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Centro de Estudos Superiores da Companhia de Jesus Faculdade de Teologia Edson de Oliveira Silva Purgatório, inferno e céu segundo Renold Blank Os três “novíssimos” compreendidos à luz da esperança escatológica, em vista da superação do medo religioso

Edson Silva

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CAPTULO I

4294

Centro de Estudos Superiores da Companhia de Jesus

Faculdade de TeologiaEdson de Oliveira Silva

Purgatrio, inferno e cu segundo Renold Blank

Os trs novssimos compreendidos luz da esperana escatolgica,

em vista da superao do medo religioso

Dissertao de Mestrado

Orientador: Prof. Dr. Geraldo Luiz De Mori, SJ

Belo Horizonte

2006

RESUMO

As categorias teolgicas purgatrio, inferno e cu continuam despertando interesse entre os telogos. Tambm no mbito da linguagem elas esto presentes, alm de marcarem a religiosidade do povo cristo. H que ressaltar, no entanto, o fato de estes trs novssimos1, como so chamados pela escatologia tradicional, no terem recebido um tratamento adequado. Percorrendo a histria do cristianismo, encontramos interpretaes numa perspectiva individualista e desligada da histria. No que diz respeito ao purgatrio e ao inferno, sobretudo, prevaleceu uma viso pessimista e marcada pelo medo.

Contudo, o clima de renovao teolgica, que se verificou no sculo XX, ajudou a recolocar os novssimos no caminho de uma adequada hermenutica. Vrios telogos se destacaram nesta tarefa. Citamos Renold Blank, cujo pensamento teolgico apresentamos nesta dissertao. Partindo de uma avaliao crtica dos fatores que empobreceram a compreenso dos novssimos, ele procura recuperar o sentido original dos mesmos. Para isso, amplia o horizonte de compreenso a partir do qual pens-los fundamentando sua explicao em trs conceitos: Jesus Cristo, esperana e Reino de Deus.

Especificamente, Renold Blank tem a preocupao de reler as trs categorias luz da esperana escatolgica, em vista da superao do medo religioso. O centro de sua reflexo o amor de Deus que procura sempre a salvao do ser humano. O plano salvfico de Deus tambm envolve a histria e o universo. Desta forma, purgatrio e cu so momentos de um amplo processo de consumao, que pode ser frustrado pela rejeio humana ao amor divino (inferno). Renold Blank procura destacar a dimenso scio-histrico-csmica dos novssimos. Isso est em sintonia com a sensibilidade contempornea, muita ligada historicidade do sujeito e viso holstica do mundo.

Palavras-chave: Escatologia, Reino de Deus, Jesus Cristo, esperana, Deus, amor, salvao, morte, ressurreio, purgatrio, inferno, cu, novssimos, processo, histria, liberdade, converso, perdo, ser humano (mulher, homem, pessoa), dinmico/dinamismo, consumao/plenificao. Agradecimentos:

A Deus;

Ao CES, pela qualidade de ensino;

Ao professor Pe. Carlos Palacio, pela aprovao do projeto desta dissertao;

Ao professor Pe. Geraldo Luiz De Mori, pela orientao e correo deste trabalho;

Ao Pe. Renato Jos Lima, que me acolheu na Parquia Santo de Afonso, proporcionando-me condies para o trmino da dissertao;

s funcionrias: Dulcinia, Zita e Leidiane;

Provncia Brasileira da Congregao da Misso.

NDICE

Resumo...................................................................................................................................1

Palavras-chave.......................................................................................................................2

Agradecimento.......................................................................................................................3

Introduo..............................................................................................................................9

Captulo I - Enfoques teolgicos que conduziram a uma nova reflexo na escatologia............................................................................................................................13

1.1. A viragem antropolgica.............................................................................................14

Introduo.............................................................................................................................14

1.1.1. Valorizao da antropologia na reflexo teolgica.....................................................14

1.1.2. A reflexo antropolgica no Vaticano II.....................................................................16

1.1.3. A reflexo antropolgica na escatologia.....................................................................18

Concluso..............................................................................................................................21

1.2. Valorizao da histria................................................................................................21

Introduo.............................................................................................................................21

1.2.1. Perspectiva histrica na reflexo teolgica.................................................................22

1.2.2. O horizonte histrico na reflexo do Conclio Vaticano II.........................................24

1.2.3. O horizonte histrico no discurso escatolgico..........................................................25

Concluso..............................................................................................................................28

1.3. Nova hermenutica bblica..........................................................................................29

Introduo.............................................................................................................................29

1.3.1. O surgimento de uma nova conscincia hermenutica na teologia.............................30

1.3.2. Nova hermenutica bblica: do movimento bblico ao

Conclio Vaticano II....................................................................................................33

1.3.3. A nova hermenutica bblica na escatologia...............................................................36

Concluso..............................................................................................................................39

1.4. Redescoberta do carter escatolgico do cristianismo.............................................40

Introduo.............................................................................................................................40

1.4.1. Pouca nfase na dimenso escatolgica do cristianismo............................................40

1.4.2. A redescoberta da dimenso escatolgica do cristianismo.........................................43

1.4.3. A escatologia no Conclio Vaticano II........................................................................45

1.4.4. Noo de escatologia adotada.....................................................................................48

Concluso..............................................................................................................................51

Captulo II - Categorias teolgicas fundamentais da escatologia

crist: Jesus Cristo, esperana e Reino de Deus..........................................53

2.1. Jesus Cristo, o Eschaton Logos...................................................................................54

Introduo.............................................................................................................................54

2.1.1. Cristo, acontecimento escatolgico operado por Deus...............................................54

2.1.2. Cristo, acontecimento escatolgico para a humanidade,

a para histria e para o mundo....................................................................................56

a)Cristo, plenitude do ser humano.............................................................................57

b) Cristo, sentido ltimo para a histria....................................................................58

c) Cristo e a plenificao do mundo..........................................................................60

2.1.3. Ressurreio de Jesus Cristo: base da esperana escatolgica....................................62

Introduo.............................................................................................................................62

a) O carter escatolgico da ressuscitao de Jesus..................................................63

b) Relao mtua entre o Cristo glorioso, os ressuscitados e

as pessoas deste mundo........................................................................................65

c) Ressurreio corporal: valorizao da histria e do mundo..................................68

d) Ressurreio corporal e plenificao do universo.................................................71

Concluso..............................................................................................................................73

2.2. A esperana crist........................................................................................................74

Introduo.............................................................................................................................74

2.2.1. Esperana histrica de Israel: contexto compreensivo

da esperana crist.......................................................................................................75

a) Perodo pr-monrquico: as promessas de Deus.................................................76

b) Monarquia: perigo de estagnao da esperana..................................................77

c) Teologia escatolgica dos profetas do pr-exlio:

Deus age na histria.............................................................................................78

d) Exlio: esperana apesar de tudo......................................................................79

e) Ps-exlio: apocalptica.......................................................................................81

f) A esperana no Novo Testamento.......................................................................82

2.2.2. A esperana escatolgica processual, libertadora

e transforma o mundo..................................................................................................84

Concluso..............................................................................................................................87

2.3. O Reino de Deus...........................................................................................................88

Introduo.............................................................................................................................88

2.3.1. Caractersticas do Reino de Deus segundo Jesus Cristo.............................................89

a) O Reino de Deus preferencialmente para os pobres.........................................92

b) O Reino de Deus uma realidade escatolgica que

modifica o mundo presente.......................................................................................92

c) As antigas profecias sobre o Reino de Deus se concretizam

em Jesus Cristo..........................................................................................................93

2.3.2. Caractersticas do Reino de Deus especialmente destacadas

por Renold Blank........................................................................................................93

a) O Reino de Deus um processo histrico...........................................................94

b) O Reino de Deus tem carter dialtico................................................................95

c) O Reino de Deus tem um carter escatolgico....................................................96

Concluso..............................................................................................................................97

Captulo III - Purgatrio, inferno e cu segundo Renold Blank...................................1003.1. Importncia da morte no processo escatolgico......................................................101

Introduo...........................................................................................................................101

3.1.1. Encontro com Deus na morte....................................................................................102

3.1.2. Deciso de f na morte..............................................................................................107

Concluso............................................................................................................................110

3.2. O purgatrio: oferta de Deus para a converso, purificao

dolorosa e evoluo humana na morte............................................................................111

Introduo...........................................................................................................................111

3.2.1. Perspectivas gerais do tema do purgatrio nos livros de Renold Blank...................112

a) Nos livros Viver sem o temor da morte e Nossa vida tem futuro........................113

b) No livro Escatologia da pessoa..........................................................................114

3.2.2. Bases bblicas e histricas do dogma do purgatrio.................................................115

a) Bases bblicas para a doutrina do purgatrio......................................................115

b) Elementos da tradio eclesistica que determinaram a

doutrina do purgatrio.........................................................................................117

3.2.3. Purgatrio: oferta de Deus para a converso, purificao

dolorosa e evoluo humana na morte................................................................................119

a) Purgatrio como oferta de Deus..........................................................................119

b) Purgatrio como converso.................................................................................120

c) Purgatrio como purificao dolorosa................................................................121

d) Purgatrio como evoluo..................................................................................123

3.2.4. Dimenso social do purgatrio: o juzo final............................................................124

Concluso............................................................................................................................126

3.3. Inferno: o terrvel risco da liberdade humana........................................................128

Introduo...........................................................................................................................128

3.3.1. O tema do inferno nos livros de Renold Blank.........................................................129

3.3.2. O inferno na pregao de Jesus e na tradio...........................................................131

a) O inferno na pregao de Jesus...........................................................................131

b) Elementos da tradio da Igreja que determinaram a doutrina sobre o inferno..1333.3.3. Inferno: risco da liberdade humana...........................................................................135

3.3.4. O amor de Deus diante da possibilidade do inferno.................................................139

a) O amor de Deus nos leva a esperar por todos.....................................................141

b) Esperana que leva a superar os infernos deste mundo......................................144

Concluso............................................................................................................................146

3.4. Cu: destino final do ser humano.............................................................................148

Introduo...........................................................................................................................148

3.4.1. O cu nas obras de Renold Blank.............................................................................149

3.4.2. Cu na Bblia e na tradio.......................................................................................150

a) Cu na Bblia.......................................................................................................150

b) Alguns elementos da tradio da Igreja que determinaram a

doutrina sobre o cu............................................................................................152

3.4.3. Caractersticas do cu segundo Renold Blank..........................................................155

a) Vida plena...........................................................................................................155

b) Comunho...........................................................................................................157

c) Realidade dinmica.............................................................................................158

d) Novo relacionamento com o cosmo....................................................................160

e) ntima unio com Deus.......................................................................................161Concluso............................................................................................................................162Concluso geral.................................................................................................................164

Bibliografia........................................................................................................................168

INTRODUO

Fato inegvel: a problemtica escatolgica avana para o proscnio teolgico1. importante destacar este caminhar j que, no passado, em termos de ensino teolgico, a escatologia tinha sido reduzida a mero apndice da Teologia2. em consonncia com esta importncia crescente da escatologia que o presente trabalho tratar da trade constitutiva da escatologia crist: purgatrio, inferno e cu.

