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42 Cadernos Espinosanos XVII 348)), aos estados de desenvolvimento das várias formas de individualidade (“apesar de Espinosa não ter desenvolvido em detalhe sua concepção dos diferentes estágios dos [seres] animados, só com muita ingenuidade não se veria que ele estava, na prática, distinguindo os estágios que Leibniz descreve” (Hicks 8, p. 351)), e enfim, à relação que liga o indivíduo finito a Deus (“Ao desenvolver sua teoria das mônadas, Leibniz estabeleceu como seu alvo resgatar a filosofia daquela destruição da existência individual que a ele parecia estar implicada na metafísica de Espinosa. Contrapondo- se a Espinosa, ele assumiu como sua a posição de que apenas o indivíduo enquanto tal era o verdadeiramente real. Mas se alguém escruta mais de perto a concepção de individualidade, tal como foi desenvolvida por Leibniz, terá logo razões para suspeitar que a concepção não agüentará o peso que ele gostaria de impor-lhe. A característica absolutamente essencial à individualidade, como ele a vê, é a limitação, negação, passividade. Energia ou atividade puras e ilimitadas pareciam [...] a Leibniz incompatíveis com a noção de ser real. O que quer que seja, deve ser limitado” (Hicks 8, p. 356)). 10 Lidei com tal questão em “Ontologia della relazione e materialismo della contingenza” (Morfino 17). 11 “(…) Afora esses três, não reconheço nenhum outro afeto primário. De fato, demonstrarei, no que se segue, que desses três provêm todos os outros.” (Espinosa 4, III, prop. 11, esc., p. 149; trad. it., p. 181; ed. bras. p. 179). 12 A relação mesma que liga um sujeito e um objeto não tem qualquer universalidade, como sublinha o próprio Espinosa: “Homens diferentes podem ser afetados diferentemente por um só e mesmo objeto, e um só e mesmo homem pode, em momentos diferentes, ser afetado diferentemente por um só e mesmo objeto.” (Espinosa 4, III, prop. 51, p. 178; trad. it., p. 208; ed. bras., p. 221). 13 Para uma detalhada análise desta sobredeterminação, cf. ainda o meu “Ontologia della relazione e materialismo della contingenza” (Morfino 17, p. 140-141). 14 Sobre a multidão como trama complexa de temporalidades, cf. o meu “Temporalità plurale e contingenza: l’interpretazione spinoziana di Machiavelli” (Morfino 18). 43 Estamos todos malucos… O sujeito moderno e a falha geológica * Eduardo Grüner ** Resumo: O artigo visa questionar as posições opostas do Sujeito Pleno cartesiano e do não-sujeito pós-moderno, que pretende criticar as razões do primeiro. O que se omite nessa contraposição é uma corrente de auto-crítica interna à própria modernidade e que permite pensar um Terceiro Sujeito, trágico, falho, produto da violenta história que o faz nascer. Palavras-chave: modernidade, pós-modernidade, Sujeito Pleno, sujeito trágico. Esta mesa muito pouco redonda chama-se, segundo entendi, Filosofia e Ensaio. O conceito de ensaio, como se sabe, é uma criação francesa. Mais especificamente, de Michel de Montaigne, que foi o primeiro em usá-lo, em 1580. Talvez, justamente por isso, seja praticamente um invento argentino – não achem vocês que há na Argentina somente um “afrancesado”, são muitos; ou pelo menos, existe uma certa maneira de praticar a relação entre o ensaio literário, a filosofia e a política que é uma tradição apaixonadamente argentina. Mas não se preocupem: estamos em San Juan, então não vou falar de Sarmiento. Nem tampouco, digamos, de Martinez Estrada. Nestas mesmas jornadas tem gente muito mais capacitada do que eu para falar desse verdadeiro invento nacional que é o ensaio filosófico-político argentino. Limito-me a constatar, isso sim, que o ensaio filosófico argentino sempre teve clareza sobre seu irrenunciável caráter político. Sempre teve clareza, para parafrasear um clássico, de que a filosofia é política concentrada no pensamento e no discurso. Mas, repito, não vou falar disso. Vou falar um pouquinho, só para começar, do criador de nosso conceito, Michel de Montaigne. Não sei se se extraíram as conclusões filosóficas suficientes do fato de que Montaigne fora um dos primeiros e, certamente, dos mais virulentos, críticos da * Palestra apresentada no Congresso Internacional de Filosofia que aconteceu em San Juan, Argentina, em Julho de 2007. Tradução de Mariana de Gainza. ** Professor Titular de Antropologia da Arte, na Faculdade de Filosofia e Letras (Universidade de Buenos Aires) e de Teoria Política na Faculdade de Ciências Sociais (Universidades Buenos Aires).

Eduardo Gruner -o Sujeito Moderno e a Falha Geológica

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    Cadernos Espinosanos XVII

    348)), aos estados de desenvolvimento das vrias formas de individualidade (apesar

    de Espinosa no ter desenvolvido em detalhe sua concepo dos diferentes estgios dos [seres] animados, s com muita ingenuidade no se veria que ele estava, na prtica, distinguindo os estgios que Leibniz descreve (Hicks 8, p. 351)), e enfim,

    relao que liga o indivduo finito a Deus (Ao desenvolver sua teoria das mnadas,

    Leibniz estabeleceu como seu alvo resgatar a filosofia daquela destruio da existncia

    individual que a ele parecia estar implicada na metafsica de Espinosa. Contrapondo-se a Espinosa, ele assumiu como sua a posio de que apenas o indivduo enquanto tal era o verdadeiramente real. Mas se algum escruta mais de perto a concepo de individualidade, tal como foi desenvolvida por Leibniz, ter logo razes para suspeitar que a concepo no agentar o peso que ele gostaria de impor-lhe. A caracterstica absolutamente essencial individualidade, como ele a v, a limitao, negao, passividade. Energia ou atividade puras e ilimitadas pareciam [...] a Leibniz incompatveis com a noo de ser real. O que quer que seja, deve ser limitado (Hicks 8, p. 356)).10 Lidei com tal questo em Ontologia della relazione e materialismo della contingenza (Morfino 17).

