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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
EDUCAÇÃO AMBIENTAL EM ESPAÇOS NÃO ESCOLARES: UM OLHAR SENSÍVEL E O
DIÁLOGO DE SABERES POPULARES EM UMA COMUNIDADE QUILOMBOLA
Salete Vedovatto Facco1
Aline Lemos da Cunha Della Libera2
Resumo: Este artigo tem como objetivo refletir sobre as formas de ensinar e aprender em um espaço não escolar: a
associação comunitária de um quilombo urbano na cidade de Porto Alegre (RS). As análises partem dos registros
sistematizados em relatórios semanais das oficinas de artesanato em que foram confeccionados sabonetes de ervas
medicinais e sabão ecológico, realizadas em 2013 e 2014, por meio do projeto de extensão - Justiça com as próprias
mãos - intermediando a valorização das práticas artesanais e dos conhecimentos populares que circulavam por este
grupo constituído por mulheres quilombolas. Como suporte para as análises, discute-se a relevância social e política do
diálogo de saberes (LEFF, 2009), da formação do sujeito ecológico (CARVALHO, 2012) e da Educação Ambiental
Popular (BRANDÃO, 2015; SORRENTINO, 2014; CUNHA, 2014), a fim de compreender os processos de ensinar e
aprender, bem como ressaltar a valorização e a reapropriação dos conhecimentos populares. Os saberes compartilhados
com as mulheres quilombolas foram (re)afirmados no contato direto e duradouro, buscando o diálogo entre o saber
popular e o acadêmico, contribuindo para a formação do sujeito ecológico.
Palavras-chave: Educação Ambiental Popular. Mulheres Quilombolas. Diálogos dos Saberes popular e científico.
Iniciando a conversa
Este artigo tem a finalidade de apresentar reflexões3 das autoras, provocadas a partir de sua
participação em oficinas promovidas pelo projeto de extensão Justiça com as próprias mãos4,
realizadas de 2013 a 2014. Essa ação teve como objetivo proporcionar espaços formativos, nos
quais houvesse um efetivo diálogo entre os saberes populares e o saber científico, percebendo e
acompanhando os processos educativos de um grupo de mulheres pertencentes a um Quilombo
urbano na cidade de Porto Alegre (RS).
Acompanhamos e refletimos sobre os modos de compartilhamento do conhecimento
popular, por meio da troca de saberes existentes nos diálogos entre as participantes do grupo, tendo
como motivação a produção de sabonetes artesanais com ervas medicinais, a produção de sabão
1 Pedagoga e artesã, ex-bolsista de Extensão do Projeto “Justiça com as próprias mãos”. Graduou-se pela Universidade
Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Brasil. 2 Doutora em Educação, Coordenadora do Projeto de Extensão “Justiça com as próprias mãos”. Professora Adjunta IV
do Departamento de Estudos Especializados, Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul,
Porto Alegre, Brasil. 3 FACCO, Salete Vedovatto. Educação Ambiental em espaços não escolares: um olhar sensível e o diálogo de saberes
populares em uma comunidade quilombola. 2015. 57 f. Trabalho de Conclusão de Curso (Pedagogia) – Faculdade de
Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2015. 4 Vinculado à Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. O título remete a uma
problematização do dito popular - “fazer justiça com as próprias mãos” - buscando um olhar diferenciado sobre o
termo, a partir da produção artesanal e da discussão sobre os saberes ambientais populares numa perspectiva
ecofeminista, com foco nos Direitos Humanos das Mulheres.
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ecológico e oficinas sobre chás. Neste processo, os diálogos que surgiam foram componentes
essenciais para as análises aqui apresentadas.
Percursos teóricos: Educação Ambiental, Educação Ambiental Popular e o diálogo de saberes.
Carvalho (2012, p. 26) apresenta uma das aspirações das políticas públicas de Educação
Ambiental nas últimas décadas, quando ocorreu o surgimento de práticas sociais voltadas para as
relações entre a sociedade e o ambiental: a formação do “sujeito ecológico”. Esta autora considera
que para ocorrer tal relação, de maneira a promover a sustentabilidade, é preciso que os educadores
ambientais promovam mediações entre a esfera educacional e o campo ambiental, produzindo
reflexões, análises das diferentes concepções, adotando metodologias que promovam experiências
que visem construir novas bases de conhecimento e valores ecológicos, nestas e nas futuras
gerações. É destas relações e diálogos, segundo esta autora, que podemos ver surgir o “sujeito
ecológico”.