Decidimos estudar este tema porque muitas vezes temos sido interrogados sobre ele na pastoral. De fato, um tema que ainda desperta interesse, apesar de no ser bem compreendido por muitos. Por outro lado, percebemos no meio acadmico que estes novssimos3 deveriam receber mais ateno. Falar em purgatrio, inferno e cu d a impresso, segundo alguns, de tocar em questes secundrias, desinteressantes ou mesmo polmicas.

H algo que nos diz que esses trs novssimos andam desacreditados, talvez por seu contedo ter sido apresentado de maneira inadequada. Pretendemos, ao longo destas pginas, explicar o que ocorreu para que assumissem interpretaes contrrias ao sentido correto. Mostraremos que a viso individualista e a-histrica da escatologia tradicional sobre purgatrio, inferno e cu j no encontra ressonncia na mentalidade atual. Sua compreenso tambm foi marcada pelo medo, quando fazia referncia ao purgatrio e ao inferno, e pela a-historicidade, quando dizia respeito ao cu.

Nesta dissertao, procuraremos portanto superar esta compreenso que vigorou durante muito tempo na escatologia, mas que tambm est presente de modo marcante ainda hoje. Tentaremos apresentar uma viso dos novssimos diferente da tradicional. E, para realizarmos esta tarefa, nos inspiraremos no telogo Renold Blank. Este telogo nasceu na Sua em 1941. Cursou Literatura, Filosofia e Psicologia na Universidade de Friburgo. Fez cursos especiais nas Universidades de Montpellier, Dijon e Paris-Sorbona. tambm licenciado em Letras e doutor em Filosofia e Teologia.

Reside no Brasil h vrios anos onde leciona no Instituto Teolgico So Paulo e Instituto Pio XI, ambos em So Paulo. Tem livros publicados na Europa e na Amrica Latina. um telogo de referncia no Brasil no que diz respeito escatologia. Recentemente, contribuiu com a nova coleo Livros Bsicos de Teologia (LBT), escrevendo o livro Esperana alm da esperana juntamente com Angela Vilhena. A coleo foi publicada pelas Paulinas e Ediciones Catequticas y Litrgicas (Siquem).

Nosso trabalho divide-se em trs captulos. No primeiro, mostraremos o horizonte no qual se insere o pensamento do autor que estudaremos. Ou seja, veremos alguns enfoques teolgicos que conduziram a uma nova reflexo escatolgica e que marcaram o pensamento de Renold Blank: a viragem antropolgica, a valorizao da histria, uma nova hermenutica bblica e a redescoberta do carter escatolgico do cristianismo. Este amplo contexto de renovao teolgica influenciou o telogo suo, fazendo com que ele acompanhasse o progresso que se verificou em vrios campos da teologia e, de modo especfico, ajudando-o a se aprofundar na rea da escatologia. Seus estudos neste campo produziram resultados crticos e atualizados, como veremos ao apresentarmos sua viso sobre os novssimos.

No segundo captulo, exporemos trs categorias fundamentais da escatologia crist, elencados pelo prprio Renold Blank: Jesus Cristo, a esperana e o Reino de Deus. Purgatrio, inferno e cu no so realidades escatolgicas isoladas, mas se relacionam com tais categorias que conferem aos novssimos seu verdadeiro sentido. De fato, o ncleo da mensagem de Jesus uma escatologia ligada esperana histrica e ao Reino de Deus. A vontade salvadora do Pai, manifestada na ressurreio de seu Filho, que o homem, sua histria e o cosmo cheguem plena consumao. Neste sentido, purgatrio e cu so momentos de consumao orientados por Deus. O inferno, ao contrrio, significa a frustrao do processo salvfico acarretada pela liberdade humana deturpada.

Finalmente, o terceiro captulo, o maior e o mais importante deste trabalho, tratar de modo especfico do significado e do alcance teolgicos da trilogia purgatrio-inferno-cu na perspectiva de Renold Blank. Perceberemos que o telogo suo no prope uma reflexo totalmente original sobre esta trilogia. Sua inteno primeira interpret-la na tica da esperana, que possibilita superar o medo religioso. Para isso, ele se fundamenta em alguns autores que tambm percorreram este caminho. Nosso autor elabora, no entanto, um pensamento prprio. Iniciaremos o captulo trs mostrando a importncia da morte no processo escatolgico. Como veremos, a morte tem carter de definitividade. Este fato se associa ao que o cu e o inferno produzem no ser humano: um estado irrevogvel.

O cu, como consumao positiva e plena, a resposta de amor ao convite amoroso de Deus. O inferno, sendo definitividade negativa, a possibilidade real da no-salvao, quando o ser humano recusa o amor divino. E o purgatrio o momento intermedirio purificador, que faz com que a pessoa receba a salvao eterna, podendo tambm ser visto como aperfeioamento na morte guiado pelo amor de Deus. Haveremos de ressaltar ainda, nesse captulo, a vontade salvfica universal de Deus em relao ao ser humano, o dinamismo scio-histrico e csmico no qual ela se manifesta e a tenso do j-ainda-no em que a salvao situa o homem.

Nas concluses parciais, aps a exposio de cada novssimo, ou a apresentao de outros assuntos tratados nos captulos um e dois, teremos uma avaliao crtica do pensamento do autor. Encerraremos a dissertao com uma breve concluso apontando algumas perspectivas que este trabalho nos sugere. Desde j destacamos que um dos frutos que pretendemos com ele o aprendizado de uma nova compreenso sobre os novssimos, baseado em Renold Blank e completado por outros telogos. Pensamos que tudo isto nos proporcionar um discurso pastoral mais fiel s intenes bblicas.

A respeito da bibliografia complementar utilizada, reconhecemos que ela composta de poucas obras. Tivemos que pesquisar alguns bons telogos na rea da escatologia. Este estudo foi til para fazermos comparaes com o pensamento de Renold Blank, ajudando-nos a complementar o que ele pensa e a avaliar criticamente sua reflexo. Deixamos transparecer bem o ponto de vista de Renold Blank, como pode ser percebido principalmente nos captulos dois e trs, por isso decidimos recorrer a poucas obras.

A motivao orientadora desta pesquisa uma melhor compreenso do que vem sendo discutido nas ltimas dcadas sobre a escatologia da pessoa. E, mais particularmente, sobre os novssimos: purgatrio, inferno e cu. De modo especfico veremos a contribuio de Renold Blank a esse debate, como j mencionamos acima.

Neste trabalho utilizaremos o mtodo analtico. Ele supe a leitura e apresentao das principais questes estudadas ultimamente na rea da escatologia da pessoa. Tambm, inclui a leitura crtica e a exposio das principais obras de Renold Blank, que tratam igualmente da escatologia pessoal.

A rea em que esta pesquisa se situa a da teologia sistemtica, na linha da interpretao da tradio crist no horizonte atual. Alm disso, ela est dentro de um projeto, para 2005, do professor e orientador Dr. Geraldo Luiz De Mori que tem como objetivo estudar as crenas e representaes da morte e do alm, no imaginrio brasileiro e na histria da escatologioa da pessoa.

CAPTULO I

1. ENFOQUES TEOLGICOS QUE CONDUZIRAM A UMA NOVA REFLEXO NA ESCATOLOGIA

No sculo XX, a teologia crist experimentou uma grande renovao1. Com isto, a escatologia tambm recebeu impulsos rumo a novas perspectivas. Assim, a pesquisa na rea escatolgica produziu bons resultados justamente devido aos novos enfoques teolgicos que esto em sua base. Renold Blank, em sintonia com este clima de renovao, elabora sua reflexo teolgica levando em conta os avanos que a teologia vem adquirindo nos ltimos tempos. Isto pode ser constatado em sua obra de especfico cunho escatolgico2.

A seguir, explanaremos quatro enfoques teolgicos que conduziram a uma nova reflexo na escatologia: a viragem antropolgica, a valorizao da histria, a nova hermenutica bblica e a redescoberta do carter escatolgico do cristianismo. Certamente, poderamos apontar outros elementos significativos que contriburam para a renovao do discurso escatolgico. Centraremos, porm, nossa ateno nos quatro enfoques acima, pois so citados explicitamente por Renold Blank em seus escritos, que so o objeto desta pesquisa, ou esto subjacentes ao seu pensamento escatolgico.

Neste captulo, apresentaremos em linhas gerais o horizonte que nos ajuda a compreender o pensamento escatolgico de Renold Blank. No elaboramos a primeira parte desta dissertao baseando-nos prioritariamente nas obras do telogo suo. Recorremos a autores que tratam dos quatro enfoques teolgicos assinalados, comeando por mostrar como eles emergiram na reflexo da teologia. A seguir, veremos como o Conclio Vaticano II, baliza teolgico-pastoral da Igreja Catlica nas ltimas dcadas, acolheu as contribuies teolgicas em seus ensinamentos. Finalmente, perceberemos como os novos enfoques teolgicos ajudaram a redimensionar o discurso escatolgico e, neste ltimo item, procuremos enfatizar a reflexo de Renold Blank sobre o assunto tratado.

1.1. A viragem antropolgica

Introduo

Uma das caractersticas do mundo moderno o advento da subjetividade. De fato, vivemos numa cultura marcadamente antropocntrica e afirmadora da autonomia humana. Este contexto influenciou a reflexo teolgica, que passou a valorizar a responsabilidade do ser humano no acolhimento da revelao.

O Conclio Vaticano II demonstrou uma maior sensibilidade diante dos problemas e interrogaes do homem hodierno. E, neste sentido, elaborou uma positiva doutrina antropolgica. Ela est presente tambm na renovao da escatologia que destaca, entre outros aspectos, o carter unitrio do ser humano.

