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eduardo gruner -o sujeito moderno e a falha geológica.pdf
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Cadernos Espinosanos XVII
348)), aos estados de desenvolvimento das vrias formas de individualidade (apesar
de Espinosa no ter desenvolvido em detalhe sua concepo dos diferentes estgios dos [seres] animados, s com muita ingenuidade no se veria que ele estava, na prtica, distinguindo os estgios que Leibniz descreve (Hicks 8, p. 351)), e enfim,
relao que liga o indivduo finito a Deus (Ao desenvolver sua teoria das mnadas,
Leibniz estabeleceu como seu alvo resgatar a filosofia daquela destruio da existncia
individual que a ele parecia estar implicada na metafsica de Espinosa. Contrapondo-se a Espinosa, ele assumiu como sua a posio de que apenas o indivduo enquanto tal era o verdadeiramente real. Mas se algum escruta mais de perto a concepo de individualidade, tal como foi desenvolvida por Leibniz, ter logo razes para suspeitar que a concepo no agentar o peso que ele gostaria de impor-lhe. A caracterstica absolutamente essencial individualidade, como ele a v, a limitao, negao, passividade. Energia ou atividade puras e ilimitadas pareciam [...] a Leibniz incompatveis com a noo de ser real. O que quer que seja, deve ser limitado (Hicks 8, p. 356)).10 Lidei com tal questo em Ontologia della relazione e materialismo della contingenza (Morfino 17).
11 () Afora esses trs, no reconheo nenhum outro afeto primrio. De fato, demonstrarei, no que se segue, que desses trs provm todos os outros. (Espinosa 4, III, prop. 11, esc., p. 149; trad. it., p. 181; ed. bras. p. 179).
12 A relao mesma que liga um sujeito e um objeto no tem qualquer universalidade, como sublinha o prprio Espinosa: Homens diferentes podem ser afetados diferentemente por um s e mesmo objeto, e um s e mesmo homem pode, em momentos diferentes, ser afetado diferentemente por um s e mesmo objeto. (Espinosa 4, III, prop. 51, p. 178; trad. it., p. 208; ed. bras., p. 221).
13 Para uma detalhada anlise desta sobredeterminao, cf. ainda o meu Ontologia della relazione e materialismo della contingenza (Morfino 17, p. 140-141).
14 Sobre a multido como trama complexa de temporalidades, cf. o meu Temporalit plurale e contingenza: linterpretazione spinoziana di Machiavelli (Morfino 18).
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Estamos todos malucosO sujeito moderno e a falha geolgica*
Eduardo Grner**
Resumo: O artigo visa questionar as posies opostas do Sujeito Pleno cartesiano e do no-sujeito ps-moderno, que pretende criticar as razes do primeiro. O que se omite nessa contraposio uma corrente de auto-crtica interna prpria modernidade e que permite pensar um Terceiro Sujeito, trgico, falho, produto da violenta histria que o faz nascer.Palavras-chave: modernidade, ps-modernidade, Sujeito Pleno, sujeito trgico.
Esta mesa muito pouco redonda chama-se, segundo entendi, Filosofia e Ensaio.
O conceito de ensaio, como se sabe, uma criao francesa. Mais especificamente, de
Michel de Montaigne, que foi o primeiro em us-lo, em 1580. Talvez, justamente por
isso, seja praticamente um invento argentino no achem vocs que h na Argentina
somente um afrancesado, so muitos; ou pelo menos, existe uma certa maneira de
praticar a relao entre o ensaio literrio, a filosofia e a poltica que uma tradio
apaixonadamente argentina. Mas no se preocupem: estamos em San Juan, ento no
vou falar de Sarmiento. Nem tampouco, digamos, de Martinez Estrada. Nestas mesmas
jornadas tem gente muito mais capacitada do que eu para falar desse verdadeiro invento
nacional que o ensaio filosfico-poltico argentino. Limito-me a constatar, isso sim,
que o ensaio filosfico argentino sempre teve clareza sobre seu irrenuncivel carter
poltico. Sempre teve clareza, para parafrasear um clssico, de que a filosofia poltica
concentrada no pensamento e no discurso. Mas, repito, no vou falar disso. Vou falar um
pouquinho, s para comear, do criador de nosso conceito, Michel de Montaigne.
No sei se se extraram as concluses filosficas suficientes do fato de
que Montaigne fora um dos primeiros e, certamente, dos mais virulentos, crticos da
* Palestra apresentada no Congresso Internacional de Filosofia que aconteceu em San Juan, Argentina, em Julho de 2007. Traduo de Mariana de Gainza.** Professor Titular de Antropologia da Arte, na Faculdade de Filosofia e Letras (Universidade de Buenos Aires) e de Teoria Poltica na Faculdade de Cincias Sociais (Universidades Buenos Aires).
