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UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE EDMUNDO GOMES JÚNIOR “MAL SABIA ELE...”: A INTERTEXTUALIDADE LITERÁRIA NO FILME MAIS ESTRANHO QUE A FICÇÃO São Paulo 2013

EDMUNDO GOMES JÚNIOR

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Page 1: EDMUNDO GOMES JÚNIOR

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UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE

EDMUNDO GOMES JÚNIOR

“MAL SABIA ELE...”:

A INTERTEXTUALIDADE LITERÁRIA NO FILME

MAIS ESTRANHO QUE A FICÇÃO

São Paulo

2013

Page 2: EDMUNDO GOMES JÚNIOR

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EDMUNDO GOMES JÚNIOR

“MAL SABIA ELE...”:

A INTERTEXTUALIDADE LITERÁRIA NO FILME

MAIS ESTRANHO QUE A FICÇÃO

Dissertação apresentada ao Programa de

Pós-Graduação em Letras da Universidade

Presbiteriana Mackenzie, como requisito parcial para

obtenção do título de Mestre em Letras.

ORIENTADORA: Profª Dra. Helena Bonito Couto Pereira

São Paulo

2013

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G633m Gomes Júnior, Edmundo.

“Mal sabia ele...” : a intertextualidade literária no filme Mais

estranho que a ficção / Edmundo Gomes Júnior. – 2013.

114 f. : il. ; 30 cm.

Dissertação (Mestrado em Letras) - Universidade Presbite-

riana Mackenzie, São Paulo, 2013.

Referências bibliográficas: f. 107-114.

1. Intertextualidade. 2. Cinema. 3. Literatura. 4. Kristeva,

Julia, 1941-. I. Título.

CDD 401.41

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EDMUNDO GOMES JÚNIOR

“MAL SABIA ELE...”:

A INTERTEXTUALIDADE LITERÁRIA NO FILME

MAIS ESTRANHO QUE A FICÇÃO

Dissertação apresentada ao Programa de

Pós-Graduação em Letras da Universidade

Presbiteriana Mackenzie, como requisito parcial para

obtenção do título de Mestre em Letras.

Aprovada em 12 de dezembro de 2013.

BANCA EXAMINADORA

______________________________________________________________

Profª Dra. Helena Bonito Couto Pereira – Orientadora

Universidade Presbiteriana Mackenzie

______________________________________________________________

Profª Dra. Ana Lúcia Trevisan

Universidade Presbiteriana Mackenzie

______________________________________________________________

Profª Dra. Elisabeth Brait

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

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5

Dedico este trabalho a minha mãe,

minha primeira professora.

Page 6: EDMUNDO GOMES JÚNIOR

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AGRADECIMENTOS

A Deus, por ter colocado estas pessoas em meu caminho.

À estimada Professora Helena, pelo constante incentivo desde meu primeiro ano de

graduação, por sua paciência e tranquilidade nas orientações, por seus conselhos que seguirei

por toda vida, por seu exemplo de integridade e, principalmente, por sua grande amizade.

A Eli, anjo da guarda cuja presteza foi fundamental nos momentos em que as respostas

não estavam nos livros.

À minha mãe, meu porto seguro, por acreditar em meus sonhos. Sem seu apoio

nenhum deles seria possível.

À minha avó Julia, exemplo de caráter e amor incondicional. Saudade eterna.

À CAPES e à Universidade Presbiteriana Mackenzie, pela bolsa de estudos concedida,

fundamental para o desenvolvimento deste trabalho.

À Profª. Dra. Elisabeth Brait, pela leitura atenciosa de meu trabalho e pelas preciosas

críticas e sugestões feitas durante a banca de qualificação que possibilitaram o

amadurecimento da idéia.

À Profª Dra. Ana Lúcia Trevisan, pelas contribuições não só durante a banca de

qualificação, mas também durante o curso de pós-graduação, compartilhando seu grande

conhecimento do universo do fantástico, que possibilitou diferentes pontos de vista sobre esta

pesquisa, e por me apresentar à Literatura Hispano-Americana, cujas sugestões, mesmo

quando não inteiramente seguidas, estão constantemente presentes em minhas reflexões e

motivarão novos estudos.

Aos professores do programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade

Presbiteriana Mackenzie, especialmente às Profª Dra. Aurora Gedra, Profª Dra. Elisa

Guimarães, Profª Dra. Lilian Lopondo, Profª Dra. Marlise Vaz Bridi e Profª Dra. Maria Luiza

Atik, cujas aulas nunca esquecerei, e à Profª Dra. Maria Lúcia Vasconcelos, por me fazer

entender que não é possível colocar um oceano num copo d’água.

Aos amigos Gisele, Sheila, Marcelo, colegas de mestrado e companheiros de jornada,

presentes nos momentos mais importantes, e Luiz Felipe, Renato, André, Thaís, Adriana,

Cida, Nany, Paula, Denise e Felipe, por entenderem minha ausência.

À Phoebe, que por muitas madrugadas de trabalho esteve ao meu lado em silêncio.

Aos meus alunos da EE Major Arcy, por mostrarem que não há impossível.

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We shall not cease from exploration

And the end of all our exploring

Will be to arrive where we started

And know the place for the first time.

(T. S. Eliot)

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RESUMO

Este trabalho tem como objetivo analisar o filme Mais estranho que a ficção (2006), dirigido

por Marc Foster, no viés do conceito de intertextualidade, criado por Julia Kristeva. É

apresentada uma pesquisa sobre as obras literárias citadas na película e seus efeitos na

narrativa fílmica, visando assim discutir de que modo a intertextualidade propicia a produção

de sentido. Para essa análise foi levantada a origem desse conceito, confrontando o

dialogismo de Mikhail Bakhtin com os textos de Kristeva. A autora elaborou, além da

intertextualidade, os conceitos de ambivalência e transposição, termos que são empregados

posteriormente por outros autores. Durante a análise foi possível notar, através dos intertextos

presentes no filme, a natureza prometaica da criação ficcional, onde criadores enfrentam a

decadência, as semelhanças entre as representações dos mestres na ficção em relação à

jornada do herói épico, a utilização da écfrase como antecipação do desfecho da estória e a

formação da identidade das personagens da obra através do diálogo.

Palavras-chave: Intertextualidade; Cinema; Literatura; Kristeva.

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ABSTRACT

This essay aims to analyze the film Stranger Than Fiction (2006), directed by Marc Foster,

following of the concept of intertextuality, created by Julia Kristeva. It presents a survey of

the literary works mentioned in the film and their effects on film narrative, in order to discuss

how intertextuality enables the production of meaning. For this analysis the origin of this

concept is researched, confronting the dialogism of Mikhail Bakhtin with Kristeva's texts.

Kristeva also developed the concepts of ambivalence and transposition, terms that are used

later on by other authors. During the analysis it was possible to see through the intertexts in

the film the Prometheus theme repeated in the nature of fictional creation, where creator face

decay, the similarities between the representations of mentors in fiction in relation with the

epic hero's journey, as the use of ecphrasis as an anticipation of the outcome of the story and

the formation of the identity of the characters work through dialogue.

Keywords: Intertextuality; Literature; Cinema; Kristeva.

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SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO ........................................................................................................ 11

1.1. Sobre o Objeto de Estudo ........................................................................................ 14

2. INTERTEXTUALIDADE NA LITERATURA E NO CINEMA ........................ 18

3. CATEGORIAS NARRATIVAS EM MAIS ESTRANHO QUE A FICÇÃO ....... 34

3.1. A construção do gênero narrativo por meio da mimesis e do diálogo ..................... 41

3.2. A écfrase em Mais estranho que a ficção: o intertexto interartes ............................ 46

3.3. Lentes e espelhos: metáforas de uma metaficção .................................................... 49

4. LUGARES E DISCURSOS DOS MESTRES NA FICÇÃO ................................ 55

4.1. A caverna do mestre ................................................................................................ 56

4.3. O discurso como formador da identidade do professor ........................................... 63

5. HOMENS SEM CARNE E A NATUREZA PROMETAICA DA CRIAÇÃO

FICCIONAL ................................................................................................................. 79

6. A FORMAÇÃO DA IDENTIDADE EM MAIS ESTRANHO QUE A FICÇÃO . 96

7. CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................. 104

REFERÊNCIAS ......................................................................................................... 107

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1. INTRODUÇÃO

Este trabalho tem como objetivo discutir o filme Mais estranho que a ficção, dirigido

por Marc Foster, no viés da intertextualidade, dentro da perspectiva da produção

cinematográfica como objeto artístico dentro de uma linguagem própria de seu suporte, mas

que se apropria de recursos de outras linguagens, como a Pintura e a Literatura. Para isso,

discutiremos o filme pelo à luz dos conceitos sistematizados por Julia Kristeva, pesquisando

sobre as obras literárias citadas na película e seus efeitos na narrativa fílmica, visando assim

discutir de que modo a intertextualidade propicia a produção de sentido.

A escolha deste filme foi feita devido à grande quantidade de referências à Literatura

nele presentes. Tomaremos o filme e sua narrativa como eixo central, tratando os principais

aspectos intertextuais conforme eles são apresentados na obra.

Partiremos da gênese do conceito de intertextualidade e de sua repercussão

epistemológica e trabalharemos essa formulação não só na pesquisa sobre as obras citadas,

mas também nos efeitos de sentido e recursos que são utilizados em comum na Literatura em

obras aparentemente sem relação com o filme, mas, como a pesquisa indicará, dialogam entre

si dentro de um universo temático.

Este trabalho pode servir de suporte ao ensino de Língua e Literatura, embora não

esteja voltado para a educação, já que o estudo da intertextualidade faz parte do currículo do

Ensino Médio (SEE, 2009, p.25). A escassez de referencial prático e teórico para esse estudo,

entretanto, acaba dificultando que a intertextualidade e outros conceitos sejam trabalhados

pelos professores, que muitas vezes os desconhecem.

A identificação desta lacuna na vivência cotidiana do trabalho em sala de aula

originou a idéia inicial deste trabalho. No exercício desta função, sobretudo no Ensino Médio,

podemos notar uma dificuldade dos alunos em aplicar os conceitos abordados nas aulas de

Língua e Literatura, sobretudo aqueles que necessitam de maior reflexão e abstração para

serem compreendidas, dentre eles as figuras de linguagem e estilo e a intertextualidade

presentes nos textos.

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Além disso, nas aulas de Língua Estrangeira notamos que, apesar das inovações e

novas abordagens de ensino, boa parte do material pedagógico e, consequentemente, o plano

de aula, ainda focam o ensino da gramática e a leitura de textos cuja interpretação consiste em

questionários que visam a coleta de dados. Essa abordagem, por sua vez, gera um desinteresse

pela leitura que se reflete na busca por resumos de obras literárias e pela pouca busca em

bibliotecas. Deve ser suprida, portanto, uma lacuna de novas propostas da obra literária não só

como objeto de estudo, mas também como fonte de inspirações, o que pode aproximar o aluno

da obra literária, vendo o estudo da Literatura não como uma simples identificação categórica

de obras dentro de gêneros: é preciso ir além do pensar literário e despertar no estudante de

Literatura interesse no fazer literário. Para isso, faz-se necessário a utilização na sala de aula

de obras cujo cerne esteja na criação literária, na figura do narrador e seus dilemas e na

intertextualidade presente nas obras escolhidas.

Entretanto, um dos principais fatores da dificuldade em compreender a

intertextualidade, além dos diferentes níveis de interpretação, provém do baixo repertório de

leituras, não somente de obras literárias, mas também das leituras de mundo, o que é

compreensível pela idade ou pelo grau de formação dos alunos. É necessário, portanto, um

direcionamento auxiliado pelo professor para que esses alunos possam identificar a

intertextualidade nas obras analisadas. Não compete ao professor, porém, atuar como um

intérprete de mundo para o aluno, mas fornecer as ferramentas para que essas leituras sejam

feitas.

Para Roland Barthes, um dos prazeres do texto está na intertextualidade, pois um texto

sempre remete a outro, num fenômeno que o autor descreve como “simplesmente uma

lembrança circular. E é bem isto o intertexto: a impossibilidade de viver fora do texto infinito

quer esse texto seja Proust, ou o jornal diário, ou a tela de televisão: o livro faz o sentido, o

sentido faz a vida.” (BARTHES, 1987, p. 49, grifos do autor.)

Em Texto, discurso e ensino, Elisa Guimarães sugere atividades ligadas à

intertextualidade, dentre elas:

Exploração de um texto, nele procurando traços de intertexto – o que desperta no

aluno a consciência de cultura, dado o fato de a intertextualidade, enquanto permuta de

textos, inscrever o enunciado na cadeia infinita de discursos. (GUIMARÃES, 2009, p.

164, grifos da autora)

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Faz-se necessário, portanto, evocar obras que além de conterem traços de

intertextualidade, despertem o prazer pela Literatura. Dificilmente, porém, será possível

atingir um público alvo junto ao qual se deseja criar o gosto pelos livros se não houver um

suporte intermediário, isto é, não se motiva alguém a ler com um texto que fale sobre a

importância da leitura, dada a resistência do indivíduo a esse hábito.

A utilização do cinema em sala de aula auxilia neste propósito, dentre muitas outras

possibilidades exploradas por autores como Marcos Napolitano, que dedicam seus estudos a

essa proposta de ensino-aprendizagem:

Trabalhar com o cinema em sala de aula é ajudar a escola a reencontrar a cultura, ao

mesmo tempo cotidiana e elevada, pois o cinema é o campo no qual a estética, o lazer,

a ideologia e os valores sociais mais amplos são sintetizados numa mesma obra de

arte. Assim, dos mais comerciais e descomprometidos aos mais sofisticados e

“difíceis”, os filmes tem sempre uma possibilidade para o trabalho escolar.

(NAPOLITANO, 2009, p. 15)

Esses autores, entretanto, enfatizam a utilização do cinema em disciplinas como

História, Geografia e Ciências Sociais, ou quando é citada a Literatura, limitam-se às

adaptações de obras de livros para filmes. Propomos, portanto, utilizar uma obra

cinematográfica que tenha a intertextualidade, implícita ou explicitamente, presente em sua

temática, e o filme Mais estranho que a ficção atende a esse propósito.

A atuação docente foi inspiradora para a elaboração desta pesquisa, porém não

buscaremos apresentar o trabalho da intertextualidade através de uma sequência didática,

visto que esse tipo de recurso não considera os diferentes contextos de ensino e idealiza

situações utópicas, tanto de recursos de sala de aula quanto de material humano. Ao invés

disso, priorizaremos a análise do filme e a pesquisa que ele provoca, demonstrando como a

intertextualidade não só desperta a memória de textos anteriores, mas também provoca novas

leituras.

Pressupomos aqui que as referências presentes em Mais estranho que a ficção não

foram escolhidas ao acaso, de modo que apresentam sua função dentro da temática do filme, e

o que pretendemos, portanto, é investigar a relação das obras citadas com os elementos

narrativos da obra cinematográfica.

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1.1. Sobre o Objeto de Estudo

Mais estranho que a ficção, título original Stranger than Fiction, conta a estória de Harold

Crick (Will Ferrell), um solitário auditor da Receita Federal americana (e seu relógio, nas

palavras da narradora). Harold tinha vida e rotina controladas de modo quase obsessivo-

compulsivo, até que começa a ouvir uma voz descrevendo seus atos. Passa então a tentar

descobrir de quem é essa voz, busca a ajuda de uma analista, que lhe recomenda, mediante

sua recusa em tomar medicação, a procurar um especialista em Literatura. Harold se encontra

com o professor Jules Hilbert (Dustin Hoffman), que recomenda descobrir se a vida de

Harold, caso seja uma obra literária, consiste em uma tragédia ou em uma comédia. Após o

levantamento das características destes dois gêneros narrativos definidos pelos tratados

aristotélicos, Harold retorna para conversar com o professor, e descobre que a voz que narra

sua vida pertence a Karen Eiffel (Emma Thompson), escritora famosa por matar os

protagonistas de suas obras.

Harold consegue se encontrar com Karen, sem questionar a existência da narradora,

pois sua preocupação maior é pedir-lhe que não o mate. A assistente de Karen (Queen Latifa)

sugere que ela deixe Harold ler os esboços do livro. Após essa leitura, apresentada também ao

professor, o herói percebe que sua morte tem um sentido para a narrativa.

O protagonista diz a Eiffel que entende a necessidade de sua morte para que a obra se

torne grandiosa. A tensão do filme passa então para o dilema das escolhas entre vida e morte

da narradora e do protagonista: se Karen decidirá matar o herói e se Harold aceitará essa

morte.

Ironicamente, Harold passa a aproveitar melhor a vida: investe em seu relacionamento

com Ana Pascal, aprende a tocar guitarra, presenteia seu amigo com uma estadia em um

centro de treinamento para astronautas e preocupa-se menos com o trabalho e com a maneira

minuciosa ao desempenhar suas tarefas mais mundanas.

Na manhã da fatídica sexta-feira prevista para sua morte, diferentemente dos outros

dias, em que andava apressado, Harold caminha tranquilo para o ponto de ônibus. Quando a

condução se aproxima, um garoto guiando uma bicicleta entra em seu caminho, e Harold se

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joga no lugar do menino para salvá-lo de um atropelamento. Harold é mostrado atropelado, a

câmera se afasta e há uma transição para uma conversa entre Karen e Hilbert. Ela lhe entrega

uma cópia do livro, dizendo que ele pode estar interessado no novo final. Harold é mostrado,

com grande parte de seu corpo engessado. Um médico lhe explica que ele fora salvo por uma

lasca solta do relógio de pulso no momento de impacto com o ônibus, e Harold explica à

namorada que não teve escolha a não ser salvar o garoto de ser atingido.

Eiffel conversa com o professor Hilbert sobre o desfecho do livro e como ele não faz

sentido com o restante da obra. A autora diz que irá reescrevê-lo. O professor lhe pergunta por

que mudou o livro, ela explica que inicialmente era uma estória sobre um homem que não

sabia que morreria, e então morre, mas se o homem sabe que irá morrer e o faz por vontade

própria, mesmo sabendo que isso poderia ser evitado, não seria esse tipo de homem – ela

questiona - que se gostaria de manter vivo?

A escritora faz sua última narração, complementada pelas imagens de todas as

personagens do filme, retomando suas vidas. Diferentemente do sentimento de uma tragédia

anunciada do início da estória, ela narra como Harold sentiu que tudo daria certo daquele

momento em diante, levando ao típico e talvez inesperado final feliz hollywoodiano.

1.2. Possibilidades de Leituras de Mais estranho que a ficção

Tendo neste estudo a intertextualidade como visão de leitura, não ignoramos a gama

de possibilidades de análise que Mais estranho que a ficção permite, dada sua função como

produto ideológico, visto que toda produção humana pode se tornar símbolo e não apenas

existir como parte de uma realidade, mas também refletir e refratar uma outra, estando sujeito

aos critérios de avaliação ideológica e análises de questões filosóficas, psíquicas, históricas e

sociais sobre as manifestações da linguagem.

Dada essa gama de possibilidades, dentro do viés da ficção como produção textual e

estética, sem nos atermos em profundidade aos aspectos formais do filme, no que concerne à

escolha de ângulos de câmera e edição, por exemplo, elencaremos algumas propostas de

análise, das quais a última delas norteia os objetivos deste trabalho. A primeira dessas

propostas se atenta à metalinguagem presente na obra, pela indicação da ficção para si

mesma, de uma estória dentro da outra. Ligada a essa metalinguagem também é possível

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analisar a presença do insólito gerado pela situação, o que leva a um questionamento quanto à

existência de Harold, da autora e da própria ficção em si. A esta reflexão sobre a ficção se

acresce, por sua vez, uma análise sobre a representação dos elementos da narrativa, da qual o

próprio filme, dentro do discurso do professor, traz uma reflexão didática sobre os gêneros da

narrativa e sua estrutura e serve, por exemplo, como fator de motivação para que alunos

produzam ficção, ao invés de apenas se prenderem à análise de gêneros.

Uma quarta possibilidade de leitura se manifesta pela gradação do abstrato para o

concreto que o filme apresenta, da teoria literária para a prática da escrita, através das

antíteses de discursos do professor de Literatura e da escritora. Também é possível analisar

Mais estranho que a ficção pelo seu cunho social, visto que Harold é um pária e não apresenta

as características do herói convencional, e a ficção, por sua vez, pode representar tais

indivíduos marginalizados como uma forma de denúncia daqueles invisíveis socialmente.

Mesmo estando fora do padrão épico, o trajeto de Harold na narrativa fílmica também segue a

estrutura da jornada do herói, o que também permite analisar a narrativa identificando os

estágios dessa jornada até sua conclusão.

Uma última proposta de análise (no sentido de enumeração e não de possibilidade), e à

qual iremos dar maior importância, levando em conta as delimitações do trabalho científico,

está na intertextualidade presente em Mais Estranho que Ficção. Ela se manifesta, em sua

forma mais explícita, nas citações presentes no decorrer do filme, seja no discurso das

personagens, seja nas imagens que nos remetem a outros textos.

Para a realização dessa análise, iniciaremos no capítulo Intertextualidade na

Literatura e no Cinema um panorama dos conceitos de intertextualidade sob diferentes

perspectivas teóricas, comparando-as e visando identificar pontos em comum dentre elas a

fim de delimitar o escopo de trabalho. Ainda dentro do estudo do intertexto, exploraremos

como essa característica textual também se manifesta na linguagem do cinema.

Em Categorias Narrativas em Mais estranho que a ficção analisaremos como o

gênero narrativo pode ser definido através da mimésis, isto é, o conceito aristotélico da arte da

imitação e da representação, e da maneira com se conduz o diálogo entre as personagens.

Também trabalharemos o conceito de écfrase e quais suas contribuições para a construção da

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trama, além das estratégias da linguagem cinematográfica pra metaforizar mudanças de foco

narrativo.

Em Lugares e discursos dos mestres na ficção analisaremos a intertextualidade entre

Mais Estranho que Ficção e algumas obras literárias em que a representação do mentor do

protagonista dialoga com a caracterização do professor Hilbert, tanto em sua apresentação e

seu discurso quanto no espaço em que ele se encontra, nos artifícios de produção do engano

no encontro entre aluno e mestre. Trabalharemos o conceito de ironia dramática e

demonstraremos sua manifestação como uma forma de metalinguagem.

Em Homens sem carne e a natureza prometaica da criação ficcional exploraremos a

intertextualidade entre Mais estranho que a ficção e os mitos e fábulas que tratam da origem

do homem ou de personagens cuja constituição física reflete sua incompletude e como essa

escassez direciona a narrativa a um confronto entre esses construtos e seus criadores.

Trataremos das transformações do protagonista em A formação da identidade em Mais

estranho que a ficção, tendo em vista a influência do debate entre personagens e a função

modificadora da narrativa e, que mesmo na estória de um anti-herói moderno, reflete a

jornada do herói clássico.

Em Considerações finais, faremos uma síntese das discussões levantadas por esta

dissertação e exporemos os resultados finais deste estudo, além de possíveis propostas de

continuidade e aplicação desse trabalho.

Page 18: EDMUNDO GOMES JÚNIOR

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2. INTERTEXTUALIDADE NA LITERATURA E NO CINEMA

O conceito intertextualidade foi estabelecido por Julia Kristeva, sob a influência do

pensamento de Bakhtin, autor cuja obra ela se tornou uma das maiores responsáveis pela

divulgação. Esse conceito tem sido desenvolvido por autores dentre os quais citamos

Dominique Maingueneau, Roland Barthes e Gérard Genette, leitores da autora búlgara, além

de autores contemporâneos a este trabalho cuja produção intelectual indica a leitura de ambos,

dos quais citamos: Elisabeth Brait, Elisa Guimarães e Tiphaine Samoyault, entre outros.

Apesar de Bakhtin não se utilizar do termo intertextualidade, podemos perceber o

quanto os conceitos de diálogo e dialogismo presentes em sua obra, além dos termos

dialógicas intertextuais e intratextuais, esboçados em Estética da Criação Verbal (1997, p.332)

já orientam para esse fenômeno, visto a grande influência do autor na obra de Kristeva, que

trata o diálogo intertextual e a intertextualidade como sinônimos (1974, p.70).

A proposta de estudo que Bakhtin/Voloshinov desenvolve em Marxismo e Filosofia

da Linguagem foca, entretanto, na natureza da enunciação e na análise estilística, ainda com

forte ligação com a Linguística. É em Problemas da Poética de Dostoiévski que Bakhtin

desenvolve o conceito de dialogismo, mais inserido no escopo da crítica literária. Apesar de

analisar a obra de Dostoiévski, a fim de explicar a concepção da variedade dialógica do

romance, Bakhtin recorre aos diálogos socráticos de Platão:

O gênero se baseia na concepção socrática da natureza dialógica da verdade e do

pensamento humano sobre ela. O método dialógico de busca da verdade se opõe ao

monologismo oficial que se pretende dono de uma verdade acabada, opondo-se

igualmente à ingênua pretensão daqueles que pensam saber alguma coisa. A verdade

não nasce nem se encontra na cabeça de um único homem; ela nasce entre os homens,

que juntos a procuram no processo de sua comunicação dialógica. (Op. cit., p. 94).

Desta forma, sob influência da ótica bakhtiniana, podemos afirmar que “toda evolução

dos gêneros literários é uma exteriorização inconsciente de estruturas linguísticas em seus

diferentes níveis”, e que o dialogismo se manifesta como formas de “intertextualidade e

interdiscursividade implícita” (KRISTEVA, 1974, p. 64), isto é, há um diálogo ao mesmo

tempo interno e externo à obra, e por isso a sua importância nos estudos da intertextualidade.

Page 19: EDMUNDO GOMES JÚNIOR

19

Para os estudos da intertextualidade faz-se necessário primeiramente uma reflexão

sobre a noção de texto a fim de compreender seus mecanismos de geração de sentido. O

estudo do texto dentro da perspectiva bakhtiniana se aproxima de outras ciências, como a

Física, relativizando esse texto como objeto, dentro de seu contexto de produção e de leitura.

Kristeva (1974, p. 63) explica que o estudo da poética (que para a autora compreende não só a

poesia, mas todas as formas de mimese) se insere nas ciências humanas quando aborda a

prática real do pensamento através do cruzamento da linguagem como prática de consciência

e quando a significação se articula por um encontro de diferenças através do texto.

Kristeva define o texto como um objeto de três dimensões: o sujeito da escritura, o

destinatário e os textos anteriores (1974, p. 63). Sendo assim, ao mesmo tempo em que a

palavra no texto pertence simultaneamente ao sujeito da escritura e ao destinatário, ela

também está orientada para o corpus literário anterior ou sincrônico.

Roland Barthes explica que apesar da origem da palavra texto vir do latim textum,

significando tecido, a trama dos fios que o formam se assemelha muito mais a uma teia de

aranha, em que o sujeito pode se enrolar qual uma aranha presa em sua própria construção

(BARTHES, 1987, p. 82). O tecido do texto, portanto, é formado por mais do que linhas

horizontais e verticais que se cruzam, mas por outros eixos que o trespassam em outros

sentidos.

“Todo texto se constrói como mosaico de citações, todo texto é absorção e

transformação de uma multiplicidade de outros textos”, diz Kristeva (1974, p. 64), que vê a

intertextualidade como uma maneira de a história passar por nós, assim como, para a autora, o

texto, não é um sistema fechado de significado referente a ele mesmo. Ao invés disso, seu

significado se deposita na dependência a outros textos.

Para compreender o significado de um texto deve-se considerar seu contexto social e

histórico, isto é, outros textos constitutivos do sistema intertextual de que ele faz parte. Neste

sentido, Kristeva (1974) afirma que a análise intertextual é uma maneira de inserir a diacronia

ou a história numa estrutura de significado antes aparentemente estática, sincrônica,

independente de estrutura de significado. Kristeva usa o termo em francês “le seuil” (o limiar)

para indicar o “ponto comum” em que os conceitos maiores se convertem, vinculando-o ao

termo cronotropo, desenvolvido por Bakhtin, o tempo e espaço vinculados em que toda a

Page 20: EDMUNDO GOMES JÚNIOR

20

criação literária toma forma. Sendo assim, a intertextualidade não se limita às referências que

um texto possa conter: ela se expande ao sistema ao qual o texto pertence e ao momento da

criação estética.

Considerando o texto como um objeto de significação e de comunicação que causa um

percurso gerador de sentido (BARROS, 2005, p.11-13), pode-se ampliar as possibilidades de

suporte desse conceito – além da escrita, outras artes como a fotografia, a pintura e as artes

compostas que utilizam mais de um tipo de código, como o cinema e as histórias em

quadrinhos, também são abarcadas, no que Kristeva chama de língua visível:

La photographie nous montre une réalité antérieure, et même si elle donne une

impression d’idealité, elle n’est jamais sentie comme purement illusoire : elle est le

document d’une « realité dont nous sommes à l’abri ».

Au contraire, le cinéma appelle la projection du sujet dans ce qu'il voit, et se présente

non pas comme l'évocation d'une réalité passée, mais comme une fiction que le sujet

est en train de vivre. On a pu voir la raison de cette impression de réalité imaginaire

que provoque le cinéma, dans la possibilité de représenter le mouvement, le temps le

récit, etc. (KRISTEVA, 1981, p.311)*.

O filme, portanto, assim como na narrativa literária, possui um narrador, que pode se

apresentar por forma explícita, falando ao mesmo tempo em que as imagens são mostradas,

ou através da câmera. A noção de tempo também é necessária dentro do filme, assim como

numa obra literária, visto que dois livros com o mesmo volume de páginas ou dois filmes com

o mesmo tempo de duração podem representar apenas um dia na vida de uma personagem ou

toda uma vida.

Segundo Kristeva, além de recriar uma realidade, o cinema também se aproxima do

texto por possuir uma sintaxe:

Le cinéma ne copie pas de façon « objective », naturaliste ou continue une réalité qui

lui est proposée : il découpe des séquences, isole des plans, et les recombine par un

nouveau montage. Le cinéma ne reproduit pas des choses : il les manipule, les

* A fotografia nos mostra uma realidade pré-existente, e mesmo dando uma impressão de idealidade, ela nunca é

sentida como puramente ilusória: é o documento de uma “realidade da qual estamos seguros”. Por outro lado, o

filme recorre à projeção do sujeito naquilo em que ele vê, e isso é representado não é como a evocação de uma

realidade passada, mas como uma ficção que o sujeito está vivendo. Pode-se perceber a razão desta impressão de

realidade imaginária que o cinema provoca, na possibilidade de representar o movimento, o tempo da narrativa,

etc.

