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C o le ç ão E d u c a ç ão F ís ica
T edição
Editora Unijuí Ijuí - Rio Grande do Sul - Brasil
2003
Cenas de um casamento (in)feliz
uando falamos de teoria
da Educação Física não
insistimos na sua adjetivação
como teoria científica. Isso não
significa que tenhamos abandonado
a pretensão de racionalidade para essa
teoria,- muito mais, significa alertar para
a necessidade de elucidar o conceito
de racionalidade científica que
é utilizado no discurso e na prática, bem
como para as dificuldades de
tal empreendimento. O debate
epistemologia) atual parece indicar
muito mais, por um lado, no sentido
da superação da racionalidade científica
clássica ou predominante (originada no
plano da física e adotada pelas ciências
naturais e também pelo positivismo
como modelo para as ciências sociais
e humanas), e, por outro, no sentido
de certo relativismo que desloca
a racionalidade científica do pedestal
da racionalidade enquanto tal e a coloca
no mesmo nível de outras "racio
nalidades" ou discursos acerca
da realidade. As dificuldades e os
movimentos aludidos parecem indicar
prudência no que diz respeito
à reivindicação de adjetivar uma teoria
da Educação Física de científica,
embora indique também prudência
quanto à propensão de abandonar
precocemente a pretensão da funda
mentação racional da prática. Nem
consumar o casamento nem o divórcio.
© 1999, Editora Unijuí
Rua do Comércio, 1364
Caixa Postal 560
98700-000 - Ijuí - RS
- Brasil -
Fone: (0__55) 3332-0217
Fax: (0__55) 3332-0343
E-mail: [email protected]
Http: / / www. unijui. tche. br/unijui/editora
Responsabilidade Editorial e Administrativa:
Editora Unijuí da Universidade Regional do Noroeste
do Estado do Rio Grande do Sul (Unijuí; Ijuí, RS, Brasil)
Serviços Gráficos: Sedigraf
Capa: Elias Ricardo Schüssler
Primeira edição: 1999
Segunda edição: 2003
Catalogação na Fonte
Biblioteca Central Unijuí
B796e Bracht, Valter
Educação física & ciência : cenas de um casa
mento (in)feliz / Valter Bracht. 2.ed. - Ijuí: Ed. Unijuí,
2003.- 160 p. - (Coleção educação física).
ISBN 85-7429-102-1
1.Educação física 2.Ciência do esporte 3.Motri
cidade humana 4.Prática pedagógica 5.Epistemo
logia I.Título II.Série.
CDU: 796
796:001
______________________________________001: 796____________ _
Editora Unijuí afiliada:
A ssociação B rasile ira das E ditoras U niversitárias
A coleção Educação Física é um projeto editorial da Editora
Unijuí, vinculado a um conselho editorial interinstitucional, que visa
dar publicidade a pesquisas que buscam um constante aprofundamento
da compreensão teórica desta área que vem constituindo sua reflexão
conceituai, bem como os trabalhos que garantam uma maior aproxi
mação entre a pesquisa acadêmica e os profissionais que encontram-
se nos espaços de intervenção. Promover este movimento é sem dúvi
da o maior desafio desta coleção.
Conselho EditorialCarmen Lucia Soares - Unicamp
Mauro Betti - Unesp/Bauru
Tarcisio Mauro Vago - UFMG
Luis Osório Cruz Portela - UFSM
Amauri Bassoli de Oliveira - UEM
Giovani De Lorenzi Pires - UFSC
Valter Bracht - UFES
Nelson Carvalho Marcellino - Unicamp
Paulo Evaldo Fensterseifer - Unijuí
Vicente Molina Neto - UFRGS
Elenor Kunz - UFSC
Victor Andrade de Melo - UFRJ
Silvana Vilodre Goellner - UFRGS
Comitê de RedaçãoPaulo Fensterseifer
Fernando Gonzalez
Maria Simone Vione Schwengber
Leopoldo Schonardie Filho
Joel Corso
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.................................................................. 9
PARTE I - EDUCAÇÃO FÍSICA E CIÊNCIA
A CONSTITUIÇÃO DO CAMPO ACADÊMICO
DA EDUCAÇÃO FÍSICA............................................... 15
As características da teorização na Educação Física.. 16
As Ciências do Esporte e a despedagogização
do teorizar em Educação Física................................. 18
Repedagogizando o discurso acadêmico no campo
da Educação Física..................................................... 24
Considerações finais (perspectivas)............................ 25
A EPISTEMOLOGIA DA EDUCAÇÃO FÍSICA............. 27
O campo acadêmico da Educação Física.................. 28
Considerações finais (problematizações) ................... 37
A PRÁTICA PEDAGÓGICA DA EDUCAÇÃO FÍSICA: CONHECIMENTO E ESPECIFICIDADE........................41
As diferentes concepções do objetoda Educação Física..................................................... 42
A especificidade pedagógica da cultura corporal de movimento .......... .................................................. 48
PARTE II - A(S) CIÊNCIA(S) DO ESPORTE, A CIÊNCIA DA MOTRICIDADE HUMANA
AS CIÊNCIAS DO ESPORTE: QUE CIÊNCIA É ESSA?. 57
O conhecimento do conhecimento............................ 61
A questão da identidade epistemológica da área..... 63
O debate em tomo do “objeto” da Educação Física .. 65
Breves olhares sobre o caso da pedagogia............. 68
A Educação Física e a cientificidade...................... .70
As Ciências do Esporte:fragmentação versus unidade................................. 71
Considerações finais................................................... 73
AS CIÊNCIAS DO ESPORTE NO BRASIL:UMA AVALIAÇÃO CRÍTICA......................................... 75
Como se caracterizam as práticas científicas no âmbito das Ciências do Esporte?.......................... 76
O esporte e as Ciências do Esporte: empreendimentos da modernidade........................... 85
Dimensões da interdisciplinaridade nas Ciências do Esporte................................................................... 91
A Condição pós-moderna, a crise da razão
científica e as Ciências do Esporte............................ 95
A TESE DA CIÊNCIA DA MOTRICIDADE HUMANA,
DE MANUEL SÉRGIO.................................................... 99
Kefren Calegari dos Santos
Sobre Manuel Sérgio e a tese da Ciência
da Motricidade Humana.......................................... 101
Levantando questões............................................... 104
Discutindo questões................................................. 105
Considerações finais................................................ 113
Quadro da evolução do pensamento
de Manuel Sérgio em torno da CMH...................... 114
PARTE III - DIÁLOGOS (IM)PERTINENTES
A EPISTEMOLOGIA DA EDUCAÇÃO FÍSICA:
UM DIÁLOGO COM MAURO BETTI......................... 117
Debatendo com M. Betti ......................................... 119
Considerações finais................................................ 128
EPISTEMOLOGIA E POLÍTICA NA EDUCAÇÃO
FÍSICA BRASILEIRA..................................................... 129
Delineando as posições presentes na Educação
Física brasileira e no CBCE...................................... 132
Considerações finais................................................ 139
CONSIDERAÇÕES FINAIS ...................................... 143
BIBLIOGRAFIA 149
INTRODUÇÃO
O pior casamento é o que dá certo.
(Millôr Fernandes, 1994)
Os escritos aqui reunidos discutem uma relação que,
guardadas as limitações de uma metáfora, apresenta algu
mas características presentes nas relações conjugais.
Não há aqui, obviamente, um julgamento de valor acerca
do próprio casamento, entendido no seu sentido tradicional
de união de dois seres humanos, embora o texto em epígrafe
assim o sugira. Muito mais, pretende discutir a possibilidade
de que uma relação bem-sucedida, neste caso, pode trazer
antes um resultado negativo do que positivo. Assim como
podemos questionar ser o casamento condição indispensável
para a felicidade humana, também podemos colocar em
dúvida a positividade da relação da Educação Física (EF)
com a ciência, ou mesmo a transformação da Educação Físi
ca em ciência.
De qualquer forma é uma relação de risco (menos para
a ciência do que para a Educação Física). Eliminar a identi
dade de um dos pólos desta relação (do casamento), trans-
formando um no outro, confundindo os dois, ou subordinan
do uma identidade à outra (no caso a EF à ciência), pode,
assim como no casamento, ter resultados desastrosos.
Se ilidirmos o fato de que a EF é, em certo sentido,
filha da ciência moderna (o que significaria em caso de casa
mento uma relação incestuosa), o casamento entre a EF e a
ciência sempre foi almejada, mesmo porque, até há bem
pouco tempo a ciência era um grande “partido”. Um tal
casamento poderia trazer à EF (ao noivo ou à noiva, como
se queira) prestígio e status social (o dote da ciência seria
enorme) e, por extensão, a todos que a sustentam e a fa
zem.
Embora hoje a ciência continue a ser um grande “par
tido”, ela perdeu muito de seu glamour; a imagem da
racionalidade científica está muito mais arranhada hoje do
que estava há vinte anos. Muitas vozes, em função deste
questionamento, hoje falam na necessidade do divórcio ou
no rompimento do noivado.
O esporte, a partir de sua crescente importância no
contexto da cultura corporal de movimento, entra em cena e
vai constituir com a EF e a ciência um “triângulo amoroso”.
Assumiu o lugar do noivo ou da noiva (EF); falou em seu
nome e ofereceu-se para contrair o matrimônio (ou patrimô
nio) com a ciência. A reivindicação por ciência pelo fenôme
no esportivo redundou na tentativa de se instituir as chama
das Ciências do Esporte e nestas a EF foi renomeada de área pedagógica.
A crise de identidade da EF foi entendida então como
resultado da incapacidade da EF concretizar o casamento.
Hoje, ao contrário, alguns entendem que sua ligação com a
ciência já foi forte/longe demais e que seria preciso resgatar
outros valores que lhe são próprios para que possa superar
sua crise de identidade. Nessa ótica, um tal casamento não
só não superaria a crise da Educação Física, como desvirtua
ria suas características mais importantes.
Outros, como é o nosso caso, advogam para a EF uma
relação com a ciência que é ao mesmo tempo de proximida
de e de distanciamento. Isto significa que as identidades dos
“parceiros” não se confundem. Só com esta condição a rela
ção parece ser produtiva. Isto significa refletir sobre as pos
sibilidades, mas também, sobre as limitações da ciência,
exatamente para não tomá-la como um dogma.
Os textos aqui reunidos foram escritos em diferentes
momentos da discussão que vem-se travando nos últimos
anos, na nossa área. Assim, minhas posições aparecem no
seu processo de desenvolvimento.
E sempre muito difícil organizar textos escritos de for
ma esparsa numa ordem lógica. A forma encontrada e que
pareceu menos problemática foi a de organizá-los em três
partes: “I - Educação Física e Ciência”, discute a constitui
ção do campo acadêmico da EF, as questões epistemológicas
que se colocam a partir da EF e a especificidade do conheci
mento tratado pela EF; “II - A(s) Ciência(s) do Esporte, a
Ciência da Motricidade Humana”, reúne os textos que
enfocam especificamente as tentativas de se constituirem as
Ciências do Esporte e a Ciência da Motricidade Humana,
bem como uma avaliação crítica da sua produção. Nesse
ponto tivemos a colaboração de um jovem e tale ato : o pro
fessor de Educação Física, Kefren Calegari dos Santos, que
levanta pontos importantes para a discussão da tese de Ma
nuel Sérgio; “III - Diálogos (im)pertinentes”, reúne os textos
que debatem com posições expressas por outros pesquisa
dores da área que se ocupam com essa questão, num caso
identificando o interlocutor, Mauro Betti, e em outro dialo
gando com posições presentes na área.
Cabe neste momento agradecer às várias instituições e
aos colegas que foram fundamentais para o desenvolvimen
to destas reflexões; Ao Conselho Nacional de Desenvolvi
mento Científico e Tecnológico (CNPq), que por algum tem
po colaborou mediante a concessão de uma bolsa de pesqui
sa; à UFES, que me acolheu como docente; aos colegas de
trabalho do LESEF; aos colegas de diálogo que não nomino
para não cometer injustiças esquecendo alguém.
A CONSTITUIÇÃO DO CAMPO ACADÊMICO
DA EDUCAÇÃO FÍSICA1„stssss*'** v" ' ‘
Neste capítulo tomamos como foco de atenção a cons
trução do campo acadêmico da EF no Brasil, com especial atenção para o período que vai do final da década de 60 até nossos dias.
E importante desde logo ressaltar que nossa atenção
recai sobre a produção acadêmica da “área”, vale dizer, a
teorização que envolve e acompanha esta prática social que
convencionamos chamar de Educação Física, ou seja, é um
estudo sobre o pensamento da EF brasileira e sobre como
ela vem-se pensando. Especificamente, perseguimos a ques
tão de como foram pensados os limites/contornos deste cam
po, quem dele participa legitimamente, quais problemáticas
são privilegiadas e reconhecidas como pertencentes ao cam
po, ou seja, como a partir deste conjunto de práticas forja-se o próprio campo.
Outro aspecto que considero necessário aclarar desde
logo, dadas as posições que venho defendendo em relação
ao uso do termo EF (Bracht, 1992 e 1995), é de que enten-
1 Este texto foi inicialmente apresentado no IV Encontro Nacional de História do Esporte, Lazer e Educação Física (Belo Horizonte/MG, 1996).
do esta, fundamentalmente, como uma prática que tematiza
com a intenção pedagógica as manifestações da cultura cor
poral de movimento. Esse entendimento, sabemos, está lon
ge de ser unanimidade. Ele convive com vários outros que
estendem o significado do termo para, por exemplo, todas
as manifestações da cultura corporal de movimento, ou en
tão, como é mais comum, para todos os campos de atuação
do profissional de EF. E nítido que ao longo do desenvolvi
mento do campo acadêmico da “EF”2nem sempre foi esse o
entendimento, muito ao contrário, os limites deste campo
sempre estiveram difusos (e confusos). Assim, embora parta
da posição acima aclarada, será preciso, para analisar a
construção do campo acadêmico “EF”, adentrar e enfocar as
produções que se colocam como pertencentes ao campo,
mas que partem de uma outra visão de quais são seus con
tornos.
As características da teorização na Educação Física
O surgimento ou a incorporação de práticas corporais
nos currículos escolares na Europa no século XVIII e princi
palmente XIX foi precedida e portanto resultou de uma série
de mudanças e desenvolvimentos no âmbito da medicina e
da própria pedagogia3. Na medicina, os avanços provoca
ram uma valorização da atividade física, como elemento
fomentador e garantidor de saúde, e, na pedagogia, a acei
tação crescente de uma visão de homem calcada na ciência,
2 Coloco aspas exatamente para chamar a atenção de que é uma denominação
provisória, porque concorrente com denominações (e propostas) como as de Ciên
cias do Esporte, Ciência do Movimento Humano ou Ciência da Motricidade
Humana.
3 Essas mudanças estão ancoradas no complexo processo de mudanças societárias
mais amplas, mas que aqui não serão discutidas.
basicamente nas ciências naturais, levou a se fundamentar a
propriedade das práticas corporais pertencerem ao currículo
escolar (Cachay, 1988). O século XIX vai ser o século da
sistematização dos chamados métodos ginásticos cujo dis
curso científico fundamentador era predominantemente de
rivado das ciências biológicas, sendo os intelectuais que cons
truíram esse discurso do campo médico e também pedagó
gico, sendo, neste último caso, a fundamentação também
fortemente marcada por pressupostos biológicos. Outra ins
tituição importante e que foi cadinho da elaboração teórica da EF é a militar.
Assim, as estruturas de pensamento, com seus pressu
postos científicos e filosóficos, estavam ancoradas tanto na
instituição médica quanto na militar, mas também na pró
pria pedagogia. Neste sentido é interessante a hipótese le
vantada por Ferreira Neto (1999), de que, no caso brasileiro,
a instituição militar construiu, nas décadas de 30 e 40 deste
século, um projeto de EF para o país, articulado com um
projeto para a educação brasileira como um todo.
Sem adentrar aos detalhes dessa produção de forma
diferenciada, como aliás seria necessário, gostaria apenas
de destacar uma sua característica que julgo ser possível
identificar. Refiro-me ao fato de que a teorização da ginásti
ca escolar era realizada a partir de um olhar pedagógico
(médico-pedagógico, moral-pedagógico), ou seja, as práti
cas corporais eram construídas e vistas como instrumentos
para a educação para a saúde e para a educação moral.
Teorizar4 era fundamentar uma prática pedagógica envol
vendo práticas corporais, embora com base em um arcabouço
4 E importante ressalvar que os intelectuais ativos no âmbito da ginástica escolar ou EF trabalhavam mais na perspectiva da recepção dos métodos ginásticos do que na
construção fundamentada destes. Quem sabe a única iniciativa neste sentido na época tenha sido o concurso promovido em 1942 para a elaboração de um método nacional de EF (Ministério da Educação e da Saúde, 1952).
teórico-metodológico marcadamente biológico. Outra carac
terística é a de que essa teorização era realizada, necessaria
mente, por intelectuais de outros campos (medicina, forças
armadas, pedagogia, ciências políticas), uma vez que o campo
acadêmico “EF” (ou ginástica escolar) não havia ainda se
constituído. Isto passa a se realizar com a formação em nível
de terceiro grau, de profissionais civis de EF, bem como com
a afirmação da EF enquanto curso de formação de professo
res, nas instituições superiores de ensino.
As características da formação de instrutores de ginás
tica, inicialmente, e de professores de EF, mais recentemen
te, fortemente marcada pela idéia de treinamento através
da execução de movimentos, fizeram retardar o apareci
mento do intelectual da EF. Não me refiro aqui ao intelectual
no singular, mas, sim, ao agente social pertencente a um
campo acadêmico capaz e instrumentalizado para construir
teoria que fundamente a prática pedagógica em EF. Exis
tem indicadores de que os intelectuais que pensaram a EF
brasileira, neste período, trouxeram/adquiriram o instrumental
para tanto em outros campos, ou seja, o campo da “EF” não
dispunha dos meios para teorizar sua prática. De qualquer
forma o discurso, a teorização neste campo emergente, era,
até a década de 60, marcadamente de caráter pedagógico.
As Ciências do Esporte e a despedagogização do teorizar em Educação Física
Se nas suas origens, no Brasil, e até aproximadamente
a década de 60 o discurso no âmbito da EF era marcado
pelo viés pedagógico (de tom muitas vezes fortemente
normativo), a partir de então passa a ganhar espaço um
“teorizar” cientificista. Logo levantou-se a questão se a EF
■'"'Í 8 l™ ,,.
era uma ciência ou uma disciplina acadêmica ou científica.
Questão levantada muito em função de uma pressão exter
na para que a EF se legitimasse no campo científico, que
tem nas universidades seu locus privilegiado.
Fator determinante para essa nova onda cientificista
na EF, no entanto, foi o enorme desenvolvimento que so
freu, após a II Guerra Mundial, o fenômeno esportivo e como
ele foi absorvido ou se impôs à EF.
As décadas de 60 e 70 são cruciais para o campo
acadêmico da EF e isto não somente no caso do Brasil.
Aliás, no Brasil, esse movimento apresenta um atraso de
quase uma década em relação aos países capitalistas desen
volvidos. Whitson e Macintosh (1990), retratam como, no
Canadá, nas décadas de 60 e 70, o discurso humanista da
EF foi substituído por um outro, de tipo cientificista, com
base nas Ciências do Esporte (CE) ou Ciências do Movimen
to Humano, sob a influência dos EUA. Willimczik (1987),
por outro lado, analisando o desenvolvimento da Ciência
Desportiva (Sportwissenschaft) na Alemanha, afirma que a
discussão teórico-científica naquele país sobre a questão do
objeto desta “área”, centrou-se no período de 1935 a 1970,
na contraposição entre teoria da EF (Leibeserziehung) e te
oria dos exercícios corporais (Leibesübungen). Mas, em pri
meiro plano, o objeto era visto como um objeto pedagógico.