1.1.1. Valorizao da antropologia na reflexo teolgica

Na teologia catlica, a assuno de uma perspectiva antropolgica teve seu comeo no princpio do sculo XX. O processo iniciou-se, precisamente, com a controvrsia modernista. O modernismo significou a entrada da razo moderna na pesquisa teolgica da Igreja Catlica, de modo que esta passou a utilizar o mtodo histrico-crtico.

Em 1902, Alfred Loisy, representante polmico do modernismo no seio do catolicismo, publicou Evangelho e a Igreja criticando o telogo evanglico Adolf Harnack por ter reduzido o cristianismo a uma essncia abstrata. Loisy, ao invs, procurou mostrar a historicidade do cristianismo. A esta polmica antiprotestante, segue-se uma querela restrita ao mbito catlico por ocasio da segunda edio do livro de Loisy. E isto desencadeou a crise modernista3.

O modernismo levantou um problema real ao perceber a ruptura entre teologia e vida. Graas ao trabalho dos jesutas da escola teolgica de Lyon-Fourvire, iniciou-se, porm, a partir da dcada de 1930, um trabalho para a necessria renovao do pensamento cristo. As diretrizes para atingir este objetivo eram as seguintes: volta s fontes (Bblia, Padres da Igreja e liturgia), contato com as correntes do pensamento contemporneo e com a vida. Tambm a escola de teologia Le Saulchoir, dirigida pelos dominicanos, foi decisiva no processo de reforma do pensamento catlico levando ao surgimento da chamada nouvelle thologie4. Esses telogos queriam superar a teologia escolstica que no conseguia mais dar respostas satisfatrias aos novos tempos.

A encclica Humani generis (1950), de Pio XII, dispersou o grupo de telogos que estavam envolvidos na renovao teolgica que se seguiu crise modernista. No entanto, o pontificado de Joo XXIII (1958-1963) vai mudar a situao. Apesar das adversidades e das resistncias, as foras da mudana estavam ativas: renovao da eclesiologia (Yves Congar); teologia das realidades terrestres (Jean Danilou e Marie-Dominique Chenu); nova atitude diante do mundo (Pierre Teilhard de Chardin); nova fronteira do ecumenismo (Hans Kng); reviravolta antropolgica (Karl Rahner)5.

Karl Rahner, tendo conscincia de que a teologia f solidria com o tempo (Marie-Dominique Chenu), foi o protagonista da reviravolta antropolgica na teologia catlica. Inicia seu projeto analisando a situao cultural e teolgica de sua poca que, segundo ele, caracterizada pelos elementos: secularismo, mundo pluralista, dificuldade de se fazer snteses nos vrios campos do saber e endurecimento dos conceitos teolgicos.

Estas caractersticas dos novos tempos geram a moderna crise de f. Para enfrent-la, Karl Rahner introduz um novo mtodo em teologia. Trata-se do mtodo antropolgico, tambm chamado de mtodo antropolgico-transcendental. Segundo este mtodo, preciso uma abordagem que parta da experincia pessoal do ser humano e se interrogue sobre a maneira como a verdade crist pode corresponder a ela6. Ou seja, Karl Rahner quer mostrar que para cada ponto doutrinal existe um correspondente motivo antropolgico7. A teologia de Karl Rahner representa vigorosa contribuio no mbito da reflexo catlica. O Vaticano II assumiu oficialmente a perspectiva antropolgica em muito de seus ensinamentos.

1.1.2. A reflexo antropolgica no Vaticano II

O Conclio Vaticano II representou uma verdadeira riqueza para a Igreja, mas que ainda no foi completamente assimilada pelos catlicos. Dentre as diversas questes cruciais que abordou est o problema antropolgico. Diante dele, o Conclio oficializa um novo paradigma para pensar Deus: o antropolgico. O discurso teolgico implica falar sobre o ser humano, uma vez que Deus se revelou como Deus a seres humanos e s podemos compreend-lo a partir da experincia humana e na linguagem humana8.

Entendemos melhor a valorizao da antropologia, por parte do Conclio, situando-o no conjunto do movimento de renovao teolgica ocorrido na primeira metade do sculo XX. Dentre vrios movimentos, citamos os principais: o patrstico e o teolgico (j evocados acima), e o bblico (do qual falaremos mais frente). importante lembrar tambm o contexto da poca em que o Conclio ocorreu.

Na dcada de 1960, a Europa vivia uma euforia de crescimento econmico. E o clima era de otimismo por causa do desenvolvimento observado em vrios setores da vida humana. No entanto, no seu conjunto, o sculo XX foi marcado por pessimismo e desencanto. O Conclio, atento a todo este cenrio, propiciou Igreja uma maior sensibilidade diante das angstias do homem contemporneo, colocando-a diante do desafio de ser um sinal eficaz de salvao no mundo.

O Conclio apresenta o problema soteriolgico como realidade humana. O ser humano necessita ser salvo por causa da prpria condio antropolgica na qual se encontra, que marcada pela fragilidade e pelo limite. A questo salvfica est ligada ao sentido da vida: Aquilo que no tem sentido vivido como tragdia, como mal; rejeitado, evitado ou, simplesmente, ignorado9. O problema da salvao , portanto, antropolgico. Trata-se de pensar como a salvao do ser humano ocorre concretamente, com o auxlio da Igreja, em uma histria marcada por injustias e sofrimentos.

A antropologia conciliar no se encontra de forma isolada em alguns de seus documentos. Segundo o telogo Luiz Carlos Susin10, a antropologia do Conclio Vaticano II poderia ser chamada de antropologia pastoral e ecumnica11. Desde o primeiro documento, a Sacrosanctum concilium, at o ltimo, a Gaudium et spes, o Vaticano II apresenta acentos claramente antropolgicos que so melhores percebidos no conjunto dos seus dezesseis documentos.

De modo especial, a Gaudim et spes, possivelmente o mais ilustrativo nesse sentido, apresenta uma verdadeira reviravolta de ordem antropolgica: a mudana do eclesiocentrismo em favor de um antropocentrismo:

a pessoa humana que deve ser salva. a sociedade humana que deve ser renovada. , portanto, o homem considerado em sua unidade e totalidade, corpo e alma, corao e conscincia, inteligncia e vontade, que ser o eixo de toda a nossa explanao (...), proclamando a vocao altssima do homem e afirmando existir nele uma semente divina (GS, no 3).

A partir deste ltimo documento se entende melhor os anteriores; pois, o caminho percorrido pelo Conclio se esclarece no final do percurso empreendido. A antropologia da Gaudium et spes revela de modo mais explcito a orientao antropolgica de todo o Conclio. Trata-se de uma antropologia otimista, quase maximalista12.

A influncia desta antropologia teolgica tambm se fez sentir no mbito da escatologia. A partir do aparecimento do novo enfoque antropolgico, o edifcio da escatologia se estruturou sobre nova base e se desenvolveu em outras direes.

1.1.3. A reflexo antropolgica na escatologia

O Conclio Vaticano II destaca, em sua doutrina antropolgica, o carter unitrio do ser humano13. Baseado nisto, o novo discurso escatolgico, que vem sendo elaborado nos ltimos tempos, procura superar o modelo dualista. Este, tambm chamado de modelo antropolgico binrio, tem razes numa cultura alheia da Bblia. Sua origem remonta Religio rfica da Trcia, na Grcia antiga (sculo VII a.C)14.

O modelo dualista-binrio foi assimilado pelo pitagorismo (sculo VI a.C.), escola filosfica que se baseia nos ensinamentos do pensador grego Pitgoras (570 a. C. a 496 a. C.). Devido sua concepo espiritualista do homem, que essencialmente alma, este filsofo prope um cdigo moral bastante rigoroso. A virtude o meio mais eficaz de purificao da alma. No entanto, segundo Pitgoras, esta purificao continua atravs de uma srie de reencarnaes.

Esta concepo tambm foi ensinada por Plato (sculo IV a.C.), que chegou a sistematizar filosoficamente tal doutrina. A filosofia platnica se caracteriza pela afirmao de um mundo das idias transcendentes contraposto ao mundo sensvel. Segundo o platonismo, a alma espiritual, preexistente ao corpo, de origem divina e eterna. O corpo, por sua vez, material, sem valor e transitrio.

Nesta mesma linha de pensamento est o sistema do neoplatonismo (sculo II ), que uma doutrina filosfica surgida em Alexandria do Egito com Amnio Saca e cujo filsofo de destaque Plotino. O sistema neoplatnico procura realizar uma sntese entre o pensamento religioso pago-oriental e o de Plato. Acentua o dualismo platnico entre sensvel e inteligvel, entre matria e esprito, entre mundo e Deus.

O gnosticismo, ou gnose (sculos II a IV), foi um movimento filosfico-religioso que, no princpio do cristianismo, espalhou-se no mundo helnico (mundo cultural sincretista dominante no Oriente mdio e na bacia do Mediterrneo; o helenismo possui elementos gregos e orientais). Sua doutrina era muito dualista, vendo a matria como uma degradao. Situava o ideal de vida na existncia como esprito puro. Pregava, por isso, uma espiritualidade de fuga do mundo.

O gnosticismo entrou em debate com o cristianismo. A polmica ocorreu devido s seguintes posies gnsticas, que o cristianismo no aceitava: o corpo no possui nenhum significado religioso-tico; a existncia humana concreta no tem valor; no existe ressurreio corporal; somente a alma importante. Na disputa com a gnose, o cristianismo primitivo acabou sofrendo influncias das concepes dualistas helnicas, veiculadas pelo gnosticismo. Mesmo acentuando, contra a gnose, a ressurreio do corpo, o cristianismo aceitou a primazia da alma. Isto destacado, por exemplo, por Agostinho (sculos IV e V), cujas idias influenciaram vrias geraes de cristos.

Na escolstica (sculos IX a XV), a influncia do modelo dualista-binrio helnico continua. Porm, a primazia da unidade do ser humano permanece. A alma considerada uma parte da pessoa; a sobrevivncia da alma aps a morte ainda no significa a felicidade completa. Toms de Aquino (sculo XIII), um dos maiores representantes da escolstica, utiliza a antropologia de Aristteles para defender a unidade do homem: corpo e alma so dois aspectos de um s indivduo.