A proposta de Educação Ambiental que Carvalho (2012, p. 75) apresenta, de formar um
sujeito ecológico, é efetivada com a mediação do educador ambiental e a participação dos sujeitos
envolvidos. Sendo assim, em sua formação, o “sujeito ecológico será capaz de “ler” seu ambiente e
interpretar as relações, os conflitos e os problemas aí presentes”. O conhecimento é, desta forma,
aprimorado e ampliado no diálogo com outros saberes, tanto científicos quanto populares. Diálogo
esse que, envolvido pela complexidade das questões ambientais, busca alternativas para as
problemáticas da comunidade. Além disto, a autora considera que a Educação Ambiental “como
prática educativa reflexiva” abre um caminho para a “sensibilização ambiental e valores
emancipadores” (CARVALHO, 2012, p.106). Por fim, trata-se de reconhecer que, para apreender
este conhecimento, é necessária uma visão complexa do meio ambiente, em que a natureza integra
uma rede de relações não apenas naturais, mas também das relações das pessoas, em nosso caso
mulheres, com a natureza.
Alguns dos saberes necessários para a vivência em sociedade não são descobertas recentes.
Por isto, pode-se dizer que, mesmo sem uma intencional sistematização, a Educação Ambiental
Popular, sempre existiu. Povos indígenas, comunidades campesinas, ribeirinhas e quilombolas, em
seus territórios distantes dos grandes centros urbanos, vivenciaram cotidianamente em sua história a
necessidade de preservar o meio, compartilhar saberes em comunidade (ao redor do fogo),
transmitir os conhecimentos ancestrais e valorizar os rituais que compunham seus processos
identitários. Compreendemos que estes saberes e esta valorização do meio natural, transmitidos
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entre as gerações e nas mais diversas culturas por meio do diálogo, tornaram-se essenciais para
sustentabilidade da vida e da própria humanidade. Conforme Leff (2009, p. 19) “o saber social
emerge de um diálogo de saberes, do encontro de seres diferenciados pela diversidade cultural,
orientando o conhecimento para a formação de uma sustentabilidade partilhada”, a qual promove a
preservação do meio e o sentido comunitário do ensinar e do aprender.
O uso de ervas para o tratamento de doenças, por exemplo, compõe saberes que foram
repassados entre as gerações e permanecem necessários e aplicados até os dias de hoje, mesmo em
comunidades urbanas - resguardadas as devidas mudanças paradigmáticas provocadas pelo
afastamento do rural, que passou a representar o passado e o atraso. A ciência moderna reconhece
as propriedades medicinais destas plantas e, inclusive, podemos encontrá-las sob a forma de
medicamentos produzidos por laboratórios na indústria farmacêutica. Contudo, o mundo moderno,
dotado de novas e avançadas tecnologias no âmbito farmacêutico, tende a subjugar o uso e a troca
de saberes populares sobre ervas medicinais, presentes nesses territórios muitas vezes
desconsiderados e até desconhecidos pela academia. A desvalorização cultural dificulta e, por
vezes, impede o empoderamento dos grupos populares diante destes saberes que foram
fundamentais para sua constituição. Leff retoma a relevância dos saberes ambientais e das coisas
simples, que têm sido ignoradas ou subjugadas em nome do que se considera ciência, pois
são/foram importantes para os grupos sociais e promovem uma aproximação com a sua
ancestralidade, com seu contexto e com sua realidade.