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21

organise, les structure. Et c'est seulement dans la nouvelle structure obtenue par le

montage des éléments que ceux-ci prennent un sens. (KRISTEVA, 1981, p.312)*.

Kristeva afirma que devemos admitir o cinema como linguagem e não apenas o

considerar como uma, além de sê-lo também uma língua. A autora estabelece uma relação

entre o cinema e as histórias em quadrinhos, pela imitação da organização sequencial das

imagens estáticas para introduzir o tempo e o movimento na narrativa: a imagem isolada é um

enunciado, mas disposta em sequência de outra, forma uma narrativa, e o texto escrito e o

falado servem para seu suporte. A autora ressalta que o termo “linguagem” não deve ser

empregado apenas em seu senso linguístico, mas de modo analógico, pois o cinema é um

sistema de diferenças que transmitem uma mensagem (1981, p. 313).

A discussão entre língua e linguagem é vasta, porém, como afirma Christian Metz, o

termo linguagem cinematográfica já apresenta certa comodidade por já ter se imposto no

vocabulário especializado da teoria e da estética do cinema, enquanto “língua

cinematográfica”, não parece aceitável no atual estado das pesquisas (1977, p. 112). Metz

também afirma que o cinema não é uma língua por não ter um sistema de signos destinados

totalmente à intercomunicação, isto é, o filme é mais preso a um estatuto de arte por consistir

num objeto de arte, sendo muito mais um meio de expressão do que de comunicação (op. cit.,

p. 93). A interlocução entre cineasta e espectador não é imediata, apesar da polemização de

sua mensagem.

A mensagem do cinema, como a de qualquer outra forma de linguagem, contém um

discurso, como afirma Bakhtin:

Os processos de compreensão de todos os fenômenos ideológicos (um quadro, uma

peça musical, um ritual ou um comportamento humano) não podem operar sem a

participação do discurso interior. Todas as manifestações da criação ideológica – todos

os signos não-verbais – banham-se no discurso e não podem ser nem totalmente

isoladas nem totalmente separadas dele. (BAKHTIN, 2006, p. 17).

Sendo assim, a intertextualidade se torna importante para o cinema pela produção de

sentido que as imagens e discursos contidos nos filmes propiciam. Se, como afirma Kristeva,

cada imagem representa um enunciado, o filme consiste num objeto material de uma

sequência desses diversos enunciados, e sendo assim podemos integrar diferentes suportes

* O filme não copia de forma “objetiva”, naturalista ou contínua uma realidade que se propõe: ele corta as

seqüências, isola os planos e os recombina com uma nova montagem. O filme não reproduz as coisas: ele as

manipula, organiza e as estrutura, e é somente na nova estrutura obtida pela montagem dos elementos que eles

produzem sentido.

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22

discursivos dentro da análise da intertextualidade e, obviamente, da interdiscursividade. No

cinema, por exemplo, diferentes níveis de leitura que podem ser identificados pelas reações

dos espectadores, tema abordado por Marcel Martin, que também discorre sobre a produção

de sentido de um filme, afirmando que:

[...] a maior parte dos filmes de qualidade são legíveis [sic] vários níveis, segundo o

grau de sensibilidade, de imaginação e de cultura do espectador. O mérito de tais

filmes é sugerir, para além da dependência imediata do dramatismo de uma ação, por

mais profunda e humanamente apaixonante que ela seja, sentimentos ou ideias em

geral. Na gênese desta significação, em segundo lugar, o símbolo desempenha um

papel importante. A utilização do símbolo no cinema consiste em recorrer a uma

imagem capaz de sugerir ao espectador mais qualquer coisa [sic] do que a simples

percepção do conteúdo aparente lhe poderia dar. A propósito da imagem fílmica

poder-se-ia falar, na realidade, de um conteúdo aparente e de um conteúdo latente (ou

ainda de um conteúdo explícito e de um conteúdo implícito), sendo o primeiro

diretamente legível e o segundo (eventual) constituído pelo sentido simbólico que o

realizador quis dar à imagem, ou o sentido que o espectador por si próprio vê nela

(MARTIN, 2005, p. 117).

Notamos, portanto, que as diferentes leituras que se pode fazer da narrativa fílmica

dependem muito do hábito que sua platéia ocasional tem de assistir a filmes com enredos mais

elaborados. Martin considera, portanto, a existência de um nível de leitura do espectador e se

faz necessário, portanto, uma alteridade entre autor e leitor através da obra, fundamental no

ato de enunciação, da qual o filme se torna um instrumento de sua materialidade. Estas duas

características do filme também o definem como um texto, pois, como afirma Marcuschi

(2008, p. 83), o texto é um “objeto concreto, material e empírico resultante de um ato de

enunciação”. José Luiz Fiorin também fornece uma definição de texto ligada ao ato da

enunciação e da materialidade:

O enunciado é uma posição assumida por um enunciador, é um sentido. O texto é a

manifestação do enunciado, é uma realidade imediata, dotada de materialidade, que

advém do fato de ser um conjunto de signos. O enunciado é da ordem do sentido; o

texto, do domínio da manifestação. (FIORIN, 2006, p.52).

Essa materialidade do texto reforça os mecanismos da enunciação, sobretudo a

intencionalidade da manifestação verbal. O texto, portanto, também é detentor de um

objetivo, além de um contexto, tornando-se “um processo que se perfaz numa totalidade

integrada por uma unidade temática, um formato e uma significação. Tal totalidade é

alcançada mediante a relação entre seus constituintes e seu contexto de produção”. (VAN

DIJK, 1980, p. 18).

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23

A necessidade de um contexto de produção auxilia a compreensão do conceito de

textualidade, a fim de distingui-lo claramente com a intertextualidade. Enquanto a

textualização é o processo pelo qual é elaborado um texto, a textualidade é a cadência de

idéias dentro desse texto, isto é, o produto da textualização. Segundo Maria Helena Mira

Mateus, a textualidade é formada por um conjunto de propriedades que uma manifestação da

linguagem humana deve possuir para ser um texto. Dessas propriedades que trazem a noção

de textualidade, e logo, o sentido do texto, segundo Mateus, temos a conectividade, a

intencionalidade, a aceitabilidade, a situacionalidade, a informatividade e por último, que nos

será mais importante, a intertextualidade (MATEUS, 1983, p. 185-216). Podemos notar que

existe uma relação de interdependência dessas prerrogativas textuais, principalmente pelo fato

de que todas pressupõem um leitor e um contexto de produção. A conectividade do texto o

torna ceito ou não, dependendo do seu teor de informação ou da possibilidade de polemização

de sua leitura, transformando-o num objeto gerador de sentido. Esse processo se dá

internamente, através dos elementos de coesão e coerência, e externamente, através de seu

contexto situacional e da intertextualidade.

Elisa Guimarães retoma a intertextualidade como “o processo de incorporação de um

texto em outro, seja para reproduzir o sentido incorporado, seja para transformá-lo”

(GUIMARÃES, 2009, p. 134, grifo da autora), que “designa não uma soma confusa e

misteriosa de influências, mas o trabalho de transformação e assimilação de vários textos,

operado por um texto centralizado, que detém o comando do sentido” (Op. Cit., p.163). A

autora explica que a citação pode ser concebida “como simples ilustração – o próprio tema

ilustração referenciando a possibilidade de uma função puramente auxiliar ou de apoio da

citação” (Op. Cit., p. 137). Guimarães também ressalta a exigência de certo nível de cultura

para que o leitor compreenda a alusão e da manutenção da configuração temática no processo

de estilização, além de demonstrar que a citação e a alusão também se manifestam no

processo de interdiscursividade (Op. cit., p. 139).

Fiorin discute a interdiscursividade como “o processo em que se incorporam percursos

temáticos e/ou figurativos, temas e/ou figuras de um discurso em outro” (FIORIN, 2003, p.

32). Já Guimarães a identifica

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24

[... ] como interação com um dado discurso, uma memória discursiva, que constitui

um contexto global que envolve e condiciona a atividade linguística.[...] Torna-se

impossível a apreensão do discurso sem a percepção das relações dialógicas, ou seja,

sem história (GUIMARAES, 2009, p. 134).

Desse modo, tanto intertextualidade e interdiscursividade são ligadas à história,

porém, enquanto na intertextualidade o texto em si é o gatilho, na interdiscursividade a

ideologia é o que liga um texto a outro; o texto e consequentemente a intertextualidade

privilegiam a materialidade da língua, da mesma forma que o discurso e a interdiscursividade

visam sua natureza social e, portanto, ideológica.

Mais importante do que sistematizar uma classificação para as formas de

intertextualidade e interdiscursividade é compreender os diferentes efeitos de sentido que cada

uma dessas manifestações produz.

A produção de sentido de um texto, seja ele literário ou de outra concepção estética,

formado por outros textos, na concepção bakhtiniana, vai além do sentido de citação, alusão

ou estilização, passando a considerar as orientações que a obra segue e sua repercussão.

Podemos, com isso, considerar a Literatura como um extenso diálogo entre obras, em que

cada uma manifesta suas influências anteriores utilizando diferentes modulações de voz, onde

“o narrador pode deliberadamente apagar as fronteiras do discurso citado, a fim de colori-lo

com as suas entoações, o seu humor, a sua ironia, com o seu encantamento ou o seu desprezo”

(Bakhtin 2006, p.154).

Bakhtin/Voloshinov (2006) sugere uma análise desse discurso internalizado:

O estudo fecundo do diálogo pressupõe, entretanto, uma investigação mais profunda

das formas usadas na citação do discurso, uma vez que essas formas refletem

tendências básicas e constantes da recepção ativa do discurso de outrem, e é essa

recepção, afinal, que é fundamental também para o diálogo. (Op. cit., p. 149)

A preocupação bakhtiniana com o discurso orientado para e pelo outro traz à luz a

noção de diálogo e suas ramificações:

A orientação dialógica é naturalmente um fenômeno próprio a todo discurso. Trata-se

da orientação natural de qualquer discurso vivo. Em todos os seus caminhos até o

objeto, em todas as direções, o discurso se encontra com o discurso de outrem e não

pode deixar de participar de uma interação viva e tensa com ele. Apenas o Adão

Page 25: EDMUNDO GOMES JÚNIOR

25

mítico que chegou com a primeira palavra num mundo virgem, ainda não

desacreditado, somente este Adão podia realmente evitar por completo esta mútua

orientação dialógica do discurso para o objeto. Para o discurso humano, concreto e

histórico, isso não é possível: só em certa medida e convencionalmente é que pode

dela se afastar (BAKHTIN, 1998, p. 88).

O discurso, portanto, nasce do diálogo, questão que Bakhtin ressalta e que tanto a

linguística quanto a filosofia da linguagem haviam desconsiderado até então. O conceito de

diálogo para Bakhtin/Voloshinov (2006), porém, é mais amplo do que a simples comunicação

entre dois indivíduos:

O diálogo, no sentido estrito do termo, não constitui, é claro, senão uma das formas, é

verdade que das mais importantes, da interação verbal. Mas pode-se compreender a

palavra “diálogo” num sentido amplo, isto é, não apenas como a comunicação em voz

alta, de pessoas colocadas face a face, mas toda comunicação verbal, de qualquer tipo

que seja. O livro, isto é, o ato de fala impresso, constitui igualmente um

elemento da comunicação verbal. Ele é objeto de discussões ativas sob a forma de

diálogo e, além disso, é feito para ser apreendido de maneira ativa, para ser estudado a

fundo, comentado e criticado no quadro do discurso interior, sem contar as reações

impressas, institucionalizadas, que se encontram nas diferentes esferas da

comunicação verbal (críticas, resenhas, que exercem influência sobre os trabalhos

posteriores, etc.). Além disso, o ato de fala sob a forma de livro é sempre orientado em

função das intervenções anteriores na mesma esfera de atividade, tanto as do próprio

autor como as de outros autores: ele decorre, portanto, da situação particular de um

problema científico ou de um estilo de produção literária. Assim, o discurso escrito é

de certa maneira parte integrante de uma discussão ideológica em grande escala: ele

responde a alguma coisa, refuta, confirma, antecipa as respostas e objeções potenciais,

procura apoio, etc (Op. Cit., p.125, grifo nosso).

O diálogo interno não é necessariamente evidenciado como resultado das intervenções

anteriores das quais fala Bakhtin, dentre elas as diferentes vozes formadoras do discurso do

falante, que age como o sujeito sociológico, na concepção de Stuart Hall, que tem um “núcleo

ou essência anterior que é o seu ‘eu real’, mas este é formado e modificado num diálogo

contínuo com os mundos culturais ‘exteriores’ e as identidades que esses mundos oferecem”

(2003, p. 11). Sendo assim, não há necessidade de que as influências autorais sejam reveladas

ou estejam presentes no texto sob as formas de paráfrase, citação ou alusão: elas podem se

revelar em diferentes estruturas temáticas e ideológicas, até mesmo revelando um zeitgeist ao

qual o autor pertença, “pois nosso próprio pensamento - nos âmbitos da filosofia, das ciências,

das artes – nasce e forma-se em interação e em luta com o pensamento alheio, o que não pode

deixar de se refletir nas formas de expressão verbal do nosso pensamento” (BAKHTIN, 1997,

p. 318).

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26

Essas expressões verbais do pensamento dão origem, consequentemente, a outros

produtos estéticos, dando origem a um dialogismo externo com outros textos. Outra forma de

dialogismo externo se dá pela polemização da obra, visada por todo artista que quer ter sua

obra discutida, visto que, segundo Bakhtin:

[...] a idéia é um acontecimento vivo, que irrompe no ponto de contato dialogado entre

duas ou várias consciências. Neste sentido a idéia é semelhante ao discurso, com o

qual forma uma unidade dialética. Como o discurso, a idéia quer ser ouvida, entendida

e “respondida” por outras vozes e de outras posições (1981, p. 73).

O autor dialoga, portanto, não somente com suas vozes internas, mas também

pressupõe um leitor que dê sentido a sua obra:

A relação com o sentido é sempre dialógica. O ato de compreensão já é dialógico. [...]

A compreensão estreita do dialogismo concebido como discussão, polêmica, paródia.

Estas são formas externas, visíveis, embora rudimentares, do dialogismo. (BAKHTIN,

1997, p. 351)

A formulação desse conceito bakhtiniano serviu como base para que Kristeva criasse o

conceito de intertextualidade, a fim de solucionar a problemática das limitações do dialogismo

ao expandir a noção de texto aos interlocutores, considerando o sujeito autoral não só como

um ser biológico, mas um conjunto de formações discursivas, afirmando que

O texto literário se insere no conjunto dos textos: é uma escritura-réplica (função ou

negação) de um outro (dos outros) texto(s). Pelo seu modo de escrever, lendo o corpus

literário anterior ou sincrônico, o autor vive na história e a sociedade se escreve no

texto. [...] Sendo o interlocutor do texto, o sujeito também é um texto [...].”.

(KRISTEVA, 1974, p. 98-99)

Essa visão da formação criativa como um outro texto, influenciada pelo pensamento

alheio anterior e posterior, serve-nos para o propósito da análise do objeto de estudo, não

somente pelo viés da intertextualidade e da interdiscursividade dentro da gênese textual, mas

também pelos efeitos que a leitura da obra produz através do diálogo externo que se manifesta

posteriormente à obra, quando essa é compreendida e polemizada pelos sujeitos-leitores, que

consistem em outro texto, expandindo, portanto, o conceito de intertextualidade à relação

entre obra e leitor. Tendo em vista que a noção de intertextualidade é posterior à de

dialogismo e se trata de um produto dos estudos de Kristeva sobre a obra de Bakhtin, pode-se

concluir que a intertextualidade incorpora em si os mecanismos do dialogismo, como pode ser

comprovado nos artigos “Le mot, le dialogue, le roman”, onde Kristeva explica, a partir dos

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27

livros Problemas da poética de dostoiévski, de 1963, e A obra de François Rabelais, de

1965, de Bakhtin, o quanto a lógica da linguagem se diferencia da lógica científica

tradicional, visto que a “palavra literária’ não é um ponto (um sentido fixo) mas um

cruzamento de superfícies textuais, um diálogo de diversas escrituras: do escritor, do

destinatário, ou da personagem), do contexto cultural atual ou do anterior.” (KRISTEVA,

1974, p. 62, grifos da autora).

Kristeva sistematiza este cruzamento das superfícies textuais em três dimensões

(sujeito-destinatário-contexto) como um conjunto de elementos sêmicos em diálogo, ou como

um conjunto de elementos ambivalentes:

O termo “ambivalência” implica a inserção da história (da sociedade), no texto, e do

texto na história; para o escritor, são uma única e mesma coisa. Falando de

“duas vias que unem na narrativa”, Bakhtine tem em vista a escritura do corpus

literário anterior, o texto como absorção de, e réplica a um outro texto [...]. Visto desta

maneira, o texto não pode ser apreendido apenas pela linguística. Bakhtin postula a

necessidade de uma ciência, que denomina de translinguística e que, partindo do

dialogismo da linguagem, lograria compreender as relações intertextuais [...].

(KRISTEVA, 1974, p. 67, grifos da autora.)

Ao afirmar que o texto não pode ser apreendido apenas pela linguística, Kristeva abre

a possibilidade de utilização de sua teoria para as diversas áreas da linguagem, razão pela qual

seu conceito de intertextualidade é utilizado pelas diversas correntes teóricas vigentes.

Kristeva ressalta que Bakhtin denomina diálogo e ambivalência como os dois eixos que

definem o estatuto da palavra, termo que diversas vezes Kristeva trata como sinônimo de

texto, visto que a noção de texto como o depositório de todas as virtudes e potencialidades da

língua, antes atribuído à palavra e posteriormente à frase, é recente em termos

epistemológicos em relação ao contexto de elaboração do conceito de intertextualidade.

Para compreender a diferença entre o dialogismo, a ambivalência e a intertextualidade,

vale ressaltar, como afirma Kristeva, que o dialogismo implica o duplo num sistema de

oposições e é melhor ilustrado na estrutura da linguagem carnavalesca e no romance

polifônico, enquanto a ambivalência pode ser aplicada tanto ao espaço dialógico quanto ao

espaço monológico, manifestando-se quando o autor se serve da palavra de outro, para nela

inserir um novo sentido, conservando sempre o sentido que a palavra já possui, podendo

consistir em imitação, onde o sentido não é relativizado, em paródia, onde esse é utilizado

com uma significação oposta, e em polêmica interior oculta, caracterizado pela influência

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28

modificadora da palavra de outrem sobre a palavra do autor, representada pela palavra do

narrador. Pela necessidade dessa estrutura de voz exterior, autor e narrador, Kristeva

restringe, porém o uso de palavras ambivalentes para o romance, enquanto a intertextualidade

se configura em uma ruptura que não é unicamente literária, mas também social, política e

filosófica (1974, p. 70-72).

Kristeva utiliza o termo filosófico thétique, isto é, o que supõe a existência da

consciência ou do que se afirma como ela, dando um caráter existencial à produção de

sentido, mediante as limitações da percepção e da experiência, que são concebidas como

ações lógicas e não são encontradas na teoria sintático-semântica formal, mas inseridas numa

mesma teoria por seu nível transcendental, tética (nomeação) ou de síntese e dedução, o que

leva a interpretação, em termos de “relações semânticas” ou “estruturas conceituais”, a

depender de um sujeito em processo (1974b, p. 31-43).

Além da instauração da identificação do sujeito, Kristeva tinha uma preocupação de

que a os estudos da intertextualidade passassem a ser uma simples crítica das fontes, dando

preferência ao termo transposição:

Le terme d’inter-textualité désigne cette transposition d’un (ou de plusieurs)

système(s) de signes en un autre; mais puisque ce terme a été souvent entendu dans le

sens banal de « critique des sources » d’un texte, nous lui préférerons celui de

transposition, qui a l’avantage de préciser que le passage d’un système signifiant à un

autre exige une nouvelle artieulation du thétique - de la positionnalité énonciative et

dénotative * (KRISTEVA, 1974b, p. 59, grifo da autora).

Segundo Laurent Jenny, apesar de Kristeva dar preferência ao termo transposição a

fim de evitar apenas a crítica às fontes:

Herdamos então o termo ‘banalizado’, e que nos cabe tornar tão pleno quanto

possível. [...] A intertextualidade designa não uma soma confusa e misteriosa de

influências, mas o trabalho de transformação e assimilação de vários textos, operado

por um texto centralizador, que detém o comando de sentido (1979, p. 15).

Para Jenny, a ameaça maior à definição da intertextualidade está na noção de texto e

seu trabalho é enfraquecido quando se busca apenas identificar simples alusões e

* O termo “intertextualidade” designa essa transposição de um (ou vários) sistema(s) de signos noutro, mas

como este termo foi frequentemente tomado na acepção banal de “crítica das fontes” dum texto, nós preferimos-

lhe um outro: transposição, que tem a vantagem de precisar que a passagem dum a outro sistema significativo

exige uma nova articulação do tético – da posicionalidade enunciativa e denotativa. (Tradução de Laurent Jenny,

1979, p. 15)

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reminiscências, sem se verificar os efeitos de sentido, o que justifica a preferência ao termo

intertextualidade, mesmo contrariando sua criadora.

Já o termo transposição [intersemiótica] é utilizado por autores como Claus Clüver e

Leo H. Hoek. Clüver afirma não haver um termo para intertextualidade entreartes nem da

relação de produção palavra-imagem (1997, p. 46), dentre elas a ekphrasis, ao lidar com a

problemática da tradução:

Representações verbais de esculturas, pinturas, tapeçarias, trabalhos gráficos e

fotografias, reais e imaginárias, são encontrados em muitas narrativas em prosa, e a

imagem narrada de uma obra de arte existente pode muito bem ser considerada uma

transposição (2006, p. 119).

Clüver também se utiliza do termo referência ao estabelecer relações entre textos

verbais e imagens (2006, p. 134-148), assim como Hoek ressalta o quanto inúmeros tipos de

textos, literários ou argumentativos, inspiram-se em fontes artísticas e têm um referencial

pictural (2006, p. 167). Esta referência, segundo o autor, também pode causar o efeito de mise

en abyme , isto é, uma narrativa dentro da outra, fenômeno que também aponta para a

metalinguagem.

O estudo da transposição na visão de Clüver e Hoek, entretanto, aponta para uma

supremacia do texto ou da imagem, analisando o que foi modificado na passagem de uma

forma de arte para outra, enquanto Gérard Genette se preocupa com os efeitos que a

intertextualidade produz no leitor. O autor a considera um dos cinco tipos de

transtextualidade, ou transcendência textual do texto, definido como “tudo que o coloca em

relação, manifesta ou secreta com outros textos” (2006, p.7), e comenta suas virtudes:

Este estado implícito (e às vezes totalmente hipotético) do intertexto é, há alguns anos,

o campo de estudos privilegiados de Michel Riffaterre, que definiu, em princípio, a

intertextualidade de maneira muito mais ampla do que eu fiz aqui e aparentemente

extensiva a tudo isso que chamo de transtextualidade: “O intertexto”, escreve ele, por

exemplo, “é a percepção pelo leitor de relações entre uma obra e outras, que a

precederam ou as sucederam”, chegando até a identificar, em sua abordagem, a

intertextualidade (como fiz com a transtextualidade) à própria literariedade: “A

intertextualidade é (...) o mecanismo próprio da leitura literária. De fato, ela produz a

significância por si mesma, enquanto que a leitura linear, comum aos textos literários

e não-literários, só produz o sentido”. (loc. cit.)

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Genette, entretanto, categoriza a citação como um outro tipo de transtextualidade,

diferenciada do intertexto:

O segundo tipo é constituído pela relação, geralmente menos explícita e mais distante,

que, no conjunto formado por uma obra literária, o texto propriamente dito mantém

com o que se pode nomear simplesmente seu paratexto: título, subtítulo, intertítulos,

prefácios, posfácios, advertências, prólogos, etc.; notas marginais, de rodapé, de fim

de texto; epígrafes; ilustrações; errata, orelha, capa, e tantos outros tipos de sinais

acessórios, autógrafos ou alógrafos, que fornecem ao texto um aparato (variável) e por

vezes um comentário, oficial ou oficioso, do qual o leitor, o mais purista e o menos

vocacionado à erudição externa, nem sempre pode dispor tão facilmente como

desejaria e pretende. Não quero aqui empreender ou banalizar o estudo, talvez por vir,

deste campo de relações que teremos, aliás, muitas ocasiões de encontrar, e que é

certamente um dos espaços privilegiados da dimensão pragmática da obra, isto é, da

sua ação sobre o leitor [...] (Ibid., p. 9)

Dominique Maingueneau também diferencia o intertexto da intertextualidade: para ele,

entende-se por intertexto de uma formação discursiva “o conjunto dos fragmentos que ela

efetivamente cita e, por intertextualidade, o tipo de citação que esta formação discursiva

define como legítima através de sua própria prática.” (MAINGUENEAU, 1997, p. 86).

Para Fiorin (1994, p.29), “o conceito de intertextualidade concerne ao processo

desconstrução, reprodução ou transformação do sentido”. O autor traça uma classificação de

intertextualidade em três processos: a citação, a alusão e a estilização (FIORIN, 1994, p. 30).

O primeiro processo, a citação, transmite o intertexto de forma explícita para o leitor. Ela

pode se manifestar mencionando a fonte, sob a forma de paráfrase, por exemplo, ou se

materializando, como num quadro ou numa estátua. Já na alusão utiliza-se a mesma estrutura,

porém se substituem alguns elementos, podendo polemizar ou não os temas em comum. A

estilização, por fim, reproduz um conjunto de procedimentos, considerando o estilo como o

conjunto das recorrências tanto no plano da expressão e no plano do conteúdo, “à maneira

de”. (FIORIN, 1994, p. 31). Podemos notar nessa sistematização uma gradação do intertexto

de menos para mais alterado.

Segundo Beth Brait, o termo intertextualidade pode ser utilizado no estudo das

relações dialógicas, porém “não dá conta, sozinho, das complexas relações que incluem,

necessariamente, os discursos sociais, culturais, estéticos motivados pelo diálogo estabelecido

entre textos e pelos posicionamentos assumidos, valores colocados em confronto, em tensão,

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31

tanto da perspectiva da produção como da recepção” (2012, p.129). A autora elenca a

problematização do discurso no discurso ou da enunciação na enunciação:

É o que explicita participação ativa do leitor (ouvinte, espectador) no processo. David

Lodge menciona essa dimensão em vários momentos, iniciando pela expressão “faz

lembrar”. A interação entre o leitor e o texto, e não apenas as formas encontradas pelo

autor para sinalizar o diálogo entre textos, é que possibilita a percepção das faces da

intertextualidade, que promove a interdiscursividade, ou seja, a convocação de

discursos, possibilitando que o processo se apresente como discurso sobre discurso e

não apenas como texto a partir de texto. De alguma maneira, há conhecimentos

prévios, conscientes ou não, que permitem atualizar um possível diálogo, cabendo aos

profissionais do texto descrever as relações aí estabelecidas, os discursos que as

constroem, os consequentes e diversificados efeitos de sentido possíveis (loc. cit.,

grifos da autora).

Podemos notar, portanto, que para um estudo do dialogismo, do discurso sobre o

discurso ou da enunciação sobre a enunciação, faz-se necessário um estudo do contexto de

recepção, além da tradicional análise do contexto de produção, que muitas vezes se confunde

com a biografia do autor. Este tipo de análise, porém, descarta a ambiguidade entre ficção e

vida, visto que um narrador não necessariamente exprime os pensamentos de um autor, assim

como a grande maioria das obras não se limita à biografia e mesmo as biografias possuem um

nível de subjetividade que pode “ficcionalizar” os fatos narrados. Ainda assim, os estudos

biográficos sobre romancistas, por exemplo, tentam caracterizá-los como “leitores de”, como

se a obra posterior fosse apenas uma sombra da lida pelo autor que pode ter lhe dado

inspiração para a criação. Um exemplo clássico, é a comparação de Dom Casmurro, de

Machado de Assis, com Otelo, O Mouro de Veneza, de William Shakespeare. É evidente que

Machado de Assis conhecia a peça, que é citada diretamente no capítulo CXXXV: Otelo, em

que Bento vai assisti-la. Centenas de estudos já foram realizados visando as relações

intertextuais entre livro e peça, explorando detalhes mais específicos, como o nome da

personagem ser uma junção de santo e Iago, como uma breve pesquisa sobre bibliografia

acadêmica pode comprovar. Faz-se necessário, porém, atentar à capacidade do texto de

provocar referências não explícitas, proporcionada pelas várias camadas narrativas

intercaladas, a fim de não tratar a obra como apenas uma atualização de um tema ou uma

simples releitura. Não visamos aqui retirar o mérito de tais estudos, porém a quantidade de

estudos sobre o tema revela não só sobre as obras, mas também sobre seus leitores e o

funcionamento do sistema de referências que acionam sua memória.

A memória opera, como elucida Kristeva (1974b), não só num sistema de linguístico,

mas também psicológico, seja na concepção freudiana, quanto na abordagem junguiana dos

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arquétipos, ou até mesmo dentro de um sistema biológico de aquisição da linguagem em que

o sistema de referências aciona as experiências particulares de cada sujeito.

O aspecto de memória, como já citado por Beth Brait, é explorado por David Lodge

(1993, p. 98-103), que afirma que dentre as maneiras que um texto pode se referir a outro

estão a paródia, o pastiche, o eco, a alusão, a citação direta e o paralelismo estrutural, e que os

autores [de ficção] podem estar cientes ou não de que estes mecanismos estão presentes em

suas obras, podendo inconscientemente utilizar arquétipos míticos ou fábulas, por exemplo.

Lodge também emprega o termo referência que, por sinal, é utilizado amplamente fora

do ambiente acadêmico e exprime fortemente o conceito de intertextualidade em contextos de

esclarecimento para leigos ou para iniciantes em seu estudo. O autor não diferencia a

referência como sendo uma forma sutil ou explícita, mas um processo de recordação do leitor,

que pode se manifestar através de ecos, alusões, provadas ou não em confronto com o autor,

visto que pode ser resultado de uma reprodução inconsciente, ou ainda um efeito subliminar

dessa alusão literária em leitores que leram a obra anterior e a esqueceram ou a conhecem

apenas por citação seletiva.