    11 () Afora esses trs, no reconheo nenhum outro afeto primrio. De fato, demonstrarei, no que se segue, que desses trs provm todos os outros. (Espinosa 4, III, prop. 11, esc., p. 149; trad. it., p. 181; ed. bras. p. 179).

    12 A relao mesma que liga um sujeito e um objeto no tem qualquer universalidade, como sublinha o prprio Espinosa: Homens diferentes podem ser afetados diferentemente por um s e mesmo objeto, e um s e mesmo homem pode, em momentos diferentes, ser afetado diferentemente por um s e mesmo objeto. (Espinosa 4, III, prop. 51, p. 178; trad. it., p. 208; ed. bras., p. 221).

    13 Para uma detalhada anlise desta sobredeterminao, cf. ainda o meu Ontologia della relazione e materialismo della contingenza (Morfino 17, p. 140-141).

    14 Sobre a multido como trama complexa de temporalidades, cf. o meu Temporalit plurale e contingenza: linterpretazione spinoziana di Machiavelli (Morfino 18).

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    Estamos todos malucosO sujeito moderno e a falha geolgica*

    Eduardo Grner**

    Resumo: O artigo visa questionar as posies opostas do Sujeito Pleno cartesiano e do no-sujeito ps-moderno, que pretende criticar as razes do primeiro. O que se omite nessa contraposio uma corrente de auto-crtica interna prpria modernidade e que permite pensar um Terceiro Sujeito, trgico, falho, produto da violenta histria que o faz nascer.Palavras-chave: modernidade, ps-modernidade, Sujeito Pleno, sujeito trgico.

    Esta mesa muito pouco redonda chama-se, segundo entendi, Filosofia e Ensaio.

    O conceito de ensaio, como se sabe, uma criao francesa. Mais especificamente, de

    Michel de Montaigne, que foi o primeiro em us-lo, em 1580. Talvez, justamente por

    isso, seja praticamente um invento argentino no achem vocs que h na Argentina

    somente um afrancesado, so muitos; ou pelo menos, existe uma certa maneira de

    praticar a relao entre o ensaio literrio, a filosofia e a poltica que uma tradio

    apaixonadamente argentina. Mas no se preocupem: estamos em San Juan, ento no

    vou falar de Sarmiento. Nem tampouco, digamos, de Martinez Estrada. Nestas mesmas

    jornadas tem gente muito mais capacitada do que eu para falar desse verdadeiro invento

    nacional que o ensaio filosfico-poltico argentino. Limito-me a constatar, isso sim,

    que o ensaio filosfico argentino sempre teve clareza sobre seu irrenuncivel carter

    poltico. Sempre teve clareza, para parafrasear um clssico, de que a filosofia poltica

    concentrada no pensamento e no discurso. Mas, repito, no vou falar disso. Vou falar um

    pouquinho, s para comear, do criador de nosso conceito, Michel de Montaigne.

    No sei se se extraram as concluses filosficas suficientes do fato de

    que Montaigne fora um dos primeiros e, certamente, dos mais virulentos, crticos da

    * Palestra apresentada no Congresso Internacional de Filosofia que aconteceu em San Juan, Argentina, em Julho de 2007. Traduo de Mariana de Gainza.** Professor Titular de Antropologia da Arte, na Faculdade de Filosofia e Letras (Universidade de Buenos Aires) e de Teoria Poltica na Faculdade de Cincias Sociais (Universidades Buenos Aires).

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    Eduardo Grner

    colonizao de Amrica, e por extenso, do racismo propriamente moderno (e o

    racismo, embora no tenhamos tempo de desenvolver esta idia agora, tambm um

    invento moderno), que emergiu como efeito desse choque de culturas. E foi tambm

    um dos primeiros em utilizar as sociedades selvagens como espelho deformador para os

    muitos males que percebia nas civilizadas. Mas o fez de uma maneira muito diferente

    daquela do muito posterior Rousseau de A Origem da Desigualdade ou da do Voltaire

    das Cartas Persas, ou da de qualquer outro dos cultores do mito do bom selvagem. Estes,

    precisamente por sua idealizao da sociedade selvagem, a tinham, por assim dizer,

    despojado de sua corporalidade particular e concreta, para faz-la entrar no equivalente

    geral do paradigma ideolgico, essa moeda de troca do Conceito. Com isso e alm de

    suas insuperveis intenes, que so as que pavimentam o caminho que leva aonde j

    sabemos no faziam mais do que repetir, do lado progressista, o gesto mais primrio

    do racismo. Porque inevitvel: eu posso me representar o Outro como uma besta-fera

    ou como um anjo e, sem dvida, para o Outro no ser o mesmo; mas em ambos os casos,

    o Outro no humano.

    Montaigne, em sua crtica, faz algo muito diferente. Por exemplo, num dos seus

    Ensaios, fala do canibalismo. Cristvo Colombo que tambm chegou ao que logo se

    chamaria Amrica por ensaio, mas sobretudo por erro batizou os primeiros indgenas

    que encontrou, pertencentes cultura arawak, como caribes. Dai derivou, por similitude

    fnica, a palavra canibal, como sinnimo de antropfago, ou comedor de carne humana.

    Pode encontrar-se entre parnteses uma referncia pardica sobre isto no personagem

    de A Tempestade de Shakespeare chamado Caliban um anagrama bvio de canibal.