Esta intuio de Toms est presente na antropologia teolgica atual. Os estudos contemporneos afirmam que no possvel sustentar o modelo dualista que considera o corpo e a alma como realidades independentes. Ou seja, a pessoa no tem uma alma, como entidade separada, em oposio ao seu corpo. Tampouco possui um corpo que se movimenta de maneira mecnica. Ambas as idias so abstraes; pois, o que existe a unidade humana15. Ao defender esta unidade, a antropologia contempornea se aproxima da concepo da Sagrada Escritura. O pensamento bblico manteve sempre a convico de que o ser humano unitrio e jamais pode ser dividido em dois princpios separados, o corpo e a alma16.

A adoo do modelo antropolgico unitrio, na escatologia contempornea, significou redescobrir caminhos j trilhados pela reflexo da escatologia tradicional. Na verdade, o modelo dualista deveria ser visto apenas como uma chave hermenutica para explicar os contedos da f crist. Um erro da teologia tradicional, segundo Renold Blank, foi identificar a chave com o contedo por ela expresso. De acordo com o telogo suo, a escatologia clssica, ao privilegiar o modelo dual, no valorizou devidamente o homem e suas condies histricas de vida. Ela se deparou com vrios problemas de ordem teolgica, posteriormente superados pela reflexo fundamentada numa antropologia unitria17.

Concluso

No sculo XX, a teologia catlica experimentou um grande desenvolvimento teolgico, sobretudo no mbito da antropologia. Isto, por sua vez, determinou os rumos de um novo pensar no campo da escatologia, que enfatiza a liberdade responsvel do humano, sua unidade indissolvel, bem como as condies concretas de sua existncia. O homem e a mulher se realizam e encontram sua salvao numa histria a ser plenificada por Deus. Esta viso, como veremos no captulo trs, restitui o carter histrico e dinmico aos novssimos.

Esta reviravolta antropolgica foi impulsionada principalmente por Karl Rahner. Este telogo mostrou que o homem, como esprito no mundo, o ouvinte de uma possvel revelao de Deus, sendo concebido como o ente que s se realiza na histria18. Antropologia e histria esto relacionadas. A perspectiva antropolgica na teologia se desenvolveu na medida em que tambm se valorizou a histria, tema que ser tratado a seguir.

1.2. Valorizao da histria

Introduo

A salvao trazida por Jesus Cristo continua na histria, como demonstrao da soberania de Deus. Apesar de, durante muito tempo, o carter histrico do cristianismo ter enfraquecido, v-se hoje a necessidade de a teologia incidir eficazmente na histria. Esta, semelhana do testemunho bblico, atualmente valorizada como lugar salvfico. Entendemos histria como palco onde acontecem as aes humanas e o sentido geral dado a tais aes, que leva a pensar num telos, numa direo e num significado.

A escatologia se relaciona com a histria porque quer ser o significado radical da mesma. Foi nesse sentido que ela foi redescoberta em conexo ltima com a valorizao da histria. Histria e escatologia so duas noes fundamentais para se compreender o pensamento nos ltimos dois sculos. De modo especial, percebe-se a importncia destes conceitos na reflexo teolgica.

Como dissemos, histria e escatologia se preocupam com o sentido: este elemento relaciona intimamente estas duas noes. De fato, a histria tem sentido e possui uma direo, no sendo fruto do acaso. Para o cristianismo, o sentido da histria a salvao em Cristo. A escatologia mostra isso e, alm do mais, ela ajuda a compreender a histria e serve de crtica a esta ltima.

O Vaticano II, indo nesta direo, valoriza as realidades terrestres e procura articular corretamente as categorias salvao e histria. Esta perspectiva histrica tambm est presente na escatologia que, deixando de refletir apenas sobre os ltimos acontecimentos, chama a ateno para a histria, palco da atuao humana e realidade a ser plenificada por Deus.

1.2.1. Perspectiva histrica na reflexo teolgica

A recuperao da histria era a nova tarefa confiada teologia depois da segunda guerra mundial. Aps a tragdia blica, o grande questionamento era o sentido da histria da humanidade. Vrias reflexes surgiram a este respeito. Destaca-se, no campo protestante, a do telogo Oscar Cullmann no livro Cristo e o tempo (1946). A finalidade de sua obra era a de encontrar o elemento central da mensagem crist que, segundo ele, o seguinte: Deus se revela numa histria da salvao. Os acontecimentos salvficos se desenrolam na histria dando-lhe significado. Desenvolvendo sua teologia da histria da salvao, Cullmann afirma que a histria salvfica no uma histria ao lado da histria da humanidade, mas transcorre na histria e faz parte dela19.

O catolicismo sentiu a repercusso da teologia de Cullmann. Tal influncia foi benfica para a teologia catlica, j que esta perdera a dimenso histrica da f crist por causa da neo-escolstica. Esta constatao feita, sobretudo, por Jean Danilou. Ele critica a neo-escolstica por negligenciar o sentido histrico, aspecto presente na patrstica e no pensamento moderno.

A teologia catlica, no que diz respeito ao tema histria e teologia, perguntava se havia continuidade ou descontinuidade entre progresso humano e Reino de Deus. O telogo Lopold Malevez, em 1949, percebeu duas posies distintas com relao a isso. A da teologia escatolgica, que afirmava a descontinuidade entre progresso humano e Reino de Deus, a da teologia encarnacionista, que defendia uma continuidade entre os esforos humanos e o Reino de Deus20.

A maioria dos telogos catlicos tendia para o encarnacionismo. Entre eles, notvel foi a contribuio de Gustave Thils que elaborou a obra Teologia das realidades terrenas. Segundo ele, as realidades histricas so as sociedades humanas, a cultura e a civilizao. A valorizao destas realidades leva a concluir que o cristianismo escatolgico, mas no escatologista e, portanto, no comporta uma viso negativa e pessimista dos valores terrenos21.

O maior representante catlico do encarnacionismo foi o jesuta Pierre Teilhard de Chardin. Em suas obras, ele mostra a convergncia entre Reino de Deus e esforo humano. O Vaticano II, ao tratar das relaes entre Igreja e mundo, deu orientaes que poderiam ser definidas como moderado encarnacionismo. Veremos, agora, como a perspectiva histrica foi assimilada em seus ensinamentos.

1.2.2. O horizonte histrico na reflexo do Conclio Vaticano II

O Vaticano II tem uma postura otimista e positiva com relao ao mundo. Ele se mostra receptivo histria e s realidades terrenas, declarando que vontade de Deus respeitar a autonomia destas realidades:

preciso defender a todo o custo a autonomia das realidades terrenas, quando por autonomia se entende que as coisas criadas e as sociedades tm o direito de ser encaradas em si mesmas e de se organizar com seus valores e suas prprias leis, que se vo aos poucos descobrindo, explicitando e aplicando. uma exigncia atual e legtima, que est de acordo com a vontade do Criador (GS, no 36).

Deus se revela na histria e isto testemunhado pelas Escrituras. Elas mostram que em meio trama da histria, conflitiva, marcada pela provisoriedade e pela contingncia, que o ser humano solicitado a fazer a experincia de Deus. O homem percebe-se necessitado de salvao. Por isso, aberto ao futuro, ao progresso e possibilidade de experienciar o Divino, que prope salv-lo. Com esta linha de pensamento, o Conclio afirma que a salvao acontece na histria, mas no apenas pela histria, mas sim devido ao amorosa de Deus22.

A teologia da histria desenvolvida pelo Vaticano II de orientao encarnacionista porque valoriza a encarnao de Jesus. Baseando-se nesta verdade, dogma fundamental do cristianismo, esclarece-se que a salvao no algo ilusrio ou mtico. Ela acontece na histria humana, onde se desenvolve o projeto salvfico de Deus. Jesus, ao fazer-se homem inserido na histria, assume plenamente a condio humana.

A salvao atinge a pessoa concreta, em sua totalidade, abrangendo as dimenses poltica, econmica e social. Supera-se, assim, uma compreenso soteriolgica meramente individual e metafsica23. A encarnao pede que se valorize o contexto histrico em que o homem e a mulher vivem. J que o mundo lugar de salvao, as preocupaes e os problemas da humanidade so tambm preocupaes e problemas da Igreja24, que est no mundo para servi-lo e ser um sacramento salvfico no meio dele.

A teologia da encarnao desenvolvida pelo Conclio uma crtica cristandade que subordina as realidades terrenas dimenso religiosa. O Vaticano II articula adequadamente o relacionamento entre f e histria, de modo que o aspecto religioso no domine sobre as realidades terrenas. Estas so dotadas de consistncia, bondade e verdade, e possuem suas leis numa ordem que lhes intrnseca (cf. GS, no 36). Partindo do humano e do histrico para se compreender e alcanar o divino, a teologia vista pelo Conclio como uma interpretao da histria25.

A entrada da perspectiva histrica na teologia fez com que a rea escatolgica sofresse uma guinada; pois, a partir deste enfoque, a escatologia recuperou seu carter dinmico e transformar.

1.2.3. O horizonte histrico no discurso escatolgico

Na viso escatolgica de Israel, este mundo e esta histria so o campo da ao salvfica de Deus. neste mundo e no processo histrico que o ser humano encontra a graa divina que salva. Tambm foi dentro de uma perspectiva histrica que Jesus atuou pregando o Reino de Deus. No entanto, o sentido da histria foi enfraquecendo-se no decorrer do tempo devido, em parte, helenizao da linguagem teolgica. Isso causou a perda da dimenso histrico-salvfica, prpria dos textos bblicos. A teologia, abandonando esta dimenso, adotou categorias abstratas e distanciadas da realidade.

Ainda na patrstica, a reflexo escatolgica acentuava a dimenso coletiva e histrica. Mas, durante anos, na teologia catlica e protestante, o eixo principal do discurso escatolgico esteve centrado na reflexo sobre as ltimas coisas, deslocando a ateno para aspectos individuais da escatologia. Da escolstica at o princpio do sculo XX, o enfoque bsico permanece marcado pelo pessimismo diante da histria e do mundo26, e isto influenciou a compreenso dos novssimos, como veremos no captulo trs.

A recuperao da dimenso histrica da escatologia ocorreu, primeiramente, na teologia protestante, embora com um enfoque pessimista, mas que aos poucos foi sendo superado. Os telogos Johannes Weiss, acentuando a dimenso histrica do Reino de Deus, e Rudolf Bultmann, destacando a deciso humana, muito contriburam neste processo de recuperao da dimenso histrica da escatologia27.