David Lodge afirma ainda que a intertextualidade não consiste necessariamente em

um adendo decorativo ao texto, mas pode se tornar um fator crucial em sua concepção e

composição. Lodge elenca um outro fator ligado à intertextualidade, o qual ele capitaliza

como “Oportunidade Perdida”, quando no curso de leitura, encontram-se ecos, antecipações e

analogias do próprio trabalho autoral muito tempo depois que o último é concluído, tarde

demais para se aproveitar a descoberta. Com essa afirmação, Lodge mais uma vez infere o

quanto o processo de intertextualidade pode se manifestar de modo inconsciente. Da mesma

forma que Kristeva afirma que a intertextualidade é uma manifestação da tradição, e a

tradição por sua vez é o exercício da memória de um nicho cultural, podemos observar que,

tanto para o autor quanto para o leitor, os mecanismos da memória tampouco funcionam de

forma consciente em sua totalidade.

Ainda sobre intertextualidade e memória, Tiphaine Samoyault propõe a análise da

noção da intertextualidade como uma verdadeira reflexão sobre a memória da literatura,

considerando-a o resultado técnico e objetivo do trabalho constate, sutil e, às vezes, aleatório,

das memória da escritura. (2008, p. 10-68) (2008, p.10).

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33

Pensar a intertextualidade como memória permite reconhecer que os liames que se

elaboram entre os textos não são atribuíveis a uma explicação ou um inventário

positivista: mas isto não impede que se fique sensível à complexidade das interações

existentes entre os textos, do ponto de vista da produção tanto quanto da recepção. A

memória da literatura atua em três níveis que não se recobrem jamais inteiramente: a

memória trazida pelo texto, memória do autor e a memória do leitor. (op. cit., p. 143)

Tendo em vista essa atuação, e considerando que neste trabalho a análise intertextual

tomará um caminho inverso de uma crítica tradicional de classificação dos intertextos,

identificaremos os textos literários dentro de um objeto de outra mídia e não o contrário.

Seguiremos Clüver e Lodge e consideraremos como referência as diversas manifestações de

intertexto, afim de, como propõem Kristeva e Samoyault, atermo-nos à intertextualidade

como um exercício de acionamento de outros textos por seus leitores e não à sua

classificação.

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3. CATEGORIAS NARRATIVAS EM MAIS ESTRANHO QUE A FICÇÃO

Mais estranho que a ficção possui duas tramas maiores, principais e mais extensas, e

duas menores e secundárias, todas convergentes para o clímax do filme. A primeira,

inicialmente, conta a vida da personagem principal, através de uma narradora com sotaque

britânico (00h00min54s):

This is a story about a man named Harold Crick, and his wristwatch. Harold Crick was

a man of infinite numbers endless calculations and remarkably few words. And his

wristwatch said even less. Every weekday, for 12 years Harold would brush each of

his 32 teeth 76 times. Thirty-eight times back and forth. Thirty-eight times up and

down. Every weekday, for 12 years Harold would tie his tie in a single Windsor knot

instead of the double thereby saving up to 43 seconds. His wristwatch thought the

single Windsor made his neck look fat but said nothing. Every weekday, for 12 years

Harold would run at a rate of nearly 57 steps per block for six blocks barely catching

the 8:17 Kronecker bus. His wristwatch would delight in the feeling of the crisp wind

rushing over its face.*

Com a simultaneidade nessa cena entre narrador e imagem, há um tom irônico nas

tomadas que deveriam demonstrar a visão de Harold sobre o mundo, com o destaque na

primeira cena em que a câmera, como se tornasse forma de um narrador em primeira pessoa,

ao invés de focar o espelho como se fossem os olhos de Harold, parece localizada em sua

boca (00min 01s). Tanta importância dada a uma rotineira escovação de dentes contém três

funções: a primeira, de rebaixamento de um herói, cujos atributos não estão ligados a uma

força externa, cuja jornada não consiste em uma ida a uma terra distante, mas uma jornada

interna.

Ocorre, portanto, um esvaziamento do protagonista, de forma que, no primeiro contato

com o leitor, apenas essa casca seja revelada e a narrativa, como diz Bakhtin, arrancar seus

véus, revelando novas facetas e preenchendo-o com novas características, seguindo a função

transformadora da jornada do herói (1997, p. 27). A jornada de Harold se inicia quando ele

perde controle de sua própria vida, representada por mais uma mudança de planos, desta vez

* Esta é a história de um homem chamado Harold Crick, e seu relógio de pulso. Harold Crick

era um homem de infinitos números, intermináveis cálculos e notavelmente pouquíssimas

palavras, e seu relógio falava menos ainda. Todos os dias da semana, por 12 anos, Harold

escovava cada um dos trinta e dois dentes setenta e seis vezes: trinta e oito vezes para frente e

para trás, trinta e oito vezes para cima e para baixo. Todos os dias de semana, por 12 anos,

Harold amarrava sua gravata num nó Windsor simples, ao invés do duplo, economizando,

assim, 43 segundos. Seu relógio achava que o nó Windsor simples engordava seu pescoço, mas

não falava nada. Todos os dias da semana, por 12 anos, Harold corria uma marcha de cinquenta

passos por quadra, por seis quadras, para custosamente pegar o ônibus das oito e dezessete para

Kronecker. Seu relógio se deliciava com o vento fresco batendo contra o mostrador (tradução

nossa).

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dos infográficos e dados que demonstravam este controle. Quando Harold atravessa a rua, não

mais contando os passos, há uma materialização destes gráficos e eles caem: “é a vida

deslocada do seu curso habitual” (Bakhtin, 1997, p. 126).

A segunda função da ênfase da escovação se dá por ser esse o momento em que a voz

de Eiffel se revelará a Harold. Essa mudança na posição da narradora causa uma reação em

cadeia que, como veremos, atingirá todas as personagens e afetará toda a realidade, tendo seu

ápice no enfrentamento de Harold com Eiffel.

Há ainda uma terceira função: ao ser descrita minuciosamente, a representatividade da

ficção é exacerbada. Visto que o filme é um produto estético de consumo e tem seu tempo de

duração dentro de uma média de todos os outros, enquanto uma obra literária pode variar seu

número de páginas a gosto de seu autor, assim como seu tempo de leitura também varia de

acordo com seu leitor, a narradora poderia ter resumido os momentos iniciais da manhã de

Harold, mas optou por um recurso bem mais literário do que cinematográfico.

Um espectador desatento pode ignorar a presença de mais uma personagem, o relógio

de pulso, personificado por ter uma opinião sobre o laço da gravata e por ter uma sensação

quando Harold corria para pegar o ônibus. Nesta última frase dita pela narradora, “His

wristwatch would delight in the feeling of the crisp wind rushing over its face”, é gerada uma

ambiguidade da natureza do relógio e de sua consciência de ser, visto que a palavra face

também pode ser traduzida como rosto.

A narradora continua (00h02min15s):

And every weekday, for 12 years Harold would review 7134 tax files as a senior agent

for the Internal Revenue Service. […] Only taking a 45.7-minute lunch break and a

4.3-minute coffee break timed precisely by his wristwatch. Only taking a 45. 7-minute

lunch break and a 4.3-minute coffee break timed precisely by his wristwatch. Beyond

that, Harold lived a life of solitude. He would walk home alone. He would eat alone.

And at precisely 11:13 every night Harold would go to bed alone placing his

wristwatch to rest on the nightstand beside him. That was, of course, before

Wednesday. On Wednesday, Harold's wristwatch changed everything.**

** Além disso, Harold vivia uma vida de solidão: ele caminhava para casa sozinho, ele comia

sozinho. E precisamente às onze e treze, todas as noites, Harold ia dormir sozinho, deixando

seu relógio para descansar sobre o criado-mudo junto à cama. Isso foi, é claro, antes de quarta-

feira. Na quarta-feira, o relógio de Harold mudou tudo.

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Mais uma vez o relógio é descrito como portador de sensações e vontades, pois

precisava descansar e causaria mudanças. Ele poderia ser equivocadamente considerado

apenas como parte do cenário ou da constituição de Harold, pois numa primeira leitura do

filme podem ser ignoradas as opiniões do relógio, que achava que o nó que Harold fazia na

gravata engordava seu pescoço, mas não falava nada (1min 40s); que amava o vento fresco

batendo contra seu mostrador (2min 03s) e que, como diz a narradora, mudou tudo na quarta-

feira (3min 35s). É uma lasca de metal do relógio que impede a morte de Harold, obstruindo

uma artéria, impedindo a hemorragia (1h 40min 24s). Caso não estivesse na estória desde seu

início, o salvamento do herói poderia ser confundido com um recurso de deus ex machina,

mas essa é a estória de Harold e seu relógio de pulso, como expõe a narradora na primeira

frase do filme. Também é possível neste momento especular a onisciência da narradora, visto

que ela demonstra saber o que acontecerá adiante, na quarta-feira.

O conceito de narrador onisciente é trabalhado por Gérard Genette em Figures III.

Quando narradores ativam uma focalização onisciente é possível retomar fatos do passado

(analepse), antecipar acontecimentos (prolepse), resumir eventos menos relevantes (sumário)

ou suprimir fatos irrelevantes (elipse) (Genette, 1972, p. 82).

A principal função da analepse (a qual poderíamos chamar de flashback) é recuperar

eventos cujo conhecimento se torne necessário para se conferir coerência interna à história,

através de um movimento temporal retrospectivo destinado a relatar eventos anteriores ao

presente da ação e mesmo, em alguns casos, anteriores a seu início.

Já a prolepse, que poderíamos identificar na fala da narradora de Mais estranho que a

ficção nestes momentos iniciais do filme, corresponde a todo movimento de antecipação, pelo

discurso, de eventos cuja ocorrência na história é posterior ao presente da ação, a fim de criar

tensões. A prolepse não deve ser confundida com profecia ou com premonição, visto que ela é

feita por um narrador que não interage com o protagonista, diferente do que veremos no

decorrer da estória.

No estudo do narrador, Genette também se utiliza de termos do léxico

cinematográfico, tais como foco (tão difundido que hoje o termo foco narrativo se tornou

constante nos estudos literários), duração, frequência, modo e, o que nos será mais importante

neste momento, a diegese. Assim como no cronotropo de Bakhtin, que considera tempo e

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espaço inseparáveis (1998, p. 211), entende-se por diegese o universo espaço-temporal no

qual se desenrola a estória (Genette, 1972, p.48). Esse conceito deu origem à terminologia

proposta por Genette sobre a voz do narrador, definindo-se pela instância de enunciação do

discurso determinada: o narrador pode ser autodiegético, heterodiegético ou homodiegético

(op. cit., p. 252-253).

O narrador autodiegético é o narrador-personagem que é o próprio protagonista da

história. Geralmente ele se expressa em primeira pessoa e utiliza-se de prolepses, visto que,

como já viveu os fatos contados, possui um grau de onisciência. Temos como exemplo o

narrador Sérgio em O Ateneu, de Raul Pompéia, já homem maduro que relata o impacto do

colégio em sua vida.

Já o narrador homodiegético viveu a estória como personagem e dessa experiência

tirará as informações de que carece para construir seu relato. Ele observa e testemunha os

acontecimentos de uma forma mais secundária na trama. Diferencia-se do narrador

autodiegético por não participar da história como protagonista, participando na posição de

simples testemunha ou como personagem secundária solidária com a personagem central.

Temos como exemplo de narrador homodiegético o capitão Robert Walton, em Frankenstein,

de Mary Shelley, que narra a estória através de cartas para sua irmã. Este tipo de narrador é

recorrente na literatura fantástica, visto que a incompletude do conhecimento dos fatos gera

uma dúvida que traz o questionamento da realidade.

Por sua vez, o narrador heterodiegético, o mais comum na Literatura, não é co-

referencial com nenhuma das personagens da diegese e não participa, por conseguinte, na

história narrada, apenas narra os acontecimentos. Também consiste na maioria das vezes num

narrador onisciente e observador. O narrador relata uma história à qual é estranho uma vez

que não integra nem integrou, como personagem, o universo diegético em questão,

estabelecendo uma relação de alteridade e tentando adotar uma atitude demiúrgica em relação

a história que conta. Ele manipula o tempo do discurso de forma desenvolta, utilizando de

analepses, prolepses ou sumários, exprime-se normalmente na 3ª pessoa, o que não impede,

contudo de utilizar a 1ª pessoa, e por se situar muitas vezes num nível narrativo

extradiegético, isto é, não participar da história que conta, estando fora dos acontecimentos, e

pelo anonimato que quase sempre o atinge, favorece uma situação propícia para a confusão do

narrador com o autor. Ele pode ser apreendido principalmente nas obras realistas, naturalistas

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e neo-realistas e projeta em suas obras códigos ideológicos e temas que se articulam com

esses códigos, como pode ser conferido nos romances de Eça de Queirós, Flaubert, Tolstoi e

grande parte dos narradores do século 19.

Tendo em vista essa terminologia, poderíamos (ou podemos, até este momento)

classificar a narração inicial do filme como heterodiegética, e consequentemente

extradiegética. Porém, na interação entre a narradora e o protagonista, essas categorias dão-se

por terra, por não terem previsto a desconstrução do mundo ficcional através da

metalinguagem e do fantástico, visto que a metalinguagem é muito mais explorada como uma

manifestação da crítica literária (BARTHES, 2007, p. 27) ou como uma reflexão sobre a

língua (CAMPOS, 2006, p. 17-29), e o fantástico, por outro lado, tem como característica

enriquecedora sua variedade temática.

Genette, entretanto, define como narrativa intercalada aquela onde vários atos

narrativos são intercalados entre eventos (1972, 229). O autor considera este o mais difícil e

complexo modo de narrar, dada a necessidade de emaranhar as estórias, e é possível notarmos

isso em Mais estranho que a ficção nos momentos em que, aparentemente sem nenhuma

relação com a trama principal, são mostrados um garoto ganhando uma bicicleta e uma

mulher procurando emprego (00h03min44s). Essas duas personagens, anônimas e não

narradas, conduzirão as duas tramas menores, quase imperceptíveis numa primeira leitura do

filme. A alternância dessas tramas é o princípio da montagem alternada paralela, onde, como

explica Marcel Martin (2005), “duas (e por vezes várias) ações são conduzidas pela

intercalação de fragmentos, pertencendo alternadamente a cada uma delas, com o objetivo de

fazer surgir um significado da sua confrontação” (MARTIN, 2005, p. 200).

Harold aparece logo em seguida, escovando seus dentes. A narradora continua: “Se

alguém perguntasse, Harold teria dito que esta quarta-feira em particular era exatamente igual

às quartas-feiras anteriores. E ele a começou do mesmo jeito.” (00h04min03s). Neste

momento Harold para de escovar os dentes, percebendo estar ouvindo uma voz. Primeiro ele

acha que o som vem de sua escova de dentes. Há um momento de silêncio. Ao retornar à

escovação, a narradora também continua descrevendo suas ações, e Harold grita perguntando

se que há alguém em seu apartamento. Sem resposta, ele decide continuar escovando e

ouvindo a narração: “Enquanto os outros fantasiavam sobre o dia que teriam ou tentavam se

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lembrar das cenas finais do último sonho, Harold apenas contava as escovadas”. Harold fica

mais assustado, já que alguém sabe seus pensamentos.

A narradora continua descrevendo as ações de Harold, que perturbado pela voz, não

consegue desempenhar as ações do cotidiano, do simples ato de se vestir até a conversa com

colegas de trabalho, assim como em todas as vezes em que ele interrompia algo, a voz

também cessava a narração.

Nessa cena, onde há a apresentação do elemento insólito mais evidente do filme (e

segunda manifestação, se considerarmos o relógio coma personagem), existe um contraste

entre a função da narração no cinema e a do silêncio. Enquanto

[...] a voz fora de campo abre ao cinema o rico domínio da psicologia em

profundidade, tornando possível a exteriorização dos pensamentos mais íntimos

(monólogo interior); o silêncio encontra-se promovido como valor positivo, e sabe-se

muito bem a função dramática considerável que pode desempenhar como símbolo da

morte, de ausência, de perigo, de angústia ou de solidão. O silêncio, muito melhor do

que uma música atordoadora, pode sublinhar com força a tensão dramática de um

determinado momento (MARTIN, 2005, p. 144, grifos do autor).

Harold conversa com um colega de trabalho, que não escuta a voz. Complacente com

sua situação, seu amigo sugere que Harold vá auditar uma padaria, achando que seria um

trabalho mais tranquilo. Harold, porém, é hostilizado pela dona da padaria, Ana Pascal, e

vaiado por sua clientela, sendo que um desses clientes chega a apontar uma faca em sua

direção. Após um diálogo com Ana sobre sua sonegação de impostos, Harold é mais uma vez

assombrado pela narradora:

(00h11min56s) It was difficult for Harold to imagine Ms. Pascal as a revolutionary.

Her thin arms hoisting protest signs. Her long shapely legs dashing from tear gas.

Harold wasn't prone to fantasies and so he tried his best to remain professional. But, of

course, failed. He couldn't help but imagine Ms. Pascal stroking the side of his face

with the soft blade of her finger. He couldn't help but imagine her immersed in a tub

shaving her legs. And he couldn't help but imagine her naked, stretched across his bed. *

* Era difícil para Harold imaginar a Srta. Pascal como revolucionária. Seus braços finos

brandindo cartazes de protesto, suas formosas longas pernas fugindo do gás lacrimogêneo.

Harold não era dado a fantasias e fez um grande esforço para manter o profissionalismo. Mas,

obviamente, falhou. Ele não conseguia evitar imaginar Srta. Pascal acariciando seu rosto com a

parte lateral do dedo. Não conseguia evitar imaginá-la submersa em uma banheira depilando as

pernas. E não conseguia evitar imaginá-la nua estirada em sua cama (tradução nossa).

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Nesse momento, a natureza da narração e o livre arbítrio de Harold são colocados em

cheque, pela dúvida se o texto narrado verbaliza os pensamentos do protagonista, ou se a

narração é o que o faz agir. Ele contesta a narração:

(13min19s) [Narradora:] - Harold suddenly found himself beleaguered and

exasperated - outside the bakery…

[Harold: ] - Shut up!

[Narradora:] - … cursing the heavens in futility.

[Harold: ]- No, I'm not, I'm cursing you, you stupid voice! So shut up and leave me

alone! **

Ele se contradiz, porém, pois grita para o alto, como disse a narradora, não

necessariamente para os céus. O primeiro conflito dentro da narrativa para o protagonista é

estabelecido: Quem narra? Enquanto isso, para o espectador há um novo questionamento: O

que é real? Entretanto, mesmo que resolvido o conflito de que Harold é uma invenção de

Eiffel, ou vice-versa, ambos são construtos: tudo dentro da obra é ficção ou, no máximo,

representações.

**

[Narradora:] – Harold, de repente, viu-se sitiado e exasperado, fora da padaria...

[Harold]: - Cale a boca!

[Narradora:] - ... amaldiçoando os céus futilmente.

[Harold]: - Não, eu não estou, eu estou amaldiçoando você, sua voz estúpida! Então cale a boca

e me deixe em paz!

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3.1. A construção do gênero narrativo por meio da mimesis e do diálogo

Essas representações, no viés da mimesis, não têm a obrigação de necessariamente

refletir o real, como elucida Aristóteles:

[...] É evidente que não compete ao poeta narrar exatamente o que aconteceu; mas sim o que

poderia ter acontecido, segundo, verossimilhança e a necessidade. O historiador e o poeta não

se distinguem um do outro pelo fato de o primeiro escrever em prosa e o segundo em verso

[...]. Diferem entre si, porque um escreveu o que aconteceu e o outro o que poderia ter

acontecido. Por tal motivo a poesia é mais filosófica e de caráter mais elevado que a história,

porque a poesia permanece no universal e a história estuda apenas o particular. O universal é o

que tal categoria de homens diz ou faz em determinadas circunstâncias, segundo o verossímil

ou o necessário. (ARISTÓTELES, 2004, p. 43)

Aristóteles também considera possível o poeta não apenas criar, mas também relatar

fatos históricos e fábulas, porém ao imitar a ação em seu conjunto, o poeta, diferentemente do

historiador, desperta terror e compaixão. Evidentemente, para Aristóteles o conceito de poeta

não é restrito ao autor de poesias, mas a todo autor de ficção, e é definido pela sua missão:

“[...] consiste mais em fabricar fábulas do que fazer versos, visto que ele é poeta pela

imitação, e porque imita as ações” (Idem, p. 45). Esse conceito em muito também se aproxima

da função do narrador:

Com efeito, é possível imitar os mesmos objetos nas mesmas situações, numa simples

narrativa ou pela introdução de um terceiro, como faz Homero, ou insinuando-se a

própria pessoa sem que intervenha outra personagem, ou ainda apresentando a

imitação com a ajuda de personagens que vemos agirem e executarem elas próprias

(ARISTÓTELES, 2004, p.28).

Tendo em vista as formulações de Aristóteles (nota-se que Aristóteles já esboçava uma

categorização dos narradores que se aproxima daquela feita por Gennete), pode-se entender

personagens e narradores como representações estéticas: as personagens mimetizam pessoas,

enquanto os narradores projetam consciências que pairam seus olhares sobre elas. Mesmo as

personagens que representam figuras históricas possuem na imitação alterações que as tornam

sujeitos ficcionalizados, seja pela idealização exagerada, seja pela sátira, visto que o discurso

e a enunciação são subjetivos e, portanto, ideologicamente moldados. Ainda a fotografia,

que deveria retratar a realidade com precisão, possui traços de subjetividade pelas escolhas

feitas pelo fotógrafo, como explana Roland Barthes em A câmara clara (1984).

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Barthes também questiona a representação do real, neste caso dentro da Literatura, em

Aula:

O real não é representável, e é porque os homens querem constantemente representá-lo por

palavras que há uma história da literatura. Que o real não seja representável — mas somente

demonstrável — pode ser dito de vários modos: quer o definamos, com Lacan, como o

impossível, o que não pode ser atingido e escapa ao discurso, quer se verifique, em termos

topológicos, que não se pode fazer coincidir uma ordem pluridimensional (o real) e uma ordem

unidimensional (a linguagem). Ora, é precisamente a essa impossibilidade topológica que a

literatura não quer, nunca quer render-se. [...] a literatura é categoricamente realista, na medida

em que ela sempre tem o real por objeto de desejo; [...] ela é também obstinadamente:

irrealista; ela acredita sensato o desejo do impossível (BARTHES, 2007, p. 21).

Massaud Moisés utiliza representações como uma das definições da personagem de

romance. Para ele, “personagens são ‘pessoas’ que vivem dramas e situações, à imagem e

semelhança do ser humano, ‘representações’, ‘ilusões’, ‘sugestões’, ‘ficções’, ‘máscaras’, de

onde ‘personagens’ (do lat. persona, máscara)” (Moisés, 2001, p. 226, grifo do autor).

Moisés, entretanto, restringe ao romance a necessidade de haver uma personagem humana,

diferente das fábulas e mitos, onde as personagens são representações de atitudes: mesmo um

objeto inanimado, se não tiver sido antropomorfizado, reflete um olhar humano sobre ele.

A referência que Moisés faz às máscaras como formas de representação remontam à

origem das narrativas verbais que, sobretudo no mundo ocidental, tomaram sua forma no

teatro grego e nos poemas épicos, oriundas dos textos de tradição oral transmitidos através

dos tempos. Apesar de esses dois gêneros não tomarem a forma da prosa narrativa, visto que

um se materializa através da dramatização enquanto o segundo apresenta-se em versos, ambos

apresentam em comum os elementos predominantes do romance, isto é: enredo, personagens,

tempo e espaço, enquanto o narrador se encontra subentendido e distante dos acontecimentos,

isto é, apenas os relata. Também sobre a questão dos gêneros, em A teoria do Romance,

George Lukács afirma que

Epopéia e romance, ambas as objetivações da grande épica, não diferem pelas intenções

configuradoras, mas pelos dados histórico-filosóficos com que se deparam para a configuração.

O romance é a epopéia de uma era para a qual a totalidade extensiva da vida não é mais dada

de modo evidente, para a qual a imanência do sentido à vida tornou-se problemática, mas que

ainda assim tem por intenção a totalidade. (LUKÁCS, 2000, p. 55).

Também Tzvetan Todorov afirma que “um novo gênero é sempre a transformação de

um ou de vários gêneros antigos: por inversão, por deslocamento, por combinação”

(TODOROV, 1980, p. 46). Também sobre os gêneros, Bakhtin/Voloshinov ressalta que “cada

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época e cada grupo social têm seu repertório de formas de discurso na comunicação sócio-

ideológica. A cada grupo de formas pertencentes ao mesmo gênero, isto é, a cada forma de

discurso social, corresponde um grupo de temas” (2006, p. 42). Sendo assim, podemos

afirmar que a narrativa moderna é o resultado da transformação da epopéia, tendo como tema

principal nesta forma de criação estética o herói que ainda busca sua identidade.

Em seu estudo sobre a questão da identidade, Stuart Hall considera o homem como

detentor de uma identidade formada a partir do Iluminismo. Antes disso, segundo Hall,

acreditava-se que as tradições e estruturas eram “divinamente estabelecidas [...]. O status, a

classificação e a posição de uma pessoa na grande ‘cadeia do ser’ – a ordem secular e divina

das coisas – predominavam sobre qualquer sentimento de que a pessoa fosse um indivíduo

soberano” (HALL, 2003, p. 25).

Considerando as grandes obras ocidentais anteriores ao Iluminismo, percebemos que o

homem na ficção de fato é representado como um realizador das vontades divinas, desde os

mitos e os textos clássicos provindos da tradição oral. Essas narrativas clássicas, mitológicas

ou religiosas, se dividiam, principalmente: nos mitos cosmogônicos, isto é, aqueles que

relatavam a origem de seres e elementos da natureza, como, por exemplo, as Metamorfoses de

Ovídio; nas grandes jornadas, dentre as quais podemos destacar a Odisséia e a Ilíada de

Homero, estendendo-se às obras do medievo também provindas desse mesmo tipo tradição,

como as novenas da cavalaria, ou àquelas concebidas diretamente no texto escrito, como na

Divina Comédia, de Dante Alighieri, além de outras manifestações deste gênero épico, como

em Os Lusíadas, de Camões. Desta forma, as epopéias consistem nas jornadas de povos, seja

em busca da terra prometida, das grandes guerras, do momento da formação de um país ou

nação ou do retorno ao lar ou da busca pelo pai pelo herói.

A transformação da epopéia para o romance passou a depender não só da visão do

homem sobre si, mas também do modo de construção do discurso. Para Bakhtin, o ponto

principal para a formação do gênero narrativo se deu pelo desenvolvimento do uso do

discurso indireto livre, presente, como exemplificado pelo autor, nas fábulas e contos de La

Fontaine (Bakhtin , 2006, p. 157). Também a afirma Bakhtin que

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44

Na maior parte dos casos, porém, e especialmente naquela área em que o discurso

indireto livre se tornou um recurso de emprego maciço – a área da nova ficção em

prosa – a transmissão oral da interferência apreciativa seria impossível. Além disso, o

próprio desenvolvimento do discurso indireto livre está ligado à adoção, pelos grandes

gêneros literários em prosa, de um registro mudo, ou seja, para leitura silenciosa.

Apenas a adaptação da prosa à leitura silenciosa tornou possível a superposição dos

planos e a complexidade, intransmissível oralmente, das estruturas entoativas tão

características da literatura moderna (Bakhtin/Voloshinov, 2006, p. 197).

A consolidação dos gêneros literários em prosa, portanto, permitiu que um maior

número de destinatários, sob a forma de leitores e não somente de espectadores e ouvintes,

tivesse acesso às narrativas. A evolução do gênero permitiu também que a narrativa servisse

como instrumento de criação estética assumidamente ficcional, podendo, desta forma,

apresentar representações de novos mundos. Para Bakhtin,

A grande forma épica (a grande epopéia), que abrange também o romance, deve

proporcionar uma imagem de conjunto do mundo e da vida, deve refletir o mundo e a

vida por inteiro. O romance deve apresentar a imagem global do mundo e da vida pelo

ângulo de uma época considerada em sua integridade. Os acontecimentos

representados no romance devem, de um modo ou de outro, substituir toda a vida de

uma época. (Bakhtin, 1997, p. 264, grifos do autor)

Bakhtin ressalta, porém, que não era possível representar um “mundo inteiro” no

romance até o Renascimento porque nem mesmo o mundo real era conhecido em sua

totalidade, além do que o fantástico não visava outros mundos, mas completar aquele em que

se vivia (Idem, p. 265). Em Estética da criação verbal, o filósofo traça um panorama histórico

do romance, assim como em Problemas da poética de Dostoiévski. Nessa obra, Bakhtin

define o romance polifônico: é aquele marcado pela existência de “um herói cuja voz se

estrutura do mesmo modo como se estrutura a voz do próprio autor no romance comum. (...)

É como se soasse ao lado da palavra do autor, coadunando-se de modo especial com ela e

com as vozes plenivalentes de outros heróis.” (1981, p.5, grifos do autor).

Em Mais estranho que a ficção notamos que os mecanismos da polifonia não se

restringe ao mundo literário: temos o discurso do autor, pelas escolhas de filmagem, foco,

câmera, e película e trilha sonora, dentre outros recursos, e a voz da narradora, que se difere

da voz do autor quando se torna personagem, e a voz do protagonista, que enfrenta a

narradora.

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45

A maneira mais comum de representar diálogos em filmes se dá pela alternância de

tomadas que vetorizam o olhar dos interlocutores, isto é, uma personagem fica situada à

esquerda da imagem e olha para a direta, enquanto a personagem do lado direito tem seu rosto

voltado para o lado esquerdo da imagem. Essa escolha de imagens, segundo Martin, reflete o

posicionamento das personagens na narrativa:

Quando não são diretamente justificados por uma situação ligada à ação, os ângulos de

filmagem excepcionais podem adquirir um significado psicológico particular. [...] O

plano picado (filmagem de cima para baixo) tem tendência para tornar o indivíduo

ainda mais pequeno, esmagando-o moralmente ao colocá-lo no nível do solo, fazendo

dele um objecto levado por uma espécie de determinismo impossível de ultrapassar,

um brinquedo do destino (MARTIN, 2005, p. 51).