O saber ambiental busca conhecer o que as ciências ignoram, porque seus campos de
conhecimento projetam sobras sobre o real e avançam, disciplinando paradigmas e
subjugando. (...) O ambiente é um saber sobre a natureza externalizada, sobre as
identidades desterritorializadas, a respeito do real negado e dos saberes subjugados. (LEFF,
2009, p. 18-19)
No caso da experiência aqui narrada, as mulheres quilombolas participantes no projeto
perceberam, durante as oficinas, que o seu conhecimento sobre as ervas, guardado em sua memória
e evidenciado no diálogo, estava sendo valorizado. Consequentemente, a partilha no grupo foi se
consolidando. Tornou-se fundamental a retomada destes saberes para a construção de um saber
ambiental popular compartilhado. Tal aspecto foi problematizado por Leff (2009, p.19), quando
destacou a relevância do “diálogo de saberes, do encontro de seres diferenciados pela diversidade
cultural, orientando para a formação de uma sustentabilidade partilhada”. As vivências neste
Quilombo conduzem a refletir que
o mais importante é que o educador ou a educadora ambiental popular promova o debate de
tudo isto, propiciando a enunciação das utopias, o debate crítico voltado ao
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amadurecimento dos projetos individuais e coletivos e as ações coordenadas no sentido da
construção dos mesmos. (SORRENTINO, 2014, p. 149)
Na partilha da lembrança sobre os saberes ambientais populares referentes às ervas, os quais
estavam guardados em suas memórias e manifestos em suas vivências, buscou-se a valorização do
saber popular, na sua transmissão de sujeito para sujeito, caracterizando-o como um bem ambiental
e cultural.
Cabem aqui algumas reflexões sobre saberes populares e sobre a adjetivação Popular à
Educação Ambiental que apresentamos anteriormente.
O conhecimento tradicional que circula nas comunidades diz respeito às informações
acumuladas ao longo do tempo, por suas práticas, seus valores, suas crenças, sua cultura, seus
saberes populares, suas vivências e experiências. Tais conhecimentos são modificados pela
comunidade ao longo de sua história. Para Pinheiro e Giordan (2010), o saber popular é um
conjunto de conhecimentos que são adquiridos de forma empírica, a partir do fazer e são
transmitidos de geração em geração por meio oral, gestos, atitudes, baseados em crenças, opiniões e
em superstições, pelo restrito acesso destes grupos (mesmo na atualidade) daquilo que é
considerado saber científico. Para Dickmann e Dickmann (2008, p. 70) “o saber popular é
entendido como aquele que é fruto das várias experiências vividas e convividas em tempos e
espaços diversos na história do povo”. Brandão (2005) considera que os saberes populares são o
legado das comunidades, os saberes que todos têm e que podem ser compartilhados, pois sempre há
lugar para um novo saber. Tornam-se referência para o cotidiano imediato e para que os grupos
populares externem suas visões de mundo, compondo a cultura popular. Estes saberes, por vezes,
passam a ser reconhecidos em uma sociedade de consumo, a partir do seu valor monetário, daquilo
que podem render aos que dele se apropriam. Contudo, também são saberes da resistência, que
manifestam a boniteza e a vocação ontológica dos homens e das mulheres por ensinar e aprender.
Estes saberes populares também permitem o reconhecimento da própria história, gerando um
sentimento de pertencimento à comunidade.
O contexto das reflexões e caminhos metodológicos dos encontros com as mulheres quilombolas
Brandão (1984, p. 10) considera que “pesquisadores e pesquisados são sujeitos de um
mesmo trabalho comum, ainda que com situações e tarefas diferentes”. Esta concepção é por ele
denominada Pesquisa Participante. Sendo assim, com o objetivo de realizar um trabalho com as
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mulheres e não sobre ou para elas, bem como participando desta comunidade no sentido proposto
por Brandão (1984), optamos pela realização de oficinas de sabonetes de ervas medicinais, de chás
e de sabão ecológico, procurando consolidar na comunidade um espaço de diálogo de saberes, em
que a relação dessas mulheres com a natureza pudesse ser observada. O projeto, ao propor oficinas
de produção de sabão e sabonetes artesanais, buscou um espaço de diálogo de saberes, no encontro
de um saber “trazido de fora” (pelas extensionistas) com o saber ambiental popular das mulheres
sobre as ervas, suas memórias e experiências vividas, procurando perceber a importância desse
conhecimento na valorização da própria história, fortalecendo o pertencimento à comunidade, como
já referido.