Fora do campo especificamente teolgico, outros fatores serviram de questionamento para que a escatologia repensasse suas posies. De acordo com Renold Blank, citamos os seguintes:

a) O fracasso de projetos histricos e sociais: a perda de grandes utopias28. Vrios projetos utpicos, que impulsionaram geraes at a segunda metade do sculo XX entraram em colapso; por exemplo, o Socialismo, que entrou em crise de identidade, e os ideais do Iluminismo, que se evaporaram na propaganda de sistemas totalitrios. As utopias so fonte de esperana. A runa delas faz o mundo afundar em crises de sentido cada vez mais profundas;

b) As novas descobertas cientficas, principalmente ao longo do sculo XX, conduziram a um interesse renovado pelo futuro29. Este se tornou campo de previses e de pesquisas cientficas. Trata-se de um futuro marcado por angstias e indagaes: ser que a terra tem futuro apesar dos desastres ecolgicos? Ser que poderemos superar as injustias, a fome, a guerra, a excluso social e econmica? Ser que a vida tem sentido, apesar das experincias de fracasso, de doena e de morte? Diante de um quadro to complexo, a escatologia tenta dar respostas aos questionamentos dos homens a partir de uma base bblica de esperana;

c) As novas reflexes filosficas que procuraram valorizar a histria e o ser humano30. Slidas bases filosficas ajudaram a superar uma escatologia alienante. Citamos, por exemplo, a contribuio de Maurice Blondel, o qual mostra como na natureza humana h uma vontade querente que impulsiona para a busca do infinito, e Ernst Bloch, filsofo marxista, autor do famoso livro Princpio esperana. Segundo Ernst Bloch, a realizao do mundo e do homem contm carter de promessa e horizontes de possibilidades. A esperana intrnseca a este mundo e impulsiona o homem a criar o reino. Um reino sem Deus, mas que nem por isso deixa de ser uma utopia na histria. Reflexes filosficas como estas formaram o pano de fundo para novas formulaes do discurso escatolgico.

Este contexto influenciou a teologia catlica que passou a adotar uma viso mais otimista e dinmica com relao escatologia. Isto aconteceu quando ela comeou a dialogar com o mundo moderno, deixando-se questionar por seus desafios e buscando dar-lhes solues. Vrios telogos se empenharam nessa direo; por exemplo, Karl Rahner e Pierre Teilhard de Chardin. A nova postura foi assumida pelo Vaticano II, como j vimos. Mas cabe citar aqui uma passagem em que o Conclio mostra a relao entre escatologia e histria:

A esperana de uma nova terra, longe de atenuar, antes deve impulsionar a solicitude pelo aperfeioamento desta terra (...). Por isso, ainda que o progresso terreno deva ser cuidadosamente distinguido do aumento do Reino de Deus, contudo de grande interesse para o Reino de Deus, medida que pode contribuir para organizar a sociedade humana (GS, no 39).

Percebe-se, cada vez mais, que o discurso escatolgico impossvel sem a dimenso histrica. Deus dirige sua palavra a pessoas concretas e em situaes reais. Jesus, por exemplo, ao pregar o Reino de Deus mostrou-o em ntima conexo com a histria. a partir deste pressuposto que podemos formular uma interligao entre histria e escatologia31. A histria caminha rumo a uma plenificao. Por causa disso, podemos ter esperana. Baseada nesta convico, a nova escatologia acentua a dinmica da esperana que incentiva o agir dentro da histria32.

Este horizonte rompe com a perspectiva do discurso tradicional que, geralmente, falava do alm e do fim do mundo, desviando a ateno dos problemas histricos e atuais. Um certo desprezo pelo mundo conduzia alienao, pois esvaziava toda crtica e toda tendncia revolucionria: como este mundo no tem valor, o que interessava era apenas o cu, que era compreendido a-historicamente. Em alguns casos, esse tipo de viso, ao invs de provocar esperana, enchia as pessoas de medo e pessimismo33, sobretudo com seu modo de apresentar o purgatrio e o inferno.

Concluso

A valorizao da histria e das realidades terrenas contrasta com a atitude de desprezo pelo mundo, presente durante sculos no cristianismo. O mundo, que fora considerado lugar de perdio, visto pela teologia atual como lugar da manifestao de Deus. Esta idia est presente na Bblia, sobretudo na pregao e na atuao de Jesus que ensina a historicidade do Reino, j presente no meio de ns.

Deixando-se iluminar pela Escritura, em especial pela encarnao de Jesus, a teologia redescobre a importncia da dimenso histrica da f. E, reconhecendo a existncia do pecado na trama histrica, prega uma espiritualidade encarnacionista. S assim, o mundo pode ser transformado conforme o projeto salvfico do Criador, revelado plenamente em Cristo. Ao encarnar-se, Deus assume a contingncia humana e o mundo, dando-lhes sentido.

A escatologia, que outrora ajudou a consolidar uma imagem negativa do mundo, atualmente est empenhada em elaborar uma mensagem de esperana. Segundo a nova concepo escatolgica, o mundo tem futuro em Deus, pois foi livremente criado por seu amor. Deus, com o ato da criao, estabelece uma relao constitutiva com a criatura. E, em contrapartida, quer a abertura livre do homem ao seu amor; abertura esta que caracteriza a responsabilidade humana diante da histria.

Todo este pensamento mostra uma ruptura com a doutrina clssica da escatologia. O surgimento de uma nova hermenutica bblica, baseada no mtodo histrico-crtico, ajudou neste processo e fez com que a escatologia se aproximasse da experincia histrico-salvfica presente na Bblia.

1.3. Nova hermenutica bblica

Introduo

A interpretao religiosa tradicional do mundo sofreu profundas alteraes nos ltimos decnios. Uma nova hermenutica teolgica surgiu, primeiramente, como exigncia da razo moderna e, depois, devido prpria crise da racionalidade. O desafio de interpretar a f crist, num mundo que anseia por respostas novas, interpelou vrias reas do saber teolgico e, neste tpico, destacaremos o setor bblico.

Os estudos da Bblia foram grandemente beneficiados por uma hermenutica cientfica e crtica, que ajudou a superar uma leitura desligada da realidade. A escatologia, influenciada por esta hermenutica, mudou o tom de suas interpretaes a respeito do sentido ltimo da vida e do mundo. Empreendendo um novo trajeto, procura ressaltar a esperana ao invs de fixar-se, como antigamente, em descries de catstrofes csmicas.

1.3.1. O surgimento de uma nova conscincia hermenutica na teologia

A Igreja, como instituio divina historicizada, est sujeita s vicissitudes do tempo. Tais vicissitudes so imensas no mundo contemporneo34. H profundas transformaes em todos os aspectos da vida, em grande quantidade e intensidade, pondo em processo de crise a civilizao ocidental e, obviamente, a Igreja que est no mundo e existe para o mundo.

Em meio a este contexto perplexo e de crise, a Igreja no pode continuar dando respostas a perguntas que ningum (ou uma minoria) mais faz. O cristianismo sempre se deparou com o problema de inculturar a mensagem da f numa linguagem adequada a cada circunstncia histrica. O grande desafio, ainda hoje, o de pertencer ao seu tempo e agir dentro do paradigma da prpria poca, dando respostas novas s novas perguntas.

Em nossa poca, a Igreja adquire uma conscincia mais aguda do significado da razo moderna. Esta, marcada por uma dinmica tcnico-instrumental e positivista, est em crise. Tambm os paradigmas teolgicos que se articulam a partir da modernidade esto abalados. A crise da civilizao do Ocidente, que repercute tambm no cristianismo, afeta o conjunto da teologia, a saber: sua articulao terica, sua relao interdisciplinar e a pertinncia e o significado de sua produo35.

O dilogo da teologia crist com a modernidade no de hoje. O pensamento cristo descobriu a filosofia hermenutica, deixando-se inspirar por ela. A filosofia hermenutica comeou a despontar no sculo XIX, influenciando diversas reas do saber. Friedrich Schleiermacher, filsofo e telogo protestante, considerado o fundador da hermenutica36 moderna. Para ele, a hermenutica no apenas uma disciplina auxiliar de determinadas cincias, mas deve constituir-se como arte da compreenso em geral. No caso da teologia, ela no pode ser considerada um ramo desta cincia, mas uma dimenso de todo o trabalho teolgico37.

A cincia hermenutica ganhou novo impulso com Martin Heidegger. Segundo este filsofo, a compreenso o modo de ser do homem. A pessoa, em seu ser-no-mundo, constitutivamente compreenso. Da compreenso deriva a interpretao e o discurso38. Numa linha semelhante, vai o pensamento de Hans Georg Gadamer, que elaborou uma ontologia hermenutica afirmando a universalidade ontolgica do compreender, que o carter ontolgico originrio da vida humana39. A grande contribuio de Gadamer, depois assimilada pela teologia catlica, o princpio da histria dos efeitos. Segundo ele:

O homem pertence histria e determinado pela histria. A histria caracteriza o sujeito que compreende, o objeto compreendido e o prprio processo do compreender (...). Um texto (ou um autor ou uma poca) que deve ser interpretado chega sempre at o intrprete mediado por uma srie de interpretaes passadas que constitui a histria dos efeitos (...) a qual determina a pr-compreenso do novo intrprete, mas na qual, por sua vez, vai desembocar a nova interpretao40.

Situando o conhecimento no contexto da condio humana, o mesmo deixa de ser um poder absoluto. Como o sujeito pensante est dentro de uma situao histrico-temporal socialmente estruturada, perde-se a possibilidade de haver um ponto de vista neutro e objetivo da realidade. Assim, o saber descobre-se limitado e a cincia, principalmente de matriz tcnico-positivista, fica despojada do status de ser a nica via de acesso verdade. Com isso, o contraste entre f e razo questionado, obrigando o logos a interrogar-se sobre si mesmo41.

O reconhecimento, por parte da teologia, da complexidade do saber e de sua interpretao fez com que a cincia teolgica tivesse uma nova postura na tarefa de transmitir a f crist. Agora, mais do que nunca, d-se ateno ao sujeito que conhece, interpreta e destinatrio da mensagem. Rudolf Bultmann, sensvel a esta questo, foi o primeiro a servir-se da nova hermenutica, desenvolvida pelos filsofos, e a aplic-la no campo da teologia. Isto pode ser verificado no seu programa de demitizao.