Quando Harold grita para cima, há uma resposta. A câmera se afasta dele em

movimento de ascensão, sem desfocá-lo. A próxima tomada dá continuidade a esse

movimento, com a câmera já em um ângulo alto, mostrando uma mulher na ponta de um

parapeito de um prédio, olhando para baixo, numa vetorização oposta à de Harold. Ela tem as

mãos estendidas e as move como se sentisse algo dentre os dedos ou como movesse algo. É

mostrada uma calçada sendo lavada por um homem, e a mulher anônima que procurava

emprego no começo do filme é molhada por ele por culpa do garoto que ganhou uma bicicleta

nos minutos iniciais.

A mulher no topo do prédio, interpretada por Emma Thompson, é mostrada

novamente, com uma trilha sonora que ressalta a tristeza em seu rosto. Ela apaga o cigarro,

guarda-o no bolso com um outro, e seu pé escapa do parapeito, não se sabe se

intencionalmente ou por acidente.

A imagem do prédio é sobreposta pela imagem de uma mão estendida, e as linhas das

paredes do edifício parecem se ligar às pontas de seus dedos, que se movem como se

manipulassem uma marionete, produzindo efeitos ao mesmo tempo de metáfora fílmica e de

estado onírico. O efeito de metáfora no filme é atingido pelo confronto entre as imagens

através da sobreposição, “que exprime [...] uma compenetração perceptiva, permitiu belos

efeitos psicológicos (expressão do sonho, de alucinação) e simbólicos” (Martin, 2005, p.233).

A mulher é interrompida por uma voz que pede licença, e as linhas agora são a

moldura da janela. Uma mulher negra aparece em frente a essas linhas, com o foco sendo

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ajustado se como a voz despertasse a primeira mulher, que ao invés de estar no topo de um

prédio, está sobre uma mesa. A mulher negra, interpretada por Queen Latifah pergunta se a

mulher sobre a mesa se chama Eiffel. Com a confirmação, a recém chegada se apresenta

como Penny Escher, enviada pela editora como assistente. Karen protesta, dizendo que Penny

foi enviada por acharem que ela está com bloqueio criativo.

3.2. A écfrase em Mais estranho que a ficção: o intertexto interartes

Karen fala sobre uma fotografia que viu em um livro chamada The Leaper (traduzido

como “A Suicida” na legenda do filme, mas com o sentido de “saltadora” numa tradução mais

literal):

“It's old, but it's beautiful. From above the corpse of a woman who'd just leapt to her

death. There's blood around her head, like a halo and her leg's buckled underneath,

her arm's snapped like a twig, but her face is so serene, so at peace. And I think it's

because when she died she could feel the wind against her face.” (16min 13s) *

Apesar de essa fotografia não estar presente no filme nem ter seu autor definido, há

uma forte relação dialógica com a famosa fotografia da modelo (fig. 1) capturada por Richard

Wiles para a revista Life em 12 de Maio de 1947 e republicada na coletânea organizada por

David E. Scherman, The Best of Life (1973), que posteriormente foi utilizada por Andy

Waröl em sua obra Suicide (Fallen Body). A altivez do rosto de Evelyn também é ressaltada

por Dillenberger em Religious Art of Andy Warhol, na análise do quadro de Waröl: “The

model is serene and whole in death, her body cradled on the indented top of a car, her face

tranquil, her body relaxed, her white gloved hand touching her pearls.” (DILLENBERGER,

2001, p. 67) *

* “É antiga, mas é linda. De alto [se vê] o cadáver de uma mulher que tinha acabado

de pular para a morte. Há sangue em volta da cabeça, como uma auréola e sua perna

está dobrada para baixo, seu braço está quebrado como um galho, mas seu rosto está

tão tranquilo, tão em paz. E eu acho que é porque quando ela morreu, ela podia sentir

o vento contra o rosto* (tradução nossa).

* “A modelo está serena e completa na morte, seu corpo embalado [como num berço] no teto retorcido de um carro, seu rosto

tranquilo, seu corpo relaxado, com a mão em luva branca tocando suas pérolas” (tradução nossa).

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Fig 1: corpo de Evelyn McHale, (Robert C. Wiles, 1947) Fig. 2: Suicide (Fallen Body), Andy Waröl

Além do efeito de alusão, a écfrase ou ekphrasis, isto é, a descrição de uma obra ou

objeto, desempenha uma forte função no discurso literário. Temos como exemplos a descrição

do escudo de Aquiles na Ilíada, as bandeiras em Os Lusíadas, e o texto de abertura de

Evangelho segundo Jesus Cristo, de José Saramago, onde é descrito o quadro da crucificação,

que acontecerá no final do livro. Também na obra de Saramago existe a descrição de uma

igreja em Ensaio sobre a Cegueira em que todos os santos descritos estabelecem uma relação

de sentido com a narrativa. Essa interrelação entre literatura e artes plásticas reforça o

argumento de Claus Clüver de que a intertextualidade se manifesta além do texto escrito e os

textos literários servem como objetos propícios a estudos interartes:

Tão logo reconheçamos que poemas, pinturas ou sinfonias não sejam textos

autônomos ou auto-suficientes e que não sejam intrinsecamente ou essencialmente

românticos, impressionistas ou simbolistas; tão logo reconheçamos a importância do

“ler como” (reading as) e do papel do leitor no processo de estabelecer o status e o

sentido dos textos; tão logo nos apercebamos da importância das intertextualidades no

processo de leitura e tão logo readmitamos o poeta/artista/compositor/produtor de

textos aos contextos em que percebemos o texto – a partir de então incluiremos em

nossas investigações históricas a tarefa de reconstrução das preocupações e programas

estéticos, dos modos de representação, das convenções estilísticas estruturais

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relevantes (ou supostamente relevantes) para o artista, seus modelos negativos ou

positivos; e poderemos propor as mesmas tarefas no domínio do público que recebia

as obras. (CLÜVER, 1997, p. 40-41).

Assim como Todorov desenvolve que as alusões possuem um outro sentido dentro do

fantástico, Clüver afirma que

Ekphraseis literárias não operam com tais restrições, mesmo sendo baseadas em obras

reais; a maioria delas tendem a atingir autonomia em relação ao texto-fonte, o qual

transformam de acordo com as necessidades do texto literário onde funcionam. (Ibid.,

p.42)

Fig. 3 e 4 : A “morte” de Harold

Nesse caso, além de inferir que a criação provém de uma fonte externa de inspiração, o

quadro causa uma convergência de discursos sobre a morte, tratada como uma casualidade

poética e libertadora, que se concretizará na autotextualidade de Karen na concepção da morte

de Harold. As citações do quadro da suicida, partindo do pressuposto de Fiorin que se pode

alterar ou confirmar o sentido do texto citado ou fazer uma citação por outra semiótica (2003,

p. 30-31), aparecem de forma verbal, como já citamos, e plástica, no atropelamento de Harold

(fig. 3 e 4): as pernas de Harold também se emborcam para baixo do corpo, assim como seu

braço parece um galho quebrado, além da tomada aérea que confere com a descrição do

quadro da suicida descrito por Karen.

Somada às imagens do começo do filme, que mostram uma motorista de ônibus

ganhando seu uniforme, um garoto ganhando uma bicicleta e das maçãs rolando quando

Karen sai para comprar cigarros (1:12:00), nota-se que no fantástico nada é mostrado por

acaso, há um pandeterminismo, onde “tudo, até o encontro das diversas séries causais (ou

“azar”), deve ter sua causa, no sentido pleno do termo, mesmo que esta não seja porém de

ordem sobrenatural” (TODOROV, 1981, p. 59).

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Nesse momento, porém, mais importante do que identificar esses elementos de coesão

do filme, é perceber que além da incorporação da voz de outro na materialidade dessa cena e

da confrontação (no sentido de resposta) de um discurso anterior, há um conceito ideológico

que foi polemizado pelo filme: a função da morte não só sob uma perspectiva de sacrifício,

numa discursividade de um ideal romântico, mas também, como Bakhtin também defende

(1997a, p. 35), uma forma de acabamento do herói e da obra em que ele está inserido.

3.3. Lentes e espelhos: metáforas de uma metaficção

Após falar sobre uma fotografia, Karen diz que não sabe como matar Harold Crick.

Penny descreve suas aptidões profissionais e diz que irá ajudá-la nessa empreitada

(16min52s). O filme se volta novamente para Harold, que é convocado a falar com Dr. Cayly,

num tom estranhamente informal, no departamento de recursos humanos da empresa. A

narradora retorna, voltando o pensamento de Harold novamente para Pascal. As nuvens

pintadas na parede atrás de Harold começam a se mover, sugestionando um elemento onírico

ao espectador. Ao fechar os olhos, Harold é interrompido pelo médico, que lhe sugere tirar

férias.

Já na rua (20min 10s), o relógio de Harold começa a tocar e mostrar pontos de

exclamação em seu visor. Ana Pascal é vista passando pelo outro lado da rua como se a

câmera estivesse dentro do relógio, atrás de sua lente. É ressaltado, mais uma vez, um dos

elementos fantásticos presente no filme: a vontade própria do relógio e seus sentimentos

antropomorfizados. Tzvetan Todorov, em Introdução à Literatura Fantástica, numa análise

do conto A princesa Brambilla, de Hoffmann, faz uma análise sobre a presença das lentes no

universo do fantástico:

[...] significativamente, toda aparição de um elemento sobrenatural vai acompanhada

da introdução paralela de um elemento pertencente ao campo do olhar. Trata-se, em

particular, das lentes e do espelho que permitem penetrar no universo maravilhoso

(1981, p. 64).

A lente do mostrador do relógio faz, portanto, que o espectador veja o mundo pela

perspectiva do relógio, um objeto que não tem olhos tampouco tem qualquer função

relacionada à visão. Seus pensamentos continuam a ser descritos pela narradora:

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Harold supôs que seu relógio estava simplesmente com defeito e nem sequer

considerou que ele poderia estar tentando lhe dizer algo. De fato, Harold nunca

prestara muita atenção nele, exceto para ver as horas, o que, na verdade, deixava o

relógio maluco.

E assim, neste particular começo de noite, enquanto Harold esperava o ônibus, seu

relógio, de repente, parou.

Harold pergunta as horas às outras pessoas que esperam o ônibus, e ajusta seu relógio

para as seis horas e dezoito minutos. Após isso, a narradora continua: “Thus Harold's watch

thrust him into the immitigable path of fate. Little did he know that this simple, seemingly

innocuous act would result in his imminent death.”* (21 min 00s).

Ao ouvir a última frase Harold se desespera, gritando para o alto e perguntando

quando e quão iminente. Ao chegar em casa, Harold começa a procurar a narradora pela casa,

e ele mesmo começa a narrar suas ações, depredando seu próprio apartamento:

Okay, where are you?

“Harold would brush his 32 teeth 72 times.”

Why won't you say anything? I heard you.

“That would result in his imminent death.”

I heard you! Come on, you stupid voice.

“Harold frantically grabbed his lamp. Harold, incensed, shook the hell out of it for no

apparent reason! And smashed it on the ground, kicking it repeatedly! Harold took his

Kleenex box, threw it across the room then stormed the closet!” Come on. Say

something. Something. Say something! Say something!

“Harold, distraught... God!....Harold, distraught...Harold”*

Ao narrar seus próprios atos, Harold usa palavras que não usaria no dia a dia,

revelando traços de polifonia presentes no filme, pelas diferentes vozes conflitantes. Há

também nessa cena um confronto com o espelho. Este objeto, muito caro ao cinema pela sua

utilização, é considerado uma temática à parte, como ressalta Martin:

* “E assim o relógio de Harold o empurrou ao imitigável caminho do destino. Mal sabia ele que esse simples e

aparentemente inócuo ato resultaria na sua morte iminente” (tradução nossa). *[Harold:] - Ok, onde você está?

“Harold escovava os 32 dentes 72 vezes.”

Por que não fala nada? Eu ouvi você.

“Aquilo resultaria em sua morte iminente.”

Eu ouvi você! Ande, voz idiota!

“Harold freneticamente agarrou seu abajur. Harold, indignado, chacoalhou-o como o inferno,

sem razão aparente. E o esmagou no chão, chutando-o repetidamente! Ele pegou a caixa de

[lenços de papel] Kleenex, e jogou pelo quarto... e então invadiu o armário!”

Vamos. Diga alguma coisa. Algo. Diga alguma coisa! Diga alguma coisa!

“Harold, perturbado...” Deus!

“Harold, perturbado...Harold ...” (tradução nossa)

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[...]o [tema] do espelho, janela aberta sobre um mundo misterioso e angustiante (ver o

espelho de “Der Student von Prag” - O Estudante de Praga, onde se vê o duplo do

protagonista, ou aquele que, num dos episódios de “Dead of Night” - A Dança da

Morte, restitui um passado que antigamente fazia parte das suas funções), ou então

testemunho impassível e cruel das tragédias humanas (ver aquele espelho onde se

multiplica o desespero de “Cidadão Kane” (2005, p. 82, observação do autor).

O espelho também é um objeto caro à Literatura Fantástica, colocado por Todorov

como tão importante quanto as lentes:

O mesmo acontece com o espelho (em francês, miroir), esse objeto cujo parentesco

com “maravilha” [etimologicamente se origina] por uma parte, e olhar (“olhar-se”) por

outra [...] A verdadeira riqueza, a verdadeira felicidade (e estas se encontram no

mundo do maravilhoso) só são acessíveis aos que conseguem se olhar no espelho [...]

A “razão”, que rechaça o maravilhoso e também renega ao espelho, sabe bem. A

“razão” se declara contra o espelho, que não oferece o mundo, a não ser uma imagem

do mundo, uma matéria desmaterializada em uma palavra, uma contradição frente à lei

de não-contradição. [...] Olhar através de lentes permite descobrir outro mundo e

falseia a visão normal; o transtorno é semelhante ao produzido pelo espelho. A visão

pura e simples nos descobre um mundo plano, sem mistérios. A visão indireta é a

única via para o maravilhoso. Mas esta superação da visão, esta transgressão do olhar,

não são por acaso seu símbolo mesmo e algo assim como seu maior elogio? As lentes

e o espelho se convertem na imagem de um olhar que já não é um simples meio de

unir o olho com um ponto do espaço, que já não é puramente funcional, transparente,

transitiva. Estes objetos são, em certa medida, olhar materializado ou opaco, uma

quintessência do olhar. Por outra parte, a palavra “visionário” contém a mesma

ambiguidade fecunda: é aquele que vê e não vê, e é de uma vez grau superior e

negação da visão. (1981, p. 64, grifos do autor)

Nesse sentido, Mais estranho que a ficção possui os tipos menos convencionais de

lentes: na cena inicial, em que Harold escova os dentes, a câmera é mostrada como se

estivesse dentro de sua boca. Ao entrar correndo em casa, procurando pela voz, Harold é

mostrado pelos furos de vazão do chuveiro. Após isso, Harold olha para o espelho,

procurando algo além de si mesmo. A câmera o mostra de frente, como se o espectador o

visse através do objeto, mas o olhar da personagem vagueia, ele se olha, mas não se vê.

Impossibilitado de trabalhar, Harold consulta uma analista, ainda não acreditando

totalmente estar louco, numa possibilidade de racionalização do elemento fantástico. Essa

dúvida, tanto para Harold quanto para o espectador, consiste, segundo Todorov, em uma forte

característica do fantástico, visto que, para o autor, este gênero ocupa o tempo desta incerteza

(TODOROV, 1981, p. 15). Harold recebe, então, seu diagnóstico:

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(22 min 56 s): [Dra. Mittag-Leffler:] – I'm afraid what you're describing is

schizophrenia.

[Harold:] – No. No. It's not schizophrenia. It's just a voice in my head. I mean, the

voice isn't telling me to do anything. It's telling me what I've already done. Accurately

and with a better vocabulary.

- Mr. Crick, you have a voice speaking to you.

- No, not to me, about me. I'm somehow involved in some sort of story. Like I'm a

character in my own life. But the problem is that the voice comes and goes. Like there

are other parts of the story not being told to me and I need to find out what those other

parts are before it's too late.

- Before the story concludes with your death.

- Yes.

- Mr. Crick, I hate to sound like a broken record but that's schizophrenia.

- You don't sound like a broken record, but it's just not schizophrenia. What if what I

said was true? Hypothetically speaking, if I was part of a story, a narrative even if it

was only in my mind what would you suggest that I do?

- I would suggest you take prescribed medication.

- Other than that.

- I don't know. I suppose I would send you to see someone who knows about

literature.

- Okay. Yeah. That's a good idea. Thank you.*

A hesitação sobre a sanidade de Harold pelas personagens que o cercam, e também

pelo espectador, marcam mais um dos elementos do fantástico, que Todorov define o como

uma “percepção particular de acontecimentos estranhos” (TODOROV, 1981, p. 49). Além do

relógio, o acontecimento estranho mais marcante que marcará o primeiro conflito do filme

acontece quando Harold começa a ouvir uma voz descrevendo seus atos: ocorre a

transformação da narradora, que já se pronunciava desde os primeiros segundos de filme e

* [Dra. Mittag-Leffler:] – Temo que o você está descrevendo é esquizofrenia.

[Harold:] – Não, Não é esquizofrenia. É só uma voz na minha cabeça. Quer dizer, a

voz não está me dizendo para fazer nada, está me dizendo o que já fiz. Com precisão e

com um vocabulário melhor.

– Sr. Crick, você tem uma voz falando com você.

– Não, não comigo. Sobre mim. Estou de alguma forma envolvido em algum tipo de

estória. Como se eu fosse Uma personagem na minha própria vida. Mas o problema é

que a voz vem e vai. Mas há outras partes da estória não contadas a mim e preciso

saber o que essas outras partes são antes que seja tarde demais.

– Antes que a história conclua com a sua morte.

– Sim.

– Sr. Crick, detesto soar como um disco furado, mas isso é esquizofrenia.

– Você não soa como um disco furado, mas só não é esquizofrenia. E se o que eu disse

fosse verdade? Hipoteticamente falando, se eu fosse parte de uma estória, uma

narrativa mesmo que fosse só na minha mente, o que você sugeriria que eu fizesse?

– Sugeriria que tomasse medicação prescrita.

– Além disso.

– Não sei. Suponho que o enviaria para alguém que conhece literatura.

– Ok. Essa é uma boa ideia. Obrigado.

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não causava estranhamento para o espectador, deixando de ser um elemento estético e se

tornando mais uma personagem.

Mesmo em face do estranho, Harold se preocupa em não perder o ônibus para o

trabalho, assim como pensa Gregor Samsa, em A Metamorfose, de Franz Kafka, que se

preocupa em ter perdido o trem para também ir trabalhar, ainda que transformado em barata.

A escolha de estereótipos de burocratas como personagens reflete uma preocupação em

apresentar aspectos reconhecíveis e até enfadonhos de suas rotinas. Estes traços de realidade

preparam o leitor para o surgimento do fantástico, que produzem na obra um efeito de

questionamento dessa existência, o que, porém, não é feito tão prontamente por seus

protagonistas, que tentam manter seus hábitos.

Visões estereotipadas também são exploradas nas características de Karen Eiffel

(Emma Thompson): magra, fumante, melancólica, introspectiva, podendo lembrar Virgínia

Woolf ou Clarice Lispector. Além disso, como ressaltam Ana Lucia Trevisan e Maria Luiza

Guarnieri Atik numa análise da narrativa onírica na obra de Rubens Figueiredo, “a presença

de personagens introspectivas provoca a desestabilização de um entendimento de mundo mais

imediato, tal aspecto conjuga-se às formulações de enredos permeados pelas inquietações,

pelas dúvidas e pelas manifestações da ambiguidade” (ATIK; TREVISAN, 2012).

Quando Karen revela que está em crise criativa por não conseguir terminar sua obra.

Um espectador mais atento entenderá que Karen é uma escritora e Harold é uma personagem

de seu livro. Consequentemente, essa elucidação gera mais dúvidas: trata-se de uma narrativa

paralela ou de um recurso de mise en abyme (ou nested narrative) isto é, uma história dentro

da outra? O aparecimento de Eiffel como personagem coloca em xeque a “existência” de

Harold: a materialidade de um traz o questionamento da materialidade do outro, assim como

da própria ficção, que reflete sobre si própria, criando uma metaficção.

Na hipótese da mise en abyme, temos o trabalho de Lucien Dällenbach sobre o

recurso. Dällenbach afirma que limitar a tipologia intertextual a pares paradigmáticos acaba

restringindo o campo de seu estudo, e propõe analisar os autotextos segundo sua abrangência.

Sendo assim, a mise en abyme funciona no nível da narrativa e no da reflexão, em que ele

intervém como elemento duma meta-significação, podendo ser considerado uma citação de

conteúdo ou um resumo intratextual (1979, p. 54).

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A utilização da mise en abyme, segundo Dällenbach, implica em duas operações

distintas: “uma redução (ou estruturação por engaste) e uma elaboração do paradigma de

referência (ou estruturação por projeção no eixo sintagmático dum “equivalente” metafórico)”

(op. cit., p. 55), ou seja, se haver uma hierarquização das obras, como uma dentro da outra, ou

uma mais próxima do nível do real enquanto a outra mais ficcionalizada, o rompimento das

estruturas da estória se torna iminente. Essa idéia de destruição é tão forte que na teoria do

teatro utiliza-se a expressão quebrar a quarta parede quando, por exemplo, o ator fala com

seu público, o que não impede, porém, de que a personagem que sabe que está numa obra de

ficção seja vista como louca pelas outras dentro da obra, visto que a reposta, quando dada, não

é ouvida por todos.

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4. LUGARES E DISCURSOS DOS MESTRES NA FICÇÃO

Quando Harold aceita o conselho da psiquiatra e procura um professor de Literatura

(24min 45s), revela-se a necessidade de uma personagem junto ao herói que conheça o

funcionamento do sistema em que eles estão inseridos. Essa busca pelo mestre está presente

em diversos mitos, como relata Joseph Campbell em O Poder do Mito e em O Herói das Mil

Faces. Campbell (2008, p. 57-236) afirma que a jornada do herói apresenta três grandes fases:

a partida, a iniciação e o retorno.

Para aqueles que não recusaram o chamado, o primeiro encontro da Jornada do Herói

se dá com uma figura protetora (que, com frequência, é uma anciã ou um ancião), que

fornece ao aventureiro amuletos que o protejam contra as forças titânicas com que ele

está prestes a deparar-se. (CAMPBELL, 2007, p.74)

O mestre é o responsável, portanto, pela iniciação, que enviará o herói à segunda parte

desta jornada. Campbell compara a jornada do herói clássico a Luke Skywalker, protagonista

dos episódios 4 a 6 da saga fílmica Star Wars.

Em Star Wars - Episódio IV e em O Retorno de Jedi, filmes roteirizados por George

Lucas e dirigidos por Richard Marquand (1983), Luke tem como mestres Ben Kenobi (Alec

Guiness) e Yoda (voz de Frank Oz), respectivamente. Tanto Ben quanto Yoda não se

apresentam inicialmente como autoridades: enquanto o primeiro participa da criação de Luke

passando-se por seu tio, o segundo é encontrado em um pântano de um planeta inóspito e

também não se revela no primeiro contato. O mesmo acontece com Gandalf, em O Senhor dos

Anéis, novela de J. R. R. Tolkien: o poderoso mago se revela como um simples manipulador

de fogos de artifício, “[...] coberto de farrapos cinzentos [...] movimentando-se devagar. [...]

parecia um velho mendigo, caminhando fatigado, apoiando-se num cajado rude”

(TOLKIEN, 2001, p. 89), só revelando suas virtudes quando se fez realmente necessário.

O mestre, assim como o centauro Quirón, professor e tutor de muitos heróis no mito

grego, revela no primeiro impacto muito mais o grotesco do que o conhecimento que

compartilhará com o herói, muitas vezes para testá-lo, já que “alguns mestres decidem não

ensinar nada, com receio do mau uso que a sociedade fará do que eles descobriram”

(CAMPBELL, 1991, p. 154). Também no texto bíblico os mestres descritos representando

extrema humildade em contraste à sua importância, como por exemplo João Bastista, que

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“[...] tinha as suas vestes de pelos de camelo, e um cinto de couro em torno de seus lombos; e

alimentava-se de gafanhotos e de mel silvestre.” (Mateus 3:4), e mesmo Jesus Cristo, que

chega em Jerusalém montado em um jumentinho (Lucas 19:28-44), e após Sua ressurreição é

confundido com um jardineiro por Maria Madalena (João 20:15). Cabe ao discípulo, portanto,

conseguir identificar a grandiosidade do mestre sem se ater a sua aparência física.

4.1. A caverna do mestre

A primeira aparição do mestre no roteiro original de Mais estranho que a ficção,

escrito por Zach Helm (2006), não foi transposta para o filme. Nela, Harold faz sua primeira

visita ao campus da universidade. Enquanto procura pelo prédio do professor numa área

central e arborizada, há, nesse local, “um homem velho, de pé, segurando um surrado par de

óculos no meio do corpo, aparentemente usando-os para ler um livro aberto a seus pés.”

(HELM, 2006, p. 27, tradução nossa.)

Harold conversa com um aluno da universidade que lhe diz que o professor não está

no prédio, mas próximo da árvore segurando seus óculos. Notamos aqui uma tendência, tanto

no cinema quanto na literatura, de descrever o professor como um sujeito exótico, excêntrico.

Temos, como exemplo em obras literárias, em Dois Irmãos, de Milton Hatoum, “o mestre de

francês, ele mesmo um excêntrico, um dândi deslocado na província, recitador de simbolistas,

palhaço da sua própria excentricidade.” (Hatoum, 2006, p. 34.); em Os Desastres de Sofia,

conto de Clarice Lispector, a aparência do professor também causa inquietação:

Qualquer que tivesse sido o seu trabalho anterior, ele o abandonara, mudara de

profissão, e passara pesadamente a ensinar no curso primário: era tudo o que sabíamos

dele. O professor era gordo, grande e silencioso, de ombros contraídos. Em vez de nó

na garganta, tinha ombros contraídos. Usava paletó curto demais, óculos sem aro, com

um fio de ouro encimando o nariz grosso e romano. [...] E bem devagar vi o professor

todo inteiro. Bem devagar vi que o professor era muito grande e muito feio, e que ele

era o homem de minha vida. O novo e grande medo. (LISPECTOR, 1999, p. 11-19)

Também em Perto do Coração Selvagem, da mesma autora, a personagem principal se

apaixona pelo professor, porém não pelos seus atributos físicos: “Os cabelos dele ainda

negros, seu corpo enorme como de um animal maior que o homem.” (LISPECTOR, 1998, p.

56); mesmo em Aparição, de Vergílio Ferreira, em que o professor é o narrador do romance,

notamos o estranhamento que as demais personagens têm perante ele.

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57

Em “A Personagem no Teatro”, ensaio presente em A Personagem de Ficção,

organizado por Antônio Candido, Decio de Almeida Prado explica que “entendidas como

individualidades, [as personagens] foram inteiramente substituídas, durante séculos, por

máscaras arquétipos cômicos tradicionais” (CANDIDO, 1968, p. 93). Assim como no teatro,

as personagens na literatura e no cinema também são representadas de forma reduzida: seria

impossível contar em sua totalidade a história de vida de alguém, seus anseios, suas vontades.

O que é mostrado, portanto, são as máscaras. Essa aparência cria um determinado efeito de

sentido quando entrar em contradição com a essência da personagem, e gera outro significado

quando a aparência e essência se conjugam.

Tanto na apresentação das personagens quanto no espaço em que elas são encontradas

percebemos a presença do grotesco, contrastando com suas virtudes. Bakhtin (1987, p. 268)

desenvolve as concepções sobre o grotesco, considerando as origens folclóricas e

ambivalentes deste conceito, não somente a carga do ridículo, da aberração, “do que vem das

grutas”, mas também da renovação. Isso se dá pelo processo de carnavalização, onde as

máscaras são um dos elementos essenciais:

[...] É preciso um elemento a mais, vindo de uma outra esfera da vida corrente, a do

espírito e das ideias. A sua [a da festa] sanção deve emanar não do mundo dos meios e

condições indispensáveis, mas daquele dos fins superiores da existência humana, isto

é, do mundo dos ideais. Sem isso, não pode existir nenhum clima de festa. [...] Essa

visão, oposta a toda ideia de acabamento e perfeição, a toda pretensão de

imutabilidade e eternidade, necessitava manifestar-se através de formas de expressão

dinâmicas e mutáveis (protéicas), flutuantes e ativas. Por isso, todas as formas e

símbolos da linguagem carnavalesca estão impregnados do lirismo da alternância e da

renovação, da consciência da alegre relatividade das verdades e autoridades no poder.

(BAKHTIN, 1987, p. 8-10.)

Dessa forma, considerando a ficção como detentora de um conjunto de regras próprias

onde o meio em que ela circula provém infinitas possibilidades de criação, seja na obra

literária, cinematográfica ou teatral, a personagem de ficção veste sua máscara para assumir

seu papel dentro da estória. A essência da personagem torna-se mutável, visto que ela será

revelada aos poucos, à medida que a máscara for retirada e essa personagem revelar mais uma

de suas faces: o mestre não se revela em primeira instância ou se passa por outro, como

acontece nas obras já citadas, além do mito de Minerva, que se disfarça de Mentor para

Telêmaco. No caso do professor humano, desprovido de toda esta divindade ou poder

sobrenatural dos mestres, mais do que ser apresentando, ele precisa ser reconhecido: para

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58

haver uma relação harmoniosa, sua autoridade é exercida pelo conhecimento de mundo e pela

contribuição que ele dará ao seu interlocutor, caso contrário, isto é, se o professor tentar impor

sua autoridade por outros meios, como através da hierarquia, por exemplo, a relação

professor-aluno torna-se conflitante ou desastrosa, como para Lino, professor de música de

Hércules, que tendo repreendido seu discípulo com aspereza demais, despertou a ira do filho

de Zeus que o matou com uma pancada; ou o professor de matemática em Dois Irmãos, que

humilhando seu aluno Omar despertou-lhe um desejo de vingança que resultou em agressão

física (HATOUM, 2006, p. 33); ou a primeira professora de Joana em Perto do Coração

Selvagem, que não sabendo responder à pergunta da aluna foi constrangida perante toda a

turma (LISPECTOR, 1998, p. 30); ou o professor em Os Desastres de Sofia, que,

demonstrando impaciência, é desafiado.

