelo Branco da
Associação Portuguesa de Autores, o Grande Prémio Gulbenkian da Literatura para
Crianças e Jovens, e o prestigioso Prémio Independente da Ficção Estrangeira
promovido pelo jornal britânico The Independent, sendo o primeiro escritor africano
a receber esse reconhecimento.
Quando se fala de obras africanas, até aos anos 80 era possível afirmar que o
conjunto de leitores provinha principalmente do restrito círculo académico. Hoje,
porém, com o alargamento da sua leitura ao público em geral, muitas das
informações e dos gostos difundidos são também transmitidos através da
comunicação social, dos programas nacionais, dos media e da internet, que
contribuem todos na definição do que é “literário” e do que não é. Assim, os
programas nacionais de leitura, por exemplo, não contradizem a ideia inicial de que
os autores que são promovidos perante o grande público são sempre os mesmos, já
conhecidos, e não há nenhuma contribuição por parte dessas organizações estatais
para legitimar inclusivamente obras desconhecidas em Portugal.
Hoje, aliás, um papel fundamental no jogo de influências sobre o público e a
sua receção é desempenhado também pelas chamadas redes sociais, pela televisão
64
e pela rádio. Muitos autores demonstraram uma certa astúcia na gestão da sua
imagem pública, cuidando muito da sua atividade em certas “comunidades”, bem
como da sua presença pública.
Dois exemplos em particular podem ajudar a esclarecer esta atitude, e não
deve surpreender que um deles seja José Eduardo Agualusa, escritor que
frequentemente aparece em debates televisivos e em situações sociais, e o outro,
Ondjaki: provavelmente devido à sua jovem idade, este escritor angolano não perde
a ocasião para comunicar os seus versos no Twitter, fazer publicidade aos eventos
de que é protagonista no Facebook e difundir “estórias” inventadas sobre os seus
inéditos para atrair a atenção do público mais aficionado.
Esses meios de comunicação, e a internet em particular, relativizam ainda
mais o papel legitimador das Academias e das esferas mais cultas da receção dos
produtos literários, porque é o próprio autor que trata de difundir e promover as
obras, descentralizando até a influência das próprias editoras na sua receção.
Em Portugal, a RTP lançou em 1994 a estação RDP-‐África, que pode ser
captada em Lisboa, Coimbra, Faro, Cabo Verde, Guiné-‐Bissau, Moçambique e por
satélite também em Angola. A estação ocupa-‐se de música, informação, política,
cultura e desporto e conta com a participação de José Eduardo Agualusa e do seu
programa A hora das cigarras, baseado em textos e músicas do continente africano.
Por seu lado, RTP África é um canal televisivo que, como sugere o nome, se
concentra no continente africano; aliás, na programação da RTP aparecem também
outros semanais focados em África, como o Áfric@global da RTP2, o África do Sul
Contacto, um programa sociocultural da comunidade portuguesa na África do Sul,
ou o África 7 Dias, que todas as semanas trata da atualidade africana publicada em
revistas.
Os meios de comunicação social portugueses demonstram portanto certo
interesse pelos assuntos africanos, interesse que porém pode estar ligado às
ideologias que caracterizam a edição dos autores estrangeiros de língua
portuguesa, uma vez que a televisão é um dos meios de controlo e divulgação mais
poderosos hoje em dia. Seria improvável, portanto, que a divulgação de
65
informações relativas ao continente africano contradissesse o ideal nacional, e, de
certa forma, só o facto de apresentar programas em que a África é protagonista
confirma a suspeita inicial.
Finalmente, entre as instâncias que legitimam os diferentes autores são de
mencionar também as revistas especializadas dentro das quais atua o círculo da
crítica. No panorama português, destacam-‐se a revista África XXI, a revista África
hoje, os já mencionados Cadernos de Estudos Africanos e a revista África em
perspectiva. O Jornal de Letras, embora não especificadamente dedicado à
divulgação da cultura africana, é contudo um dos jornais mais prestigiados
atualmente redigidos em Portugal, e o que normalmente avalia todas as novidades
literárias produzidas em língua portuguesa, pelo que é de nomear dentro desse
conjunto.
As revistas mencionadas, publicadas em Portugal, não têm como único
objeto a África lusófona, mas as culturas africanas em geral. O que acontece,
porém, com frequência, é que os autores mais publicitados e tratados são os de
língua portuguesa, e, entre estes, os que já têm grande visibilidade. Inocência Mata
relata que, ao comunicar os vencedores da primeira edição do Grinzane Cavour
Literary Prize for Africa, em lugar de pôr em evidência a premiação de Ngugi wa
Thiong’o, escritor queniano e um dos maiores escritores africanos em geral, a
revista África 21 referiu os resultados de Ondjaki e Mia Couto.
Este e outros exemplos traduzem uma situação que se perpetua a diferentes
níveis e que tem a ver com a forte ligação que existe entre a circulação de material
cultural procedente de África e as hegemonias culturais através das quais é filtrado:
as revistas especializadas muitas vezes parecem apoiar a atitude editorial de
seleção autárquica das obras a divulgar.
Para concluir, a observação do território mostrou que o que falta em
Portugal certamente é uma livraria especializada em literaturas africanas dos PALOP
e, em geral, é possível afirmar mais uma vez que a visibilidade que recebem hoje
não é de facto muita: normalmente nas livrarias são reservadas aos autores
66
lusófonos pequenas áreas meio escondidas e pouco arrumadas e não se encontra
facilmente aquilo que se procura.
Entre desequilíbrios e “impérios culturais”, infelizmente, as instâncias de
legitimação, com certa exclusão das Academias (que, por seu lado, têm que
enfrentar problemas de matriz teórica e interpretativa), colaboram na difusão
parcial da cultura africana lusófona, e da africana em geral, e, apesar dos resultados
obtidos nestes trinta anos de independência, o caminho revela-‐se ainda labiríntico,
pelo menos em Portugal.
II.4. O cânone literário
Depois desta panorâmica das instâncias de legitimação dos produtos
literários procedentes da África lusófona, e, mais em particular, dos relativos aos
autores de nacionalidade angolana, não se pode deixar de abrir um breve
parêntesis sobre a definição de cânone, e das dificuldades que ele comporta, dada a
estrita relação entre a instituição literária e a formação deste último. Notar-‐se-‐á
que também neste âmbito as ideologias interferem com as interpretações, e as
diatribes estão sempre à porta.
O cânone, e portanto a literatura canónica, pode ser inicialmente definido
como um elenco de autores e obras incluídos nos cursos básicos de literatura por se
acreditar que representam o legado cultural da sociedade de que fazem parte.
Nesta definição, manifesta-‐se já a interação da literatura com o mundo “exterior”
que a envolve, e com as diferentes componentes que condicionam a sua receção e
a sua perceção. Nesta definição, o cânone circunscreve o campo literário às
produções cuja função seja principalmente estética, enquanto as outras
permanecem excluídas.
Muitos teóricos, então, alargaram a ideia de cânone ao conjunto de obras
literárias, de textos filosóficos, políticos, religiosos e históricos significativos a que
67
geralmente se atribui peso cultural numa dada sociedade. É evidente, como diz
Carlos Reis que:
a formação do cânone alarga-‐se a outros domínios da consciência
cultural colectiva e apoia-‐se numa rede textual relativamente
heterogénea. Ao falarmos, pois, de cânone de uma determinada
literatura, envolvemos nele apenas um conjunto de autores e obras
literárias canónicas, mas também outras obras (filosóficas,
historiográficas, religiosas, pedagógicas, ensaísticas, etc.) que com
aquelas de alguma forma se relacionam [...].81
As palavras de Carlos Reis referem-‐se ao alargamento do conjunto das obras
ditas canónicas a textos cuja natureza não é só literária, e de facto não resolve a
diatribe à qual o conceito continua a dar vida sobretudo numa época pós-‐colonial,
pois esta questão hoje está ligada à tentativa de redigir um elenco de obras
consideradas universais que funcionam como ponto de referência para quem quiser
escrever obras consideradas literárias.
Ao tentarmos compreender a questão relacionada com o cânone, vemos
logo que a dicotomia centro/periferia encontra um espaço apto à sua manifestação:
os poderes, as visões etnocêntricas, os conformismos e os preconceitos facilmente
condicionam os discursos e as escolhas relacionadas com esta particular perceção
do mundo.
De qualquer forma, para poder fazer parte do grande mundo literário é
preciso “dialogar” com o cânone, quer através dum uso particularmente culto da
língua, quer a um nível, digamos, meta-‐textual – isto é, através de ligações e
contactos com as obras produzidas anteriormente –, quer, finalmente, a um nível
cultural, e é isso que torna o discurso mais complexo quando nos referimos aos
autores homoglotas82.
81 C. REIS, O conhecimento da literatura. Introdução aos estudos literários, Coimbra, Livraria Almedia, 1995, p. 72. 82 O termo aqui referido é utilizado por Roberto Vecchi e Sivia Albertazzi no prefácio do já citado Abbecedario Postcoloniale (Quodlibet, 2004) e indica todas as literaturas escritas em línguas europeias nos países e/ou pelos autores extra-‐europeus: o neologismo foi criado juntando duas
68
O conceito de cânone está ligado a uma divisão ideológica da produção
literária mundial em que Ocidente e Oriente ocupam dois lugares quase antitéticos
e cujas pretensões são universalistas. Esta interpretação pode ser relacionada
também com a dicotomia centro/periferia, funcionando o cânone como centro,
enquanto o resto da produção pertenceria à chamada periferia. Nesta visão, as
obras procedentes do chamado Ocidente parecem predominar, ou até dominar,
sobre as restantes, principalmente na definição dos valores estéticos e culturais
universais; as obras procedentes da área oriental acabam por ocupar um lugar que
se poderia definir semiperiférico ou até periférico, pois não alcançam o
reconhecimento que as tornaria independentes.
Obviamente, esta necessidade de catalogar e categorizar a produção
literária mundial ou homologar as obras com padrões universais deixa de fazer
sentido no momento em que valorizamos as diferenças culturais e as consideramos
fundamentais para a progressão do saber, e pode-‐se afirmar, pelas palavras do Prof.
Pires Laranjeira, que hoje em dia, apesar da polémica sobre a constituição de um
cânone estar ainda viva: “O cânone literário clássico e moderno foram refeitos e
novos cânones institucionalizados nos departamentos de letras, a fim de aceitar e
compreender as novas e novíssimas produções”83.
Com efeito, foi Harold Bloom, uma das figuras que dominou a cena literária
norte-‐americana a partir dos anos 60, que em finais dos anos 90 deu forma sólida a
este discurso, no seu muito controvertido livro O cânone ocidental. Logo desde o
título é patente como as propostas do autor levantam uma série de contestações,
pois aparentemente preferiu limitar os seus interesses à área ocidental da
literatura, sem todavia relativizar as suas conclusões. Desde logo, portanto,
evidencia-‐se como o diálogo entre Ocidente e Oriente e os mal-‐entendidos que dele
surgem sempre foram delicados.
palavras tomadas do grego antigo, cujo significado seria “falantes o mesmo”, e portanto, a mesma língua. É interessante porque destaca o papel unificador desempenhado pelas línguas europeias a nível histórico e cultural, sem, porém, deixar de manifestar as contradições que implica. 83 J. L. PIRES LARANJEIRA, “Múltiplas tradições e variedades: alguns escritores e textos das literaturas de Angola, Moçambique, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe e Guiné-‐Bissau (1975-‐2009)” in J. L. PIRES LARANJEIRA -‐ L. GERALDES XAVIER (org.), Santa Barbara Portuguese Studies: As literaturas africanas de língua portuguesa, Volume X – 2008, p. 9.
69
Movido pela pergunta “que deve ler o indivíduo que ainda pretende ler?”84,
neste livro exemplar Bloom define o cânone e delineia as características que tornam
uma obra canónica, propondo uma abordagem que aparentemente não quer ter
nuances ideológicas, mas sim estéticas:
[...] Tentei confrontar diretamente a grandeza [dos autores], e
perguntar o que é que faz com que os autores e as obras se tornem
canónicos. A resposta, muito frequentemente, acabou por ser o
estranhamento, um modo de originalidade que ou não pode ser
assimilado ou, então, tanto nos assimila que deixamos de vê-‐lo como
estranho.85
Por outro lado, ele apresenta também uma lista dos autores que considera
os “eleitos” da tradição literária ocidental – que na sua opinião vê o seu ponto
máximo em Shakespeare – , cuja análise constitui a parte central da obra. De facto,
Bloom escolhe um autor “exemplar” (e portanto canónico) por cada cultura, e é
curioso que sejam consideradas ocidentais também todas as literaturas produzidas
na África, nas Caraíbas e na Ásia de expressão inglesa.
Evidentemente, para o autor a formação dum cânone está relacionada com
a civilização ocidental, e dela depende de modo imprescindível: a sua abordagem,
aparentemente só estética, acaba assim por ter conotações ideológicas que
dificilmente se conseguem ignorar. Daí a grande quantidade de críticas suscitadas,
não obstante a sua firme declaração de que: “A defesa do Cânone Ocidental não é
de modo nenhum uma defesa do Ocidente ou uma empresa nacionalista”86.
Contudo, o que resulta desta interpretação é um certo sentido negativo atribuído,
nessa cultura ocidental canónica, aos autores e às obras das chamadas literaturas
marginais87, entendidas aqui não nos seus múltiplos significados mas como os livros
84 H. BLOOM, O cânone ocidental, Lisboa, Ed. Temas e Debates, 1997, p. 27. 85 Ibid., p. 14. 86 Ibid., p. 49. 87 O termo marginal não é utilizado por Bloom na definição das obras que não fazem parte do cânone ocidental, mas já apareceu associado à literatura. Por um lado, refere-‐se ao conjunto de autores que estão à margem do canal comercial oficial de produção e divulgação; por outro, indica
70
que não pertencem aos clássicos da literatura nacional ou universal e não estão nas
listas de leituras obrigatórias, do momento que em relação a este centro dominado
por um conjunto de obras predeterminadas, ocupam um lugar marginal ou
periférico.
Este espaço precário poderia mudar com a desconstrução da chamada
literatura canónica e com uma contestação dos valores sobre os quais se funda, e se
não se defendesse posições fixas, notar-‐se-‐ia que centro e margem vivem numa
incessante negociação da recíproca posição e definição. No caso de Bloom,
atrevemo-‐nos a apoiar a posição de Aijaz Ahmad quando afirma que:
Embora Bloom fosse mais tarde grandemente perturbado pela
ascendência da desconstrução, ele foi completamente incapaz de
montar uma contra-‐ofensiva teórica por causa de sua inclinação crítico-‐
literária essencialmente a-‐teórica e de sua cumplicidade anterior com o
romântico, o religioso, o profético, o oracular [...].88
Nos espaços de expressão portuguesa, a questão da legitimação canónica
das obras ainda hoje encontra-‐se em fase de construção, pois o debate acerca das
fronteiras da literatura torna-‐se mais vivo quando procuramos determinar as
fronteiras de uma literatura nacional, e o espaço lusófono é formado por muitas
nacionalidades diferentes que falam a mesma língua.
Por exemplo, há alguns anos, em Angola, surgiram muitas polémicas após a
publicação, em 2004, da coleção dos vinte quatro autores canónicos da literatura
nacional, que foi patrocinada pela Construtora Norberto Odebrecht em parceria
com a União dos Escritores Angolanos e as Edições Maianga, e coordenada pelo
escritor Mena Abrantes 89. A polémica – apesar de não ter tido nenhuma visibilidade
os textos caracterizados por um tipo de escrita que recusa a linguagem institucionalizada e/ou os valores literários de uma determinada época. Finalmente, um terceiro significado encontra-‐se ligado ao projeto intelectual do escritor de rever o contexto de grupos oprimidos, na tentativa de os retratar. 88 A. AHMAD, Linhagens do presente, São Paulo, Ed. Boitempo, 2002, p. 65. 89 Composta de 24 livros reeditados de escritores angolanos dos períodos pré e pós-‐Independência, divididos em duas caixas de 12 volumes, a coleção Biblioteca de Literatura Angolana tinha a finalidade de contribuir para a preservação da cultura e da história de Angola. Não obstante isso, o
71
em Portugal – foi fortemente alimentada pelas rádios e pelos jornais angolanos
durante essa altura deram muito espaço à questão: de facto, dentro desse conjunto
de autores selecionados, a maioria era branca e luso-‐descendente, não podendo
ser, segundo os seus detratores, representativa da totalidade da produção literária
do país. O debate, portanto, trouxe à superfície toda uma série de problemáticas
interpretativas, históricas e culturais, de um país cuja identidade se encontrava em
fase de construção depois de uma longa dominação exterior – da qual,
aparentemente, ainda não se conseguia prescindir na interpretação dos
acontecimentos.
Perante esta tentativa de criação dum cânone próprio e independente, a
atitude demonstrada pelos organizadores da coleção foi problemática, pois deram
muito espaço a autores simbolicamente muito ligados (por serem luso-‐
descendentes) a uma altura da história da nação em que a dicotomia
Ocidente/Oriente dominava totalmente o panorama cultural e institucional,
impedindo com estas escolhas uma real superação desta dinâmica.
Uma outra dúvida surge em relação aos que levantaram a polémica, visto
que também é verdade que os autores luso-‐descendentes selecionados tomaram
parte ativa nas lutas de libertação do país – e neste processo a literatura
representou um meio fundamental de divulgação e de educação – e portanto
podem ser considerados sob uma perspetiva mais ampla que ajude no avançar das
relações culturais de dois países inevitavelmente ligados.
Luandino Vieira, por exemplo, combateu nas fileiras do MPLA e foi
condenado a catorze anos de prisão no Campo de Tarrafal, em Cabo Verde. A
importância da sua obra vai para além da sua proveniência, tendo em conta que foi
capaz de dar voz à “fala angolana” duma forma totalmente revolucionária e que
contribuiu para a afirmação da identidade, ou alteridade, do país: nesta ótica, pôr
em discussão a sua contribuição à formação de uma literatura nacional parece
propósito aparentemente desinteressado acabou por se tornar numa oportunidade para discutir uma antiga questão, que nasceu durante o período colonial e que ainda hoje é difícil ultrapassar: a rivalidade entre negros e brancos, e a consequente supremacia destes últimos sobre os primeiros.
72
ousado e pouco realista, mas sobretudo demonstra a fragilidade das posições dos
opositores.
A interpretação manifestada por Harold Bloom não parece, portanto, muito
diferente, pois o autor –movido também por razões e propósitos “nacionalistas” na
formação dum cânone de referência para a literatura norte-‐americana – acaba por
considerar universais principalmente os autores “clássicos”, e portanto, europeus,
ignorando quase a existência de outros espaços culturais bem distintos. Esta
postura intelectual não contribuiu para valorizar a especificidade das literaturas
homoglotas e reduzir radicalmente o eixo à volta do qual é possível construir um
discurso geral em que a essas literaturas não esteja reservado um lugar periférico.
Por fim, com uma definição de literatura relacionada com a ideia de cânone
evidenciam-‐se os limites conceptuais, éticos, e até históricos, deste tempo chamado
pós-‐colonial, um tempo que ainda se está a consolidar e está a tentar derrubar as
barreiras intelectuais e interpretativas que antigamente não permitiam a
construção de um diálogo entre as diferentes culturas. Aliás, a dimensão
sociocultural que sobressai da ideia de cânone leva a reconhecer na literatura uma
prática ilustrativa da consciência coletiva de uma dada sociedade, sujeita portanto a
poderes e fatores que se afastam da mera dimensão estética inicial e a problemas
que estão diretamente ligados a posições ideológicas definidas.
Por isso, é importante ter em mente que a aplicabilidade de uma teoria
crítica geral a culturas totalmente distintas nas suas origens pode fazer retroceder
os estudos, em vez de os ajudar a avançar, e que, no caso dos autores africanos,
apesar de as palavras e a sintaxe das suas obras obedecerem às mesmas regras das
dos autores europeus, as culturas de referência são diferentes e esta diferença
merece respeito e valorização.
II.5. A edição de autores angolanos antes do 25 de abril
73
Em matéria de editoras e publicação de textos, durante o período fascista
(1933-‐1974) a existência dum sistema colonial – e o seu papel propagandístico
fundamental – condicionou fortemente a produção e a promoção de textos
relacionados com África e procedentes de África. Segundo Manuel Ferreira
[...] ambas as coisas, embora tão diferentes e até por
definição opostas ou mesmo contraditórias, andaram
metidas no mesmo saco pela generalidade dos
comentadores, dos críticos, dos divulgadores, e até por
vezes dos próprio editores, nomeadamente os editores
oficiais.90
Os críticos, os académicos, os editores, em suma, as figuras da cadeia da
receção que mais podiam alterar a perceção promovida pelo discurso oficial e
dominante, estavam por sua vez sujeitos a um poder totalitário que não podiam
contradizer sem serem violentamente ameaçados, não podendo, pois, expressar-‐se
de forma livre.
Na realidade, naquela altura já havia quem efetivamente tivesse consciência
do conteúdo de certas obras que escapavam à linha do ideário oficial, mas estas
pessoas nem sempre eram as mesmas que intervinham na manipulação e circulação
dos livros, e por isso a situação manteve-‐se inalterada durante muito tempo. Não
obstante a evidente influência do Estado na sua circulação e difusão, existia toda
uma produção literária “subterrânea” que não foi editada na altura em que foi
escrita devido às suas implicações ideológicas, mas que deixou uma profunda marca
na história (o romance Mayombe de Pepetela, escrito no início dos anos 70 e
publicado nos anos 80 é disso um exemplo).
Alguns dados, retirados dos estudos de Manuel Ferreira, remetem para a
edição durante o governo salazarista e relatam que à Metrópole chegava uma
produção “escassamente diversificada” 91 e centrada principalmente em dois
organismos oficiais: a Agência Geral das Colónias (mais tarde, “do Ultramar”) e a 90 M. FERREIRA, Op. Cit., p. 271.
74
Junta de Investigação Científica do Ultramar. Finalmente, entre os divulgadores das
obras relativas a e/ou relacionadas com África, menciona-‐se também a Casa dos
Estudantes do Império, fundada em Lisboa em 1945 e encerrada pela polícia política
portuguesa (PIDE) em setembro de 1965, e que durante duas décadas constituiu o
lugar onde confluíam os estudantes provenientes dos “territórios ultramarinos” que
vinham para Lisboa, Coimbra ou Porto a fim de frequentar a Universidade.
Destes três organismos, o primeiro (a Agência Geral do Ultramar) privilegiou
a publicação de trabalhos relativos às ciências humanas e sociais, concedendo
pouco destaque às ciências naturais e à política, e nenhum à escrita estritamente
literária; o segundo (a Junta de Investigação Científica do Ultramar), tinha como
vocação, conforme com a sua própria designação, a edição da obra científica,
entendida num sentido muito amplo, ou seja, como uma área que englobava as
ciências naturais e as ciências humanas, sociais e políticas, pelo que de nenhuma
forma se dedicava à divulgação de obras literárias.
Contudo, apesar da seriedade e objetividade científica, ambos os
organismos foram marcados pela ideologia oficial colonial, apresentando traços
evidentes nas centenas de obras que publicaram. Manuel Ferreira explica que:
[...] a criação destes dois organismos nasceu sob o signo do
programado impulso para o incremento do interesse pelas coisas
coloniais, ao sopro da mitologia criada e acerbamente cultivada e
desenvolvida nos inícios dos anos 30, quando o Estado Novo toma a
razão superior da existência da Nação Portuguesa [...] na necessidade
de exaltação patriótica que tivesse como paradigma a existência dos
territórios coloniais, onde estavam os povos avassalados pelos
portugueses.92
É também através destas publicações que o discurso do Poder se vai
fortalecendo, e com ele a máquina oficial, e vai procurando eficazmente um estilo,
uma retórica e uma estética imperial, com base num complexo e ambicioso texto
92 Ibid., p. 272.
75
formado de múltiplos signos (literários, culturais, sociais, históricos, pictóricos,
arquitetónicos, etc.).