No final dos anos 60 se impôs a denominação Ciência
Desportiva e isso, segundo o autor, em função da tendência
internacional nesse sentido, bem como do fato de que o
esporte tornou-se o fenômeno dominante nesta área. Dietrich
e Landau (1987, p. 384s.) vão além, afirmando que o con
ceito de pedagogia desportiva (Sportpädagogik) determinou
o fim da época do conceito de teoria da EF (Leibeserziehung)
com suas concepções orientadas nas teorias da educação.
Além disso, também a pedagogia desportiva, como outras
subdisciplinas da Ciência Desportiva, vão ser funcionalizadas
a partir dos interesses da instituição desportiva.
Podemos perceber então pelas análises de Greendorfer
(1987), Whitson e Macintosh (1990), Willimczik (1987) e
Dietrich e Landau (1987), que tanto na Alemanha como no
Canadá e nos EUA, nas décadas de 60 e 70, a EF esteve
orientada para a melhoria do desempenho esportivo no país5.
O “Diagnóstico da EF/Desportos no Brasil” (Costa, 1971)
apontou uma deficiência no âmbito da medicina desportiva,
considerada uma das razões da deficiência da área. A partir
daí investimentos foram orientados para melhorar o nível de
desenvolvimento científica da “área”, como o incentivo à
pós-graduação e os investimentos em laboratórios de fisiolo
gia do exercício. Nesse contexto é fundada, no final dos
anos 70, uma nova entidade científica, o Colégio Brasileiro
de Ciências do Esporte (CBCE).
A produção acadêmica volta-se para o fenômeno es
portivo. É a importância social e política desse fenômeno
que faz parecer legítimo o investimento em ciência neste
campo. Por sua vez, aqueles que atuam no campo ou tem
interfaces com ele privilegiam o tema do esporte porque é
ele que oferece as melhores possibilidades de acumulação
de capital simbólico por via de seu tratamento científico.
São pesquisas que dele se ocupam que têm maiores chances
de serem reconhecidas no campo e fora dele6. Ou seja, é a
importância política e social do fenômeno esportivo (ou do
5 Evidências disso podem ser encontradas nos documentos: Diagnóstico da EF e dos
Desportos no Brasil (Costa, 1971); Plano Nacional de EF e Desportos 1976-1979
(Brasil, 1976) e era Gonçalves, J. A. P. Subsídios para implantação de uma política
nacional de desportos. Brasília, 1971, entre outros.
6 Como lembra Bourdieu (1983, p. 124), “é inútil distinguir entre determinações'propriamente científicas e as determinações propriamente sociais das práticas es
sencialmente sobredeterminadas”.
desempenho esportivo do país em nível internacional) que
confere legitimidade ao próprio campo acadêmico da EF ou
das Ciências do Esporte7 ou EF e Ciências do Esporte (EF & CE).
E nesse contexto que se permite afirmar a EF nas
universidades, que se permite um discurso científico na área,
com reivindicação conseqüente de cursos de pós-graduação,
simpósios científicos, entidades científicas, financiamento de
pesquisas científicas, estruturação de laboratórios de pesqui
sa, etc., que é forjado um “novo” agente social, o intelectual
da EF, ou seja, intelectual com formação original em EF e
que agora almeja também a prática científica, isto é, reivin
dica e se lança à prática de teorizar (cientificamente) so
bre... Bem, qual é o objeto deste teorizar? Em princípio o
objeto é construído ou ganho enfocando o fenômeno esporti
vo e a problemática central é a melhoria da performance esportiva.
A partir de 1970 a EF é colocada explicitamente e
planejadamente a serviço do sistema esportivo, desempe
nhando o papel de base da pirâmide, sistema esse que pos
suía como culminância a alta performance esportiva. Plane
jou-se constituir a EF como elemento do sistema esportivo.
EF e esporte ou EF/esporte deveriam elevar o nível de apti
dão física da população.
O campo da EF/CE é permeado, nas décadas de 70 e
80, por profissionais de diferentes disciplinas. Ele é
pluridisciplinar: médicos, psicólogos, sociólogos, professores
de EF, etc. É.importante destacar, no entanto, que o teorizar
7 Segundo Paiva (1994), a iniciativa de “elevar” a profissão de EF à condição de
Ciências do Esporte tem seu ápice na publicação do editorial da RBCE 2(2), onde
se lê: “o professor de EF não pode mais ser representado como um homem forte e
de boa vontade [...]: em resumo, ele hoje não é mais o ‘professor de ginástica’, maso mestre em ciências do esporte”.
— nr-
de caráter cientificista vai-se dar fundamentalmente a partir
das ciências-mãe, como a fisiologia, a psicologia, etc. como
ainda hoje diagnosticam Gaya (1994), Greendorfer (1987) e
Willimczik (1987), com tendências à especialização a partir
de subdisciplinas. Ora, o profissional de EF, num primeiro
momento, premido pela busca de reconhecimento no e para
o campo, vincula-se a uma especialidade ou a uma
subdisciplina das Ciências do Esporte (ou da EF ou ainda da
Ciência do Movimento Humano) e torna-se um “cientista”
no âmbito da fisiologia do exercício, da biomecânica, da
sociologia do esporte e não um cientista da EF. É fácil perce
ber que a EF enquanto prática pedagógica quase que desa
parece do horizonte de preocupações deste teorizar, com
exceção das preocupações como as que buscavam identifi
car o método mais eficiente para ensinar determinada des
treza (esportiva).
O discurso pedagógico que havia caracterizado este
campo em construção, até mais ou menos a década de 60,
é deslocado para um plano secundário - só no final da déca
da de 80 é que as pesquisas mostram que há um aumento
crescente das pesquisas na área que vai ser denominada, no
interior das Ciências do Esporte, de ‘pedagógica (Matsudo,
1983; Gaya, 1994).
Isso acontece porque o sistema esportivo somente apela
para a categoria educação como forma de buscar legitimida
de social. Estando, no entanto, orientado por outros princí
pios, permanece a questão educacional apenas como recur
so retórico. O que importa mesmo é a medalha! Isso não
significa que ele não tenha efeito educativo, ao contrário.
Significa, isto sim, que a lógica que define as ações no cam
po esportivo (que determina o que está em jogo no campo)
ignora e não é influenciada pelo resultado educativo — o
campo ou o sistema esportivo é indiferente ao resultado que
produz em termos educacionais. As ações no sistema espor
tivo não serão redefinidas em função de um melhor ou pior
resultado educacional e, sim, em função de um melhor ou pior resultado esportivo8.
Assim, o esporte se impôs à EF, como conteúdo e
como sentido da própria EF (Bracht, 1992). O esporte é
que legitima a EF porque faz coincidir seu discurso com o
daquela no que diz respeito ao seu papel nos planos
educativo e da saúde - o esporte se impôs também enquan
to tema e orientador da teorização neste campo acadêmico
em construção. Em suma, o discurso pedagógico na EF foi
quase que sufocado pelo discurso da performance esportiva;
literalmente afogado pela importância sociopolítica das me
dalhas olímpicas, ou pelo “desejo”, tornado público, por medalhas.
Chegou-se aqui a uma situação que, na esteira de
Bourdieu (1996), poderíamos denominar de subordinação
estrutural, com o campo acadêmico da “EF/CE” usufruindo
de quase nenhuma autonomia para determinar a problemá
tica teórica a ser privilegiada no campo. Essa tendência à
funcionalização deste campo acadêmico a partir dos interes
ses da instituição esportiva também foi detectada por Whitson
e Macintosh (1990) e Dietrich e Landau (1987) para os ca
sos do Canadá e Alemanha, respectivamente.
8 Aos poucos o sistema esportivo vai sentindo-se forte o suficiente para abandonar o discurso da promoção da educação e da saúde. O presidente da Confederação
Brasileira de Natação, Coaracy Nunes Filho, afirmou, em entrevista à revista Veja, que educação não tem nada a ver com esporte, mesmo que esporte também seja educação (Nunes Filho, 1995, p.8).
....—n r *
Repedagogizando o discurso acadêmico no campo da Educação Física
No mesmo processo de busca de reconhecimento aca
dêmico da EF e dos seus profissionais no âmbito universitá
rio, alguns destes freqüentaram cursos de pós-graduação
(mestrado) em programas da área da Educação (filosofia da
educação, principalmente)9.
É a partir do contato, não com as Ciências do Esporte,
e sim com o debate pedagógico brasileiro das décadas de 70
e 80, que profissionais do campo da EF passam a construir
objetos de estudo a partir do viés pedagógico. Independen
temente da matriz teórica que esses profissionais vão ado
tar, o que caracteriza suas reflexões é que estão orientadas
pelas ciências humanas e sociais e isso por via do discurso
pedagógico10.
Essa vertente vai representar não só um pólo de resis
tência política no campo, defendendo interesses não-domi-
nantes, interesses aliás ligados aos do sistema esportivo, mas,
também, resistência acadêmica ao cientificismo das Ciên
cias do Esporte. Mais recentemente alguns autores (Coletivo
de Autores, 1992; Bracht, 1992; Betti, 1992) vêm refor
çando a necessidade de construção de uma teoria da EF,
entendida esta como uma prática pedagógica, ou seja, uma
repedagogização do teorizar na EF, uma vez que essa práti
ca pedagógica foi quase que alijada do campo enquanto
objeto. A construção de um corpo teórico com base num
discurso pedagógico, que possa filtrar e reconverter, à luz da
lógica desse campo, a influência “externa” do sistema es
9 Alguns dos mais influentes na área: Vítor Marinho de Oliveira, João Paulo Subirá
Medina, Apolônio Abadio do Carmo, Lino Castellani Filho e Carmen Lúcia Soares.
10 Isso também vai redundar numa certa fragilidade teórica dessa produção.
portivo, é elemento importante para a construção da auto
nomia (pedagógica) da EF. É claro que, no momento em que
a educação e o magistério estão numa situação caótica em
nosso país, só mesmo pensando na perspectiva da resistên
cia é possível alimentar essa necessidade.
Considerações finais (perspectivas)
O campo acadêmico da EF ou da EF/CE11, como
convencionou-se chamá-la no interior do CBCE, é hoje cru
zado e recortado por basicamente três perspectivas diferen
tes de caracterização ou de delimitação: a) tentativa de deli
mitação de um campo acadêmico que teorize a prática pe
dagógica que tematiza manifestações da cultura corporal de
movimento, ou seja, o teorizar aí estaria voltado para a cons
trução de uma teoria da EF, entendida enquanto uma práti
ca pedagógica; b) tentativa de construir um campo interdis-
ciplinar a partir das Ciências do Esporte, que, em alguns
casos (Gaya, 1994), reivindica uma Ciência do Esporte vol
tada para as necessidades da prática esportiva; c) a tentati
va de construção de uma nova ciência, a Ciência da Motri
cidade Humana (Sérgio, 1989; Tojal, 1994; Cavalcanti,
1994). O que é importante e interessante ressaltar é que
todas essas perspectivas vão buscar a tradição e as institui
ções da original EF (ginástica escolar) - se colocam como herdeiras desta.
Existe uma forte pressão, já que a total instrumentali
zação da EF não foi possível em função de uma resistência
interna (com desdobramentos acadêmico-científicos e políti-
11 No CNPq a área é tratada como a subárea EF e faz parte das ciências da saúde. Na Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) a área é denominada de
Ciências do Esporte/Motricidade Humana e faz parte das ciências aplicadas.
cos), no sentido da construção de um campo acadêmico liga
do/voltado ao esporte. Existem sinais de que se está cons
truindo um discurso para justificar o surgimento de um cam
po acadêmico autônomo ligado ao esporte - que não estaria
subordinado aos códigos da pedagogia como é o caso da EF. A reivindicação de uma ciência do esporte tem como base a
importância sociopolítica (e econômica) do esporte e a contribuição da ciência para o seu progresso.
Parece-nos claro, por exemplo, que os cursos de bacharelado em esporte sejam já o resultado dessa pressão (do
mercado). Os dirigentes esportivos, cada vez mais claramen
te, reivindicam uma formação universitária específica para
os profissionais do campo esportivo, argumentando inclusive
que as atuais faculdades de EF não suprem as suas necessidades: “Quero uma universidade do esporte para formar
técnicos, em vez das atuais faculdades de EF” (Nuzman, 1996, p. 8).
Outro elemento indicador é o de que o ex-ministro extradordinário dos Desportos, Edson Arantes do Nascimen
to (Pelé), reivindicou uma linha de financiamento de pesqui
sas específica para as Ciências do Esporte junto ao CNPq.
Além disso, o Instituto Brasileiro do Desenvolvimento do
Desporto (INDESP) dispõe de dotação orçamentária para pesquisas e publicações das Ciências do Esporte.
Se, por um lado, isso indica uma autonomização do
campo acadêmico da EF em relação ao sistema esportivo - e indica no sentido do surgimento de um campo acadêmico
que estaria voltado para o teorizar especificamente desta
prática social, sem ter como viés central o pedagógico - coloca questões para a EF como a de obter, urgentemente, le
gitimidade no interior do campo pedagógico, enquanto prática e disciplina acadêmicas, sob pena de ter sua própria existência ameaçada e isso não simplesmente no sentido da ex
tinção, mas de simples substituição pelo esporte (na escola).
A EPISTEMOLOGIA DA EDUCAÇÃO FÍSICA1
Quando abordamos o tema da epistemologia da Edu
cação Física (EF) assalta-nos uma série de questões que tem
aparecido muito frequentemente em nossas discussões nos
últimos anos, afetando, inclusive, a questão da (crise de)
identidade da EF. Algumas dessas questões são:
- a EF é uma ciência ou uma disciplina científica?
- Deve a EF almejar/pretender ser uma ciência? E essa uma
reivindicação legítima? Essa pretensão é orginária do inte
rior da própria EF ou de “fora” dela?
- Qual a epistéme predominante na EF? E a científica? A
prática científica ligada à EF filia-se aos princípios das ci
ências naturais ou aos das ciências sociais e humanas? Ou
então, com qual concepção de ciência opera a EF?
- Quais são as especificidades ou peculariedades da questão
epistemológica da EF?
- Quais são os limites e as possibilidades do paradigma cien
tífico para fundamentar a prática do profissional da EF?
1 Este texto (Bracht, 1997) foi originalmente publicado no V. 5 de Ensaios: Educação
Física e Esporte, de Carvalho & Maia (p. 5-17).
- É a interdisciplinaridade científica uma imposição à produ
ção do conhecimento em EF?
É claro que o conjunto das questões acima listadas não
esgota os questionamentos possíveis, mas pode dar uma
idéia da complexidade da questão.
Quero iniciar com a pergunta sobre se a EF é uma
ciência. Essa questão assumiu importância no debate em
torno da crise de identidade da EF, porque levantou-se a
hipótese (ou a tese) de que a superação dessa crise (que
seria de legitimidade também no plano acadêmico universi
tário) viria com a sua afirmação como ciência, ou seja, com
a definição de objeto, método e linguagem próprios.
0 campo acadêmico da Educação Física
Para tratar dessa questão é preciso resgatar um pouco
o processo de construção do campo acadêmico da EF. A
chamada EF moderna é filha da modernidade. Isso significa
que ela surge num quadro social em que a racionalidade
científica se afirma como a forma correta de ler a realidade,
em que o Estado burguês se afirma como forma legítima de
organização do poder e a economia capitalista baseada na
indústria emerge e se consolida. A EF moderna sofre a influên
cia, desde seus primeiros passos, do pensamento científico.
Vale o princípio: exercitar cientificamente o corpo, ou exer
citar o corpo de acordo com o conhecimento científico a
respeito. Ling e Amoros esmeraram-se em construir seus
métodos ginásticos em estreita consonância com os conheci
mentos oriundos da fisiologia e da anatomia humana. Ling
falava inclusive, em movimento racional com economia de
esforço. Ou seja, desde logo, esta prática, qual seja, este
conjunto sistematizado de exercitações corporais, buscou fun
" 28 *' •
damentar-se no conhecimento das disciplinas científicas emer
gentes (como a física orgânica = fisiologia). Portanto, não é
gratuita a presença influente da instituição médica na EF
(ver a respeito Cachay, 1988, e Soares, 1994).
Num primeiro momento, em função do papel atribuí
do à EF (na perspectiva higienista), o aporte de conhecimen
tos científicos vinha exatamente das ciências biológicas. O
corpo e as atividades físicas eram estudados como fatos/
fenômenos biológicos2. Por isso mesmo, falava-se menos em
movimento humano e mais em atividade física. O que é
importante ressaltar é que o campo da EF era marcado me
nos como um campo acadêmico de produção do conheci
mento, e mais, como de aplicação do conhecimento (cientí
fico). Os métodos ginásticos eram construídos aplicando-se
os conhecimentos da anatomia, da fisiologia e da medicina
ao campo dos exercícios físicos.
Quando a EF passou a se afirmar no âmbito dos siste
mas de ensino como componente curricular, ascendendo ao
ensino superior (em alguns casos universitário), para a for
mação de professores, já um número bastante grande de
disciplinas se ocupava do estudo do corpo/movimento hu
mano ou de suas objetivações culturais como o esporte.
Aliás, não esqueçamos de que o esporte, como fenômeno
social, teve papel importante no reconhecimento da necessi
dade de formação de profissionais em nível universitário e
da necessidade da produção do conhecimento científico nes
se âmbito. Em grande parte foi sua importância sociopolítica
que determinou o surgimento de organizações científicas de Ciências do Esporte.
2 Não estou desconhecendo ou ignorando a influência grega sobre alguns filantropos,que no final do século XVIII e no início do XIX buscavam legitimar a ginástica ou a exercitação corporal nas suas escolas a partir do ideal da “harmonia entre corpo e
espírito”. Apesar dessa influência, vários estudos mostram (Cachay, 1988; Krüger,
1990) que as ciências naturais logo se impuseram como elemento fundamentador, como base legitimadora dessas práticas.
O que observávamos naquele momento, e aqui estou
falando basicamente das décadas de 60 e 70 deste século
(em alguns países mais cedo, em outros mais tarde), era,
por um lado, o surgimento e, por outro, a consolidação de
uma série de subdisciplinas ligadas epistemologicamente às
tradicionais disciplinas científicas: fisiologia do esforço, a
biomecânica (do esporte), a psicologia do esporte, a sociolo
gia do esporte, etc.
Já aqui devo dizer que entendo a EF como aquela prá
tica pedagógica que trata/tematiza as manifestações da nossa
cultura corporal e que essa prática busca fundamentar-se em
conhecimentos científicos, oferecidos pelas abordagens das
diferentes disciplinas. Ou seja, o campo acadêmico da EF
vem se constituindo a partir da absorção e/ou incorporação
de práticas científicas fortemente marcadas por abordagens
monodisciplinares do fenômeno do movimento humano ou
da atividade física3.
