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A Educação em Portugal Este trabalho tem como objectivo oferecer uma panorâmica geral sobre o actual estado do ensino em Portugal, numa era de globalização, num cruzamento de ideologias mais competitiva ou mais solidária e numa altura muito conturbada em termos sociais e económicos. Breve Introdução Histórica O ensino em Portugal foi inicialmente ministrado em alguns mosteiros (e.g. Santa Cruz de Coimbra e Alcobaça), onde se ensinava a ler, a escrever e a contar. A criação da primeira universidade portuguesa data do século XIII, o “Estudo Geral” e é fundada em Lisboa, em 1288. A preocupação dominante no ensino aí ministrado era de carácter religioso. Nos séculos XVI e XVII os Jesuítas vão ocupar quase toda a cena da educação, com colégios criados em todo o país, de ensino gratuito. No séc. XVIII, com o Marquês de Pombal, os Jesuítas são expulsos de Portugal e começa-se a desenhar, no campo do ensino um controlo do Estado na educação formal, as bases de um sistema educativo. Criou-se a Directoria Geral dos Estudos, as Faculdades de Medicina e Matemática e um imposto - o subsídio literário - para financiamento das despesas educativas. No reinado de D. Maria I, o ensino volta às mãos dos religiosos. Com o liberalismo, tomaram-se medidas notáveis como seja a criação do Ministério da Instrução Pública e do “Regulamento Geral da Instrução Primária” (1835). Introduz-se a ginástica no ensino primário, escolas dedicadas ao ensino infantil, cursos para adultos e para deficientes; criam-se os Liceus e Escolas Comerciais e Industriais a nível secundário e Escolas do Ensino Superior em Lisboa e no Porto. O sistema de classes substitui o de disciplinas. A Republica (1910) procede à extinção das ordens religiosas, são eliminadas o ensino da doutrina cristã (nas escolas primárias) e a da disciplina de Teologia (no ensino superior), assim como o “foro académico”, que tornava os estudantes universitários, imunes à justiça ordinária. Cria-se o Ministério da Instrução Pública (1913), é posto em prática o princípio da coeducação (as alunas podiam frequentar os liceus masculinos), criam-se os primeiros “Jardins-Escola” infantis - que ministram as primeiras noções de liberdade e solidariedade -, as Universidades de Lisboa e do Porto recuperam a sua

Educação

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Educação em Portugal

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Page 1: Educação

A Educação em Portugal

Este trabalho tem como objectivo oferecer uma panorâmica geral sobre o actual estado

do ensino em Portugal, numa era de globalização, num cruzamento de ideologias mais

competitiva ou mais solidária e numa altura muito conturbada em termos sociais e

económicos.

Breve Introdução Histórica

O ensino em Portugal foi inicialmente ministrado em alguns mosteiros (e.g. Santa Cruz

de Coimbra e Alcobaça), onde se ensinava a ler, a escrever e a contar. A criação da

primeira universidade portuguesa data do século XIII, o “Estudo Geral” e é fundada em

Lisboa, em 1288. A preocupação dominante no ensino aí ministrado era de carácter

religioso. Nos séculos XVI e XVII os Jesuítas vão ocupar quase toda a cena da

educação, com colégios criados em todo o país, de ensino gratuito.

No séc. XVIII, com o Marquês de Pombal, os Jesuítas são expulsos de Portugal e

começa-se a desenhar, no campo do ensino um controlo do Estado na educação formal,

as bases de um sistema educativo. Criou-se a Directoria Geral dos Estudos, as

Faculdades de Medicina e Matemática e um imposto - o subsídio literário - para

financiamento das despesas educativas. No reinado de D. Maria I, o ensino volta às

mãos dos religiosos.

Com o liberalismo, tomaram-se medidas notáveis como seja a criação do Ministério da

Instrução Pública e do “Regulamento Geral da Instrução Primária” (1835). Introduz-se a

ginástica no ensino primário, escolas dedicadas ao ensino infantil, cursos para adultos e

para deficientes; criam-se os Liceus e Escolas Comerciais e Industriais a nível

secundário e Escolas do Ensino Superior em Lisboa e no Porto. O sistema de classes

substitui o de disciplinas.

A Republica (1910) procede à extinção das ordens religiosas, são eliminadas o ensino

da doutrina cristã (nas escolas primárias) e a da disciplina de Teologia (no ensino

superior), assim como o “foro académico”, que tornava os estudantes universitários,

imunes à justiça ordinária. Cria-se o Ministério da Instrução Pública (1913), é posto em

prática o princípio da coeducação (as alunas podiam frequentar os liceus masculinos),

criam-se os primeiros “Jardins-Escola” infantis - que ministram as primeiras noções de

liberdade e solidariedade -, as Universidades de Lisboa e do Porto recuperam a sua

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autonomia e transformam-se o Instituto Industrial e Comercial de Lisboa em duas

escolas distintas: o Instituto Superior Técnico e o Instituto Superior do Comércio.