O terceiro organismo citado desempenhou, pelo contrário, um papel muito
diferente no contexto dos poderes que se enfrentaram durante o Estado Novo. A
Casa dos Estudantes do Império foi fundada oficialmente em 1945 para dar
hospitalidade aos estudantes procedentes de África, constituindo ao mesmo tempo
a forma encontrada pelo Estado para controlar a sua afluência. De facto, o Estado
só tentou “domesticar” este organismo entre 1952 e 1957 através de uma Comissão
Administrativa, mas a tentativa não teve muito êxito, dadas as pressões dos que
queriam que fosse um lugar de afirmação de consciência cívica, de liberdade e de
tolerância.
A Casa dos Estudantes do Império, à exceção da breve pausa intermédia,
dedicou-‐se sempre à divulgação do saber africano e à livre manifestação das
culturas originais dos seus associados, através da organização de colóquios,
debates, conferências com reputados cientistas e intelectuais, e da concretização
dum plano editorial específico. Este, levou à organização e sucessiva publicação de
seis antologias de poesia e de contos de S. Tomé e Príncipe, Angola e Moçambique;
das dezasseis obras da Coleção Autores Ultramarinos iniciada por Carlos Ervedosa e
Fernando Costa Andrade; de duas obras de etnografia e da sua revista Mensagem,
da qual se publicaram trinta e cinco números.
Numa carta de António Faria de 26 de fevereiro de 1993, lê-‐se que
A Casa dos Estudantes do Império editou quase todos os escritores e
poetas com os quais as crianças dos novos países aprenderam a falar e
a ler em português. [...]
Não foram só os quinze pequenos volumes da coleção Autores
Ultramarinos iniciada pelo Carlos Ervedosa e pelo Fernando Costa
Andrade, com edições de quinhentos exemplares, onde apareceram
Mário António, Luandino Vieira, Arnaldo Santos, Viriato da Cruz,
António Cardoso, Costa Andrade, Manuel Lima, Agostinho Neto,
António Jacinto, Alexandre Daskalos, Tomás Vieira da Cruz, Henrique
Abranches, Ovídio Martins, José Craveirinha [...]. Acresce ainda [...] a
76
revista Mensagem onde se revelaram Artur Pestana Pepetela, Ernesto
Lara Filho, Manuel Rui, Amândio Cordeiro, Álvaro Mateus, João Vario e
tantos outros.93
Todavia, o único limite destas edições era a sua tiragem limitada, que as
relegou a circuitos de distribuição fora das áreas oficiaia. Assim, só os estudantes
universitários ou os intelectuais africanos ou portugueses ligados às questões
africanas tinham acesso a estas obras, que consequentemente não alcançaram
grande visibilidade dentro do público menos culto. De qualquer forma, na Casa dos
Estudantes do Império
[...] sim, a lei era a África e todo o plano de edições se levou a cabo
segundo o princípio de que a literatura africana era uma coisa de
contornos bem definidos e nada tinha a ver com a literatura colonial.94
Contudo, excetuadas estas edições, mais de 90% da restante produção
editorial era da chamada “literatura colonial”, dada a imperante presença da
censura e da PIDE, e é evidente que determinados sistemas ideológicos e de
controle dificultaram de maneira indubitável o aparecimento e a divulgação em
Portugal de algumas obras fundamentais da literatura africana de expressão
portuguesa, pelo menos até à restauração da democracia.
Uma editora que se dedicou à edição dos autores “ultramarinos” foi a
Editora Pax, de Braga, dando cobertura aos escritores coloniais mais
comprometidos com o regime e portanto contribuindo para a afirmação de um
espaço orientado à preservação dos ideais do poder e dos seus preconceitos. Esta
atitude editorial impôs-‐se por volta das décadas de 1920 e 1930 e desenvolveu-‐se
nas seguintes; nesse período não saíram grandes nomes ou obras.
No entanto, em 1963 as Edições 70 atreveram-‐se a publicar a primeira
edição de Luuanda de Luandino Vieira, que ganhou o Grande Prémio de Novelística
93 A. FARIA (carta de) in IDEM, A Casa dos Estudantes do Império: um itinerário histórico, Lisboa, Ed. Câmara Municipal de Lisboa e Biblioteca Museu República e Resistência, 1995, p. 12. 94 M. FERREIRA, Op. Cit., p. 275.
77
da Sociedade Portuguesa de Escritores no ano seguinte, 1964. Por causa desta
decisão, a Sociedade foi logo destruída por vontade do Governo de Salazar, uma vez
que Luandino Vieira era um dos combatentes mais ativos na luta pela
independência de Angola e a Guerra Colonial estava a decorrer: era inadmissível
reconhecer qualquer valor literário na obra dum português afiliado do MPLA.
De uma maneira geral, até aos finais da década de 60 os autores africanos
não coloniais publicaram exclusivamente na Metrópole, não só por razões políticas
mas também porque os seus países de origem careciam ainda das estruturas e dos
recursos necessários à sua divulgação porque se encontravam ainda em estado de
dominação. Só em Angola houve um momento em que surgiu uma iniciativa
independente e graças à qual foram publicados alguns autores locais, que não pôde
contudo deixar de dar espaço também aos autores ligados ao império. Trata-‐se da
editorial Imbondeiro que foi fundada em 1960 na antiga Sá da Bandeira (hoje
Lubango) sob a direção de Garibaldino de Andrade e Leonel Cosme, e que constituiu
o primeiro movimento editorial angolano.
Ambos os seus organizadores eram portugueses, tendo o primeiro emigrado
para Angola em 1954 e o segundo em 1950, e isso para mostrar que a estrita ligação
entre Portugal e Angola nem sempre levou a situações de muda submissão. As
Publicações Imbondeiro podem servir de exemplo para desmistificar o papel
destruidor do homem português, pois nem todos os europeus que viviam em África
trabalharam contra a criação de nações livres e autodeterminadas; contudo, o
exemplo evidencia também como a sociedade africana se encontrava fortemente
hierarquizada, e projetos como este podiam considerar-‐se realizáveis só graças aos
que pertenciam à camada “branca” ou “lusa” da sociedade.
As Publicações Imbondeiro desempenharam um papel de relevo na
divulgação e na aquisição de prestígio (ou de uma “posição” mais prestigiosa) das
literaturas africanas, conseguindo superar as fronteiras de Angola, penetrar nas
outras ex-‐colónias e simultaneamente em Portugal, e até em certos círculos
brasileiros. Por estratégia política tiveram que incluir autores que não tinham nada
78
a ver com África, mas isso não diminuiu o seu impacto no panorama editorial local e
lusófono em geral.
Antes da independência das províncias portuguesas, em Coimbra, a
Centelha, uma editora livreira criada por um grupo de intelectuais de esquerda
ativa nos anos 70, publicou algumas obras poéticas de Manuel Rui e David Mestre;
este projeto editorial, contudo, não conseguiu impor-‐se no panorama nacional e
desapareceu com a morte dos seus fundadores.
II.6. A edição de autores angolanos depois do 25 de abril
Com o 25 de abril e a consequente descolonização, chegaram as
independências nacionais e, sobretudo, a tão desejada liberdade de expressão.
Mudou, portanto, a dinâmica que movera a publicação até àquele momento, a dos
autores africanos em particular, em relação aos quais se assistiu a uma verdadeira
reforma.
Logo depois da instauração da democracia, foram interrompidas as
atividades da Agência-‐Geral do Ultramar e da Junta de Investigação Científica do
Ultramar (a primeira foi até extinta) e editoras como a Pax de Braga, que se
dedicavam aos autores coloniais e eram patrocinadas pelo Estado, suspenderam a
sua produção editorial. Por outro lado, finalmente tornou-‐se possível a edição de
autores proibidos até àquele momento, tais como Luandino Vieira, Castro
Soromenho, Agostinho Neto, entre outros, e o mercado editorial português viu-‐se
de repente enriquecido de uma conspícua lista de nomes antes desconhecidos (ou
considerados grandes criminosos da humanidade...).
Também em Angola se assistiu a grandes mudanças, em particular com a
criação em 1975 da União dos Escritores Angolanos com sede em Luanda, graças à
qual se empreendeu com ímpeto um projeto editorial especificamente angolano
que constava da publicação no país de um abundante número de obras de autores
locais. Dados os escassos recursos económicos daquela altura, a União teve que se
79
apoiar em algumas editoras portuguesas, que reservaram uma edição reduzida das
obras também para Portugal, contribuindo para a rápida difusão de autores como
António Jacinto, Óscar Ribas, José de Freitas, Pepetela, Manuel Rui, e mais tarde
João Tala.
Os anos 70 e 80 podem considerar-‐se os anos do boom da edição de autores
africanos em Portugal. Muitas editoras nacionais abriram as suas portas a autores
outrora temidos, e assistiu-‐se a um interesse que nunca mais se repetiu.
A Sá da Costa, editora com sede em Lisboa, em meados dos anos 70
publicou a coletânea de poemas de Agostinho Neto, Sagrada esperança, e outra
recolha de poemas, de Costa Andrade, intitulada Poesia com armas.
Sempre na mesma altura, as edições Limiar publicavam Luz vegetal de Egito
Gonçalves, editando também, nos anos 80, as suas obras Falo da vertigem e Os
pássaros mudam no outono.
A partir dos anos 80, as Edições 70 intensificaram o seu trabalho em relação
aos autores africanos, e publicaram os angolanos António Cardoso, Antero Abreu,
António Jacinto (também publicado pela União dos Autores Angolano e
sucessivamente pelas edições Asa), Manuel Rui, José da Silva Maia Ferreira,
Uanhenga Xitu, Luandino Vieira. Na apresentação que a editora faz hoje no seu site
oficial lê-‐se que
[...] em 1976, Edições 70 iniciou um processo de intensa cooperação
com os responsáveis culturais dos novos países africanos de expressão
portuguesa (em especial de Angola e Moçambique), que permitiu, no
espaço de uma década, a divulgação de muitas obras e autores
representativos desses países.95
Não obstante isso, os hodiernos interesses da editora não coincidem com os
antigos, e no seu catálogo constam principalmente obras relativas às Ciências
Humanas e Sociais, pelo que se dedica sobretudo à divulgação do saber científico.
Na linha das medidas necessárias à sobrevivência tomadas por muitas editoras
95 http://www.edicoes70.pt/site/node/5 (último acesso: 1/5/2013).
80
portuguesas, em 2005 as Edições 70 juntaram-‐se com o grupo Almedina e adotaram
os seus objetivos divulgativos, que não incluem a edição de autores angolanos ou
africanos, mas sim a divulgação dos seus produtos em Angola e no Brasil.
A editorial Afrontamento do Porto, que continua a publicar, parece ter-‐se
dedicado mais à edição de textos relacionados com África, como os estudos de
Leonel Cosme ou de Pires Laranjeira, pelo que, de facto, não se dedica
especificadamente a autores angolanos.
As edições Asa, também do Porto, apesar do declarado interesse pelos livros
escolares, durante certa altura empreenderam a edição de António Jacinto e
Boaventura Cardoso; contudo, hoje estes dois autores não aparecem no catálogo da
editora e nem sequer figuram nomes de outros autores africanos ou angolanos.
Nos anos 90, a situação editorial dos autores africanos mudou novamente e
houve um certo retrocesso na sua publicação. De facto, destaca-‐se apenas o
trabalho da editorial Campo das Letras, que editou autores como Carlos Ferreira,
Boaventura Cardoso e Fragata de Morais. Fundada em 1994, a editorial faliu em
2009, deixando um vasto catálogo. Entretanto, no período mencionado a editorial
Cotovia continuou a publicar Manuel Rui.
No início do século XXI a editora Cotovia publicou Rui Duarte de Carvalho, e
a Imprensa Nacional Casa da Moeda publicou David Mestre. Na mesma altura, a
Porto Editora, uma das maiores editoras portuguesas atuais, começou a interessar-‐
-‐se pelos autores procedentes de África e hoje trabalha em parceira com a Plural
Editores, de Angola, na edição de livros escolares e técnicos, pois nunca se
especializou em obras literárias.
As edições Colibri também contribuíram para o enriquecimento do material
editorial relacionado com África, publicando uma coleção intitulada Lusofonia, em
que se recolhem os estudos de personalidades como Inocência Mata, Ana Mafalda
Leite, Laura Padilha, entre outras. Todos os autores destes estudos provêm de
países de língua portuguesa e debruçam-‐se sobre questões atuais.
No panorama hodierno nota-‐se que, por um lado, muitas editoras envolvidas
na divulgação de autores procedentes de Angola desapareceram ou faliram, por
81
razões que têm a ver com as grandes dificuldades financeiras em que se encontra o
país; por outro, na maioria dos casos, as que conseguiram manter-‐se ativas dentro
do mercado tiveram que ser englobadas pelos grandes grupos editoriais como a
Leya ou o grupo Asa, o que significa que certa os seus intentos divulgativos
mudaram e que se concentram cada vez mais nos lucros e nas vendas.
A editorial Caminho e a Dom Quixote, ambas do grupo Leya são duas
editoras que se destacam particularmente hoje. A sua relevância não tem a ver com
o número de autores angolanos e/ou africanos publicados, mas com a visibilidade a
que têm acesso os que são distribuídos por elas.
A Dom Quixote atualmente publica José Eduardo Agualusa, enquanto a
Caminho trabalha com autores como João Melo e Ondjaki. Esta última publicou
também algumas obras de Luandino Vieira e Manuel Rui e o grupo Leya editou a
última obra de Pepetela (que habitualmente era publicado pelas Edições 70, e
depois pela Dom Quixote), O sul. O sombreiro, de 2011.
Finalmente, tendo em conta o panorama editorial atual, é preciso destacar o
papel desempenhado por uma pequena editora que publica autores angolanos.
Trata-‐se da Nossomos, fundada e dirigida por Luandino Vieira e Arnaldo Santos e
cujo objetivo é a edição ou reedição dos autores clássicos da literatura angolana
com particular atenção aos poetas.
A finalidade da editora não parece ser o lucro, mas sim a difusão do material
poético graças ao qual se construiu parte da identidade angolana; os seus produtos,
autofinanciados, são pequenos livros simples e muito cuidados, cujo custo não
supera os 5 euros. Através dela, alguns grandes nomes, como o de João Maimona
por exemplo, finalmente encontraram visibilidade e publicação em Portugal. A
editora, contudo, não tem grande impacto no mercado, mas de qualquer forma,
possui uma pequena livraria em Vila Nova de Cerveira e outra em Luanda,
representando assim uma pequena ponte entre os dois países.
Em conclusão, a pesquisa mostra que hoje, cerca de trinta anos após as
independências, as editoras mais sistemáticas (e ainda em atividade) na edição de
obras angolanas ou relacionadas com a África lusófona em geral são a Editorial
82
Caminho, as Publicações Dom Quixote, a Cotovia, a Asa, às quais se podem
acrescentar as Edições Afrontamento, a editora Novo Imbondeiro e as Edições
Colibri.
II. 7 Balanço editorial
Não obstante o evidente interesse manifestado pelas editoras portuguesas
ao longo dos anos e das mudanças históricas e ideológicas, o número de escritores
angolanos que chegam com mais facilidade ao público português é reduzido se
comparado com a grande quantidade de autores que deixaram uma marca na
história literária do país, e sobretudo tendo em conta que a literatura angolana é
uma das mais sólidas e ricas dentro do panorama literário africano lusófono.
Aliás, apesar do grande interesse demonstrado pelo mercado logo após a
instauração dos novos regimes, o espaço que hoje lhes é dedicado nas livrarias é
muito pequeno, sobretudo se confrontado com o espaço dedicado aos autores
nacionais e aos textos de autores traduzidos, de forma que se tornou cada vez mais
difícil falar duma equitativa divulgação desses produtos em língua portuguesa, dum
conhecimento aprofundado desses mesmos produtos, e sobretudo da superação do
seu estatuto periférico.
Segundo os dados recolhidos, os autores angolanos mais divulgados hoje em
Portugal são Luandino Vieira, Artur Pestana Pepetela, José Eduardo Agualusa, João
Melo e Ondjaki, enquanto as obras de outros autores também válidos, como
Manuel Rui, João Tala ou Boaventura Cardoso não aparecem tão frequentemente
nas estantes das livrarias portuguesas ou nas listas de autores publicados pelas
grandes editoriais.
A editorial Caminho, aliás, há alguns anos concebeu uma coleção intitulada
“Outras margens. Autores estrangeiros de língua portuguesa”, na qual aparecia uma
série de nomes de autores angolanos como Luandino Vieira e Ondjaki. O que
surpreende no título dado à coleção é o oximoro em que assenta e a evidente
83
perceção confusa destes autores: a designação de “outras margens” remete para
uma área, simbólica ou real, dentro da qual porém se tomam em consideração os
elementos que constituem a chamada “alteridade”; a escolha do adjetivo
“estrangeiros”, aliás, sugere uma certa distância e diferença entre quem pensou na
coleção e nos autores escolhidos, como se estes estivessem sempre a ser definidos
a partir de um lugar central d o qual se observam os limites dum espaço comum. O
substantivo “margem”, além disso, tem uma forte relação semântica com o adjetivo
marginal, muito utilizado na definição do espaço que as literaturas africanas
ocupam no panorama global da literatura lusófona, ou para definir o conjunto de
obras que não se podem considerar canónicas.
O que parece motivar esta atitude é o facto de a língua portuguesa ser
utilizada pelo conjunto de pessoas que escrevem e leem esses livros; contudo, a
coleção está à venda só em Portugal, e é por isso que o título levanta algumas
dúvidas: por um lado, os autores “estrangeiros” são outros, diferentes, distantes
dos possíveis leitores, e são marginais; por outro lado, o facto de todos usarem a
mesma língua determina a sua inclusão na coleção, mostrando uma atitude que
pode parecer de superioridade, segundo a qual em Portugal é admitido estrangeirar
os restantes falantes da língua só porque não nasceram no país europeu, utilizando
ao mesmo tempo os seus produtos como se fossem nacionais.
Entre o pertencer e o não fazer parte, toma corpo uma relação complicada
que Ana Mafalda Leite explica desta forma:
A prática da leitura, no ocidente, da textualidade africana de língua
portuguesa, dialoga a partir de dois lugares diferentes, o lugar da
enunciação cultural/nacional de quem escreve, e o lugar daquele que
lê. A construção do sentido assemelha-‐se porventura a um acto de
tradução; é como que interrompida por um descontínuo, o texto,
legível e estrangeiro, ao mesmo tempo, criando distância e
indicibilidade entre os dois pólos.96
96 A. M. LEITE, Literaturas africanas e formulações pós-‐coloniais, Lisboa, Edições Colibri, 2003, p. 38.
84
Deste modo em Portugal a alteridade de que são representativos os autores
de origem africana, em vez de ser sinónimo de diversidade, é sinónimo de
“estrangeiridade”, isto é, duma condição de extrema alteridade, que denota uma
profunda distância entre quem lê e quem está a ser lido.
Estamos portanto perante um paradoxo que se esconde por trás de uma
história com mais de 300 anos e cujos mitos ainda não foram desfeitos: a “inclusão
excludente” dos autores homoglotas, que se pode observar através da publicação
de autores angolanos por parte de editores portugueses, continua a deixar em
aberto uma questão muito antiga e pouco feliz, que evidentemente ainda se
encontra em fase de reelaboração, e que tem a ver com a dificuldade, em Portugal,
de aceitar as diferenças culturais e identitárias e com a contínua tentativa inútil de
criar um espaço idealisticamente homogéneo.
Em relação à situação desequilibrada evidenciada na pesquisa, Inocência
Mata coloca a hipótese que
Essa celebração não depende do estatuto exepcional destes autores,
cuja mais-‐valia está muitas vezes na sua oscilante nacionalidade
cultural e na sua origem étnica e, por conseguinte, da nacionalidade
literária da sua obra, dos lóbis concertados [...].97
Inocência Mata não deixa dúvidas em relação à sua posição nesta delicada
questão: está-‐se perante um “fogo de artifício mediático no mundo literário
africano em Portugal”98, pelo que se assiste à celebração cega de um determinado
grupo de autores e à sua consequente aceitação como literários: as escolhas
editoriais parecem ser feitas com bases nas origens étnicas dos autores e nas suas
“dúbias” identidades culturais, tendo em conta ao mesmo tempo a sua classe
sociocultural e o seu discurso sobre as relações com Portugal.
97 I. MATA, “A utopia cosmopolita na recepção das literaturas africanas” in Mulemba,, volume 1, n°4, julho 2011, p. 3. 98 I. MATA, “Literaturas africanas em Portugal: na senda de um imaginário migrante?” in J. L. PIRES LARANJEIRA e L. GERALDES XAVIER (org.), Santa Barbara Portuguese Studies: As literaturas africanas de língua portuguesa, Volume X – 2008, p. 27.
85
A investigadora são-‐tomense sublinha em numerosas intervenções que o
mercado editorial está cada vez mais atento à “rentabilização da diferença”99, na
definição de Andrea Semprini, uma diferença que no caso português nunca poderá
pôr em discussão o imaginário idílico dum povo que sempre se considerou capaz de
se relacionar com os que dominava, e que o fez sobretudo através da mescla étnica
e do imperialismo. Isto traduz-‐se na predileção por autores de nacionalidades
“hifenizadas” (i.e. os luso-‐descendentes) e por autores que difundem discursos
ideologicamente pouco matizados sobre o antigo estado colonial.
Segundo esta linha interpretativa, o “imaginário literário migrante”100 que
germinou em Portugal e transitou por África, passa pela África que mais confirma os
estereótipos comuns, que resgata o vasto espaço dos descobrimentos e permite a
continuidade das representações coloniais. Isto talvez se deva a uma ideologia
cultural que Eduardo Lourenço definiu como “derramamento, expansão e
crioulização”, segundo a qual os portugueses tendem a construir um espaço
cultural, mestiço e englobante, mais amplo do que o real. Este imaginário encontra
outra concretização, aliás, na formação da CPLP e no consequente fortalecimento
do “espaço lusófono”, ambos resultantes de uma ideologia dominante que parece
querer manter vivos e ativos os laços entre os países de língua oficial portuguesa,
que no entanto podem ser vistos como meios de controle sobre os produtos que
circulam dentro deste espaço linguístico.
Estas observações, embora muito radicais, encontram certa confirmação nos
dados recolhidos, visto que uma análise mais aprofundada das biografias dos
autores mencionados efetivamente evidencia que personagens como Luandino
Vieira e Artur Pestana Pepetela provêm de famílias portuguesas emigradas para
Angola, e José Eduardo Agualusa, João Melo e Ondjaki certamente não são negros.
Não se pode, contudo, adotar totalmente um discurso que por sua vez parece ter
uma grande conotação ideológica, militante, e etnicamente excludente, e é
necessário avaliar também a atitude dos próprios autores, uma vez que eles
também atuam neste palco editorial do campo literário. 99 A. SEMPRINI, Il multiculturalismo, Milano, Franco Angeli, 2000, p. 163. 100 Ibid., p. 5.
86
Se se admite que o mercado europeu marginaliza os produtos literários que
não coincidem com o seu ideal literário, também tem de se aceitar que essa
hegemonia das instâncias europeias de legitimação literária (muitas das quais em
África são inexistentes ou inoperantes) condiciona o escritor africano que queira ser
publicado, lido e estudado, e que para fazer isso se molda, conscientemente ou não,
aos cânones literários dominantes.
A responsabilidade pelos equívocos, portanto, hoje em particular, não é de
atribuir apenas às instituições europeias ou ao imaginário português (que, contudo,
é determinante na fixação das dinâmicas editoriais), mas também aos próprios
autores, que decerto não rejeitam esses mesmos padrões: um exemplo disso é
dado por José Eduardo Agualusa, que já em diversas ocasiões declarou que escreve
sobretudo para o público português e brasileiro, e não necessariamente para um
público angolano, demonstrando uma consciente e feliz aceitação dos valores
literários “ocidentais”.
Para além disso, as complexas relações que foram expostas não dependem
exclusivamente das ideologias portuguesas, mas também da estrutura social das
nações africanas após a colonização portuguesa. A estrutura social das nações pós-‐
coloniais intervém inevitavelmente na formação dos escritores e se em Portugal se
aceita a ideia de que só os brancos e os mestiços chegam a ser publicados por causa
de uma mentalidade imperialista ainda em voga, tem que se considerar também
que esta pode estar relacionada com a organização social dos países de origem
destes escritores: num país como Angola, por exemplo, cuja população é
principalmente mestiça e negra, os mestiços são os que têm uma vida mais digna e
mais acesso à formação, e são eles mesmos os que discriminam os negros. O
desequilíbrio e a hierarquização são características fundadoras das sociedades pós-‐
coloniais, e isso cria inevitavelmente confusão na sua perceção no exterior: talvez o
mercado europeu marginalize os produtos que já estão marginalizados.