Ora, o fato do campo acadêmico EF incorporar cada
vez mais intensamente as práticas científicas, não só conhe
cimento científico (isso no Brasil se dá mais intensamente na
década de 70), determinou a criação de entidades científi
cas próprias, realização de eventos científicos próprios, cria
ção de cursos de pós-graduação, definição de programas de
apoio à pesquisa, etc. No entanto, na produção do conheci
mento predomina o enfoque disciplinar ou monodisciplinar
determinado pela chamada disciplina-mãe. Um pouco da
crise de identidade da EF vem daí, do desejo de tornar-se
ciência, e da constatação de sua dependência de outras dis
ciplinas científicas (a EF é “colonizada” epistemologicamente
3 Existem indicadores de que lá onde a EF desde logo obteve o status universitário,
a incorporação das práticas científicas ao campo processou-se mais rápida e intensamente. Em alguns países, como a Argentina, o fato da formação de professores de
EF dar-se em cursos não-universitários tem dificultado tal processo; por exemplo, naquele país não existem até hoje cursos de mestrado na área da EF.
por outras disciplinas). Assim, no processo de sua constitui
ção, o campo acadêmico EF fragmentou-se; as línguas cien
tíficas faladas são diferenciadas, específicas. No campo da
EF, no que diz respeito à produção do conhecimento científi
co, surgiram os especialistas, não em EF, mas, sim, em
fisiologia do exercício, em biomecânica, em psicologia do
esporte, em aprendizagem motora, em sociologia do espor
te, etc.4. Os professores de EF, enquanto “cientistas”, pas
saram a se identificar como especialistas em fisiologia, em
biomecânica, etc. e não em EF. Em função do processo de
especialização não demorou a instalar-se no campo um “diá
logo de surdos”. Dada a importância e o status que a ciência
goza na sociedade e principalmente no meio acadêmico, a
EF coloca como meta tornar-se ela própria uma ciência.
Passa então, a sofrer de certo tipo de complexo de édipo;
quer ser mas não pode ser, não consegue ser (não pode
consumar o ato). Esse complexo é tão grande que alguns
entenderam ter surgido, como que de dentro do campo da
EF, uma nova ciência, a Ciência da Motricidade Humana,
para alguns, ou a Ciência do Movimento Humano, para ou
tros. Se essa se concretizasse, finalmente os professores de
EF poderiam dizer-se “cientistas”, poderiam dizer-se perten
centes a um campo científico, o da Ciência da Motricidade
Humana.
Por outro lado, uma forte pressão para a cientifização
da EF vem das chamadas Ciências do Esporte. E exatamen
te quando a EF deixa de se apresentar como ginástica (mé
todos ginásticos) e consolida-se o esporte enquanto seu con
teúdo maior, que as chamadas Ciências do Esporte insta
lam-se no campo, inicialmente chamado de EF. Hoje, não é
possível distinguir os campos de produção do conhecimento
4 E interessante notar que análises recentes feitas por importantes autores do campo
da pedagogia também identificam esse problema em seu campo (Arroyo, 1998;
Brandão, 1998; Libâneo, 1996).
da EF e das Ciências do Esporte. Publicam-se os mesmos
trabalhos em revistas de EF e/ou de Ciências do Esporte,
apresentam-se trabalhos em congressos de um e de outro, sem qualquer discriminação ou alteração. A EF, nesse âmbi
to, costuma ser tratada como pedagogia do esporte.
Portanto, embora sejam profissionais de EF e não mais
apenas biólogos, médicos, fisiólogos, psicólogos e sociólogos
que pesquisam em torno do movimento humano e suas objetivações culturais, a situação concreta é que essas pesquisas têm sua identidade epistemológica ancorada nas ciên-
cias-mãe e não na EF, ou seja, a EF não é capaz de ofere
cer/fornecer uma identidade epistemológica5 própria a es
sas pesquisas. A pesquisa em fisiologia do exercício não é
ciência da EF e, sim, ciência fisiológica, assim como história
do esporte não é Ciência do Esporte e, sim, ciência histórica.
Aqui, neste âmbito, ocorreu um equívoco que reputo à
influência de uma concepção empirista ingênua de ciência. Refiro-me ao fato de confundirmos objeto científico com al
gum fato/fenômeno ou recorte da realidade: ou seja, o en
tendimento de que ter um objeto próprio seria o mesmo que
identificar um fenômeno do mundo concreto/empírico que seria propriedade dessa ciência ou disciplina. O movimento
humano por si só não é um objeto científico, são antes os
problemas que lhe são colocados sob uma nova perspectiva
que podem configurar um novo campo do conhecimento. Objeto científico é algo construído a partir de determinada abordagem.
Defendo a idéia de que a EF não é uma ciência. No
entanto, está interessada na ciência, ou nas explicações cien
tíficas. A EF é uma prática de intervenção e o que a carac
5 Identidade epistemológica significa a forma própria com que cada disciplina científica interroga e explica a realidade, o que é determinado pelo tipo de problema que
levanta, pelos métodos de investigação e pela linguagem que desenvolveu e utiliza.
teriza é a intenção pedagógica com que trata um conteúdo
que é configurado/retirado do universo da cultura corporal
de movimento. Ou seja, nós, da EF, interrogamos o movi-
mentar-se humano sob a ótica do pedagógico.
Acredito que, influenciados exatamente pela pressão
cientificista, sempre entendemos a definição de nosso obje
to como a definição de um “objeto científico”. Ora, o objeto
de uma prática pedagógica não tem as mesmas característi
cas fundantes de um objeto de uma ciência. O objeto da EF
enquanto prática pedagógica é retirado do mundo da cultura
corporal/movimento, ou seja, é selecionado a partir de crité
rios variáveis, ou seja, dependentes de uma teoria pedagógi
ca, desse universo. Podemos chegar ao ponto de configurar
nosso objeto de forma mais abstrata e aí diríamos ser a
cultura corporal de movimento.
A EF está interessada nas explicações, compreensões
e interpretações sobre as objetivações culturais do movimen
to humano fornecidas pela ciência, com o objetivo de funda
mentar sua prática, e isso porque nós, da EF, estamos con
frontados com a necessidade de constantemente tomar deci
sões sobre como agir. Por exemplo: decisões sobre o conteú
do dos meus planos de ensino; sobre a quantidade e a inten
sidade de exercícios; sobre õ método de ensino a adotar
para ensinar um esporte; sobre a forma de reagir de frente a
uma atitude agressiva de um aluno, etc. Com base em qual
conhecimento eu tomo essas decisões? Como ter certeza
de que as decisões que tomei são as corretas?
Bem, em princípio achamos que a ciência nos auxilia
ria nessa tarefa. Há (ou houve) o entendimento de que a
ciência faria com que tivéssemos respostas mais seguras/
verdadeiras para essas questões. Mas, o que é conhecer cien
tificamente a realidade? Por que ela nos ofereceria um co
nhecimento ou uma base mais segura?
A ciência moderna parte do pressuposto de que as
explicações da realidade estão contidas nela mesma, ou seja,
rompendo com o pensamento mítico, entende que as expli
cações do que acontece na natureza não precisam apelar
para forças externas a ela (como a vontade divina). Existem
leis internas que determinam o movimento das coisas. A
descoberta dessas leis permite prever o comportamento dos
corpos ou das coisas de forma universal. Ou seja, a realidade
contém regularidades e possui uma ordem. A ciência está
interessada na regularidade, na rotina, no que é comum na
realidade, para controlá-la (desvelar, desvendar a realidade,
descobrir as leis que a regem).
Por exemplo: eu posso prever o comportamento da
queda de um dardo, porque sobre qualquer corpo físico age
uma lei universal, que é a lei da gravidade. Posso prever,
com relativa precisão, a repercussão de um treinamento de
corridas contínuas em determinada intensidade sobre a con
dição aeróbica de uma pessoa, porque estou de posse de
uma teoria (que expressa uma lei ou leis) construída no âm
bito da fisiologia, que diz que, quando uma pessoa é subme
tida a uma atividade X, o organismo reage de forma Y.
Teorias expressam leis que permitem prever o comporta
mento da realidade e assim nela intervir e/ou controlá-la.
Buscou-se aplicar esses mesmos princípios para o co
nhecimento “científico” da realidade social e do comporta
mento humano. Durkheim dizia que a realidade social devia
ser estudada como “coisa” e Comte chamava a atual socio
logia de física social. No entanto, movimentos acadêmicos
logo questionaram a possibilidade e a validade da aplicação
desses princípios científicos ao estudo da realidade social
e humana. Dilthey, por exemplo, entendia que as humani
dades (Geisteswissenschaften) devem operar com a catego
ria da compreensão, ao passo que as ciências naturais
(Naturwissenschaften) operam com a categoria da explica
ção. Compreender (verstehen) é uma operação diferente da
de explicar (erklären) e, para o caso das humanidades, o adequado é o primeiro: compreender o sentido/significado subjetivo das condutas humanas.
Tem também leis (universais) capazes de explicar o
comportamento humano, regularidades sociais/históricas do mesmo tipo das presentes na natureza? O debate em torno de um possível dualismo metodológico ou epistemológico entre as ciências naturais e as ciências sociais e humanas continua. Para nós interessa a pergunta: o estudo do movimento humano deve ser feito a partir dos princípios das ciências naturais ou das ciências sociais e humanas, ou, ainda, de ambas?6
Parece que o mais importante é ter a capacidade de entender o tipo de conhecimento do movimentar-se humano que uma e outra abordagem possibilita, as possibilidades e limitações de cada uma das abordagens. Toda abordagem científica é “pré-conceituosa”, portanto, oferece explicações/ interpretações da realidade que são relativas (a um ponto de vista) e, por conseqüência, limitadas pelo aparato teórico- metodológico próprio daquela disciplina. Por exemplo: quando faço uso do instrumental teórico-metodológico da biomecânica para estudar o movimento humano, o conhecimento produzido falará algo do movimento humano mas se “calará” em relação a uma série de aspectos desse mesmo movimento.
Assim, não farão parte desse conhecimento os aspectos ligados à afetividade do sujeito que se move, os aspectos sociais ligados ao contexto em que se realiza o movimento e que o influenciam, etc. O mesmo acontece em relação às
outras disciplinas científicas - não existe uma abordagem
global que “esgote” a realidade.
6 Aliás, M. Sérgio coloca a Ciência da Motricidade Humana no âmbito das ciências
do homem, mas, em momento algum reporta-se ao que isso, epistemologicamente, significa; pelo menos não se refere ao aludido debate epistemológico e não toma
posição a respeito, de maneira que fica-se sem saber das conseqüências (metodo
lógicas) que tal vinculação/classificação teria.
Essa característica do saber científico - toda abordagem ser “pré-conceituosa” e relativa a um ponto de vista -
impõe, para o caso da EF, a questão da interdisciplinaridade. Entendo que a questão da interdisciplinaridade se impõe ao campo acadêmico da EF. Para a EF (para fundamentar essa prática) não basta somar o conhecimento da biomecânica, com o da fisiologia do exercício, com o da psicologia. Há a necessidade de operar uma síntese ou sínteses, o que é diferente da soma das partes (ao mesmo tempo, mais que a soma das partes e menos que cada parte, como diria E. Morin, 1993); uma síntese operada a partir das necessidades e dos interesses específicos da EF, da prática pedagógica em EF (descolonização científica). O que hoje predomina são as problemáticas/temáticas disciplinares.
Gostaria de dar um exemplo para demonstrar a necessidade de superar as perspectivas disciplinares. Partirei de uma pergunta: qual é o método que devo usar nas aulas para ensinar um esporte, como o volibol? O método sintético ou o método analítico? Se escuto as pesquisas da aprendizagem motora posso ter a resposta, hipotética, de que é o método analítico. Se escuto as pesquisas da fisiologia do exercício, posso ter a resposta de que é o método sintético (que propicia maior movimentação). Se escuto a sociologia ou a psicologia social, seria, talvez, o método sintético pela maior possibilidade de contato social. Se atento para a sociologia do currículo questionarei inclusive o próprio esporte enquanto fenômeno cultural que expressa relações de poder, etc. Qual abordagem devo considerar para minhas decisões de professor de EF? Como integrar essas distintas abordagens? E possível decidir com base no conhecimento discipli
nar? E possível decidir sempre no plano da racionalidade
científica?7
7 Interessante é observar que, apesar da flagrante necessidade de mediação entre os saberes disciplinares presentes no campo da EF, os especialistas nas diferentes
subdisciplinas do nosso campo não conseguem dialogar, ou seja, a partir de sua
especialidade interagir com outra, como ficou claro no IX Congresso Brasileiro de Ciências do Esporte (Vitória/ES, Set. 95).
Considerações finais (problematizações)
Para finalizar este capítulo gostaria de pontuar algu
mas problemáticas que, considero, devem ser enfrentadas
pela reflexão espistemológica do campo da EF.
Precisamos, por exemplo, analisar a tese da Ciência
da Motricidade Humana de M. Sérgio (1989), como possível
fornecedora do estatuto epistemológico da EF. Adianto mi
nha posição, embora sem fazer aqui uma análise mais exaus
tiva dessa tese: ela não apresenta uma solução para os pro
blemas epistemológicos da EF. Aliás, em M. Sérgio, a EF
aparece, em relação à Ciência da Motricidade Humana, com
duas conotações: ora como a Pré-Ciência da Motricidade
Humana, e ora como ramo pedagógico dessa ciência. A
idéia ou tese de que a EF é a Pré-Ciência da Motricidade
Humana é sustentável apenas à medida que sob essa deno
minação esse campo acadêmico se constituir; resta no en
tanto, demonstrar que esse constitui-se hoje na forma de
uma nova disciplina científica ou de uma nova ciência. Já a
tese de que a EF8 seria o ramo pedagógico da Ciência da
Motricidade Humana me parece altamente questionável. Em
nenhum momento, aliás, os autores que referendam essa
tese explicam o que significa para a EF (ou Educação Motora)
ser o ramo pedagógico de uma tal ciência (partindo-se do
pressuposto de que tal ciência existe). Significa que essa
prática pedagógica tematiza os conhecimento oriundos de
tal ciência? Significa que os fundamentos dessa prática pe
dagógica vêm dessa mesma ciência? As “outras ciências”
8 O autor da tese, M. Sérgio, prefere denominar a EF de educação motora, Yio que é
seguido por um grupo de professores brasileiros, principalmente atuantes na Facul
dade de Educação Física da UNICAMP. No livro, que foi publicado como resultado de um simpósio sobre educação motora (De Marco, 1995), alguns autores, ao invés
de falar em educação motora (ex-EF) como ramo pedagógico da Ciência da Motricidade Humana, falam em ramo pedagógico da teoria da motricidade humana, sem justificar, no entanto, o porquê dessa opção por teoria, em vez de ciência.
também possuem um ramo pedagógico? Por acaso o ensino
da biologia constitui-se no ramo pedagógico da biologia? O
que se ensina na biologia é o conhecimento biológico. O que
se ensinaria na EF ou educação motora? Seria o conheci
mento da Ciência da Motricidade Humana? Essas são ques
tões que estão a merecer uma resposta.
Continua me parecendo mais importante para nosso
campo acadêmico interpretar a EF como prática pedagógi
ca. Parlebas (1993) também entende que a EF não é uma
ciência e, sim, uma “pedagogia das condutas motrizes”. En
tende como objeto específico da EF as “ações motrizes”. Já,
Gamboa (1994) situa a EF no âmbito do que chama de
“novos campos epistemológicos”, pois, superando a pers
pectiva de “ciência aplicada”, tem como característica ser
uma ciência da e para a ação educativa ou uma ciência da
ação, como a pedagogia. O autor considera que o “eixo da
sistematização científica” (p. 37) e o que lhe fornecer especifici
dade é o movimento/ação do corpo humano (motricidade).
Entendo que as reflexões de Gamboa (1994) significam um
avanço para a discussão da área sobre suas questões
epistemológicas e isso porque: primeiro, o autor afirma a
especificidade da EF no plano pedagógico e, com isso, subli
nha a dimensão de intervenção imediata própria de nosso
campo; segundo, aponta para novos elementos e a necessi
dade da interdisciplinaridade.
Mas, algumas questões precisam ser aprofundadas. Por
exemplo, sabemos quase nada sobre como realizar a
interdisciplinaridade (não dispomos de uma epistemologia
interdisciplinar). Como comenta Parlebas (1993, p. 131),
“se postula que a adição de conhecimentos que provém de
distintos horizontes vão harmonizar-se numa unidade. Tal
milagre, porém, não pode produzir-se”. Assim, entendo que
o teorizar específico da EF deveria concentrar-se exatamen
te na integração das diferentes abordagens, seria um teorizar
sintetizador de conhecimento à luz das necessidades especí
ficas da prática pedagógica. Vale lembrar que isso ocorre
também com a pedagogia. O que complexifica a questão é
a possível existência de um saber prático ou corporal que
resiste à teorização, como diz Mauro Betti (1994) em
instigante artigo. Por outro lado, não é possível ignorar o
debate em torno das limitações da racionalidade científica (e
sua crise) e da polêmica relação entre o saber fático e o éti-
co-normativo, questões re-colocadas pelo pós-modernismo.
E preciso considerar os limites da própria racionalidade
científica, quanto ao fornecimento dos fundamentos de nos
sa prática. Como sabemos, a prática pedagógica envolve
sempre uma dimensão ética de caráter normativo, ou seja,
se a ciência se atém ao fático, a prática pedagógica opera
também no plano do contrafático (do dever-ser). Outra di
mensão importante presente no âmbito pedagógico é a di
mensão estética. Sem me alongar no assunto, diria que o
teorizar na EF precisa ultrapassar as limitações da racionali
dade científica, para integrar no seu teorizar/fazer a dimen
são do ético e do estético.
Assim, o apelo para a cientifização da EF é problemá
tico porque a racionalidade científica (tradicional) é limitada
em relação às necessidades de fundamentação de sua práti
ca - o que indica a superação do modelo tradicional de ra
cionalidade científica (por exemplo, com o projeto da razão
comunicativa de J. Habermas) - e sofre, ao mesmo tempo,
o abalo da nova filosofia da ciência que é relativista no senti
do de não reconhecer superioridade na racionalidade cientí
fica de frente às outras formas de conhecer a realidade.
A PRÁTICA PEDAGÓGICA DA EDUCAÇÃO FÍSICA: CONHECIMENTO
E ESPECIFICIDADE1
Parece-me que o tema remete a uma questão que
tornou-se fator de frustração e, em alguns casos, motivo de
pesadelos para o professor de Educação Física (EF): a tão
propalada crise de identidade da EF, que em muitos mo
mentos foi entendida como resultado da falta de definição
do seu “objeto”, da falta de definição clara de sua especifi
cidade (identidade no sentido de sua singularidade). Entendo
que a temática colocada, em última instância, nos remete a
essa questão.
Para adentrar ao tema e colocar minha posição desejo
fazer, inicialmente, uma demarcação.
Quando falo em objeto da EF me refiro ao “saber”
específico de que trata essa prática pedagógica. Não estou
me referindo, portanto, ao objeto de uma prática científica
específica - não coloco, para responder a essa questão, as
exigências que são feitas para definir o objeto de uma ciên
cia. Essa diferenciação é importante porque entendo que
1 Artigo originalmente publicado na Revista Paulista de Educação Física. Supl.2, 1996, p. 23-8.
parte das dificuldades na superação da “crise de identidade”
advém do fato de se insistir em ver na EF uma disciplina
científica e, mais, como uma disciplina com estatuto episte-
mológico próprio. Entendo que a especificidade da EF no
campo acadêmico é a de que ela se caracteriza, fundamen
talmente, como prática pedagógica2, no que concordamos
com Lovisolo (1995). A necessidade e a reivindicação de
fundamentar “cientificamente” a EF é que a levou a incor
porar as prática cientificas ao seu campo acadêmico (o que
é muito diferente de passar a ser uma ciência com estatuto
epistemológico próprio). Então, quando nos referimos ao objeto
da EF, pensamos num saber específico, numa tarefa peda
gógica específica, cuja transmissão/tematização e/ou reali
zação seria atribuição desse espaço pedagógico que chama
mos EF.