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colonizao de Amrica, e por extenso, do racismo propriamente moderno (e o
racismo, embora no tenhamos tempo de desenvolver esta idia agora, tambm um
invento moderno), que emergiu como efeito desse choque de culturas. E foi tambm
um dos primeiros em utilizar as sociedades selvagens como espelho deformador para os
muitos males que percebia nas civilizadas. Mas o fez de uma maneira muito diferente
daquela do muito posterior Rousseau de A Origem da Desigualdade ou da do Voltaire
das Cartas Persas, ou da de qualquer outro dos cultores do mito do bom selvagem. Estes,
precisamente por sua idealizao da sociedade selvagem, a tinham, por assim dizer,
despojado de sua corporalidade particular e concreta, para faz-la entrar no equivalente
geral do paradigma ideolgico, essa moeda de troca do Conceito. Com isso e alm de
suas insuperveis intenes, que so as que pavimentam o caminho que leva aonde j
sabemos no faziam mais do que repetir, do lado progressista, o gesto mais primrio
do racismo. Porque inevitvel: eu posso me representar o Outro como uma besta-fera
ou como um anjo e, sem dvida, para o Outro no ser o mesmo; mas em ambos os casos,
o Outro no humano.
Montaigne, em sua crtica, faz algo muito diferente. Por exemplo, num dos seus
Ensaios, fala do canibalismo. Cristvo Colombo que tambm chegou ao que logo se
chamaria Amrica por ensaio, mas sobretudo por erro batizou os primeiros indgenas
que encontrou, pertencentes cultura arawak, como caribes. Dai derivou, por similitude
fnica, a palavra canibal, como sinnimo de antropfago, ou comedor de carne humana.
Pode encontrar-se entre parnteses uma referncia pardica sobre isto no personagem
de A Tempestade de Shakespeare chamado Caliban um anagrama bvio de canibal.
Seja como for, o que certo que os arawak no so canibais, pela razo simples de que
no existe uma coisa tal como o canibalismo: nenhuma cultura se alimenta de carne
humana; o que existe, sim, ou existia em algumas culturas, includa a arawak, era a prtica,
muito ocasional e fortemente sacralizada, da antropofagia ritual exercida com alguns
prisioneiros, e s vezes com o prprio chefe local. Mas o tpico procedimento fetichista de
confundir a parte pelo todo gerou, no pensamento racista da poca, a equivalncia geral
entre selvagem e canibal. Ora, Montaigne, que adverte perfeitamente a mistificao,
a faz girar em cento e oitenta graus, para dizer que o verdadeiro canibalismo uma
potencialidade permanente no prprio corao da chamada civilizao, que a que
realmente est devorando as culturas selvagens. As conseqncias filosficas dessa
metfora, dizamos, so enormes. Para comear, o que Montaigne diz e com isso
pareceria adiantar-se criticamente mais de quatrocentos anos a todas as discusses atuais
sobre o multiculturalismo e coisas do tipo que o que a civilizao ocidental chama
de Outro, alheio, no verdadeiramente tal, mas a parte maldita da prpria cultura
ocidental, que ela no quer reconhecer como produto de sua prpria selvageria. Quer
dizer: no uma radical alteridade, no uma espiritual transcendncia, mas sim uma bem
material tenso imanente sua prpria lgica, ao seu prprio logos.
Mas, por enquanto, nos interessa outro momento da metfora. Ao escolher
como referncia dela o canibalismo, Montaigne e possivelmente por isso foi sempre
considerado um ensasta, e no um filsofo tradicional no est no registro do
puro Conceito abstrato, mas no do limite que o corpo pe ao Conceito. Ainda mais: o
corpo despedaado, pelos dentes, pelas garras, pela fauce e o estmago dos selvagens
colonialistas. Ou seja: algo assim como um sculo antes de Descartes, Montaigne est
filosofando sobre um sujeito moderno bem diferente ao da incontaminada nuvem
do cogito. E isso me permite chegar de certo modo contra minha prpria vontade ao
que no ter outra alternativa do que ser, no digo o tema, mas o motivo central destas
notas.
Devemos voltar para o centro da questo, fazer dela a questo central: a questo
do sujeito. Alguma vez nos atrevemos a escrever que estvamos um pouco enfastiados da
obsesso moderna (e tambm ps-moderna, embora aparentemente pelo lado negativo)
com a subjetividade. Inclusive, em vrios lugares, ensaiamos uma decidida defesa da
dignidade do objeto, que tentava no corresponde a ns julgar com que xito resgatar
(quase falamos remir) a matria objetal de seu destino fetichizado pela lgica (e a
metafsica) no somente do mundo da mercadoria, mas da mercadoria-mundo, que nossa
histria destinal na era da (falsa) globalizao. Tampouco, confessemos, se tratava de
uma idia particularmente original. De perspectivas to diferentes quanto a de Heidegger,
advogado de um desocultamento do Ser obturado pelos excessos de uma subjetividade
onipotente que fez dele um ente entre os entes (operao de uma metafsica da tcnica
que se remontaria s mesmas origens do logos socrtico), ou a da (primeira) Escola de
Frankfurt, obcecada com a racionalidade instrumental que montou sua soberbia sobre
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uma dominao e, portanto, uma alienao ou distanciamento do humano propriamente
dito da Natureza, grande parte do pensamento crtico mais profundo do sculo XX
girou em torno da destruio do universo objetal mais primrio do Homem, realizada
por esta subjetividade excessiva, esta Hybris criminosa do Sujeito. Nem o prprio
Freud alheio a este impulso crtico: no final, sua clebre declarao Wo Es war, soll
Ich werden (ali onde Isso era, o Eu deve advir), longe de ser uma admonio a favor
da pura subjetividade consciente (s poderia entender-se assim de uma perspectiva
esquematicamente cartesiana, que a teoria de Freud desarticula), um programa de
restabelecimento da relao do sujeito com os objetos (de desejo) do mundo. sua
maneira e com outra inflexo filosfica, isto j estava presente no primeiro Marx, no
Marx chamado de humanista (e no que mais tarde, pace Althusser, tenha desaparecido
plenamente: de outro modo, se fez menos visvel nas dobras de outras preocupaes,
inclusive obsesses). Por exemplo, em todas as suas reflexes a propsito do fenmeno
de uma alienao originria em que a prpria essncia do homem (sua capacidade
de transformar a Natureza para produzir e reproduzir suas prprias condies de vida)
apropriada ou, ainda mais, seqestrada pelo alheamento do produto e do processo de
trabalho inteiro na sociedade de classes. No se trata mais, pois, de um alheamento
genrico como simples momento de objetivao do homem em seus produtos, e que
justamente por ser s um momento supe a colaborao ntima entre homem e natureza.