    Seja como for, o que certo que os arawak no so canibais, pela razo simples de que

    no existe uma coisa tal como o canibalismo: nenhuma cultura se alimenta de carne

    humana; o que existe, sim, ou existia em algumas culturas, includa a arawak, era a prtica,

    muito ocasional e fortemente sacralizada, da antropofagia ritual exercida com alguns

    prisioneiros, e s vezes com o prprio chefe local. Mas o tpico procedimento fetichista de

    confundir a parte pelo todo gerou, no pensamento racista da poca, a equivalncia geral

    entre selvagem e canibal. Ora, Montaigne, que adverte perfeitamente a mistificao,

    a faz girar em cento e oitenta graus, para dizer que o verdadeiro canibalismo uma

    potencialidade permanente no prprio corao da chamada civilizao, que a que

    realmente est devorando as culturas selvagens. As conseqncias filosficas dessa

    metfora, dizamos, so enormes. Para comear, o que Montaigne diz e com isso

    pareceria adiantar-se criticamente mais de quatrocentos anos a todas as discusses atuais

    sobre o multiculturalismo e coisas do tipo que o que a civilizao ocidental chama

    de Outro, alheio, no verdadeiramente tal, mas a parte maldita da prpria cultura

    ocidental, que ela no quer reconhecer como produto de sua prpria selvageria. Quer

    dizer: no uma radical alteridade, no uma espiritual transcendncia, mas sim uma bem

    material tenso imanente sua prpria lgica, ao seu prprio logos.

    Mas, por enquanto, nos interessa outro momento da metfora. Ao escolher

    como referncia dela o canibalismo, Montaigne e possivelmente por isso foi sempre

    considerado um ensasta, e no um filsofo tradicional no est no registro do

    puro Conceito abstrato, mas no do limite que o corpo pe ao Conceito. Ainda mais: o

    corpo despedaado, pelos dentes, pelas garras, pela fauce e o estmago dos selvagens

    colonialistas. Ou seja: algo assim como um sculo antes de Descartes, Montaigne est

    filosofando sobre um sujeito moderno bem diferente ao da incontaminada nuvem

    do cogito. E isso me permite chegar de certo modo contra minha prpria vontade ao

    que no ter outra alternativa do que ser, no digo o tema, mas o motivo central destas

    notas.

    Devemos voltar para o centro da questo, fazer dela a questo central: a questo

    do sujeito. Alguma vez nos atrevemos a escrever que estvamos um pouco enfastiados da

    obsesso moderna (e tambm ps-moderna, embora aparentemente pelo lado negativo)

    com a subjetividade. Inclusive, em vrios lugares, ensaiamos uma decidida defesa da

    dignidade do objeto, que tentava no corresponde a ns julgar com que xito resgatar

    (quase falamos remir) a matria objetal de seu destino fetichizado pela lgica (e a

    metafsica) no somente do mundo da mercadoria, mas da mercadoria-mundo, que nossa

    histria destinal na era da (falsa) globalizao. Tampouco, confessemos, se tratava de

    uma idia particularmente original. De perspectivas to diferentes quanto a de Heidegger,

    advogado de um desocultamento do Ser obturado pelos excessos de uma subjetividade

    onipotente que fez dele um ente entre os entes (operao de uma metafsica da tcnica

    que se remontaria s mesmas origens do logos socrtico), ou a da (primeira) Escola de

    Frankfurt, obcecada com a racionalidade instrumental que montou sua soberbia sobre

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    Eduardo Grner

    uma dominao e, portanto, uma alienao ou distanciamento do humano propriamente

    dito da Natureza, grande parte do pensamento crtico mais profundo do sculo XX

    girou em torno da destruio do universo objetal mais primrio do Homem, realizada

    por esta subjetividade excessiva, esta Hybris criminosa do Sujeito. Nem o prprio

    Freud alheio a este impulso crtico: no final, sua clebre declarao Wo Es war, soll

    Ich werden (ali onde Isso era, o Eu deve advir), longe de ser uma admonio a favor

    da pura subjetividade consciente (s poderia entender-se assim de uma perspectiva

    esquematicamente cartesiana, que a teoria de Freud desarticula), um programa de

    restabelecimento da relao do sujeito com os objetos (de desejo) do mundo. sua

    maneira e com outra inflexo filosfica, isto j estava presente no primeiro Marx, no

    Marx chamado de humanista (e no que mais tarde, pace Althusser, tenha desaparecido

    plenamente: de outro modo, se fez menos visvel nas dobras de outras preocupaes,

    inclusive obsesses). Por exemplo, em todas as suas reflexes a propsito do fenmeno

    de uma alienao originria em que a prpria essncia do homem (sua capacidade

    de transformar a Natureza para produzir e reproduzir suas prprias condies de vida)

    apropriada ou, ainda mais, seqestrada pelo alheamento do produto e do processo de

    trabalho inteiro na sociedade de classes. No se trata mais, pois, de um alheamento

    genrico como simples momento de objetivao do homem em seus produtos, e que

    justamente por ser s um momento supe a colaborao ntima entre homem e natureza.

    E o mundo dos objetos no importa quo opaco, denso e nauseabundo seja ,

    certamente, central na obra inteira de Sartre: a atividade nadificadora do sujeito est, por

    isso mesmo, indefectivelmente enredada nos objetos, e s contando com esse enredo

    que pode acontecer uma ao para-si no mundo do em-si. De maneira semelhante, em

    Merleau-Ponty a relao entre o corpo prprio e o universo objetal que permite uma

    abertura ertica e fenomenicamente sensvel para uma autntica alteridade. No h

    possibilidade, ento, para uma filosofia crtica ativa que se assente pura e exclusivamente

    numa subjetividade no importa quo emancipacionistas sejam suas intenes que

    fique presa no deslize de um idealismo subjetivo que sempre a assedia, e que nos leve de

    volta aos impasses cartesiano-kantianos.

    Mas, fazer o que? Nosso cansao pouco importa, a questo do sujeito se repete

    (embora seja como farsa), insiste (retornando do reprimido?), ou como se queira dizer.

    Por todos os lados, esquerda e direita, se procuram sujeitos: para consumir, para

    dominar, para transformar o mundo, para fazer a revoluo, seja o que for. s vezes e,

    em certo sentido, isso o pior simplesmente para continuar tendo objetos de pesquisa e

    justificar este ou aquele subsdio das agncias acadmico-estatais. Assim est a coisa.