As diferentes concepções do objeto da Educação Física
Feita essa demarcação, vejamos como se entendeu o
“saber” próprio da EF ou a sua especificidade. As expres-
sões-chave para tal identificação foram ou são:
a) “atividade física”; em alguns casos, “atividades físico-es-
portivas e recreativas”;
b) “movimento humano” ou “movimento corporal humano”,
“motricidade humana” ou, ainda, “movimento humano
consciente”;
2 Gamboa (1994) entende que a EF, assim como a pedagogia, estariam situadas no
que chama de “novos campos epistemológicos”, cuja característica específica seria
exatamente a dimensão da “ação” (que estou chamando de “intervenção"); para esse autor, a EF é uma ciência da e para a ação.
c) “cultura corporal”, “cultura corporal de movimento” ou
“cultura de movimento”.
Pretendo defender, aqui, a tese/idéia de que, para a
configuração do saber específico da EF, devemos recorrer ao
conceito de cultura corporal de movimento.
É importante termos claro que a definição do objeto da
EF está relacionada com a função ou com o papel social a
ela atribuído e que define, em largos traços, o tipo de conhe
cimento buscado para sua fundamentação3. Os termos “ati
vidade física”, e “exercícios físicos” são fortemente marca
dos pela idéia de que o papel da EF é contribuir para o
desenvolvimento da aptidão física e pertencem claramente,
no plano do conhecimento, ao arcabouço conceituai das dis
ciplinas científicas do âmbito da biologia, das ciências bioló
gicas4.
A definição clássica de EF, nessa perspectiva, é a que
a considera como disciplina que, por meio das atividades
físicas, promove a educação integral do ser humano - mas,
a conotação, na prática, é a do desenvolvimento físico-mo-
tor ou da aptidão física, servindo a “educação integral do ser
humano” para satisfazer/caracterizar o discurso pedagógico.
A absorção na EF do discurso da aprendizagem motora,
do desenvolvimento motor, da psicomotricidade e, mesmo,
em certo sentido, da antropologia filosófica, resultou numa
mudança de denominação de nosso objeto (embora nem sem-
3 Aqui estamos de frente a uma via de mão dupla: a função atribuída à EF determina
o tipo de conhecimento buscado para fundamentá-la e o tipo de conhecimento
predominante sobre o corpo/movimento humano determina a função atribuída à
EF. No entanto, nem um nem outro são auto-explicativos: eles precisam ser analisa
dos integradamente como componentes de um movimento mais geral e complexo
da sociedade.
4 Não é necessário aqui resgatar o tipo de educação (física) que é postulado e
acontece a partir desse entendimento. Basta lembrar que ela ficou conhecida como
uma perspectiva biologicista de EF.
pre numa mudança de paradigma ou de concepção). Pas
sou-se a privilegiar os termos “movimento humano” (em al
guns casos, “motricidade humana”). Destaca-se, a partir dessa
perspectiva, a importância do movimento para o desenvolvi
mento integral da criança e esse é o papel atribuído à EF.
A definição clássica, nesse caso, é a de que a EF é a
educação do e pelo movimento. Como exemplo paradig
mático temos a abordagem desenvolvimentista de Tani,
Manoel, Kokubun & Proença (1988), mas, também, com
nuanças, a educação de corpo inteiro, de Freire (1992). A
base teórica advém, fundamentalmente, da psicologia da
aprendizagem e do desenvolvimento, uma com ênfase no
desenvolvimento motor e outra no desenvolvimento cognitivo.
Fala-se, nesses casos, em repercussões do movimento
sobre a cognição e a afetividade ou o domínio afetivo-social;
fala-se dos diversos arranjos e tarefas motoras para garantir
o desenvolvimento das habilidades motoras básicas (Tani et
alii, 1988), com repercussões sobre os domínios cognitivo e
afetivo-social. Mas ambas as propostas não superam a pers
pectiva da psicologia, o que, para a questão pedagógica, é
problemático, como salienta Silva (1993a), em “Descons-
truindo o Construtivismo”.
A psicologização da educação implica, necessariamen
te, a sua despolitização. Não é suficiente afirmar, a título de
defesa - de forma simplista -, que determinada psicologia
leva em conta os fatores sociais. O que importa, ao contrá
rio, é destacar a existência de um aparato social e político,
como é a educação institucionalizada, e as implicações disso
(Silva, 1993a, p.5).
As duas definições, ou melhor, construções do objeto
da EF, tratadas até aqui (biologia/psicologia do desenvolvi
mento), permitem ver o objeto não como construção social e
44 C..,,.. '-- ..
histórica e, sim, como elemento natural5 e universal, portan
to, não histórico, neutro politica e ideologicamente, caracte
rísticas que marcam, também, a concepção de ciência onde vão sustentar suas propostas.
A outra perspectiva presente é a de que o objeto da EF
é a cultura corporal de movimento. É importante salientar
que se, em princípio, fala-se neste caso das mesmas ativida
des humanas presentes nas concepções anteriores, as ex
pressões usadas para denominá-las denunciam, além de uma
diferença terminológica, diferenças e conseqüências subs
tanciais no plano pedagógico6, pois, o objeto de uma prática
pedagógica é uma construção - e não uma dimensão inerte
da realidade - para a qual pressupostos teóricos são fundantes
e/ou constitutivos. Não é possível dissociar o fenômeno do
discurso da teoria que o constrói enquanto objeto (pedagógico).
Nessa perspectiva, o movimentar-se é entendido como
forma de comunicação com o mundo que é constituinte e
construtora de cultura, mas, também, possibilitada por ela.
E uma linguagem, com especificidade, é claro, mas que,
enquanto cultura habita o mundo do simbólico7. A naturali
zação do objeto da EF, por outro lado, seja alocando-o no
plano do biológico ou do psicológico, retira dele o caráter
histórico e com isso sua marca social. Ora, o que qualifica o
movimento enquanto humano é o sentido/significado do
mover-se, sentido/significado mediado simbolicamente e que
o coloca no plano da cultura.
5 E “naturalmente social”.
6 Como diria Assmann (1993): “não são apenas festejos diferentes de linguagem”.
7 Daí a importância do artigo de Mauro Betti (1994) que remete a novos horizontes
do estudo do movimento humano ou das manifestações da cultura corporal de movimento através da semiótica.
No entanto, trabalhar na EF com o movimentar-se na
perspectiva da cultura (cultura corporal de movimento) não
basta para colocá-la no âmbito de uma concepção progres
sista de educação, mesmo porque, o conceito de cultura
pode ser definido e operacionalizado em termos social e
politicamente conservadores. É preciso portanto, articular
um conceito de cultura que se coadune com os pressupostos
sociofilosóficos da educação crítica.
Para Geertz, citado por Thompson (1995, p. 176),
“cultura é o padrão de significados incorporados nas for
mas simbólicas, que inclui ações, manifestações verbais e ob
jetos significativos de vários tipos, em virtude dos quais os
indivíduos comunicam-se entre si e partilham suas experiên
cias, concepções e crenças”.
Thompson aponta a insuficiência dessa concepção, di
zendo que
“estas formas simbólicas estão também inseridas em contex
tos e processos sócio-históricos específicos dentro dos quais,
e por meio dos quais, são produzidas, transmitidas e recebi
das. Estes contextos e processos estão estruturados de várias
maneiras. Podem estar caracterizados, por exemplo, por rela
ções assimétricas de poder, por acesso diferenciado a recur
sos e oportunidades e por mecanismos institucionalizados de
produção, transmissão e recepção de formas simbólicas (1995,
p. 181).
Dessa forma, a análise cultural como o estudo de for
mas simbólicas deve considerar os “contextos e processos
específicos e socialmente estruturados dentro dos quais, e
por meio dos quais, essas formas simbólicas são produzidas,
transmitidas e recebidas”. Portanto, o movimentar-se e mesmo
o corpo humano precisam ser entendidos e estudados como
uma complexa estrutura social de sentido e significado, em
contextos e processos sócio-históricos específicos.
Uma das razões para entendermos nosso objeto valen
do-nos do conceito de cultura diz respeito ao fato de que ela
é uma categoria-chave para o empreendimento educativo
de maneira geral. A relação entre educação e cultura é orgâ
nica. Como lembra Forquin (1993),
“o que justifica fundamentalmente o empreendimento educativo
é a responsabilidade de ter que transmitir e perpetuar a expe
riência humana considerada como cultura” (p. 13).
“A cultura é o conteúdo substancial da educação, sua fonte e
sua justificação última” (p. 14).
Nas abordagens de EF baseadas no conceito (biológico)
de atividade física e no conceito (psicológico) da abordagem
desenvolvimentista, o corpo e o movimentar-se humano apre
sentam-se desculturalizados8.
Duas observações ainda se fazem necessárias quanto à
relação cultura-educação:
a) “a educação ‘realiza’ a cultura como memória viva, reativação
incessante e sempre ameaçada, fio precário e promessa
necessária da continuidade humana” (Forquin, 1993, p.
14);
b) “Uma teoria cultural da educação, vê a educação, a peda
gogia e o currículo como campos de luta e conflito
simbólicos, como arenas contestadas na busca da imposi
ção de significados e de hegemonia cultural. (Silva, 1993b,
p. 122)
8 Desculturalizados não no sentido de que os movimentos, os jogos e as brincadeiras
utilizados nessas abordagens não emanem do universo cultural - por exemplo,
Freire (1992) e valoriza sobremaneira a cultura infantif- mas, sim, no sentido de que os critérios a partir dos quais são sistematizados e tratados pedagogicamente
advêm, exclusivamente, de análises do desenvolvimento infantil, descontextualizadas
social e historicamente.
A especificidade pedagógica da cultura corporal de movimento
Para a construção de uma teoria da EF coloca-se aqui
uma questão central: qual é a especificidade pedagógica da
cultura corporal de movimento enquanto saber escolar?9
Os saberes tradicionalmente transmitidos pela escola
provêm de disciplinas científicas ou então, de forma mais
geral, de saberes de caráter teórico-conceitual. Entendo que,
diferentemente do saber conceituai, o saber de que trata a
EF (e a Educação Artística) encerra uma ambigüidade ou um
duplo caráter: a) ser um saber que se traduz num saber-
fazer, num realizar “corporal”; b) ser um saber sobre esse
realizar corporal10.
No caso do entendimento de que o objeto da EF era a
atividade física ou o movimento humano, a ambigüidade era
resolvida a favor da dimensão “prática” ou do fazer corporal.
Esse fazer corporal é que repercutia sobre a “totalidade” (os
diferentes domínios do comportamento) do ser humano. Nesse
caso, o debate se desenvolveu em torno da polarização: edu
cação do ou pelo movimento, ou ambos.
Já, trabalhando a partir da idéia da cultura corporal de
movimento como objeto da EF, a questão do saber sobre o
movimentar-se do homem passa a ser incorporado enquanto
saber a ser transmitido (não é apenas instrumento do profes
sor). Desenvolveu-se aqui, rapidamente, o “pré-conceito” de
9 Outras questões aderem a esta, como: o que é possível ensinar/aprender quando
trato pedagogicamente essa parcela da cultura? Quais são os critérios para selecionar e sistematizar essa dimensão da cultura?
10 Essa questão está magistralmente tratada no artigo mais instigante de nossa área
publicado em 1994. Refiro-me ao artigo de Mauro Betti, publicado na revista Disco rpo: O que a Semiótica Inspira ao Ensino da EF.
que o que se estava propondo, nesse caso, era transformar a
EF num discurso sobre o movimento, retirando o movimen-
tar-se do centro da ação pedagógica em EF.
Betti, enfocando essa questão, observa:
“Não estou propondo que a EF transforme-se num discurso
sobre a cultura corporal de movimento, mas numa ação pe
dagógica com ela [grifo nossoj. E evidente que não estou
abrindo mão da capacidade de abstração e teorização da lin
guagem escrita e falada, o que seria desconsiderar o simbolis
mo que caracteriza o homem. Mas a ação pedagógica a que se
propõe a EF estará sempre impregnada da corporeidade do
sentir e do relacionar-se.” (1995, p. 41)
Nos parece que, no fundo, está aqui presente a ambigui
dade insuperável que radica-se no nosso estatuto corpóreo.
Simultaneamente, somos e temos um corpo.
Um desdobramento ou uma vertente dessa ambigüida
de refere-se à relação natureza-cultura, que é uma questão
que afeta o entendimento geral de ser humano e que se
aguça sobremaneira quando falamos de corpo e movimento.
É interessante colocar aqui o que Cullen11 chama de
encruzilhada quando buscamos situar o lugar do corpo na
cultura. Para esse filósofo argentino, o corpo, ou a existên
cia corporal do homem, é fonte de certo mal-estar para a
cultura, pois seriam marcas do corpo a singularidade, ao
passo que a cultura seria o reino do comum, o remeter
imediatamente ao desejo e à morte, necessitar de espaço e
movimento e depender do meio ambiente. A cultura cir
cunscreve o corpo, que parece querer negá-la, ao plano da
natureza, impondo-o, assim, um vazio, ou então fá-lo reger-
se por uma idéia ou modelo - é o simulacro. Por isso estamos,
segundo o autor, numa encruzilhada: culturalizar o corpo e
11 Anotações pessoais da palestra proferida por C. Cullen durante o II Congresso
Argentino de Educación Física y Ciência (La Plata, outubro/1995).
torná-lo semelhante (reprimindo sua singularidade) ou descul-
turalizar o corpo e reduzi-lo à diferença. O corpo naturalizado ou o corpo culturalizado? Ou, talvez o grande desafio do projeto educativo: como culturalizar sem desnaturalizar?
Como isso se expressou na EF? A EF sempre fez um discurso, baseado nas ciências naturais, de controle do corpo, de “construção” de um corpo saudável e produtivo, treinável, capaz de grandes e belos desempenhos motores. Era o corpo “natural” submetido ao entendimento dominante de nossa corporeidade. Não há aqui espaço para considerar o corpo “sujeito” de cultura, produtor de cultura, ele apenas “sofre cultura”. E interessante notar que em alguns casos ainda temos a denominação de órgãos públicos de Secreta
ria de Esportes e Cultura; cultura é o que retrata artisticamente o corpo, ou então, aquelas atividades corporais que são realizadas sob o signo da cultura (ballet, por exemplo). Outra postura é aquela que enaltece o sensível (o lúdico), enquanto instância ainda não submetida às regras do mundo racional ou social, que busca e valoriza aquelas experiências que atestam a unidade homem-mundo, uma certa unidade primordial, experiências em que somos corpo e mundo. Uma terceira postura quase que elimina a primeira natureza em favor da segunda natureza, a cultura, privilegiando nesta a racionalidade científica.
O movimento instalado na EF brasileira a partir da década de 80, ao menos em uma de suas vertentes (aquela que vai buscar fundamentação pedagógica na pedagogia histórico-crítica), situa-se na terceira perspectiva descrita, que tem pelo menos um aspecto em comum com a primeira: uma perspectiva racionalista do movimento humano. Ou seja, em vez de controlar o movimento apenas no sentido mecâ- nico-fisiológico, encarando-o agora como fenômeno cultural, pretende dirigi-lo a partir da “consciência crítica
dos determinantes sociopolítico-econômicos que sobre ele recaem”.
Ghiraldelli Júnior (1990) detectou essa questão e colo
cou frente a frente duas tendências no âmbito da chamada
EF progressista: a tendência racionalista e a tendência anti-
racionalista. Segundo o autor, as tendências racionalistas
buscam uma saída pela janela:
“Detectando no movimento, na “prática corporal”, elemen
tos não desejáveis, acabam por tomá-los como a própria e ex
clusiva essência do movimento e, na sequência, concluem que
é preciso que ‘alguma coisa de fora’ venha acrescentar-lhe cri-
ticidade, venha libertá-lo, libertando seu praticante. Essa coi
sa exterior é o discurso, que pode ter caráter sociológico, an
tropológico, político, etc. [...] A aula de EF torna-se uma aula
sobre o movimento e não mais uma aula com movimento.
Ou então, uma aula com o movimento nas condições da EF
‘tradicional’ agregada ao estudo e discurso crítico.” (p. 197-8)
Por outro lado,
“as correntes anti-racionalistas captam que o movimento cor
poral humano, por não ser algo que passe pela verbalização,
pode escapar da razão e, por essa via, se aproximar da intui
ção. Afinal, o movimento não é algo que pode ser descrito e
explicado (positivismo e afins) nos seus últimos detalhes, mas
é algo que pode ser compreendido (historicismo e afins), vivi
do, sentido; é algo do plano subjetivo e que esconde que este
plano foi construído subjetivamente.” (p. 198)12
Parece-me que aqui a EF é levada a uma encruzilhada
ou mesmo um paradoxo: racionalizar algo que, ao ser racio
nalizado, se descaracteriza. Ou seja, existiria uma dimensão
das experiências/vivências humanas passíveis de serem pro
piciadas também pelo movimentar-se (nas mais diferentes
formas culturais) que “resiste às palavras”, ou, dito de outra
forma, não é possível pedagogizá-las por via da sua descri
12 Ghiraldelli Júnior (1990) entende que ambas as correntes ficam a meio caminho e
propõe uma visão alternativa baseada numa leitura dialética materialista. No nosso entendimento, a busca da contradição interna, por via da historicização, acaba se
circunscrevendo na própria perspectiva racionalista, não superando, portanto, o
impasse identificado pelo autor.
ção científica; fogem ao controle, à previsão (da ciência);
são, de certa forma, únicas, singulares. Aliás, para Nietzsche,
citado por Naffah Neto (1991, p. 23),
“Nossas experiências verdadeiramente fundamentais não são,
de forma alguma, tagarelas. Elas não saberiam se comunicar,
mesmo que quisessem. É que lhes falta a palavra. Aquilo para
que encontramos palavras, já ultrapassamos [...] A língua,
parece, foi inventada somente para as coisas medíocres, co
muns, comunicáveis. Pela linguagem, aquele que fala se vul
gariza13.”
Como tratar na EF essas experiências? Nos subordinar
ao “desfrute lúdico”? Como construir uma prática pedagógi
ca que, por definição, é uma intervenção racional/conscien
te sobre o desenvolvimento da personalidade dos indivíduos, de maneira a contemplar essas dimensões do movimen- tar-se humano?
A questão se complexifica porque sabemos que a educação da sensibilidade ou o afeto é tão importante quanto a
cognição na definição do comportamento social (político) dos indivíduos. Por isso retomo aqui uma pergunta que formulei
em um simpósio de nossa área14: é possível falar em “movi
mento crítico”? A criticidade ou a educação crítica em EF
somente pode acontecer através de um discurso crítico sobre o movimento? E preciso não incorrer no erro de enten
der criticidade, neste caso, apenas como um conceito da
esfera da cognição. E preciso alargá-lo abarcando a dimen
são estética. Aliás, Carlos R. Brandão, no VIII Congresso
Brasileiro de Ciências do Esporte (Recife/1987), afirmou
que, para ele, crítico só poderia ser o sujeito amoroso, aquele que tem a capacidade de se sensibilizar com o drama do
mundo. É preciso, valendo-me de Assmann (1993), ampliar
13 Há, nessa interpretação, uma redução das possibilidades da linguagem, o que é
reconhecido por Naffah Neto (1991), que vai, na seqüência discutir, essa questão a partir de Merleau-Ponty, com seu “uso criativo da linguagem”.
14 Precisamente em Goiânia, no ano de 1991.
....52 t ____
o conceito de linguagem a todo tipo de ativações da
corporeidade15. Parafraseando Chauí (1994), poderíamos
dizer que, na filosofia e nas ciências, falamos de “movimen
to e pensamento” (um discurso filosófico e científico sobre o
movimento), mas que, na EF, deveríamos falar de movimen- to-pensamento.