E o mundo dos objetos no importa quo opaco, denso e nauseabundo seja ,
certamente, central na obra inteira de Sartre: a atividade nadificadora do sujeito est, por
isso mesmo, indefectivelmente enredada nos objetos, e s contando com esse enredo
que pode acontecer uma ao para-si no mundo do em-si. De maneira semelhante, em
Merleau-Ponty a relao entre o corpo prprio e o universo objetal que permite uma
abertura ertica e fenomenicamente sensvel para uma autntica alteridade. No h
possibilidade, ento, para uma filosofia crtica ativa que se assente pura e exclusivamente
numa subjetividade no importa quo emancipacionistas sejam suas intenes que
fique presa no deslize de um idealismo subjetivo que sempre a assedia, e que nos leve de
volta aos impasses cartesiano-kantianos.
Mas, fazer o que? Nosso cansao pouco importa, a questo do sujeito se repete
(embora seja como farsa), insiste (retornando do reprimido?), ou como se queira dizer.
Por todos os lados, esquerda e direita, se procuram sujeitos: para consumir, para
dominar, para transformar o mundo, para fazer a revoluo, seja o que for. s vezes e,
em certo sentido, isso o pior simplesmente para continuar tendo objetos de pesquisa e
justificar este ou aquele subsdio das agncias acadmico-estatais. Assim est a coisa.
Abordemos, pois, o assunto mais uma vez, de uma maneira que gostaria de
ser final e que, previsivelmente, fracassar de novo: de que outro estofo est feita a
continuidade de um pensamento que se pretende crtico, a no ser do intermitente
fracasso? Procuraremos, entretanto, nesta nova abordagem, no perder de vista aquele
cansao, nem aquela defesa de uma matria os mais ou menos lacanianos esto
autorizados a suspeitar aqui o assdio do real, a condio de dar-lhe seu justo lugar no n
com o imaginrio e o simblico que dever voltar por seus direitos (antes de mais
nada, embora no somente, sob a forma de Natureza tambm redimida): o est fazendo
j ainda que, como trataremos de mostrar, freqentemente de maneira perversa , para
afrontar aquela desmaterializao fetichista do universo. Por trs, ou pela frente, de toda
busca do Sujeito deveria estar, pois, a restituio de seu vnculo inalienado tanto com
a Histria quanto com a Natureza. Esse horizonte de possibilidade s se torna pensvel,
entretanto, se partirmos do estado atual e material dos sujeitos realmente existentes.
Comecemos, ento, com a questo central (mesmo que para ns, no essencial)
da maneira mais brutal e mais esquemtica possvel. O debate entre o pensamento moderno
(pelo menos o oficial) e o pensamento ps- (ponha o leitor o que mais lhe agrade
atrs do prefixo e do hfen: -moderno, -estruturalista, -marxista, -colonial etc.)
a propsito da questo do Sujeito deve se escrever com maiscula, no sem ironizar
sobre a monumentalizao que se fez do tema foi, e , obturado por um efeito binrio,
ou dicotmico, de polarizao, que nos momentos mais radicalizados (e midiatizados) do
polemos adquiriu a cenografia de um round de boxe: neste canto, o Sujeito Cartesiano (ou,
pelo menos, uma certa simplificao de suas complexidades, mas cujos efeitos sobre o
pensamento moderno so indubitveis), sujeito do cogito, sujeito transparente diante de
si mesmo, fonte unificada e mondica de todo conhecimento e razo, sujeito universal
abstrato, a-histrico, eterno, embora desde j, sujeito tambm eis sua modernidade,
apesar de seu carter a-histrico da metdica dvida, somente limitada pela dupla
certeza do e(r)go sum e da existncia do Garante supremo, Deus (concesso tradio?