    Abordemos, pois, o assunto mais uma vez, de uma maneira que gostaria de

    ser final e que, previsivelmente, fracassar de novo: de que outro estofo est feita a

    continuidade de um pensamento que se pretende crtico, a no ser do intermitente

    fracasso? Procuraremos, entretanto, nesta nova abordagem, no perder de vista aquele

    cansao, nem aquela defesa de uma matria os mais ou menos lacanianos esto

    autorizados a suspeitar aqui o assdio do real, a condio de dar-lhe seu justo lugar no n

    com o imaginrio e o simblico que dever voltar por seus direitos (antes de mais

    nada, embora no somente, sob a forma de Natureza tambm redimida): o est fazendo

    j ainda que, como trataremos de mostrar, freqentemente de maneira perversa , para

    afrontar aquela desmaterializao fetichista do universo. Por trs, ou pela frente, de toda

    busca do Sujeito deveria estar, pois, a restituio de seu vnculo inalienado tanto com

    a Histria quanto com a Natureza. Esse horizonte de possibilidade s se torna pensvel,

    entretanto, se partirmos do estado atual e material dos sujeitos realmente existentes.

    Comecemos, ento, com a questo central (mesmo que para ns, no essencial)

    da maneira mais brutal e mais esquemtica possvel. O debate entre o pensamento moderno

    (pelo menos o oficial) e o pensamento ps- (ponha o leitor o que mais lhe agrade

    atrs do prefixo e do hfen: -moderno, -estruturalista, -marxista, -colonial etc.)

    a propsito da questo do Sujeito deve se escrever com maiscula, no sem ironizar

    sobre a monumentalizao que se fez do tema foi, e , obturado por um efeito binrio,

    ou dicotmico, de polarizao, que nos momentos mais radicalizados (e midiatizados) do

    polemos adquiriu a cenografia de um round de boxe: neste canto, o Sujeito Cartesiano (ou,

    pelo menos, uma certa simplificao de suas complexidades, mas cujos efeitos sobre o

    pensamento moderno so indubitveis), sujeito do cogito, sujeito transparente diante de

    si mesmo, fonte unificada e mondica de todo conhecimento e razo, sujeito universal

    abstrato, a-histrico, eterno, embora desde j, sujeito tambm eis sua modernidade,

    apesar de seu carter a-histrico da metdica dvida, somente limitada pela dupla

    certeza do e(r)go sum e da existncia do Garante supremo, Deus (concesso tradio?

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    Eduardo Grner

    No necessariamente: por inmeras razes, o sculo XVII europeu ainda no dava espao

    a radicalidades to extremas quanto, digamos, as de Marx ou Nietzsche, ou sequer as do

    materialismo de alguns iluministas). Ou seja, para continuar esquematizando mas isto

    se disse tantas vezes que passou a incorporar-se ao ncleo de sua definio , Sujeito,

    por excelncia, burgus. E certamente, a especificao transcendental do dito Sujeito

    em Kant, junto com outra forma de limite a seu entendimento interposto pelo noumeno,

    inaugura mais um sub-momento moderno-burgus, aquele de um criticismo que,

    entretanto, no por enriquecer decisivamente a dimenso dbia restrita ao mximo no

    otimismo cartesiano, deixar de se inscrever na etapa de ascenso daquela subjetividade

    burguesa com todas as oscilaes manaco-depressivas que se queira no sub-sub-

    momento Sturm-und-Drang e romntico , at culminar no complexo Estado tico /

    Heri histrico hegeliano isto, sem dvida, para alm ou apesar de Kant, mas no em

    outro lado.

    No outro canto do ringue, contra o Sujeito cartesiano (ao qual podemos dar-

    lhe j nosso prprio nome (im)prprio: o Sujeito Pleno), seu rival polar, o Sujeito e aqui

    no somente a maiscula, mas o prprio significante se torna problemtico: que coisa?

    Acumulemos, sempre impropriamente, os (in)atributos: fragmentado, disperso,

    disseminado, mltiplo, transferido, no-identitrio, rizomtico, hbrido,

    deslocado e via dicendo. A prpria indeterminao ou, como se diz, indecidibilidade dos

    significantes que poderiam delimit-lo, a marca, o rastro de seu permanente deslizamento

    ad infinitum, de sua diferncia para diz-lo em jargo derridiano; inalcanvel pela

    Palavra, que por sua vez inalcanada pelo (anterior) Sujeito, este Sujeito que nem sequer

    , por oposio ao pleno, um Sujeito vazio (pois isso suporia no mnimo um buraco na

    expectativa de um contedo que lhe desse forma, quando do que se trata do menos

    abarcvel in-forme), e que portanto deveria ser chamado se para evocar pelo menos sua

    ausncia se insistir em continuar usando a linguagem (que carrega as conseqncias da

    aporia irresolvel que obriga a nomear aquilo que se pretende negar) um No-Sujeito;

    a-Sujeito que exatamente o negativo (e nos privamos por enquanto de brincar com a

    idia de que todo negativo pertence, certamente, imagem fotogrfica) do Sujeito Pleno:

    pura dvida des-metodizada, sem Garante algum pois Deus morreu (embora saibamos

    que retorna fantasmaticamente e, por isso, mais forte do que nunca), impotente j para ser

    fonte de conhecimento e de razo mas, curiosamente, armado da onipotncia de poder

    ser qualquer coisa , sua a-existncia (onde a eleio do termo existncia no por acaso:

    pelo menos na Frana, principal ptria adotiva deste no-Sujeito, ele no somente o

    sujeito anti-cartesiano mas tambm, e mais au jour, o sujeito anti-sartreano) atravessou,

    deve reconhecer-se, os avatares da petite histoire : primeiro, mero suporte de estruturas