A elaboração dos sabonetes se deu com a orientação da bolsista de extensão, com explicação
detalhada sobre todos os passos do processo de produção. Considerando que se tratava da produção
artesanal de sabonetes, não havia uma divisão de tarefas. As mulheres eram convidadas a vivenciar
todas as etapas da confecção. Cada participante recebeu um conjunto de materiais para leitura
referente à produção de sabonetes. Este material, previamente selecionado, continha informações
necessárias para produção dos sabonetes independentemente da realização das oficinas e foi lido em
conjunto com as mulheres para aprofundamento e manifestação de dúvidas. Este material impresso
continha, além dos aspectos relevantes sobre os métodos utilizados para a produção de sabonetes,
um alfabeto das ervas e suas propriedades medicinais, passo a passo da produção do sabão
ecológico, dentre outros materiais. Também foi disponibilizado um vídeo sobre a produção de
sabão ecológico, a partir do óleo de cozinha. Este material audiovisual facilitou a mediação do
diálogo com as mulheres participantes sobre o descarte desse tipo de resíduo no meio e a
possibilidade de solucionar essa situação, discutindo Educação Ambiental Popular e
sustentabilidade.
Como forma de registro das atividades, foram feitos relatórios de cada encontro, com
anotações em diário de campo. Ficaram registrados os dizeres considerados mais significativos e as
questões entendidas como problematizadoras, em conversas aparentemente despretensiosas. Além
disto, foram feitos registros fotográficos, editados e organizados de forma a compor o material
empírico para as análises. A releitura dos relatórios e as reflexões oriundas deste processo
buscaram, nas palavras reveladoras de saberes populares, compreender como se dão as
aprendizagens, a elaboração do conhecimento popular e a formação do sujeito ecológico nesse
grupo de mulheres quilombolas.
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Esta associação, em uma comunidade Quilombola é um espaço que proporciona várias
vivências, dentre eles, reuniões e festas. Destaca-se a experiência dessa comunidade de luta e
resistência às forças da especulação imobiliária em uma capital, pois apesar de se tratar de um lote
pequeno de aproximadamente 4.500m2, encontra-se muito bem situado, numa área urbana central
suscetível a estes olhares. Nesta comunidade vivem aproximadamente oitenta (80) famílias, tendo
sua origem no século XIX, momento em que passou a agregar trabalhadores escravizados (já
libertos) e seus descendentes. Em 2015, esta comunidade quilombola foi legalmente demarcada e
reconhecida, após um processo de regularização que durou quinze (15) anos.
Embora o foco inicial da ação extensionista fosse o trabalho com mulheres adultas, abriu-se
a possibilidade de participação de filhas e netas, para além das avós e mães. Isso oportunizou o
encontro de gerações, o que enriqueceu as trocas de saberes dentro grupo. Esta diferenciação etária
entre as mulheres, na socialização de ideias, a partir dos diálogos ocorridos, ampliou ainda mais a
diversidade das trocas de saberes e as aprendizagens desse grupo específico.
A felicidade expressa nas trocas de saberes: algumas reflexões
Durante as oficinas de sabonetes, ensinamos e aprendemos, reconhecendo que este
aprendizado se estendeu a todas, existindo, então, uma troca de saberes. A atividade de extensão
teve um espírito etnográfico. Durante três semestres estivemos na comunidade convivendo
semanalmente com seus jeitos e contextos, seus valores e cultura. Provamos suas comidas e
bebemos de seus sucos. Foi assim, junto às mulheres, que estavam à vontade no seu território,
mostrando quem são, como são e o que ainda querem ser, que repassamos e trocamos
conhecimentos na interação de uma com a outra. Mergulhamos em sua descontração, que
construímos e, foi assim, que nos sentimos à vontade. Foi assim que as mulheres puderam
expressar seus jeitos, suas verdades e saberes, sem medo de se mostrar, de não serem entendidas ou
de serem julgadas, como expressam nas falas a seguir:
“Professora, não preciso colocar os meus dentes, né?” (D.S., 72 anos)
“Não repare, mas hoje eu tô de chinelo velho, bem à vontade, Professora.” (D.S., 72 anos)
As expressões de felicidade e satisfação percebidas e registradas no diário de campo
apontaram para o fato de que o grupo queria aprender e queria ensinar, desejava trocar experiências
e saberes. Sobretudo, demonstrou um respeito pelo saber da outra, indo ao encontro de um dos
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princípios mencionados por Cunha (2014) quando refere que toda e qualquer manifestação do
ensinar e aprender, realizada como processo emancipador e empoderador, é feita no diálogo, nas
vivências, conhecendo, criando e ampliando a sua visão de mundo, o que é, portanto, fundamentado
nos pressupostos da Educação Ambiental Popular.