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No necessariamente: por inmeras razes, o sculo XVII europeu ainda no dava espao
a radicalidades to extremas quanto, digamos, as de Marx ou Nietzsche, ou sequer as do
materialismo de alguns iluministas). Ou seja, para continuar esquematizando mas isto
se disse tantas vezes que passou a incorporar-se ao ncleo de sua definio , Sujeito,
por excelncia, burgus. E certamente, a especificao transcendental do dito Sujeito
em Kant, junto com outra forma de limite a seu entendimento interposto pelo noumeno,
inaugura mais um sub-momento moderno-burgus, aquele de um criticismo que,
entretanto, no por enriquecer decisivamente a dimenso dbia restrita ao mximo no
otimismo cartesiano, deixar de se inscrever na etapa de ascenso daquela subjetividade
burguesa com todas as oscilaes manaco-depressivas que se queira no sub-sub-
momento Sturm-und-Drang e romntico , at culminar no complexo Estado tico /
Heri histrico hegeliano isto, sem dvida, para alm ou apesar de Kant, mas no em
outro lado.
No outro canto do ringue, contra o Sujeito cartesiano (ao qual podemos dar-
lhe j nosso prprio nome (im)prprio: o Sujeito Pleno), seu rival polar, o Sujeito e aqui
no somente a maiscula, mas o prprio significante se torna problemtico: que coisa?
Acumulemos, sempre impropriamente, os (in)atributos: fragmentado, disperso,
disseminado, mltiplo, transferido, no-identitrio, rizomtico, hbrido,
deslocado e via dicendo. A prpria indeterminao ou, como se diz, indecidibilidade dos
significantes que poderiam delimit-lo, a marca, o rastro de seu permanente deslizamento
ad infinitum, de sua diferncia para diz-lo em jargo derridiano; inalcanvel pela
Palavra, que por sua vez inalcanada pelo (anterior) Sujeito, este Sujeito que nem sequer
, por oposio ao pleno, um Sujeito vazio (pois isso suporia no mnimo um buraco na
expectativa de um contedo que lhe desse forma, quando do que se trata do menos
abarcvel in-forme), e que portanto deveria ser chamado se para evocar pelo menos sua
ausncia se insistir em continuar usando a linguagem (que carrega as conseqncias da
aporia irresolvel que obriga a nomear aquilo que se pretende negar) um No-Sujeito;
a-Sujeito que exatamente o negativo (e nos privamos por enquanto de brincar com a
idia de que todo negativo pertence, certamente, imagem fotogrfica) do Sujeito Pleno:
pura dvida des-metodizada, sem Garante algum pois Deus morreu (embora saibamos
que retorna fantasmaticamente e, por isso, mais forte do que nunca), impotente j para ser
fonte de conhecimento e de razo mas, curiosamente, armado da onipotncia de poder
ser qualquer coisa , sua a-existncia (onde a eleio do termo existncia no por acaso:
pelo menos na Frana, principal ptria adotiva deste no-Sujeito, ele no somente o
sujeito anti-cartesiano mas tambm, e mais au jour, o sujeito anti-sartreano) atravessou,
deve reconhecer-se, os avatares da petite histoire : primeiro, mero suporte de estruturas
(lingsticas, ideolgicas, de parentesco, mticas, ou o que for), logo at anteontem
dissolvido junto com aquilo que supostamente devia suportar. Ser este no-Sujeito filho
dileto (at onde for possvel, claro, que um no-existente tenha pai) da Destruktion
anti-humanista heideggeriana, transformada em palavra de ordem combativa em
O homem morreu do muito sujeito Foucault? Suspendamos deixemos em suspense,
queremos dizer para mais adiante a pergunta, j que neste estdio (trambiqueiramente)
descritivo no poderamos ainda ter uma hiptese de resposta. Somente se nos permita,
por enquanto, esboar uma suspeita completamente grosseira (e no poderia ser de outro
modo neste estdio preliminar): no ser, este no-sujeito, o pice do humanismo que
pretendeu deixar para trs? No ser que, agora sim, essa onipotncia de um no-sujeito
que pura potencialidade veio, finalmente, a ocupar no puro imaginrio ideolgico o
lugar de Deus? No ter sido esta, contra seu prprio postulado, a ltima e mais extrema
tentativa de antropomorfizao do real?
Seja como for: o ringue est pronto, os opositores em seus cantos, o sino j
tocou (faz pelo menos trs dcadas, mas o que isso seno um instante na histria das
idias?). Segundos fora. Mas, justamente: queramos falar de ou melhor: escutar os
segundos. Embora, s em virtude de uma maior claridade expositiva, procuraremos
escutar, como se ver, o que acordaremos chamar de o terceiro: mais especificamente, o
Terceiro Sujeito; aquele que no nem o Sujeito pleno nem o no-sujeito, sem que por
isso represente uma terceira via (ou posio) entre eles, mas sim uma outra coisa. Mas
ainda no. Retrocedamos, antes, uns passos. Os oponentes, segundo se diz (mas o se de
se diz no ningum: um air du temps, uma difusa Weltanschauung que, desde j,
pode alcanar impensados cimos e abismos1 de sofisticao filosfica), representam
ou so patrocinados, respectivamente, pela Modernidade e pela Ps-modernidade.
Mas, to evidente que seja uma representao to linear? Seria ela, alis, possvel?
No nos ensinou o pensamento ps, precisamente, a impossibilidade da representao,
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assim como a ps-poltica ou, num outro registro, a ps-esttica, nos ensinou e de forma
realmente mais dramtica a crise da representao? Mas com o perdo de vocs
temos que retroceder mais um passo: h alguma coisa que se chame Modernidade,
qual possa se opor em bloco algo chamado de Ps-modernidade?