O resultado é que é mais fácil admitir que os países descolonizados vão
demorar mais tempo a desintegrar o sistema que durante tanto tempo os
administrou, do que aceitar que de certa forma Portugal está hoje a reagir a uma
87
situação de inferioridade económica e cultural, e faltando-‐lhe os recursos materiais
para ser valorizado fá-‐lo exclusivamente através dos bens culturais.
Tudo isso, porém, não justifica completamente o desequilíbrio editorial a
que se assiste. Uma atitude editorial mais progressista e justa, seria, nesta situação,
ainda mais necessária, tendo em conta que é preciso trabalhar a todos os níveis
para que os gostos dos leitores portugueses se abram a autores menos “óbvios” .
Apesar disso, é também é necessário sublinhar as escolhas editoriais afetam
apenas o imaginário português, segundo o qual o que não se publica em Portugal
não se publica em lado nenhum. Pelo contrário, países como Angola hoje possuem
um sistema consolidado e editorialmente independente, e não se preocupam muito
com essa mentalidade, continuando, no seu caminho criativo e cultural, à procura,
como todos, de visibilidade. É só em Portugal que se quer difundir um pensamento
ainda ligado aos antigos mitos de poder e domínio, provavelmente porque o país
não consegue superar a sua própria condição de marginalidade e perifericidade e
por isso propõe uma política de assimilacionismo cultural que não coincide com a
realidade.
De qualquer forma, o facto de alguns peritos dizerem que os autores são
escolhidos na base de valores étnicos ou socioculturais deve ser considerado como
uma herança do sistema colonial, que porém encontra uma concretização quer em
Portugal, quer nas nações africanas, e portanto o desequilíbrio atual não é de
atribuir exclusivamente ao imaginário continental.
Quando espaços tão diferentes utilizam a mesma língua para difundir
material cultural é difícil construir um discurso crítico absoluto. Os autores que
chegam a Portugal são também publicados no Brasil, provavelmente hoje o centro
mais poderoso do espaço lusófono, isso demonstrando que a troca de produtos em
língua portuguesa abrange um universo muito mais amplo e que os próprio autores
estão interessados na maior circulação possível das suas obras.
Por fim, a análise da situação relativa à edição atual dos autores angolanos
evidencia como o fenómeno literário constitui uma vertente fundamental da
88
representação das assimetrias culturais, por um lado, e das contaminações
ideológicas limitantes, por outro.
89
CAPÍTULO III
O caso Ondjaki
Na elaborada cadeia do livro, que prevê a gestão do produto criativo até
torná-‐lo em produto de venda, os autores ocupam o espaço que está na origem de
todo o processo. São os “fazedores de sentidos”, os que constroem mensagens
através da palavra escrita, os que por primeiros veiculam culturas e interpretações
do mundo.
A relação que em Portugal o mercado editorial mantém com os autores
africanos, e mais em particular com os angolanos, justificada pela utilização da
mesma língua escrita e por um passado “comum”, traduz-‐se na escolha de
determinadas personalidades como sendo representativas das suas culturas
originárias, aparentemente que não contradigam a ideologia assimilacionista que
sempre difundiu uma imagem de Portugal como país tolerante e culturalmente
mestiço. Demostra-‐se desta forma certa perversidade em tomar a parte como o
todo, sobretudo tendo em conta a diversidade cultural da África lusófona, ou o
facto que em África só uma minoria fala português; de esta propensão para as
celebrações seletivas de certos autores depende também a consolidação da
invisibilidade de um determinado segmento produtor desses sistemas literários
externos.
Os autores africanos escolhidos pelas editoras portuguesas, verdadeiros
demiurgos de novos mundos literários, acabam por influenciar o imaginário coletivo
em direção das ideologias dominadoras, e portanto acabam por proporcionam
visões unitárias da área lusófona, uma área que – idealmente – abrange os que hoje
são espaços distintos e culturalmente separados. Nesta perspetiva, Ondjaki, esse
jovem escritor angolano hoje em vivaz atividade, há mais de dez anos encontra no
mercado editorial português um espaço apto para uma sua receção favorável. Em
adição a isso, parte da sua produção pode servir de exemplo para explicar a
confusão cultural que os editores contribuem para difundir em Portugal.
90
Primeiro proceder-‐se-‐á à apresentação do jovem escritor e de alguns seus
trabalhos, na tentativa de estabelecer que posição ocupa no interior do campo
literário, e de definir que imagem proporciona da sua cultura através da palavra
escrita. Esta abordagem à sua produção estará ligada aos textos e aos vários níveis
interpretativos das mensagens neles contidas, quer através dum exemplo da sua
obra poética, quer (e sobretudo) através de alguns exemplos da prosa. Para isso,
será apresentada a coletânea Ha prensajens com o xão, apenas um exemplo da
consistente produção poética do autor; logo, passar-‐se-‐á às suas obras em prosa,
também numerosas, entre as quais foram escolhidas duas possível representantes
das escritas sobre os anos 80, ou seja Bom dia camaradas e Os da minha rua; outra
obra analisada é Quantas madrugadas tem a noite devido ao seu ser um romance
“quase” angolano; por fim, oferecer-‐se-‐á uma última análise, mas não menos
importante, relativa à última obra publicada, Os transparentes, verdadeira obra
prima do jovem autor.
Uma segunda abordagem à produção do autor escolhido, o angolano
Ondjaki, tomará menos em consideração as componentes textuais das suas obras e
referir-‐se-‐á à observação de alguns processos que podem ter influenciado a sua
receção em Portugal. É necessário, dadas as relações hoje em vigor no sistema, seja
este o dos bens culturais ou o dos bens materiais, ter em conta a imagem pública
construída pelo produtor (o autor) ao longo dos seus anos de atividade: nesses dez
anos de presença no mundo literário português, e graças à contribuição da editora
com que trabalha, Ondjaki tem-‐se afirmado como personagem pública sociável e
disponível, presente nos mais diversos debates e sempre disponível com o seu
público de aficionados. Esta atitude, ao lado da qual são de considerar os
investimentos da sua editora, já afirmada no panorama nacional português,
certamente ajudou na definição dos sucessos recolhidos nesses anos, e na
determinação duma sua receção favorável.
Muito importante para isso, sobretudo hoje, é também o uso dos meios
sociais, que, com a visibilidade e a dimensão interativa que oferecem aos seus
utilizadores, projetam no horizonte global as figuras públicas que a eles se apoiam
91
para as suas comunicações. O mesmo Ondjaki, com a sua assídua presença nos
chamados social networks, demonstra ter consciência disso, dado o regular trabalho
de promoção que através desses faz de si; contudo, isso pode ser confundido por
uma preocupação do autor para com a cura da sua figura pública, embora – é
verdade – muitas das intervenções pareçam instintivas e desinteressadas, ou seja,
não finalizadas a ganhar mais fama ou notoriedade. Não são, portanto, de
considerar necessariamente o fruto de premeditações para a promoção das obras,
mas a simples consequência duma época em que as redes sociais ocupam o lugar
central.
Outras reflexões remeterão para as frequentes aparições de Ondjaki em
entrevistas, quer na televisão, quer em revistas especializadas ou em eventos de
circuitos menos conhecidos (sobretudo no Brasil), bem como para as suas
participações em projetos criativos de diferente natureza. O autor é sempre muito
disponível e concede-‐se com facilidade às perguntas dos jornalistas, bem como às
curiosidades dos seus leitores ou dos apaixonados de literatura. A internet pulula de
ligações que o veem protagonista e é fácil encontrar o autor em colóquios e mesas
redondas que se ocupam de temas ligados a África, e não necessariamente à África
lusófona.
Por fim, algumas considerações terão a ver com a legitimação da sua obra
por parte das instituições literárias mais “tradicionais”, como pode ser a atribuição
de prémios literários e a presença nos programas de ensino. Efetivamente, só
algumas dentro do largo conjunto de suas produções são particularmente
valorizadas por parte desses últimos em Portugal, e é interessante ver quais são
privilegiadas, e quais, ao contrário, não recebem grande visibilidade. Enquanto os
primeiros processos que interferem com a receção da sua obra estão relacionados
com uma observação mais subjetiva do personagem em questão, este último
parágrafo tem a ver com o discurso oficial, e portanto traduz – em parte – as
relações que efetivamente as instituições portuguesas mantêm com os autores
procedentes de um dos seus chamados ex-‐domínios.
92
III. 1 Percurso de um jovem autor
Hoje Ondjaki representa o escritor mais jovem da União dos Escritores
Angolanos e trabalha com editoras angolanas, portuguesas e brasileiras. Ndalu de
Almeida nasceu em Luanda em 1977, numa Angola ainda só no início do seu
processo de independência e em plena Guerra Civil. Filho dum dos mais ativos
afiliados do MPLA e dos protagonistas da luta pela libertação, o também escritor
Júlio “Juju” de Almeida, Ondjaki cresceu na metrópole e capital angolana, onde
frequentou a escola pública até ao décimo ano de escolaridade. Amante da leitura
desde criança, a sua atração pelas atividades culturais levou-‐o, ainda em Luanda, a
aprofundar com paixão o seu interesse pelo teatro e pela palavra escrita.
Jovem dinâmico e com uma personalidade multifacetada, não se deixou
arrastar para a desilusão e a frustração da Luanda degradante e corrupta dos anos
80 e, consciente da situação, procurou empenhar-‐se e envolver-‐se nas iniciativas
culturais da capital angolana, sendo responsável por várias criações, de que é um
exemplo a revista Nganza Times, criada em 1993: revista cómico-‐satírica, Nganza
Times viu a publicação de seis números cuja organização Ondjaki partilhou com
alguns colegas de escola. Durante os anos da formação em Luanda, o escritor
integrou também um grupo de teatro amador de dois anos e um curso de teatro
livre.
Licenciou-‐se, contudo, em Sociologia no ISCTE de Lisboa, cidade onde tirou
também outro curso não profissional de teatro e onde residiu durante cerca de dez
anos. Aí, em 1996 frequentou um curso de escrita criativa, patamar fundamental na
sua produção, que lhe permitiu entrar mais em contacto com o mundo da literatura
e desenvolver a sua arte de fabulação através da escritura de pequenas “estória” e
contos.
Escritor mulato, a sua atividade criativa começou em 2000 em Angola, com
um primeiro trabalho de poesia, Actu sanguíneu, com que obteve o segundo prémio
num concurso angolano e a possibilidade de publicar a obra. Logo em seguida, em
93
2001, publicou o seu primeiro livro de contos, Momentos de aqui, com que
concorreu no prémio PALOP. Nesta ocasião conheceu Jaques Arlindo dos Santos,
responsável pela editora angolana Chá de Chaxinde, que o convidou a participar na
sua coleção Independência. Assim, ainda em 2001, Ondjaki escreveu Bom dia
camaradas, obra que constitui o quarto volume da Coleção Independência,
organizada pela editora angolana para comemorar os 25 anos da independência do
país, e que o consagrou definitivamente nos círculos literários angolanos.
Desde então o autor publica com regularidade obras que vão da poesia, aos
contos, aos romances, à prosa juvenil, até às peças de teatro. Em Portugal, trabalha
desde o princípio da sua carreira com a Editorial Caminho, enquanto no Brasil é
publicado por quatro editoras distintas e em Angola pela Chá de Caxinde.
Após a licenciatura em 2002, continuou os estudos com um doutoramento
na universidade de Nápoles, realizando um trabalho de investigação na área da
sociolinguística, relativo ao fenómeno social das “estigas” e aos diferentes modos
de “estigar”101 nos subúrbios de Luanda, que o pôs em contacto direto com os
muitos e diferentes calões das ruas da metrópole angolana.
O ritmo incessante de produção do autor viu, em 2002, a saída de Há
prendisajens com o xão, coletânea de poesia de caráter bucólico, e O assobiador, a
sua primeira novela. No ano de 2004 saíram outras duas obras, Ynari: a menina das
cinco tranças, de literatura infantil, e Quantas madrugadas tem a noite, uma breve
romance divertido e ambientado em Luanda. Em 2005 o autor publicou E se
amanhã o medo, antologia de contos.
Ondjaki manifestou logo também um forte interesse pelo cinema, que de
facto se concretizou nalguns trabalhos – como a codireção ao lado de Kiluanje
Liberdade de Oxalá cresçam pitangas – histórias de Luanda, um documentário de
2006 que aborda histórias da sua cidade natal e foi fruto duma parceira entre
Portugal e Angola – e também na escritura de guiões; antes disso, o escritor tentou
101 Estiga é um termo angolano que define uma frase espirituosa com a qual se ironiza sobre alguém ou alguma coisa; é uma forma humorada de ridiculizar, de estimular o riso pela ironia, que mostra a fantasia e a criatividade verbais tipicamente angolanas.
94
adquirir certa formação em tal sentido, acabando por frequentar a faculdade de
cinema da Columbia University, em Nova York, só por um semestre.
Apesar disso, em 2007 saiu outra antologias Os da minha rua, enquanto em
2008 foram editadas outras duas obras: o romance Avó Dezanove e o segredo do
soviético e o livro para crianças O leão e o coelho saltidão. Desde finais de 2007 o
autor reside no Rio de Janeiro, cidade onde se envolve em muitas e diferentes
atividades artísticas e culturais, participando em numerosíssimos encontros
espalhados por todo o país. Dada a profunda ligação entre o Brasil e África, Ondjaki
é frequentemente chamado a representar o seu país natal e a difundir a sua cultura,
quer através da apresentação dos seu trabalhos escritos, quer por meio da presença
em debates e colóquios.
Em 2009 saiu a coletânea de poemas Materiais para confecção de um
espanador de tristezas, e, no Brasil, a peça teatral Os vivos, o morto e o peixe-‐frito;
no mesmo ano saiu também o livro infantil O voo do golfinho. Em 2010 foi proposto
ao mercado Dentro de mim faz Sul seguido de Actu sanguíneu, recolha de poesias e
reedição da primeira obra de 2000, e em 2011 A bicicleta que tinha bigodes, de
literatura infanto-‐juvenil. Finalmente, em novembro de 2012 saiu em Portugal Os
transparentes, verdadeira obra-‐prima do escritor, com a qual prova ter adquirido
uma sólida madurez criativa. O livro foi publicado em Angola pela Chá da Caxinde e
foi lançado lá em janeiro de 2013. Por fim, em Portugal como no Brasil, em 2013
saiu também a livro de prosa juvenil Uma escuridão bonita, com ilustrações de
António Jorge Gonçalves.
III.2 Há prendisajens com o xão
O exemplo da produção poética do autor escolhido é a coletânea Há
prendisajens com o xão, publicada em Portugal pela Editorial Caminho em 2002, e
qua já viu pelo menos três reedições. Logo, resulta patente o trabalho de
experimentação que o autor levou a cabo com a língua portuguesa: o som do título,
95
cuja ortografia é evidentemente revisitada, remete para a ideia de uma
aprendizagem, uma aprendizagem dada pelo contacto com a terra, com o chão. Daí
a temática comum a todos os poemas, a natureza, os seres que a habitam e as suas
insólitas relações com a existência. Transforma-‐se assim numa recolha de sensações
deixadas pelas inquietudes e os mistérios da vida, pelas suas transformações e pelas
suas muitas formas, traduzidas na humanização dos pequenos animais que povoam
a terra, e sobretudo inspiradas por um grande poeta brasileiro: Manoel de Barros.
Como diz Andreia Muraro,
Uma leitura atenta do trabalho de Manoel de Barros e Ondjaki nos
dá uma imediata sensação de proximidade sobre dois aspectos
particularmente importantes em suas obras: um, a presença da
terra, do chão como metáfora dominante em busca de uma
identidade primeva e o outro, uma consciência autêntica da
linguagem: voltam-‐se para o objeto com todas as potencialidades,
renovando a palavra como nomeadora102
O chão portanto não é só um tema recorrente, que aparece na maioria dos poemas
dessa coletânea como na obra do poeta brasileiro, mas é o grande teatro onde a
vida, nas suas formas mais pequenas, se realiza. Esse teatro traduz-‐se em níveis
perceptivos, sensações e emotividades, que são o fundamento da “prendizajem” e
da consequente “despalavreação”.
É o próprio Manoel de Barros, segundo o que refere o autor no final do livro,
a reconhecer nas criações do jovem angolano aquela “consciência plena de que a
poesia se faz abandonando as sintaxes acostumadas e criando outras.”103 E este é,
de facto, o verdadeiro fio condutor das 26 criações poéticas contidas nesse breve,
mas intenso, livrinho. A estas, são de juntar outras quatro estórias, que de repente
interrompem o discurso poético para referir anedotas sempre relacionadas com a
terra, e uma secção final em que o autor elenca todos “convidados” para a obra.
102 http://revistas.pucsp.br/index.php/kaliope/article/view/3740/2440 (último acesso: 15/07/2013) 103 ONDJAKI, Há prendisajens com o xão, Lisboa, Caminho, 2002, p. 67.
96
O título, aliás, aparece acompanhado por um subtítulo, que refere: “o
segredo húmido do lesma & outras descoisas”: a palavra lesma, que indica um
molusco que “consegue alcançar tacto íntimo com todiqualquer chão”104 (como
explica o mesmo autor no curioso elenco que fecha a obra) pode vagamente
lembrar a palavra “lema”, isto é, a forma gráfica que é usada como entrada no
dicionário, a indicar o jogo linguístico que é contido em cada poema e em que
assenta o mesmo conceito de poesia.
Nesta ótica, segundo a qual o grafema e a realidade se traduzem
mutuamente, a forma gráfica com que os poemas são impressos pode ter também
valor alegórico: todos os versos começam em minúsculas, como pequenas raízes
pegadas à margem esquerda das folhas, criando uma sugestão como de plantas
(versos) que crescem no chão das páginas do livro: o livro-‐objeto também é uma
dimensão da metáfora que conduz toda a obra, sobretudo se é entendido como o
terreno que sustenta os recursos gráficos que a compõem.
Dentro desses aparecem muitos termos inventados, ao lado também de
outras palavras que se podem considerar revisitados, ou seja repropostos segundo
uma ortografia singular ou com multíplices sentidos. Ambos os procedimentos
denotam a presença forte da oralidade, patete já desde o título e ortografia da
palavra “chão” e confirmada pelas seguintes intervenções gráficas. A partir da
primeira poesia, Chão, encontram-‐se palavras como “des-‐ser-‐me” ou
“gargantadentro”105, ou ainda “infinituar-‐me”106; ao mesmo tempo, em Pastor de
estrelas a palavra “emoções” aparece escrita segundo um ortografia anómala,
“emochões”107 , ainda a lembrar o chão protagonista de toda a obra. Outros
exemplos significativos neste sentido são o título Arve Jánãoélógica ou os termos
recriados a partir do mundo animal como o verbo “libelulizo-‐me”108 ou o advérbio
“amosquitamente”109, entre muitos outros.
104 Ibid., p. 57. 105 Ibid., p. 11. 106 Ibid., p. 48. 107 Ibid., p. 12. 108 Ibid., p. 14. 109 Ibid., p. 27.
97
Aos termos inventados e repropostos são de juntar as numerosas insólitas
expressões criadas pelo autor, como a de “ser existido anectodicamente” de
Quando eu fui chão para lágrimaterrizagem ou a de “pisar um chão de estrelas” de
Para pisar um chão de estrelas: esses são só dois exemplos das novidades que
resultam do trabalho linguístico empreendido pelo autor, que, aliás, em conclusão
da obra oferece uma explicação muito pessoal da cada uma dessas expressões
singulares. Ao lado desse largo conjunto aparecem também termos e terminologias
que mostram como o autor logra mover-‐se ao mesmo tempo dentro de um registo
coloquial e popular e dentro um conhecimento aprofundado da língua, até que se
pode falar duma tentativa de descolonização da língua, dadas as muitas marcas do
português falado em Angola (como a ausência da preposição a em locuções com o
infinitivo).
A experimentação linguística, juntamente com as possíveis mensagens dos
textos, parecem ser formas através das quais o sujeito poético mostra o seu anseio
de liberdade, o que põe Ondjaki ainda mais em comunicação e em contacto com o
resto da produção poética procedente de Angola, frequentemente caraterizada por
essa exigência intrínseca da procura de libertação. Embora muito menos
comprometidas das poesias dos seus predecessores, também as criações de Ondjaki
mostram ter a mesma consciência.
A ideia da dinamização identitária se manifesta sobretudo pelo diálogo com
a terra e os seus desdobramentos, e, a palavra literária é necessariamente
conduzida por aspectos interiores e exteriores, que levam o leitor ao mesmo tempo
que o autor a tomar consciência da relação com o espaço de onde ambos vieram,
isto é: o chão poético e real que os sustenta.
Um trecho do prefácio, escrito pelo próprio autor, pode ajudar a esclarecer a
importância fundamental que a recriação identitária desempenha no complexo acto
de aprender, ou “aprendisar”:
Aprendizagem é a palavra que, ela si, ramifica e desramifica uma
pessoa; ela enlaça, abraça; mastiga um alguém cuspindo-‐o a si
mesmo, tudo para novas géneses pessoais. estas palavras são, elas
98
sim, para pessoas que se autorizam constantes aprendicismos.
modos. maneiras. viveres. até sangues. Aprendizar não é repessoar-‐
se?110
Aprender é “repessoar-‐se” enquanto a poesia é uma despalavreação, ou seja, uma
“deaprendizagem. um desmomento”111 de que é capaz “qualquer ser humano que
sorria ao gigantesco significado das coisas insignificantes”112, como fizeram e fazem
os grande poetas contemporâneos, aos quais são dedicados muitos poemas. O
diálogo do autor com os grandes protagonistas da literatura, bastante frequente
também nas obras em prosa, é outra demonstração da profunda consciência e do
amplo domínio que tem do material literário.
Através duma singular gramática, emotiva, sensível, que parte de elementos
metonímicos, é traçada uma imagem que na literatura angolana, é constante: a
terra que se metamorfoseia em nação e vivifica o poeta, semeador da palavra.
Assim este exemplo da produção lírica de Ondjaki mostra, provavelmente com mais
evidência, as suas raízes culturais e identitárias, pondo-‐o em comunicação com o
grande mundo da poesia angolana. Contudo, e não obstante as indubitáveis
capacidades do escritor, provavelmente porque a poesia é à partida um género
menos acessível pelo grande público de leitores, essa esfera da sua produção é
muito menos conhecida e promovida. Por fim, escrever e ler poesias é um acto de
emoção, como mesmo autor, voltou a afirmar numa recente entrevista em
espanhol:
La poesía es una de las cosas más difíciles de explicar. […]
Yo entiendo poco sobre la poesía que leo o que escribo. Me
gusta ese “desentender”. […] Estoy cansado de mi lado que
piensa. Estoy cansado de mi cabeza racional. Quiero estar
tirado en la yerba o en una montaña o emborrachado de
sueño y leer un poema que me emocione aunque no lo
entienda. Quiero leer a Neruda y emocionarme, quiero leer a
Ana Paula Tavares y emocionarme, quiero leer a Manoel de
110 Ibid., p. 7. 111 Ibid., p. 64. 112 Ibid., p. 64.
99
Barros, Sophia de Mello Breyner… y emocionarme porque
leer o releer a estas personas me emociona113
III.3 Bom dia Camaradas e Os da minha rua
Ondjaki faz parte de uma nova geração de artistas angolanos. Nascido cerca
de dois anos após a instauração da Independência, cresce e forma-‐se na Angola dos
anos 80, e portanto esta é a época que mais é narrada nas suas escritas. Em
particular, três obras centram-‐se neste período movimentado da história do país e
são Bom dia camaradas (2000), Os da minha rua (2007) e AvóDezanove e o segredo
do soviético (2008).