Por algum tempo pensei e falei (em círculos mais próximos) em uma “epistemologia do movimento”. Ao contrário das conhecidas taxionomias do domínio psicomotor, tra
tava-se, pensava eu, de identificar o tipo de conhecimento
da realidade que o movimentar-se humano pode propiciar,
que tipo de leitura da realidade essa forma de comunicação
com o mundo pode propiciar e quais conhecimentos e leitu
ra da realidade determinadas formas culturais do movimen
tar-se propiciariam. Estou inclinado a complementar essa
proposta com uma “fenomenologia/hermenêutica do movimento”, uma vez que a expressão epistemologia está excessivamente comprometida com uma postura racionalista no
sentido cognitivista, que não abre espaço para a ampliação do conceito de verdade. Como pergunta Gadamer, citado
por Hekman (1990, p. 147):
“É correto reservar o conceito de verdade para o conheci
mento conceptual? Não devemos também admitir que a obra
de arte possui verdade? Veremos que o reconhecimento des
tes aspectos coloca não só o fenômeno da arte, mas também
o da história [e o do movimento, VB], sob uma nova luz”.
15 Lembro aqui das palavras de Benedito Nunes (1994, p. 403), discorrendo sobre a
“poética do pensamento”. Vale a pena ouvi-lo: “A poesia-canto desobjetifica a
linguagem, retira-a do âmbito da visão prática, da ação e do intercurso cotidiano, a que serve de instrumento de comunicação, para o da abertura, temporal e
histórica. Do mesmo modo que na arte a terra se torna terra, e não é propriamente usada, ao contrário do que sucede com o instrumento material, absorvido em seu
próprio emprego, a poesia usa a palavra como palavra, sem gastá-la, librando o seu
poder de nomear, de fundar o ser, de desencobri-lo no poema. E o que distingue o
poeta do pensador é que a nomeação naquele alcança o que excede à compreen
são do ser em torno do qual o último gravita: o sagrado, indizível, estranho ao
pensamento”.
Assim, uma educação crítica no âmbito da EF tem
igual preocupação com a educação estética, com a educa
ção da sensibilidade, o que significa dizer, “incorporação”,
não por via do discurso e, sim, por via das “práticas corpo
rais”16 de normas e valores que orientam gostos, preferên
cias, que junto com o entendimento racional, determinam a
relação dos indivíduos com o mundo. Sem me alongar na
polêmica da crise da razão (iluminista) ou da racionalidade
científica, entendo que não se trata de subsumi-la à sensibi
lidade, mas, sim, de não pretender absolutizá-la.
O desafio parece-me ser: nem movimento sem pensa
mento, nem movimento e pensamento, mas, sim, mouimen-
topensamento17.
16 Coloquei o termo entre aspas para demonstrar, por um lado, que reconheço a falta de um termo que supere o dualismo inevitavelmente presente na nossa linguagem
quando usamos a palavra “corpo", mas, por outro lado, preciso reconhecer, tam
bém, que ele é fruto da possibilidade que temos de reconhecer nossa existência corporal.
17 Deixo a cargo dos prezados leitores a interpretação do porquê aglutinei a palavra
“pensamento" à palavra “movimento” e não, por exemplo, “sentimento”. Talvez,
ambigüamente, intuitiva-racionalmente, esteja me contrapondo às posturas relativistas
que postulam uma pluralidade radical da razão, sem hierarquia de qualquer tipo.
AS CIÊNCIAS DO ESPORTE: QUE CIÊNCIA É ESSA?1
No ano em que o Colégio Brasileiro de Ciências do
Esporte (CBCE) completou quinze anos de existência fize
mos a pergunta: que ciência é essa que fizemos nestes anos
todos?
Tomar essa questão como tema de congresso pareceu
refletir uma necessidade do colegiado e da “área”. Essa orien
tação/necessidade estava já presente na temática do VII
Congresso Brasileiro de Ciências do Esporte (CONBRACE),
realizado em Uberlândia, em 1991, e, também, no livro do
ano editado pela Sociedade Brasileira para o Desenvolvi
mento da Educação Física2.
Entendemos que depois de uma certa euforia e “inge
nuidade” cientificista dos seus primeiros anos de existência,
com conseqüente aversão à reflexão filosófica, a que se se
guiu um predomínio ideológico com a sobreposição do polí
tico ao acadêmico, o CBCE chegou aos seus quinze anos
1 Artigo originalmente publicado na Revista Brasileira de Ciências do Esporte, 13(1), 1993.
2 Existem vários indicadores nesse sentido, como os recorrentes reclamos de pesqui
sadores da área como Tani (1988) e Carmo (1987) e de órgãos financiadores
como o CNPq e a F1NEP.
como que possuído pelo desejo de complementar o conheci
mento das coisas com o conhecimento de si mesmo - dos pressupostos epistemológicos com que opera.
O VIII CONBRACE foi então organizado e estruturado
fundamentalmente para servir de palco para uma discussão em torno dos pontos que ao longos destes anos apresenta
ram-se como problemáticos para o desenvolvimento científi
co da área da EF/CE (Educação Física/Ciências do Esporte).
Pretendeu-se dar também um caráter deliberativo a esse congresso, para que a síntese dos debates nele desenvolvi
dos, bem como as perspectivas e as ações possíveis para a
superação dos problemas, sejam consubstanciadas em documento aprovado pelo colegiado em assembléia. Com isso, o
CBCE, entidade da sociedade civil, busca a iniciativa e cha
ma para si a responsabilidade de orientar o desenvolvimento científico da área da EF/CE.
E importante situar historicamente essa iniciativa e seu
significado sociopolítico. Essa iniciativa constrói-se após um período de institucionalização da pesquisa científica na “área”3 (criação e implantação de cursos de pós-graduação, incenti
vo à capacitação docente, financiamento e fomento de pesquisa científica), em cujo âmbito as ações governamentais foram sempre as norteadoras e decisivas. Pode-se levantar a
hipótese de que isso tenha significado que a pesquisa na
área tenha estado fortemente atrelada aos interesses dos
sucessivos governos do regime ditatorial vigente, principal
mente na década de 70. Ou seja, estamos apontando, com mais essa iniciativa do CBCE, para o aumento da possibili
dade de construirmos uma prática científica mais afinada
com os interesses democráticos da sociedade brasileira. Isso
dependerá, é claro, do grau de legitimidade que alcançarmos com essa ação coletiva.
3 Uso a palavra área entre aspas por entender que um dos problemas é exatamente
identificar/explicitar os seus contornos.
Mas, a década de 70 parece ter sido realmente decisi
va para a área da EF/CE. O Diagnóstico da Educação Físi
ca e dos Desportos, realizado pelo MEC em 1969/1970,
identificara a falta de pesquisa científica na área. Lembre
mos rapidamente, que a ciência (objetiva e neutra) fazia
parte do credo e do discurso tecnocrático e era entendida
como fundamental instrumento para garantir a eficiência dos
programas de ação governamentais nas diferentes áreas (no
caso na EF/esportes). Datam dessa década uma série de
iniciativas no setor:
- envio de grande número de professores para cursar pós-
graduação no exterior, principalmente nos EUA;
- convênios e intercâmbios com centros de pesquisa no ex
terior - por exemplo com a Escola Superior de Colônia, da
Alemanha;
- criação e implantação de cursos de pós-graduação na área
da EF/CE;
- implantação de laboratórios de pesquisa, principalmente
de fisiologia do esforço e cineantropometria, em alguns
centros universitários - por exemplo, na UFRJ e UFRGS.
Não se deve esquecer que é nesse âmbito que vão
surgir o CELAFISCS e, posteriormente, o próprio CBCE.
A partir da reforma univerisitária, através da Lei ng
5.540, de 1968, que estabeleceu as regras para a pós-gra
duação, baseadas basicamente no modelo norte-americano,
a Educação Física vai almejar/reivindicar o status acadêmi
co da pós-graduação. Isto é, as “práticas científicas” passam
a fazer parte, de maneira agora mais intensa, da atividade
acadêmica dos docentes dos cursos superiores de Educação
Física.
Ora, já se instalara a relação de simbiose (parasitismo)
entre o esporte e a Educação Física, já havia-se consolidado
a esportivização da Educação Física, com a instrumentalização
desta última pelo primeiro, instrumentalização aprofundada
pelos sucessivos planos governamentais da área que coloca
vam a Educação Física como base para o desporto nacional.
Assim, pesquisa em esporte e em Educação Física podiam-
se confundir. Faço essa digressão para a) explicar a razão do
uso privilegiado da expressão “Ciências do Esporte”, e b)
evidenciar que apesar da pesquisa da época orientar-se,
majoritariamente, por uma matriz teórico-científica que ad
voga a neutralidade da ciência, o fomento à pesquisa tinha
como objetivo garantir a eficiência do sistema esportivo (e
da EF a ele atrelado).
Neste contexto, a comunidade acadêmica da EF/CE
busca legitimidade no âmbito das organizações vinculadas à
pesquisa científica. Ela reivindica cursos de pós-graduação,
reivindica recursos para financiar pesquisa científica, etc.
Mas, é preciso adentrar ao campo científico para solicitar/
exigir esclarecimentos ou respostas a questões do tipo: Ef é
ciência, ou devemos falar em Ciências da EF ou do Esporte?
Qual é o objeto desta ou destas ciências? E esse objeto o
esporte, a atividade física ou o movimento humano? Lem
bremos que os órgãos de fomento à pesquisa científica pre
cisam e exigem classificá-la para reconhecê-la4.
Embora sempre reclamadas, as respostas a essas ques
tões nunca apresentaram grande consistência teórica e, por
vezes, essas questões foram solenemente ignoradas5, per
manecendo a área no plano do que o sociólogo francês P.
Bourdieu chama de doxa (no plano do não-discutido).
4 Junto ao CNPq nossa classificação ss dá a partir do nome Educação Física e no âmbito das Ciências da Vida - Coordenação de Saúde. Na SBPC se dá com o
nome de Motricidade Humana/Esportes e como Ciência Aplicada.
5 Isso me faz lembrar a observação de M. Sérgio (1988, p. 6): “A Educação Física nunca precisou autolegitimar-se epistemologicamente, ou seja, de encontrar em si as formas e razões de sua própria cientificidade, precisamente porque o poder
sempre se serviu dela e nunca a serviu como instrumento insubstituível de conhecimento e transformação".
Mas, antes de apontar mais precisamente os proble
mas que consideramos sejam os que mais obstaculizam o
desenvolvimento científico da área, gostaríamos de rever ra
pidamente o conhecimento do conhecimento produzido.
0 conhecimento do conhecimento
Entendo que uma das possibilidades de fazer a avalia
ção da ciência que fizemos nestas últimas três décadas é
recuperar as análises e os estudos já realizados sobre a pro
dução do conhecimento em nossa área. Essas análises ou o
conhecimento do conhecimento produzido é, a nosso ver,
denunciador do próprio estágio de desenvolvimento científi
co da área no seu percurso histórico, ou seja, no próprio
autoconhecimento é possível identificar as limitações cientí
ficas da área.
E possível caracterizar pelo menos dois momentos dis
tintos nos estudos sobre a produção do conhecimento na
área. Num primeiro grupo pode ser alocada uma série de
trabalhos produzidos na década de 80, como os de Matsudo
(1983), Canfield (1988), Tubino (1984) e Faria Jr. (1987).
Nesses estudos encontramos basicamente uma descrição e/
ou identificação das “subáreas” onde mais se concentrava a
pesquisa, como também suas tendências de crescimento.
Ou seja, os estudos consistiam em dividir a “área” em
“subáreas” e verificar o percentual de pesquisas realizadas
(apresentadas/publicadas) em cada uma dessas.
A pergunta “Que ciência é essa?”, era na verdade
traduzida nas perguntas “Em quais subáreas mais se pesqui
sa?” Qual é a tendência em termos de crescimento da pes
quisa nas diferentes subáreas?”
Esses estudos constataram então que havia um predo
mínio das “subáreas” da medicina esportiva, da fisiologia e
da cineantropometria, enfim, uma forte influência das ciên
cias naturais, mas que, principalmente a partir de 1980,
podia-se verificar um crescimento das “subáreas” pedagógi
ca e sociocultural, essas sob a influência das ciências sociais
e humanas. A discussão propriamente epistemológica esta
va na verdade ausente, mas o crescimento da influência das
ciências sociais e humanas vai fazer aflorar esse debate ne
cessário6.
Um segundo momento do conhecimento do conheci
mento marca o início da discussão propriamente epistemo
lógica. No início dos anos 90 aparecem os estudos que bus
cam não mais identificar em quais “subáreas” mais se pes
quisa, mas, sim, quais são as “matrizes teóricas”, ou seja, as
concepções de ciência, que orientam as pesquisas na área.
O estudo central nesse caso é a dissertação de mestrado da
professora Rossana Valéria S. e Silva (1990), que analisou as
teses de mestrado produzidas na década de 80. Faria Jr.
(1991), também baseado em Gamboa (1989), amplia seu
estudo original (Faria Jr., 1987), incorporando a discussão
epistemológica. Mas, recentemente, Gaya (1993) publicou
estudo que situa-se também nessa perspectiva de análise.
Que ciência é essa? Como se apresentava/apresenta
a produção científica quando interrogada sua matriz teórica?
Os resultados encontrados “denunciam” que a produ
ção do conhecimento na área baseia-se numa concepção
positivista (Souza e Silva, 1990) ou empírico-analítica (Faria
Jr., 1991 e Gaya, 1993) de ciência, identificando uma ten
dência (embora tímida) de crescimento das pesquisas funda
6 Mesmo porque muito do que se apresentava como científico nas subáreas pedagó
gica e sociocultural não era assim reconhecido pelo segmento orientado nas ciên
cias naturais.
mentadas na fenomenologia e no materialismo histórico
dialético, aliás, tendência encontrada também por Gamboa
(1989) no âmbito da educação, o que nos leva a suspeitar de
uma forte influência do pensamento pedagógico na Educa
ção Física.
Lembrando rapidamente: Souza e Silva (1990) chegou à conclusão, em seu estudo
“que o entendimento dominante de ciência nas pesquisas está
atrelado aos princípios da quantificação e matematização dos
fenômenos, da análise e descrição dos mesmos segundo
parâmetros estatísticos, da descontextualização e isolamento
dos fenômenos ou fatos para sua experimentação e neutrali
dade dos pesquisador, entre outras características que apon
tam para uma visão de ciência voltada para a vertente posi
tivista”. (p. 154)
Ao mesmo tempo propunha-se a adoção do materia
lismo histórico dialético ou a abordagem crítico-dialética (como
na pedagogia), como o caminho para a superação dos
reducionismos e equívocos da pesquisa da área.
Eu mesmo (Bracht, 1991) procurei avaliar a produção
do conhecimento sobre o esporte com um referencial basea
do na distinção habermasiana dos interesses norteadores do
conhecimento, ressaltando que, no caso dos estudos enfocando
o esporte no Brasil, o interesse norteador é basicamente o
interesse técnico - o que explica a predominante adoção da
matriz empírico-analítica - e, em bem menor grau, os inte
resses prático e emancipatório.
A virtude desses estudos foi questionar os critérios de
cientificidade até então legítimos na área, preparando o ca
minho para uma possível superação do senso comum cientí
fico predominante.
E importante salientar que a incorporação dessa dis
cussão, no âmbito da EF/CE, foi propiciada pelo amplo e
radical debate que instalou-se no início da década de 80 e
que consubstanciou-se na chamada “crise” (Medina, 1983)
da EF. Esse “movimento” teve conseqüências fundamentais
na história e construção do próprio CBCE, que a exigüidade
do espaço impede desenvolver aqui7.
A questão da identidade epistemoiógica da área
Além dos estudos que descreviam a incidência das pes
quisas nas diferentes subáreas, apontando suas tendências,
e daqueles que buscavam identificar as matrizes teóricas com
as quais se operava na área, alguns autores preocuparam-se
com o que poderíamos chamar de estatuto ou identidade
epistemoiógica da área da EF/CE. Destaco neste caso os
estudos do filósofo português Manoel Sérgio, com sua tese
da Ciência da Motricidade Humana (Sérgio, 1988), de Go
Tani (1988), de Apolônio A. do Carmo (1987), de Silvino
Santin (1992) e, mais recentemente, de Hugo Lovisolo (1993
e 1995)8. A esses estudos gostaria de acrescentar minha
modesta contribuição, tomando como interlocutores princi
palmente os trabalhos de Tani et al.(1988) e Lovisolo (1993).
Antes, porém, gostaria de ressaltar que os problemas
no âmbito da produção e veiculação do conhecimento na
área da EF/CE não se restringem à questão da identidade
epistemoiógica. Além desse aspecto, mas também a ele vin
culado, o Departamento Científico do CBCE tem identifica
do outros, como o baixo grau de significação do conheci
mento produzido no sentido de dar resposta aos problemas
colocados pela prática a socialização restrita do conhecimen-
7 Remeto o leitor a esse respeito ã obra de Paiva (1994).
8 Observe-se que estou me atendo aos estudos no âmbito da lingua portuguesa, não
ignorando os estudos a respeito no âmbito dos países de línguas inglesa, francesa,
espanhola e alemã. Além dos citados anteriormente, outros dois autores da área
desenvolveram estudos recentes. São eles Adroaldo Gaya e Vítor M. de Oliveira.
to produzido decorrente da falta de publicações periódicas a
falta de rigor científico do que é produzido e publicado e a
excessiva proliferação de eventos em detrimento das publi
cações.
Atenho-me, assim, um pouco mais às questões da iden
tidade ou estatuto epistemológico (estatuto científico) da EF/
CE. Parece-me claro o quanto essa questão é também fun
damental para os aspectos listados anteriormente, ou seja,
para a estruturação dos cursos de pós-graduação, para os
esforços de publicação, para a pesquisa e para a própria
discussão curricular.
Um dos pontos sempre levantados para a construção
da identidade epistemoiógica é a necessidade de esclarecer
o objeto9 da EF/CE.
0 debate em tomo do “objeto” da Educação Física
Nem sempre, no entanto, na busca do objeto da EF
(deixo de lado, por um instante, a expressão Ciências do
Esporte), teve-se claro que ela é antes de tudo uma prática
pedagógica, portanto uma prática de intervenção imedia
ta10. Tani (1988) busca clareza nesse sentido, a partir da
distinção entre a EF enquanto profissão e enquanto discipli
na acadêmica.
9 “Uma disciplina acadêmica se caracteriza pela existência de um objeto de estudo, de uma metodologia de estudo e de um paradigma próprios” (Tani, 1988, p. 388).
10 Lovisolo (1993, p. 39) de certa forma comunga desta idéia. Ele entende o “educa
dor físico” como uma espécie de brícoleur “que a partir de fragmentos de antigos
objetos, guardados no porão, constrói um objeto novo no qual as marcas dos antigos
não desaparecem". Assim, o educador físico articula os diferentes conhecimentos
sobre as práticas corporais com vistas a uma intervenção social.
Essa distinção é fundamental para a discussão epistemo
lógica, como procurarei demonstrar a seguir. Quando per
guntamos pelo objeto da EF, estamos perguntando por um
“objeto” de uma prática de intervenção imediata que tem
seu “sentido não na compreensão, mas no aperfeiçoamento
da praxis” (Schmied-Kowarzik, 1983, p. 23), ou por um
“objeto científico”?
Tani (1988) reclama do fato de que sempre se privile
giou o entendimento da EF enquanto profissão negligencian-
do-se o entendimento enquanto disciplina acadêmica, suge
rindo algum tipo de antagonismo. Entendemos que não há
antagonismo, mas, reconhecer a EF primeiro enquanto prá
tica pedagógica é fundamental para o reconhecimento do
tipo de conhecimento, de saber necessário para orientá-la e
para o reconhecimento do tipo de relação possível/desejável
entre a Educação Física e o “saber científico”, ou as discipli
nas científicas11.
Entendemos que enquanto área de estudo da realidade
com vistas ao aperfeiçoamento da prática pedagógica, a EF
precisa construir seu objeto a partir da intenção pedagógica.