Que se nos entenda: no estamos perguntando mais uma vez como se fez
com insistncia tantas outras vezes se h uma verdadeira oposio entre uma e outra,
ou se a segunda a continuidade radicalizada da primeira em cujo caso se prope
cham-la de hiper ou super-modernidade. No. Estamos perguntando se ser verdade
que a modernidade uma. Porque, como j sabemos, a ps-modernidade por definio
mltipla. Precisamente, se diz, esta multiplicidade no articulada, este rizoma, o que
diferencia a ps-modernidade e a ope modernidade. Mas, de novo, to certo que s
haja uma modernidade, definida pelos grandes relatos lineares, totalizadores, evolutivos
e progressistas? J expressamos em outro lugar o nosso espanto frente ao fato de que
o pensamento crtico ps se submeta com tanta presteza prpria operao ideolgica
que pretende combater: quer dizer, verso oficial de uma modernidade que, como diria
Adorno, apresenta-se a si mesma como harmnica e reconciliada. Tambm verdade que
o pensamento ps j no existe, pelo menos em sua verso forte quer dizer, no que
paradoxalmente se chamou de pensamento dbil ; derrubou-se (somente para demarcar
taquigraficamente uma data emblemtica) em 11 de setembro de 2001, arrastado por esse
fenomenal acontecimento, por esse novo e perverso grande relato que nos devolveu,
nas palavras de Zizek, ao deserto do real, ou Histria em seu pior sentido. Mas os
mortos, como se sabe, nunca se vo embora por completo: deixam atrs de si uma esteira
fantasmagrica. E ainda que o pensamento ps esteja hoje esgotado, deixou suas marcas,
entre as quais no a menor a j-no-existncia de algo chamado Sujeito clssico, Sujeito
pleno; no-existncia que nos acostumou a dar por descontado ou incorporar como doxa
que o Sujeito morreu. O que implica, com todo o rigor lgico, a sobrevivncia (e o triunfo
por nocaute de um dos competidores) daquela confrontao dicotmica (e csmica, por
assim dizer) entre o Sujeito pleno e o No-sujeito.
Mas retomando: h pelo menos outra verso, outro relato da modernidade, que
um relato crtico (e inclusive, autocrtico, pois est construdo de dentro da prpria
modernidade), que se coloca os antpoda daquela verso oficial, mas que no chega
negao de toda pertinncia modernista, como a que fez o pensamento ps. Poderamos
cham-lo, por comodidade e mais uma vez, o Terceiro Relato. Este relato crtico reconhece
numerosos antecedentes na prpria histria do pensamento europeu: podemos encontr-
lo nos incios dessa poca, em Montaigne (inventor, como j dissemos, da palavra e do
conceito de Ensaio para qualificar um novo gnero que ele praticou superlativamente: o
dado, como veremos, no menor), ou nos Pensamentos de Pascal, ou em Bartolomeu de
Las Casas, na sua maneira, ou em La Betie, ou no Abade Raynal, ou em certas regies
de Espinosa. E inclusive antes e, casualmente, fora de Europa na inclassificvel
filosofia da histria do Ibn Khaldun, ou nas tradues sugestivamente intersticiais do
entre-dois das culturas, em Averroes. E nas origens da cultura ocidental (j voltaremos
abundantemente sobre isto) no pensamento e a literatura trgicos. Mas por uma questo
de poca explode plenamente entre finais do sculo XIX e princpios do sculo XX, nos
nomes daqueles que Paul Ricoeur qualificou, de maneira clebre, como os trs grandes
mestres da suspeita: Marx, Nietzsche, Freud. E que um autor que foi reputado como
tipicamente ps e como mentor da morte do Sujeito, Michel Foucault, tenha festejado
quase ditirambicamente a nova e revolucionria hermenutica inaugurada por essas trs
figuras, diz bastante sobre a necessidade de interrogar criticamente a imago apressada
que confronta nossos dois mticos opositores. Mas, seja como for: esta Terceira Verso da
modernidade a constatao de uma realidade, para diz-lo rapidamente, dividida contra
si mesma. A modernidade no nenhuma monoltica unidade, nenhuma indeterminvel
disseminao: uma fratura. Pode ser chamada, simplificando at a caricatura, uma fratura
entre exploradores e explorados (Marx), entre a vontade de poder e o riso zaratustriano
(Nietzsche), entre a conscincia e o inconsciente (Freud). E ainda haveria que acrescentar
a que mais difcil de identificar com um nome prprio: a que, entre os sculos XVI e
XX, dividiu o mundo inteiro contra si mesmo, pelo processo de colonizao. Quer dizer:
a que fez a modernidade, feitura que o pensamento dominante varreu meticulosamente
debaixo do tapete do progresso unilinear, do qual Benjamin podia dizer sem aporia que,
por ser o progresso dos vencedores da histria era, portanto, uma marca de barbrie.