Com o golpe militar de 28 de Maio de 1926, deu-se o início da ditadura e o ensino

sofreu grandes alterações. Cria-se a chamada “escola nacionalista”, os programas são

reduzidos à aprendizagem escolar de base, proíbe-se a coeducação, reduz-se o ensino

primário e criam-se nas regiões rurais os “postos de ensino”, cujos “mestres” em muitos

casos sabiam apenas ler e escrever. O Ministério da Instrução Pública passa a chamar-se

Ministério da Educação Nacional (1936). Nos anos 60 dá-se o alargamento da instrução

primária às crianças do sexo feminino e aumenta-se para seis anos a escolaridade

obrigatória.

O golpe militar de 25 de Abril de 1974 repõe o estado democrático, assinalando-se

transformações significativas na educação. Deixa de haver reprovação no final do 1º e

do 3º ano de escolaridade, no sentido de alargar a frequência a um maior número de

alunos. No ensino secundário, cria-se o curso geral unificado, constituído pelo 7º, 8º e 9º

ano de escolaridade obrigatória (1975). Cria-se um ano propedêutico, um ano vestibular

de ingresso ao Ensino Superior - onde as universidades passam a dispor de total

autonomia - e o numerus clausus (1977).

Em 1983, criam-se cursos técnico-profissionais, a ministrar após o 9º ano de

escolaridade, que conferem diplomas de fim de estudos secundários e permitem o

acesso ao ensino superior. Em 1986, o cumprimento efectivo da escolaridade

obrigatória é apoiado por várias medidas, como sejam o transporte escolar ou a criação

de cantinas e o ensino básico – universal, obrigatório e gratuito – passa a ter a duração

de nove anos (Lei de Bases do Sistema Educativo).

O Presente

Com séculos de reformismo nas políticas educativas, a distância entre as intenções

proclamadas e os resultados continua a ser grande. O nosso sistema de ensino parece

orientado para produzir exactamente o contrário daquilo que os sucessivos governos

proclamam: o «sucesso escolar». É necessário uma teoria crítica do ensino em Portugal.

A ideologia “competitiva” e a ideologia “solidária”

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Nos últimos vinte anos Portugal apresenta uma contradição entre duas ideologias do

ensino numa mesma instituição escolar: uma ideologia “competitiva”, onde a função da

escola consiste em emancipar o género humano mediante a administração do saber,

fundamentando-se nos seguintes princípios: a razão é a coisa mais bem distribuída do

mundo, mas poucos a sabem usar; os seres humanos não são naturalmente curiosos, e

preferem a segurança da crença e do preconceito; a ignorância constitui o estado natural

e primitivo da consciência; aprender é um acto antinatural, que tem de ser imposto.

Trata-se de uma representação vertical e disciplinar onde a educação é concebida

enquanto forma de disciplinar as pulsões e como rito de passagem, das "trevas" para a

"luz", e a superação de provas e rituais de dureza. Exige-se selectividade, numa escola

meritocrática. Um ‘positivismo’ consagrado desde primeira República, no objectivo da

emancipação pelo saber, mais tarde amordaçado pelo salazarismo, onde os Portugueses

precisavam apenas de saber ler, escrever e contar.

Uma ideologia da “solidariedade”, desenvolvida ao longo dos anos 60, reflexo da

emergência de novos movimentos sociais e crítica radical das instituições. A ideologia

“solidária” assenta nos seguintes princípios: os seres humanos são naturalmente

curiosos e criativos; a escola é um espaço de prazer, numa representação horizontal-

lúdica do ensino, que deve estar ‘centrado no aluno’, mais do que um recipiente passivo

de conhecimento; o papel do professor é o de um organizador da ‘curiosidade’ dos

alunos, mais do que avaliar conhecimentos. Esta ideologia tornou-se oficial e dominante

após o 25 de Abril, percorrendo todos os documentos de carácter pedagógico emanados

do Ministério da Educação.

A coexistência destas duas ideologias no sistema escolar tem contribuído para a

indefinição dos objectivos: por um lado, submetem-se os alunos a um processo de

avaliação dos conhecimentos cujo fim último é classificá-los e seriá-los de acordo com

critérios selectivos (ideologia “competitiva”); por outro lado, são culpabilizados os

professores que atribuem classificações negativas em número excessivo, num afã de

sucesso educativo. Esta incompatibilidade afecta o funcionamento de todo o sistema: a

ideologia “solidaria” atravessa toda a escolaridade obrigatória, com a prática

generalizada da ‘passagem automática’, para depois entrar a exigência da ideologia

“competitiva” ao longo do secundário, imposta pela contracção do mercado de trabalho

– note-se que as taxas de desemprego estão acima da média da OCDE para todos os

níveis de escolaridade completos (OCDE, 2013).