Nesse sentimento de confiança e respeito, o conhecimento popular era construído e circulava
ali no Quilombo. Foi assim que as mulheres puderam expressar seus jeitos, suas verdades e saberes,
sem medo de se mostrar, de não serem entendidas ou de serem julgadas.
Figura 1 - Oficina de chás
A foto da Figura1, acima, foi registrada no momento em que as avós mostravam às suas netas
que os sabonetes que fizeram juntas estavam quase prontos. Representa um dos momentos de troca
de saberes entre gerações e também momentos de muita interação.
Mesmo que as mulheres quilombolas não se considerassem sujeitos ecológicos, isto não
quer dizer que não tinham a sensibilidade ambiental (CARVALHO, 2012) e que não conseguiam
entender a urgência e a necessidade de práticas sustentáveis na sua realidade sociocultural. Ao
contrário, quando percebem que a consciência ambiental influi diretamente em suas necessidades
para sobreviver, resolver e lidar com os problemas de seu dia-a-dia e da comunidade, essa
sensibilidade se revela e se torna algo natural, resultando na promoção de uma cidadania ambiental.
Movidas pela intencionalidade de promover uma discussão com o grupo de mulheres sobre a
responsabilidade ecológica de cada uma, percebemos um cenário de desinformação sobre o descarte
de resíduos, bem como de conflito entre as mulheres e seu meio. Durante as oficinas conversamos
sobre o descarte do óleo de cozinha e a surpresa se fez nos relatos da maioria, representado, pelas
falas a seguir:
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“Jogo ali na terra.” (Sol, 47 anos)
“Jogo no vaso do banheiro mesmo.” (D. S., 72 anos)
Ao questionar o grupo: “Vocês sabem que esse espaço onde se formou o Quilombo, é uma
área de aterro e que aqui ficava uma casa de praia?” Com estas questões, o objetivo foi salientar
que descartar o óleo de cozinha de maneira inadequada era prejudicial para o ambiente onde viviam.
Também foi salientado que, além de desperdiçar o óleo, haveria poluição das águas de um
manancial da sua cidade, localizado bem próximo à comunidade. Contudo, surgiu um
questionamento por parte de uma delas:
“Tá Sôra, mas o que tenho a ver com isso?” (Sol, 47 anos)
Discutirmos os porquês do não descarte em qualquer lugar, não se trata de apontar de quem
é a culpa ou quem é mais ou menos culpado, mas sim de se reconhecer responsável pela poluição
que se produz. Fazer essa crítica reflexiva, consideramos que abre caminhos para valores
emancipadores e empoderadores, pois reconhecendo o seu papel, também podem se tornar atentas
ao papel do outro, incluindo o poder público.
Nesse diálogo de saberes e de dúvidas que permeavam o coletivo de mulheres, foi possível
enxergar uma alternativa capaz de ajudar a solucionar a problemática do descarte dos resíduos de
óleo de cozinha: a confecção de sabão ecológico, a partir da reutilização deste. Com isso, a
comunidade se organizou para juntar os resíduos e quando se chegou à quantidade desejada, deu-se
início à produção de sabões ecológicos. Essas reflexões resultaram em um engajamento da
comunidade para o encontro de soluções para os problemas do cotidiano, como o descarte do óleo
de cozinha usado, por exemplo. Uma solução sustentável, que poderia se constituir como fonte
geradora de renda e de consciência ambiental popular.
Durante os encontros, dialogamos sobre a importância de se evidenciar o que já se sabe
sobre um tema (o conhecimento sobre o uso das ervas para fins medicinais), ouvir o que o outro
sabe e entender o que sabemos como grupo. Para que esse diálogo ocorresse de forma coletiva, foi
organizada uma oficina de chás de ervas medicinais, com suporte do material didático elaborado
para o grupo e com os próprios chás, em que as mulheres pudessem reconhecer as ervas e, ao
mesmo tempo, falar o que sabiam sobre elas ou o que não sabiam, perguntar, lembrar e aprender
com essas novas “sapiências” e reflexões, que pairavam nesse espaço popular.