    (lingsticas, ideolgicas, de parentesco, mticas, ou o que for), logo at anteontem

    dissolvido junto com aquilo que supostamente devia suportar. Ser este no-Sujeito filho

    dileto (at onde for possvel, claro, que um no-existente tenha pai) da Destruktion

    anti-humanista heideggeriana, transformada em palavra de ordem combativa em

    O homem morreu do muito sujeito Foucault? Suspendamos deixemos em suspense,

    queremos dizer para mais adiante a pergunta, j que neste estdio (trambiqueiramente)

    descritivo no poderamos ainda ter uma hiptese de resposta. Somente se nos permita,

    por enquanto, esboar uma suspeita completamente grosseira (e no poderia ser de outro

    modo neste estdio preliminar): no ser, este no-sujeito, o pice do humanismo que

    pretendeu deixar para trs? No ser que, agora sim, essa onipotncia de um no-sujeito

    que pura potencialidade veio, finalmente, a ocupar no puro imaginrio ideolgico o

    lugar de Deus? No ter sido esta, contra seu prprio postulado, a ltima e mais extrema

    tentativa de antropomorfizao do real?

    Seja como for: o ringue est pronto, os opositores em seus cantos, o sino j

    tocou (faz pelo menos trs dcadas, mas o que isso seno um instante na histria das

    idias?). Segundos fora. Mas, justamente: queramos falar de ou melhor: escutar os

    segundos. Embora, s em virtude de uma maior claridade expositiva, procuraremos

    escutar, como se ver, o que acordaremos chamar de o terceiro: mais especificamente, o

    Terceiro Sujeito; aquele que no nem o Sujeito pleno nem o no-sujeito, sem que por

    isso represente uma terceira via (ou posio) entre eles, mas sim uma outra coisa. Mas

    ainda no. Retrocedamos, antes, uns passos. Os oponentes, segundo se diz (mas o se de

    se diz no ningum: um air du temps, uma difusa Weltanschauung que, desde j,

    pode alcanar impensados cimos e abismos1 de sofisticao filosfica), representam

    ou so patrocinados, respectivamente, pela Modernidade e pela Ps-modernidade.

    Mas, to evidente que seja uma representao to linear? Seria ela, alis, possvel?

    No nos ensinou o pensamento ps, precisamente, a impossibilidade da representao,

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    Eduardo Grner

    assim como a ps-poltica ou, num outro registro, a ps-esttica, nos ensinou e de forma

    realmente mais dramtica a crise da representao? Mas com o perdo de vocs

    temos que retroceder mais um passo: h alguma coisa que se chame Modernidade,

    qual possa se opor em bloco algo chamado de Ps-modernidade?

    Que se nos entenda: no estamos perguntando mais uma vez como se fez

    com insistncia tantas outras vezes se h uma verdadeira oposio entre uma e outra,

    ou se a segunda a continuidade radicalizada da primeira em cujo caso se prope

    cham-la de hiper ou super-modernidade. No. Estamos perguntando se ser verdade

    que a modernidade uma. Porque, como j sabemos, a ps-modernidade por definio

    mltipla. Precisamente, se diz, esta multiplicidade no articulada, este rizoma, o que

    diferencia a ps-modernidade e a ope modernidade. Mas, de novo, to certo que s

    haja uma modernidade, definida pelos grandes relatos lineares, totalizadores, evolutivos

    e progressistas? J expressamos em outro lugar o nosso espanto frente ao fato de que

    o pensamento crtico ps se submeta com tanta presteza prpria operao ideolgica

    que pretende combater: quer dizer, verso oficial de uma modernidade que, como diria

    Adorno, apresenta-se a si mesma como harmnica e reconciliada. Tambm verdade que

    o pensamento ps j no existe, pelo menos em sua verso forte quer dizer, no que

    paradoxalmente se chamou de pensamento dbil ; derrubou-se (somente para demarcar

    taquigraficamente uma data emblemtica) em 11 de setembro de 2001, arrastado por esse

    fenomenal acontecimento, por esse novo e perverso grande relato que nos devolveu,

    nas palavras de Zizek, ao deserto do real, ou Histria em seu pior sentido. Mas os

    mortos, como se sabe, nunca se vo embora por completo: deixam atrs de si uma esteira

    fantasmagrica. E ainda que o pensamento ps esteja hoje esgotado, deixou suas marcas,

    entre as quais no a menor a j-no-existncia de algo chamado Sujeito clssico, Sujeito

    pleno; no-existncia que nos acostumou a dar por descontado ou incorporar como doxa

    que o Sujeito morreu. O que implica, com todo o rigor lgico, a sobrevivncia (e o triunfo

    por nocaute de um dos competidores) daquela confrontao dicotmica (e csmica, por

    assim dizer) entre o Sujeito pleno e o No-sujeito.

    Mas retomando: h pelo menos outra verso, outro relato da modernidade, que

    um relato crtico (e inclusive, autocrtico, pois est construdo de dentro da prpria

    modernidade), que se coloca os antpoda daquela verso oficial, mas que no chega

    negao de toda pertinncia modernista, como a que fez o pensamento ps. Poderamos

    cham-lo, por comodidade e mais uma vez, o Terceiro Relato. Este relato crtico reconhece

    numerosos antecedentes na prpria histria do pensamento europeu: podemos encontr-

    lo nos incios dessa poca, em Montaigne (inventor, como j dissemos, da palavra e do

    conceito de Ensaio para qualificar um novo gnero que ele praticou superlativamente: o

    dado, como veremos, no menor), ou nos Pensamentos de Pascal, ou em Bartolomeu de

    Las Casas, na sua maneira, ou em La Betie, ou no Abade Raynal, ou em certas regies

    de Espinosa. E inclusive antes e, casualmente, fora de Europa na inclassificvel

    filosofia da histria do Ibn Khaldun, ou nas tradues sugestivamente intersticiais do

    entre-dois das culturas, em Averroes. E nas origens da cultura ocidental (j voltaremos

    abundantemente sobre isto) no pensamento e a literatura trgicos. Mas por uma questo