Essa é que deve nortear a construção da problemática teóri
ca que vai orientar o estudo do seu objeto. Mas, por que
falar em “construção do objeto”? Ele já não está dado na
realidade?
Como reconhecido por muitos autores o objeto da EF
situa-se no plano do movimento humano (Tani, 1988, Santin,
1992)12. Mas esse reconhecimento está longe de solucionar
11 Confundir os dois papéis, o do cientista e o do bricoleur ou “interventor", é o
primeiro e freqüente mal-entendido que encontramos entre os educadores físicos" (Lovisolo, 1993, p. 40).
12 Lovisolo (1993) entende que “o campo dos fenômenos que ocupa a EF é o das
atividades corporais num sentido amplo” (p. 37). Nós temos denominado esse cam
po como o da cultura corporal (Coletivo de Autores, 1992, Bracht, 1992).
o problema de demarcação ou construção de um objeto científico. Parece-me que Tani (1988), de certa forma, é refém
de uma postura empirista que busca delimitar o objeto a partir de um recorte da realidade empírica. Bourdieu et al.
(1993), tratando dessa questão, citam Saussure: “o ponto de vista cria o objeto” (p. 51). Isto é, uma ciência não poder definir-se por um setor do real que lhe corresponder. Conti
nuam os autores, citando então Marx: “a totalidade concre
ta, como totalidade do pensamento é, de fato, um produto
do pensamento na concepção” (idem, p. 51).
Laplantine (1991) segue essa linha de raciocínio ao
afirmar que
“uma disciplina científica (ou que pretende sê-lo) não deva ser
caracterizada por objetos empíricos já constituídos, mas, pelo
contrário, pela constituição de objetos formais. Ou seja, a
única coisa possível, a nosso ver, de definir uma disciplina
(qualquer que seja), não é de forma alguma um campo de in
vestigação dado (a tecnologia, o parentesco, a arte, a religião
... o esporte - V.B.), muito menos uma área geográfica ou um
período da história, e sim a especificidade da abordagem utili
zada que transforma esse campo, essa área, esse período em
objeto científico”, (p. 96)
Voltemos para Bourdieu et al. (1993). Os autores en
tendem que Max Weber formulou um princípio epistemológico
que é instrumento de ruptura com o realismo ingênuo. Eles o
citam:
“Não são as relações reais entre ‘coisas’ o que constitui o
princípio de delimitação dos diferentes campos científicos, e
sim, as relações conceituais entre problemas. Somente assim,
onde se aplica um método novo a novos problemas e onde,
portanto, se descobrem novas perspectivas nasce uma ‘ciên
cia nova’.” (p. 51).
Assim, a investigação científica se organiza de fato em
torno de objetos construídos que não têm nada em comum
com aquelas unidades delimitadas pela percepção ingênua
ou imediata.
Ora, não temos no âmbito da EF/CE uma construção
única ou unívoca do objeto (científico) denominado de movi
mento humano. Ou seja, na biomecânica, na aprendizagem
motora, na sociologia do esporte, na fisiologia do esforço,
etc., o movimento humano enquanto objeto científico não é
o mesmo. Então não temos um objeto científico. Isso modi
fica a percepção do problema que se tem colocado como o
da fragmentação do conhecimento em torno do movimento
humano. Isso explica por que as chamadas Ciências do Es
porte cada vez menos mantêm diálogo entre si (mesmo ten
do como “objeto” o movimento humano ou o esporte) e
tendem ou a criar organizações específicas (na verdade, fóruns
específicos de discussão; por exemplo a Sociedade Brasilei
ra de Biomecânica), ou a buscarem o abrigo das disciplinas-
mãe (psicologia, fisiologia, sociologia, etc.), onde a identida
de epistemológica é determinada pela disciplina-mãe e não
pela especialidade, ou seja, sociologia do esporte ou fisiolo
gia do esforço não é Ciência do Esporte e sim ciência socio
lógica ou fisiológica.
Breves olhares sobre o caso da Pedagogia
Talvez seja produtivo lançar um olhar sobre a pedago
gia ou as “ciências da educação”, onde problemas seme
lhantes podem ser encontrados.
Vejamos o que diz o professor M. O. Marques (1990):
“buscamos [...] justificar as pretensões de uma Pedagogia, ao
mesmo tempo como ciência e como a ciência do coletivo dos
educadores, em oposição tanto à separação entre o pensar/
decidir e o fazer [...], quanto às incursões atomizadoras das
chamadas ciências da educação, que operam com conceitos
gerados em outros contextos a respeito de outros temas. Os
esforços das interdisciplinaridades não conseguem, a nosso
ver, recuperar a unidade teórica necessária, a não ser que nas
distintas regionalidades do saber, como é a educação, haja
uma ciência articuladora do eixo interno dos saberes e práti
cas, a partir do qual possa a reflexão inserir-se dinamicamente
no universo teórico mais amplo do saber, das ciências e da
filosofia”, (p. 10)
O que é reivindicado aqui, e gostaria de analogamente
estendê-lo à Educação Física, é a construção de uma disci-
plina-síntese (no caso ainda adjetiuada de científica) ou
articuladora que pudesse fornecer o saber necessário - ou
que pudesse construir esse saber - para orientar a prática
dos educadores. Uma ciência da e para a prática, como diria Schmied-Kowarzik (1983).
Outro pensador da educação que tem tratado da
especificidade da pedagogia enquanto ciência é L. C. de
Freitas (1995). Ele introduz o problema citando Ribes (1982), para quem
“a identidade de uma disciplina configura-se, em primeiro lu
gar, a partir de sua especificidade epistemológica como modo
de conhecimento científico [...]. A identidade da psicologia
educacional não pode ser encontrada como uma ciência da
educação, mas sim, como ciência psicológica” (p. 84-5).
Para Ribes (1982) apud Freitas (1995, p. 27), “se uma
disciplina não possui campo epistemológico próprio - como
no caso da pedagogia - o que a define é a sua responsabili
dade social13, ou seja, sua vinculação com a solução de pro
blemas concretos sob o marco de uma instituição social”. E
conclui Freitas (1995):
“A pedagogia [a Educação Física - V.B., portanto, opera em
um nível qualitativo diferente daquele das ciências individuais
que lhe dão suporte epistemológico tais como a psicologia, a
sociologia e outras. Este nível qualitativamente diferente está
13 Lovisolo (1993), traçando um paralelo entre a EF e a medicina, tem um entendimento muito próximo ao de Ribes (1982).
expresso na própria elaboração da teoria educacional e peda
gógica, em relação dialética com a prática educacional
multifacetada. Este é o papel de uma ciência pedagógica”, (p.
87)
A Educação Física e a cientificidade
Mas, se reivindicamos para a EF (e a pedagogia) o
estatuto de uma ciência especial (da e para a prática), o que
estamos reivindicando? Tornar a EF uma tal ciência significa
institucionalizar no seu âmbito as ditas práticas científicas e
trabalhar com as categorias epistemológicas da “ciência”?
Precisaríamos aclarar se a EF operaria a partir dos princípios
epistemológicos das ciências naturais14 ou das ciências so
ciais e humanas15? Se formos operar a partir dos princípios
da “ciência clássica” poderíamos introduzir reducionismos no
estudo do movimento humano que precisariam ser evitados.
Ou seja, o teorizar em EF precisa ultrapassar o próprio teorizar
científico. A teorização permitida ou realizada com as cate
gorias epistêmicas da ciência tradicional não atende às ne
cessidades da EF que tem no objeto “movimento humano” e
na intenção pedagógica suas características definidoras. Pre
cisaríamos teorizar de forma a contemplar o biológico, o
psicológico e o social, mas também o ético e o estético,
numa perspectiva de globalidade - portanto numa nova cons
trução de nosso objeto. Ora, o ético e o estético, como sabe
mos, sempre foram alijados do âmbito da “ciência” e reme
tidos ao decisionismo subjetivista ou a uma disciplina especí
fica da filosofia e/ou para as expressões artísticas. Ao colo
14 É o que faz ver Santin (1992) com ceticismo e como problemática a reivindicação
da EF por cientificidade.
15 Estou partindo do dualismo epistemológico que é negado, por exemplo, pelo
positivismo e pelo racionalismo crítico popperiano.
car a questão ético-normativa16 como necessariamente pre
sente na teorização em EF coloca-se (na pretensão de
cientificidade desse teorizar) a questão da separação clássica
entre o saber fático e o saber ético-normativo - e estamos
então no difícil terreno do debate em torno da dimensão
ético-política da produção do conhecimento e da prática
pedagógica em Educação Física.
Para que a EF se desse por satisfeita com o conheci
mento científico precisamos ampliar o significado da ciên
cia, ou fazê-la operar, como querem K. O. Apel e J.
Habermas, com um novo conceito de razão, a razão comuni
cativa, que engloba a razão teórica, a razão prática e a
dimensão da subjetividade.
Entendo que há a necessidade de voltar a produção do
conhecimento nas faculdades, institutos, departamentos e
centros de EF (e Desportos) para as necessidades da prática
pedagógica em EF, ou seja, superar a fragmentação a partir
das necessidades da prática, que são globais.
As Ciências do Esporte: fragmentação versus unidade
Quanto às Ciências do Esporte ou Ciências do Movi
mento Humano parece-me inevitável neste momento usar o
plural. A tendência parece ser ainda a da fragmentação.
Não me parece ter sido construída na área urna problemáti
ca teórica que possa agrupar/reunir os esforços das discipli-
16 Lovisolo (1993) parece ter captado esse problema com clareza ao dizer que “os
valores não são nem verdades científicas nem questão de mero gosto individual” (p.
31) e enfatiza que “a velha solução de dialogar sobre os valores continua sendo um
caminho transitável se acreditarmos na razoabilidade do homem” (p. 32). A esse respeito gostaria de remeter o leitor ainda ao interessante texto de Klafki (1992)
que discute os limites do conhecimento produzido pelas “ciências da educação" no
estabelecimento dos objetivos educacionais.
nas que se ocupam cientificamente do esporte ou do movi
mento humano. Elas continuam operando, cada uma, com
seu referencial teórico-metodológico, com problematizações
próprias/específicas, que são, como denuncia Sobral (1992)
as das disciplinas-mãe.
E comum ouvir que o esporte ou o movimento humano
são tão complexos que exigem um tratamento interdiscplinar
ou “crossdisciplinar”. Ora, isso é permanecer no âmbito de
uma visão empirista. O movimento humano ou o esporte
não exigem por si só tratamento interdisciplinar, nós é que
podemos problematizá-lo de modo a exigir tratamento
interdisciplinar17, e isso está na dependência dos interesses
norteadores do conhecimento.
Então, as dificuldades no sentido da (re)unificação ou
síntese do conhecimento, que hoje se assemelha às ofertas
de um supermercado, são inúmeras. Talvez um caminho seja
interrogarmo-nos sobre a legitimidade do pesquisar em
“Ciências do Esporte”. Tradicionalmente essa legitimidade
advinha do objetivo de (a) fornecer conhecimento para a
prática pedagógica em EF, (b) fornecer conhecimento útil
para os órgãos públicos, para a indústria, etc. e (c) fornecer
conhecimento para o crescimento e desenvolvimento do pró
prio sistema esportivo. Não se deve esquecer de que há
aqueles que defendem a pesquisa em Ciências do Esporte a
partir do simples objetivo de conhecer (desinteressadamen
te) essa dimensão da realidade.
A pergunta que fica é se essas legitimações são suficien
tes e/ou ainda podem ser sustentadas e se elas podem ori
ginar uma problemática teórica unificadora.
17 Como lembram Bourdieu et al. (1993), “não há que se esquecer que o real não tem a iniciativa, posto que só pode responder o que se lhe pergunta. Bachelard susten
tava, em outros termos que o ‘vetor epistemológico [...] vai do racional para o real e não o inverso’.” (p. 55).
Considerações finais
Procurei demonstrar que estamos de frente a grandes
desafios, que, aliás, somente serão vencidos com um enor
me esforço coletivo.
Por falar em coletivo, entendo que o CBCE, organiza-
cionalmente, pode trilhar basicamente dois caminhos: a) apos
tar numa possível unidade do conhecimento produzido na
área, ou b) se curvar de frente à “fragmentação” (uma das
tendências nesse sentido é a criação de comitês de, por
exemplo, sociologia, de fisiologia, etc.) e correr o risco de,
em breve, ser palco de uma “diálogo de surdos”.
Por outro lado, para outro tipo de pluralidade o CBCE
precisa dar solução adequada. Refiro-me à diversidade de
entendimento do que é e por que fazer ciência: o chamado
pluralismo científico. Esse, como lembra Martins (1993, p. 105),
“reflete o problema de que o caráter, o estatuto, o conceito e
os limites da própria ciência são controvertidos e de que o
conflito entre concepções de ciência, com suas pretensões
divergentes de verdade e relevância, não exclui (nem méto
dos, nem teorias, nem o cânon das disciplinas, nem ainda os
critérios de suas avaliação)”.
E preciso não incorrer no equívoco de reduzir a multipli
cidade, “nem a uma unidade inconstante, imune à contro
vérsia, dotada de critérios unívocos de cientificidade, nem a
uma mera diversidade, supostamente neutra”, pois, “o con
ceito de pluralismo científico abrange uma diversidade anta
gônica e não neutra” (Martins, 1993, p. 105). Para que não
se busque uma solução simplista e negativa como a de ex
cluir o antagônico, parece-nos só existir o lábil caminho da
democracia interna; a humildade democrática de não pos
-----í 73 "v
suir a verdade acabada e absoluta e ao mesmo tempo reco
nhecer e fazer valer os melhores argumentos. Unir a vigilân
cia epistemológica à vigilância democrática.
Retomando o início de nossa intervenção relembro que
o CBCE, a comunidade reunida sob essa entidade, está cha
mando para si a responsabilidade de orientar a prática cien
tífica na área, o que, como procurei colocar brevemente,
nos coloca de frente a desafios de várias naturezas. Mas,
gostaria de lembrar que o metadesafio continua a ser, a meu
ver, colocar mais essa prática a serviço da humanização do homem.
AS CIÊNCIAS DO ESPORTE NO BRASIL: " AVALIAÇÃO CRÍTICA1
“O saber não é um lugar, é antes uma porta
que abrimos, sem saber ao certo
ou previamente para onde vamos." (Fichtner, 1993)
Partindo de uma avaliação da produção do conheci
mento nas Ciências do Esporte, buscamos mapear os princi
pais problemas desta “área do conhecimento”, para então
problematizar em torno da legitimidade, do sentido das Ciên
cias do Esporte, em torno das exigências e possibilidades (ou
não) da interdisciplinaridade, e, brevemente, situar e discutir
as Ciências do Esporte no âmbito do debate a respeito da
crise da razão científica.
Esperamos com esta abordagem ter êxito quanto ao
levantar de questões que nos auxiliem no processo de
autoconhecimento, fundamental para o desenvolvimento de
uma área do conhecimento.
1 Artigo originalmente publicado na coletânea organizada por Goeltner, S., Ferreira
Neto, A., Bracht, V. As ciências do esporte no Brasil. Campinas : Autores Associa
dos, 1995.
...—
A opção por esta abordagem deveu-se ao nosso enten
dimento de que se faz necessário realizar uma crítica radical
das Ciências do Esporte enquanto empreendimento científi
co, enquanto projeto que se coloca no plano de determinada
racionalidade, para chegarmos (expormos) à base, aos fun
damentos, aos modelos (entendido num certo sentido como
paradigmas) que determinam nosso pensar, nosso teorizar.
Como se caracterizam as práticas científicas no âmbito das Ciências do Esporte?
“Nunca houve tantos cientistas-filósofos como atualmente [...].
Depois da euforia cientista do séc. XIX e da conseqüente aver
são à reflexão filosófica, bem simbolizada pelo positivismo,
chegamos a finais do séc. XX possuídos pelo desejo quase
desesperado de complementarmos o conhecimento das coi
sas com o conhecimento do conhecimento das coisas, isto é,
com o conhecimento de nós próprios”. (B. S. Santos, 1988)
Não serei propriamente original na tentativa de res
posta a esta questão. Vou valer-me aqui de alguns estudos recentes que considero fundamentais para conhecer critica
mente o que vem sendo as Ciências do Esporte no âmbito dos países de língua portuguesa, ou, mais especificamente,
no Brasil e em Portugal. Refiro-me à dissertação de mestrado de Rossana V. e Souza e Silva (1990), à tese de doutorado de Adroaldo Gaya (1994), à dissertação de mestrado de
Fernanda Paiva (1994) e aos estudos de Francisco Sobral
(1992). Assim, neste ponto, procurarei apresentar as princi
pais conclusões desses estudos e dialogar criticamente com eles, perspectiva de construir um ponto de partida para as
problematizações anunciadas.
Claro, logo de início somos confrontados com uma ques
tão terminológica. Embora as definições de termos coloquem
uma questão de vocabulário e, por conseguinte, de conve-
"76 “
niência (que não podem ser submetidas ao critério de verda
de/falsidade, como lembra Japiassu, 1976), elas podem nos
colocar algumas armadilhas e nos levar, no plano conceituai,
a equívocos. Não raras vezes, é bom que se diga, o caos
terminológico evidencia já dificuldades de ordem teórico- conceituais.
Refiro-me à necessidade de definição do âmbito, do
objeto a ser focalizado: as chamadas “Ciências do Esporte”.
E possível distingui-las das “ciências da Educação Física”? ou
das ciências ou “Ciência do Movimento Humano (ou da
Motricidade Humana)? ou, ainda, das “ciências da atividade física”2?
Referindo-se a esse problema, Sobral (1992), observa, por exemplo, que os
“adeptos da Pedagogia do Desporto são ‘tão flexíveis’ ao ponto
de publicarem a mesma obra, num país, com o título de didá
tica das atividades físicas, em outro, Pedagogia da Educação
Física, em outro ainda, Pedagogia do Desporto. E tudo isto
sem alterarem uma linha do texto original.” (p.58)
Ora, os estudos que buscam analisar a produção do
conhecimento nessa “área” se deparam com esse problema;
alguns simplesmente o ignoram (Matsudo 1983, Tubino,
1984), outros a tomaram como “área” indiferenciada, inde
pendentemente de sua denominação, enquanto que alguns
estudos mais cuidadosos problematizaram exatamente essa
questão, embora sem chegar a uma sugestão mais consis
tente. Tanto Paiva (1994), quanto Gaya (1994) e Sobral
(1992) identificam esse problema. Sobral (1992) e Gaya
(1994) advogam a necessidade de diferenciar claramente os
campos da Educação Física e das Ciências (ou Ciência, como
propõe Gaya) do Esporte; enquanto que Paiva (1994) colo
2 Quase que exclusivamente artigos de fisiologia do exercício.
S 77-N
cando das dificuldades concretas de diferenciação, opta por
usar a expressão “Educação Física/Ciências do Esporte (EF/
CE)”, como, aliás, tornou-se hábito no interior do próprio
Colégio Brasileiro de Ciências do Esporte, afirmando que
essa “ambigüidade” acompanha o processo de construção
desse campo, no sentido de Bourdieu.
Parece-me claro que, hoje, não é possível diferenciar a
identidade epistemológica de uma e de outra, nem sequer
uma identidade própria. Daí, também, alguns autores pro
porem, como solução, uma “nova ciência”: a do movimento
humano ou a da motricidade humana3, ou, ainda, como foi
o caso da Alemanha, a Ciência (no singular) do Esporte. Isso
significaria concretizar uma identidade epistemológica nova
e própria.
Portanto, estaremos aqui fazendo uma análise da pro
dução científica da “área” que envolve as “Ciências do Es
porte” e a “Educação Física”, pela impossibilidade de dife-
renciá-las concretamente.