O imaginário contido nas suas produções literárias tem nuances diferentes:
as temáticas nelas enfrentadas mostram incursões que vão da sociologia e da
história recente da nação até à magia, às vezes pintadas com traços eróticos e
sensuais, às vezes mais oníricas, e frequentemente insertadas num contexto e
dentro de acontecimentos, tomados da vivência pessoal do autor. O seu estilo, a
sua escrita simples, muitas vezes com fortes traços infantis e estritamente ligada à
oralidade coincide com a escolha reiterada de um narrador-‐menino, sobretudo nas
obras que se referem à turbulenta década angolana dos anos 80 e ao relatar a
realidade onde o autor cresceu.
No primeiro romance, através da voz do jovem protagonista, é exposta a
história e a trajetória de Angola depois da independência, e a palavra “camarada”,
posta em destaque no fim da frase que dá o título à obra, anuncia logo um tempo e
um espaço bem definidos. Ambientado em Luanda, a narração do dia a dia da vida
do protagonista é animada por diálogos e anedotas pelos quais passa o relato dum
país em construção, agitado pela guerra civil e dentro do qual ainda se debatem as
problemáticas herdadas do colonialismo recém-‐acabado.
113 http://www.afribuku.com/ondjaki-‐feria-‐del-‐libro-‐literatura-‐africana-‐cultura-‐y-‐lengua-‐de-‐angola/ (último acesso: 15/07/2013).
100
Bom dia camaradas é, porém, principalmente um romance de memória,
narrado na primeira pessoa, no qual toda a ação se desenrola ao longo dos poucos
dias que antecedem as férias escolares do protagonista: a vida acontece
basicamente em dois ambientes, o familiar e o escolar, e é entre esses dois espaços
que o leitor vai tomando contacto com os pormenores da vida de um miúdo que
cresce numa Luanda marcada pela insegurança e pela instabilidade políticas. Com
uma narrativa leve, que se tornará no marco constante das três obras inerentes a
este período histórico e pessoal da vida do autor, os quotidianos acontecimentos
são transformados em aventuras, de acordo com a sensibilidade de quem os vive, o
jovem Ndalu.
É portanto possível inscrever a obra em dois géneros: por um lado, o
progredir da narração acompanha o autodescobrimento e a transformação do
protagonista, que acaba por ter uma nova consciência do mundo ao passo que o
romance avança e se conclui. Isso permite inscrever a obra no género do romance
de formação, ou Bildungsroman. Por outro lado, a fórmula utilizada pelo autor para
relatar esses acontecimentos tem certamente uma base autobiográfica, dada a
frequência com que o nome Ndalu é indicado como sendo o nome do
protagonista/narrador e a abundância de dados biográficos do autor presentes na
obra.
Existem, aliás, entre as obras deste conjunto temático, i.e. as de prosa sobre
os anos 80, certa repetição nos acontecimentos e nos lugares referidos, a confirmar
a experiência direta que o autor fez do espaço narrado. Em particular, entre Bom
dia camaradas e Os da minha rua, para além de coincidir a idade do protagonista e
a localização (Luanda) dos factos, alguns episódio são exatamente os mesmos; um
exemplo é o evento relativo à parada do primeiro de maio, que aparece em ambas
obras e, de facto, refere a mesma praxe. Também as personagens secundárias,
diríamos, os amigos da escola e os familiares, são as mesmas, e isso cria certa
sensação de repetição nas obras, que, contudo, se animam principalmente da
simpatia e da inocência do seu autor.
101
Ndalu é portanto também o nome a que corresponde a voz narradora de Os
da minha rua, colectânea de “estórias” que, logo desde o título, revela a fonte
pessoal das acontecimentos relatados. Para além da voz narradora, outros muitos
elementos permitem estabelecer certa continuidade, ou melhor afinidade, entre as
duas obras nomeadas: nos 22 breves contos recolhidos sob o título, aparecem as
mesmas personagens do romance, até repetem-‐se alguns acontecimentos, e as
referências histórico-‐cronológicas contidas em ambos os trabalhos evidenciam que
se referem à mesma altura da vida do protagonista.
De facto, algumas anedotas dessa recolha poder-‐se-‐iam considerar
aprofundamentos dos acontecimentos já conhecidos pelo leitor que teve certo
contacto com a produção anterior do autor; obviamente o género adotado é
diferente, resultando porém que a obra não se afasta muito da produção anterior
do (ainda) jovem escritor que, a distância de sete anos, parece repropor uma ficção
muito próxima à de Bom dia camaradas.
Até a estrutura da obra lembra a do precedente romance: os contos, que
constituem pequenas unidades separadas, aparentemente sem nexo entre elas, e
cujos temas aparentemente são diversificados, se considerados no seu conjunto
podem ser entendidos como os capítulos de um outro hipotético romance. Com
efeito, apresentam certa sequencialidade entre si, ao mesmo tempo parecendo
cronológica a ordem dos acontecimentos da vida do protagonista que comunicam,
e daí certa semelhança com uma construção romanesca da narração.
O que ressalta após uma primeira leitura é o carácter estritamente
autobiográfico das narrações, enquanto os elementos culturais e históricos,
aparecem quase sempre postos em segundo plano. Isso porém não torna
impossível colocar a obra num espaço e num tempo bem definidos, mas,
diferentemente do que acontece com o primeiro romance, a sua contextualização é
transmitida como menos importante, e não parece estar entre os objetivos finais da
obra.
Com o adjetivo possessivo “minha” logo a conotar a rua de referência para
os contos recolhidos, privam-‐se os acontecimentos duma localização real e enfatiza-‐
102
se o valor metafórico e afetivo do espaço da narração, que adquire imediatamente
toda uma série de conotações pessoais e íntimas. Contudo, essa atenção para o
espaço, físico e metafórico, parece estar em linha com o que Bill Aschcrof et alii
dizem, ou seja que “place and displacement [...] are the major concerns of all post-‐
colonial peoples [...]”114 . No caso de Ondjaki e de Os da minha rua, isso se
concretiza na escolha de um espaço urbano bem determinado e na narração da
deslocação emotiva vivida pelo menino através das muitas experiências que a vida
nesse espaço lhe possibilita.
Contudo, os limites entre biografia e ficção são continuamente desafiados
pela forma com que são mencionados os factos, pois esta concentra-‐se sobretudo
na valorização da sensibilidade que os filtra e de um “tempo fora do tempo”115, um
antigamente, que ficou na memória juntamente com as emoções de quem os viveu.
Outra vez, o ambiente escolar e o de casa, assim como o da rua de
residência e das habitações dos outros familiares, formam a moldura dentro da qual
se insertam os acontecimentos. Através das informações fornecidas pelo autor é
possível localizar algumas “estórias” na Rua Fernão Mendes Pinto, na Praia do Bispo
e na escola Juventude em Luta, ao mesmo tempo aparecendo o Cine Atlântico, o
Largo 1o de Maio, a escola Mutu Ya Kevela e o Namibe. Luanda e a Angola,
portanto, são com certeza as áreas geográficas teatro da vida do protagonista.
É possível afirmar que a angolanidade do autor passa muito mais através do
vocabulário e do estilo da sua escritura, do que pela presença dumas temáticas
políticas e/ou ideológicas relacionadas com o país e com a sua situação. O olhar do
menino, a sua voz simples e a prosa coloquial de que o autor se serve são os
elementos que dominam uma narração que ates de tudo procura a contenção e a
naturalidade, uma naturalidade fruto da elaboração duma estrutura e duma
linguagem que panteiam um certo trabalho com a língua: o texto é enriquecido não
por virtuosismos mas pelo ritmo da oralidade que busca exprimir-‐se reconstruindo
a sintaxe e o léxico da língua portuguesa falada em Angola. Silvia Albertazzi
evidencia como 114 B. ASCHCROFT, G.GRIFFITHS, H. TIFFIN, The empire writes back, Routledge, London, 1989, p. 24. 115 ONDJAKI, Os da minha rua, Lisboa, Ed. Caminho, 2008, p. 45.
103
[…] il soggetto coloniale si impossessa della lingua dell’Altro, e come
il bambino, secondo Lacan, passa dalla fase dello specchio – dal
riconoscere la propria immagine come distinta dal resto del mondo
– alla piena consapevolezza di quel mondo gestito dall’Altro,
condizionata e resa possibile dal possesso del suo linguaggio. […] Il
soggetto coloniale studia la lingua dell’Altro e se ne impossessa a
pieno: non si tratta, per lui, di acquisire uno strumento di dominio,
ma di conoscenza .116
O elemento histórico-‐social e o cultural aparecem só para oferecer uma
“desculpa” para comunicar ao leitor a intensidade emotiva com que são percebidos
o mundo e a vida, as reflexões da criança, traçadas através das palavras do homem
já adulto que as reevoca. A cidade de Luanda, Angola, a nação e as suas
problemáticas, transformam-‐se exclusivamente em sentires e em experiências,
passando desta forma a ser percebidos pelo leitor que não conhece os factos como
elementos de secundaria importância: Angola constitui o enredo dentro do qual se
coloca a narração, mas nunca se torna no tema central das escritas.
Em Os da minha rua Angola confunde-‐se entre as lembranças e os desejos
de um protagonista que está a construir a sua visão do mundo. Está-‐se portanto
perante uma tipologia narrativa que Tzvetan Todorov poderia descrever como:
[...] narrações em que a importância dada ao acontecimento é menor da
perceção que se tem dele: isso me leva a definir gnoseológica esse [..]
tipo de organização narrativa (poder-‐se-‐ia chamá-‐la também
“epistémica”).117
O espaço urbano do país pode “ser espremido” numa só palavra: infância.
Cada “estória” da colectânea é na realidade uma etapa do percurso gnosiológico, de
conhecimento do mundo, dum menino que cresce e dá forma, nesse seguir-‐se de
mudanças, à sua interioridade, à sua sensibilidade. O país é só um horizonte que
116 S. ALBERTAZZI, Lo sguardo dell’altro, Roma, Corocci, 2000, p. 49-‐50. 117 T.TODOROV, Os géneros do discurso, Lisboa, Edições 70, 1981, p. 97
104
tinge, de vez em quando, o relato da formação da consciência do protagonista e
que se oferece como teatro da sua meninice e da sua adolescência, como parte
integrante da sua pessoa e, por isso, é dado como “óbvio”.
A adoção da perspetiva infantil desvela o mundo afastando-‐se de qualquer
conotação ideológica e o autor, apesar de fornecer os dados necessários à
contextualização das narrações, parece estar mais preocupado com devolver ao
leitor a perceção do menino do que com a afirmação da sua identidade angolana ou
de uma realidade urbana precária também no seu caminho em direção da idade
adulta.
Em 2007 a obra recebeu um dos mais ilustres reconhecimentos em Portugal,
isto é, o Grande Prémio do conto Camilo Castelo Branco, consagrando assim
também o autor como sendo totalmente apto ao público português e confirmando
como esta colectânea de “estórias” se adapte com facilidade à leitura por parte de
um público vasto e não necessariamente angolano.
A base autobiográfica, o olhar infantil, a predileção por uma linguagem
juvenil e inocente, até ingénua, a escassez de comentários ideologicamente
conotados, a falta de referencias diretas à situação do país, a ausência de dados
históricos, tudo isso faz de maneira com que o conteúdo da obra não coincida
muito com os propósitos declarados pelos organizadores dos programas de ensino,
que a aconselham: as especificidades culturais são filtradas e até mitigadas e as
diversidades linguísticas simplificadas não obstante a presença do registo oral, tudo
confluindo na produção duma livro acessível e pouco complexo.
Não surpreende, aliás, dados os pressupostos sobre que se assentam
determinadas atitudes do mercado português, que a obra tivera logo após a
publicação um difuso reconhecimento e a legitimação dos júris e do público em
geral.
III.4 Quantas madrugadas tem a noite
105
Contudo, nem todas as publicações do autor tiveram a mesma sorte na
receção. Se por um lado Os da minha rua é uma leitura a que os alunos da escola
primária e média têm fácil acesso, promovida e bem aceite em Portugal, outra não
recebeu o mesmo tratamento.
Romance de 2004, Quantas madrugadas tem a noite não foi reconhecida
com nenhum prémio e raramente figura entre os trabalhos mais mencionados e
analisados do autor, não obstante o seu potencial e efetivo valor cultural e literário
e a aguda interpretação ficcional da contemporaneidade angolana que oferece. A
narração desenvolve-‐se no arco de uma noite, isto é a partir duma tarde até a
madrugada seguinte (come pode sugerir o título) entre uma personagem narradora
e um seu anónimo e invisível interlocutor que nunca fala.
A narração progride em dois níveis. O primeiro nível é constituído pelas duas
personagens sentadas numa tasca a beber (muita) cerveja, enquanto o segundo
nível é dominado pelo soliloquio do narrador nessa mesma situação. Essa narração,
segundo as primeiras declarações da personagem falante, refere-‐se a uma “pura
verdade, só acontecimentos factuais mesmo”118 em relação a um tal AdolfoDido
que morreu em circunstâncias inexplicáveis: AdolfoDido “tinha campado, soubemos
só assim, mujimbo de boca-‐em-‐boca”119, descobrindo-‐se só no fim a causa da dita
morte, i.e. uma carraça vinda do cão da KotaDasAbelhas. A inexplicabilidade dos
factos e a ausência e procura constante do corpo do morto, criam desde o princípio
uma série de dúvidas em torno da veridicidade dos acontecimentos, que, porém,
nunca encontram resposta a não ser no final da narração. O seu desenvolvimento,
aliás, e a absurdidade das personagens e dos factos, juntamente com as digressões
com que se intervala o relato, conferem ainda mais inverosimilhança a toda a
narração.
A obra é estruturada em oito capítulos e o tempo da narração compreende
exatamente o período entre as “primeiras ngalas” (as primeiras garrafas, também
título do primeiro capítulo) e as últimas “birras”, e centra-‐se nos acontecimentos
que seguem à morte de AdolfoDido, até ao momento em que finalmente o narrador 118 ONDJAKI, Quantas madrugadas tem a noite, Caminho, Mirandela, 2004, p. 14. 119 Ibid., p. 22.
106
se apresenta e o leitor descobre que é o próprio protagonista, de volta desde o céu,
a estar sentado lá naquela tasca a contar a sua história semifabulosa.
As personagens são logo apresentadas no capítulo de abertura, cada uma
dotada de aspectos caricaturais cujos nos nomes deixam intuir mas cujas
particularidades se entendem só aos bocadinhos durante o relatos dos incríveis
acontecimentos. Entram assim em cena o Cão, a KotaDasAbelhas, o BurkinaFaçam,
o Jaí e o protagonista.
O primeiro é o enorme cão que reside na sala da KotaDaAbelhas, “que não
era um cão, mas o Cão, uma besta, grande animal de mangonha e sono, todos dias,
o muadiê habitava a melhor parte do cubíco”120, rei da sala e da casa, enquanto a
KotaDasAbelhas, sua dona que na realidade é dominada por ele, é uma senhora que
vive numa casa invadida por abelhas: essas um dia invadiram a sua varada e a
mulher, esperta, passou a comandá-‐las depois de ter matado a abelha-‐rainha, pelo
que essas acabaram por produzir só para ela um mel delicioso.
A casa da KotaDasAbelhas, frequentemente visitada por AdolfoDido, é logo
apresentada e com ela é sugerido também como “todos desconfiamos que foi ali,
nessas idas dele, que o Adolfo pegou então a doença que lhe foi matar”, a tal
carraça que lhe passou a febre e que o levou à rápida morte.
O BurkinaFaçam e o Jaí são os amigos de AdolfoDido, o primeiro sendo um
“ndengue muito craque” e que “na escada do tempo, esqueceu de crescer”121 (era
um anão), cujo nome vinha da preguiça que sempre o caracterizara; o segundo
amigo, angolano albino, ganhara o seu nome a causa duma frase que sempre
repetia nos jogos de futebol: “Venho ja aí, venho já aí...”122. Também o nome do
protagonista gera algumas hilaridades, e não é difícil encontrar ao longo da
narração pessoas que se referem a ele como “o Senhor Fodido”.
A sua morte passa a dominar a narrativa a partir do segundo capítulo,
denominado “Morte morrida, de pessoa”: num dia de abundante e insólita chuva
(atribuída à morte do feiticeiro Mbimbi) AdolfoDido é encontrado morto em casa
120 Ibid., p. 14. 121 Ibid., p. 15 122 Ibid., p. 28.
107
por causas desconhecidas e essa morte repentina e inesperada dá vida a uma
grande “maka” (problema, questão) que se protrai durante toda a parte central do
relato: KiBebucha e DonaDivina, a amante e a antiga esposa do morto, começam a
disputar-‐se a condição de viúva, e o motivo da briga entre as duas “candidatas” tem
a ver com uma pensão que o governo passaria a conceder às esposas dos antigos
combatentes:
[...] Elas eram espertas então: viúva que comprovasse a viuvez mesmo
pura, nos laços com o ex-‐combatente, ia receber a pensão do gajo, mais
um dinheiro extra pela morte do falecido, mais uma viatura. [...] A
notícia toda: que sendo os ex-‐combatentes pessoas civis mas ex-‐
militares pra sempre afectos aos órgãos de estado, quando o ex-‐
combatente campa, a mulher dele, esposa legitimada nos documentos
ou nas testemunhas, ganha automaticamente o estututo de viúva de
estado.123
A disputa entre as duas senhoras assemelha-‐se muito com uma telenovela
brasileira, pelo seguir-‐se de acontecimentos tragicómicos, entre o verídico e o
surreal: DonaDivina, contando com auxílio de militares influentes, retira o corpo do
marido da morgue, levando-‐o para o Hospital Militar, para que os médicos possam
efetuar uma autópsia. Em reação, Kibebucha, acompanhada de uma advogada,
consegue a tirar dali do corpo e levá-‐lo a uns funcionários para ulteriores
averiguações. Logo, a disputa chega à esfera jurídica, sendo tarefa da
JuízaMeritíssima decidir quem seria a legítima esposa do morto, dado que nenhuma
das duas mulheres quer ceder a pensão a outra.
Entretanto, o caso de AdolfoDido torna-‐se de interesse nacional e na
imprensa começam a aparecer histórias fantasiosas sobre o passado do “ex-‐
combatente”, que chegara, inclusive, a combater no Namibe, região desértica ao sul
de Angola. Finalmente, porém, é o mesmo AdolfoDidoa a pôr fim à confusão e, com
grande desilusão das ex-‐viúvias, retorna à vida.
123 Ibid., p. 76.
108
Ao lado dessa intriga, o narrador/protagonista apresenta uma larga série de
outras histórias absurdamente divertidas que tingem toda a narração de ainda mais
humorismo e surrealismo: particularmente simpática é a narração da “primeira
reunião do SNP, sigla puramente inventada pelo Burkina, Sindicato Nacional das
Prostitutas”124, sindicato fundado por duas mulheres com nomes sugestivos, Eva e
Madalena, através o qual são ironizados os rituais e as formalidades do povo
angolano e a seriedade com que são vividas certas absurdidades que o
caracterizam.
Apesar de ter uma trama rica e divertida, esta obra de Ondjaki permite ao
leitor “espreitar” no interior da cultura angolana, quer através das personagens que
no seu ser absurdas mantém sempre um véu verídico, prova das muitas
personalidades e caracteres do povo, quer através dum estilo e duma linguagem
estritamente coloquiais, ligadas às gírias e às falas do país africano. Este romance é,
no conjunto dos publicados pelo autor, um dois mais coloridos em termos de
vocabulário, facto verificável nas cinco páginas de glossário finais em que são
traduzidos os termos do kimbundu e do umbundu, nas frequentes intervenções em
itálico, nos que parecem ser estropiamentos da norma padrão da língua portuguesa
(como pode ser a falta de artigos), enfim, na angolanidade comunicativa da
linguagem escolhida. Esta falta de tradução pode ser vista como
[...] such uses of language as untranslated words do have an important
function in inscribing diffference. They signify a certain cultural
experience which they cannot hope to reproduce but whose difference is
validated by the new situation. In this sense they are directly metonymic
of that cultural difference which is imputed by the linguistic variation. In
fact they are a specific formo f metonymic figure: the synecdoche.125
Em adição, é possível vislumbrar uma imagem de Angola cujo quotidiano é
revelado como sendo já imerso num contexto globalizado, mas ainda em processo
de mudança. As instabilidades políticas, a paz tão desejada mas nunca realizada, as
124 Ibid., p. 104. 125 B. ASCHCROFT, G. GRIFFITHS, H. TIFFIN, Op. Cit., p. 53.
109
más condições de vida da maioria da população, os interesses económicos das
grandes potências mundiais, os problemas raciais, etc., são todas temáticas que de
vez em quando aparecem ao longo da narração, frequentemente em fortes tons
críticos ou satíricos. Sem privar o texto de valor poético e literário, e sempre
permanecendo no âmbito do ficcional, a obra oferece uma imagem de uma Angola,
e em particular de uma Luanda, contemporâneas em que todas as contradições e as
dificuldades encontram a sua expressão, sem filtros ou diminuições.
A falta de infraestruturas da capital angolana fica patente e esta, isolada,
sofre as consequências do mau tempo enquanto as suas riquezas minerais,
principalmente o petróleo e o diamante, são exploradas por empresas estrangeiras,
que pouco se importam com os problemas sociais e locais. Pelo texto, entrevê-‐se
um mundo que olha à Angola somente em os casos de guerra e fome, dois temas a
que a comunidade internacional é sensível, mantendo-‐se porém alheios a
problemas mais simples, como pode ser o das infraestruturas..
Uma breve digressão é dedicada também a Portugal, para o qual não
AdolfoDido poupa palavras:
Eu já tive nas europas, já te falei; aquilo é de mais: cor de pele,
avilo?, pode te degraçar. Sabes o que é um gajo andar assim
despreocupado, mas aqui é na banda, agora chegar mesmo na tuga,
tão te olhar tipo esse gato preto eu te falei, o feiticeiro? Eu mesmo,
ngapa agora só porque nasci escuro e um ngueta assim todo
europeu, mais matumbo que eu, a me olhar do ponto das vistas
racistas dele?126
A tão característica tolerância portuguesa não encontra grande confirmação nessas
afirmações, e o narrador até conclui que: “A tuga faz mal, avilo [...] Nada, a tuga, até
num vale a pena...!”127 . Na realidade, é interessante notar que esse tipo de
considerações são insertadas numa reflexão mais profunda sobre as diferenças
culturais, e o seu papel na perceção que cada povo tem dos outros.
126 Ibid., p. 115. 127 Ibid., p. 115.
110
Além disso, outras questões sociais são abordadas ao longo narrativa, entre
elas o preconceito contra albinos e a condição precária dos sistemas públicos de
educação e saúde. Ondjaki mostra, ainda, uma Angola que se abre às produções
culturais brasileiras, a começar pelas telenovelas, que, há décadas, fazem parte da
vida luandense (e que aparecem também na prosa ambientada na sua juventude):
ao longo da narrativa, são reproduzidas frases criativas expressas por Odorico
Paraguaçu, a folclórica personagem da telenovela O Bem Amado, do dramaturgo
Dias Gomes, que aparece numerosas vezes sempre conotada positivamente.
Todos os elementos sociais e culturais evidenciados em Quantas
madrugadas tem a noite parecem convergir em direção duma crítica à dúbia
política da Angola pós-‐independência. O relato principal da obra, que mostra a
disputa entre as duas senhoras pela pensão oferecida pelo Estado, ilustra como as
escolhas políticas na altura estavam presas ao passado, e como isso impedia a
construção de uma nova história no território angolano. Nesse sentido, são
mostradas as contradições do regime implantado pelo MPLA, que, sob a bandeira
do socialismo, não deixou de produzir desigualdades e de aproveitar do povo: uma
intervenção do Jaí expressa a recusa do individualismo que se tinha implantado,
propondo o fim de “leninismos mascarados de interesses mais que pessoais”128 e
revelando que “dentro das igualdades parece há sempre uns mais iguais que os
outros”129.
Verdadeira obra de ficção, vivificada por numerosas referências a outros
autores como Ana Paula Tavares, Guimarães Rosa e Manoel de Barros, ou à obra de
Luandino Vieira João Vêncio: os seus amores (1979), e cuja trama principal até
parece lembrar as Memórias póstumas de Brás Cubas de Machado de Assis, este
trabalho de Ondjaki mostra uma Angola “dos angolanos”, contada como o hábito
quer em frente dumas “birras”, à noite, com todas a sua extravagância e
contradição.