Tanto em Mais estranho que a ficção quanto em Dois Irmãos e Perto do Coração

Selvagem, o reconhecimento da autoridade se dá pela busca do aluno pelo professor em seu

espaço. Nota-se que o tipo de interação muda à medida que as personagens são retiradas do

contexto da sala de aula, assim como os temas a serem debatidos, sem estarem presos a um

programa imposto pela instituição. Para Georg Lukács, “o cenário possui uma significação

autônoma, enquanto elemento destinado a completar o ambiente.” Ele possui um conteúdo

simbólico que revela traços das relações sociais e elementos dramáticos que revelam os

aspectos das personagens (LUKÁCS, 2000, p. 49). A sala de aula, neste sentido, chega quase

a um não-lugar, isto é, um local de passagem (AUGÉ, 1994, p. 36), enquanto o cenário que

realmente representa o professor aproxima-se do recluso, do isolamento, da gruta.

Na cena em que Harold e o professor estão no interior da universidade, na concepção

do roteiro, eles andam por um corredor escuro, até que chegam ao escritório:

“O escritório de Hilbert é a mesma coisa que a fotografia e combina com ele

perfeitamente: há livros por todos os lugares, exceto nas prateleiras, muitos quebra-

cabeças espalhados (quase todos resolvidos) e vários tapetes enrolados

inexplicavelmente encostados no canto. Uma cafeteira jaz no peritoril.” (HELM, 2006,

p. 29)

Dois cenários parecidos são descritos em Dois Irmãos, ambos habitados pelo professor

Laval, e que o narrador descreve como cavernas:

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59

Pensava em Laval, nas conversas noturnas em sua caverna, como ele chamava o porão

onde morava sozinho. (...) Eu via a silhueta de Laval através do óculo redondo do

porão. A luz solar pouco aclarava a caverna, e uma lâmpada que pendia do teto

iluminava a cabeça do mestre. (HATOUM, 2006, p. 190)

O que se sabe é que, desde então, Laval internou-se no subsolo de uma casa à margem

do Igarapé de Manaus. Várias vezes foi encontrado no canto da caverna, quieto e

emudecido, o rosto, cadavérico, a barba espessa que ele conservaria até a imolação.

(Op. cit., p. 193)

Também em Perto do Coração Selvagem, Joana faz sua última visita a seu professor:

Sabia que o professor adoecera, que fora abandonado. [...] naquela mesma sala

estranha e sonsa onde agora a poeira vencera o brilho. Ela olhava ao redor e a meia

escuridão era úmida e ofegante. O professor parecia um grande gato castrado reinando

num porão. (LISPECTOR, 1998, P. 114)

A catábase, isso é, a descida ao mundo inferior a fim de obter a anagnorisis, isto é, o

conhecimento supremo, está presente desde os mitos de Hércules, Ulisses, Orfeu e Enéias,

(SANTOS, 2008), assim como no medievo, com a descida de Dante aos Infernos, e no

encontro de Luke Skywalker com Yoda em uma caverna num pântano em o Retorno de Jedi.

Esta mudança de planos serve, também para Bakhtin, como catalisador de um potencial para o

herói:

O “alto” e o “baixo” possuem aí um sentido absoluta e rigorosamente topográfico. O

“alto” é o céu; o “baixo” é a terra; a terra é o princípio de absorção (o túmulo, o

ventre) e, ao mesmo tempo, de nascimento e ressurreição (o seio materno). Este é o

valor topográfico do alto e do baixo no seu aspecto cósmico [...] Quando se degrada,

amortalha-se e semeia-se simultaneamente, mata-se e dá-se a vida em seguida, mais e

melhor. [...] A degradação cava o túmulo corporal para dar lugar a um novo

nascimento. E por isso não tem somente um valor destrutivo, negativo, mas também

um positivo, regenerador: é ambivalente, ao mesmo tempo negação e afirmação. [...] o

baixo é sempre o começo". (BAKHTIN, 1987, p. 19)

É no fundo da gruta, portanto, que o herói encontra o conhecimento, materializado na

figura do professor. Este espaço, como afirma Barthes, relaciona-se com outros elementos

narrativos, não apenas de maneira funcional, mas também semântica, ou seja, da ordem dos

sentidos gerados pelo espaço: “Os índices implicam uma atividade de deciframento: trata-se

para o leitor de aprender a conhecer um caráter, uma atmosfera” (BARTHES, 1976, p. 34). A

presença dos inúmeros livros no escritório do professor Hilbert fornecem os índices não

apenas para o caráter do professor, mas também de sua formação discursiva. Michel Foucault

(1984, p.49) define como heterotopias espaços que conseguem sobrepor, num só espaço real,

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vários sítios por si só incompatíveis, e utiliza como exemplo a biblioteca e o museu, espaços

cuja composição depende de objetos que representam outros tempos e espaços, podendo ir do

espaço íntimo até o espaço sideral.

Sendo assim, a presença dos livros na sala faz com que o leitor infira sua leitura pelo

professor. Além de outras narrativas, que representam outros tempos e espaços, os livros

também são depositários dos discursos que compõem a fala de Jules Hilbert. Como veremos,

dentre personagens do filme, o professor projeta o maior número de vozes ecoando em seu

discurso, ou seja, sua fala é a que mais tem propriedades dialógicas na obra e mais citações

intertextuais.

4.2. A Ironia dramática como forma de metalinguagem

A interação entre o professor e o novo aluno molda o discurso de Hilbert à medida que

novas situações e informações sobre o problema de Harold vão surgindo. O primeiro diálogo

entre Harold e o professor no filme acontece enquanto ambos sobem uma escada e em

seguida, entram em um banheiro (24min 41s):

[Prof. Jules Hilbert:] - So you're the gentleman who called me about the narrator.

[Harold:] - Yes.

- This narrator says you're gonna die.

- Yes.

- How long has it given you to live?

- I don't know.

- Dramatic irony. It'll fuck you every time. *

O primeiro traço de intertextualidade no discurso do professor se manifesta na análise

da característica de construção utilizada pela narradora da vida de Harold, revelando a

formação e especialidade em construções narrativas do mestre. Hilbert não explica o que é a

ironia dramática, apenas diz a Harold, sem eufemismos, o quanto ela irá prejudicá-lo. Esta

* [Prof. Jules Hilbert:] – Então você é o jovem cavalheiro que me ligou sobre o

narrador.

[Harold:] – Sim.

– E esse narrador diz que você vai morrer.

– Sim.

– Quanto tempo lhe foi dado para viver?

– Não sei.

– Ironia dramática. Vai te ferrar sempre. (tradução nossa)

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fala também revela a formação discursiva do roteirista do filme: o termo ironia dramática é

encontrado muito mais em guias para elaboração de roteiros para teatro, cinema e televisão,

do que em teoria literária, que por outro lado trata essa ferramenta muitas vezes como a sátira,

que na Literatura, por sua vez, possui um número considerável de vertentes, o que permite

considerá-la um gênero à parte. Neste ponto de vista, ela engloba muito outros aspectos

históricos e políticos do que o viés que privilegiamos neste estudo, e por isso a distinção entre

sátira e ironia dramática.

O cineasta Yves Lavandier, autor de um desses muitos guias de roteiro, intitulado

Writing Drama, define a ironia dramática como “a ferramenta de dar ao espectador um item

de informação de que pelo menos uma das personagens na narrativa não tem conhecimento

(pelo menos conscientemente), assim colocando o espectador um passo à frente de pelo

menos uma das personagens” (2005, p. 147, tradução nossa). Essa é utilizada desde o antigo

teatro grego clássico, sobretudo nas tragédias. O exemplo mais clássico está em Édipo Rei, de

Sófocles, em que a personagem principal demanda uma investigação de um crime que ele

mesmo teria cometido.

Assim como em Mais Estranho que Ficção, em Édipo Rei também há uma

personagem que sabe do destino do protagonista, porém não o revela: quando é chamado para

testemunhar, o cego Tirésias se lamenta: “Como é terrível a sapiência, quando quem sabe não

consegue aproveitá-la!” (SÓFOCLES, 2002, p. 34.) Ele inicialmente se recusa a dizer o que

sabe, porém não deixa de lançar uma maldição em tom profético antes de sair de cena:

Sentir-te-ás um dia tão aniquilado como jamais homem algum foi neste mundo! [...] o

homem que vens procurando entre ameaças e discursos incessantes sobre o crime

contra o rei Laio, esse homem, Édipo, está aqui em Tebas e se faz passar por

estrangeiro, mas todos verão bem cedo que ele nasceu aqui e essa revelação não há de

lhe proporcionar prazer algum; ele, que agora vê demais, ficará cego; ele, que agora é

rico, pedirá esmolas e arrastará seus passos em terras de exílio, tateando o chão à sua

frente com um bordão. Dentro de pouco tempo saberão que ele ao mesmo tempo é

irmão e pai dos muitos filhos com quem vive, filho e consorte da mulher de quem

nasceu; e que ele fecundou a esposa do próprio pai depois de havê-lo assassinado! Vai

e reflete sobre isso em teu palácio e se me convenceres de que agora minto, então terás

direito de dizer bem alto que não há sapiência em minhas profecias! (Ibid., p. 40-41.)

O coro do teatro grego dá voz ao autor, função que o narrador desempenha no

romance, e às vezes, no cinema, porém essa função também é dada a uma personagem

profética que aparece em vários clássicos do teatro e da Literatura. Romeu e Julieta, de

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William Shakespeare (1564–1616), também se inicia com um coro que revela o destino dos

amantes:

Chorus.Two households, both alike in dignity, In fair Verona, where we lay our scene.

From ancient grudge break to new mutiny, where civil blood makes civil hands

unclean. From forth the fatal loins of these two foes a pair of star-cross'd lovers take

their life; whose misadventur'd piteous overthrows doth with their death bury their

parents' strife. The fearful passage of their death-mark'd love, And the continuance of

their parents' rage, which, but their children's end, naught could remove, is now the

two hours' traffic of our stage; the which if you with patient ears attend, what here

shall miss, our toil shall strive to mend. (SHAKESPEARE, 1993, p. 2)*

Além do coro revelando o final, a peça tem seu personagem profético: antes de sua

morte, Mercúcio, amigo de Romeu: “Que uma praga caia sobre suas casas”

(SHAKESPEARE, 1993, p.68, tradução nossa). Também é possível identificar a ironia

dramática em contraste com outra figura profética, presente na Literatura Portuguesa: o velho

do Restelo, no Canto IV de Os Lusíadas¸ de Luís Vaz de Camões, representa o pessimismo e

sua voz destoa do narrador:

A que novos desastres determinas

De levar estes reinos e esta gente?

Que perigos, que mortes lhe destinas

Debaixo dalgum nome preminente?

Que promessas de reinos, e de minas

D'ouro, que lhe farás tão facilmente?

Que famas lhe prometerás? que histórias?

Que triunfos, que palmas, que vitórias?

(LUS, IV, 97) (CAMÕES, 2003, 188.)

Não se deve correr o risco, portanto, de considerar toda profecia uma ironia dramática.

A ironia pode ser considerada no fato de que a personagem que representa o conservadorismo

português se encontra justamente no Restelo, local de onde partem os barcos para a Índia,

além do contraste de uma única voz em poucos versos dentro de um grandioso poema que

exalta o povo português. A fala do velho, articulada em forma de perguntas, configura muito

mais uma crítica à expansão marítima do que uma ironia dramática, visto que e as mortes das

* Coro. Duas casas, iguais em dignidade, na formosa Verona, onde preparamos nossa cena.

Antigos ressentimentos explodem em novo motim, onde o sangue civil torna mãos civis

imundas. Diante dos corpos fatais desses dois inimigos, um par de cruzadas estrelas amantes

toma suas vidas; cuja desafortunada queda porventura com sua comovente morte enterra a luta

de seus pais. A temerosa passagem de seu amor marcado com a morte, e a continuidade do

ódio de seus pais que nada poderia extinguir além do fim de seus filhos, é agora a

movimentação de duas horas em nosso palco, o qual, se vocês com orelhas pacientes

assistirem, o que aqui se perder, nosso trabalho deve se esforçar para consertar (tradução

nossa).

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quais ele fala não acontecem no poema depois de sua fala, mas dentro das histórias contadas

pelos diferentes narradores dos cantos posteriores. A ironia dramática, muito mais que as

outras formas de ironia, requer uma vítima; ela pode se manifestar em um tom cômico e em

um tom trágico. Na modalidade cômica ela desperta o riso pela situação de ridículo a que

expõe o protagonista, enquanto no viés dramático desperta na platéia a compaixão pelo herói,

que apesar dos esforços, está fadado ao trágico.

Esse recurso é utilizado amplamente em filmes conhecidos, como Titanic (1997), em

que sabemos que a majestosa nau está fadada à destruição, usando, portanto, o tom trágico, e

Show de Truman (1998), em que o espectador sabe que a vida do protagonista é toda

manipulada, neste caso, em tom cômico. Na Literatura Brasileira, um dos exemplos mais

clássicos é o Triste Fim de Policarpo Quaresma, de Lima Barreto. O leitor que se atenta ao

título do livro nota que toda a obra exalta ironicamente uma personagem que caminha para o

equívoco. Vale ressaltar a diferença entre esse tom de ironia e a ironia machadiana, visto que

os narradores de Machado também são personagens.

Lavandier considera como situações clássicas para a utilização da ironia dramática: os

anacronismos (viagem no tempo de viagem, quarta dimensão e manipulação científica);

duplos ou gêmeos; disfarces, transformações, amnésia e substituição de identidade;

maquinações, planos malignos e esquema de mentira (LAVANDIER, 2005, p. 263-315,

tradução nossa, grifo nosso). Dentre essas estratégias, a existência de uma outra dimensão se

aproxima à metalinguagem, que aponta para a obra como algo feito para ser visto, e ao

dialogismo, que supõe um ser externo à obra, além das personagens, com o qual se mantém

um diálogo e que lhe dá sentido.

No cinema, o sentido da ironia dramática só é conhecido pelo espectador, enquanto as

personagens tentam racionalizar a situação a quais estão expostos, como acontece nas

próximas perguntas do professor, que questiona a sanidade de Harold, já que a loucura seria a

explicação mais plausível.

4.3. O discurso como formador da identidade do professor

Na continuação do diálogo entre Hilbert e Harold (24 min 56s) podemos não só

observar traços identitários de ambos, mas também contextualizar a ação pedagógica do

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professor. Esta técnica permite, como já vimos, que novas facetas sejam reveladas das

personagens:

[Prof. Hilbert:] - So you crazy or what?

[Harold:] - Well…

- Are you allowed to say that to crazy people?

- I don't know.

- Oh, well. How many stairs - in the hallway out there?

- What? You were counting them as we walked, weren't you?

- No.

- Of course. What bank do you work at?

- No bank. IRS agent.

- Married? […] Ever?

- Engaged to an auditor. She left me for an actuary.

- How heartbreaking. Live alone?

- Yes.

- Any pets? […] Friends?

- No. Well, Dave at work.

- I see. The narrator, exactly what does he sound like?

- It's a woman.

- Is it a familiar woman? […] Someone you know? […]Did you have enough

time to count the tiles in the bathroom?

- I wasn't counting the tiles.

- […] So this woman, the voice, told you you're gonna die?

- She didn't tell me. She doesn't know I can hear her.

- But she said it.

- Yes.

- And you believed her.

- She's been right about a few other things.

- Such as?

- How I felt about work.

- You dislike your work?

- Yes.

- Well, not the most insightful voice in the world, is it? First thing on a list of

what Americans hate: work. Second, traffic. Third, missing socks. See what

I'm saying?

- Sort of.

- I told you you were gonna die, you believe me?

- No.

- Why? I don't know you.

- But you don't know this narrator.

- Well…

- Okay, Mr. Crick, I can't help you.

- Why? Well, I'm not an expert in crazy, I'm an expert in literature theory. And

I gotta tell you, thus far there doesn't seem to be a single literary thing about

you. I don't doubt you hear a voice, but it couldn't possibly be a narrator

because, frankly, there doesn't seem to be much to narrate. Beside that, this

semester I'm teaching five courses. I'm mentoring two doctoral candidates and

I'm the faculty lifeguard at the pool. *

* - Você é doido ou o quê? Posso perguntar isso a um doido?

- Eu não sei.

- Quantos degraus - tinha o vestíbulo?

- O quê?

- Você contava enquanto subíamos, não é?

- Não.

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Após perguntar sobre a vida de Harold e deparar-se com tantas negativas e a falta de

aspectos interessantes, Hilbert o menospreza, dizendo que não há nada de literário na

personagem, demonstrando o juízo de valor que tem de sua especialidade. Para o professor, a

Literatura se encontra ideologicamente num patamar mais elevado do que a simples leitura,

ela é portadora de características de elaboração que a destaca na ordem do discurso. No

mesmo sentido, afirma Nicolau Sevcenko:

Dentre as muitas formas que assume a produção discursiva, [a literatura,

particularmente a literatura moderna,] constitui possivelmente a porção mais dúctil, o

limite mais extremo do discurso, o espaço onde ele se expõe por inteiro, visando

reproduzir-se, mas expondo-se igualmente à infiltração corrosiva da dúvida e da

perplexidade. É por onde o desafiam também os inconformados e os socialmente mal

ajustados. Essa é a razão por que ela aparece como um ângulo estratégico notável,

para a avaliação das forças e dos níveis de tensão existentes no seio de determinada

estrutura social. Tornou-se hoje em dia quase um truísmo a afirmação da

independência estreita existente entre os estudos literários e as ciências sociais (1999,

p. 28).

- Claro. Para qual banco você trabalha?

- Banco, não. Fiscal da Receita.

- Casado? [...] Já foi?

- Noivo de uma auditora, que me trocou por um atuário.

- Que trágico.

- Mora sozinho? - Mascotes? [...] Amigos?

- Não. Bom, Dave, do trabalho.

- Entendo. Esse narrador soa exatamente como?

- É uma mulher.

- É uma mulher familiar? Alguém que você conhece? [...] Deu tempo de contar os azulejos do

banheiro?

- Eu não contei.

- [...] Então, a voz feminina disse que vai morrer?

- Ela não disse para mim. Ela não sabe que a ouço.

- Mas disse isso.

- Disse.

- E você acreditou nela.

- Ela já acertou em outras coisas.

- Por exemplo?

- Como me sinto no trabalho.

- Está insatisfeito?

- Estou.

- Bom, não é a voz mais perspicaz do mundo, não é? A coisa mais odiada pelos americanos: O

trabalho. A segunda: O trânsito, terceira: Meias sem par. Entendeu?

- Mais ou menos.

- Se eu falasse que você iria morrer, você acreditaria em mim?

- Não.

- Por que não?

- Não o conheço.

- Nem conhece essa narradora.

- Bem...

- Okay, Sr. Crick, não posso ajudá-lo. [...] Não sou especialista em doidos. Sou especialista em

literatura e tenho que lhe dizer que, até aqui, não há nada de literário em você. [...] Não duvido

que ouça uma voz, mas duvido que seja uma narradora porque, sinceramente, não há muito a

narrar. Além disso, este semestre estou lecionando para cinco cursos, tenho dois orientandos de

doutorado e sou o salva-vidas efetivo da piscina. (tradução nossa)

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Harold, porém, não parece inconformado socialmente, até mesmo porque ele trabalha

para o governo dos Estados Unidos e é visto pelas outras personagens como um arauto da

opressão, e em nenhum momento ele considera abalar estas estruturas sociais. O professor

também não identifica nenhum componente artístico, estético ou temático que classifique a

rotina do auditor como Literatura. O mestre se situa numa relação de poder, remetendo-nos às

reflexões de Foucault sobre A ordem do discurso:

Creio que existe um terceiro grupo de procedimentos que permitem o controle dos

discursos. Desta vez, não se trata de dominar os poderes que eles têm, nem de conjurar

os acasos de sua aparição; trata-se de determinar as condições de seu funcionamento,

de impor aos indivíduos que os pronunciam certo número de regras e assim não

permitir que todo mundo tenha acesso a eles. Rarefação, talvez, dos sujeitos que

falam. Ninguém entrará na ordem do discurso se não satisfizer a certas exigências ou

se não for qualificado” (FOUCAULT, 1999, p.37).

Por não identificar Harold como portador de um discurso literário, pelo não

cumprimento dessas exigências que o professor acredita serem necessárias, Hilbert priva

Harold de sua ajuda. Em seguida, como complemento à sua negativa, descreve seus afazeres,

o que já fornece pistas para sua titulação, provavelmente de livre docência, até que cita uma

atividade que destoa com as restantes: salva-vidas de piscina.

Esse conflito de ações contextualiza o sujeito na pós-modernidade. Historicamente,

segundo Stuart Hall (2003), enquanto a concepção iluminista de sujeito considerava-o assim

que nascia como um indivíduo centrado, unificado, dotado das capacidades de razão, de

consciência e de ação, a identidade, numa concepção sociológica posterior, passou a servir

para preencher o espaço entre o “interior” e o “exterior”, entre o mundo pessoal e o mundo

público, ligando o sujeito à estrutura.

Hall afirma que o sujeito, previamente vivido como tendo uma identidade unificada e

estável, está se tornando fragmentado; composto não de uma única, mas de várias identidades,

algumas vezes contraditórias ou não-resolvidas. O próprio processo de identificação, através

do qual nos projetamos em nossas identidades culturais, tornou-se mais provisório, variável e

problemático. O sujeito assume identidades diferentes em diferentes momentos, identidades

que não são unificadas ao redor de um “eu” coerente (Hall, 2003, p. 11-13).

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Não é mais possível, portanto, definir a identidade do professor apenas pela sua

profissão, acreditando, quase numa concepção marxista, que a subjetividade é construída

unicamente por meio do trabalho, até porque o professor, sobretudo universitário,

constantemente está envolvido com atividades que não necessariamente envolvem a sala de

aula, no que concerne a interação entre professor e aluno, tais como publicações e pesquisa.

As diversas atividades de um professor limitam seu tempo, impondo-lhe fazer escolhas,

inclusive no âmbito pessoal de sua vida. Apesar de exercer um trabalho voltado para a

interação, frequentemente o professor é retratado como um solitário, às vezes, quase como um

eremita em sua caverna, como já ilustramos.

No caso do professor Hilbert, as inúmeras atividades, inclusive a de salva-vidas,

ironicamente quase o impedem de salvar a vida de Harold. Porém, mesmo desistindo, o

professor ainda revela seu método, sugerindo que Harold registre o que ouvir:

- Perhaps you should keep a journal. Write down what she said or something. That's

all I can suggest.

- I can barely remember it all. I just remember: “Little did he know that this simple,

seemingly innocuous act would lead to his imminent death.”

- What?

- “Little did he know that this…”

- Did you say, “little did he know”?

- Yes. I've written papers on “little did he know”. I used to teach a class based on

“little did he know.” I mean, I once gave an entire seminar on “little did he know”.

Son of a bitch, Harold. “Little did he know” means there's something he doesn't know

that means there's something you don't know. Did you know that?

- I want you to come back Friday. Okay. No, “imminent”, you could be dead by

Friday. Come back tomorrow at 9:45.

- Ten seconds ago you said you wouldn't help me.

- It's been a very revealing 10 seconds, Harold. *

*- Talvez você devesse manter um diário. Anote o que ela disser, ou algo do tipo. É tudo que

eu posso sugerir.

- Eu quase não me lembro de nada. Só lembro de: "Mal sabia ele que esse aparentemente

inócuo ato resultaria na sua morte iminente."

- O quê?

- “Mal sabia ele que...”

- Disse, “mal sabia ele”? [...] Já escrevi ensaios sobre “mal sabia ele”. Eu ministrei um curso

baseado em “mal sabia ele”. Já apresentei um seminário inteiro sobre “mal sabia ele”. Filho da

mãe, Harold! “Mal sabia ele” significa que há algo que ele não sabe. Isso significa que há algo

que você não sabe, sabia?

- Quero que volte na terça. Não! Você pode estar morto até terça. Volte amanhã. Às 1h30.

*- Dez segundos atrás você disse que não me ajudaria.

- Foram dez segundos muito reveladores, Harold. (tradução nossa).

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Nesse diálogo notamos dois conceitos também inerentes ao discurso de um professor

de literatura: o posicionamento do narrador, que se revela onisciente, e a epifania, recurso

caro às obras de temática existencialista em que o real é posto em xeque. Além disso, no

roteiro original há uma fala de Harold que foi omitida na transposição para o filme - “No, I

didn’t know that. I also don’t know what “innocuous” mean.” (HELM, 2006, p.32)**

- que

também revela traços de polifonia, em que a personagem e a narradora não compartilham do

mesmo discurso. Outras vozes se fazem ecoar pelo professor: ao ouvir “mal sabia ele”,

Hilbert estabelece uma relação da frase com seu próprio discurso, ou seja, de seus próprios

textos que produziu baseado em outras leituras ou discursos que incorporou dentro de sua

formação cultural. O texto possui, como explica Bakhtin, um aspecto ecoante:

Se tomarmos o texto no sentido amplo de conjunto coerente de signos, então também

as ciências da arte (a musicologia, a teoria e a história das artes plásticas) se

relacionam com textos (produtos da arte). Pensamentos sobre pensamentos, uma

emoção sobre a emoção, palavras sobre as palavras, textos sobre os textos. É nisto que

reside a diferença fundamental entre nossas ciências (humanas) e as ciências naturais

(que versam sobre a natureza), embora também aqui a separação não seja estanque.

No campo das ciências humanas, o pensamento, enquanto pensamento, nasce no

pensamento do outro que manifesta sua vontade, sua presença, sua expressão, seus

signos, por trás dos quais estão as revelações divinas ou humanas (leis dos poderosos,

mandamentos dos antepassados, ditados anônimos). O que se poderia chamar de uma

definição científica e a crítica dos textos são fenômenos mais tardios (significam toda

uma revolução do pensamento nas ciências humanas, é o nascimento da dúvida)

(BAKHTIN, 1997, p. 330).

A busca pelo sentido do texto narrado para Harold motiva o segundo encontro das

personagens. Hilbert assiste ao “Canal do Livro”, que entrevista o autor do livro “You ain’t

got nothing on me”, Emmett Cole, ambos fictícios. O título, “Você não tem nada sobre mim”,

apresenta duas negativas e uma estrutura deveras informal para um livro, revelando

regionalismos presentes na obra (se ela existisse) e o resultado da série de perguntas que o

professor fará a Harold logo em seguida.

**

“Não, eu não sabia. E também não sei o que “inócuo” quer dizer.” (tradução nossa)

Page 69: EDMUNDO GOMES JÚNIOR

69

5. INVESTIGAÇÃO LITERÁRIA: UM EXERCÍCIO DE INTERTEXTUALIDADE

Quando Harold abre a porta na segunda visita ao professor, dois livros destacam-se na

estante ao seu lado: The Assassins de Elia Kazan e Fire in the Belly, de Sam Keen, traduzido

como O Homem Na Sua Plenitude. O título do primeiro livro condiz com a preocupação de

Harold de não ser morto, como se houvesse um assassino a sua espreita, como acontece no

enredo do romance, porém, além deste, fato o livro não complementa muito à cena. O

segundo, porém, trata de um estudo sobre os gêneros masculino em contraste ao feminino,

trata sobre a identidade masculina e tem um capítulo intitulado “A mulher, deusa e criadora”.

Eis o trecho anterior a esse capítulo:

É a Mulher na nossa cabeça, mais do que as mulheres na nossa cama ou na nossa sala

da diretoria, a causa da maioria dos nossos problemas. E essas criaturas arquetípicas –

deusas, prostitutas, anjos, Madonas, castradoras, bruxas, feiticeiras, mães-terra –

precisam ser exorcizadas da nossa mente e do nosso coração antes de podermos amar

as mulheres. Enquanto a nossa casa estiver assombrada pelo fantasma da Mulher,

nunca poderemos viver bem com mulher alguma. Se continuarmos a negar que ela

existe nas sombras, a Mulher continuará a ter poder sobre nós.

A jornada do homem com relação à Mulher envolve três fases. No princípio, ele está

profundamente mergulhado numa relação inconsciente com uma figura mistificada,

composta de opostos irreais: virgem-puta, mãe alimentadora-devoradora, deusa-

demônio. A fim de passar de criança a homem, na segunda fase, ele precisa despedir-

se da Mulher e errar por muito tempo pelo mundo selvagem e doce dos homens.

Finalmente, depois de ter aprendido a amar a própria masculinidade, ele pode voltar ao

mundo cotidiano para amar uma mulher comum. (KEEN, 1998, p. 26)

Por boa parte do livro o autor desenvolve a inquietação sobre “o que é ser um

homem”, repetindo a pergunta por diversas vezes por toda a obra. Evidentemente a intenção

do autor era abordar o tema no sentido de gênero, quase numa questão Freudiana, mas para

Harold, ser um homem remonta o sentido da própria humanidade colocada em xeque. Harold

literalmente tem uma mulher falando em sua cabeça, que também se revelará sua criadora, e

uma outra mulher, Ana Pascal, a qual não consegue amar enquanto a primeira não se calar. O

professor saúda Harold (31 min 45 s):

[ Prof. Jules Hilbert:] - Come in. Mr. Crick. […] Please. How are you?

[ Harold Crick: ] - I'm fine, actually.

- […] Looks like our narrator hasn't killed you quite yet. […] Count the stairs outside?

- No. Course not. I've devised a test - How exciting is that? - of 23 questions which I

think might help uncover more truths about this narrator.

- Now, Howard

- Harold.

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- Harold. These may seem silly, but your candor is paramount. Okay. So. We know it's

a woman's voice, the story involves your death it's modern, it's in English. I'm

assuming the author has a cursory knowledge of the city. […]Question one: “Has

anyone recently left any gifts outside your home?” Anything? Gum? Money?

- A large wooden horse?

- I'm sorry?

- Just answer the question.

- No.*

Temos o primeiro vislumbre do método de investigação literária do professor. Como

primeiro impulso, Hilbert especula com a mesma pergunta três gêneros narrativos como

possíveis origens para a estória de Harold: uma estória infantil, um romance e um poema

épico.