A quais conclusões básicas chegaram os estudos que
avaliaram nossa produção científica (no âmbito da EF/CE)?
É importante destacar que os primeiros estudos nesse
sentido preocuparam-se mais com a identificação de em
quais subáreas mais se pesquisava, estudos esses, com ca
racterísticas mais descritivas, por exemplo, Matsudo (1983),
Canfield (1988), Tubino (1984) e Faria Jr (1987). Os estu
dos com preocupações mais acentuadamente epistemológicas
são mais recentes. Poderíamos dizer, como já identificado
por Paiva (1994) para o caso do CBCE, que essa discussão
ganha espaço no final dos anos 80 e início dos 90.
3 Neste caso, ao menos é a proposta de M. Sérgio, a Educação Fisica seria “o ramo
pedagógico da Ciência da Motricidade Humana”.
■o^78 — —
Um dos primeiros estudos foi o de Rossana V. Souza e
Silva (1990), que analisou as dissertações de mestrado dos
cursos existentes no Brasil. Nesse estudo, Souza e Silva (1990)
buscou identificar as matrizes teóricas que orientavam essas
pesquisas, concluindo que a concepção de ciência ampla
mente predominante é a de cariz positivista (empírico-analí
tica), com tímido crescimento, nos últimos anos da década
de 80, de pesquisas orientadas na fenomenologia herme
nêutica e no materialismo histórico dialético.
Essa conclusão não é negada pelos estudos subsequentes
(Gaya, Sobral e Paiva). De certa forma, ou de forma indire
ta, eles a reforçam. No entanto, outras foram acrescenta
das.
A. Gaya (1994) chegou às seguintes conclusões bási
cas ao analisar um amplo conjunto de pesquisas (teses,
dissertações, artigos em periódicos), tanto brasileiras quanto
portuguesas:
1. as investigações respondem predominantemente a ques
tões das disciplinas de origem;
2. a própria delimitação das variáveis independentes de in
vestigação, se bem que normalmente referenciadas ao des
porto, encontram-se distanciadas das práticas desportivas
concretas;
3. os conhecimentos produzidos são, em grande parte, parcia
lizados, fragmentados e desarticulados;
4. predominam as concepções empiristas e objetivistas;
5. há uma forte tendência para o aumento de investigações
com abordagem metodológica especulativa;
6. desenvolve-se pesquisas com interesses em temas de ou
tras áreas específicas;
7. os conteúdos não têm qualquer preocupação inicial com
referenciais teóricos orientadores (definem-se variáveis,
coletam-se dados, aplicam-se técnicas estatísticas, apre-
sentam-se os resultados e publicam-se os trabalhos);
8. os conteúdos não tem o adequado cuidado com o conjun
to de regras lógicas, o que determina falta de coerência,
consistência e originalidade em muitos dos trabalhos pu
blicados;
9. há uma evidente dificuldade de interações entre as di
versas disciplinas que co-habitam o seu espaço (multidis-
ciplinar);
10. nas ciências do desporto configura-se uma produção in
telectual com pressupostos epistemológicos e metodoló
gicos dicotômicos; como mostram nossas análises, de
modo geral as investigações apresentam um caráter empi-
rista e objetivista, ou assumem delineamentos discursivos
e subjetivistas.
Analisando os problemas da investigação científica em
ciências do desporto, Sobral (1992) levanta três teses:
a) as ciências do desporto procuram compensar, através de
um formalismo exacerbado, tomado de empréstimo a ou
tros campos da iniciativa científica, as suas limitações pró
prias no domínio da Problematização (sofrem de um feu
dalismo epistemológico das ciências suseranas; falta auto
nomia científica às ciências do desporto);
b) as ciências do desporto têm-se imposto mais como uma
operação estratégica de alguns quadros acadêmicos oriun
dos da EF, em busca de influência num mercado apetecí
vel, como é o desporto de rendimento, do que pelo trata
mento sério dos problemas que emergem dos domínios do
treino e da competição.
c) como conseqüência, a investigação em ciências do des
porto apresenta uma configuração heterogênea, sem um
paradigma nítido, realçando a acumulação de fatos em
prejuízo da construção da teoria.
Paiva (1994), analisando a história do Colégio Brasilei
ro de Ciências do Esporte e os trabalhos publicados no seu
periódico, identificou três fases diferenciáveis quanto ao en
tendimento de ciência: 1978-1985, 1985-1989 e 1989-
1993.
De 1978 a 1985:
- a ciência e a prática científica são neutras e “possuem” a
verdade; fazer ciência é medir e comparar dados;
- as ciências do desporto são as diversas ciências instru
mentalizando a “melhor” forma de fazer atividade física e
praticar esportes.
De 1985 a 1989:
- A ciência e a prática científica são instâncias ideológicas
e devem trabalhar para a “transformação social”. Fazer
ciência é analisar um dado fenômeno de forma a possibili
tar uma interferência nele, visando a conservá-lo ou
transformá-lo;
- as ciências do desporto são a Educação Física transforma
da em ciência, tenha ela o predicativo “do movimento”,
“da motricidade humana”, “do esporte” (no singular) ou
“da EF”.
De 1989 a 1993:
- a ciência deve discutir na sua dimensão epistemoiógica e a
sua dimensão ideológica; fazer ciência é analisar e teorizar
dado fenômeno buscando instrumentalizar uma possível e
necessária intervenção no real;
- as ciências do desporto são a assunção valorativa de que é
possível e necessário tratar do ponto de vista científico
fenômenos referentes á prática pedagógica, á prática de
atividades esportivas, ao esporte, ao lazer, ao movimento,
ao corpo, etc.
Fica claro no estudo de Paiva (1994) que a comunida
de científica do CBCE, mais recentemente, passa a diferen
ciar os fenômenos da Educação Física (entendida como uma
disciplina curricular que tematiza a cultura corporal ou física)
e os do esporte (uma prática corporal específica que é
tematizada na EF).
Num esforço de síntese, podemos resumir os resulta
dos desses estudos em alguns pontos básicos:
a) a investigação no âmbito das Ciências do Esporte se a-
presenta extremamente heterogênea, tanto no que diz res
peito à matriz teórica, quanto à orientação teórico-
metodológica disciplinar, não sendo possível identificar, cla
ramente, algum tipo de unidade (nem mesmo quanto ao
fenômeno estudado, que nem sempre é o esporte); isto
significa, na linguagem kuhniana, ausência de situação
paradigmática, ou ausência de paradigma;
b) predominam as investigações orientadas numa concepção
de ciência oriunda das ciências naturais, de cariz empírico-
analítica, que privilegia técnicas quantitativas de pesquisa
(dentro do credo objetivista); nos últimos anos observa-se
um incremento das investigações orientadas na fenome-
nologia hermenêutica e no materialismo histórico-dialético
(que foram classificados por A. Gaya como orientação
especulativa/discursiva e subjetivista).
c) as investigações estão atreladas aos interesses e aos pro
cedimentos teórico-metodológicos das disciplinas científi
cas de origem, o que determina, primeiro, uma falta de
autonomia científica; segundo, que muito raramente os
problemas investigados revestem-se de importância para
o destinatário em potencial, o próprio esporte; e terceiro,
uma falta de interação entre as diferentes subdisciplinas
(temos uma multidisciplinaridade e não interdisciplinaridade);
d) metodologicamente as investigações oscilam entre um ob-
jetivismo empirista ingênuo (onde fazer ciência significa
medir/quantificar, comparar e acumular dados, sem exer
cício propriamente teórico)4, e um discurso hiperpolitizado,
que negando a neutralidade científica postulada pela ver
são objetivista, descuidou-se da autovigilância epistemoló
gica; no afã da crítica à rigidez metodológica, descui
dou-se do rigor metodológico5;
e) não existem critérios claros elaborados que permitam di
ferenciar as pesquisas classificáveis como pertencentes às
Ciências do Esporte daquelas pertencentes à Educação
Física; a partir da criação dos cursos de pós-graduação
vinculados aos centros universitários de Educação Física e
Esportes, têm crescido o número de professores de Edu
cação Física que investigam o âmbito das Ciências do
Esporte.
E claro que uma tal síntese peca, necessariamente,
por insuficiência e por inevitáveis reducionismos. Mas, a partir
do quadro esboçado, já é possível levantar alguns
questionamentos que podem ser frutíferos no sentido de au
xiliar no processo de nosso autoconhecimento.
4 Em editorial do periódico alemão Sportwissenschaft (Ciência Desportiua, 20(1),
1990), pode-se ler a reclamação da dificuldade de se conseguirem bons artigos de
revisão ou síntese.
5 O entendimento de ciência polarizou-se, como mostraram Gaya (1994), e Paiva (1994) para o Brasil, entre uma visão “empirista ingênua” e uma visão “político-
instrumentalista”, ambas com insuficiência crônica de debate epistemológico.
Muitos dos problemas levantados podem nos levar à
pergunta: como resolvê-los6? Para muitos desses problemas,
portanto, buscaríamos soluções como “aperfeiçoar os méto
dos de investigação” e “melhorar o nível de teorização”. Para
outros, no entanto, entendo ser necessário radicalizar o
questionamento, perguntando se é possível dar outro
direcionamento às investigações ou à produção do conheci
mento na área, mantendo-nos no interior do paradigma de
ciência hoje hegemônico. Seguindo essa trilha (radicalização),
chegamos rapidamente à questão da própria legitimidade
das Ciências do Esporte7: por que e para que elas existem8?
O que move ou moveu a ciência (as diferentes disciplinas
científicas) a objectualizar o esporte? Entendo também apro
priado perguntar: até que ponto as Ciências do Esporte al
cançaram o que se poderia chamar de “consciência de si”,
no sentido de reconhecer com quais princípios (epistemoló-
gicos) opera? Quais são as bases (teoria da ciência) sobre as
quais assenta sua prática científica, sua produção do conhe
cimento?
6 Sobral (1992) lançou-se nessa tarefa, propondo quatro conjuntos de atitudes para
superar os problemas levantados e aqui já referidos: a) cultivar o pensamento diver
gente; b) problematizar a partir dos fenômenos e não dos quadros de interpreta
ção; c) desenvolver a crítica e formular teorias; d) definir problemas mais amplos,
utilizar metodologias mais abrangentes.
7 Tenho dúvidas se a comunidade científica das ciências do desporto mantém a
capacidade de perguntar sobre o sentido das ciências do desporto. Parece-me que
o mito moderno da ciência como que eliminou das mentes tal necessidade. Ou,
como lembra Santos (1988, p. 68), “a explicação científica dos fenômenos é
autojustificação da ciência enquanto fenômeno central da nossa contempora-
neidade".
8 Em tempos marcados pelo utilitarismo, conservador ou revolucionário, parece-meque é muito bom manter viva a tradição de que conhecer é um bem em si mesmo,
independentemente das utilidades imediatas ou mediatas que se derivem do conhe
cer. Essa posição “academicista” entendo ser uma posição unilateralizada como
também o é a utilitarista. Precisamos é buscar um “compromisso” entre estas duas
posturas.
84 L —
Pretendo, na seqüência, não propriamente responder
a esses questionamentos, mas balizar caminhos que nos per
mitam uma reflexão frutífera a respeito.
0 esporte e as Ciências do Esporte: empreendimentos da modernidade
Para discutir o sentido das Ciências do Esporte, enten
do necessário buscar, brevemente, a gênese do fenômeno
esportivo e a da própria ciência moderna, relacionando-as.
Ainda que discutível, podemos entender o esporte (mo
derno) como um fenômeno que é gestado sob a influência do
que se convencionou chamar de “modernidade”. Nas socie
dades tradicionais, as práticas corporais, assim como todas
as atividades sociais, estiveram fortemente marcadas pela
influência da religião. A religião constituía-se no primeiro
discurso, no centro, que totaliza o sentido das práticas soci
ais e culturais e as dota de significação (por exemplo o jogo
de pelota entre os maias)9. O esporte moderno, no seu pro
cesso de construção, sofre influência das transformações so-
cioculturais e absorve uma série de características da socie
dade industrial moderna. Guttmann (1979) sumarizou nos
seguintes termos as características do esporte moderno: secu-
larização; igualdade de chances; especialização; racionaliza
ção; burocratização, quantificação; busca do recorde10. Como
mostrou Rigauer (1981), há um paralelismo entre o processo
de racionalização do treinamento esportivo e a racionaliza
ção do sistema produtivo na sociedade capitalista industrial.
9 Veja-se a respeito. La función dei juego de pelota entre los antiguos mapas. (Weis, 1979).
10 Veja-se a respeito também Eichberg, H. Der Weg des Sportos in die industrielle Zivilisation e Sport und Arbeit (Rigauer, 1981).
Para entendermos, portanto, a relação entre ciência e
esporte, é importante situar um pouco melhor o advento da
modernidade que viu e fez surgir o fenômeno esportivo.
Como sabemos, para Max Weber (cf. Rouanet, 1987)
a modernidade é o produto do processo de racionalização
que ocorreu no Ocidente, desde o final do século XVIII, e
que implicou a modernização da sociedade e a moderniza
ção da cultura. Nesse contexto,
“a modernização cultural é o processo de racionalização das
visões de mundo e especialmente da religião. Em conseqüên
cia desse processo, vão se diferenciando esferas axiológicas
(Wertsphãren) autônomas, até então embutidas na religião: a
ciência, a moral e a arte. A ciência moderna permite o au
mento cumulativo do saber empírico e da capacidade de prog-
nose, que podem ser postos a serviço do desenvolvimento
das forças produtivas. A moral, inicialmente derivada da religião,
se torna cada vez mais secular [...]. Enfim, surge a arte autô
noma, destacando-se do seu contexto tradicionalista (arte re
ligiosa) em direção a formas cada vez mais independentes,
como o mecenato secular e finalmente a produção para o
mercado”. (Rouanet, 1987, p. 231-2)
Numa outra perspectiva sociológica é possível identifi
car o processo de diferenciação social abrangendo o despor
to; este vai-se constituir, aos poucos, em uma instituição
diferenciada das outras esferas.
Isso tudo levou a formulações, entre outras, do tipo: o
desporto é a racionalização ou institucionalização do jogo, ou
um crescente alijamento do lúdico, para falarmos com Huizinga
(1980).
Com isso quero argumentar que a racionalidade cientí
fica, característica da modernidade, cujo paradigma hegemô
nico estava voltado para a identificação das leis inerentes às
coisas ou fenômenos, com o objetivo de aumentar nosso
poder/controle sobre esses (M. Weber apud Rouanet, 1987)
chamou de Zweckrationalitat, racionalidade com vistas-a-
fins), foi co-produtora do esporte moderno; ou então, que o
desenvolvimento do esporte moderno se dá no mesmo caldo
sociocultural em que se desenvolveu a ciência moderna.
A ciência entra como coadjuvante/auxiliar para a
concretização de uma das características centrais do esporte
moderno: a maximização do rendimento. A esse objetivo
adapta-se exemplarmente a racionalidade científica hegemô
nica (denominada pelos frankfurtianos de razão instrumen
tal), porque está voltada exatamente para o aumento da
eficiência dos meios, excluindo, por definição, a discussão
em torno dos fins dessa prática11.
Ora, o aumento da importância social do esporte, prin
cipalmente da importância sociopolítica (e mais recentemente
econômica), requisitou os serviços da ciência, para eliminar
o acaso, o imprevisto, e, assim, “garantir” o sucesso. Basta
ver o incremento das investigações em torno do esporte a
partir da sua inserção nos movimentos da Guerra Fria e,
mais recentemente, com a transformação do esporte num
segmento importantíssimo da economia mundial.
Dentro dessa perspectiva e de forma consequente, o
interesse norteador da produção do conhecimento, usando
uma expressão de J. Habermas, é o interesse técnico e,
num plano muito secundário, os interesses prático e emanci
11 Um episódio da copa do mundo de futebol realizada nos EUA, em 1994, é, em
meu entender, indicado para exemplificar a “racionalização” do desporto. Os co
mentaristas da emissora de TV Bandeirantes, indignados com a forma de jogar da equipe de Camarões, chamaram seus jogadores de irresponsáveis porque encara
vam os jogos como brincadeiras; ao contrário, para os comentaristas, a Copa do
Mundo, o futebol, é coisa séria. Segundos eles, a equipe de Camarões praticava
uma forma de jogar que era absurda, não voltada para a vitória e sim para o espetáculo.
patório12. Isso, de certa forma, confirma-se nos estudos an
teriormente citados, que demonstram a predominância da
abordagem empírico-analítica, que J. Habermas associa, jus
tamente, ao interesse técnico.
A razão instrumental impôs-se também nas Ciências
do Esporte. Hegemonizou-se determinada visão de ciência
que inscreve-se no âmbito do “agir-racional-com-respeito-a-
fins” (Zweckrationalitãt), o qual, estando os objetivos estabe
lecidos em situações preconcebidas, acaba extraindo da
racionalidade o que ela tem de característico, que é refletir
levando em consideração os interesses globais da sociedade.
Interessantes são algumas consequências que Habermas
(1988a) extrai para a comunidade científica. Segundo ele,
“a comunidade comunicativa dos pesquisadores, que toma
como sua tarefa a justificação de um auto-entendimento
cientificista da ciência, pode se auto-tematizar apenas a partir
dos conceitos de uma ciência objetiva. [...] Assim, a comuni
dade científica não pode se perceber enquanto sujeito; a sua
postura objetivista obriga-a a uma auto-objetivação” (p. 374).
Daí o porquê da minha observação de que a comu
nidade das Ciências do Desporto perdeu a capacidade de
refletir sobre o seu sentido numa perspectiva que não seja
funcional-pragmática.
Não se trata aqui de fazer uma sociologia do esporte,
mas é necessário mostrar, na esteira da sociologia da ciên
cia, como o processo de produção do conhecimento está
atrelado aos processos de desenvolvimento da sociedade como
um todo e da conseqüente necessidade de superar a visão
12 Habermas (1988a) argumenta que toda produção do conhecimento tem a norteá-
la um interesse cognitivo. Ele classifica esses interesses em técnico, prático e
emancipatório. O interesse cognitivo determina como o fenômeno será
objectualizado. “As ciências estritamente empíricas estão sob as condições
transcendentais da ação instrumental, enquanto que as ciências hermenêuticas
procedem ao nível das ações comunicativas” (Habermas, 1988a, p. 236).
empírico-objetivista para poder discutir, ainda com reivindi
cação racional para essa reflexão, o sentido da prática cien
tífica no âmbito das Ciências do Esporte. Trata-se, também,
de mostrar que, apesar do postulado inerente à concepção
empírico-objetivista de ciência predominante nas ciências
do desporto (de neutralidade política), essa prática esteve
sempre inserida num contexto (do desenvolvimento sociocul
tural, aí incluído o esporte), que confere uma determinada
finalidade ao conhecimento científico produzido, indepen
dentemente das vontades subjetivas de seus pesquisadores13.
Trata-se de alertar, mais uma vez, para o condicionamento
social de todo conhecimento científico.
Nesse sentido vale aqui lembrar a advertência de Mar
ques (1993, p. 88):
“As ciências empírico-analíticas não podem ignorar-se cons
tituídas por atos humanos, sustentadas por uma comunidade
científica e inseridas no processo cultural mais amplo da lin
guagem ordinária. Estão elas sujeitas ao processo de valida
ção de suas premissas, à prova da argumentação, não da ex
perimentação em si mesma, porque se voltam à interpreta
ção, não à simples produção de novas experiências ad
infinitum. Não pode, por isso, o interesse técnico do conhe
cimento desvincular-se dos interesses prático e emanci
patório.”