A nova hermenutica ganhou vigor na teologia com Ernst Fuchs e Gerhard Ebeling. Fuchs, discpulo de Bultmann, desenvolveu a questo do princpio hermenutico que o ponto de partida que desencadeia o processo de compreenso. Em se tratando do Novo Testamento, o princpio hermenutico no pode pressupor a f, caso contrrio no haveria uma compreenso cientfica dele. Ele a pergunta a respeito de ns mesmos. Entra aqui o elemento bultmanniano da interpretao existencial. No entanto, um novo aspecto apontado por Fuchs a importncia que a linguagem assume no processo hermenutico. Na teologia, a hermenutica a teoria da linguagem da f42.

Gerhard Ebeling, tambm discpulo de Bultmann, diz que a hermenutica no pode reduzir-se a metodologia da exegese, mas deve expressar uma tarefa de toda a cincia teolgica. A prpria teologia hermenutica. A teologia hermenutica no uma disciplina particular ao lado de outras. Ela manifesta um trao essencial de todo trabalho teolgico43.

A teologia hermenutica protestante influenciou a catlica, sendo recebida inicialmente na teologia bblica de lngua alem nos anos de 1960. Relevante para o catolicismo foi o conceito gadameriano de histria dos efeitos. Ele ressalta que a interpretao bblica no uma tarefa solitria, mas se faz no interior da tradio eclesial. A teoria hermenutica de Gadamer enfatiza que a histria um elemento essencial e no pode ser negligenciada no processo interpretativo.

Isto est de acordo com a assuno do mtodo histrico-crtico44. O aparecimento deste mtodo revolucionou a exegese bblica, possibilitando uma correta compreenso da mensagem das Escrituras. A linguagem bblica nos traz dificuldades, porque no corresponde da cultura ocidental do sculo XXI. O mtodo histrico-crtico permite uma exegese em sintonia com a cultura do homem e da mulher contemporneos, marcados pela exigncia cientfica e pela histria. Surgido na teologia protestante, ele foi tambm utilizado pela teologia catlica, dando nascimento ao movimento de renovao bblica. Posteriormente, ele foi assumido pelo Vaticano II.

1.3.2. Nova hermenutica bblica: do movimento bblico ao Conclio Vaticano II

Diversos movimentos de renovao, no interior da Igreja Catlica, precederam o Conclio Vaticano II, preparando-o para um melhor entendimento das aspiraes da racionalidade moderna, das cincias, sobretudo das cincias humanas, da histria, das cincias lingsticas e hermenuticas, das novas situaes polticas e econmicas. Enfim, tais movimentos ajudaram a Igreja a fazer uma reconciliao com o mundo moderno45.

Como vimos, dentre os movimentos46 que influenciaram o Conclio, destaca-se a Nouvelle Thologie, dos telogos franceses das escolas de Lyon-Fouvire e do Saulchoir. Estes telogos recorrem aos novos mtodos histrico-crticos para a interpretao das Escrituras. Centraremos nossa ateno no movimento bblico que, por sua vez, foi influenciado pela renovao bblica iniciada no protestantismo. Sem controle de nenhum magistrio, os exegetas protestantes empreenderam vrias descobertas bblicas, posteriormente assumidas pela exegese catlica.

Dentre as contribuies protestantes, duas impulsionaram o processo de renovao da exegese escriturstica: a Histoire critique du Vieux Testament (1678) de Richard Simom, que procurou estudar os problemas literrios do Pentateuco, e a hiptese do mdico Joo Astruc que, em 1753, props a teoria das duas fontes, elosta e javista, na composio do Gnesis.

No sculo XIX, aproveitando os progressos anteriores, Julius Welhausen, com um consistente trabalho de crtica literria, datou os documentos que formam o Pentateuco. Alm disso, procurou reconstruir a histria poltica e religiosa de Israel. Convm lembrar ainda o estudo dos gneros literrios feitos por Gunkel e a renovao da pesquisa do Antigo Testamento realizada por Alt, Noth e Gerhard von Rad. No podemos esquecer, enfim, o influxo das descobertas arqueolgicas no desenvolvimento dos estudos bblicos47. Estas pesquisas tiveram larga repercusso na teologia catlica.

Mesmo reconhecendo que, em alguns momentos, o magistrio censurou o novo estudo bblico, sobretudo por receio do modernismo, houve encorajamentos para as novas perspectivas que se abriam. A carta encclica Providentissimus Deus um exemplo eloqente deste fato. Publicada em 1893 por Leo XIII, este documento orienta que a Bblia deve ser defendida contra os princpios racionalistas e isso se far por meio de uma competente cincia bblica48.

Aproveitando a sensibilidade que a Igreja adquirira, graas aos novos estudos bblicos, o padre Marie-Joseph Lagrange, dominicano, foi fazer estudos bblicos na Palestina, onde em 1890 fundou a Escola Bblica de Jerusalm, foco de renovao exegtica da Igreja Catlica. Dois anos depois, criou a Revue Biblique que at hoje mantm alto nvel cientfico nas pesquisas bblicas. No princpio do sculo XX, Lagrange publicou um famoso livro sobre o mtodo histrico: La Mthode Historique, surtout propos de lAncien Testament.

O estudo cientfico da Bblia tambm causou polmica entre os catlicos. Vrios telogos e exegetas, adeptos da renovao, foram acusados de modernistas. Para contornar as tenses, Leo XIII fundou, em 1902, a Pontifcia Comisso Bblica a fim de orientar a pesquisa da Bblia e apoiar os exegetas. Pio X criou a seguir, em 1910, o Pontifcio Instituto Bblico, centro de formao dos futuros professores de Escritura. A encclica de Bento XV Spirutus Paraclitus, de 1920, foi um novo impulso para os exegetas catlicos continuarem com ardor seus estudos49.

O movimento bblico catlico teve como impulso catalizador a encclica Divino afflante Spiritu (1943), de Pio XII, publicada por ocasio do quinqentenrio da Providentissimus Deus. Este documento, reconhecendo o valor das descobertas arqueolgicas e sensvel s novas exigncias pastorais, ajudou a exegese catlica a dar passos gigantescos. Ele orienta como deve ser a metodologia da exegese: referncia aos textos originais da Bblia; emprego da crtica textual; busca do sentido literal do escrito, considerando sua dimenso filolgica, histrica e arqueolgica, para chegar ao seu sentido espiritual; releitura do conceito de inspirao; uso da liberdade, caridade fraterna e fidelidade Igreja no exerccio do estudo bblico. Finalmente, o Papa relembra que a Escritura se orienta vida eclesial50.

No Conclio Vaticano II, um grupo conservador, ligado Universidade Lateranense e contrrio leitura histrico-crtica das Escrituras, pressionou os padres conciliares a tomarem uma posio conservadora por ocasio da discusso do documento sobre a Sagrada Escritura, a Dei Verbum. Mas, felizmente, prevaleceu uma atitude de abertura e acolhimento do caminho exegtico trilhado pelos biblistas anteriores51.

A Dei Verbum considerada a chave hermentica52 de todos os demais textos do Conclio e um dos seus documentos mais importantes, seja pela relevncia dos problemas abordados, seja pelas conseqncias que ela ter no dilogo ecumnico. De fato, o documento tratou de modo aprofundado e consciente categorias fundamentais do cristianismo: revelao53, tradio e inspirao. Essas noes so onipresentes no cristianismo e esto implicadas em qualquer processo teolgico54. A exegese histrico-crtica uma forma de levar a srio a relevncia destas categorias, na tentativa de captar o alcance delas na vida e na reflexo eclesial.

O telogo Hans Kng, ao comentar a importncia da exegese histrico-crtica, pergunta-se sobre a possibilidade de se fazer teologia sistemtica com seriedade dispensando este tipo de exegese:

Se hoje uma exegese a-histrica j est totalmente superada, tambm o est uma teologia dogmtica a-histrica. E se a Bblia precisa ser interpretada de forma mais histrico-crtica, ento com muito mais razo tambm o dogma ps-bblico. Uma teologia que, em vez de questionar criticamente os dados, permanece aberta ou veladamente autoritria, no poder responder s exigncias cientficas do futuro"55.

A reflexo sistemtica sobre a escatologia deve ficar atenta a esta advertncia, se quiser produzir um discurso consistente e em consonncia com os apelos e os desafios atuais.

1.3.3. A nova hermenutica bblica na escatologia

A virada antropolgica, a abertura histria e a descoberta da hermenutica provocaram uma profunda renovao na reflexo teolgica em geral e no pensamento escatolgico em particular. Nas ltimas dcadas, a escatologia crist abriu-se a novos horizontes, tentando dar respostas s angstias do homem moderno, a partir de uma base bblica de esperana. Mas nem sempre foi assim.

De fato, at a dcada de 1960, uma das caractersticas bsicas da reflexo escatolgica catlica a no valorizao do mundo e da histria. Devido a uma m compreenso dos textos apocalpticos, acentuou-se a idia de holocausto csmico para o mundo e o perigo da perdio eterna para a pessoa. Esta viso apocalptica, pessimista e distorcida, gerou um desinteresse dos cristos pelo processo histrico56.

Renold Blank, citando o exegeta Alfred Lpple, observa corretamente que as imagens bblicas, inspiradas na literatura apocalptica, propem explicar a realidade que elas representam57. A partir do momento em que as representaes simblicas deixaram de ser familiares, acabaram coisificadas e tomadas por realidades. Esta leitura objetivante dos textos restringiu consideravelmente a compreenso da mensagem de esperana da Bblia58. Em conseqncia disto, muitas imagens apocalpticas foram menosprezadas por serem consideradas iluses fantsticas, ou geraram medo ao serem associadas a castigos e a holocaustos csmicos.

No obstante, o quadro descrito acima mudou profundamente a partir do momento em que os textos apocalpticos foram interpretados com base em uma nova hermenutica, fundada no mtodo histrico-crtico. Esta hermenutica procurou, por um lado, superar a leitura literal dos textos e, por outro, resgatar a esperana que lhes subjacente. Para Bultmann, um dos grandes exegetas do Novo Testamento, os escritos da Bblia so testemunhos de f redigidos a partir da perspectiva pascal. Por isso, no tem sentido a interpretao historiogrfica ou cronolgica de tais aspectos, j que sua mensagem encontra-se revestida de roupagem mtico-literria. Assim, a Bblia no busca prever historicamente como sero os ltimos acontecimentos59.