Provavelmente pela leitura pouco fluida causada por um vocabulário e por
uma sintaxe que reproduzem estritamente a oralidade, talvez também pelas 128 Ibid., p. 170. 129 Ibid., p. 171.
111
opiniões poucos “diplomáticas” nela manifestadas, na base da observação das
instâncias de legitimação parece que em Portugal não se assistiu a um grande êxito
da obra. Se se tem em consideração o que J. C. Venâncio afirma, ou seja, que “é um
erro crasso analisar um texto literário independentemente do respectivo contexto
cultural e político”130 tudo confirma que o tal erro, em Portugal, foi amplamente
cometido.
III.5 Os Transparentes
Após um largo percurso dedicado à palavra escrita, com essa última obra,
saída em Portugal em outubro de 2012, em Angola em janeiro de 2013 e a meados
desse ano também no Brasil, Ondjaki logra finalmente demostrar plenamente a
maturidade criativa e a profunda preocupação social que foi construindo ao longo
dos anos. Marcada por uma estrutura pouco canónica, uma sintaxe extravagante e
um enredo em que um realismo mágico e inverosímil encontra a sua livre expressão
ao lado de um penetrante e perspicaz retrato da sociedade luandense, Os
Transparentes oferece-‐se ao público como um dos melhores romances em língua
portuguesa de 2012131.
De novo aparece Luanda como pano de fundo das vicissitudes contadas, a
Luanda atual da pós-‐guerra, em que a democracia encontra a sua peculiar maneira
de se manifestar numa cidade entregue ao progresso e aos grandes negócios. É
esta, enfim, uma Luanda que pode servir de alegoria para todas as grandes cidades
espalhadas pelo mundo, que vivem embebidas nas contradições e nas injustiças.
Mantendo-‐se fiel às especificidades da capital angolana, à sua “personalidade” e às
130 J. C. VENÂNCIO, Literatura versus sociedade: uma visão antropológica do destino angolano, Lisboa, Vega, 1992, p. 26. 131 Segundo os críticos do Ípsilon, o jornal cultural do Público, Os Transparentes é mesmo de nomear entre os vinte melhores livros publicados no ano passado. A obra de Ondjaki aparece em nona posição acompanhada do comentário: “A maturidade com que Ondjaki trabalha o português angolano é digna dos melhores ourives da língua”. (em http://www.publico.pt/cultura/noticia/os-‐melhores-‐livros-‐de-‐2012-‐para-‐o-‐ipsilon-‐1578633, último acesso: 31/05/2013).
112
tipologias humanas que a povoam, Ondjaki propõe a sua visão ficcionalizada, com
personagens extravagantes e uma vida frenética, através das quais propõe uma
reflexão em torno das realidades urbanas em geral e das relações humanas que
nelas se tecem.
O escritor angolano dá assim prova do que antes só foi possível intuir,
mostrando e demostrando o seu forte interesse pelas vicissitudes de uma Angola
atual, pelo seu futuro, pelos abusos e pela corrupção que tanto afligem a sua
sociedade e o povo e denotam os detentores do poder. Com um poderoso e fiel
retrato das absurdidades duma capital entregue ao Partido e dum povo
constrangido à fome e à sobrevivência, que porém nunca perde o seu bom humor,
nesta última obra o leitor consegue ter um contacto com os paradoxos da realidade
luandense, com as desorganizações e as injustiças mais difusas, com uma
modernidade destrutiva, porém, sem ter que renunciar ao riso e ao gozo ou à magia
de elementos totalmente fantásticas e ficcionais, cujo poder simbólico acaba por
estar ainda mais carregado.
Ondjaki, de facto, parte de pressupostos totalmente literários para propor
aquela que parece uma análise sociológica dos cidadãos da capital e do povo
angolano em geral, insertados num contexto e num espaço verosímeis e
reconhecíveis, obtendo desta forma um romance envolvente e conscientemente
construído, com um forte valor alegórico, capaz de mover reflexões válidas
universalmente, atuais para todos.
As numerosas personagens oferecem-‐se como representativas das diversas
camadas da sociedade e das múltiplas faces do país, teatralizando a
contemporaneidade e as problemáticas que acompanham a nação desde a
Independência. O estilo irónico e ao mesmo tempo carregado de lirismo é o marco
de uma narração que se constrói na alternância de momentos satíricos, com outros
de grande hilaridade, e outros ainda de sensualidade e magia, cuja moldura é uma
Luanda que está no limite entre o trágico e o surreal.
Ondjaki, desta forma, consegue abrir definitivamente o caminho em direção
duma nova era da literatura angolana, em que são abandonadas as antigas batalhas
113
anticoloniais ou identitárias e são assumidos completamente a cultura, o passado e
os paradoxos dum espaço que ainda pede por atenção e precisa do trabalho de
todos, intelectuais e não, para limitar os danos de um sistema, a democracia, que
nunca se pode considerar concluído. Embora as marcas pós-‐modernas continuem
visíveis, essa preocupação com o país natal, a seriedade dos assuntos propostos e a
pertinência das reflexões que abre, ajudam a relacionar a obra com a literatura pós-‐
colonial.
Cabe aos intelectuais chamar à atenção as problemáticas situações do dia a
dia, da política e da exploração ambiental que Angola sofreu após a independência,
as utopias não realizadas, as esperanças desiludidas dum povo a que foi prometida
a liberdade e que acabou por viver outro jugo e outras privações. Embora os
intelectuais constituam só uma pequena parte da sociedade, José Carlos Venâncio
explica que
[...] quando, por exemplo, falamos de literatura angolana não nos
referimos ao todo político de Angola mas sim a uma minoria que a produz
e a entende. Contudo, continuamos a identificar essa produção como
angolana. Fazêmo-‐lo porque essa minoria por razões históricas e
revolucionárias ganhou legitimidade para falar em nome da maioria.132
Assim, na perspetiva aqui evidenciada, Ondjaki demonstra ter abraçado e
respeitado completamente as tarefas para que tanto lutaram os escritores “mais-‐
velhos”, que combateram (alguns mesmo com as armas) também para que as suas
vozes ganhassem a legitimação necessária para que se conseguisse ter em conta das
absurdidades que frequentemente teatralizavam através da ficção. Ondjaki, com
esta obra, declara finamente a sua pertencia a essa minoria -‐ uma minoria que
sendo tal goza também de certos privilégios -‐, pois demostra ter adquirido um
inegável poder comunicativo e tê-‐lo posto ao serviço de umas reflexões cuja
intensidade e pertinência as tornam completamente fieis à cultura e ao país desde
que são levantadas.
132 J. C. VENÂNCIO, Op. Cit., p. 26.
114
A Luanda que se lê em Os Transparentes é um espaço ficcional, contudo
nunca deformado num sentido abusivo, em que a mistura do registo humorístico, o
satírico, o irónico e o coloquial com o lírico devolve ao leitor uma narração rica em
diálogos e pequenas anedotas, em cortantes observações e críticas, cheia de
conotações políticas e sociais. Assim, Luanda não é privada da sua peculiar e irónica
personalidade, do seu imortal espírito de sobrevivência, da sua constante vontade
de rir e de gozar da vida apesar das dificuldades, ainda por cima das suas nuance
surreais, tudo confluindo num retrato muito mais verídico do que ficcional.
Com maestria, maturidade e uma discreta quantidade de fantasia Ondjaki
logra com esta obra ultrapassar os limites da sua produção anterior, os
desequilíbrios estilísticos e comunicativos que dificultaram a sua compreensão e
apreciação dum lado, ou que facilitaram a sua inserção no mercado português, do
outro. Logra construir uma narração complexa mas perfeitamente encadeada, rica
em personagens e situações alegóricas e carregada dum agudo cuidado estético.
Com as palavras de Pires Laranjeira pode-‐se portanto afirmar que
definitivamente:
Chegou a vez de novos escritores escolherem novas vias estéticas,
livres de ditames neo-‐corporativistas, recuperando sobretudo a
capacidade imagética, metafórica e simbólica da palavra, afastadas
que estavam as restrições institucionais, ideológicas e políticas.133
Com este livro são portanto abarcadas aquelas temáticas pós-‐coloniais caras
à maioria dos autores procedentes da África lusófona, entre as quais aparecem com
frequência uma sólida consciência da história e das novas guerra internas, uma
vontade estética de fidelidade à identidade nacional, a crítica aos novos poderes
políticos, sociais, económicos e culturais, a afirmação da livre criatividade e
expressão, a representação das novas classes emergidas com as independências, a
multiculturalidade das realidades urbanas, tudo através dum pessoalíssimo estilo,
prova não indiferente de uma habilidade linguística e criativa agora madura.
133 J. L. PIRES LARANJEIRA, Ensaios afro-‐literários, Ed. Novo Imbondeiro, Lisboa, 2005, p. 81.
115
O livro, que ainda está a ser recebido em Portugal, demonstra como o autor
conseguiu, ao longo dos anos, encontrar uma forma totalmente literária e pessoal
para comunicar com a grande diversidade de leitores que constituem o público
lusófono umas mensagens que ultrapassam o fenómeno estético e se referem à
realidade da sociedade angolana contemporânea, tornando acessível a sua
compreensão, ao mesmo tempo respeitando a sua identidade diferencial.
O complexo entrecho que foi construindo-‐se no arco de dois anos, de 2009 a
2011, na realidade inspira-‐se num antigo conto breve do autor, escrito cerca de
2001, em que aparecia uma personagem que descobria que podia ultrapassar o
limite da fome não comendo, dado que, superadas as iniciais dores de estômago,
aparentemente acabava por ficar bem. O que acontecia, porém, é que a causa
desse decisão de não ingerir absolutamente nada, o corpo começava a transformar-‐
se, ficando cada dia mais leve e transparente.
No conto originário, o protagonista (qua naquela altura ainda não se
chamava Odonoato) envolvia também a sua mulher e seus filhos nessa bizarra
experiência convencendo-‐os que aquela era a melhor maneira para poupar dados
os recursos económico já muito escassos da família, só que eles, ao contrário dele,
logo abandonam os absurdos intentos e recomeçam a nutrir-‐se, deixando o homem
sozinho a entregar-‐se completamente à transparência.
Motor da narração é o problema da fome e as suas consequências, e
protagonista é uma família em dificuldade e que a causa dessa dificuldade se
entrega a soluções absurdas, cujos inverosímeis resultados ficam como metáfora
duma condição marginal. A partir desta ideia, portanto, Ondjaki começou a
construir uma nova narração em que confluiu tudo o que ele foi vendo e ouvindo
nos anos seguintes, tomando inspiração na realidade angolana, nos amigos e nos
familiares durante uma altura marcada pelo fim da guerra civil e pela reconstrução
do país.
Em Os transparentes à história de Odonato juntam-‐se outras tantas
narrações de personagens que se movem em paralelo e se entrecruzam todas à
volta dum prédio labiríntico, em pleno centro de Luanda, cujas paredes estão
116
sempre a despejar uma estranha água com fortes poderes rejuvenescedores e que
se recolhe toda no antigo buraco no rés do chão. Cada um dos sete andares dessa
esquisita construção dá abrigo a uma ou mais personagens protagonistas do
romance: MariaComForça, JoãoDevagar, Paizinho, Edú, Nelucha, o CamaradaMudo,
Xilisbaba, Amarelinha, AvóKunjikise e o próprio Odonato são os inquilinos estáveis
desta misteriosa propriedade. Outras personagens aparecem lá com frequência e
graças à maestria do autor cada vida está entrelaçada com as outras. Entre os
“hóspedes” do prédio figuram o VendedorDeConchas e o Cego, o Carteiro, os fiscais
DestaVez e DaOutra, a jornalista da BBC, e até o próprio Ministro. Esta colorida e
vivaz galeria de personagens atua, ao lado de muitas outras, dentro dum enredo
complexo em que acontecimentos totalmente plausíveis se realizam ao lado de
eventos repletos de surrealismo (a partir da história de Odonato).
O exórdio da narração é representado por uma anacronia, ou para melhor
dizer uma prolepse, na base da qual a escrita se abre com a descrição da que será a
cena final de toda a história: numa Luanda a arder, engolida por enormes labaredas,
o VededorDeConchas e o Cego estão a fugir das chamas, e este último pede ao
amigo que tente explicar-‐lhe qual é a cor desse fogo. O livro começa com uma
pergunta, à qual o leitor poderá dar resposta só no fim da narração, precisamente
nas últimas palavras nela contidas: “é um vermelho devagarinho, mais-‐velho... é
isso: um vermelho-‐devagarinho...”134. Após essa primeira (e última) imagem, um
narrador que se presume ser heterodiegético, passa logo a apresentar o misterioso
prédio, teatro de tantos eventos fantásticos, e acompanha o leitor, com uma escrita
fluida que permite dar espaço à multidão de vozes que animam e povoam a
história, através dos numerosos e frequentemente hilários acontecimentos nela
referidos, até fechar uma imaginária circunferência com a mesma imagem que
tinha dado inicio à narração.
A diegese é estruturada em sete partes, intervaladas por breves
intervenções que se distinguem até pela cor da folha utilizada (às tradicionais
páginas brancas substituem-‐se umas páginas pretas) e em que são reportadas
134 ONDJAKI, Os transparentes, Editorial Caminho, Alfragide, 2012, p. 425.
117
algumas informações que vão a integrar a história e lhe conferem uma base quase
verídica. A sintaxe original que vê os parágrafos divididos de forma insólita, através
de uns espaços vazios entre eles, e os períodos raramente a começar por letra
maiúscula não obstante a pontuação o queira, lembram muito os recursos estilístico
próprios dos autores pós-‐modernos.
Em relação à ligação entre o pós-‐colonial e o pós-‐moderno Silvia Albertazzi
explica como, apesar da maioria dos autores rejeitarem qualquer observação que
gere confusão entre os dois movimentos, entre os dois existem efetivamente
algumas afinidades:
A tutta prima, appare evidente como parecchi temi e modi siano
comuni tanto al postmoderno quanto al postcolonial. Entrambi
propogono, per esempio, opere frammentarie, poichè, diffidando di
qualsiasi verità ultima, non possono credere che al frammento; di
conseguenza, l’indeterminatezza è alla base delle loro produzioni,
idee, interpretazioni.135
A fragmentação do discurso narrativo seria, na base das observações da
Albertazzi, sinal do sentir do autor, que rejeitaria qualquer verdade definitiva e
optaria pela indeterminação duma estrutura não canónica e livre. No caso de Os
transparentes à fragmentariedade da montagem corresponde o conjunto de
sequências narrativas que aliviam a leitura e conferem à narração um enfoque de
estampo cinematográfico. Desta forma, ao leitor é oferecida uma construção
narrativa que remete para uma realidade plural, formada por múltiplas facetas e
pela diversidade das subjetividades que a moldam.
Esta obra-‐prima foi muito bem acolhida no ambiente literário português,
bem como no angolano e no brasileiro. É difícil não apreciar o trabalho levado o
cabo, não apoiar as preocupações políticas e ecológicas levantas, e não reconhecer
a dignidade com que os perfis dos transparentes, ou subalternos, são traçados. É
indiscutível, finalmente, que o autor neste livro toma uma clara posição crítica em
135 S. ALBERTAZZI, Op. Cit., p. 151.
118
relação ao regime político angolano, à administração da riqueza, às disparidades
sociais que se acentuaram nos trinta anos de independência.
III.6 Mercado editorial e construção da imagem pública
Ao falar de receção da obra deste jovem e muito ativo autor angolano, só se
pode partir considerando o papel central desempenhado pela editora a que está
ligado na construção da sua imagem pública. Uma imagem pública bem construída
concorre, juntamente com outros fatores, também à afirmação do nome do autor
que, segundo a teoria dos campos de Pierre Bourdieu, representa o primeiro passo
para a acumulação de capital de consagração, fundamental, à sua vez, para ter o
poder de consagrar objetos (os livros, nesse caso) e de extrair os lucros ligados a
essa operação. No mercado dos bens simbólicos é portanto essencial que autor e
grupo editorial tenham um poder de consagração consolidado.
A Editorial Caminho, hoje do grupo Leya, foi fundada em 1975 por Francisco
Melo e Vítor Branco, aos quais se juntou mais tarde Zefirino Coelho, e nasceu como
editora declaradamente afiliada do PCP (Partido Comunista Português). Começou a
publicar em 1977 e a sua primeira série de ficção data de 1979 com uma coletânea
de sete autores. Dada a declarada posição política e o particular momento histórico
que com muita probabilidade favoreceu o seu aparecimento, um dos objetivos dos
seus fundadores foi o de tomar parte ativa numa sociedade portuguesa ainda em
renovação, optando para fazer isso sobretudo para as edições na área da educação:
por isso, inicialmente um maior interesse foi dirigido às publicações para as escolas,
como os manuais escolares e os livros pedagógicos. O horizonte das suas
publicações foi ampliado num segundo tempo, provavelmente como consequência
dos câmbios a nível de leitores e de interesses, embora esse caminho originário
nunca fosse totalmente abandonado.
Contudo, desde os primeiros anos de atividade até aos tempos mais
recentes, os interesses editoriais da Caminho abrangeram géneros como os ensaios
de economia e de marketing, a poesia, a literatura infantil, assim como o género
119
policial e a ficção científica. Embora em seguida não estivesse mais associada
diretamente com o Partido Comunista, certa ideologia de estampo esquerdista
continuou a influenciar as suas escolhas editoriais por muito tempo; isso não lhe
impediu de crescer rapidamente, sobretudo na área da publicação de autores
portugueses contemporâneos. E não somente dos procedentes de Portugal, dado o
que declara a mesma editora:
Na Editorial Caminho ocupam também um lugar de destaque as
literaturas africanas de língua portuguesa. Autores como Mia Couto,
José Craveirinha, Germano Almeida, Manuel Lopes, Ondjaki estão
incluídos no catálogo da Editora. A criação de uma editora em
Moçambique – Editorial Ndjira – e outra em Angola – Editorial Nzila –
reforçaram a importância da Caminho nesta área.136
Os interesses editoriais da Caminho para com os autores procedentes da
África lusófona são patentes, e evidentes são também os seus investimentos nesta
área particular. A regularidade na divulgação e a preocupação declarada com todo o
conjunto de autores que vai formando esse grupo, com certeza garante-‐lhe
credibilidade e confiança (noutras palavra, um bom poder de consagração), até que
à partida se aceitam os produtos procedentes desta área escolhidos pelos seus
editores e se duvida pouco da qualidade literária dessas obras.
No caso de Ondjaki, portanto, a sua receção favorável e a legitimação dos
seus trabalhos parece ser em parte uma consequência direta do constante trabalho
demonstrado pela editora na circulação dos textos de autores africanos. O próprio
escritor, numa entrevista concedida por e-‐mail especificamente para a presente
pesquisa, afirma que
Em Portugal, foi assim: enviei por correio, para a Caminho, um livro de
contos. E após dois anos e meio, publicaram. Se foi complicado? Não
sei. Enviei por correio, aguardei. Queria muito que fosse a Caminho, já
136 http://www.caminho.leya.com/pt/gca/editora/ (último acesso: 15/08/2013).
120
tinham outros autores africanos, mas pensei que fosse difícil, porque
eram contos. Acho que eles gostaram.137
A escolha do próprio autor de tentar ser publicado em Portugal por essa editora
parece depender portanto da fama ganha pela Caminho graças ao precedente
trabalho com as escritas procedentes de África. De facto, ele próprio declarou
também que “basta ver, por exemplo, a coleção de autores africanos da Caminho.
Normalmente são de nível muito elevado” 138 , manifestando exatamente a
convicção de que se está a falar.
Isso, contudo, pode tornar-‐se num fator enganador, dado que a grande
editora em algumas ocasiões já demonstrou uma atitude que poderia ser vista
alinhada às ideologias lusófonas e assimilacionistas, as mesmas portanto que
acabam por tirar originalidade às obras e aos autores apresentados apesar da
“qualidade” dos autores (que, aliás, é um fator frágil e relativo, e culturalmente
conotado). Inserindo-‐se no mercado com a proposta de autores homeoglotas, a
Editorial Caminho pode ter contribuído para a criação de uma ideia e uma imagem
deles que acaba por não ajudar a real compreensão das suas obras, nem sequer a
correta perceção das relações entre Portugal e a África lusófona.
Antes da coleção Outras margens (Autores estrangeiros de língua
portuguesa), por exemplo, essa mesma editora portuguesa organizou outra coleção
titulada Uma Terra Sem Amos (O mundo inteiro numa colecção de grandes
autores): o propósito materializou-‐se na publicação de obras de autores
procedentes de todo o mundo cujo denominador comum era ter fundido o espírito
de luta com a literatura. Agora, o que preocupa do projeto não são as intenções que
o moveram ou os autores que dela fazem parte, pois é sabido que a literatura é e já
foi utilizada frequentemente para apoiar as lutas sociais e políticas (sobretudo em
nações em construção ou me crise). O que deixa um pouco perplexos é o título
escolhido, com o qual se remarca vigorosamente a condição oprimida que certos
espaços do globo tiveram que sofrer: não obstante na coleção apareçam obras
137 Entrevista inédita ao autor realizada em fevereiro de 2013 (ver Apêndice). 138 Ibid.
121
ligada à luta política ou uma literatura usada por fins não só exclusivamente
estéticos, se se continuar a construir um discurso em que a antiga condição de
opressão aparece como assunto central (neste caso a referência à presença de
“amos”, embora através duma negação) não se contribuirá ao afastamento duma
visão ligada ao passado e as mesmas boas intenções divulgativas continuarão a
reproduzir os antigos laços de poder.
Portanto, em Portugal não é possível aceitar às cegas as escolhas editoriais,
dado que por um lado proporcionam uma imagem dos autores que publicam em
parte calibrada nos ideais ligados ao discurso oficial – e portanto assimilacionistas e
mitigadores – por exemplo através de escolhas de títulos ambíguos cuja leitura
pode mostrar algumas suas fragilidades; por outro, publicitam tão vigorosamente
os seus contratados, e com desequilíbrios tão grandes até dentro do conjunto de
obras desses últimos, que parece quase óbvio que eles recebam tanta atenção
mediática, daí gerando-‐se a conseguinte desconfiança académica que relativiza o
seu papel legitimador.
Algumas outras considerações surgem, aliás, se se observa o sistema
escolhido pela Caminho para publicitar os seus autores quando saem com os novos
trabalhos. Em geral, é sabido que as novas propostas são ofertas ao mercado entre
outubro e novembro. Neste período, próximo das férias de Natal, a venda de livros
aumenta notavelmente e os críticos estão mais atentes ao mercado: não
surpreende a escolha de propor os novos produtos nesta altura do ano.
A Editorial Caminho, que conhece e respeita essa regras de mercado, para
favorecer a promoção dos seus contratados organiza sempre encontros com o
autor em proximidade da saída dos seus trabalhos, durante os quais os livros são
apresentados, assinados e em parte lidos pelos seus próprios criadores – que assim
entram em contacto direto com o seu público de aficionados. Interessa-‐se também
de contactar as maiores revistas especializadas para as rituais entrevistas, ou
organizar a promoção televisiva da obra nos maiores canais nacionais.
Com Os Transparentes de Ondjaki, de facto, aconteceu mesmo isso: a obra
saiu oficialmente para o mercado nos finais de outubro de 2012, altura em que o
122
autor veio a Portugal para um tour de lançamentos e encontros promocionais
espalhados por todo o país, quer em livrarias, bibliotecas ou departamentos
universitários. Na mesma altura, Ondjaki apareceu também come mais frequência
em numerosas entrevistas, a mais importante a do Jornal de Letras, que até
apresentou uma fotografia do autor ao lado da escritora Maria do Rosário
Pedreira139 como capa da edição, a indicar a relevância do artigo dentro da edição
em questão.
A esses aspetos da promoção da obra de que toma conta a editora
portuguesa, são de juntar os eventos a que o autor participou no arco da sua
permanência em Portugal, entre os quais o mais interessante foi o “Escritas sem
rede” com Joana Bértholo – escritora portuguesa também ligada à Editorial
Caminho – no Primeiro Andar de Lisboa no dia 22 de novembro de 2012140 (ao qual
também eu tive o prazer de assistir). Os dois escritores entretiveram o público com
um conto escrito “a quatro mãos” ao vivo e projetado na parede da sala, lido ao
público por Ana Reis e acompanhado pela música de Jéremie (DjiZem).