    de poca explode plenamente entre finais do sculo XIX e princpios do sculo XX, nos

    nomes daqueles que Paul Ricoeur qualificou, de maneira clebre, como os trs grandes

    mestres da suspeita: Marx, Nietzsche, Freud. E que um autor que foi reputado como

    tipicamente ps e como mentor da morte do Sujeito, Michel Foucault, tenha festejado

    quase ditirambicamente a nova e revolucionria hermenutica inaugurada por essas trs

    figuras, diz bastante sobre a necessidade de interrogar criticamente a imago apressada

    que confronta nossos dois mticos opositores. Mas, seja como for: esta Terceira Verso da

    modernidade a constatao de uma realidade, para diz-lo rapidamente, dividida contra

    si mesma. A modernidade no nenhuma monoltica unidade, nenhuma indeterminvel

    disseminao: uma fratura. Pode ser chamada, simplificando at a caricatura, uma fratura

    entre exploradores e explorados (Marx), entre a vontade de poder e o riso zaratustriano

    (Nietzsche), entre a conscincia e o inconsciente (Freud). E ainda haveria que acrescentar

    a que mais difcil de identificar com um nome prprio: a que, entre os sculos XVI e

    XX, dividiu o mundo inteiro contra si mesmo, pelo processo de colonizao. Quer dizer:

    a que fez a modernidade, feitura que o pensamento dominante varreu meticulosamente

    debaixo do tapete do progresso unilinear, do qual Benjamin podia dizer sem aporia que,

    por ser o progresso dos vencedores da histria era, portanto, uma marca de barbrie.

    Comecemos por este ltimo ponto que o mais antigo, a origem, a arch da

    modernidade. Em seu exame se ler, nas entrelinhas mas sem grandes dificuldades, que

    o Terceiro Sujeito da modernidade nem pleno nem disseminado, mas dividido, para

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    diz-lo la Freud inclusive anterior ao cartesiano, pois est no fundamento histrico

    negado deste. Pergunte-se a qualquer professor de histria de escola secundria, qual data

    ele considera como o incio do que se chama modernidade. Muitos diro: a queda de

    Constantinopla nas mos do imprio otomano. Alguns, mais culturalizantes, arriscaro: a

    Reforma Protestante (clebre tese weberiana). Ou diro: o Renascimento, com a inveno

    da imprensa. Sem dvida, outros muitos, aproximando-se um pouco mais a nosso

    argumento, anteciparo: o descobrimento de Amrica. Dcadas mais, dcadas menos, nos

    encontramos entre finais do sculo XV e princpios do sculo XVI. De acordo. Digamos,

    para arredondar: ano 1500. Mas pergunte-se agora a um professor de histria da filosofia

    pela data de nascimento do sujeito moderno. Quase todos respondero sem vacilao

    remetendo ao cogito de Descartes, enquanto algum mais audacioso atrever-se- a citar

    Espinosa ou Hobbes. De qualquer maneira, em meados do sculo XVII. Digamos, para

    arredondar: ano 1650. Concluso: o sujeito moderno, aparentemente um pouco retardado,

    chegou um sculo e meio mais tarde modernidade da qual sujeito: um verdadeiro

    excesso de seu tempo de gestao. Sobretudo se levamos em conta que, conforme diz o

    princpio individualista-liberal da filosofia moderna oficial, so os sujeitos que fazem

    a sociedade, e no o inverso. Mas aqui, ento, a teoria a que chamaremos de agregativa

    (a sociedade a soma dos indivduos que a conformam) morde-se aporeticamente a

    cauda: nesse caso, no deveria o sujeito moderno preceder modernidade? Mas fomos

    informados por nosso erudito professor de histria do pensamento que ele est atrasado

    cento e cinqenta anos respeito dela. E ento?

    A soluo no muito difcil, desde que se suspenda, outra vez, a premissa

    individualista-liberal e, como veremos, eurocntrica. Ou melhor, desde que se

    inverta a lgica de sua causalidade, adicionando-lhe uma retoro. Como no dispositivo

    do fetichismo da mercadoria de Marx, a sociedade que produz seus sujeitos, mas a

    operao ideolgica dominante oculta com esmero o processo de produo, e inventa

    um produto eterno, a-histrico. O Sujeito Pleno (cartesiano, kantiano, ou como se

    prefira) teve que esperar a consolidao igualmente plena de uma nova lgica social,

    econmica e poltica nos pases chamados centrais, que tambm conseguiu ocultar a

    prpria histria do surgimento dessa centralidade em 1492. E de maneira mais geral,

    para ocultar que o ocidente europeu moderno no era uma construo harmnica e

    racional feita pelo Sujeito Pleno, mas que o Sujeito Pleno era a alavanca do deslocamento

    da emergncia conflitante, dilacerada, sangrenta, de uns sujeitos sociais novos em estado

    de fratura trgica e violenta. Porque ainda mantendo as datas emblemticas assinaladas

    por nossos bem clssicos historiadores , no teramos uma imago muito diferente da

    subjetividade moderna se, eliminando aquele desajuste de um sculo e meio, fizssemos

    coincidir o nascimento do sujeito moderno com os acontecimentos que sinalizam o

    comeo da modernidade? Assim, se demonstraria, por exemplo, que o sujeito moderno

    o produto de um choque de culturas e de sociedades: entre o Oriente e Ocidente na

    queda de Constantinopla, ou das guerras religiosas em relao Reforma, e do choque de

    trs civilizaes no descobrimento, conquista e colonizao da Amrica (dizemos trs,

    porque muito freqentemente se esquece a ligao ntima entre a explorao da Amrica e

    a destruio da frica atravs do trfico de fora de trabalho escrava). Quero dizer, ainda

    de um ponto de vista estritamente filosfico, no tem mais a ver com o nascimento

    do sujeito moderno o debate entre Bartolomeu de Las Casas e Francisco Vitoria sobre o

    estatuto da alma, da psych dos indgenas americanos ou dos negros africanos, que com

    a plenitude autnoma e mondica do cogito?