A exegese contempornea concorda em dizer que o objetivo fundamental dos textos apocalpticos o de manter a esperana na fidelidade de Deus, apesar de todos os fracassos histricos. As imagens de holocaustos apocalpticos so meramente imagens60. A recepo dos textos apocalpticos61, ao ser influenciada por tendncias gnsticas, acentuou de maneira excessiva e literal a dimenso de holocausto csmico. No entanto, dentro da prpria tradio bblica encontramos, alm da concepo apocalptica, a proftica do pr-exlio. Ela apresenta a histria do mundo como processo dialtico que no conta necessariamente com o fim do mundo62.

De acordo com as pesquisas de Ambroos van de Walle e de Anton Vgtle, estudadas por Renold Blank, em nenhuma parte da Bblia encontramos uma doutrina explcita sobre o fim do mundo. Segundo Ambroos van de Walle, as narrativas que parecem sugerir um fim do mundo querem transmitir a seguinte mensagem:

As vastas descries de catstrofes csmicas no dia de Jav contm a advertncia de contar com Deus que dispe de tal poder (...). Catstrofes csmicas servem apenas como imagem (grifo nosso) para exprimir a onipotncia assustadora de Deus que julga e tudo isto com o objetivo de conseguir a converso do povo e de todas as naes63.

As imagens bblicas de um holocausto csmico so apenas smbolos que intentam exprimir verdades teolgicas: este mundo no se perder no nada; o processo csmico no marcado pelo acaso; a finalidade ltima do mundo Deus: as verdadeiras dimenses escatolgicas do mundo fundam-se na esperana de que o cosmo ser plenificado por Ele64. Com esta nova viso, a escatologia perde seu carter aterrador e torna-se fonte de esperana. Pois, descobre-se, atrs dos processos histricos e csmicos, a presena de um Deus vivo que no quer a destruio deste mundo, mas a sua salvao.

Concluso

A teologia a hermenutica da f: uma linguagem sobre o mistrio de Deus e seu relacionamento com o homem. Trata-se de uma linguagem limitada, dinmica e condicionada pela histria. A teologia no pode pretender substituir-se ao evangelho, dogmatizando suas afirmaes, mas sim interpret-lo nas vrias circunstncias da vida e da histria da humanidade.

Durante sculos, a teologia tradicional utilizou uma linguagem abstrata e metafsica para transmitir os contedos da f crist. Fez isto mesmo quando o contexto pedia um outro de tipo de interpretao. Tal postura foi questionada pela cultura moderna, cuja cosmoviso centrada no em Deus ou na transcendncia, mas no ser humano.

A razo moderna, que cientfica e histrica, interpelou a teologia a dar respostas condizentes com os novos tempos. Houve vrios esforos neste sentido, de modo que a teologia procurou reler as antigas frmulas dogmticas, a fim de mostrar a atualidade do seu contedo.

O esforo de renovao hermenutica compreende, de modo necessrio, o estudo da Bblia, a alma da teologia. No estudo das Escrituras, o mtodo histrico-crtico possibilitou o resgate da dimenso histrico-salvfica, negligenciada pela teologia tradicional e, em seu interior, tambm pela escatologia. A perspectiva aberta por uma nova hermenutica resultou numa escatologia otimista e ligada realidade do mundo.

Assim, confirmamos que a escatologia no tem como misso responder a perguntas sobre o alm, ou elaborar narraes sobre o futuro. Ela no deve relatar o que vai acontecer, mas provocar o ser humano responsabilidade diante do mundo. A escatologia centra seu discurso sobre o Absoluto como fonte de esperana e inspirao para a prtica da justia. Este ncleo essencial da escatologia revestido de imagens que devem ser corretamente traduzidas pela hermenutica bblico-teolgica.

As exigncias de um confronto entre o modo bblico atual de proceder (cientfico e ligado realidade) e o modo sistemtico ficaram mais claras ao longo de todo o processo de renovao teolgica. Este longo caminho fez com que vrios telogos redescobrissem a ntima conexo que existe entre cristianismo, teologia e escatologia. De fato, o cristianismo tem um carter escatolgico que vem sendo estudado pela teologia sistemtica atual.

1.4. A redescoberta do carter escatolgico do cristianismo

Introduo

Ao longo da histria do cristianismo, seu carter escatolgico sempre esteve presente, embora atenuado por outras tendncias do pensamento teolgico. Uma breve travessia histrica nos ajudar a perceber a magnitude da redescoberta da dimenso escatolgica do cristianismo no ltimo sculo. O interesse pela escatologia acabou colocando em crise o prprio ensino escatolgico tradicional. Este, como um sistema bem arquitetado, assistiu ao seu desmoronamento para ceder lugar a uma nova compreenso, mais bblica, mais esperanosa e mais histrica.

1.4.1. A pouca nfase na dimenso escatolgica do cristianismo

O ncleo da mensagem de Jesus uma escatologia ligada esperana e ao Reino de Deus. Foi tambm numa atmosfera assim que viveram as primeiras comunidades crists. O telogo Joo Batista Libnio expressa isto com as seguintes palavras:

Na origem de todo este clima escatolgico est a prpria experincia de Deus feita por Israel no tanto nos fenmenos csmicos, nem numa natureza hierofnica, mas fundamentalmente no acontecer de sua existncia como povo. Israel vive uma religio de promessa, de futuro, escatolgica65.

A Igreja primitiva herdou esta riqueza escatolgica e interpretou-a luz de Jesus, como veremos no segundo captulo. Esta tendncia escatolgica foi conservada durante muito tempo pelos Santos Padres. Tambm nas camadas populares prevaleceu este tipo de vivncia. De fato, no meio popular, margem dos ensinamentos oficiais da Igreja, constata-se a permanncia, ao longo da histria, do clima escatolgico de expectativa iminente, de um reino milenarista ou do final dos tempos66.

Uma mudana de enfoque se d no ensino teolgico sistematizado e erudito. Ainda na Patrstica, houve uma reviravolta na perspectiva escatolgica: uma lenta bifurcao. Inicia-se a formao de um esquema bipartido: escatologia individual e escatologia coletiva. A escatologia de alguns Padres comeou a tomar este rumo devido principalmente ao processo de helenizao, em especial sob a influncia da filosofia neoplatnica. Acrescenta-se a isso o desenvolvimento de uma literatura apocalptica, por parte de vrios Padres, na qual mencionavam castigos de Deus (por exemplo, Tertuliano e Lactncio).

O novo contexto scio-poltico, em que o cristianismo se encontrava, tambm teve influncia na mudana de viso: a passagem da Igreja dos mrtires religio oficial do Imprio Romano. Do ponto de vista missionrio e da espiritualidade, isto acarretou um processo de desescatologizao da mensagem crist. O cristianismo, deixando a escatologia margem da vida, foi perdendo sua eficcia mobilizadora e revolucionria dentro da histria. No que diz respeito reflexo teolgica, surge uma escatologia em que o aspecto coletivo, outrora presente na tradio de Israel, desloca-se para a problemtica da imortalidade da alma, provocando uma virada interiorizante, individualizante, e de certo modo, espiritualizante67.

No incio da poca moderna, a civilizao ocidental vive num clima de ameaas apocalpticas transmitidas pela pregao, pelo teatro religioso, por livros litrgicos, por textos, por impresses grficas e outras representaes iconogrficas. A todas essas ameaas era comum a idia de um Deus vingativo. Ela est presente tambm nos textos litrgicos em uso at a reforma do Vaticano II. Atravessando sculos, tal idia influenciou geraes crists, impregnando-as do medo escatolgico.

Dentro deste clima de temor, destaca-se a figura do diabo. Os sculos XV ao XVIII foram, na Europa, particularmente dominados por uma verdadeira histeria no que diz respeito a esta figura que encarna o mal. Paralelamente a este tema do diabo, ganha importncia a questo do inferno. Chama a ateno o fato de que esta possibilidade real foi apresentada de maneira aterradora, revelando nisto uma pedagogia de ameaa com todo o seu contedo de vingana68.

Do ponto de vista dogmtico, o acento na escatologia da pessoa encontra seu ponto alto em 1336 com a Constituio Benedictus Deus de Bento XII. Este texto afirma que, imediatamente aps a morte, as almas ou vo para o cu ou para o inferno. Esta doutrina praticamente constituiu a espinha dorsal de toda a sistematizao posterior da escatologia catlica at meados do sculo XX.

Na lenta e progressiva bifurcao, entre escatologia da pessoa e escatologia coletiva, prevaleceu um interesse maior pela primeira. Foram decisivos neste processo a influncia da filosofia helnica dualista e do gnosticismo, alm dos tratados clssicos De novissimis, elaborados na escolstica (sculos XII e XIII) e da teologia iluminista (sculo XVIII), com seu acento na dimenso da moral pessoal, que levou a uma compreenso individualista do Reino de Deus.

No fundo, o enfoque bsico de toda esta escatologia era o pessimismo diante do mundo e a preocupao com a salvao individual. Trata-se de uma concepo escatolgica de tendncia esttica que vigorou at a neo-escolstica do sculo XX69, embora, j no sculo XIX, tenha comeado a ser questionada, como mostraremos a seguir.

1.4.2. A redescoberta da dimenso escatolgica do cristianismo

Um dos traos caractersticos da teologia do sculo XX a redescoberta da dimenso escatolgica do cristianismo70. Esta redescoberta teve incio no meio protestante. O que motivou estes novos estudos foi o debate sobre a expectativa neotestamentria do Reino de Deus e a protelao da parusia. A discusso foi suscitada depois que Albrecht Ritschl publicou sua obra sobre o Reino de Deus, que o reduzia a uma entidade moral.

No movimento de protesto contra esta compreenso, destacam-se Johannes Weiss e Albert Schweitzer. Eles sustentam a tese de que a histria do cristianismo est marcada pela crise provocada pela no realizao da parusia, que Jesus anunciara iminente. Estes dois telogos afirmam a historicidade do Reino e o fato de as comunidades crists primitivas viverem sob um contexto declaradamente apocalptico.

No entanto, a nfase na dimenso histrica do Reino levou a uma posio unilateral; como por exemplo, a escatologia conseqente que procura tirar as conseqncias histricas que derivam de uma teologia interpretada de modo conseqencialmente histrico. Esta radical historicizao escatolgica chega, na verdade, a eliminar a prpria escatologia71.