Todos os eventos a que Ondjaki toma parte são sempre publicitados pela
editora, quer no seu site, quer no site do grupo Leya, que assim dá prova de
acompanhar continuamente o autor nas suas participações e nos seus lançamentos,
também os que têm sede fora de Portugal, como por exemplo foi para o
lançamento de Os Transparentes em Luanda.
A imagem pública do autor, por fim, em parte é proporcionada e cuidada
pela editora, que toma conta dos aspetos mais relevantes da sua projeção para o
público. A lógica económica do sistema de promoção da Editorial Caminho recorda
as que Pierre Bourdieu define como empresas de ciclo de produção curto, isto é,
empresas que
139 É possível ver a capa da edição de finais de novembro de 2012 também à ligação: http://visao.sapo.pt/jl-‐1100-‐nas-‐bancas=f699277 (último acesso: 15/08/2013). 140 Encontra-‐se uma explicação mais detalhada do evento à ligação: http://www.caminho.leya.com/pt/noticias/escrita-‐sem-‐rede-‐por-‐joana-‐bertholo-‐e-‐ondjaki/ (último acesso 15/08/2013).
123
visando minimizar os riscos através de um ajustamento antecipado à
procura detectável, e dotadas de circuitos de comercialização e de
medidas de rentabilização (publicidade, relações públicas, etc.) [são]
destinadas a garantirem o ingresso acelerado dos ganhos por meio de
uma circulação rápida de produtos votados a uma obsolescência rápida
[...]141
Os investimentos seguros a curto prazo são a parte mais consistente das despesas
de promoção dos seus autores, ou pelo menos de Ondjaki. Efetivamente, é possível
notar uma recessão na atenção mediática que o autor recebe em Portugal depois
de só alguns meses da saída dos seus inéditos. Contudo, não se pode dizer o mesmo
do que acontece no Brasil, onde o autor logra manter muito alto o interesse à volta
da sua figura.
Em suma, os interesses da Editorial Caminho numa rápida projeção da obra
do autor são inegáveis, pois, como afirma Robert Weimann:
[...] le inarrestabili tendenze alla socializzazione hanno preso piede [...]
anche nei processi di distribuzione e di comunicazione (soprattutto con
riferimento allo sfruttamento commerciale). Non appena circolano
sotto forma di semplici merci, i prodotti del lavoro intellettuale e
artistico sono soggetti alle contraddizioni e alle mediazioni dialettiche
fra il valore d’uso estetico ed umano, e il valore di scambio economico
ed editoriale.142
Neste sentido, e sempre partindo do que Bourdieu explica em relação aos
produtos artísticos, esses existem só em virtude da comunidade avaliadora e do
reconhecimento que lhe dá esta enquanto tais. Portanto, em parte graças ao atento
trabalho da editora, e em parte pela personalidade do autor (que se presta com
facilidade ao contacto direto com o público) pode-‐se afirmar que a comunidade
portuguesa de leitores tem recebido a sua obra ao longo dos anos na maioria dos
141 P. BOURDIEU, As regras da arte, Lisboa, Ed. Presença, 1996, pp. 169-‐170. 142 R. WEIMAN, “‘Estetica della ricezione’o l’insoddisfazione nei confronti della cultura borghese. Per la critica ad una teoria della comunicazione letteraria” in R. C. HOLUB (a cura di), Teoria della ricezione, Torino, Einaudi, 1989, p.76.
124
casos positivamente, ajudada com probabilidade também pela acessibilidade para
os seus leitores dos conteúdos que essa veicula. Só a nível académico é que sempre
surgiram as maiores dúvidas.
Contudo, com isso não se quer tirar importância ao papel do próprio autor,
sobretudo no que tem a ver com o mantimento de uma imagem pública positiva e
acolhedora. Ondjaki, quando convidado ou interpelado, manifesta sempre boas
maneiras e boa disposição, uma indubitável cordialidade e uma indiscutível
simpatia. Não tem embaraço nos contextos mais diversos e maneja bem qualquer
tipo de assunto, seja esse “leve” ou mais “pesado”, bem como tomado de uma
vastíssima gama de tópicos.
Em adição a essas qualidades do autor, pode-‐se notar certa predisposição
para as opiniões mitigadas, ideologicamente pouco conotadas, que com
probabilidade lhe facilitaram a participação nas tertúlias, nos programas televisivos
e noutros encontros e debates sobre o seu tempo e a sua área de proveniência.
Ondjaki logra sempre intervir sem ser ofensivo, sem se pôr numa luz
negativa e sobretudo sem animar os outros participantes através de opiniões
radicais e radicadas em posições e princípios guerrilheiros. É sabido que essa forma
de diplomacia é muito apreciada por quem se dirige ao grande público e está
preocupado com a maior difusão possível difusão dos grande debates
contemporâneos, pois, contudo, “a liquidação do conflito na cultura de massas é
[...] mera arbitrariedade de manipulação”143
III.7 Os prémios literários
Em parte pela ampla e rápida visibilidade obtida graças a colaboração com a
Editorial Caminho, em parte para as suas dotes criativas precoces, efetivamente o
autor foi logo reconhecido em Portugal com um grande número de prémios
literários, confirmado, em certo sentido, a situação posta em releve em relação à
143 T. W. ADORNO, Sobre a indústria da cultura, Coimbra, Angelus, 2003, p. 73.
125
legitimação de determinados autores homeoglotas. Noutras palavras, esta resulta
dúbia se se considera a frequência com que certos nomes aparecem premiados e ao
mesmo tempo se observa a situação contrária a que estão sujeitos outros, ou seja
de invisibilidade e consequente não legitimação em Portugal, e a atitude das
autoridades institucionais frente os textos de Ondjaki não a contradiz
completamente.
O constante e consistente trabalho deste jovem escritor foi reconhecido pela
atribuição de numerosos prémios procedentes de todo o mundo lusófono. O
primeiro chegou logo em 2000, ano em que o autor recebeu uma menção honrosa
no prémio angolano António Jacinto com a sua também primeira obra Actu
sanguíneo. A seguir, em 2005, ainda em Angola, ganhou o Prémio Sagrada
Esperança com a recolha de contos E se amanhã o medo e, em Portugal, o Prémio
António Paulouro. Foi nomeado entre os finalistas do prémio Portugal TELECOM no
Brasil em 2007 e também 2008 com, respectivamente, Bom dia camaradas e Os da
minha rua e, ainda em 2007 e outra vez por Os da minha rua, recebeu em Portugal
o Prémio APE e o Grande Prémio do Conto Camilo Castelo Branco. Com este livro de
contos em 2008 ganhou também o Grinzane for Africa Prize – Young Writer
patronizado pela Etiópia e Itália.
Muitos outros reconhecimentos seguiram-‐se no Brasil, em 2010, para Avó
Dezanove e o segredo do soviético pelo qual ganhou o prémio FNLIJ para a literatura
em língua portuguesa e o Prémio JABUTI na categoria juvenil. Ainda em 2010 e com
a mesma obra, chegou a ser finalista no Prémio Literário de São Paulo e, outra vez,
no prémio Portugal TELECOM. Finalmente, em Angola recebeu em 2011 o Prémio
Caxinde do Conto Infantil e em Portugal, em 2012, ganhou o prémio Bissaya Barreto
para a mesma obra.
Há pouco tempo, aliás, a obra A bicicleta que tinha bigodes foi escolhida pela
Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil brasileira como o melhor título
destinado a crianças e jovens, relativo a 2012, e o autor declarou:
Fico contente. Por mim e por Angola. Ainda vivo essa fase de que
partilho os meus prémios com o meu país ou com as crianças do
126
meu país. É a segunda vez que sou distinguido com este prémio, e a
emoção é a mesma. Emoção e honra. É bonito ver um livro
angolano chegar a outras culturas.144
Essas largo conjunto de prémios evidencia como críticos e premiadores
tiveram desde logo certo interesse nos trabalhos do autor, o qual veio quase todas
as suas obras rapidamente galardoadas com reconhecimentos por parte dos três
espaços lusófono a que sempre estive mais ligado.
Portanto, no caso de Portugal, segundo as dinâmicas do mercado e os
numerosos prémios recebidos, o autor é reconhecido e legitimado como sendo um
verdadeiro representante da literatura angolana, e, mais em geral, da literatura
lusófona. A sua obra é lida e conhecida quer em Portugal, quer em Angola e, mais
recentemente, também no Brasil, onde de facto teve e tem o maior êxito
(provavelmente pelas novas tendências ligadas à redescoberta das raízes africanas
do povo brasileiro). Como afirma João Pedro George
Os prémios literários são instrumentos fundamentais para o
reconhecimento social dos escritores e, neste sentido, constituem um
ponto de partida para se analisar a natureza e o funcionamento das
instituições literárias. Num domínio caracterizado pelo fraco grau de
formalização dos momentos que regulam as actividades dos escritores
e pela grande indeterminação dos critérios de acesso a um estatuto
profissional, a entrega de prémios literários constitui um momento
privilegiado para se reafirmarem os valores centrais do meio literário e
para a projecção do escritor na vida pública.145
Nesta ótica, a obra de Ondjaki resulta aceite pelas instituições literárias e garante-‐
lhe a sobrevivência no campo literário. Com o crescente interesse mundial pelas
escritas procedentes de África, não deve surpreender que atualmente as obras
144 Ondjaki, resposta por e-‐mail ao Público disponível em http://www.publico.pt/cultura/noticia/ondjaki-‐vence-‐premio-‐brasileiro-‐de-‐literatura-‐para-‐criancas-‐e-‐jovens-‐1594541 (último acesso: 19/05/2013). 145 J.P. George, O meio literário português (1960-‐1998), Lisboa, DIFEL, 2002, p. 15.
127
deste jovem autor estejam sujeita a uma atenção tão grande, visível através da sua
frequente premiação.
III. 8 Crítica e programas de ensino em Portugal
A observação do Plano Nacional de Leitura evidencia a presença de pelo
menos seis obras do autor nos diferentes níveis de aprendizagem, isto é, desde a
educação pré-‐escolar até o 3o ciclo do ensino básico (do 7o ao 9o ano), e até nas
“Sugestões de leitura”. As obras propostas são: a nível pré-‐escolar O voo do
golfinho; como leitura autónoma do 4o ano Ynari – a menina das cinco tranças;
como leitura autónoma do 5o ano A bicicleta que tinha bigodes; nas leituras
orientadas do 7o ano Momentos de aqui, e, por fim, como leitura autónoma do 3o
ciclo Os da minha rua, também nomeado entre as sugestões de leitura para um
nível de dificuldade 1. Aliás, Esta mesma obra aparece dentro do corpus textual
relativo ao programa de ensino do 3o ciclo, cujas escolhas são efetuadas em função
de vários critérios, entres o quais a predileção para obras “que apresentam
referências estético-‐culturais susceptíveis de favorecer uma reflexão plural sobre
representações e visões”146 e para “autores e textos dos países de língua oficial
portuguesa representativos da diversidade da escrita literária em língua
portuguesa”147.
Uma observação mais detalhada evidencia como o Plano Nacional de
Leitura, e consequentemente os programas de ensino mencionados, privilegiam
autores angolanos cujas produções estejam politicamente pouco matizadas e sejam
culturalmente acessíveis (faltam, por exemplo, obras de Luandino Vieira e
aparecem só duas obras de Pepetela, enquanto é aconselhada a leitura de pelo
menos cinco obras de José Eduardo Agualusa). Nenhuma obra de João Melo é
nomeada entre as sugestões, apesar dele ser um autor angolano hoje em atividade
146 Programa de Português de Ensino Básico homologado em março 2009 e entrado em vigor no ano letivo 2011/2012 disponível em http://www.dgidc.min-‐edu.pt/ensinobasico/index.php?s=directorio&pid=11&ppid=3 (último acesso: 18/05/2013). 147 Ibid. (último acesso: dia 18/05/2013).
128
e publicado em Portugal também pela editorial Caminho – Grupo LEYA: a dúvida
levanta-‐se quando se considera que o autor é também ativo politicamente em
Angola e que frequentemente os seus textos contêm mensagens que vão dos ideais
revolucionários às denúncias da corrupção do poder, bem como fazem os trabalhos
de Luandino e Pepetela.
Não se pode dizer a mesma coisa das obras escolhidas de Ondjaki, que são
sim aptas às idades e ao ensino em questão pelas mensagens pedagógicas contidas
e pela linguagem simples, infantil, utilizada, mas não parecem ter grande afinidade
com os propósitos culturais manifestados nos Programas, dada a leveza dos
conteúdos propriamente “angolanos” e as poucas referências à história do país.
O que surpreende das decisões da comissão é que, se se observa o conjunto
dos trabalhos do próprio Ondjaki publicados em Portugal, se encontram narrações
em que a cultura angolana e a sua “identidade diferencial” são transmitidas com
mais vigor, e que tornariam portanto possível promover certo contacto cultural
através de autores falantes português sem necessariamente se ter que apoiar nos
trabalhos de outros autores.
À promoção, difusão e apreciação a que está sujeita certa produção deste
autor angolano, à legitimação que determinadas suas obras recebem por parte do
público, do sistema de ensino básico e médio e dos prémios literários, porém, não
corresponde uma aceitação académica do seu projeto estético. Na academia
portuguesa, as pesquisas e as reflexões ainda preferem concentrar-‐se em obras e
autores considerados mais representativos das identidades nacionais, como podem
ser as dos autores omitidos pelo Plano Nacional de Leitura por exemplo; não se
pode afirmar o mesmo em relação a Academia brasileira, que parece apreciar mais
o trabalho deste jovem angolano, e para com isso o que Andrea C. Muraro afirma é
que “Ondjaki, apareceu no cenário da crítica especializada, primeiro por meio de
resenhas em meios jornalísticos e depois por ensaios e dissertações no ambiente
acadêmico” 148 confirmando o tal interesse brasileiro (e o prevalecer duma
legitimação inicial mais popular).
148 A. C. MURARO, Op. Cit., p. 12.
129
Todavia, pela promoção de só uma parte do largo conjunto de obras passa
uma imagem parcial do autor como sendo exclusivamente acessível pelo grande
público e representativo daqueles ideais cosmopolitas e unitários da hodierna
lusofonia que, sobretudo em Portugal, interferem muito na receção e avaliação de
autores africanos e que, em muitos casos, não coincidem com o projeto estético
dos autores. Falta, ao lado das obras mais acessíveis, a promoção dos textos cuja
compreensão pode ser menos imediata, como pode ser Quantas madrugadas tem a
noite, que são igualmente válidos dum ponto de vista estético e literário.
Esta atitude promocional, na base da qual se prefere divulgar algumas obras
em lugar de outras, tem certas consequências também no mercado, pois os textos
menos mencionados acabam por ser menos conhecidos também por um público
mais popular, já formado e pertencente a outras faixas de idade. Provavelmente
pela consistente presença nas leituras para a escola primária, a Academia tem
bastante ignorado este autor, relegando-‐o como produtor exclusivamente de
literatura infanto-‐juvenil, e reconhecendo com dificuldade a sua preocupação
estética e o valor literário das suas obras.
Só mais recentemente, com a saída do último trabalho, Os Transparentes, o
prof. Pires Laranjeira decidiu incluir a leitura obrigatória da obra nos seus cursos de
Literaturas africanas, prova a mais de que o autor efetivamente adquiriu, ao longo
dos anos, maior solidez estética, uma credibilidade mais duradoura e menos cética,
que coincidem também com a sua tomada de posição mais crítica em relação às
problemáticas da sociedade luandense.
Esta evolução criativa, e as apreciações que efetivamente seguiram à
publicação desde último trabalho, talvez mostre que é preciso os autores tomarem
posições mais claras em relação às problemáticas atuais e utilizar as suas vozes para
mover os ânimos e as consciências dos leitores, dado o poder educativo que podem
ter as leituras a qualquer idade.
Tendo em conta a intersecção entre o mundo do texto e o mundo do
auditor ou leitor – como teorizou Paul Ricoeur –, é de dizer que cada leitor recebe a
obra de acordo com a própria capacidade de acolhimento, e neste sentido, a
130
entrada de Ondjaki nos programas académicos pode ser um fator determinante
para que a sua produção seja compreendida mais aprofundadamente. A formação
de bons receptores, isto é, de bons leitores, é muito importante para que se
perceba a interconexão em que o sistema literário e o sistema social e sistema
mundo vivem.
Já há algum tempo os estúdios literários reconheceram no leitor uma função
básica da obra mesma, reconhecendo ao mesmo tempo a importância da formação
da sua subjetividade, para que entre em maior contacto com a obra que recebe.
Darío Villanueva explica este delicado contacto entre singularidades assim:
No momento em que a arte passa a ser compreendida como pura
criação subjectiva, na qual o Eu do artista não se submete às
determinações da objectividade do mundo real nem às convenções
estéticas herdadas da tradição, o papel do receptor torna-‐se mais
difícil, pois carece de pautas para o conhecimento e a valorização da
obra, mas precisamente por isso mais activo e essencial, uma vez que à
volta do objecto estético se sobrepõe um fluxo decisivo de
intersubjectividades: a do criador e a dos seus receptores.149
Leitor e criador são duas entidades que se têm que formar separadamente, porque
só assim o seu contacto pode dar vida às interconexões necessárias para que ambos
adquiram significado. É necessário favorecer o contacto direto com as obras e a
atitude passiva do estudante de Literatura deve ser combatida, quando acontece,
em virtude das funções ativas como receptor que a ciência da literatura lhe confere.
A academia portuguesa, portanto, está ainda numa fase de observação do
autor, não tendo completamente reconhecido o conjunto das suas obras como
representativo da literatura angolana. Diversamente dela, a academia brasileira tem
demonstrado mais interesse no autor e tem legitimado completamente a sua obra,
que aparece analisada e referida em numerosas ocasiões. Ao efetuar apenas uma
149 D. VILLANUEVA, “Pluralismo crítico e recepção literária” in H. BUESCU -‐ J. FERREIRA DUARTE -‐ M. GUSMÃO (organização de), Floresta encantada. Novos caminhos da literatura comparada, Lisboa, Dom Quixote, 2001, p. 247.
131
pesquisa na rede, aparece logo uma série de ligações para artigos relacionados com
a instituição universitária brasileira que tratam do autor angolano, juntamente com
palestras que o vêm protagonista.
Foram publicados numerosos artigos académicos e estudos comparatistas
sobre a produção do autor por alunos da Universidade de São Paulo: para além da
tese de doutoramento de Andrea Cristina Muraro – que, por sua parte, também
desenvolveu uma pesquisa titulada “As ‘prendisajens’ poéticas em Ondjaki:
dimensões da metáfora ‘xão’” para o mestrado em 2006150 – um exemplo destes é
o estudo comparatista de Rita Chaves sobre Ondjaki e João Paulo Borges Coelho151.
Também a Universidade Federal de Santa Catarina demonstrou interesse pelo
autor, com artigos e investigações, de que o estudo de Jane Vieira da Rocha titulado
“As margens da experiência: os miúdos e os mais velhos na narrativa de Ondjaki”152
é um exemplar facilmente acessível.
A Universidade Federal de Rio de Janeiro recebe frequentemente o autor, ao
lado de outras personalidades importantes do panorama literário angolano, em
congressos e palestras, e também promove o estudo e a análise da sua obra. Estes
são apenas uns exemplos da projeção que a obra de Ondjaki teve no mundo
académico brasileiro, pois, sobretudo em comparação com a reação da academia
portuguesa, a brasileira parece muito mais interessada e recetiva com os seus
textos e demonstra-‐o através duma incessante produção relativa a eles.
Pelo que diz respeito às revistas especializadas, as diferenças entre o
mercado português e o mercado brasileiro diminuem, dado que ao autor é
reservada bastante visibilidade em ambos os espaços. Em Portugal, o Jornal de
Letras, a revista África XXI e África hoje têm dedicado a Ondjaki artigos e reflexões,
publicitando também os seus bons resultados com artigos e entrevistas. Para além
150 O texto está disponível à ligação: http://www.casadasafricas.org.br/wp/wp-‐content/uploads/2011/08/As-‐prendisajens-‐poeticas-‐em-‐Ondjaki-‐dimensoes-‐da-‐metafora-‐xao.pdf (último acesso: 7/10/2013). 151 O estudo pode ser encontrado no n°17 de julho 2010 da revista Via Atlântica, da Universidade de São Paulo, e está também disponível em forma digitalizada à ligação: http://www.revistas.usp.br/viaatlantica/article/view/50535 (último acesso: 7/10/2013). 152 Disponível em: http://www.xiconlab.eventos.dype.com.br/resources/anais/3/1308331407_ARQUIVO_artigoconlab2.pdf (último acesso: 7/10/2010).
132
disso, o blogue Buala, um site independente que conseguiu afirmar-‐se no panorama
das plataformas interativas dedicadas à África e tem projeção internacional,
frequentemente publicita os projetos do autor; este, aliás, colabora com o blogue
escrevendo artigos, comentários, recensões, sobre outros colegas artistas africanos,
como por exemplo artigo “Se fôssemos ainda mais angolanos...”153 escrito para
recensear o novo álbum do cantor angolano Nástio Mosquito.
No Brasil, o número de revistas aumenta de forma notável e é muito difícil
recolher dados certos que mostrem o real interesse destas últimas para o autor.
Também neste caso, contudo, é suficiente pesquisar os artigos na rede para fica
surpreendidos com o material disponível para consultação.
Por fim, a receção da obra de Ondjaki parece positiva em ambos os países, a
não ser pela academia portuguesa, que continua a mostrar alguma dificuldade em
compreender o autor entre os nomes propostos e estudados. É, porém, ainda cedo
para tirar as conclusões, pois a sua última obra foi publicada recentemente, e por
isso é necessário esperar algum tempo para ver como a universidade portuguesa
reage a este novo trabalho.
IV.9 Entrevistas e colaborações artísticas
Em Portugal, como no Brasil, este autor “lusófono” tem bastante visibilidade
nos jornais e na televisão, também pela sua personalidade suave, simpática. É de
sublinhar que o escritor nunca tomou fortes posições políticas quer nas entrevistas,
quer nos seus livros, e com grande probabilidade isso mediaticamente facilitou a
sua projeção dentro e fora do país. Através da rede tem-‐se hoje acesso a um grande
número de entrevistas, intervenções em debates ou programas televisivos, ou
simplesmente de vídeos, que o veem protagonista.
Neste sentido, a ida para o Brasil projetou ainda mais a sua imagem, dada a
dimensão cultural em crescimento do país sul-‐americano e a ligação identitária e 153 Artigo disponível em http://www.buala.org/pt/palcos/se-‐fossemos-‐ainda-‐mais-‐angolanos (último acesso: 7/10/2013).
133
cultural com os países africanos, consequência do período colonial e da escravatura.
Confirmar-‐se-‐ia com isso a opinião de Pires Laranjeira, quando explica que:
Contribui também para essa projecção o facto de a maior parte dos
mais notáveis viver no exterior ou viajar com frequência, sendo-‐lhes
mais acessível tanto o mundo da tradição literária ocidental (ou
outra) como os das novidades, além da possibilidade de
intervenção mediática e noutros meios (colóquios, palestras, aulas,
etc.).154
O que professor Pires Laranjeira afirma é muito pertinente ao estilo de vida
de Ondjaki, que de facto se divide entre o Brasil, Angola e Portugal (mas também
viaja com frequência aos Estados Unidos e às outras nações que o convidam) e
toma parte da vida cultural dos três países aos mesmo tempo. Obviamente, a maior
parte das atividades a que é convidado acontece no Brasil, dada a sua vizinhança
com a cidade em que reside, o Rio de Janeiro. Aliás, o Brasil tem desenvolvido nos
últimos dez anos um crescente interesse pelas escritas e pelos escritores
procedentes de África, na tentativa de estabelecer um contacto com as culturas que
interagiram na sua formação identitária. O mesmo autor, ao responder a uma
pergunta sobre a relação editorial entre Portugal e o Brasil na entrevista concedida
para esta pesquisa em fevereiro 2013, afirma:
Acho que publicar em Portugal chama a atenção de alguns agentes
e de algumas editoras europeias. Mas já foi mais assim... (isso do
Brasil "descobrir" autores a partir de Portugal); Já há muitos
autores a publicarem SÓ no Brasil, sem estarem em Portugal. Mas
isso tem a ver com o interesse que o Brasil desenvolveu pela
literatura africana nos últimos 10 anos.155
O jovem escritor, aparentemente ingenuamente, de certa forma minimiza as
conexões entre os dois países lusófonos e não se perde em detalhes, relegando o
154 J. L. PIRES LARANJEIRA, Ensaios Afro-‐literários, Lisboa, Novo Imbondeiro, 2005, p. 77. 155 Entrevista inédita realizada em fevereiro 2013 (ver Apêndice).