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Figura 2 - Oficina de chás
Dessa conversa, foi possível trazer suas memórias e saberes sobre os chás e, também, a
relação histórica da mulher com a terra, agora rompida, do cuidado e das alternativas para
preservação, da partilha desse saber e de novos saberes para o grupo, reafirmando que “da
humanização e convivência respeitosa com todos os seres, nasce o processo educativo” (CUNHA,
2014, p. 134).
O trabalho realizado no Quilombo com as oficinas de chás, sabonetes de ervas medicinais e
sabão ecológico foi rico em aprendizagens. Foram manifestados afetos e memórias em diferentes
contextos e perspectivas, que constituíram o ambiente como um espaço educativo, de educação
popular e de liberdade de criação, considerando que o
mais fundamental e gratificante, sobretudo para o indivíduo que está criando, é o
sentimento concomitante de restruturação, de enriquecimento da própria produtividade, de
maior amplitude do ser, que se libera no ato de criar. (OSTROWER, 2001, p.28).
Compreendemos, a partir das oficinas de sabonetes e à luz do que propõe Ostrower (2001),
que o processo de criação ampliava a experiência da vitalidade de todas as participantes. Para as
mulheres do grupo, criar não era um esvaziamento pessoal, nenhuma substituição imaginativa da
realidade: criar representava uma intensificação, um vivenciar-se no fazer. Não substituía a
realidade, mas se tornava uma possível realidade. Contudo, era algo novo que adquiria distintas
dimensões, pelo fato de estarem articulando em si e perante si mesmas, em níveis de consciência
mais elevados e mais complexos (OSTROWER, 2001).
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Figura 3 - Sabonetes com ervas medicinais produzidos durante as oficinas
Olhando-as de maneira sensível, vendo os gestos, os olhos expressivos e o próprio produto
resultante do criar, o sentimento revelado, a realidade manifestada, inventada e representada no
objeto, era possível compreender a ocorrência de inúmeras aprendizagens. Estas, por sua vez,
incluíam um sentimento de poder mudar e criar, de se mostrar no objeto inventado, de se
representar e representar a sua realidade. Foi a partir desse sentimento que percebemos um
crescimento pessoal que contribuiu para os processos emancipatórios das mulheres do grupo, que se
viam capazes de mudar, de criar, inventar novas possibilidades, revelar-se e expressar seus
sentimentos. Ampliar-se para a vida comunitária com outras mulheres de diferentes gerações.
Considerações finais
Buscamos apresentar uma experiência fora do ambiente escolar, a partir da elaboração dos
conhecimentos surgidos entre mulheres quilombolas e extensionistas, incluindo o diálogo entre
saberes populares e acadêmicos. Nesse sentido, ficou evidenciado que as novas aprendizagens e a
manifestação dos conhecimentos prévios, foram possíveis por meio da troca de informações e do
diálogo. Pelo tempo que estivemos na comunidade e pela experiência vivenciada naquele espaço,
fomos compreendendo que o grupo de mulheres reafirmou seus conhecimentos durante as oficinas
de chás, de sabonetes de ervas medicinais e de sabões ecológicos ministradas.
Contudo, foi a partir da valorização desses saberes sobre as ervas, guardados em suas
memórias e vivências, que se evidenciou o entendimento de como se dá a construção do saber
popular em espaços não formais de educação: por meio do diálogo e da experimentação.
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Acreditamos que a transmissão desse saber entre gerações, caracterizado como um bem ambiental e
cultural, pode reafirmar na comunidade uma identidade quilombola com vistas à emancipação do
grupo e conquista de seus direitos. O uso das ervas e a retomada de saberes ancestrais, além de
garantir a consolidação de um “saber ambiental” (LEFF, 2009, p. 18), pode produzir contrapontos a
uma lógica onde há excessiva medicalização.