Doces como presentes estão geralmente relacionados a fábulas e estórias infantis,

dentre elas João e Maria, conto de fadas da tradição oral em muitos países, e A Fantástica

Fábrica de Chocolates, de Roald Dahl. Dentre essas muitas estórias, destaca-se o livro

infantil A Birthday for Frances, por Russell Hoban (1925 – 2011), em que a personagem

principal, Frances, vai a uma loja de doces com seu pai, e gasta o valor de duas mesadas para

comprar uma barra de Chompo, uma guloseima imaginada, e quatro chicletes, para dar de

presente a sua irmã Gloria. Eis o trecho inicial da estória:

It was the day before Frances's little sister Gloria's birthday. Mother and Gloria were

sitting at the kitchen table, making place cards for the party. Frances was in the broom

closet singing:

Happy Thursday to you,

Happy Thursday to you,

Happy Thursday, dear Alice,

Happy Thursday to you.

“Who is Alice?” asked Mother.

* [ Prof. Jules Hilbert:] - Sr. Crick, entre, por favor. Como vai?

[ Harold Crick: ] - Bem, na verdade.

- [...] Parece que a nossa narradora ainda não o matou. [...] Contou os degraus lá fora?

- Não.

- Claro que não. Eu providenciei um teste - emocionante, não? - com 23 perguntas, que eu acho

que poderão ajudar a revelar mais coisas acerca dessa narradora. Agora, Howard...

- Harold.

- Harold. Elas podem parecer tolas, mas sua sinceridade é fundamental. Então, sabemos que a

voz é de mulher, a estória envolve a sua morte, é atual, em inglês e presumo que a autora tenha

um conhecimento superficial da cidade. [...] Primeira pergunta: Alguém deixou algum presente

à sua porta recentemente? Chicletes? Dinheiro? Um cavalo gigante de madeira?

- Como é?

- Apenas responda à pergunta.

- Não.

Page 71: EDMUNDO GOMES JÚNIOR

71

“Alice is somebody that nobody can see,” said Frances. “And that is why

she does not have a birthday. So I am singing Happy Thursday to her.”

“Today it is Friday”, said Mother.

“It is Thursday for Alice”, said Frances. (HOBAN, 1995, p. 5)*

Assim como Harold, Francis tem alguém com quem fala e que mais ninguém pode ver

ou se comunicar. No status de amigo fictício, Alice também se encontra no não-lugar, no não-

tempo, assim como a narradora de Harold encontra, como afirma Bakhtin (1998), no

cronotropo de criação, visto que aquele que cria está fora do tempo da narrativa e do espaço

onde ela acontece. A marcação do tempo também acontece em Mais estranho que a ficção:

[Narradora:] - And though this was an extraordinary day a day to be remembered for

the rest of Harold's life Harold just thought it was a Wednesday.

[Harold:] - I'm sorry, did you hear that? The voice. Did you hear it? "Harold thought it

was a Wednesday"?

[Mulher:] - Don't worry, it is Wednesday.

[Harold: ] - No, no, did you hear it? "Harold just thought it was a Wednesday"?

[Mulher:] - Who's Harold?

[Harold: ] - I'm Harold.

[Mulher:] - Harold, it's okay, it's Wednesday.

[Harold: ] - No, no, I Never mind. (5 min 50 s) **

A marcação do tempo em ambas as estórias é definida, portanto, pelos dois dias da

semana citados. Afirma Bakhtin sobre a indicação temporal:

No cronotopo artístico-literário ocorre a fusão dos indícios espaciais e temporais

num todo compreensivo e concreto. Aqui o tempo condensa-se, comprime-se, torna-se

artisticamente visível; o próprio espaço intensifica-se, penetra no movimento do

tempo, do enredo e da história. Os índices do tempo transparecem no espaço, e o

espaço reveste-se de sentido e é medido com o tempo (Op. cit, p. 211).

Dessa forma, é possível saber qual o nível de deslocamento que as personagens terão

em suas estórias, assim como a duração do enredo, através da limitação do tempo em que ele

se desenvolverá.

* Era um dia antes do aniversário de Gloria, irmã de Frances. Mamãe e Glória estavam sentadas à mesa da

cozinha, fazendo cartões para a festa. Frances estava no armário de vassouras cantando: “ [Parabéns para

você], Feliz quinta-feira para você, parabéns Alice, Feliz quinta-feira para você.”

“Quem é Alice?” perguntou a mãe.

"Alice é alguém que ninguém pode ver", disse Frances. “E é por isso que ela não tem um aniversário.

Então, eu estou cantando feliz quinta-feira para ela.”

“Hoje é sexta-feira”, disse a mãe.

“É quinta-feira para Alice”, disse Frances.

** [ Narradora: ] - E embora este fosse um dia extraordinário, para ser lembrado para o resto de sua vida,

Harold apenas achava que fosse quarta-feira.

[ Harold: ] - Com licença. Ouviu isso? A voz. Ouviu: “Harold apenas achava que era uma quarta-feira”?

[ Mulher no ponto de ônibus ] - Não se preocupe, é quarta-feira.

[ Harold: ] - Não, não ouviu? “Harold apenas achava que era uma quarta-feira”?

[ Mulher:] - Quem é Harold?

[ Harold: ] - Eu sou Harold.

[ Mulher:] - Harold, tudo bem, É quarta-feira.

[ Harold: ] - Não, não, eu... Deixa pra lá

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A segunda especulação do professor é sobre a ocorrência de algum dinheiro deixado à

porta de Harold. A estória mais conhecida onde isso acontece é no romance folhetinesco Um

conto de duas cidades¸ de Charles Dickens. Nele, um médico de família nobre francesa, Dr.

Manette, é aprisionado na Bastilha por dezoito anos após receber um montante de dinheiro em

sua porta. A prisão causa sua loucura e isolamento. Manette representa, em muitos sentidos, o

herói romântico, que se sacrifica por uma causa. Apesar de a maioria das artes

contemporâneas estarem denominadas como num período pós-modernista, devemos observar

o quanto o entretenimento para as grandes massas ainda tem suas estruturas presas ao

romantismo: ora o final feliz que supera todas as barreiras, ora o trágico no sentido de

sacrifício, e essa dicotomia também faz parte da narrativa de Mais estranho que a ficção,

configurando um dos dilemas da estória.

Em O poder do mito (1990, p. 104-136), Joseph Campbell faz uma análise sobre o

sacrifício de herói clássicos e modernos, afirmando que é por meio dele que há a bem-

aventurança, porém o sujeito contemporâneo, influenciado pelo Cristianismo e por novas

posturas filosóficas, não mais vê a morte biológica como a única solução:

O Novo Testamento ensina a morrer para si mesmo, literalmente, sofrendo a dor da

morte para o mundo e seus valores. Esse é o vocabulário dos místicos. Agora, o

suicídio também é um ato simbólico. Ele rejeita a postura psicológica em que você se

encontra num dado momento, de modo que você deseja ingressar noutro melhor. Você

morre para a vida em curso, a fim de ingressar em outra, de alguma espécie. Mas,

como diz Jung, é melhor você não se deixar envolver numa situação simbólica. Você

não precisa morrer literalmente, fisicamente. Tudo o que tem a fazer é morrer

espiritualmente e renascer para um modo de vida mais aberto. (Ibid., p. 127)

Podemos identificar, também no discurso de Campbell, a intertextualidade na citação

ao texto bíblico, e ela também está presente em algumas das obras citadas pelo professor e nas

alusões presentes em Mais estranho que a ficção, como veremos posteriormente. Campbell

também se baseia em Jung, que atribuiu alguns mitos a situações simbólicas:

O indivíduo é a realidade única. Quanto mais nos afastamos dele para nos

aproximarmos de idéias abstratas sobre o homo sapiens mais probabilidades temos de

erro. Nesta época de convulsões sociais e mudanças drásticas é impor-tante sabermos

mais a respeito do ser humano, pois muito depende das suas qualidades mentais e

morais. Para observarmos as coisas na sua justa perspectiva precisamos, porém,

entender tanto o passado do homem quanto o seu presente. Daí a importância essencial

de compreendermos mitos e símbolos. (JUNG, 2008 , p. 58)

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Dentre esses mitos e símbolos, encontra-se a terceira referência a obras literárias feita

pelo professor, mais absurda para Harold, porém mais reconhecível para o espectador: o

cavalo de Tróia, presente na Ilíada. O poema épico grego relata a visão de Homero (ou

creditada a ele) do último ano da Guerra de Troia, cujo tema central é a cólera de Aquiles.

Quem recebe o cavalo de presente, porém, é Páris, descrito pelo próprio irmão como

“denodado, mas tíbio e inerte e mole” (HOMERO, 2009, p. 163), ao contrário dos outros

heróis são referidos por toda a epopéia pelos mais valorosos epítetos: Aquiles era chamado

“de pés velozes”, “brilhante”, “semelhante aos deuses”; Ulisses, “o ardiloso”, “a glória dos

aqueus”, “comparável a Zeus em Prudência”, “paciente e divino”; Heitor, nobre e “dos mil

artifícios”; enquanto isso, Páris é “formoso”, “divo”. Tanto Paris como Harold, portanto, não

possuem atributos físicos e intelectuais aplicáveis na guerra, não se enquadrando no conceito

de herói épico.

Continuando a entrevista, Professor Hilbert faz a próxima questão: “Do you find

yourself inclined to solve murder mysteries in large, luxurious homes to which - Let me

finish. - To which you may or may not have been invited?”* (33min 00s.) Com essa pergunta

Hilbert não trata de uma obra específica, mas de todo um gênero literário: o romance policial,

cujo precursor foi Edgar Allan Poe (1809-1849), com o conto Os Assassinatos da Rua

Morgue, publicado em 1841. O conto deu origem a mais duas estórias com a personagem

principal, o detetive Dupin, e é considerado como uma influência para a criação de Sherlock

Holmes, personagem de Arthur Conan Doyle, (1859-1930) pertencente ao mesmo gênero,

assim como o detetive Hercule Poirot criado por Agatha Christie (1890-1976). A investigação

criminal, porém, é um tema que remonta bem antes de Poe: mesmo Édipo Rei pode ser

considerado uma estória de investigação, pelo clima mistério na estruturação da peça: há

interrogatórios, testemunhas, um plot twist, isto é, uma mudança abrupta no enredo que volta

a narrativa para um aspecto ou personagem específico. Também em As Mil e uma Noites há

um conto intitulado As Três Maçãs em que é encontrada uma urna com um corpo de uma

jovem em pedaços em seu interior e suas personagens tentam descobrir o autor do assassinato.

Sendo assim, o gênero de investigação, não necessariamente policial, possui um corpus

textual imenso. Porém, como todo bom acadêmico, o professor delimita o tema e define um

subgênero, o chamado, em inglês, de locked room mystery ( que pode ser traduzido como

* “Sente-se tentado a solucionar assassinatos em grandes mansões luxuosas- deixe-me terminar - às quais pode

não ter sido convidado?” (tradução nosssa)

Page 74: EDMUNDO GOMES JÚNIOR

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“mistério a portas trancadas”). Em Tipologia do romance policial, Tzvetan Todorov faz um

apanhado de um vasto número de romances policiais, e analisa a estrutura dessas obras:

Na base do romance de enigma encontramos uma dualidade, e é ela que nos vai guiar

para descrevê-lo. Esse romance não contém uma, mas duas histórias: a história do

crime e a história do inquérito. Em sua forma mais pura, essas duas histórias não têm

nenhum ponto comum. (TODOROV, 2006, p. 96)

Assim como no romance policial, há em Mais estranho que a ficção duas histórias

iniciais, a do planejamento da morte da personagem pela escritora, e a investigação de Harold

buscando sua assassina. Todorov também trata do posicionamento dessas tramas dentro da

obra:

Trata-se pois, no romance de enigma, de duas histórias das quais uma está ausente mas

é real, a outra presente mas insignificante. Essa presença e essa ausência explicam a

existência das duas na continuidade da narrativa. A primeira comporta tantas

convenções e processos literários (que não são outra coisa senão a “trama” da

narrativa) que o autor não pode deixá-los sem explicação. Esses processos são,

notemo-lo, essencialmente de dois tipos: inversões temporais e “visões” particulares: o

teor de cada informação é determinado pela pessoa daquele que a transmite, não existe

observação sem observador; o autor não pode, por definição, ser onisciente, como era

no romance clássico. A segunda história aparece, pois, como um lugar onde se

justificam e se “naturalizam” todos esses processos: para dar-lhe um ar “natural”, o

autor deve explicar que está escrevendo um livro! E é temendo que essa segunda

história se torne opaca ela própria que ele joga uma sombra inútil sobre a primeira,

que tanto se recomendou o estilo neutro e simples, tornado imperceptível (Ibid., p. 98).

A metalinguagem, neste caso manifestada pela suposição de um leitor, torna-se,

segundo Todorov, necessária no romance policial. Ela visa, porém, a naturalidade, enquanto

no filme, causa estranhamento. O fato de a narradora ser onisciente também descarta a

possibilidade de a vida de Harold ser um romance policial, porém este momento de

investigação que o protagonista compartilha com o professor remete ao tema principal deste

gênero: a busca pela verdade. Neste caso, eles tentam, dentro de uma sala fechada, desvendar

o crime antes que ele aconteça, apesar de já premeditado pela narradora, que apenas não

decidiu ainda como Harold irá morrer, o que o professor também tenta descobrir ( 33 min 25

s) :

[ Professor Hilbert: ] - On a scale of one to 10 what would you consider the likelihood

you might be assassinated?

[ Harold: ] - Assassinated?

- One being very unlikely, 10 being expecting it around every corner.

- I have no idea

- Okay. Let me rephrase. Are you the king of anything?

- Like what?

- Anything. King of the lanes at the local bowling alley.

- “King of the lanes”?

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- King of the lanes. King of the trolls.

- “King of the trolls”?

- Yes. A clandestine land found underneath your floorboards. Anything.

- No. No. That's ridiculous.

- Agreed. But let's start with ridiculous and move backwards. *

O professor precisa delimitar a natureza de um possível assassinato, já que os

homicídios acontecem em todos os gêneros literários e escritos, mitos (até mesmo no

quarto capítulo do texto bíblico, logo após a criação do mundo, um irmão mata outro).

Ao perguntar se Harold é rei de alguma coisa, Hilbert possivelmente especula sobre os

reis das peças de William Shakespeare: em Hamlet, o pai é assassinado pelo tio; em

Ricardo III, os reis Henrique VI, Eduardo IV e o próprio Ricardo também são

mortos; o rei Duncan e seu sucessor, MacBeth; Alonso, rei de Nápoles, também tem

seu assassinato sendo planejado em A Tempestade; O Rei Lear morre de desgosto pela

morte de sua filha; em Vida e morte do Rei João, ele é envenenado e Ricardo II é

assassinado na prisão. Ser coroado rei nas peças de Shakespeare era, portanto, tornar-

se um alvo.

Continuando a questionar sobre os reis, neste mesmo diálogo que já citamos,

percebemos um jogo de palavras no idioma original: “Are you the king of anything?

[…] Anything. King of the lanes at the local bowling alley. […]King of the lanes.

King of the trolls” ( 33min 41s). Existe uma ambiguidade na palavra “lane”, que pode

ser traduzida como “faixa”, “pista”, “rota” ou “via”. A expressão “down the memory

lane” significa rever o passado, como se aquele que faz a retrospectiva descesse uma

estrada revendo suas memórias. Lane também é o nome um vilarejo rural (que em

inglês são chamados de hamlets) localizado em West Yorshire, parte do condado de

Yorkshire, o maior da Inglaterra, que dá título a uma outra tragédia, que por décadas

* [ Professor Hilbert: ] - Numa escala de 1 a 10 qual a probabilidade de você ser assassinado?

[ Harold: ] - Assassinado?

- Um sendo muito improvável e 10, esperando a cada esquina.

- Não faço idéia...

- Ok, deixe-me reformular. Você é rei de alguma coisa?

- Tipo o quê?

- Qualquer coisa.

- Rei das pistas no boliche local.

- Rei das pistas?

- Rei das pistas, rei dos trolls.

- “Rei dos trolls”?

- É, de uma terra clandestina sob as ripas do seu assoalho. Qualquer coisa?

- Não. Não. Isso é ridículo.

- Concordo, mas comecemos nas mais ridículas e retrocedemos.

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fora atribuída a William Shakespeare, mas que posteriormente foi creditada a Thomas

Middleton: A Yorkshire Tragedy. Nessa sangrenta peça, um homem mata sua mulher e

dois filhos e é executado no desfecho final.

Hilbert abandona por um momento as referências a textos clássicos, e pergunta

a Harold se ele é rei do boliche local, e por trás disso também especula um assassinato:

no romance policial By the balls, Jim Pascoe e Tom Fassbender, o campeão de boliche

da cidade, Joe Biggs, é assassinado. Próximo à solução do mistério, o narrador

jocosamente indica para seu gênero: “It was Suzi who made a passing joke about this

being a detective story, and as it goes in all good detective stories, it was now time to

stake out the widow’s house to see what might develop”.* (p. 380, 1998). Sendo assim,

a metalinguagem também permeia a livro pulp.

O professor pergunta a Harold se ele é rei dos trolls. Essas criaturas estão

presentes na mitologia nórdica, no folclore escandinavo, aparecem também nas obras

de John Ronald Reuel Tolkien, autor de O Hobbit, da trilogia O Senhor dos Anéis e de

O Silmarillion; nos autores modernos, como J. K. Rowling, criadora da série Harry

Potter; e Neil Gaiman, premiado autor de contos fantásticos. No cinema, além de

presentes nas adaptações das obras de Tolkien, os mitos por trás desses monstros

foram recentemente explorados no documentário fictício norueguês O Caçador de

Trolls, dirigido por André Øvredal (2010). Em todas essas versões, os gigantes de

pedra saem à caça à noite, podendo se alimentar de carne humana, e se transformam

em pedra durante o dia, o que coloca sua materialidade à prova, pois aqueles que

acreditavam ter visto trolls à noite, cujas vozes em muito se assemelham a um vento

forte, apenas encontravam uma pilha de pedras no dia seguinte. O trolls míticos vivem

nas montanhas, enquanto os urbanos, como no conto de Neil Gaiman (2002), moram

embaixo de uma ponte.

Na mitologia nórdica, o destino do rei dos trolls, chamado Thryn (Þrymr), é

contado em Trymskvida (Þrymskviða), na antologia poética Edda, considerada a mais

* “Foi Suzy que fez piada sobre essa ser uma estória de detetive, e como acontece e toda boa estórias de

detetives, agora era hora de fuçar a casa de viúva para ver o que podia acontecer.” (tradução nossa)

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importante fonte de lendas e mitos nórdicos. O mitólogo Thomas Bulfinch (1998, p.

386):

Aconteceu certa vez que o martelo de Thor caiu em poder do gigante Thryn,

que o enterrou sob as rochas de Jotunheim numa profundidade de oito braças.

Tor mandou Loki negociar com Thryn, mas Loki somente conseguiu obter

uma promessa do gigante de restituir a arma se Freia consentisse em casar-se

com ele. Loki voltou para informar o resultado de sua missão, mas a deusa do

amor ficou horrorizada à idéia de oferecer os seus encantos ao rei dos gigantes

do Gelo. Nessa emergência, Loki persuadiu Thor a meter-se nas vestes de

Freia e acompanhá-lo ao Jotunheim. Thryn recebeu sua noiva, que estava com

o rosto coberto por um véu, com a devida cortesia, mas ficou muito surpreso,

ao vê-la devorar oito salmões e um boi inteiro, além de outros petiscos, e

bebendo, por cima, três toneis de hidromel. Loki, porém, afirmou-lhe que ela

não comia há oito noites, tão grande era seu desejo de ver o amante, o famoso

rei de Jotunheim. Afinal, Thryn teve curiosidade de olhar sob o véu de sua

noiva, mas recuou, espantado, e perguntou por que os olhos de Freia

brilhavam como fogo. Loki deu a mesma desculpa e o gigante se satisfez. Deu

ordem para que fosse trazido o martelo, e colocou-o no regaço da donzela.

Thor, então, livrando-se do disfarce, agarrou sua terrível arma e matou Thryn

e todos os seus sequazes.

Esse relato, que em muito se assemelha ao mito do rapto de Perséfone e da mesma

forma explica as estações do ano, também é apresentado à personagem principal de O Mundo

de Sofia, do autor norueguês Jostein Gaarder (1952- ), metaficção que em muito tem em

comum, em termos de estrutura e desfecho, com Mais estranho que a ficção. Ele termina o

relato dizendo: “Primeiro, matou Thrym com o martelo, e, em seguida, o resto dos gigantes de

Jotunheimen. Desta forma, o horrível drama teve um final feliz” (GAARDER, 1996, p. 30).

Final feliz para o panteão, enquanto para o rei dos trolls, uma possibilidade para Harold que

logo será descartada, restou ser esmagado pelo martelo Mjölnir.

O rei dos trolls aparece da mesma forma na peça teatral Peer Gynt, do também

norueguês Henrik Ibsen (1828-1906), dramaturgo fortemente influenciado pela mitologia

nórdica. A personagem principal, Peer, é filho de uma viúva que tem nele a esperança de

recuperar a fortuna gasta pelo falecido marido. Abandonando a mãe e vagando para as

montanhas, o protagonista recebe a proposta de se transformar em troll para se casar com a

filha do rei, e assim herdar o reino. Peer inicialmente parece disposto a aceitar, mas acaba

recusando, tendo em vista o tanto que teria de abrir mão, dentre outras coisas, de sua

humanidade, sua cristandade e de seu olho esquerdo. O rei não quer permitir que ele parta,

dizendo que sua filha, mesmo não tendo mantido relações com Peer, está grávida. Peer

consegue fugir, e passa muitos anos longe. Quando volta para casa, velho e rabugento,

Page 78: EDMUNDO GOMES JÚNIOR

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encontra com o rei dos trolls, que conta que foi deposto pelo neto e seus descendentes: “Ah,

— it’s precisely for such that one looks. But my grandson’s offspring, as I said before, have

so mightily come in this land to the fore; and they say that I only exist in books.” (IBSEN,

2007, p. 111)*. Vemos, portanto, que a existência do rei dos trolls é coloca em xeque, assim

como acontece com Harold.

* “Ah, é exatamente o que parece. Mas descendentes de meu neto, como eu disse antes, chegaram à tona e

de modo tão poderoso nesta terra, e eles dizem que eu só existo em livros*” (tradução nossa)

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5. HOMENS SEM CARNE E A NATUREZA PROMETAICA DA CRIAÇÃO

FICCIONAL

Hilbert pergunta se alguma parte de Harold já foi parte de mais alguém (34min 09s):

[Harold:] - Like do I have someone else's arms?

[Prof. Hilbert:] - Well, is it possible at one time that you were made of stone wood,

lye, varied corpse parts or earth made holy by rabbinical elders?*

Ao perguntar se Harold fora feito de pedra, Hilbert mais uma vez especula se Harold é

um troll e também abre possibilidade para investigar outras criaturas místicas. Os seres de

pedra estão dentre as primeiras criações mitológicas, como a Galateia, estátua esculpida por

Pigmaleão, cuja origem Ovídio conta no Canto X de Metamorfoses (1983, p. 189) em que a

deusa Vênus se comove pelo quanto Pigmaleão se afeiçoa pela estátua, e lhe dá vida.

A vida também é concedida à marionete de madeira no romance As Aventuras de

Pinóquio (2002), escrito por Carlo Collodi (1826-1890) e publicado em 1883. Diferente da

origem dada na adaptação para filme dos estúdios Disney, Pinóquio é feito de uma madeira

falante. Enquanto fazia o boneco, Gepeto percebe que os olhos se movem, e pergunta:

“Occhiacci di legno, perché mi guardate?”**

(COLLODI, 2002, p. 7) O estranhamento e o

confronto entre Gepeto e o boneco continuam: quando termina a boca, Pinóquio ri zombando

do artesão, e lhe mostra a língua. Ao terminar os braços, a marionete arranca a peruca de

Gepeto. Ao terminar as pernas, sentiu um chute. Gepeto se arrepende de sua criação, que foge

pela porta assim que tem chance. Quando alcança o boneco, as pessoas na rua se comovem

pela criatura sendo arrastada pelo velho, e Gepeto é preso, sem causar nenhum remorso em

Pinóquio.

Outra grande diferença do Pinóquio de Collodi e da animação de 1940 é a constante

presença da morte no livro. Pinóquio mata o Grilo Falante (COLLODI, 2002, p. 11), a fada se

apresenta como uma menina morta, apresenta-se novamente como adulta e morre novamente

nos capítulos XXIII e XXIV. O boneco de madeira é enforcado no capítulo XV, tem uma

pedra amarrada aos pés e é afogado no capítulo XXXIII, é engolido pelo tubarão Átila , de mil

e quinhentos metros de comprimento no capítulo XXIV.

* [Harold:] - Como, se tenho o braço de alguém? ** [Prof. Hilbert:] - É possível que alguma vez você tenha sido feito de pedra, madeira, detergente, partes

de cadáveres ou de terra abençoada por rabinos anciões?

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A intertextualidade em Pinóquio é fortemente marcada pelo grande número de

provérbios de tom moralista, dentre eles “fome é o melhor tempero”, “diga-me com quem

anda, que direi quem você é”; “dinheiro roubado nunca dá frutos”, “só se colhe aquilo que foi

semeado”. A moral, tida como objetivo principal de todo conto de fada (TODOROV, 1981, p.

36-37), também se manifesta através das alegorias da serpente, que aparece para Pinóquio no

Capítulo XX (COLLODI, 2002, p. 47) e do gigantesco tubarão em que Gepeto, passa dois

anos vivendo, aludindo ao profeta Jonas, que por ter desobedecido à vontade de Deus, foi

engolido por um grande peixe em que passou três dias e três noites (Jonas 1:17). Pinóquio é

punido por diversas vezes durante o romance, e sua última punição é compartilhada com

Gepeto, numa escala menos prometaica do que os outros criadores de vidas artificiais, porém,

como veremos, criador e criatura geralmente partilham de um destino em comum nas obras

onde essa dicotomia é explorada. A queda de Gepeto começa no momento em que Pinóquio

cria vida: ele deixa de comer, vende seu casaco para comprar uma cartilha, passa anos em

busca de sua criatura (assim como Dr. Frankenstein, como veremos), até que é engolido por

um grande animal marinho, o que é visto, segundo Campbell, como uma forma de catábase:

A barriga é o lugar escuro onde acontece a digestão e uma nova energia é criada. A

história de Jonas na barriga da baleia é um exemplo de tema mítico praticamente

universal: o herói é engolido por um peixe e volta, depois, transformado. [...] É uma

descida às trevas. Psicologicamente, a baleia representa o poder de vida contido no

inconsciente. Metaforicamente, a água é o inconsciente, e a criatura na água é a vida

ou energia do inconsciente, que dominou a personalidade consciente e precisa ser

desempossada, superada e controlada.

No primeiro estágio dessa espécie de aventura, o herói abandona o ambiente familiar,

sobre o qual tem algum controle, e chega a um limiar, a margem de um lago, ou do

mar, digamos, onde um monstro do abismo vem ao seu encontro. Aí há duas

possibilidades. Numa história do tipo daquela de Jonas, o herói é engolido e levado ao

abismo, para depois ressuscitar; é uma variante do tema da morte e ressurreição. A

personalidade consciente entra em contato com uma carga de energia inconsciente que

ela não é capaz de controlar, precisando então passar por toda uma série de provações

e revelações de uma jornada de terror no mar noturno, enquanto aprende a lidar com

esse poder sombrio, para finalmente emergir, rumo a uma nova vida. (CAMPBELL,

1991, P. 160)

O renascimento de Gepeto se dá através de seu rejuvenescimento, e de Pinóquio em se

tornar um garoto real de verdade. Neste ponto Harold e Pinóquio também coincidem, pois

ambos afirmam serem reais, porém são questionados pelas circunstâncias das estórias a que

pertencem. Ambos também buscam seus criadores por boa parte da trama, e têm seus modos

de viver modificados depois de encontrá-los.

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Além da fábula de Pinóquio, porém, há a possibilidade de Hilbert buscar desvendar a

criação de Harold explorando as diferentes origens do homem nas diversas cosmogonias. No

Popol Vuh, épico maia-quiché guatemalteco, o deus vermelho cria o homem a partir de um

galho de árvore, como relatam estudos sobre a América pré-colombiana de Georges Raynaud,

na tradução para o espanhol de Miguel Angel Astúrias e Gonzáles de Mendoza:

Entonces dijeron la cosa recta: “Que así sean, así, vuestros maniquíes, los [muñecos]

construidos de madera, hablando, charlando en la superficie de la tierra”. —”Que así

sea”, se respondió a sus palabras. Al instante fueron hechos los maniquíes, los

[muñecos] construidos de madera; los hombres se produjeron, los hombres hablaron;

existió la humanidad en la superficie de la tierra. Vivieron, engendraron, hicieron

hijas, hicieron hijos, aquellos maniquíes, aquellos [muñecos] construidos de madera.

No tenían ni ingenio ni sabiduría, ningún recuerdo de sus Constructores, de sus

Formadores; andaban, caminaban sin objeto. No se acordaban de los Espíritus del

Cielo; por eso decayeron. Solamente un ensayo, solamente una tentativa de

humanidad. Al principio hablaron, pero sus rostros se desecaron; sus pies, sus manos,

[eran] sin consistencia; ni sangre, ni humores, ni humedad, ni grasa; mejillas

desecadas [eran] sus rostros; secos sus pies, sus manos; comprimida su carne. Por

tanto [no había] ninguna sabiduría en sus cabezas, ante sus Constructores, sus

Formadores, sus Procreadores, sus Animadores. Éstos fueron los primeros hombres

que existieron en la superficie de la tierra. * (1977, p. 5)

Por se esquecerem de seus criadores, os homens de madeira foram destruídos num

grande dilúvio, deles restando apenas seus descendentes, os macacos, explicando a

semelhança desses animais com o homem. Esse mito também cria uma metáfora de que os

homens sem consciência e sem contato com seus criadores não podem viver sobre a terra.

Esse destino também poderia ser aplicado a Harold, pois caso ele não encontrasse sua

criadora, morreria.

Em seguida, disseram a coisa certa: “Que sejam assim, os seus manequins, os bonecos

construídos de madeira, falando, conversando sobre a superfície da terra”. – “Que assim seja”,

ele respondeu às suas palavras. Instantaneamente os manequins foram feitos, os boneco

construídos de madeira, os homens produzidos, os homens conversavam, a humanidade existiu

na superfície da terra. Eles viveram, geraram, fizeram filhos e filhas, aqueles manequins,

aqueles bonecos construídos de madeira. Eles não tinham nem inteligência, nem sabedoria,

nem memória de seus Construtores, seus Formadores; andavam, caminhavam sem rumo. Não

se lembraram dos Espíritos do Céu; e por isso decaíram. Apenas um estudo, apenas uma

tentativa de humanidade. No princípio falaram, mas seus rostos eram drenados, seus pés, suas

mãos, eram sem consistência, sem sangue, sem líquidos, sem umidade, nem gordura, as

bochechas de seus rostos eram secas, assim como seus pés e suas mãos; sua carne, esmagada.