    Mas, para completar nossos acontecimentos fundadores, que acontece com

    o chamado Renascimento (e muito seria necessrio discutir sobre esse maltratado

    conceito)? No se d a, como costuma acontecer na arte, um tipo de antecipao do

    Sujeito Pleno, at mesmo do sujeito da racionalidade instrumental frankfurtiana, atravs

    da inveno da perspectiva, que no somente faz do indivduo o protagonista, mas que

    tambm permite coloc-lo em primeiro plano, em posio dominante, dotando essa

    posio de uma organicidade e harmonia naturais, e tirando de cena a problematicidade

    histrica dessa construo? No o mrito principal do grande historiador da arte crtica,

    Aby Warburg, nos rastros de Nietzsche e de Freud, ter mostrado que esse era um gesto de

    represso do sujeito trgico e profundamente problemtico daquela cultura arcaica que

    agora se pretendia fazer renascer, mas somente pelo seu lado apolneo?

    Em todo caso, tanto o Sujeito Pleno dos modernistas oficiais como o No-sujeito

    dos ps-modernistas eliminam por vias opostas mas complementares a corporeidade

    de origem fraturada do sujeito coletivo da modernidade, desse que chamamos o Terceiro

    Sujeito (embora seja, cronologicamente, o primeiro). verdade que os ps-modernos ou

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    os ps-estruturalistas recusam criticamente as pretenses onipotentes do Sujeito Pleno;

    mas eles, por sua vez, perdem no caminho o carter trgico do sujeito, pela troca de sua

    plenitude por sua disseminao, dissolvendo assim sua fratura originria e, portanto, sua

    violenta historicidade.

    Em sntese, estamos todos malucos se acreditarmos que continuaremos nos

    arranjando com essa oposio entre o Sujeito Pleno e o No-sujeito. Escolher um ou

    outro dentre eles significaria de novo tomar a parte pelo todo e, assim, imaginar uma

    falsa totalidade conceitual e abstrata. O Terceiro Sujeito ou sujeito dividido (em todos

    seus campos histricos, no somente no subjetivo), nem inteiro nem disseminado, nos

    fora a nos instalarmos no centro do conflito, da fratura, da falha (como quem diz falha

    geolgica) material e originria. Gostariam de pr-lhe um nome? Sempre possvel:

    seria, para comear, o sujeito dividido da prpria Natureza, essa que como hoje se v

    foi fraturada at a mais extrema canibalizao, e sobre a qual dizia Montaigne, j em

    1580, que a testemunha por excelncia da insignificncia do homem que, se estimando

    com soberbia superior ao resto das coisas, esqueceu os vnculos que o unem matria;

    ainda o sujeito dividido proletrio, claro que sim, embora se pretenda que ele est

    disseminado, mas que foi na verdade fraturado entre seu em-si e seu para-si, entre

    o que se lhe atribua como sua misso histrica e seu dramtico esmagamento sob

    o regime do Capital; o sujeito dividido perifrico, ou terceiro-mundista ou ps-

    colonial, fraturado entre uma identidade originria irrecupervel ou possivelmente

    s imaginria, e sua identificao impossvel com a globalizada totalidade abstrata; o

    sujeito dividido indgena, negro, mestio, fraturado entre a cor bem distinguvel de

    seu corpo e a no-cor que o ideal branco de inexistncia corporal; o sujeito dividido

    desempregado, marginal, migrante obrigado e rejeitado, restante, descartvel,

    fraturado entre seu empenho por recuperar uma no se sabe qual dignidade integrada e

    seu carter de resto desprezado, quando no odiado por ser o espelho antecipador de um

    futuro sempre possvel da chamada classe mdia; o sujeito dividido mulher, trans,

    sexualmente minoritrio, fraturado entre seu desejo de diferena e sua reclamao de

    igualdade; o sujeito dividido judeu, muulmano, ateu, pantesta, e at cristo,

    fraturado entre o sublime de sua f ou de sua crena, e o freqentemente monstruoso de

    sua Igreja (porque at os ateus, j se sabe, tm igreja), que permanentemente lhes inculca

    o dio que o universal abstrato tem pelo particular concreto; o sujeito dividido cidado

    honesto e preocupado, fraturado entre sua autntica concernncia quanto ao destino

    da polis humana e seu absoluto cansao e desespero frente decomposio, a canalhice

    assassina ou a imbecilidade que passa por ser a poltica mundial. Enquanto Aufhebung de

    todos eles que, entretanto, no os sintetiza, o sujeito trgico, o sujeito fraturado entre

    sua potncia herica e seu destino histrico abjeto.

    Mas este, ainda, um sujeito filosfico? Certamente. Mas a condio de

    que ensaiemos uma filosofia que esteja a sua altura: uma filosofia igualmente dividida,

    igualmente fraturada, igualmente em tenso imanente entre o Conceito e o Corpo.

    Uma filosofia, portanto, que no renuncie, como no poderia renunciar, ao Conceito,

    mas tampouco a seu sempre renovado fracasso. A seu sempre reconstrudo limite

    levantado pelas fraturas geolgicas do Corpo do sujeito; ou da natureza mesma, da

    matria lamacenta da qual o sujeito emergiu, e segue emergindo. Com essa condio,

    podemos at tentar a audcia de dar seu nome a este terceiro sujeito: o sujeito falhado.

    Sujeito daquela falha geolgica, mas tambm, falhado de fbrica, como se diz em

    espanhol para qualificar o que est constitutivamente mal feito, defeituoso. No , como

    se v, o sujeito inteiro, completo, do modernismo dominante. No tampouco o no-

    sujeito disperso, difuso, etreo do ps-modernismo des(cons)trutivo. No mltiplo e

    indeterminvel, dividido e reconstituvel em cada ocorrncia histrica, sem que por isso

    perca sua fratura constitutiva: a expe de outra maneira. No a alegre e despreocupada

    proliferao de diferenas do multiculturalismo: sempre o mesmo, o sujeito da fratura

    que se manifesta nas descontinuidades e solapamentos da matria histrica. E que da luta

    contra aquela abjeo de seu destino qual o lanou, no seu DaSein ontolgico, mas o

    Poder de turno. Que seja ou no seja filosfico , certamente, assunto de debate. Mas,

    justamente: que outra coisa poderia ser a filosofia, a que nos interessa?