134
problema levantado por alguns crítico, i.e. o facto de Lisboa ser um centro
propulsor para os escritores de todo o mundo lusófono, aos atuais interesses do
Brasil (e não menciona de nenhuma forma a possibilidade das heranças coloniais
intervir nesse jogo).
Na realidade, o autor ao responder às perguntas que eu formulei para ele na
base dos interesses desta pesquisa deu prova da sua diplomacia também em outras
ocasiões. Por exemplo, a uma pergunta direta sobre o papel dos editores e dos
críticos na formação e na difusão de uma imagem enganadora sobre África e os seus
autores, o escritor responde:
[...] Acho que há muitos tipos de estudo sobre o continente Africano,
nem todos têm uma visão ex-‐colonizadora. Um bom editor, vai
querer um livro do Mia, do Luandino, da Conceição Lima, porque são
bons escritores. Se está na moda publicar um "autor africano",
melhor ainda, mas eu acho que eles escolhem pela qualidade. Basta
ver, por exemplo, a coleção de autores africanos da Caminho.
Normalmente são de nível muito elevado. Mas eu falo pela Caminho,
que conheço melhor. Portanto, um bom editor, sabe que o
continente africano é diversificado e complexo. Um bom editor é um
bom editor, em qualquer parte do mundo, na Nigéria ou na Suécia156
Esse é só um exemplo entre as numerosas vezes em que Ondjaki se dirige ao
entrevistador em tons pacificadores, diplomáticos, até ingénuos, quando
interpelado sobre assuntos delicados. Este mecanismo comunicativo lembra outro,
que pertence a um plano estritamente estético, e que lhe é muito familiar: o tão
frequente recurso à infância, com o qual se logra mitigar e cobrir com o véu da
pureza juvenil a visão irónica que proporcionam as suas várias prosas sobre Angola.
Outra resposta, tirada sempre da entrevista inédita, e relativa às poucas
“vozes africanas” que são legitimadas, e portanto ouvidas, enquanto delineiam uma
particular imagem do grande continente, outra vez é muito cauta:
156 Entrevista em Apêndice.
135
[...] Acho que [a imagem de África] passa por todas as vozes. E não
apenas as literárias. Simplesmente, alguns destes autores têm maior
visibilidade em Portugal. Isso não dá exclusividade a ninguém. Acho
que há muitos bons autores angolanos que não estão publicados em
Portugal nem no Brasil. Ainda. Espero que venham a ser
publicados....157
A atitude esperançosa com certeza não transmite uma imagem do autor
como alguém que reconhece e propõe soluções para uma situação de desequilíbrio
e de lutas latentes. Ondjaki explica a situação atual com uma simplicidade que
parece mais uma escolha “tática” do que ideológica, pois é provável que o autor
esteja consciente das dinâmicas em vigor mas escolha ultrapassar o problema,
preferido mostrar os ponto de contacto em lugar dos de ruptura.
Contudo, apesar das muitas possíveis interpretações, a sua disponibilidade
com o público ou para qualquer tipo de curiosidade é uma qualidade natural, e não
parece ter outros motores senão o da gentileza e da educação. Muitos exemplos
desta sua prerrogativa são de fácil acesso na rede, que pulula de entrevistas que o
veem protagonista e de jornais interativos que falam sobre ele.
Em relação às participações, o autor colabora com numerosos artistas
procedentes das mais diversas áreas, e em numerosos projetos, para além dos
literários. Foram já citados os projetos cinematográficos, de estampo documental,
que ajudou a realizar e nos quais participou como entrevistado, e os seus interesses
pelas artes visuais. Em 2012, por exemplo, no Rio de Janeiro foi organizada uma
exposição dos seus quadros, a demonstração do forte anseio criativo do escritor,
que sob este ponto de vista pode até ser considerado um artista completo.
Um outro projeto do escritor, e muito mais recente, é “Sobre o mar:
poesias”: em colaboração com o musicista brasileiro Marcello Magdaleno, que cura
o aspeto sonoro, diríamos, do espetáculo, Ondjaki lê alguns poemas dos grandes
autores contemporâneos, enquanto o músico toca e as palavras são projetadas
numa teia branca. A performance, que se encontra (como tudo, de resto) na rede, é
157 Ibid.
136
certamente sugestiva e emocionante. São apresentadas mais as obras de grandes
autores, muitos dos quais, aliás, são africanos num projeto itinerante, que foi
hospedado em numerosas cidades brasileiras e muito bem acolhido pelo público.
Sempre no Brasil, e mais em particular, no Rio de Janeiro, Ondjaki é o
anfitrião de diversos workshop de escritura criativa, organizados normalmente em
centros culturais independentes e durante os quais o autor mete a disposição a sua
experiência no campo das escritas a grupos de apaixonados criativos ainda em
formação. Aliás, o autor é também chamado para dar aulas nas universidades,
principalmente as norte-‐americanas, a indicar que a sua projeção logrou ultrapassar
as barreiras da área lusófona.
Nesse século XXI, chamado por muitos críticos o século do Renascimento
Africano, o papel do artista procedente de África é fundamental na produção de
diferentes formas de arte e de um pensamento estético, e científico, inovador que
acompanhe a época em que está ativamente envolvido. Ondjaki de facto respeita
esta imagem do artista contemporâneo: não obstante falte clareza nas suas
tomadas de posição, não se pode negar que seja um personagem dinâmico,
enérgico e poliédrico, e que isso ajude na difusão e no conhecimento por parte do
público da sua obra, juntamente com a sua personalidade.
IV.10 A presença nas redes sociais
Apesar de ser um artista versátil e sempre ativo do ponto de vista criativo, o
autor mostra também certa habilidade na gestão da sua imagem e da sua
personagem pública através do uso frequente das redes sociais como o Facebook e
Twitter. Isso, que provém da evidente predisposição do autor às relações com o seu
público, concorre para manter a atenção desse último sempre viva, dando-‐lhe
também certa ilusão de contacto com ele. Em linha com as novas tendências
globais, que veem nas redes sociais uma meio de divulgação mais “democrático” e
direto de informações (que, em alternativa, acabariam por chegar só filtradas pelo
137
olhar do discurso oficial), o autor controla diretamente as mensagens através das
quais se mostra, influenciando com isso também a divulgação da sua produção.
Os seus perfis mostram que a sua atividade é incessante e vai desde a
publicação de versos inéditos, à citação de frases de algumas personagens dos seus
livros (veja-‐se o caso da Dissoxi, cujas palavras são repropostas com grande
frequência) que desta forma continuam a viver fora das obras, à divulgação de
fotografias ou à propaganda de eventos em que vai participar ou de artigos que
tratam dos seus trabalhos. As suas incursões nas redes sociais são quase
quotidianas e concentradas em divulgar sobretudo os versos e as suas palavras.
Nas redes sociais Ondjaki mostra também ter grande preocupações com a
situação do seu país, Angola, e participa ativamente na divulgação de artigos de
denúncia ou protesta contra as injustiças que persistem ali. Ao mesmo tempo,
difunde os trabalhos dos seus colegas e amigos, seja esses escritores, músicos ou
jornalistas, e apoia sempre os seus bons resultados.
Consciente do papel que hoje desempenham esses novos meios de
comunicação, que logram, em certo sentido, ultrapassar as antigas instâncias de
legitimação literária pelo menos perante um público mais “popular”, o autor
também entretém os seus leitores com breves histórias acerca das suas novas
produções. Com o aproximar-‐se da saída dos seu último livro Os Transparentes no
Brasil, por exemplo, foram frequentes os tweets em que o autor atribuía a um
hacker chinês a responsabilidade pela divulgação antecipada de informações sobre
a obra (a gráfica da capa, informações sobre a data de saída, etc.). Foi utilizada a
mesma técnica divulgativa também para a edição portuguesa, e pode-‐se dizer que,
graças à sua simpatia e as suas ironias, Ondjaki cria através desses meios outros
mundos fictícios de que ele é o cronista, envolvendo os seus “seguidores” numa
ficção contínua, incessante, e criando à volta da sua pessoa um ar ao mesmo tempo
de incógnita e acessibilidade que mantém desperta a curiosidade.
Uma receção favorável da sua obra, portanto, é apoiada principalmente
pelos aficionados leitores, em parte justificando o mantimento da atenção
mediática à volta da sua figura, o que contribui parcialmente também para que a
138
sua obra seja considerada um válido exemplo de literatura de expressão africana
por parte de algumas instituições mais “tradicionais”: a personalidade do autor
garante-‐lhe um número consistente de seguidores, que são também os leitores das
suas obras e os seus difusores. Em relação a isso, Andrea Cristina Muraro explica
que:
a recepção da obra de Ondjaki é fruto […] da era da globalização e das
novas tecnologias de informação, por isso também foi construída mais
de fora para dentro, isto é, lida primeiro pela comunidade de língua
portuguesa, composta de angolanos ou não, que estão em diáspora,
diga-‐se assim, principalmente em Portugal e no Brasil.158
As redes sociais são, portanto, um meio fundamental de difusão e de
influência na receção da sua produção artística. Como esse autor angolano, outros
também hoje utilizam esses recursos para promover o seu pensamento e publicitar
as suas obras, dada o livre acesso à rede e a liberdade expressiva que
proporcionam. Seria estranho se Ondjaki, jovem homem de 36 anos, não estivesse
ao passo com a época em que vive e não tivesse plena consciência do papel
desempenhado por esses meios de comunicação. Assim, o mesmo autor exerce
certa influência no que Robert Escarpit chamaria “público real”, que, sempre
segundo o sociólogo francês, acaba por coincidir com o mercado editorial.
Obviamente, não se pode comparar o poder de legitimação das instituições
tradicionais com esses novos recursos sociais, mas é possível notar que hoje Ondjaki
não é único autor que se autopromove e que cuida autonomamente da sua
comunicação com o público. No interior do dinâmico campo literário, as lutas são
sempre vivas e essas novas modalidades de um autor se afirmar podem ajudar na
definição das suas novas posições.
Na receção da obra de Ondjaki, portanto, entram em jogo estas instâncias,
bem diferentes das tradicionais instituições literárias. Estas novas metodologias
recetivas concorrem na determinação na posição ocupada pelos autores dentro do 158 A. C. MURARO, Luanda: entre camaradas e mujimbos, Tese de Doutorado, São Paulo, Universidade de São Paulo – FFLCH, 2012, p. 11.
139
campo literário, e no caso de Ondjaki parecem apoiar a sua presença dentro do
sistema português e dentro do sistema brasileiro. Infelizmente, não alteram as
problemáticas e as dificuldades que, por sua parte, não param de animar as
camadas mais cultas, sejam estas relativas às categorias através de que os autores
africanos são interpretados, ou à aceitação do próprio autor em questão. Deixam
inalteradas, portanto, as diatribes culturais e ideológicas que sobrevivem em
Portugal e que visariam à descolonização das mentalidades, quer dos autores, quer
dos leitores, continuando, porém, a ser manifestações dos poderes que atuam
dentro do sistema em geral.
Contudo, com uma média de cem like para cada intervenção no Facebook e
um número de seguidores que ultrapassa abundantemente os mil no Twitter,
Ondjaki, sozinho, sem a intervenção das suas editoras e apesar do apoio dado pelo
sistema educativo, garante a si mesmo um amplo conjunto de aficionados,
espalhado por todo o mundo, que a sua vez divulgam as suas palavras e as suas
obras em Portugal, como no resto das áreas lusófonas.
Este mecanismo recetor, que se afasta das tradicionais instâncias de
legitimação sobretudo porque envolve o público no seu sentido mais amplo e não
está influenciado tão vigorosamente pelo discurso oficial ou pela opinião dos
leitores mais cultos, instalou-‐se nos últimos anos como consequência dum cada vez
maior utilizo das redes sociais. Tem, aparentemente, um funcionamento mais
“democrático” e de facto mostra quais são as reais reações dos leitores, dada a
liberdade de expressão que proporciona; permite, aliás, ao autor de expor-‐se muito
mais do que antigamente era possível.
Sendo uma ferramenta mais recente, sobretudo dentro das dinâmicas de
legitimação literária, ainda não se encontram muitos estudos sobre o papel das
redes sociais na formação do “nome” dos autores e na consolidação da sua
credibilidade e do consequente poder de venda. Seria, portanto, curioso ver se nos
futuros estudos sociológicos dos sistemas literários este meios de comunicação
constituirão uma razão para produzir novas observações sobre a legitimação das
obras. Entretanto, o que se pode fazer é evidenciar a força comunicativa que estas
140
redes têm e a evidente influência que exercem nos leitores, os quais, por sua parte,
demonstram com prazer uma ativa participação.
141
APÊNDICE I
Entrevista inédita ao autor
1. Interessava-‐me saber como é que começaste a publicar em Portugal e se, de
facto, publicaste sempre com a Caminho. Foste contactado por eles ou foste tu a
mandar os teus trabalhos aos editores? Foi um caminho complicado? Começaste
logo a publicar em Portugal ou já tinhas alguns trabalhos editados em Angola?
Eu comecei a publicar em Angola. Saí em segundo lugar num concurso de poesia, no
ano de 2000. Portanto, primeiro publiquei poesia.
Depois, ainda em Angola, saiu o livro "Bom dia camaradas".
Em Portugal, foi assim: enviei por correio, para a Caminho, um livro de contos. E
após dois anos e meio, publicaram. Se foi complicado? Não sei. Enviei por correio,
aguardei. Queria muito que fosse a Caminho, já tinham outros autores africanos,
mas pensei que fosse difícil, porque eram contos. Acho que eles gostaram.
2. No contrato com a Caminho, pediram-‐te que os teus livros falassem da África e
de Angola? Ou simplesmente exigem de ti que entregues um livro, não sei, de dois
em dois anos?
Isso é uma fantasia..... Um contrato não diz essas coisas. O contrato fala da obra,
dos direitos de autor, e de reedições. Não fala de conteúdos nem da saída de um
próximo livro. Nem com o Mia Couto nem com o Saramago, os contratos da
Caminho não têm essas exigências. Isso é mais um mito.
3. Que papel desenvolvem realmente os fatores económicos no mundo editorial de
hoje, na base da tua experiência?
Não sei responder... Não vendo tanto assim, e não escrevo para vender. E nunca
tive pressão de NENHUMA editora, em país algum, para escrever mais "assim" ou
mais "assado."
142
4. A Caminho distribui os teus livros também em Angola e no Brasil e/ou nos
outros países de língua oficial portuguesa?
Não. A Caminho, que agora é LEYA, tem duas editoras em Angola. Alguns livros
saíram por essas editoras, em Angola. Mas também trabalho com outras. No Brasil
trabalho com quatro editoras distintas. Só uma delas está ligada ao grupo LEYA-‐
Brasil.
5. Parece que ao Brasil chegue só o que antes passa por Lisboa (em termos
editoriais). Achas isso possível, ou a tua experiência ali diz outra coisa?
Acho que publicar em Portugal chama a atenção de alguns agentes e de algumas
editoras europeias. Mas já foi mais assim... (isso do Brasil "descobrir" autores a
partir de Portugal). Já há muitos autores a publicarem SÓ no Brasil, sem estarem em
Portugal. Mas isso tem a ver com o interesse que o Brasil desenvolveu pela
literatura africana nos últimos 10 anos.
6. Achas que os editores, que de facto escolhem quem publicar, condicionam com
isso a perceção da África lusófona por parte do público europeu? Ou será que a
responsabilidade é de atribuir aos investigadores que continuam a estudar a
África a partir do olhar do ex-‐colonizador e a tentar engolir a cultura africana, por
um preconceito sobre a falta de complexidade dessa mesma?
Eu não sinto isso, nunca senti. Acho que há muitos tipos de estudo sobre o
continente Africano, nem todos têm uma visão ex-‐colonizadora. Um bom editor, vai
querer um livro do Mia, do Luandino, da Conceição Lima, porque são bons
escritores. Se está na moda publicar um "autor africano", melhor ainda, mas eu
acho que eles escolhem pela qualidade. Basta ver, por exemplo, a coleção de
autores africanos da Caminho. Normalmente são de nível muito elevado. Mas eu
falo pela Caminho, que conheço melhor. Portanto, um bom editor, sabe que o
continente africano é diversificado e complexo. Um bom editor é um bom editor,
em qualquer parte do mundo, na Nigéria ou na Suécia. E um mau editor, que
poderá também ser chamado de idiota, é um idiota em qualquer parte do mundo.
143
7. Porque é que achas que os teus livros são tão bem recebidos em Portugal? Quer
dizer, quais componentes das tuas ficções achas serem mais aptas aos gostos
europeus (se achas que existem gostos que podemos definir como sendo
tipicamente europeus, ou ocidentais)?
Eu não penso nem defino as coisas assim... Em termos de "componentes mais
aptas"... Não são só os meus livros, há muitos autores muito bem aceites em
Portugal. Quero crer que é por que os livros estão bem escritos e são interessantes.
Não penso que seja só pela nacionalidade dos autores que os livros sejam melhor
ou pior aceites.
8. Achas que a tua produção tem o mesmo “lugar” no imaginário literário e
cultural da comunidade a qual está ligada, a angolana, do que tem em Portugal?
E então, que “lugar” é que têm os teus livros em Angola?
Mas um livro, digamos, "angolano", dificilmente é lido da "mesma maneira" por um
leitor angolano e um português. O referente cultural, isso que é também a "voz" de
quem escreveu e de quem vai ler, tem influência na leitura. Mas esse é o gozo:
confirmar uma voz, reconhecê-‐la; ou encontrar uma "nova voz". Acho que o leitor
português lê de outro modo, mas também o fará se ler um autor de uma região que
conhece menos bem. Sendo que, no caso dos portugueses, até alguns conhecem
"mais ou menos" a realidade de alguns desses países.
Em Angola... Só o leitor angolano pode responder. Eu não me sinto muito "apto"
para responder a esta questão.
9. Muitos consideram autores como tu, ou o Mia Couto, ou o José Eduardo
Agualusa, as “vozes africanas” da época contemporânea. Achas que isso
corresponde à realidade? Ou seja, a realidade africana passa efetivamente pelas
vossas/tuas escritas mais do que pelas obras dos menos conhecidos?
Não. Acho que passa por todas as vozes. E não apenas as literárias. Simplesmente,
alguns destes autores têm maior visibilidade em Portugal. Isso não dá exclusividade
144
a ninguém. Acho que há muitos bons autores angolanos que não estão publicados
em Portugal nem no Brasil. Ainda. Espero que venham a ser publicados....
10. Muitos investigadores afirmam haver, em relação aos autores de língua
portuguesa e procedentes de África, uma predominância de autores luso-‐
descendentes, enquanto os negros, conhecidos em Portugal, parecem ainda hoje
ser uma minoria. Estás de acordo? Será que estes dados evidenciam uma
tendência, por parte das editoras, a escolher autores que possam erguer-‐se, com
diria Inocência Mata, “a representações metonímicas da dimensão
transfronteiriça da cultura portuguesa e da vocação atlântica de Portugal”?
Esta pergunta tem de ser dirigida a quem publica autores africanos em Portugal. No
entanto, a postura cultural do "ser angolano" não tem muito a ver com a luso-‐
descendência, ou com a cor da pele. Embora eu entenda o que queres dizer. Mas
acho que a questão é pertinente e deve ser colocada aos editores.
11. Porque é que achas que alguns autores têm uma maior visibilidade em
Portugal? E se isso estivesse relacionado com a qualidade das obras, como
definirias essa mesma qualidade?
Saberias indicar uns autores que consideras válidos e que não estão publicados na
Europa e oferecer uma interpretação desta situação?
Há sempre autores com maior e menor visibilidade... No mundo. Não vamos fazer
disto uma "questão dos autores africanos". E essa visibilidade, que pode ser
discutida, nem sempre tem a ver com a qualidade. Vou dar um exemplo: a escritora
brasileira Clarice Lispector, que é muito respeitada pelos escritores, e académicos,
não é a que tem mais visibilidade. Certamente, o autor com maior "visibilidade" é
Paulo Coelho. E toda a gente torce o nariz ao ouvir este nome. Eu acho que há
grandes autores africanos publicados em Portugal e no Brasil. Acho, continuo a
achar, que é pela qualidade das suas obras, e não pelo tom de pele ou pela
nacionalidade.
145
Autores angolanos que não estão muito divulgados na Europa: Arnaldo Santos, José
Luís Mendonça, João Maimona, Boaventura Cardoso.
12. Contas muitas “estórias” sobre Angola, saberias definir a tua angolanidade ou
sentes-‐te mesmo cidadão do mundo?
Eu sinto-‐me as duas coisas em simultâneo. Aspiro a ser um cidadão do mundo, mas
as minhas referências culturais internas (e aqui digo geográficas, linguísticas,
rítmicas) prendem-‐se a Angola e a Luanda. Sou aquilo que vou sendo, e que já fui.
Amanhã, ainda não sei. Sei que a minha angolanidade abrange muitos aspectos de
outras culturas e das viagens que já fiz. E por viagens, entendo também as leituras.
Mas cada angolano terá o seu próprio conceito de angolanidade, e é preciso
respeitarmos isso.
13. Em termos de identidade, ou melhor, de identidades, que papel pode ter
jogado a tua – longa – permanência em Portugal, e as tuas relações com este país,
e como achas que isso condiciona as tuas escolhas estilísticas?
A minha longa estadia em Portugal condiciona sobretudo porque eu estava a viver a
minha adolescência. Um período de formação, pessoal, identitária também, e
estética. Os cinemas que frequentei, os filmes, as leituras, fizeram a pessoa que
hoje sou. Mas não acho que as identidades se façam exclusivamente a partir das
geografias que vivemos. Há outros elementos mais profundos (do passado) e há
elementos sempre de "escolha". Se é verdade que vamos sendo vários ao longo do
tempo, também escolhemos um pouco daquilo que queremos ser.
Achas que te adaptaste, de qualquer forma, ao gosto europeu?
Assim como não acho que exista UM "gosto africano", não posso dizer que eu
acredite na existência de um "gosto europeu". A Europa, tal como África, é um
continente. Mas não, não me adapto ao gosto de ninguém quando se trata da
literatura que faço. É um exercício consciente e estético a busca pela minha
146
liberdade literária, o que quero escrever e como o faço. Felizmente, até à data de
hoje, continuo a ser livre quanto a isso.
Achas que os escritores africanos de certa forma reproduzem “os estereótipos do
colonizador”, ainda hoje, e tentam dialogar com o cânone ocidental?
Não conheço nenhum caso de quem faça isso. Mas é possível que exista, uma vez
que não conheço nem li "todos" os escritores africanos.
14. Alguns dos teus livros veem acompanhados de um glossário? Quem é que o
decidiu e quem é que o organiza?
Quem decide é a editora, porque algumas palavras são completamente inacessíveis,
por exemplo, ao leitor português ou brasileiro. Eles organizam e eu ajudo nas
definições.
15. Sentes-‐te parte duma geração?
Talvez... Quero fazer parte de uma geração que quer fazer um continente Africano
mais moderno. E isso inclui: incorporar algumas tradições; respeitar os mais-‐velhos;
progredir, inovando; transgredir a arte, qualquer arte, como qualquer ser humano
que lide com a arte deveria fazer; proteger a nossa cultura e o nosso continente,
também aceitando a cultura e as tendências de outros lugares. Quero fazer parte de
um continente africano que tenha orgulho em si, sem excessivo nacionalismos
obtusos nem o pecado de trair a sua gente, seja de que maneira for, política,
económica, estética. Portanto, sinto-‐me parte de uma geração que partilha de
alguns destes objectivos. Talvez seja um caminho, talvez seja uma utopia, mas é
uma verdade possível de se fazer acontecer.