Não havia, portanto, nenhuma sabedoria em suas cabeças, ante a seus Construtores, seus

Formadores, seus Procriadores, seus Animadores. Esses foram os primeiros homens que

existiam na superfície da terra. (tradução nossa)

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Esses proto-homens do mito maia também estão presentes no folclore judaico: os

golems são seres de feitos pedra ou de terra abençoada, incapazes de falarem e privados de

consciência. Segundo a tradição judaica, o rabino Maharal de Praga criou um golem a partir

do barro, durante o século XVI. Já na Literatura, o Golem está presente numa coleção de

contos intitulada Galerie der Sippurim, organizada por Wolf Pascheles em 1847, no conto de

ficção científica de Yudl Rosenberg, de 1909, é título dos romances de Gustav Meyrink,

publicado em 1915, e de Isaac Bashevis Singer, de 1969. Joana de Mello Moser (2006,

p.323) faz um estudo sobre o golem nessas obras, sobretudo no romance de Meyrink:

Diz a lenda que o mito do Golem nasceu da mística hebraica do séc. XIII. O Golem –

matéria informe – ter-se-ia tornado num homúnculo a partir da invocação mágica de

um nome. Terá sido Elijah de Chelm quem criou o Golem a partir do barro, ao

escrever na sua fronte o “Shemhamforash” – nome secreto de Deus. Assim lhe foi

concedido o poder da vida, mas não o poder da palavra. Quando o Golem atingiu um

tamanho e força sobre-humanos, o criador, temendo as suas potencialidades

destrutivas, apagou-Lhe o nome da testa e ele transformou-se em pó.

Rezam algumas versões da lenda que não foi o nome de Deus mas a palavra “emet”–

“verdade” – que foi inscrita na sua testa. A destruição do Golem verificou-se quando

se apagou a primeira letra, tendo restado a palavra “met” que significa morte.

O motivo central deste mito é o ato da criação, tal como vem descrito no Livro do

Gênesis – criar um homem a partir da terra, dar vida à matéria, desafiar e copiar Deus

–, pelo que na perspectiva cristã esta é uma temática considerada absolutamente

prometaica.

O mito de Prometeu é mais uma vez evocado com a citação a Frankenstein, monstro

criado com partes de cadáveres. Curiosamente, o título original do romance, possui um aposto

em seu idioma original: Frankenstein: or the Modern Prometheus. Sua autora, Mary Shelley

(1797-1851), já possuía noções de intertextualidade, como explica na introdução do romance:

Parodiando Sancho Pança, tudo deve ter um início; e esse início deve estar ligado a

algo que já existiu antes. Para os hindus o mundo é sustentado por um elefante, mas o

elefante se acha apoiado em cima de uma tartaruga. Inventar, deve-se admitir

humildemente, não consiste em criar algo do nada, mas sim do caos; em primeiro

lugar, deve-se dispor dos materiais; pode-se dar forma à substância negra e informe,

mas não se pode fazer aparecer a própria substância. Em tudo o que se refere às

descobertas e às invenções, mesmo aquelas que pertencem à imaginação, lembramo-

nos continuamente da história do ovo de Colombo. A invenção consiste na capacidade

de julgar um objeto e no poder de moldar e arrumar as idéias sugeridas por ele.

(SHELLEY, 2001, p. 6)

A autora cita diretamente dezenas de obras durante o romance: A Ilíada, A

Tempestade e no Sonho de Uma Noite de Verão de William Shakespeare; o Paraíso Perdido

de Milton (Ibid., p. 9); The Rime of the Ancient Mariner (O Conto do Velho Marinheiro),

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poema do inglês Samuel Taylor Coleridge; cita também de livros de cunho científico, como

Cornélio Agripa, Paracelso e Alberto Magno. (Ibid., p. 31); cita livros cujos títulos insinuam

o desfecho da obra, como As Ruínas ou Meditações sobre as Revoluções dos Impérios, de

Volney (Ibid., p. 97), além de obras em que a tragédia e a decadência são uma constante

temática, como Vidas paralelas, de Plutarco, e Os sofrimentos do jovem Werther (Ibid., p.

104), que servem como parâmetros para o monstro da natureza humana, como ele descreve a

seu criador:

Uma noite, [...], encontrei no chão uma pequena mala de couro que continha várias

peças de roupa e alguns livros. [...] Eram exemplares do Paraíso Perdido, um volume

das Vidas paralelas, de Plutarco, e Os sofrimentos do jovem Werther. Foi para mim

como encontrar um tesouro. Agora eu estudava continuamente e exercitava o cérebro

com essas histórias, enquanto meus amigos se ocupavam de seus afazeres.

"Mal posso descrever-lhe, Frankenstein, o efeito de tais livros. Apresentavam-me uma

infinidade de novas imagens e sentimentos que, por vezes, me elevavam ao êxtase,

porém, com mais frequência, me lançavam na mais profunda depressão. Em Os

sofrimentos do jovem Werther, além do interesse intrínseco de sua história singela e

tocante, tantas opiniões são esboçadas e tantas luzes se lançam sobre assuntos até

então totalmente obscuros para mim, que o considero uma fonte perene de

constatações e maravilhoso espanto. (Ibid., p. 104)

Desses assuntos obscuros para o monstro presentes em Os sofrimentos do jovem

Werther, estão a morte e o suicídio, duas constantes em Frankenstein, e dessas obras citadas,

o canto X do Paraíso Perdido serve, inclusive, como epígrafe em Frankenstein (Ibid., p.3):

“Acaso, ó Criador, pedi que do barro

Me moldasses homem? Porventura pedi

Que das trevas me erguesses?”

John Milton,

Paraíso Perdido, X, 743-5

A temática principal do poema de Milton é a queda do homem, e o poeta

declaradamente se inspirou na Eneida, cujo canto mais famoso narra a catábase de Enéias,

isso é, sua descida ao mundo dos mortos. Além de citada na epígrafe, o Paraíso Perdido é

lido pelo monstro de Frankenstein, e ele mesmo conta suas impressões sobre a obra:

Já o Paraíso Perdido produzia-me emoções de outra espécie, muito mais profundas.

Li-o, tal como os outros volumes de que me apossara, como se fosse história

verdadeira, que, nesse caso, me despertava todos os sentimentos de admiração e terror

que a figura de um deus onipotente, combatendo suas próprias criaturas, era capaz de

excitar. Por vezes relacionava várias situações com a minha própria. Tal como Adão,

eu não era ligado por qualquer elo a outro ser existente, mas suas condições eram bem

diversas das minhas em todos os sentidos. Ele fora produzido pelas mãos de Deus

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como criatura perfeita e feliz, sob a proteção de seu Criador; tinha a faculdade de

comunicar-se com seres de natureza superior e beber-lhes o conhecimento, mas eu era

desgraçado, desamparado e só. (Ibid, p. 105)

Esses tipos de citação se encontram constantemente em Frankenstein e Mais estranho

que a ficção, e como vimos, servem, dentre outros propósitos, para revelar nuances do

desfecho da estória e para ilustrar a visão de uma personagem sobre outra.

Os efeitos que as relações transtextuais produzem no leitor são também desenvolvidos

em Palimpsestos, das quais Genette considera a intertextualidade o primeiro tipo:

O segundo tipo, geralmente menos explícita e mais distante, que, no conjunto formado

por uma obra literária, o texto propriamente dito mantém com o que se pode nomear

simplesmente seu paratexto: título, subtítulo, intertítulos, prefácios, posfácios,

advertências, prólogos, etc.; notas marginais, de rodapé, de fim de texto; epígrafes;

ilustrações; errata, orelha, capa, e tantos outros tipos de sinais acessórios, autógrafos

ou alógrafos, que fornecem ao texto um aparato (variável) e por vezes um comentário,

oficial ou oficioso, do qual o leitor, o mais purista e o menos vocacionado à erudição

externa, nem sempre pode dispor tão facilmente como desejaria e pretende. Não quero

aqui empreender ou banalizar o estudo, talvez por vir, deste campo de relações que

teremos, aliás, muitas ocasiões de encontrar, e que é certamente um dos espaços

privilegiados da dimensão pragmática da obra, isto é, da sua ação sobre o leitor [...]

(Genette, 2010, p. 9)

Assim como grande parte das obras literárias, acadêmicas ou qualquer outro meio que

se utiliza do paratexto estabelece com o leitor um índice contratual que permite antecipar o

conteúdo da leitura, e o mesmo acontece no universo fílmico. O título de Mais estranho que a

ficção pode remeter ao aforismo de Mark Twain: “Truth is stranger than fiction, but it is

because Fiction is obliged to stick to possibilities; Truth isn't.”*, e a busca pela verdade sobre

si mesmo, que remonta ao mito de Telêmaco, herói que busca suas origens (e que também no

final de sua jornada recebe um ferimento no pulso), constituem as jornadas de Harold e o

monstro de Frankenstein.

Pode-se também inferir que a realidade é mais estranha que a ficção e também

interpretar diferentes desfechos para as obras em que há a relação entre criadores e criaturas:

quando se dá forma à criatura, ela se torna em certo ponto material e mais próxima ao real.

Frankenstein foi capaz de destruir a noiva que construía para seu monstro, justamente por

ainda não ter lhe dado vida, apenas forma, assim como Rodrigo S.M. mata Macabéa por esta

não estar na mesma dimensão de realidade do narrador. Entretando, um final diferente se dá

* “A verdade é mais estranha que a ficção porque a ficção é obrigada a se ater às possibilidades e a verdade não.”

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no filme de A Hora de Estrela. O trágico da morte de Macabéa é apaziguado pela última cena,

em que a protagonista corre sorrindo, aproximando a um final feliz, se não fosse sua morte. O

espectador vislumbra uma Macabéa de carne e osso e não apenas de palavras. Não há

confronto com o criador, até mesmo porque o narrador não se encontra na obra

cinematográfica.

Karen e Victor, porém, são levados a confrontar suas criaturas e há um movimento de

inversão de papéis. Essa dinâmica é característica da carnavalização e do grotesco, onde há

um movimento de decadência daquele que está em patamar mais elevado rumando para os

mundos inferiores. Esses efeitos apresentam desdobramentos na estruturação da narrativa

fílmica: há um rebaixamento da narradora trazendo uma função ideológica desta mudança de

planos na construção da narrativa. Esse rebaixamento também está presente no título de

Frankenstein: O Moderno Prometeu, visto que este epíteto insinua o terrível destino do titã

que roubara o fogo dos deuses e o usou para dar vida ao homem, e foi condenado a

diariamente ter seu fígado devorado por abutres.

Segundo Joseph Campbell, por diversas vezes a revisitação de um mito serve como

caminho para explicar dramas humanos:

As literaturas grega e latina e a Bíblia costumavam fazer parte da educação de toda

gente. Tendo sido suprimidas, toda uma tradição de informação mitológica do

Ocidente se perdeu. Muitas histórias se conservavam, de hábito, na mente das pessoas.

Quando a história está em sua mente, você percebe sua relevância para com aquilo que

esteja acontecendo em sua vida. Isso dá perspectiva ao que lhe está acontecendo. Com

a perda disso, perdemos efetivamente algo, porque não possuímos nada semelhante

para pôr no lugar. Esses bocados de informação, provenientes dos tempos antigos, que

têm a ver com os temas que sempre deram sustentação à vida humana, que

construíram civilizações e enformaram religiões através dos séculos, têm a ver com os

profundos problemas interiores, com os profundos mistérios, com os profundos

limiares da travessia, e se você não souber o que dizem os sinais ao longo do caminho,

terá de produzi-los por sua conta. (CAMPBELL, 1991, p. 15).

Desta forma podemos identificar como a criação é um processo doloroso também para

aquele que gera. Tanto Frankenstein quando Mais estranho que a ficção mostram os criadores

pela primeira vez como seres angustiados, exóticos, próximos ao grotesco. Karen é mostrada

como uma mulher transtornada, fumante compulsiva, trêmula. Em sua primeira aparição,

Victor também é descrito pelo capitão como um homem problemático:

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Deus do céu! Margaret, se você visse o estado do homem, que ainda impunha

condições para ser salvo, sua surpresa não teria limites. Seus membros estavam quase

congelados, o corpo terrivelmente enfraquecido pela fadiga e pelo sofrimento. Jamais

vi alguém em tão lastimável estado. [...] Criatura alguma jamais me despertou

tamanha curiosidade: seus olhos tinham uma expressão de fúria, e mesmo de loucura;

mas havia momentos em que, diante de qualquer obséquio ou do mais simples serviço

que alguém lhe prestasse, o semblante se iluminava todo e adquiria uma expressão de

doçura que nunca vi igual. Mas geralmente se mostrava melancólico e desalentado;

por vezes rangia os dentes, como se acometido de fortes dores. (SHELLEY, 2001, p.

19)

Para ambas as personagens, portanto, a genialidade vem seguida de melancolia,

excentricidade, loucura e solidão, pois a idéia de uma obra inacabada lhes causa angústia:

Meu entusiasmo, porém, era refreado pela ansiedade. Em vez do êxtase de um artista

ao ver sua obra adquirir forma e vida, eu sentia a angústia de um indivíduo condenado

a um trabalho escravo de um obscuro trabalhador das minas condenado às trevas das

entranhas da terra (Op. Cit., p. 45).

Nessa comparação de Victor podemos identificar o cronotopo da criação, ou melhor, o

não-lugar onde, na concepção de Bakhtin, o autor deve se isolar do tempo e espaço ao qual

pertence para criar, e assim perscrutar o mundo invisível, desbravar novos caminhos, explorar

forças desconhecidas e revelar ao mundo os mistérios da criação. O mundo exterior, porém,

fornece a esses criadores ideias para seus mundos interiores, elementos que lhes causem

formas de epifania, como uma luz fora dessa caverna. Em A Jornada do Escritor, Christopher

Vogler conta as origens e os efeitos da epifania:

Existe uma cadeia de experiência divina, que vai desde o entusiasmo (ou seja, ser

visitado por um deus), passa pela apoteose (tornar-se um deus), e chega à epifania, que

é ser reconhecido como deus.

James Joyce explorou e expandiu o sentido da palavra epifania, usando-a para

designar uma súbita percepção da essência profunda de algo, a compreensão do que

está no âmago de uma pessoa, de uma idéia ou situação. Às vezes, os heróis

experimentam um entendimento repentino da natureza das coisas, depois de terem

passado por uma Provação. Sobreviver à morte dá sentido à vida e aguça as

percepções. (2006, p. 171)

Nessas obras, porém, a epifania não acontece apenas para as criaturas, mas também

para seus criadores, e também se manifestam evocando intertextualidades, através de imagens

que revelam o futuro das personagens, ou que podem funcionar como ironia dramática, caso

estejam, como em Frankenstein, situados num futuro em que já se sabe da ruína das

personagens.

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A epifania de Frankenstein acontece quando o cientista vê uma árvore queimando:

Como estivesse à porta, vi, de súbito, uma enorme língua de fogo expelida do antigo e

belo carvalho que se erguia a cerca de vinte metros da nossa casa; tão logo se

desvaneceu aquela luz ofuscante, a árvore desaparecera, não restando dela mais do que

um cepo esfrangalhado. (SHELLEY, 2001, p. 33)

Além do fogo dos deuses, fonte de criação e ruína para o Prometeu mítico, a árvore em

chamas remete ao primeiro estágio da epifania, a visita de um deus, visto que na narrativa

bíblica, Deus se manifesta pela primeira vez a Moisés numa sarça em chamas (Êxodo, 3:02).

Os acontecimentos relatados por um texto literário, segundo Todorov , “são ‘acontecimentos’

literários, assim como as personagens são interiores ao texto” (1981, p. 33). A árvore posta

em chamas pelo raio assume o caráter de alegoria, que é definida por Todorov como “uma

proposição de duplo sentido, mas cujo sentido próprio (ou literal) apagou-se por completo.”

(Ibid., p. 34), representando a decadência: Quando assume que não tinha mais forças Victor

afirma: “Eu era uma árvore abatida pelo raio”. (SHELLEY, 2001, p. 131); quando ameaça seu

criador, o monstro diz em tom profético: “Suas horas hão de passar-se em terror e infortúnio,

e não tardará em despenhar-se o raio que destruirá para sempre sua felicidade” (Ibid., p. 137);

e quando conta os planos de sua morte, a criatura também cita o fogo:

Erguerei uma pira e consumirei até as cinzas este arcabouço miserável, de modo a que

não possa restar de seus despojos o mínimo indício da minha imagem que possa

orientar algum outro desavisado na tentativa de percorrer a senda maldita do meu

criador, procurando refazer a sua obra, (Ibid., p. 180)

Tanto Mais estranho que a ficção quanto Frankenstein utilizam os mesmos

mecanismos de alusão de antecipação da “morte” do protagonista. A materialização dessa

queda do herói é uma imagem constante em Mais estranho que a ficção: na tomada inicial já

presenciamos um zoom dinâmico da terra para o quarto de Harold; Karen Eiffel aparece pela

primeira vez (13min 48s) no alto de um prédio, com as mãos estendidas, até que cai desde

edifício e logo após, descreve o quadro da suicida. Karen sente que é necessário matar seu

protagonista, o monstro de Frankenstein anseia por sua própria morte.

O viés de completude na morte também é explorado por Bakhtin: "Enquanto o homem

está vivo, vive pelo fato de ainda não se ter rematado nem dito a sua última palavra." (2011, p.

61). É preciso, porém, que a morte da personagem estabeleça uma relação funcional com o

restante da obra, e por isso Karen afirma que não pode jogar Harold do topo de um prédio.

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Como Émile Durkheim (2000) poderia classificar, o suicídio de Evelyn foi um ato egoísta,

pela ausência de laços que a mantivessem viva, e auto-entrega de Harold à morte deveria ser

um ato altruísta, o que realmente sucedeu, tanto pela aceitação da fatalidade como para um

bem maior, a obra literária, quanto para salvar o garoto da bicicleta de ser atropelado. Antes

ignorado por todos os outros frequentadores do ponto de ônibus, mesmo quando revolta-se

contra a voz aos gritos, Harold se coloca como figura principal e tem sua “hora da estrela”

perante essas outras personagens; ele aceita seu destino e age com altruísmo, mesmo sabendo

levaria à sua morte.

Dessa mesma forma, o monstro de Frankenstein estabelece uma relação entre o

conhecimento e a morte:

Como é estranha a natureza do conhecimento! Ele apega-se à mente, uma vez

adquirido, e ali fica como o líquen na rocha. Por vezes desejava alijar todas as idéias e

sentimentos, mas aprendi que o único caminho para chegar a isso era a morte, um

estado que eu temia, embora não compreendesse. (SHELLEY, 2001, p. 98)

Victor estabelece uma relação semelhante, dizendo: “a maçã já fora mordida, e o braço

implacável do anjo apontara-me o caminho da desesperança e da amargura” (p. 154). A

alusão à maçã se refere ao livro de Genesis “Mas da árvore do conhecimento do bem e do

mal, dela não comerás; porque no dia em que dela comeres, certamente morrerás.” (Gên

2:17). Em Mais estranho que a ficção, a maçã também aparece: ao ver uma maçã rolando e

parando na sarjeta da rua, tem a idéia de como matar Harold (1h 12min 10s). Uma maçã

idêntica é escolhida por Harold, que lhe dá uma mordida a caminho do ponto de ônibus. Após

ser atropelado, também essa maçã rola para a sarjeta, porém já mordida e de posição inversa

em relação à primeira.

Outras intertextualidades podem ser identificadas pela escolha da maçã além da alusão

ao fruto do conhecimento que leva à morte: ela também está na estampa do DVD do filme,

lembrando os rótulos dos discos de vinil dos Beatles nos anos 60, e em muito se assemelha à

que está na frente do rosto do Filho do Homem (Fig. 5), quadro do pintor surrealista belga

René Magritte.

Magritte também é autor de uma série de quadros que questionam as representações

artíticas, entre elas Ceci n’est pas une pomme (Isto não é uma maçã) e Ceci n’est pas une pipe

(Isto não é um cachimbo), sendo que este último inspirou Foucault a escrever um ensaio de

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mesmo nome. A dualidade da obra aponta para si mesma, numa metalinguagem que

representa, nega e gera dúvida ao mesmo tempo. O mesmo pode ser dito de Harold, cuja

existência é questionada.

Fig. 5: Le Fils de l'homme - René Magritte

Fonte: http://www.rene-magritte.org/images/paintings/

Son-of-Man.JPG

Fig. 6 : Ceci n’est pas une pomme - René Magritte

Fonte: http://www.rene-magritte.org/rene-magritte-

paintings.jsp

O título do primeiro quadro remete a um epíteto frequente no texto bíblico, tanto no

Antigo quanto no Novo Testamento, porém é no Evangelho de Lucas que “O Filho do

Homem” se refere a Jesus Cristo, em versículos como: “Porque o Filho do Homem veio

buscar e salvar o perdido.” (Lc 19.10). A questão do sacrifício também se aplica a Harold, e a

morte é justificada por salvar uma outra vida.

Também no evangelho de Lucas está a última frase de Cristo: “Pai, perdoa-lhes,

porque não sabem o que fazem” (Lc 23:34). O texto bíblico também se faz presente em

Frankenstein, quando o cientista brada contra o juiz que investiga os assassinatos do monstro:

“Como és ignorante, homem, em tua pretensa sabedoria! Cala-te, que não sabes o que dizes”

(SHELLEY, 2001, p.163).

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Além das alusões simbólicas e da declarada intertextualidade expressa pelas citações

presentes nas obras, outros dois pontos em comum entre Mais estranho que a ficção e

Frankenstein se manifestam na relação entre criador e criatura e no rebaixamento do criador.

Ambas as obras possuem criadores que desenvolvem, numa visão Freudiana, pulsões de Eros,

isto é, expressam seu afeto por suas criaturas, e pulsões de Thanatos, ou seja, desejam sua

morte, e neste sentido também podemos incluir a relação entre Rodrigo S.M. e Macabéa em A

Hora da Estrela . Em Mais estranho que a ficção, Karen arquiteta, desde o início, a morte de

Harold, mas também proporcionam momentos de felicidade. Em Frankenstein, o cientista,

mesmo tendo sido resgatado de um acidente enquanto caçava a criatura para matá-la, declara:

“Desejo mais uma vez que minha hedionda criação prossiga e prospere. Tenho afeição por

ela, pois foi o fruto de dias felizes, quando a morte e a dor não eram senão palavras que não

encontravam eco em meu coração.” (Ibid, p. 8). Já em A Hora da Estrela, Rodrigo S.M. em

uma hora sente repulsa por Macabea: “(Ela me incomoda tanto que fiquei oco. Estou oco

desta moça. E ela tanto mais me incomoda quanto menos reclama. Estou com raiva. Uma

cólera de derrubar copos e pratos e quebrar vidraças.[...])” (LISPECTOR, 1998, p. 42) e em

outros momentos declara seu amor: “Só eu, seu autor, a amo” (Ibid., p. 43).

Tando Rodrigo S.M. quanto Victor e Karen têm um modus operandi que beira o

sadismo: dão-lhes vida privados de atributos que lhes permitam atingir a felicidade, vivendo

entre o medíocre e o grotesco, negam-lhe amores, elaboram suas mortes. Nessas relações do

duplo, há também uma alternância entre papéis: Harold se sente perseguido por Karen, e a

procura, da mesma forma que Victor persegue o monstro, que também o observa à distância -

Frankenstein é, sobretudo, o monstro de si mesmo, sua criação é sua destruição. Após a morte

da protagonista de A Hora da Estrela, Rodrigo declara: “Macabéa me matou” (Ibid., 106). O

monstro também causa a ruína a Frankenstein, e a morte de Harold também desola Karen.

Essa inversão de papéis na narrativa, além de evocar temas da carnavalização

bakhtiniana, remete também aos temas do duplo e do estranho, forçando as personagens a um

confronto. Ao ver sua criação pronta, Frankenstein se espanta:

À luz bruxuleante da vela quase extinta, vi abrirem-se os olhos amarelos e baços da

criatura. Respirou. Sim, respirou com esforço, e um movimento convulso agitou-lhe

os ombros. Quem poderia descrever o quadro de minhas emoções diante de tal catástrofe? Que

pintor prodigioso poderia esboçar o retrato do ser que a duras penas e com tantos

cuidados eu me esforçara por produzir? Seus membros, malgrado as dimensões

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incomuns, eram proporcionados e eu me esmerara em dotá-lo de belas feições. Belas?!

Oh, surpresa aterradora! Oh, castigo divino! Sua pele amarela mal encobria os

músculos e artérias da superfície inferior. Os cabelos eram de um negro luzidio e

como que empastados. Seus dentes eram de um branco imaculado. E, em contraste

com esses detalhes, completavam a expressão horrenda dois olhos aquosos, parecendo

diluídos nas grandes órbitas em que se engastavam, a pele apergaminhada e os lábios

retos e de um roxo-enegrecido. (SHELLEY, 2001, p. 46)

Quando Harold Crick se encontra com Karen Eiffel, o assombro maior não é da

personagem que encontra sua criadora, pelo contrário, ela é quem se espanta mais exclama:

“Seu cabelo! Seus olhos! Seus dedos! Seus sapatos!” (1h 20min 19s). Podemos perceber o

quanto os olhos têm papel importante nos confrontos dentro dos temas do fantástico e do

estranho: quando o rei dos trolls se encontra com Thor, são os olhos do deus do trovão que

causam estranhamento; os olhos de Pinóquio perturbando Gepeto; na fábula de Chapeuzinho

Vermelho, são os grandes olhos do lobo; os olhos aquosos e amarelos do monstro são a

primeira coisa em que Frankenstein repara; torna-se difícil também não lembrar dos olhos de

cigana oblíqua e dissimulada de Capitu, descrita pelo narrador de Dom Casmurro, de

Machado de Assis; em Clarice Lispector, cuja obra tem forte presença do duplo e do estranho,

a personagem principal do conto O Búfalo percorre todo o zoológico olhando nos olhos de

cada animal, até encontrar o grande bovino que a olha de volta. Freud define esse

estranhamento por heimlich: “esse estranho não é nada novo ou alheio, porém algo que é

familiar e há muito estabelecido na mente, e que somente se alienou desta através do processo

da repressão” (FREUD, 2009, p. 258).

Assim como o espelho é importante para o fantástico, e os olhos são comumente

chamados de “espelhos da alma”, a visão do outro refletida no seu duplo exacerba os conflitos

da situação de confronto e projeta o observador para o mesmo patamar do observado,

tornando-se um ser que não compreende a existência de um outro que tem sua existência

como um resultado da própria, e por isso perde a compreensão de si mesmo.

A mudança de patamar em forma de rebaixamento para Karen também se manifesta

em um caráter plástico: ela se ajoelha aos pés de Harold, numa alternância de tomadas que

causa linhas de oposição entre os dois (Fig. 7 e 8): ele, sempre olhando para baixo, ela, para

cima, e quando se levanta passa a maior parte do tempo se afastando de Harold, sendo

encurralada na parede enquanto ele continua andando em sua direção (1h 21min 00s). Ao ver

que sua criação ganhava vida, também Frankenstein se afasta:

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92

Mais mutáveis que os acidentes da vida são os da própria natureza humana. Eu

trabalhara duramente durante dois anos para infundir vida a um corpo inanimado. Para

tanto sacrificara o repouso e expusera a saúde. Eis que, terminada minha escultura

viva, esvaía-se a beleza que eu sonhara, e eu tinha diante dos olhos um ser que me

enchia de terror e repulsa. Incapaz de suportar aquela visão apavorante, precipitei-me

pela porta e corri para o meu dormitório, onde fiquei, por longo tempo, a andar de um

lado para Outro, incapaz de controlar-me e deitar-me para tentar o esquecimento pelo

sono. (SHELLEY, 2001, p. 46)

Fig. 7 e 8: O encontro de Harold Crick e Karen Eiffel

Fig. 9

No segundo encontro de Frankenstein com o monstro, a criatura já é capaz de falar

eloquentemente, o que é interessante se comparado com as adaptações cinematográficas. Ele

também já começara a desenvolver traços de autoconsciência, afirmando: “E que terror senti

quando me vi refletido numa poça de água!” (Ibid., p.93). A carnavalização ocorre no

momento de confronto entre criador e criatura, quando o criador sofre um processo de

decadência e a criatura se eleva através do desenvolvimento de sua autoconsciência, o que

para Bakhtin (2011, p. 53-86) é um dos principais pontos de caracterização de uma

personagem polifônica:

Como ponto de vista, como concepção de mundo e si mesma, a personagem requer

métodos absolutamente específicos de revelação e caracterização artística. Isso porque

o que deve ser revelado e caracterizado não é o ser determinado da personagem, não é

sua imagem rígida, mas o resultado definitivo de sua consciência e autoconsciência,

em suma, a última palavra da personagem sobre si mesma e sobre seu mundo. (2011,

p. 53, grifos do autor).

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93

Bakhtin afirma que para atingir a autoconsciência e, consequentemente sua

completude o herói deve passar quatro tipos de acontecimentos: o cognitivo, o religioso, o

estético e o ético (1997, p. 42):

[...] os elementos que asseguram o acabamento estético do herói são valores que lhe

são transcendentes, [...] esses elementos são inorgânicos na autoconsciência do herói e

não participam do mundo da sua vida que procede de seu interior, que não participam,

em outras palavras, do mundo que é o do herói vivo fora do autor — que esses

elementos não são vivenciados como valores estéticos pelo herói — e, para terminar,

de estabelecer a relação existente entre esses constituintes e os constituintes formais

externos: a imagem e o ritmo.