Comecemos por este ltimo ponto que o mais antigo, a origem, a arch da
modernidade. Em seu exame se ler, nas entrelinhas mas sem grandes dificuldades, que
o Terceiro Sujeito da modernidade nem pleno nem disseminado, mas dividido, para
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diz-lo la Freud inclusive anterior ao cartesiano, pois est no fundamento histrico
negado deste. Pergunte-se a qualquer professor de histria de escola secundria, qual data
ele considera como o incio do que se chama modernidade. Muitos diro: a queda de
Constantinopla nas mos do imprio otomano. Alguns, mais culturalizantes, arriscaro: a
Reforma Protestante (clebre tese weberiana). Ou diro: o Renascimento, com a inveno
da imprensa. Sem dvida, outros muitos, aproximando-se um pouco mais a nosso
argumento, anteciparo: o descobrimento de Amrica. Dcadas mais, dcadas menos, nos
encontramos entre finais do sculo XV e princpios do sculo XVI. De acordo. Digamos,
para arredondar: ano 1500. Mas pergunte-se agora a um professor de histria da filosofia
pela data de nascimento do sujeito moderno. Quase todos respondero sem vacilao
remetendo ao cogito de Descartes, enquanto algum mais audacioso atrever-se- a citar
Espinosa ou Hobbes. De qualquer maneira, em meados do sculo XVII. Digamos, para
arredondar: ano 1650. Concluso: o sujeito moderno, aparentemente um pouco retardado,
chegou um sculo e meio mais tarde modernidade da qual sujeito: um verdadeiro
excesso de seu tempo de gestao. Sobretudo se levamos em conta que, conforme diz o
princpio individualista-liberal da filosofia moderna oficial, so os sujeitos que fazem
a sociedade, e no o inverso. Mas aqui, ento, a teoria a que chamaremos de agregativa
(a sociedade a soma dos indivduos que a conformam) morde-se aporeticamente a
cauda: nesse caso, no deveria o sujeito moderno preceder modernidade? Mas fomos
informados por nosso erudito professor de histria do pensamento que ele est atrasado
cento e cinqenta anos respeito dela. E ento?
A soluo no muito difcil, desde que se suspenda, outra vez, a premissa
individualista-liberal e, como veremos, eurocntrica. Ou melhor, desde que se
inverta a lgica de sua causalidade, adicionando-lhe uma retoro. Como no dispositivo
do fetichismo da mercadoria de Marx, a sociedade que produz seus sujeitos, mas a
operao ideolgica dominante oculta com esmero o processo de produo, e inventa
um produto eterno, a-histrico. O Sujeito Pleno (cartesiano, kantiano, ou como se
prefira) teve que esperar a consolidao igualmente plena de uma nova lgica social,
econmica e poltica nos pases chamados centrais, que tambm conseguiu ocultar a
prpria histria do surgimento dessa centralidade em 1492. E de maneira mais geral,
para ocultar que o ocidente europeu moderno no era uma construo harmnica e
racional feita pelo Sujeito Pleno, mas que o Sujeito Pleno era a alavanca do deslocamento
da emergncia conflitante, dilacerada, sangrenta, de uns sujeitos sociais novos em estado
de fratura trgica e violenta. Porque ainda mantendo as datas emblemticas assinaladas
por nossos bem clssicos historiadores , no teramos uma imago muito diferente da
subjetividade moderna se, eliminando aquele desajuste de um sculo e meio, fizssemos
coincidir o nascimento do sujeito moderno com os acontecimentos que sinalizam o
comeo da modernidade? Assim, se demonstraria, por exemplo, que o sujeito moderno
o produto de um choque de culturas e de sociedades: entre o Oriente e Ocidente na
queda de Constantinopla, ou das guerras religiosas em relao Reforma, e do choque de
trs civilizaes no descobrimento, conquista e colonizao da Amrica (dizemos trs,
porque muito freqentemente se esquece a ligao ntima entre a explorao da Amrica e
a destruio da frica atravs do trfico de fora de trabalho escrava). Quero dizer, ainda
de um ponto de vista estritamente filosfico, no tem mais a ver com o nascimento
do sujeito moderno o debate entre Bartolomeu de Las Casas e Francisco Vitoria sobre o
estatuto da alma, da psych dos indgenas americanos ou dos negros africanos, que com
a plenitude autnoma e mondica do cogito?
Mas, para completar nossos acontecimentos fundadores, que acontece com
o chamado Renascimento (e muito seria necessrio discutir sobre esse maltratado
conceito)? No se d a, como costuma acontecer na arte, um tipo de antecipao do
Sujeito Pleno, at mesmo do sujeito da racionalidade instrumental frankfurtiana, atravs
da inveno da perspectiva, que no somente faz do indivduo o protagonista, mas que
tambm permite coloc-lo em primeiro plano, em posio dominante, dotando essa
posio de uma organicidade e harmonia naturais, e tirando de cena a problematicidade
histrica dessa construo? No o mrito principal do grande historiador da arte crtica,
Aby Warburg, nos rastros de Nietzsche e de Freud, ter mostrado que esse era um gesto de
represso do sujeito trgico e profundamente problemtico daquela cultura arcaica que
agora se pretendia fazer renascer, mas somente pelo seu lado apolneo?