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A descontinuidade entre os dois graus de ensino deve-se, em grande medida, à

impossibilidade de harmonizar regimes opostos: uma avaliação “formativa” na

escolaridade obrigatória e uma avaliação hierarquizante no secundário; o colectivismo

pedagógico (e.g. a obsessão pelos trabalhos de grupo) e a redução do papel do professor

ao de um animador cultural, onde interessa seleccionar, não os alunos mas os

professores, que devem facilitar a transição e servir a demagogia "educativa" do poder

político. O objectivo neoliberal de introduzir a selectividade é limitado pela contradição

entre as ideologias e a selecção é nivelada por baixo (e.g. o ensino superior aceita

estudantes com classificações negativas).

As Políticas

São as políticas governamentais que antagonizam estas ideologias, em função do

momento. A ideologia “competitiva” é secundarizada quando entra em colisão com o

seguinte: “armazenar" as crianças e os jovens nos estabelecimentos de ensino,

mantendo-os ocupados enquanto os pais trabalham e assegurando a sua transição

"suave" de ano lectivo; apresentar indicadores de sucesso escolar, para agradar as

famílias a troco de favores eleitorais, promovendo a imagem de um “Portugal de

sucesso”.

Uma propaganda encenada na propaganda de uma escola ideal e “solidaria”. Em

Portugal, as taxas de matrícula de crianças dos 3-4 anos de idade estão acima da média

da OCDE e tem vindo a reduzir o abandono escolar desde 2000 (OCDE, 2013). Tudo

isto em contradição com a política dominante no ensino secundário: atribuir aos alunos

classificações, signos de promoção ou despromoção social, cuja segmentação reproduz

os vários patamares do mercado de trabalho – note-se que as taxas de conclusão nos

níveis secundário e superior estão abaixo da média da OCDE (OCDE, 2013).

Hoje, a autoridade magistral do professor foi completamente dessacralizada, a par da

descanonização do saber, através da massificação populacional nas escolas, que retirou

ao professor qualquer aura ou carisma (ele é somente mais um, no meio da massa). A

descanonização consiste em ridicularizar o paradigma vertical-disciplinar da ideologia

“competitiva”. Este fenómeno combina-se com o desprezo pela leitura e com esse vasto

“analfabetismo funcional” das culturas urbanas. A ludicidade é reinterpretada como

infantilização dos conteúdos, um sucesso escolar na versão de uma "pedagogia pop" –

e.g. a actual avaliação de docentes concentra-se mais na prestação de contas para fins de

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progressão na carreira do que na melhoria do ensino e nem todas as escolas realizam

autoavaliação (OCDE, 2013).

As Contradições

O poder, em Portugal, tem oportunisticamente recorrido às ideologias diferentes para

legitimar políticas inconciliáveis, numa teia legislativa centralizada que serve variadas

clientelas. É o caso das directivas antagónicas que lançam a confusão no funcionamento

das escolas: calendário escolar, natureza das provas, definição da carreira docente e dos

concursos para a colocação de professores. A tomada de decisões nas escolas

Portuguesas continua muito centralizada, sendo por exemplo de 22% no 3.º ciclo do

ensino básico em 2011, muito modesto em comparação com as capacidades na tomada

de decisões das escolas em outros países da OCDE (41%) (OCDE, 2013).

Em suma: a escola que deveria corrigir as desigualdades sociais, confirma e reproduz

essas assimetrias, onde os professores são cúmplices activos nas avaliações

hierarquizantes. De salientar que o impacto do contexto socioeconómico dos alunos

sobre o desempenho em matemática e sobre as taxas de repetência é maior do que a

média dos países da OCDE1 (OCDE, 2013). Por outro lado, passa-se para uma

generalização paranóide, em que devem ser removidos todos os testes ou exigências que

ponham os alunos em risco de frustração, condição para uma “escola de sucesso para

todos”. No fim, todos serão bem-sucedidos, mesmo que não saibam ler nem escrever. O

resultado é uma ignorância, em todos os graus de ensino (incluindo o universitário), no

que respeita à capacidade de interpretar e de construir textos, às referências históricas e

ao conhecimento científico em geral2. Uma ignorância que é o meio para consolidar as

assimetrias nas relações de poder. Interessa relembrar que os gastos com aluno e a

parcela do PIB dedicada à educação em Portugal estão abaixo da média da OCDE3. A

ideologia pedagógica dominante conseguiu, na prática, o oposto do que pretende na

teoria: o “sucesso de todos” significa o sucesso da mediocridade, que não é

emancipatória. Será toda a exclusão, moral e politicamente injusta? E será toda a

selecção, forçosamente antidemocrática?

1 No PISA ( Programme for International Student Assessment) 2012, o impacto do contexto

socioeconómico no desempenho em matemática de estudantes de 15 anos de idade em Portugal foi de

19,6%, acima da média da OCDE de 14,8% 2 No PISA 2012 os alunos portugueses estiveram perto da média da OCDE em matemática (pontuação

média de 487 em comparação com a média da OCDE de 494), mas abaixo da média da OCDE em leitura

e ciências (OCDE, 2013) 3 5.5% para Portugal contra 6.1% da OCDE) (OCDE, 2013).