No grupo, ao compartilhar esses saberes sobre as ervas que as constituem como mulheres
quilombolas mesmo num contexto urbano onde há poucos lugares para cultivo de plantas, foram
levadas a construir um sentimento coletivo rumo ao entendimento do que se é e do que ainda se
quer ser, como destaca Leff (2009). Assim, para as mulheres do grupo e para as extensionistas,
aquele espaço educativo foi de trocas e valorização de saberes antes subjugados (LEFF, 2009), além
da retomada de conhecimentos populares que, estavam esquecidos pela vivência em uma
comunidade urbana.
Dentre as reflexões, o potencial criador se mostrou como um processo contínuo que se
regenera e muda por si mesmo (OSTROWER, 2001) o qual, por vezes, se tornou uma forma de
comunicação, onde o objeto que estava sendo criado representava a voz do sentimento, era a figura
representativa da realidade a ser mostrada, da dor, da tristeza, da alegria, do protesto, do desejo, da
vergonha, do medo e da resistência. Por fim, representava o que fora silenciado, mas encontrava ali,
nas oficinas, espaço para ser expresso, mesmo que de outra forma: na forma de sabonetes, sabões e
degustação de chás. A intencionalidade de ensinar/criar nas oficinas, fez-se na experiência, porque
exigiram uma pedagogia diferenciada das previstas em processos educativos formais, embora
consideremos que seja uma forma interessante de questionar as pedagogias escolares. Para finalizar,
é preciso mencionar o quão importante foi perceber que o trabalho docente pode ter outras
ressignificações quando os grupos populares são protagonistas da sistematização do conhecimento,
valorizando os ensinamentos e valores que os constituem e os identificam.
Referências
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ambientais e coletivos educadores. v. 3, 2014, [s.l.]. Brasília: MEC, 2014. p. 257-271.
_________________. O que é Educação Popular. Disponível em: <http://ifibe.edu.br/arq/.pdf>
Acesso em: 01.06.2017.
12
Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
CARVALHO, I. C. de M. Educação Ambiental: a formação do sujeito ecológico. São Paulo:
Cortez, 2012.
CUNHA, Aline. Educação Popular. In: Encontros e Caminhos: formação de educadoras(es)
ambientais e coletivos e coletivos educadores. v. 3, 2014, [s.l.]. Brasília: MEC, 2014. p.131-139.
DICKMANN, I; DICKMANN, I. Primeiras palavras em Paulo Freire. Passo Fundo: Battistel,
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LEFF, E. Complexidades, Racionalidade Ambiental e Diálogos de Saberes. In: Educação &
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OSTROWER, F. Criatividade e Processos de Criação. Petrópolis: Vozes, 2001.
PINHEIRO, P. C.; GIORDAN, M. O preparo de sabão de cinzas em Minas Gerais, Brasil: do status
de etnociência à sua mediação para a sala de aula utilizando um sistema hipermídia etnográfico. In.:
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SORRENTINO, Marcos. Educação Ambiental Popular. In: Encontros e caminhos: formação de
educadoras(es) ambientais e coletivos educadores. v. 3, 2014, [s.l.]. Brasília: MEC, 2014. p. 143-
153.
ENVIRONMENTAL EDUCATION IN NON-SCHOOL SPACES: A SENSITIVE LOOK
AND THE DIALOGUE OF POPULAR KNOWLEDGE IN A QUILOMBOLA
COMMUNITY
Abstract: This article aims to reflect on the ways of teaching and learning in a non-school space: the
community association of an urban Quilombo in the city of Porto Alegre (RS). The analyzes are
based on systematized records in weekly reports of the handicraft workshops in which medicinal
herbs and ecological soap were made in 2013 and 2014, through the extension project - Justice with
their own hands - by mediating the valuation of artisanal practices And popular knowledge that
circulated through this group of quilombola women. As support for the analyzes, the social and
political relevance of the dialogue of knowledges (LEFF, 2009), the formation of the ecological
subject (CARVALHO, 2012) and the Popular Environmental Education (BRANDÃO, 2015;
SUNRENTINO, 2014; CUNHA, 2014) in order to understand the processes of teaching and
learning, as well as highlighting the valorization and reappropriation of popular knowledge.
Knowledge shared with quilombola women was (re)affirmed in direct and lasting contact, seeking a
dialogue between popular and academic knowledge, contributing to the formation of the ecological
subject.
Keywords: Popular Environmental Education. Quilombola women. Dialogues of popular and
scientific knowledge.