147
APÊNDICE II
Análise textual de Os da minha rua
As primeiras referências diretas a Luanda aparecem no segundo conto, A
televisão mais bonita da cidade, que se concentra na descrição da surpresa do
menino Ndalu ao ver pela primeira vez uma televisão a cores: “Nessa altura, em
Luanda, não apareciam muitos brinquedos nem coisas assim novas”159, afirma o
narrador ao fazer uma breve digressão. A altura em que isso acontece não está
explicitamente comunicada, como acontece também com o resto das narrações, e o
autor não se detém nesse pormenor, preferindo sem dúvida aprofundar o impacto
emotivo dado pelo insólito acontecimento. Portanto, é tarefa do leitor reconstruir,
através da rápida declaração do menino-‐narrador, um tempo histórico de
limitações, consequência de uma economia planejada e controlada pelo Estado.
Outra informação sobre a cidade e sobre os eventos que regulavam a vida
colectiva na altura dos factos é contida em O último Carnaval da Vitória, no meio do
qual o autor decide esclarecer através da voz dum dos seus primos que “era o
Carnaval da Vitória porque a 27 de Março se comemorava o dia em que as forças
armadas tinham expulsado o último sul-‐africano de solo angolano”160, oferecendo
ao leitor uma importante informação sobre o desenvolvimento das vicissitudes do
país: em 1977, o partido político do Governo decidiu que, a partir de então, se
passaria a realizar um desfile na avenida que percorre a baía no dia 27 de março,
visto que foi nesta data de 1976 que o exército da África do Sul se retirou de
Angola, depois da chamada Segunda guerra de libertação (1975-‐76). Trata-‐se
portanto duma festa não tem qualquer relação com o calendário da Quaresma, mas
foi escolhida pelo Estado na tentativa de conquistar uma base popular na cidade de
Luanda, muito útil na determinação das sortes da Guerra Civil entre MPLA, UNITA e
FLNA.
159 ONDJAKI, Os da minha rua, Lisboa, Ed. Caminho, 2008, p. 17. 160 Ibid., p. 48.
148
O conto de Ondjaki, portanto, refere-‐se ao Carnaval de 1990, último ano em
que se assistiu ao desfile, e o ritual é outra vez filtrado pelos olhos do menino Ndalu
e das palavras do autor, que, apesar da hilaridade geral logo depois da frase do
primo, declara: “[...] e bué de gente começou a estigar porque ali não estávamos
em nenhuma aula e não queriam lição de história. Mas eu pensei que o meu primo
tinha razão.” 161 . Intui-‐se aliás certo interesse do jovem narrador pelos
acontecimentos do país, e certa preocupação com um seu correto conhecimento,
apesar de isso não ser declarado. Os acontecimentos, portanto, aludem de certa
forma também à terminação daquele sistema monopartidário que marcou a política
angolana até aos finais de 1990.
Para além disso, não é a primeira vez que o tal Carnaval aparece na
literatura angolana. Outro autor contemporâneo, cujo estilo leva traços mais
satíricos e incisivos, refere-‐se à festa angolana em questão: no seu Quem me dera
ser onda, Manuel Rui decide chamar “Carnaval da vitória” o porco dum prédio de
Luanda, finalmente será morto e comido num churrasco, a significar aquela cultura
popular, grotesca e ingénua, sempre ao serviço dos interesses, da corrução, do
poder. À luz dessa obra, o evento contado por Ondjaki pode ser visto como
sociologicamente importante e alusivo a umas escolhas estatais que abusavam do
povo e do seu espírito comunitário na tentativa de ganhar os apoios necessários à
vitória da guerra em ato.
Os eventos colectivos da capital angolana aparecem também noutro conto e
este é Os quedes vermelhos da Tchi, história em que é descrito o comício do dia
internacional do trabalhador, no dia um de maio, no largo que leva o mesmo nome.
Nas palavras do narrador percebe-‐se que “nem era obrigatório, a camarada
professora disse que só ia quem quisesse”162 e que aos olhos do menino “era tudo
especial, acordarmos cedo, fazermos formação, cantarmos o hino, e irmos juntos,
mais ou menos organizados, até ao Largo 1o de Maio, sim, o largo chamava-‐se
mesmo 1o de Maio.”163 Descobre-‐se assim que as crianças se encontravam na escola
161 Ibid., p. 48. 162 Ibid., p. 57. 163 Ibid., p. 57.
149
para depois ir a pé até os Largo, para se dispor lá em formação juntamente com as
“bué de escolas”164 que já lá tinham chegado e que estavam à espera de começar
com a marcha; entretanto, “na tribuna, bem lá em cima, estava o camarada
presidente, duma camisa azul-‐clara e um lenço branco a fazer adeus aos pioneiro
que passavam”165.
Interessante é a reflexão que segue à descrição do Presidente: “Às vezes” –
diz o menino Ndalu – “penso que o camarada presidente, lá em cima e tão longe,
não devia ver o povo muito bem”166. Esta frase, a concluir o parágrafo anterior à
descrição dos cantos e dos gritos das pessoas presentes, ganha tons satíricos se se
deixar de lado que provém da voz duma criança. Na realidade, recorrer ao narrador
menino para esses comentários mitiga o impacto crítico das frases, ao mesmo
tempo, porém, dando-‐lhes a agudeza dum pensamento muito profundo se
comparado com a idade de quem as pronuncia.
É depois descrita a manifestação e com ela as frases de incitação que
animam o povo nesse dia de folga geral, até ao fim da narração em que o autor se
entrega a uma melancolia já encontrada ao longo da obra e conclui a lembrança
enfatizando a distância temporal que separa os factos do momento em que passam
a ser escritos: “Antigamente, eu ia.”167 Essas as palavras com que se fecha o conto e
com que o autor volta à dimensão da memoria, a uma dimensão passada que já
está longe.
Em Manga verde e o sal também o leitor é informado de que naquela altura
em Luanda havia “as obras do mausoléu que estavam a construir para o camarada
presidente Neto”168, apesar do assunto depois não ter nenhum aprofundamento
dentro do conto, a exceção que pelas brincadeiras das crianças que o chamam
“foguetão”. Consegue-‐se perceber que o ano em que o conto se situa é com certeza
depois de 1979 (ano em que o presidente angolano morreu em Moscovo) e que as
164 Ibid., p. 57. 165 Ibid., p. 57. 166 Ibid., p. 57. 167 Ibid., p. 59. 168 Ibid., p. 61.
150
obras eram responsabilidade “dos trabalhadores soviéticos” 169 , presentes em
grande número no país como aliados do MPLA e do exército cubano. A referência à
construção do mausoléu remete para uma realidade urbana em que a presença
soviética tinha um papel ativo, dando aos acontecimentos narrados um fundo
realista, e também remete para uma altura em que à cabeça da nação havia já o
novo presidente do partido, José Eduardo dos Santos.
Outra presença estrangeira que houve na sociedade luandense era dada
pelo exército cubano, que, intervindo em ajuda do MPLA durante a Luta de
libertação em 1975 e ficando lá também durante a Guerra Civil, não forneceu só
forças militares, mas também professores e licenciados que passaram a tomar
conta da instrução dos cidadãos mais novos. Esse elemento é contido em quase
todas as narrações do Ondjaki relativas à vida na escola, tornando-‐se contudo
emotivamente muito forte em Um pingo de chuva, estória em que é descrita a triste
despedida dos dois professores cubanos porque “a missão deles em Angola tinha
terminado e [...] se iam embora muito em breve”170. O ano do conto é portanto
1991, ano em que terminam os treze anos de presença cubana no país africano; na
narração do autor a ida dos dois professores representa principalmente uma
oportunidade para comunicar quão sofrimento são as despedidas para o
protagonista e ao assunto de matriz “histórica” substitui-‐se a perspetiva pessoal.
Outras informações sobre a vida na metrópole angolana dos anos 90, aliás,
provém das digressões sobre alguns hábitos quotidianos contidas ao longo das
escritas, que permitem ao leitor se formar uma ideia do clima cultural em que os
jovens cresciam lá nos anos 80/90. As hábitos relatados referem-‐se à ida ao Cinema
Atlântico em Jerri Quan e os beijinhos na boca e à visão do filme de combate, ou à
experiência da leitura escolar de Nós chorámos pelo Cão Tinhoso ou à emoção pela
visão das telenovelas de No galinheiro, no devagar do tempo. Para além disso, este
conto em particular é o único em que se acena diretamente a Portugal (“a Tuga”),
dado que na última narração, quando a mãe do protagonista lhe comunica que
169 Ibid., p. 62. 170 Ibid., p. 99.
151
pode ir “estudar para outro país”171 o leitor não chega a saber de que país se trata e
só conhecendo a vida do autor é que se pode intuir que se está a falar de Portugal.
No conto em questão, a menina Charlita vai a Portugal com o pai “para fazer
exames das vistas”172, mostrando uma Angola que, naquela altura como hoje, tinha
um sistema de saúde pouco desenvolvido, e na qual as famílias da classe média
frequentemente iam à Europa para ter acesso a médicos especializados. Contudo, o
discurso sobre Portugal não é aprofundado, nem sequer é matizado
ideologicamente, e a narração centra-‐se sobretudo na reconstrução das telenovelas
brasileiras tão amadas pelas cr
171 Ibid., p. 111. 172 Ibid., p. 85.
152
153
CONCLUSÃO
Em conclusão do presente trabalho é possível evidenciar como, após a
observação do fenómeno literário sob diferentes perspetivas, se demonstra que a
sua existência está estritamente ligada ao uso que dele fazem os seus
consumidores, sejam estes entidades individuais (os leitores) ou entidades plurais
(as instituições). Graças aos recursos teóricos e metodológicos utilizados, sublinhou-‐
se também que por um lado a literatura é um fenómeno estético em que as
mensagens são veiculadas por uma linguagem polissémica caracterizada por um
particular estilo, marco indelével de cada escritor, e por outro é um fenómeno
social que vive e muda conforme a sociedade, que o define e muda através das suas
instituições: passa de ser apenas um fenómeno estético a ser também um facto
literário, como o definiu Robert Escarpit.
Em relação às suas componentes textuais, é possível detetar dentro de estas
uma série de estratos heterogéneos – quatro, segundo Roman Ingarden – que
desempenham funções diferentes, e estão ligados uns com os outros através das
unidades básicas de sentido, ou seja as palavras. A “ficcionalidade” representa uma
característica imprescindível do texto literário, pois através das palavras a realidade
e o contexto cultural são transformados por parte de indivíduos que com elas criam
mundos “outros”, regido por outras leis.
Na definição do fenómeno literário intervêm também as chamadas
instituições literárias, um conjunto de entidades, de canais de transmissão, que
inevitavelmente participam da determinação das fronteiras que marcam o facto
literário. Entre estas aparecem as universidades, os programas de ensino, os
prémios literários, as revistas, as edições, em suma todas as entidades que
consagram as obras como sendo literárias e que participam na sua transmissão ao
grande público.
Enquanto fenómeno social, e portanto para além dos textos e das suas
funções estéticas, as teorias de Pierre Bourdieu sobre o campo literário e a
154
Polysystem theory de Itamar Even-‐Zohar revelaram-‐se fundamentais para a
compreensão das dinâmicas reguladoras do complexo sistema de fatores que
chocam entre si para determinar o que entra ou não entra dentro do campo ou
sistema literário. Estas abordagens mostram que, com o avançamento dos estudos
de matriz social, também foram modificando-‐se as investigações sobre a literatura e
foram reconhecidas de as suas conexões com a sociedade, da qual constitui um
elemento fundamental.
A teoria dos campos “dessacraliza” a figura do artista, afirmando que este
nunca está completamente livre quando cria e o seu sucesso depende da posição
ocupada dentro do campo de que faz parte, sendo a posição determinada pela
distribuição das três espécies de capital e do poder. Com uma linguagem
procedente do ambiente económico, Pierre Bourdieu define o campo literário como
um microcosmo social, um espaço de lutas entre capitais, interesses e posições em
que o objetivo de cada participante é ganhar a credibilidade necessária para a
venda dos seus produtos: o campo literário está sempre numa posição de
subordinação em relação ao campo do poder e os seus participantes estão sempre
movidos pela necessidade do lucro.
Paralelamente às investigações do sociólogo francês, o professor israeliano
Itamar Even-‐Zohar concebeu a acima referida Polysysthem theory, uma teoria de
sistema que postula a natureza dinâmica e heterogénea de todos os sistemas
semióticos, entre os quais se encontra a literatura. O termo “polissistema” é
utilizado para evidenciar desde logo a estruturação do sistema literário: este é
tratado como um conjunto de elementos, aberto e heterogéneo, dentro do qual
coexistem, entrelaçando-‐se, muitos outros sistemas com a mesma natureza cuja
relação garante a vitalidade necessária à sobrevivência do polissistema literário.
Graças a este dinamismo, o sistema literário é capaz de adatar-‐se às mudanças que
operam a nível social, sem perder o seu papel fundador. Como no caso da teoria
dos campos, as lutas, os choques e o movimento constante constituem os
elementos distintivos do sistema literário.
155
Portanto, depois de ter apresentado as noções que fizeram de pano de
fundo para as considerações de partida para a presente pesquisa, foram detetadas
as principais mudanças a nível político, económico e social que parecem ter
condicionado e modificado o campo literário português a partir da ditadura e após a
sua queda, até aos primeiros anos do século XXI: a longa duração do regime
ditatorial, a eclosão e o fim da Guerra Colonial, o processo revolucionário de 1974-‐
75 e a integração de Portugal na União Europeia, foram acontecimentos
particularmente relevantes a nível histórico, social, político e ideológico e
desempenharam um papel importante na transformação dos comportamentos e
das mentalidades da comunidade em questão.
O contexto histórico condicionou as ideologias que marcaram a perceção da
identidade nacional e a consequente relação com a alteridade, tão importante na
definição da imagem do país também a nível europeu e mundial. Com uma
constante tendência ao irrealismo – detetada por Eduardo Lourenço –, na
sociedade portuguesa foram desenvolvendo-‐se teorias e interpretações da
“portugalidade” que deixaram um marco indelével nas mentalidades do seu povo: a
partir do Integralismo Lusitano de Luís de Almeida Braga, passando pelo Luso-‐
tropicalismo de Gilberto Freire, até à fusão entre colonialismo e nacionalismo
propagandeada pelo Estado Novo, até chegar à ideia de Lusofonia de Agostinho da
Silva, as ideologias dominantes moldaram e condicionaram a formação dos
diferentes sistemas socioculturais que hoje definem Portugal.
Dada a dificuldade mostrada em empreender novos caminhos e mudanças, e
dada a ancoragem num passado mítico e irreal que ainda hoje se reflete nas esferas
mais institucionalizadas da sociedade portuguesa, não surpreende que a
observação da receção de autores angolanos num período que vai desde a presença
do Estado Novo ao tempo presente, tenha mostrado alguns limites percetivos e
interpretativos por parte destas últimas na aceitação da diversidade cultural.
Através da análise da abordagem aos escritores procedentes de Angola que
as chamadas instâncias de legitimação manifesta, tentou-‐se verificar se
efetivamente existe certa tendência a privilegiar os autores que Inocência Mata
156
define de “nacionalidade hifenizada” e os que difundem discursos sobre o antigo
estado colonial ideologicamente pouco matizados, quer nas suas obras, quer
quando entrevistados ou convidados para participar em colóquios públicos.
Em particular, a observação de instâncias como os sistemas de ensino
primário e secundário, o Plano Nacional de Leitura, os prémios literários e as
revistas especializadas, evidenciou certa tendência para a promoção de apenas um
exíguo numero de escritores, sobretudo se se considera que a literatura angolana é
uma das mais sólidas e ricas dentro do panorama literário africano lusófono. Entre
estes, os nomes de José Eduardo Agualusa, João Melo e Ondjaki, são fáceis de
encontrar. Muitos outros nomes, como o de Manuel Rui, João Tala ou Boaventura
Cardoso hoje não estão tão divulgados, e portanto, acabam por ser muito menos
conhecidos, embora as suas produções sejam igualmente válidas.
As universidades, por sua parte, são os únicos ambientes onde efetivamente
a presença de ideologias enganadoras é reduzida, assim como é menos forte a
influência das heranças imperiais e colónias; contudo, infelizmente estas são vítimas
do estatuto periférico que o próprio país tem dentro do panorama mundial e
portanto o seu impacto é pouco consistente. Os estudos pós-‐coloniais
especificamente dedicados às literaturas africanas de língua portuguesa estão numa
fase de atraso se comparados com os que se interessam nas literaturas anglófonas
ou nas francófonas. Outro limite muito grande é representado pela educação que
os alunos recebem antes de entrarem na universidades, pois chegam às aulas sem
possuíra um bagagem conceptual e cultural suficiente para que depois recebam
ativamente e criticamente os autores procedentes das áreas africanas: o sistema
educativo portuguesa continua a não promover a formação de mentalidades
abertas e capazes de aceitar o Outro, que seria possível através do contacto com
textos diversificados, um grande número autores e a observação de contextos
diferentes do habitual.
A pesquisa efetuada evidenciou, em primeiro lugar, a necessidade de
ampliar o conjunto de autores africanos lidos pelos jovens portugueses também a
nomes menos conhecidos mas igualmente relevantes na formação das nações pós-‐
157
coloniais, como por exemplo Luandino Vieira, que nunca aparece mencionado entre
as leituras obrigatórias. Em segundo lugar, mostrou também que é necessário que
os professores divulguem desde os primeiros anos do ensino uma ideia de sistema
literário aberta, heterogénea e dinâmica, sobretudo dada a variedade de literaturas
e de culturas veiculadas (oficialmente) pela língua portuguesa. Finalmente, resultou
evidente que uma atitude ativista por parte dos investigadores nem sempre ajuda
na formação de interpretações imparciais e pertinentes, ou na superação do
estatuto periférico das literaturas africanas e que é necessário também ter em
conta das realidades sociais dos países de proveniência dos autores.
Além disso, o mundo da edição literária parece ter sido afetado de modo
notável pelos postulados do discurso oficial, conforme as épocas e a situação
sociopolítica. Isto se torna mais evidente quando se observa a edição de autores
angolanos, pois foi quase totalmente ausente durante o Estado Novo, viu uma
intensificação logo depois da instauração da democracia e, por fim, certa
retrocessão nos anos 90.
Hoje, as editoras que mais se dedicam à publicação de obras de autores
africanos lusófonos são a Editorial Caminho, as Publicações Dom Quixote, a Cotovia,
a Asa, às quais se podem acrescentar as Edições Afrontamento, a editora Novo
Imbondeiro e as Edições Colobri. Porém, em Portugal continua a faltar uma livraria
especificamente dedicada às escritas africanas de língua portuguesa, uma revista
concretamente especializada nelas e, de facto, ainda são poucos os esforços para
que se forneçam as ferramentas necessárias para uma sua receção livre das
heranças do passado.
Escolheu-‐se como caso editorial de exemplo o jovem Ondjaki, dada a ampla
divulgação da sua obra em Portugal como representativa da literatura angolana e os
interessantes mecanismos legitimadores e recetivos que se atuam em relação a ela.
Na tentativa de respeitar a ordem de exposição das abordagens aos estudo
literários seguida nos capítulos precedentes, em primeiro lugar observaram-‐se os
textos e os valores culturais veiculados por eles para fornecer uma primeira
panorâmica dos conteúdos que o caracterizam. A isso, seguiu uma análise mais
158
detalhada da posição que o autor estabeleceu e mantém no mercado editorial
português.
Evidenciou-‐se que, dentro da vasta gama de textos que o autor publicou
através da Editorial Caminho, apenas alguns receberam uma efetiva promoção e
divulgação, até aparecerem hoje no Plano Nacional de Leitura e nas leituras
obrigatórias da escola. Outros textos editados continuam pouco conhecidos, e é
curioso que estes sejam mais ousados em relação aos conteúdos e ao uso da língua.
Finalmente, foi necessário considerar o processo de construção da imagem
pública do autor, fruto da preocupação quer da editora, quer do mesmo autor, que
colaboram, uma conscientemente e outro menos, a fim de que passe uma imagem
acolhedora, sociável e simpática do escritor, perfeitamente em linha com as
ideologias mais fortes que querem divulgar uma ideia pacificadora e mitigada do
papel colonizador de Portugal na história dos países africanos.
Contudo, o autor consegue intervir diretamente no processo de divulgação e
promoção da sua obra, assim como na construção da sua imagem perante o
público, devido ao uso incessante das redes sociais. Estes meios comunicativo,
juntamente com a internet, facilita por um lado a gestão e a comunicação direta do
autor com os seus leitores, e vice-‐versa; por outro, oferece uma grande quantidade
de material sobre ele, que provavelmente seria muito mais difícil encontrar de
outra maneira.
Seria útil, porém, poder ter maior acesso aos dados relativos à edição, pois
os editores estão relutantes para fornecer informações detalhadas sobre as vendas
e as estatísticas do mercado que permitiriam, por sua parte, conduzir uma análise
mais aprofundada das dinâmicas aqui evidenciadas. Os investigadores, por sua
parte, têm de estar atentos a não se perder em guerrilhas ideológicas que acabam
por comprometer, em parte, as suas capacidades de juízo e as suas posições dentro
do campo literário. Deveriam, aliás, conduzir um trabalho de difusão mais
consistente e tentar ultrapassar, com as suas propostas e a sua promoção, o lugar
periférico em que hoje se encontram.
159
Seria interessante poder integrar esta primeira hipótese com uma análise do
campo literário em Angola, para ver que mensagens são transmitidas e que autores
são privilegiados. Nesta pesquisa, a observação foi dirigida principalmente para
Portugal, mas as possibilidades para uma ampliação são muitas: incluir um estudo
da receção de autores angolanos no Brasil também poderia contribuir para oferecer
uma visão mais ampla e crítica da hodierna Lusofonia, para ver como são traduzidas
as relações de três espaços muito diferentes mas inequivocamente entrelaçados;
observar mais detalhadamente os projetos de cada editora seria outra integração
possível; ampliar com exemplos também de autores que não chegaram a Portugal
forneceria outros motivos de reflexão e comparação que ajudariam a construir um
discurso mais sólido em relação a um assunto de tão difícil definição.
160
161
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Site da Caminho Editora:
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http://visao.sapo.pt/gen.pl?sid=vs.sections/25193
Site do Público:
www.publico.pt
Site do blogue Buala:
www.buala.org
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AGRADECIMENTOS
Esta pesquisa nasceu em Portugal e está profundamente ligada a uma terra que me
acolheu e continua a acolher-‐me como se me pertencesse profundamente, e como
se eu lhe pertencesse igualmente. Portugal não é só um país, uma cultura, um povo;
é também um casa, um espaço onde o misticismo, o oceano e o possível se
encontram numa dança quotidiana de irrealidade. O primeiro agradecimento vai,
portanto, a Portugal, a como consegue deixar viver em mim todos os tempos e os
espaços no mesmo momento, mostrando-‐me e demonstrando-‐me que é possível
ser tudo, e mais alguma coisa.
O segundo, profundo, agradecimento é dedicado à Sra. Prof. a. Vanessa Castagna e
ao Sr. Prof. Alessandro Scarsella, que aceitaram conduzir-‐me neste caminho
formativo sem pré-‐aviso, suportando-‐me e ensinando-‐me o que significa conduzir
uma pesquisa, um trabalho concreto, uma fatiga intelectual. Se não fosse por eles e
pelo seu esforço também, provavelmente este trabalho nunca teria visto a luz.
Em particular, tenho que agradecer e abraçar (metaforicamente) a Sra. Prof. a
Vanessa Castagna também pelas longas e profundas conversas que acompanharam
estes últimos anos da minha formação académica e identitária.
Outro agradecimento vai ao Sr. Prof. Pires Laranjeira, cuja paixão e disponibilidade
me trouxeram à mente as razões que me animaram desde o dia em que escolhi de
me dedicar ao estudo da língua portuguesa e de todos os mundos que nos mostra.
O Sr. Prof. Pires Laranjeira lembrou-‐me também da importância de partilhar o
saber, e graças a gratuitidade da sua generosidade e dos seus conselhos consegui
recolher a maior parte do material com que formulei e formei o meu pensamento.
Agradeço à minha família, aos amigos mais presentes e aos menos também, que me
deixam livre e me acompanham. Agradeço à Literatura, que me é amiga e
companheira.
Um último agradecimento vai a Ondjaki, que é um ser humano mesmo muito
poético.