Um único e mesmo participante não pode ocasionar o acontecimento estético; uma

consciência absoluta que não conta com nada que lhe seja transcendente, que esteja

situada fora dela mesma e a delimite por fora, não se presta a um processo estético, só

é possível participar dela, mas não vê-la como um todo acabado. O acontecimento

estético, para realizar-se, necessita de dois participantes, pressupõe duas consciências

que não coincidem. Quando o herói e o autor coincidem ou então se situam lado a

lado, compartilhando um valor comum, ou ainda se opõem como adversários, o

acontecimento estético termina e é o acontecimento ético que o substitui (panfleto,

manifesto, requisitório, panegírico e elogio, injúria, confissão, etc.); quando não há

herói, ainda que potencial, teremos o acontecimento cognitivo (tratado, lição); quando

a outra consciência é a de um deus onipotente, teremos o acontecimento religioso

(oração, culto, ritual).

Em Mais estranho que a ficção, quando Karen se senta após ver sua criação, o

confronto com Harold se agrava tanto nas palavras - pela coação de Harold a fim de saber de

seu destino enquanto Karen não encontra palavras para se justificar - quanto visualmente - na

constituição da cena (Fig. 9), com Harold projetando-se sobre Karen, que tem suas mãos em

expressão de súplica. Torna-se, portanto, uma relação carnavalizada: não se espera de um

Criador, deus ou não, que se justifique ante sua criação, que ele pode destruir com um estalar

de dedos ou, no caso que Eiffel, com a datilografia de algumas teclas. Ocorre justamente

nessa cena um acontecimento que transita do religioso, pelo encontro com a Criadora, para o

estético, onde há duas consciências que não coincidem, e finalmente para o ético, no caráter

requisitório de Harold, e gradativamente os estranhos tornam-se aceitos um pelo outro.

Todorov considera essa aceitação do elemento insólito como característica do fantástico

maravilhoso (TODOROV, 1981, p. 24), visto que não há mais uma preocupação em explicar

as origens dos elementos insólitos.

A mesma ordem se dá em Frankenstein: quando o monstro se encontra com seu

criador, os dois também discordam em seus pontos de vista, e a criatura também faz um

pedido, enfatizando a inversão de papéis: “Você é meu criador, mas o senhor sou eu. E terá de

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obedecer-me” (SHELLEY, 2001, p. 137). Diferentemente de Harold, ele não implora por sua

vida, mas demanda uma companheira (Ibid, p. 120).

Harold já tinha uma companheira, Ana Pascal, personagem que é poupada da dúvida

se também se trata de um construto de Karen Eiffel. Mais uma vez a questão do outro é

problematizada:

Em todas as concepções éticas, religiosas e estéticas que atingiram certo

desenvolvimento e perfeição e têm importância histórica, o corpo é antes generalizado

do que diferenciado, e, quando o é, é infalivelmente em função da predominância do

corpo interior ou do corpo exterior, do ponto de vista subjetivo ou objetivo, conforme

nos baseamos em nossa própria vivência ou na vivência do outro; no primeiro caso, o

fundamento é a categoria dos valores do eu, à qual se vinculará o outro, e, no segundo,

a categoria do outro, que englobará a mim também.[...] É óbvio que nos casos em que

a categoria do outro desempenha um papel determinante para a elaboração da

concepção do homem, o que predomina é a apreciação positiva e estética do corpo: o

homem é um ser encarnado que tem um significado plástico-pictural; quanto ao corpo

interior, ele está a reboque do corpo exterior do qual apenas reflete os valores e tira

sua sacralidade. [...]. Então, todo o corporal é sacralizado através das categorias do

outro, é vivido como algo valioso e com significado imediato; a determinação dos

valores peculiares a si próprio é submetida a uma determinação exterior através do

outro e para o outro, o eu-para-mim é dissolvido no eu-para-o-outro. [...] A

configuração plástica começa a esfumar-se; o homem em seu acabamento plástico - o

outro - fica imerso na percepção interna do corpo que, mesmo não sendo

individualizada, é una. (BAKHTIN, 1997, p.71-72)

Criador e criatura são solitários, assim como o narrador durante o processo de criação,

mesmo quando idealiza um interlocutor. A busca pelo outro se dá também pela constatação de

que seu duplo não é seu igual, a relação de criador e criatura ainda não se dá por completo, é

preciso que depois de criado o homem, para ele seja criada uma Eva, ou uma Ana Pascal para

Harold, ou um Olímpico para Macabéa, ou uma noiva de Frankenstein. É revisitado também o

mito de andrógino, contado por Platão em O Banquete: seres que, ao se revoltarem contra os

deuses do Olimpo, foram divididos em dois, e passam o resto de suas existências procurando

por sua metade. (2003, p. 20)

Além dos temas do outro e do conflito, a ironia dramática, abordada pelo professor e

presente no julgamento em Édipo Rei, também acontece no Capítulo VIII de Frankenstein,

durante o julgamento de Justine, acusada de matar o irmão mais novo de Victor. Tanto o leitor

quanto Frankenstein, que nesse momento narra o episódio, sabem que foi o monstro que o

matou. (p. 66-70).

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O romance também possui fortes traços de metalinguagem pela maneira com que foi

escrito: Mary Shelley cria o narrador, o capitão do navio, Robert Walton, que na primeira

parte do romance relata, por meio de cartas enviadas à irmã, os acontecimentos que Victor

Frankenstein lhe contara após ser resgatado no mar. Uma estória dentro de outra, que não

deixa leitor esquecer as camadas de narrativa, pela constante evocação à irmã. Em alguns

momentos existe mais uma camada de narração: quando o monstro conta ao seu criador o que

lhe aconteceu, durante o ano que viveu na floresta, numa casa em que ouvia seus vizinhos

contarem a história de suas vidas; nas cartas, dentro da narração de Frankenstein, de sua prima

Elisabeth e seu pai Alphonse.

Além de evocar a metalinguagem, a existência de diferentes camadas de narração, ou

uma narrativa dentro de outra, também servem ao propósito de questionar o elemento

fantástico por aqueles que não tiveram contato com ele, apenas o conhecem pelo relato da

personagem que o presenciou. Isso acontece com Harold, quando se consulta com a

psicanalista e quando conta ao professor sobre a voz. Essas personagens não conhecem a

mesma realidade que Harold e Frankenstein, e podem questionar sobre a veracidade dos fatos

e também levar o leitor a isso, pois sua vacilação, como afirma Todorov (1981, p. 19), é a

primeira condição do fantástico.

Tanto Harold quanto o monstro de Frankenstein têm acesso a suas origens pelos

manuscritos de seus criadores. Harold lê o romance, o monstro lê as anotações de Victor, e é

por essa leitura que cada um aceita seu destino. Harold diz a Karen que só há uma maneira

que o livro pode terminar (1h 31min 38s), enquanto o monstro diz que a aquisição de

sabedoria reforçou a noção do pária que ele sempre será (SHELLEY, 2001, p. 106). Ambos

aceitam seus fins.

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6. A FORMAÇÃO DA IDENTIDADE EM MAIS ESTRANHO QUE A FICÇÃO

Durante a entrevista, Harold não compreendia os métodos do professor, e o questiona:

(34 min 20 s) [ Harold:] - I'm sorry. What do these questions have to do with

anything?

[Prof. Hilbert:] - The only way to find out what story you're in is to determine what

stories you're not in. Odd as it may seem, I've just ruled out half of Greek literature

seven fairy tales, 10 Chinese fables and determined conclusively that you are not King

Hamlet, Scout Finch, Miss Marple, Frankenstein's monster, or a golem. Hum? Aren't

you relieved to know you're not a golem?

- Yes, I am relieved to know that I am not a golem.

- Good. Do you have magical powers?*

O professor justifica, revelando sua formação leitora e seus métodos. Ao contrário de

um linguista terminológico, que busca a definição de “algo pelo que é”, nunca pelo “que não

é”, o crítico literário busca delimitar sua pesquisa ao máximo, até conseguir delimitar um

único objeto. Um leitor que tem conhecimento do discurso acadêmico em um programa de

pós-graduação pode facilmente reconhecer esse procedimento, ainda mais se considerar que

esse professor também é orientador de alunos de doutorado. Ele prossegue com as perguntas:

(37 min 02 s) [ Prof. Hilbert:] - What's your favorite word?

[Harold: ] – “Integer”.

- Good, good, good.

- Do you aspire to anything?

- No.

- Conquer Russia? Win a whistling contest?

- No.

- Harold, you must have some ambition.

- I don't think so.

- Some underlying dream. Think.

*[ Harold:] - Olhe, o que essas perguntas têm a ver com qualquer coisa?

[Prof. Hilbert:] - A única maneira de saber em qual história você está é determinando em quais

não está. Por mais estranho que pareça, já eliminei da lista metade da literatura grega, sete

contos de fadas, 10 fábulas chinesas e sabemos que não é o Rei Hamlet, Scout Finch, nem Miss

Marple, o monstro Frankenstein, nem um golem. Hum? Não está aliviado de não ser um

golem?

- Sim, estou aliviado em saber que não sou um golem.

- Bom. Você tem poderes mágicos? (tradução nossa)

[ Prof. Hilbert:] – Qual sua palavra favorita?

[Harold: ] – “Inteiro”.

- Bom, bom, bom.

- Você aspira a alguma coisa? [...] Conquistar a Rússia? Vencer um torneio de assobios?

Harold, deve ter alguma ambição.

- Acho que não.

- Algum sonho subjacente. Pense. (tradução nossa)

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O questionamento de Hilbert quanto às ambições de Harold implicam, novamente, as

definições do herói. Harold não tem ambições ou sonhos. Esse tipo de perspectiva perante a

vida traz à tona questões do sujeito moderno, e consequentemente ao herói moderno de

ficção. Harold faz parte de uma classe de trabalhadores cujo único objetivo é sobreviver.

Apesar de ser um funcionário do governo, não deixa de fazer parte de uma classe operária (se

considerarmos, além de seu trabalho, suas operações matemáticas). Não chega, porém, a ser

de uma classe proletária, já que não tem filhos. A identidade do herói, portanto, também leva

a um questionamento quanto a seu papel num contexto sociológico, pois ao mesmo tempo em

que representa o governo e é visto pelas outras personagens como representante da opressão,

ele também é oprimido pelo contexto das situações em que é colocado. Não há muito a ser

narrado, como diz o professor, e nesse vazio existencial Harold novamente apresenta mais um

ponto em comum com uma gama de heróis modernos, como Macabéa, por exemplo, que se

não estiverem inseridos em um contexto do fantástico, não possuem poderes concedidos por

deuses ou outras entidades, e são incapazes de grandes feitos, tornando-se vítimas da

sociedade, ou acabam fazendo parte de estórias de superação, num ideal romântico

exacerbado, de um tipo que ainda se perpetua na ficção, sobretudo nas leituras folhetinescas,

nos romances infanto-juvenis e no cinema voltado para as grandes massas, os chamados

blockbusters (algo como “arrasa-quarteirão).

Sendo assim, a criação ficcional opta entre fazer uma releitura de uma obra anterior ou

tentar quebrar esses moldes, entre resgatar o passado, retratar o contemporâneo ou vislumbrar

o futuro, entre descrever o espaço reconhecível ou criar novos universos. Porém, quanto mais

próximo do real, contemporâneo e do espaço reconhecível, mais forte é para o criador a

tendência a explorar os dramas humanos na obra ficcional (o que não impede esses dramas de

serem explorados em obras de contexto totalmente fantástico, como a ficção científica). Ao

criar um herói cotidiano e um narrador para contar seus atos, criam-se também dilemas passa

para o narrador, que em certo momento se perguntará: “O que farei com esse livro?”. Ele

pode optar por buscar poesia nas cenas do cotidiano, como muito se vê na poesia parnasiana,

porém o poeta busca o objeto ideal, e comparado com o real, esse objeto mais se assemelha à

natureza morta. O cotidiano é devastador e beira o grotesco. A solidão se torna um tema

recorrente para o herói moderno, que mesmo tendo com quem interagir, vê o no outro o

estranho, e o único que realmente o conhece é o narrador de sua estória, porém este também

sente estranhamento por essa criatura, e é forçado a decidir seu destino: um final feliz ou uma

morte trágica. Obviamente na Literatura há também autores que optam pelo anti-clímax ou

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por uma obra estática, sem conflitos maiores em que nada muda em relação a humores -

porém o fato de interromper a estória antes de seu desfecho, recurso muito utilizado por José

Saramago, por exemplo, desperta no leitor a interpretação do final da estória, se feliz ou triste.

A obra estática, por sua vez, retoma em seu desfecho o estado anterior de humores, também

limitado a essas duas realidades.

Essa dicotomia também inspira a explicação de Prof. Hilbert quanto ao propósito de

suas perguntas, citando Italo Calvino:

The last thing to determine conclusively is whether you're in a comedy or a tragedy.

To quote Italo Calvino: “The ultimate meaning to which all stories refer has two faces:

The continuity of life, the inevitability of death.” Tragedy, you die. Comedy, you get

hitched. (37min 47s) *

Hilbert demonstra nessa citação sua formação dialógica por uma intertextualidade

explícita, visto que, segundo Bakhtin, “[o] discurso citado é visto pelo falante como a

enunciação de outra pessoa, completamente independente na origem, dotada de uma

construção completa, e situada fora do contexto narrativo” (Bakhtin 1997, p.144). Mesmo

numa manifestação oral, o texto do professor infere as aspas delimitando sua citação, assim

como foram utilizadas na elaboração do roteiro. Também sobre a citação Maingueneau

afirma que

As aspas constituem antes de mais nada um sinal construído para ser decifrado por um

destinatário. O sujeito que utiliza as aspas é obrigado, mesmo que disto não esteja

consciente, a realizar uma certa representação de seu leitor e, simetricamente, oferecer

a este último uma certa imagem de si mesmo, ou melhor, da posição de locutor que

assume através destas aspas. Colocará aspas, por exemplo, para proteger-se

antecipadamente de uma crítica do leitor, que, supostamente, esperará um

distanciamento frente a determinada palavra, mas poderá, igualmente, não colocar as

aspas para frustrar esta expectativa, provocando um choque semântico [...]

(MAINGUENEAU, 1989, p. 91).

As aspas, sobretudo no discurso acadêmico, trazem autoridade ao enunciado, no que

Bakhtin chama de reificação da palavra:

* A última coisa a determinar conclusivamente é se você está em uma comédia ou em uma

tragédia. Citando Ítalo Calvino: “O sentido ultimo de todo relato tem duas faces: A

continuidade da vida e a inevitabilidade da morte.” Tragédia, você morre. Comédia, você se dá

bem (tradução nossa).

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Toda a atividade verbal consiste, portanto, em distribuir a “palavra de outrem” e a

“palavra que parece ser a de outrem”. Mesmo as ciências humanas desenvolveram

uma tendência a substituir afirmações responsáveis acerca de um problema por uma

descrição do estado atual das pesquisas na área, incluindo cálculo e adução indutiva do

“ponto de vista geralmente admitido nos nossos dias”; esse procedimento é mesmo

algumas vezes considerado a melhor “solução” possível de um problema. Em tudo

isso se manifesta a alarmante instabilidade e a incerteza da palavra ideológica. O

discurso literário, retórico, filosófico, e o das ciências humanas tornam-se o reino das

“opiniões”, das opiniões notórias, e mesmo nessas opiniões não é tanto o “quê” mas o

“como” individual ou típico da opinião em causa que ocupa o primeiro plano. Esse

processo que afeta o destino da palavra na Europa burguesa contemporânea e aqui na

União Soviética (no nosso caso, até tempos muito recentes) pode ser caracterizado

como uma reificação da palavra, como uma deterioração do valor temático da

palavra. (BAKHTIN, 2006, p. 201)

Como vimos, Bakhtin ressalta que o “discurso de outrem” afeta não só o texto

científico - que vê as citações como necessidade primordial e leva o acadêmico a se preocupar

muito mais com o que foi dito sobre um assunto do que elaborar suas proposições – mas

também toda atividade verbal, incluindo a ficção. A citação de Hilbert possui uma segunda

intertextualidade, presente no discurso de Italo Calvino: comédia e tragédia são dois dos

gêneros tratados por Aristóteles em A Arte Poética, datada de IV a.C..

Considerada um dos primeiros e mais importantes estudos sobre a criação estética, a

Poética serviu como base para diversos trabalhos de análise de personagens de ficção na

história da Crítica Literária. Nessa obra, Aristóteles caracteriza o herói pelo gênero de intriga

em que ele está inserido e considera como traço da intriga complexa a descoberta da

identidade do herói (ARISTÓTELES, 2004, p. 13), e notamos que esse procedimento também

é adotado pelo Prof. Hilbert em Mais estranho que a ficção, que busca pela descoberta da

intriga também revelar o herói.

Essa identidade do herói também é descrita por Bakhtin em Estética da Criação

Verbal:

O autor não encontra uma visão do herói que se assinale de imediato por um princípio

criador e escape ao aleatório, uma reação que se assinale de imediato por um princípio

produtivo; e não é a partir de uma relação de valores, de imediato unificada, que o

herói se organizará em um todo: o herói revelará muitos disfarces, máscaras aleatórias,

gestos falsos, atos inesperados que dependem das reações emotivo-volitivas do autor;

este terá de abrir um caminho através do caos dessas reações para desembocar em sua

autêntica postura de valores e para que o rosto da personagem se estabilize, por fim,

em um todo necessário. ( BAKHTIN, p. 26)

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As questões de identidade, portanto, também sofreram modificações históricas: a

maneira pela qual o sujeito se vê também modifica a maneira com que o homem se representa

esteticamente.

Como podemos ver, Mais estranho que a ficção também nos permite refletir sobre a

historicidade da análise literária, pois além de abordar temas do teatro épico grego, passando

pelo Romantismo e chegando ao herói moderno, existe um debate de vozes que diferem da

voz do autor: quando Harold descobre a identidade da narradora e entrega o romance

inacabado nas mãos de Hilbert, o professor tenta convencer o protagonista de que a morte é

necessária, enquanto Harold, obviamente, deseja viver, e Karen, a escritora, entra em conflito

sobre o que fazer. Esse dilema sumariza a tensão principal do filme e demonstra a essência da

polifonia, que, para Bakhtin, “consiste no fato de que as vozes permanecem independentes, e

como tais, combinam-se numa unidade de ordem superior à homofonia.” (Bakhtin, 2010, p.

21). Diferente de uma leitura maniqueísta das personagens, que os consideraria protagonistas

ou antagonistas, a obra ficcional tem em suas personagens “vozes diferentes, cantando

diversamente o mesmo tema. Isso constitui precisamente a ‘polifonia’, que desvenda o

multifacetado da existência e complexidade dos sofrimentos humanos” (Idem, p. 49).

Sendo assim, além de repleto de traços de intertextualidade, o discurso do professor

em Mais estranho que a ficção também apresenta propriedades dialógicas através da polêmica

que ele desperta junto a outras personagens, em certos momentos gerando dúvida e

estimulando os conflitos. Por ser extremamente denso, esse discurso não atinge a todos e não

é totalmente compreendido, como pode ser observado pelas reações de estranhamento de

Harold, o que obriga o professor a traçar novas orientações, como por exemplo, tentar

descobrir se a vida do herói consiste em uma comédia ou em uma tragédia. Em seu terceiro

encontro com o professor, Hilbert recomenda que ele não faça nada:

(47min 56s) - Professor Hilbert, I've totally failed at the comedy-tragedy thing. In

fact, I think she likes me even less.

- I know, it's great.

- What do you mean? You've proved something else entirely. The voice seems to be

dependent on actions you take. You reset your watch, it says you reset your watch.

You ride a bus, it says you ride the bus. You brush your teeth, it says you brush your

teeth. It may be that you yourself are perpetuating the story. So I suggest we try

something else.

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- Like what?

- Try nothing. Nothing.*

Harold segue o conselho do professor: fica em casa, assistindo a programas sobre o

meio ambiente na televisão. Apesar da temática supostamente neutra deste tipo de programa,

os acontecimentos exibidos relatam diferentes mortes de animais: pássaros que antes eram

predadores, se tornando presas (o que também pode nos remeter à inversão de papéis presente

no filme), macacos que terão olhos arrancados e ataques de tubarões, águias e crocodilos.

Harold não se levanta do sofá, evita até mesmo trocar de canal, seguindo a ordem de nada

fazer. O telefone começa a tocar, Harold não atende, e o relógio começa a apitar, formando

uma seta. Harold tenta desligá-lo, quando um trator adentra seu apartamento pela janela,

soando como o rugir de um leão, como se dando continuidade aos programas sobre a natureza

selvagem. Mesmo não fazendo nada, portanto, o conflito persegue Harold, e a morte não

deixará de rondá-lo enquanto o herói não entrar em decadência e morrer.

Karen, a criadora de Harold, sente a necessidade de matar seus protagonistas em todas

as obras, e se fosse diferente, não as consideraria completas. A visão de Karen também

coincide com a de Bakhtin não só neste sentido, mas também na crença da decadência do

herói como uma oportunidade de se reerguer (Bakhtin, 1987, p. 19). A morte de Harold,

entretanto, tem efeito mais devastador para a escritora do que para o herói. Há, então, o

destronamento final da Criadora, consequência de um processo de carnavalização que tomou

forma no início do filme, a partir do momento em que sua voz deixa de representar uma

narradora onisciente e se torna personagem da estória, quando passa a ser ouvida por Harold.

Nessa carnavalização de criadora e criatura há o rebaixamento que dá função para a

voz de Karen, visto que, na narrativa escrita, o narrador tem como papel principal filtrar os

sentidos da personagem. No cinema, porém, com a gama de recursos de câmera, sonoplastia e

edição, dentre outros, torna-se desnecessário que o narrador relate o que a personagem está

* - Professor Hilbert, eu falhei totalmente nesta coisa de comédia-tragédia. Ela gosta menos

ainda de mim. Eu sei, é ótimo.

- Como assim?

- Você provou outro ponto. A voz parece condicionada às suas ações. Você acerta o relógio,

ela diz que você acerta o relógio. Você pega o ônibus, ela diz que você pega o ônibus. Você

escova os dentes, ela diz que você escova os dentes. Pode ser que você mesmo esteja dando

continuidade à trama. Então, sugiro tentarmos outra coisa.

- O quê?

- Não tentar nada. Nada.

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vendo ou por onde está passando, pois essas informações externas são mostradas. Por outro

lado, na Literatura, “nós não vemos quem a personagem é, mas de que modo ela toma

consciência de si mesma, a nossa visão artística já não se acha diante da realidade da

personagem, mas diante da função pura de tomada de consciência dessa personagem por ela

mesma.” (BAKHTIN, 1997, p.47). O texto escrito, portanto, traz a possibilidade de optar por

relatar o mundo interno da personagem antes do externo, o que requer técnicas mais

sofisticadas de elaboração quando se tenta fazer o mesmo no cinema, que visa trazer uma

ilusão de materialidade.

A materialização de Harold serve para que Karen adote uma nova postura perante a

morte, ante a descoberta de que a morte de Harold deixaria de ser fictícia, simbólica, para ser

real. Ela não consegue digitar as últimas letras da frase “Harold Crick está morto”, suas mãos

sujas de sangue não permitem que acenda seu cigarro. Ela se agarra à máquina de escrever, a

câmera volta-se para a janela e ao invés da transição de uma cena para outra por meio de um

escurecimento da imagem ou um corte abrupto, a câmera transita para a janela, cuja luz faz

com que o branco inunde a tela, como num momento de sublimação ou epifania.

Karen, que antes criava formas de sofrimentos para Harold, passa a sofrer por sua

causa. Essa inversão de papéis, característica da carnavalização, consequentemente envolve a

todos neste processo. Até mesmo Penny, a assistente, cujo papel na narrativa consistiu apenas

em servir como interlocutora de Karen até que houvesse outros sujeitos de interação, precisou

modificar sua postura de, como ressalta ser um de seus principais atributos quando se

apresenta, nunca ter atrasado nenhum trabalho, precisou ser revisto; o professor Jules Hilbert,

nos momentos finais do filme, que aparentemente foi o último a ceder de sua posição de

mestre, despe-se e atira-se em uma piscina, quase num ritual de renovação; o deus ex machina

da obra também foi rebaixado: Harold foi salvo por uma lasca do relógio; e finalmente o

conceito de morte heróica também foi desestruturado.

A narrativa cumpre, portanto, sua função modificadora sobre o protagonista, que adota

uma renovação de postura filosófica perante a vida. Vive a tragédia moderna, que são as

tragédias de todos os dias, a social e a pessoal, para que assim seja cumprida a jornada do

herói.

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103

Em Mais estranho que a ficção, a causa em questão é livrar Harold do domínio do

relógio e da rotina que lhe é imposta. Harold representa o homem do dia-a-dia, e a partir do

momento que o fantástico o torna concreto para aqueles que o viam apenas como uma

personagem, sua problemática passa a ser mais complexa, pois a vida real é, sem dúvida, mais

estranha que a ficção.

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7. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Tendo em vista seu processo de produção de sentido, podemos concluir que a

intertextualidade tem uma função metonímica dentro do texto. O processo pelo qual as partes

remetem ao todo, porém, depende daqueles que as contemplam, ou como afirma Laurent

Jenny, a intertextualidade funciona como espelho dos sujeitos (p. 47, 1979).

Dentro das manifestações de intertextualidade está a mise en abyme, que a aproxima

intertextualidade da metalinguagem, e consequentemente traz a reflexão sobre o metatexto e a

metaficção. Esse viés de estudo, entretanto, merece uma pesquisa à parte, visto que sua teoria

ainda tem ligações maiores com a reflexão sobre a língua e a linguagem do que com a teoria

literária, além dos aspectos filosóficos que carecem ser aprofundados para tal estudo, dentre

eles as questões existenciais que a desestruturação da narrativa provoca através da

metalinguagem, como pode ser constatado em O Mundo de Sofia, cuja reflexão filosófica é

evidente na temática da obra.

A temática da metalinguagem em Mais estranho que a ficção também tem forte

relação intertextual com a peça teatral Seis Personagens à Procura de um Autor, de Luigi

Pirandello, com o romance Niebla, de Miguel de Unamuno, com Ulisses, de James Joyce e

com a teoria do teatro brechtiano. Tais obras não foram ignoradas, porém, na escolha do filme

como objeto de estudo, foi possível perceber que o primeiro intertexto identificado no

processo de elaboração desta pesquisa, A Hora da Estrela, de Clarice Lispector, servira

apenas como estopim para uma quantidade muito maior de referências, revelando que a

pesquisa intertextual leva a caminho nos quais o estudioso pode se perder, dada a

impossibilidade de esgotar todo um texto: metaforicamente falando, como no conto Do rigor

da ciência, em que Borges (2000, p. 75) cita Viajes de varones Prudentes, de Suarez Miranda,

corre-se um risco de tentar criar um mapa maior que a cidade descrita.

A discussão que o próprio filme provoca dentro de sua estória, citando exemplos de

personagens, narradores, conflitos de narrativas, gênese textual e gêneros literários permite

também uma reflexão sobre esses temas e contendo, inclusive, o questionamento da própria

ficção, dada a impossibilidade da reprodução do real.

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As questões de identidade abrangem não só as personagens da ficção, mas também

aqueles que leem. Ao discutirmos o espaço do professor de Literatura, notamos o quanto sua

sala ilustra seu discurso extremamente intertextual, da mesma forma que a narradora também

descreve o livro que lera.

Quanto ao protagonista, por não entender o suficiente de Literatura, é vítima dos

recursos utilizados num texto literário, dentre elas a prolepse e as formas de ironia, que ao

mesmo tempo revelam e escondem do protagonista o seu destino. A ironia também aparece na

forma de sedução no discurso do professor, que envolve Harold e torna os diálogos mais

prazerosos para o espectador.

O diálogo no texto cinematográfico, assim como no teatral, serve para revelar aspectos

das personagens que dificilmente poderiam ter sido notadas ou ter recebido a devida atenção,

além do que, dependendo do gênero da obra, é o que a sustenta. Ao analisar as falas do

professor, não pelo aspecto formal, mas pelos seus significados, foi possível identificar uma

gama de referências que justificam a escolha da personagem para ajudar o protagonista, pois o

conhecimento do mundo ficcional lhe permitia antecipar os desdobramentos da narrativa.

Mesmo se tratando de uma obra moderna, a estrutura da jornada do herói clássico foi mantida.

Em Mais estranho que a ficção essa jornada, própria do gênero épico, também transita

para o romance policial, a tragédia, a comédia, os mitos, e finalmente para as obras em que a

relação entre criador e criatura é evidenciada. Para nossa surpresa, na leitura dessas obras

citadas, sobretudo em Frankestein e Pinóquio, foi possível perceber que a intertextualidade se

manifestou além da simples referência, trazendo toda uma estrutura temática em comum, que

inclui as questões do abandono pelo criador, do confronto entre criador e criatura, da

decadência do criador, da citação como antecipação do desfecho e da obrigatoriedade da

morte do herói como conclusão da estória.

Pela grande variedade de objetos aos quais a análise sobre o filme remete,

contrastando com as delimitação necessária para o trabalho acadêmico, esta pesquisa abre

possibilidade para futuros desdobramentos, dentre eles o aprofundamento da análise no viés

da metalinguagem, a assimilação de outras obras não citadas neste trabalho, e sua aplicação

na sala de aula.

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O viés da educação, que serviu de elemento motivador para esta pesquisa, já tem sido

trabalho há três anos na Escola Estadual Major Arcy, e o filme Mais estranho que a ficção

tem sido utilizado tanto como ferramenta pedagógica para o ensino da intertextualidade, em

que os alunos realizam o que por nós é chamado de uma quest, buscando encontrar

referências como as trabalhadas nesta pesquisa, e após essa atividade o filme serve como

inspiração para um projeto de criação de personagens. Este trabalho prático, da mesma

maneira como aconteceu nesta pesquisa, comprovou que a intertextualidade e seu estudo

podem ser utilizados como formas de incentivo à leitura, visto que alunos e professor sentiram

a necessidade de conhecer obras citadas no filme das quais ainda não eram familiarizados.

Esta análise também traz luz sobre o problema da falta de leitura entre os jovens:

como Barthes afirma, um dos prazeres no texto está na intertextualidade, quando o leitor

reconhece, mesmo inconscientemente, algo já visto. O aluno em idade escolar não tem ainda

um repertório vasto o suficiente para tal reconhecimento e, portanto, sua leitura é menos

prazerosa. Ao trazer para sala de aula textos, filmes, músicas e outros recursos em que a

intertextualidade esteja presente, ou até mesmo possibilitando que os alunos o façam, é

possível formar leitores que busquem a Literatura como forma de prazer, e não uma simples

obrigação escolar, pois como afirma Robert Zajonc (2001), quanto mais se vê, mais se gosta.

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