    Esse ensaio de debate s pode recriar-se, hoje, sobre novas bases na periferia

    e, em particular, na Amrica Latina, pois o que costumava chamar-se o primeiro mundo

    est paralisado (seja por seus prprios interesses ou, no campo intelectual, pelo abandono

    da discusso originria sobre o poltico-cultural corporizado), impedido de continu-lo.

    E, alm disso, esse primeiro mundo j foi, desde ao menos um sculo e meio atrs,

    bastante atravessado pelo que Anbal Quijano chamaria a colonialidade do saber, como

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    para estar em condies de redefinir a fundo suas prprias premissas tericas, filosficas,

    historiogrficas, e recuperar algo de sua perdida matria. Mas certamente, isso no significa

    em absoluto que os intelectuais, os ensastas filosficos latino-americanos, devamos

    dar as costas ou jogar pela janela a grande tradio de pensamento crtico produzido na

    modernidade europia: precisamente, pela nossa prpria histria, e at pelas piores razes

    dessa histria colonial, estamos em situao privilegiada para empreender esse dilogo, o

    conflitante e rspido que for necessrio, embora sem a falsa iluso de poder varrer embaixo

    do tapete, magicamente, nossa prpria e rasgada genealogia cultural, nosso prprio corpo

    canibalizado, nossa prpria falha geolgica. Mas, justamente, devemos assumir essa

    fenda, tom-la como ponto de partida para pensar o mundo a partir de um outro lado,

    reinscrevendo em nossa prpria escritura o que achemos til (exercendo, como alguma

    vez props Haroldo de Campos, a agora sim saudvel antropofagia de deglutir tudo

    aquilo que sirva a nosso metabolismo cultural, vomitando o resto). E, sobretudo, embora

    no possamos comear de zero, nos sacudirmos a modorra do filosoficamente correto e

    inventar, quer dizer, ensaiar. Seria preciso repetir mais uma vez o cannico dictum de

    Simn Rodrguez? Ou inventamos ou erramos. E o pior erro ser sempre, no tanto o de

    enlouquecer, mas o de perder o prprio corpo.

    O sujeito desse outro lado e portanto, o pensamento que possa pens-lo

    tambm, e sobretudo, em seu ainda-no (para diz-lo com Ernst Bloch), , se seguimos

    conseqentemente o esboo que acabarmos de fazer, o do interstcio. Ou, como

    propusemos em outra parte para traduzir o in-between de Homi Bhabha, o sujeito-corpo-

    pensamento do linde. Nada a ver nos apressemos a esclarecer com a hibridez de

    um Garca Canclini por exemplo. Exatamente o contrrio: o linde , acima de tudo, uma

    fronteira. E sempre (apesar da insidiosa ideologia da globalizao), mas com renovados

    brios depois de 11 de setembro de 2001 (que terminou de liquidar o que restava da

    realidade da globalizao, embora persistam os farrapos de ideologia), as fronteiras no

    so arranjos de amveis sntese interculturais, mas um espao de conflito e um campo de

    batalha: pergunte-se seno aos costas molhadas, aos palestinos, aos turcos berlinenses,

    aos marroquinos de Melilla, aos tutsies (como antes aos hutus), aos bolivianos de Buenos

    Aires, aos saharauies, aos paquistaneses de Londres, aos argelinos da banlieu de Paris,

    e assim por diante. Quase nenhum deles tem oportunidade de negociar sua identidade

    ou sua cultura. Tampouco a tiveram, historicamente, os amerndios nem os afro-

    americanos. Toda negociao, numa situao desigual de poder, no pode ser seno

    uma imposio de uma das partes sobre a outra. Outra coisa da qual muito deveramos

    falar que as estratgias de defesa frente a imposio saibam, ou possam, se reapropriar,

    ressignificando-as (como se diz agora), de fragmentos da identidade ou da cultura perdidas

    para com eles produzir alguma novidade que permita, mesmo que imaginariamente, no

    perder tudo (em termos mais tericos, trata-se do que Ernesto de Martino teria chamado

    uma certa recuperao, sob a forma de criao cultural, da crise da presena social).

    Mas se trata, insistimos, de estratgias de defesa e certamente emolduradas e contidas

    pelo scio-metabolismo do Capital , e no de iniciativas autonomamente produtivas que

    suponham autnticas alternativas a esse scio-metabolismo.

    O sujeito que da surge, produzido por essa crise cultural (que, para voltar

    para nossos exemplos, pode ter adquirido dimenses histricas apocalpticas, como foi

    o caso dos amerndios ou os afro-americanos) no pode seno ser, ele mesmo, um

    sujeito fraturado. Desse reconhecimento de uma fratura estrutural se deve partir para

    teorizar, para criar hipteses, para conjeturar, e o mais difcil para atuar.

    We are all crazy... The modern subject and the geological fissure

    Abstract: This paper aims to question the opposite positions of the full cartesian subjetct and the non-subject of post-modernity, that intends to criticize the reasons of the first.

    What is omitted in this opposition is an internal tendency towards auto-criticism in the modernity itself that allow us to think a thid subject, that is tragic and faulty a product of the violent history. Keywords: modernity, post-modernity, full subject, tragic subject.

    NOTAS:

    1 N. do T: Trata-se de um jogo de palavras que em portugus no reproduzvel. No original em espanhol: impensadas cimas y simas; s mudando uma consonante e com idntica pronncia, se faz referncia a topologias opostas: cumes e depresses ou precipcios.