Karl Barth, com sua teologia dialtica, vem reafirmar o carter escatolgico do cristianismo. Mas, sua compreenso da escatologia no valoriza devidamente a histria. De fato, a experincia da primeira guerra mundial deixou no telogo um sentimento de pessimismo com relao ao mundo e aos projetos da razo moderna. Ele diz ento que o eschaton no um evento temporal, mas sim qualitativo. A escatologia a prpria transcendncia de Deus que pe em crise o temporal: Deus irrompe na histria para julg-la. Para Barth, a escatologia deve ser o tema central da reflexo teolgica. Ele chega a sugerir a escatologizao de toda a teologia: Um cristianismo que no todo e por tudo e sem ressalvas escatologia, nada tem a ver com Cristo72.

Dentro deste intenso clima de debate escatolgico, temos o pensamento de Bultmann. Ele prope trazer para dentro da condio humana, atravs da deciso pessoal, a fora do escatolgico. Contrapondo-se a Barth, ele procura passar de uma teologia essencialista e esttica a uma teologia que acentua a responsabilidade do indivduo. Para Bultmann, o momento presente se torna a situao escatolgica decisiva.

Em meados do sculo XX, o telogo evanglico Jrgen Moltmann apresentou um articulado projeto de teologia escatolgica entendida como escatologia histrica. Para ele, o conceito de esperana central para se interpretar a escatologia: Escatologia idntica a (sic) doutrina crist73. Cristo, diz ele, o fundamento da esperana crist. Noo-chave da pregao de Jesus, o Reino de Deus, tambm centrada na esperana. Para Moltmann, portanto:

O cristianismo total e visceralmente escatolgico, e no s a modo de apndice (...). O escatolgico no algo que adere ao cristianismo, mas simplesmente o meio em que se move a f crist, aquilo que d o tom a tudo que h nele. Como a f crist vive da ressurreio do Cristo crucificado, ela no pode ser simplesmente parte da doutrina crist. Ao contrrio, toda a pregao crist tem uma orientao escatolgica74.

Estas palavras de Moltmann revelam a ntima conexo entre a escatologia e o evento Cristo. Para elaborar sua cristologia escatolgica, ele recorre s noes veterotestamentrias de promessa e esperana que, segundo ele, esto presentes no Novo Testamento. De fato, o evangelho tem carter promissrio: a ressurreio de Cristo ratifica as promessas precedentes, mas ela mesma promessa universalizada a respeito do futuro da humanidade75.

Mais tarde, Moltmann desenvolve as linhas de uma escatologia cristolgica. Pois, uma cristologia puramente escatolgica poderia levar ao entusiasmo e a saltar o movimento da encarnao. Uma escatologia cristolgica, ao invs, confere profundidade esperana. Com este passo, Moltmann adere teologia poltica. Esta tem suas razes na teologia da esperana, mas esta ltima ganha concretude histrica com um projeto poltico.

Coube a Johann Baptist Metz, telogo catlico, desenvolver um programa de teologia poltica no qual se acentua a responsabilidade humana dentro do processo histrico. Para ele, a realizao das grandes promessas escatolgicas (reino de paz, de justia, de verdade e de amor) no depende s do agir de Deus, mas tambm da prtica social e poltica dos homens76.

Todo este desenvolvimento escatolgico, que comeou com a teologia protestante, foi assimilado criticamente pelo catolicismo. Como mostraremos a seguir, no Conclio Vaticano II temos condensadas as grandes linhas da doutrina escatolgica da Igreja Catlica.

1.4.3. A escatologia no Conclio Vaticano II

Entre os documentos do Conclio, a Lumen gentium consagrou um captulo especial escatologia. E a Gaudium et spes fez significativas referncias a ela. A escatologia da Lumen gentium est sistematizada no captulo VII, cujo ttulo ndole escatolgica da Igreja peregrina e sua unio com a Igreja celeste. Este captulo se caracteriza pelo uso da linguagem bblica com aluses ou citaes do Novo Testamento. Isto mostra, mais uma vez, a valorizao da Bblia no tratamento do problema escatolgico.

O nmero 48 (ndole escatolgica da nossa vocao), apresenta a vocao crist numa perspectiva eclesiolgica, articulando a obra salvfica de Cristo e o caminho histrico da Igreja at a consumao final. Esta impostao eclesial aponta o carter coletivo e universal da escatologia. Com isto, modifica-se sensivelmente a tendncia presente nos documentos do magistrio da Idade Mdia que, devido a circunstncias particulares, enfatizaram a escatologia individual77.

A Igreja, segundo a Lumem gentium, alcanar sua plenitude com a ltima vinda de Jesus. Neste contexto, o Conclio fala tambm do destino definitivo de cada ser humano, cuja morte um momento escatolgico decisivo. Abrem-se, neste instante, as possibilidades de salvao ou de condenao. Tambm a ressurreio final e a parusia do Senhor so recordadas no nmero 48 do documento78. O nmero 49 se refere comunho da Igreja celeste com a Igreja peregrina e afirma, a este respeito, que todos os que so de Cristo, tendo seu Esprito, formam uma s Igreja e nele esto unidos entre si (cf. Ef 4, 16). Por isso, a unio dos que esto na terra com os irmos que adormeceram na paz de Cristo, de maneira nenhuma se interrompe (LG, no 49).

Vale a pena ressaltar, novamente, a concepo unitria que o Conclio tem do ser humano: os irmos que adormeceram na paz de Cristo; ou seja, aqueles que participam da viso beatfica so os discpulos de Jesus e no s suas almas79. Temos aqui um distanciamento com respeito ao tema clssico da imortalidade da alma.

O segundo documento conciliar que trata da escatologia a constituio pastoral Gaudium et spes. Nele, a questo escatolgica no vem de modo sistematizado como no anterior. No captulo I da Gaudium et spes, que fala de A dignidade da pessoa humana, aparecem como questes escatolgicas a referncia imortalidade da alma80 e a ressurreio corporal81.

Outras afirmaes se encontram no captulo III intitulado A atividade humana no mundo. O nmero 38, deste captulo, reala que a esperana escatolgica em Cristo ressuscitado desperta no homem o desejo de testemunh-lo no mundo:

Constitudo Senhor pela sua ressurreio, Cristo (...) atua ainda agora, pela fora do Esprito Santo, nos coraes dos homens; no suscita neles apenas o desejo da vida futura, mas (...) fortalece tambm aquelas generosas aspiraes que levam a humanidade a tentar tornar a vida mais humana e a submeter para esse fim toda a terra (GS, no 38).

Em ntima conexo com o tema deste item 1.4.3., que trata da dimenso escatolgica do cristianismo, o Conclio afirma o valor escatolgico da atividade humana no mundo, com as seguintes palavras:

A expectativa da nova terra no deve (...) enfraquecer, mas antes ativar a solicitude em ordem a desenvolver esta terra, onde cresce o Corpo da nova famlia humana, que j consegue apresentar certa prefigurao do mundo futuro (...). Todos estes bens da dignidade humana, da comunho fraterna e da liberdade, fruto da natureza e do nosso trabalho, depois de os termos difundido na terra, no Esprito do Senhor e segundo o seu mandamento, voltaremos de novo a encontr-los, mas ento purificados, quando Cristo entregar ao Pai o reino eterno e universal (GS, no 39).

A esperana crist histrica, como veremos de modo aprofundado no captulo segundo. Ela supe uma misso neste mundo, a fim de torn-lo mais conforme aos desgnios de Deus. Embora aquilo que os homens e as mulheres fazem deva ser purificado e transfigurado, segundo Deus e cumprindo seu mandamento, tudo isso tem um valor permanente82. Esta afirmao vem, de novo, lembrar a liberdade responsvel do ser humano. Vencendo uma espiritualidade de fuga do mundo, a nova concepo escatolgica, adotada pelo Conclio, incentiva um agir esperanoso e transformador na histria. Esta viso renovada, que adotaremos neste trabalho, ser aprofundada no item seguinte.

1.4.4. Noo de escatologia adotada

Apesar de ser uma realidade vivida ao longo dos sculos, o termo escatologia foi proposto pelo telogo luterano Abrahan Calov em 1686, na obra Sistema Locorum Theologicorum. No contexto catlico, o termo aparece na publicao Biblische antropologie (1807-1810), de Oberthur. A palavra composta de dois termos gregos: escathon (ltimo) e logos (discurso). Literalmente, significa a reflexo teolgica sobre as ltimas realidades do ser humano e da histria.

A inteno de Renold Blank, aderindo reflexo de vrios telogos catlicos e protestantes, mostrar o relacionamento que existe entre escatologia e histria, como vimos anteriormente no item 1.2. S assim, a escatologia retomar seu potencial transformador. Percebemos, no entanto que, por muitos sculos, a escatologia tradicional destacou muito as ltimas coisas vindouras: os eventos que irromperiam no fim dos tempos, sobre o mundo, a histria e os seres humanos. Pelo fato de tais acontecimentos terem sido compreendidos somente como futuro longnguo, eles perderam sua significao orientadora, crtica e animadora83.

Mas, os vrios enfoques, apresentados neste captulo, conduziram a uma nova reflexo na escatologia. Neste trabalho adotaremos a noo de escatologia que reflete antes sobre o ltimo de todas as coisas que sobre as ltimas coisas; sobre o Eschaton (ou melhor ainda o Eschatos) que sobre as Eschata84. Pois, somente a partir da escatologia j que a escatologia ainda no se esclarece e ganha um maior alcance. Alm disso, esta noo histrica, salvfica, esperanosa, cristolgica, dialtica, processual e mais prxima das razes bblicas.

Esta compreenso da escatologia, que est de acordo com o pensamento de Renold Blank, que nortear nossa compreenso dos novssimos. Em termos especficos, trata-se de evitar percorrer o caminho da escatologia tradicional que, muitas vezes, elaborou uma geografia do alm, uma futurologia, ou ainda uma fsica da eternidade, j que fora construda com base nos conceitos cosmolgicos de espao e de tempo, utilizando uma linguagem dualista. A teologia atual, porm, busca recuperar o elemento de esperana e de historicidade, num esforo de retornar intuio escatolgica de Jesus e sua pregao do Reino de Deus.

Ainda hoje, no meio popular, encontramos uma viso negativa a respeito do destino ltimo do ser humano (mas, claro, no justo generalizar). Por exemplo, existe a imagem de um Deus vingativo e o terror do que vai acontecer depois da morte. um medo provocado de maneira indireta por oraes, nas quais se suplica a misericrdia divina. Tambm um medo incitado de maneira direta por toda uma doutrina de ameaa que foi interi