Em todo caso, tanto o Sujeito Pleno dos modernistas oficiais como o No-sujeito
dos ps-modernistas eliminam por vias opostas mas complementares a corporeidade
de origem fraturada do sujeito coletivo da modernidade, desse que chamamos o Terceiro
Sujeito (embora seja, cronologicamente, o primeiro). verdade que os ps-modernos ou
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Eduardo Grner
os ps-estruturalistas recusam criticamente as pretenses onipotentes do Sujeito Pleno;
mas eles, por sua vez, perdem no caminho o carter trgico do sujeito, pela troca de sua
plenitude por sua disseminao, dissolvendo assim sua fratura originria e, portanto, sua
violenta historicidade.
Em sntese, estamos todos malucos se acreditarmos que continuaremos nos
arranjando com essa oposio entre o Sujeito Pleno e o No-sujeito. Escolher um ou
outro dentre eles significaria de novo tomar a parte pelo todo e, assim, imaginar uma
falsa totalidade conceitual e abstrata. O Terceiro Sujeito ou sujeito dividido (em todos
seus campos histricos, no somente no subjetivo), nem inteiro nem disseminado, nos
fora a nos instalarmos no centro do conflito, da fratura, da falha (como quem diz falha
geolgica) material e originria. Gostariam de pr-lhe um nome? Sempre possvel:
seria, para comear, o sujeito dividido da prpria Natureza, essa que como hoje se v
foi fraturada at a mais extrema canibalizao, e sobre a qual dizia Montaigne, j em
1580, que a testemunha por excelncia da insignificncia do homem que, se estimando
com soberbia superior ao resto das coisas, esqueceu os vnculos que o unem matria;
ainda o sujeito dividido proletrio, claro que sim, embora se pretenda que ele est
disseminado, mas que foi na verdade fraturado entre seu em-si e seu para-si, entre
o que se lhe atribua como sua misso histrica e seu dramtico esmagamento sob
o regime do Capital; o sujeito dividido perifrico, ou terceiro-mundista ou ps-
colonial, fraturado entre uma identidade originria irrecupervel ou possivelmente
s imaginria, e sua identificao impossvel com a globalizada totalidade abstrata; o
sujeito dividido indgena, negro, mestio, fraturado entre a cor bem distinguvel de
seu corpo e a no-cor que o ideal branco de inexistncia corporal; o sujeito dividido
desempregado, marginal, migrante obrigado e rejeitado, restante, descartvel,
fraturado entre seu empenho por recuperar uma no se sabe qual dignidade integrada e
seu carter de resto desprezado, quando no odiado por ser o espelho antecipador de um
futuro sempre possvel da chamada classe mdia; o sujeito dividido mulher, trans,
sexualmente minoritrio, fraturado entre seu desejo de diferena e sua reclamao de
igualdade; o sujeito dividido judeu, muulmano, ateu, pantesta, e at cristo,
fraturado entre o sublime de sua f ou de sua crena, e o freqentemente monstruoso de
sua Igreja (porque at os ateus, j se sabe, tm igreja), que permanentemente lhes inculca
o dio que o universal abstrato tem pelo particular concreto; o sujeito dividido cidado
honesto e preocupado, fraturado entre sua autntica concernncia quanto ao destino
da polis humana e seu absoluto cansao e desespero frente decomposio, a canalhice
assassina ou a imbecilidade que passa por ser a poltica mundial. Enquanto Aufhebung de
todos eles que, entretanto, no os sintetiza, o sujeito trgico, o sujeito fraturado entre
sua potncia herica e seu destino histrico abjeto.
Mas este, ainda, um sujeito filosfico? Certamente. Mas a condio de
que ensaiemos uma filosofia que esteja a sua altura: uma filosofia igualmente dividida,
igualmente fraturada, igualmente em tenso imanente entre o Conceito e o Corpo.
Uma filosofia, portanto, que no renuncie, como no poderia renunciar, ao Conceito,
mas tampouco a seu sempre renovado fracasso. A seu sempre reconstrudo limite
levantado pelas fraturas geolgicas do Corpo do sujeito; ou da natureza mesma, da
matria lamacenta da qual o sujeito emergiu, e segue emergindo. Com essa condio,
podemos at tentar a audcia de dar seu nome a este terceiro sujeito: o sujeito falhado.
Sujeito daquela falha geolgica, mas tambm, falhado de fbrica, como se diz em
espanhol para qualificar o que est constitutivamente mal feito, defeituoso. No , como
se v, o sujeito inteiro, completo, do modernismo dominante. No tampouco o no-
sujeito disperso, difuso, etreo do ps-modernismo des(cons)trutivo. No mltiplo e
indeterminvel, dividido e reconstituvel em cada ocorrncia histrica, sem que por isso
perca sua fratura constitutiva: a expe de outra maneira. No a alegre e despreocupada
proliferao de diferenas do multiculturalismo: sempre o mesmo, o sujeito da fratura
que se manifesta nas descontinuidades e solapamentos da matria histrica. E que da luta
contra aquela abjeo de seu destino qual o lanou, no seu DaSein ontolgico, mas o
Poder de turno. Que seja ou no seja filosfico , certamente, assunto de debate. Mas,
justamente: que outra coisa poderia ser a filosofia, a que nos interessa?
Esse ensaio de debate s pode recriar-se, hoje, sobre novas bases na periferia
e, em particular, na Amrica Latina, pois o que costumava chamar-se o primeiro mundo
est paralisado (seja por seus prprios interesses ou, no campo intelectual, pelo abandono
da discusso originria sobre o poltico-cultural corporizado), impedido de continu-lo.
E, alm disso, esse primeiro mundo j foi, desde ao menos um sculo e meio atrs,
bastante atravessado pelo que Anbal Quijano chamaria a colonialidade do saber, como
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para estar em condies de redefinir a fundo suas prprias premissas tericas, filosficas,
historiogrficas, e recuperar algo de sua perdida matria. Mas certamente, isso no significa
em absoluto que os intelectuais, os ensastas filosficos latino-americanos, devamos
dar as costas ou jogar pela janela a grande tradio de pensamento crtico produzido na
modernidade europia: precisamente, pela nossa prpria histria, e at pelas piores razes
dessa histria colonial, estamos em situao privilegiada para empreender esse dilogo, o
conflitante e rspido que for necessrio, embora sem a falsa iluso de poder varrer embaixo
do tapete, magicamente, nossa prpria e rasgada genealogia cultural, nosso prprio corpo
canibalizado, nossa prpria falha geolgica. Mas, justamente, devemos assumir essa
fenda, tom-la como ponto de partida para pensar o mundo a partir de um outro lado,
reinscrevendo em nossa prpria escritura o que achemos til (exercendo, como alguma
vez props Haroldo de Campos, a agora sim saudvel antropofagia de deglutir tudo
aquilo que sirva a nosso metabolismo cultural, vomitando o resto). E, sobretudo, embora
no possamos comear de zero, nos sacudirmos a modorra do filosoficamente correto e
inventar, quer dizer, ensaiar. Seria preciso repetir mais uma vez o cannico dictum de
Simn Rodrguez? Ou inventamos ou erramos. E o pior erro ser sempre, no tanto o de
enlouquecer, mas o de perder o prprio corpo.
O sujeito desse outro lado e portanto, o pensamento que possa pens-lo
tambm, e sobretudo, em seu ainda-no (para diz-lo com Ernst Bloch), , se seguimos
conseqentemente o esboo que acabarmos de fazer, o do interstcio. Ou, como
propusemos em outra parte para traduzir o in-between de Homi Bhabha, o sujeito-corpo-
pensamento do linde. Nada a ver nos apressemos a esclarecer com a hibridez de
um Garca Canclini por exemplo. Exatamente o contrrio: o linde , acima de tudo, uma
fronteira. E sempre (apesar da insidiosa ideologia da globalizao), mas com renovados
brios depois de 11 de setembro de 2001 (que terminou de liquidar o que restava da
realidade da globalizao, embora persistam os farrapos de ideologia), as fronteiras no
so arranjos de amveis sntese interculturais, mas um espao de conflito e um campo de
batalha: pergunte-se seno aos costas molhadas, aos palestinos, aos turcos berlinenses,
aos marroquinos de Melilla, aos tutsies (como antes aos hutus), aos bolivianos de Buenos
Aires, aos saharauies, aos paquistaneses de Londres, aos argelinos da banlieu de Paris,
e assim por diante. Quase nenhum deles tem oportunidade de negociar sua identidade
ou sua cultura. Tampouco a tiveram, historicamente, os amerndios nem os afro-
americanos. Toda negociao, numa situao desigual de poder, no pode ser seno
uma imposio de uma das partes sobre a outra. Outra coisa da qual muito deveramos
falar que as estratgias de defesa frente a imposio saibam, ou possam, se reapropriar,
ressignificando-as (como se diz agora), de fragmentos da identidade ou da cultura perdidas
para com eles produzir alguma novidade que permita, mesmo que imaginariamente, no
perder tudo (em termos mais tericos, trata-se do que Ernesto de Martino teria chamado
uma certa recuperao, sob a forma de criao cultural, da crise da presena social).
Mas se trata, insistimos, de estratgias de defesa e certamente emolduradas e contidas
pelo scio-metabolismo do Capital , e no de iniciativas autonomamente produtivas que
suponham autnticas alternativas a esse scio-metabolismo.
O sujeito que da surge, produzido por essa crise cultural (que, para voltar
para nossos exemplos, pode ter adquirido dimenses histricas apocalpticas, como foi
o caso dos amerndios ou os afro-americanos) no pode seno ser, ele mesmo, um
sujeito fraturado. Desse reconhecimento de uma fratura estrutural se deve partir para
teorizar, para criar hipteses, para conjeturar, e o mais difcil para atuar.
We are all crazy... The modern subject and the geological fissure
Abstract: This paper aims to question the opposite positions of the full cartesian subjetct and the non-subject of post-modernity, that intends to criticize the reasons of the first.
What is omitted in this opposition is an internal tendency towards auto-criticism in the modernity itself that allow us to think a thid subject, that is tragic and faulty a product of the violent history. Keywords: modernity, post-modernity, full subject, tragic subject.
NOTAS:
1 N. do T: Trata-se de um jogo de palavras que em portugus no reproduzvel. No original em espanhol: impensadas cimas y simas; s mudando uma consonante e com idntica pronncia, se faz referncia a topologias opostas: cumes e depresses ou precipcios.