Gostaria de apenas citar, como indicadores da necessi
dade da superação da unilateralidade da ciência empírico-
analítica, as repercussões das pesquisas nas Ciências do Es-
13 Lovisolo (1995), defende a legitimidade da pesquisa pelo fato de que “conhecer é
bom porque é bom conhecer”, o que não reduz nem amplia as conseqüências sociais do conhecimento produzido, independentemente das satisfações pessoaisdo pesquisador.
porte na questão do doping14 e nas consultorias (por exem
plo, Matsudo, 1991, discutindo a pílula anticoncepcional
enquanto doping).
Temos como perspectiva dominante a posição de legi
timar as Ciências do Esporte pela importância que têm para
o sistema esportivo (deixando inquestionável sua função so
cial, que é positiva). Nesse sentido, vale observar o que diz a
respeito K. H. Bette (apud Rütten, 1990), que opera com a
teoria dos sistemas de N. Luhmann. O autor, analisando a
relação de dois sistemas complexos (esporte e ciência), pro
cura demonstrar como o sistema esportivo cria dificuldades
para as abordagens científicas que não trabalham com os
códigos dessa instituição, por exemplo, a maximização do
rendimento na perspectiva do crescimento infinito, e, ao
contrário, propõe uma relativização do conceito de rendi
mento a partir de razões pedagógicas, sociais ou de saúde.
O sistema esportivo tende a funcionalizar para si, a partir de
seus códigos, a ciência. Isso tem conseqüências importantís
simas para as discussões em torno das razões/necessidades
de uma Ciência do Esporte de caráter aplicado.
Para finalizar este ponto: o que estou a reivindicar é
uma reflexão sobre a legitimidade das Ciências do Esporte,
que ultrapasse uma legitimação funcional pela obviedade do
desporto busque ancorar-se num projeto emancipatório.
14 A Sociedade Alemã de Ciência Desportiva, no Congresso de 1992 (Oldenburg),
tomou posição a respeito da pesquisa em torno de substâncias dopantes, dizendo que a comunidade científica precisa assumir a responsabilidade política que a ela
cabe nesses casos.
90 t — *-...-
Dimensões da interdisciplinaridade nas Ciências do Esporte
Falta unidade, o campo é excessivamente heterogê
neo, dizem os estudos. Uma das possibilidades da superação
desse problema é o caminho da interdisciplinaridade? Mas o
que é interdisciplinaridade?
Existem vários argumentos a favor da interdisciplinari
dade. Um deles diz respeito ao fato de termos construído
uma cultura de especialistas, o que tem-se mostrado, embo
ra não necessariamente, antagónico a visões mais amplas,
que são necessárias (tanto quanto o conhecimento discipli
nar especializado) para a solução dos problemas e para evi
tar outros15.
Para Japiassu (1976, p. 40-1), a exigência da interdisci
plinaridade,
“longe de constituir progresso real, talvez seja mais o sintoma
da situação patológica em que se encontra hoje o saber [...], o
especialista converteu-se neste homem que, à força de co
nhecer cada vez mais sobre um objeto cada vez menos exten
so, acaba por saber tudo sobre o nada. Nesse ponto do
esmigalhamento do saber, a exigência interdisciplinar não passa
da manifestação, no domínio do conhecimento, de um esta
do de carência”.
E claro que podemos observar reivindicações por coo
peração (inter)disciplinar fundamentadas em interesses ain
da disciplinares. Por exemplo, um biomecânico que busca
auxílio do estatístico, do matemático, do engenheiro eletrônico e do fisiologista para a solução de um problema, ainda
biomecânico; o que na verdade não é interdisciplinaridade,
mas sim, “intradisciplinariedade”.
15 O problema da ecologia é sempre citado como exemplo da ação unilateral, sem o
entendimento das repercussões sistêmicas sobre o meio ambiente das ações par
ciais, o que somente poderia ser alcançado com uma abordagem interdisciplinar.
Para além dessa visão simplista e equivocada de
interdisciplinaridade, esta tem o objetivo de superar a frag
mentação naquilo que ela dificulta colocar a ciência a serviço
da vida humana em geral. Nesse caso, estamos também
falando na mediação entre ciência e filosofia, ou da media
ção entre ciência e arte, ou, em outros termos, entre os
diferentes saberes ou racionalidades.
Se observarmos o quadro das Ciências do Esporte,
verificaremos que o movimento dominante ainda é o da frag
mentação, que é crescente, com o aparecimento de sempre
novas especialidades e subespecialidades, inclusive com a
criação de entidades específicas (Sociedade Brasileira de
Biomecânica, Medicina Esportiva, etc.), e isso porque não
existe nada que sirva de elo de ligação entre as Ciências do
Esporte absortas em seus problemas específicos. Não existe
uma identidade epistemológica das Ciências do Esporte.
Como demonstram os estudos de Gaya (1994), não é possí
vel identificar, na atual produção do conhecimento na área,
elementos que indiquem no sentido de uma unidade.
Mas, no caso das Ciências do Esporte, a reivindicação
por interdisciplinaridade está baseada nas necessidades da
prática, que exige um conhecimento sintético (interdisciplinar).
No entanto, pela subordinação, já referida por Sobral (1992)
e Gaya (1994) às problemáticas das disciplinas de origem, a
produção do conhecimento é fragmentada disciplinarmente
e não tematicamente como reivindica Santos (1988).
As Ciências do Esporte vivem num estágio pluridisci-
plinar16. Convenhamos, em nossos congressos cada um dá
seu recado em meio à indiferença simpática dos demais, o
que leva à pergunta: faz algum sentido ainda organizarmos
congressos multidisciplinares?
16 Essa é também a avaliação de Roberto Prohl (1991), que analisou exaustivamente
a situação da Ciência do Esporte (Sportwissenschaft) na Alemanha, que havia se
colocado como projeto explícito a construção, por via da interdisciplinaridade, de uma nova ciência (no singular).
Existem muitos obstáculos para a superação dessa frag
mentação (outros nem a entendem necessária). Japiassu
(1976) identifica três ordens de obstáculos: a) os de ordem
epistemológica (já brevemente discutidos aqui); b) os de or
dem institucional; c) os de ordem psicosociológica.
Também a partir do modelo de J. Habermas (dos dife
rentes interesses que norteiam a produção do conhecimento)
é possível prever/identificar dificuldades.
Outra dificuldade é a idéia equivocada que se instalou
em nosso imaginário, de que temos um objeto científico
comum: o esporte (o que justificaria a existência de organi
zações que congreguem pesquisadores com um objetivo co
mum). Embora, sob a perspectiva da prática, exista real
mente um objeto comum, o mesmo não acontece com a
produção do conhecimento. O esporte, enquanto objeto
empírico, não é, necessariamente, um objeto científico
unívoco. Um objeto científico é algo construído; construído
pela abordagem específica de cada disciplina. “Cada méto
do é uma linguagem e a realidade responde na língua em
que é perguntada” (Santos, 1988, p. 66).
Um outro equívoco é o de ver as dificuldades da
interdisciplinaridade como um problema de simples falta de
comunicação entre os pesquisadores (por isso deveríamos
continuar a realizar congressos pluridisciplinares e apelar para
a “vontade” dos cientistas de estabelecerem relações). Vale
lembrar, nesse sentido, o que dizem Bourdieu et al. (1993):
“Ver, como normalmente se faz, o princípio de todas as difi
culdades de comunicação entre as disciplinas na diversidade
das linguagens, é abster-se de descobrir que os interlocutores
se encerram em sua linguagem porque os sistemas de expres
são são ao mesmo tempo os esquemas de percepção e de
pensamento que fazem existir os objetos sobre os quais vale a
pena falar.
São realmente objetos e não um objeto, no caso das
Ciências do Esporte.
Gostaria de observar, sem poder desenvolver, já que
não é esse o tema aqui, que a questão da interdisciplinaridade
é particularmente importante para a Educação Física (en
tendida essa enquanto prática pedagógica).
A interdisciplinaridade não pode ser tomada como pa-
nacéia. A necessidade da interdisciplinaridade não é algo
abstrato; está ligada ao interesse na realização de determi
nado projeto, para o qual é (ou não) necessária. Portanto, a
unidade interdisciplinar só pode ser uma unidade ética. As
sim, voltamos à questão discutida anteriormente, ou seja, o
sentido das Ciências do Esporte, como também, a questão
da mediação entre os diferentes saberes ou racionalidades.
Os estudos sobre a interdisciplinaridade esbarram, por um
lado, nas dificuldades da construção de uma epistemologia
interdisciplinar (não alcançada até hoje) e, por outro lado,
nas fronteiras da própria epistemologia.
Um mini-resumo pontual:
- as Ciências do Esporte não possuem objeto científico em
comum; operam a partir dos mais diferentes interesses;
não possuem identidade epistemológica própria; reúnem-
se em organizações em função de interesses corporativos
(as ciências, independentemente das organizações de
ciências ou Ciência do Esporte, continuam a estudar o
esporte);
— uma Ciência do Esporte, de cunho aplicado, está forte
mente atrelada aos interesses da instituição esportiva; com
isso, é subordinada aos seus códigos e interesses; assim,
perderia seu pontencial crítico, tornando-se pragmático-
funcional; legitima-se pela importância do fenômeno es
portivo;
■ ' - ' ' 9 4 I _____
- A Educação Física (ou pedagogia, onde o esporte é um
dos temas) oferece uma problemática teórica que pode
ser tratada também cientificamente; essa problemática
exige exercício/tratamento interdisciplinar, tanto entre di
ferentes disciplinas científicas, quanto entre as diferentes racionalidades.
A condição pós-moderna, a crise da razão científica e as Ciências do Esporte
“Nas questões fundamentais, o conhecimento
científico desemboca em insondáveis incertezas”
(Morin, 1993)
Alguns desenvolvimentos recentes no plano da ciência e da epistemologia deveriam fazer eco nas Ciências do Esporte e isso porque afetam as bases, os princípios do pensa
mento científico, que supõe-se serem seguidos pelas Ciên
cias do Esporte, isto é, sejam os fundamentos de nossas práticas científicas.
Além do debate, não concluído no plano da epistemo
logia (e nem sequer iniciado ou percebido nas Ciências do
Esporte), sobre a questão do possível dualismo metodológico/
epistemológico entre ciências naturais e ciências sociais/hu
manas, o que hoje está em questão é o próprio paradigma da ciência moderna ou da racionalidade científica. Segundo
Marques (1993), “de inquiridora a razão converter-se-á em inquirida”.
O desenvolvimento da ciência17, incluídos aí tanto os
desenvolvimentos da micro e da macrofísica, da química e
da biologia, quanto os da hermenêutica e os da filosofia da
17 “O aprofundamento do conhecimento permitiu ver a fragilidade dos pilares em que se funda” (SANTOS, 1988, p. 54).
linguagem e das por elas suscitadas e a elas ligadas discus
sões epistemológicas, chegamos ao que se poderia chamar
de limites/fronteiras da epistemologia (que sempre procurou
um ponto de vista privilegiado como garantia de certeza) e
que coloca os epistemólogos em dois lados:
a) os fundacionalistas ou criterialistas;
b) os antifundacionalistas (ou relativistas) ou não-criterialistas.
Alguns autores associam a segunda postura à condição
ou ao pensamento pós-moderno que, no que diz respeito à
questão do saber científico, coloca-se como uma postura
relativista. Ou seja, critica/relativiza a posição absolutista da
razão (científica). Advoga a pluralidade irredutível da razão;
pleiteia o livre jogo das diferentes racionalidades (num livre
jogo de linguagens), sem postular/almejar unidade, muito
menos hierarquia.
Isso não significa que a ciência, repentinamente, per
deu sua capacidade de prognose, de fornecer elementos que
permitam interferir na realidade. Significa muito mais, que
ela deve abdicar de sua condição/aspiração de conhecimen
to privilegiado da realidade e da aspiração de fornecer a
chave de todos os “mistérios” do mundo18. Nas questões
fundamentais, como afirma Morin (1993, p. 22), “o conhe
cimento científico desemboca em insondáveis incertezas”.
Essa crise, que, na opinião de B. Santos (1988, p. 54),
não apenas é profunda, mas irreversível (ou indica um reco
meço, como querem M. O. Marques e F. S. Rouanet), é o
resultado de condições sociais e teóricas. As condições teóri
cas já foram rapidamente aludidas aqui. Quanto às condi
ções sociais, entre tantos (como os que identificam na revo
18 “Ampliando-se os espaços do conhecimento, ampliam-se também as fronteiras do desconhecido, na direção do infinitamente grande e do infinitamente pequeno,
para além do alcance dos homens" (Marques, 1993, 57).
' 96
lução eletrônica a base das modificações socioeconômicas e
culturais que geraram a condição pós-moderna), evoco aqui a versão marxista, defendida por Frederic Jameson e Marilena
Chauí, de que o pós-modernismo (e sua versão no plano da
cultura e do saber) é fruto da nova fase do capitalismo, cuja característica central é a acumulação flexível do capital.
Malgrado a precariedade desses debates e o caráter de transição do momento que vivemos, parece-me importante perguntar como as Ciências do Esporte estão a reagir ou
reagirão a essas questões. É interessante notar que, se por
um lado, as Ciências do Esporte buscam satisfazer as exi
gências de rigor científico do paradigma dominante, por outro, são abalroadas nesse processo, pela crise desse mesmo paradigma.
Ciências do desporto! Pois bem, a qual cientificidade se ligam ou querem se ligar essas ciências? Abrir-se-ão as
ciências do desporto à possibilidade de ampliação do concei
to de razão, abarcando a racionalidade estético-expressiva e a prático-moral, para falar com Habermas?
Finalizando: ou as ciências do desporto dão respostas a essas questães, ou melhor, as enfrentam e assumem a res
ponsabilidade das respostas, ou estaremos num barco ao qual nos compete imprimir velocidade, mas não determinar-
lhe a direção. A direção.... Bem, esta será determinada pelo jogo das forças do mercado (A própria racionalidade neoli- beral!), ou pelas forças do poder constituído e nós, das Ciências do Esporte, embora constituída de seres humanos com
capacidade para optar por determinados fins, nos restringi
remos a mantê-lo em movimento (ao menos enquanto for
mos nutridos com capital financeiro e simbólico).
E preciso, portanto, fortalecer esse tipo de debate/
reflexão no âmbito das organizações científicas da área, para
que possam assumir a condição de sujeito coletivo que assu
me posturas políticas e age de acordo com elas.
Para concluir quero enfatizar a importância do
reconhecimento do “envolvimento” (no duplo sentido) do cien
tista (do esporte), valendo-me das palavras da filósofa M.
Chauí (1994, p. 481), comentando a obra de M. Ponty:
O artista, como o filósofo, [e eu diria um cientista], nunca
está no centro de si mesmo, estão sempre fora de si, rodea
dos pela miséria empírica do mundo e pelo mundo que devem
realizar e revelar pela obra [...]. Por isso interrogam o mundo,
a si mesmos, seu próprio trabalho, não podendo parar de
pintar, compor, dançar, escrever. Sua obra é interminável por
que nunca abandonamos nossa vida e o mundo, nunca vemos
a idéia, o sentido e a liberdade cara a cara".
A TESE DA CIÊNCIA DA MOTRICIDADE HUMANA,
DE MANUEL SÉRGIO1
Kefren Calegari dos Santos2
Está caracterizado, por meio de diversas publicações a
respeito, que as décadas de 70/80 apresentam-se como um
período de “crise” para a Educação Física. Sérgio (1988,
p. 12) citado por Bracht, por exemplo, afirma que “o discur
so da Educação Física é, desde a década de 60,
declaradamente de crise”. Mas é Medina (1983) que, no
início da década de 80, denuncia publicamente a “crise” da
Educação Física no cenário brasileiro, momento este de um
intenso e proveitoso debate na área. Entretanto o(s) motivo(s)
desta denominada crise não está(ão) totalmente claro(s). Bracht
(1992) relata que diferentes causas são aludidas, “uma de
las, por exemplo, parte do argumento de que não existe
uma profissão de professor de Educação Física” enquanto
1 Este texto é um resumo da monografia apresentada ao CEFD/UFES como requisito
parcial ã conclusão do curso de graduação em Educação Física (97/1), sob orientação de Valter Bracht.
2 Especialista em Fisiologia do Exercício pelo CBM/UFES; professor de Educação
Física no Centro Educacional Gênesis/Cooperativa Educacional (CEG/
COOPEDUC) e de natação na Associação Esportiva Siderúrgica Tubarão (AEST).
outros “entendem que a crise é de cunho epistemologia”
(p. 36). Para esse autor a crise de identidade da Educação
Física está relacionada com a sua possível falta de legitimi
dade e lembra que esta não pode ser confundida com legali
dade.
Para alguns a legitimação desejada somente seria
alcançada quando a Educação Física fosse reconhecida como
ciência. Para tanto, propostas de “cientifização” dessa área
surgem, apresentando-se como Ciências do Esporte, Ciên
cia da Motricidade Humana (ambas de raiz européia) e
Ciência do Movimento Humano (esta de origem americana),
entre as mais conhecidas atualmente. Devemos lembrar,
entretanto, que para a aceitação de alguma, ou mesmo al
gumas dessas teses/teorias pela comunidade “científica” da
área, questões devem ser respondidas, principalmente num
momento em que a própria racionalidade científica encon
tra-se em crise, como defendem alguns filósofos da ciência.
Dessa forma a crise da Educação Física não é apenas de
cunho epistemológico como uns afirmam, mas diante das
propostas apresentadas a busca de sua legitimação não pode
prescindir do debate epistemológico.
Em nosso estudo abordamos a tese da Ciência da
Motricidade Humana (CMH), do filósofo português Manuel
Sérgio Vieira e Cunha, que afirma estarmos de frente a uma
nova ciência. A escolha da Ciência da Motricidade Humana
justifica-se pela considerável penetração que essa tese al
cançou na comunidade acadêmica da Educação Física (diga
mos que de forma um pouco passiva), ao mesmo tempo em
que identificamos algumas questões preliminares não res
pondidas e/ou não bem compreendidas em sua tese, por
meio das quais pudemos visualizar a abertura para um possí
vel debate com o autor, a fim de buscarmos soluções coeren
tes para o problema (da crise) ora levantado. Objetivamos,
então, analisar a evolução do pensamento de Manuel Sérgio
em torno da tese da Ciência da Motricidade Humana, desta
cando o referencial teórico utilizado pelo autor e buscando
identificar a necessidade e as possibilidades de uma tal ciên
cia. Com isso, esperamos estar contribuindo no sentido de
oferecer alguns elementos para o debate epistemológico acerca da (crise de) identidade da Educação Física. Este estudo
caracteriza-se como uma pesquisa de cunho teórico através
da reflexão hermenêutica de textos do autor acerca de sua
tese. Para construção deste trabalho foram seguidos alguns passos, a saber:
I - levantamento da produção de Manuel Sérgio que diz respeito à tese da Ciência da Motricidade Humana (CMH);
II - levantamento da produção acadêmica que se baseia natese da CMH, de Manuel Sérgio;
III - levantamento das referências na bibliografia da área àtese da CMH3;
IV - análise da evolução do pensamento de Manuel Sérgio
em torno da tese da CMH, destacando o referencial teórico utilizado pelo autor;
V - identificação dos autores que servem como pilares da
tese da CMH; leitura e análise desses autores, com vis
tas a avaliar a adequação do seu uso por Manuel Sérgio.
Sobre Manuel Sérgio e a tese da Ciência da Motricidade Humana
Manuel Sérgio é um filósofo português que há muito
tem contribuído para a reflexão a respeito da Educação Físi
ca. Podemos dizer que a sua contribuição através de ensaios
3 Na monografia, disponível na biblioteca do CEFD/UFES, encontram-se em anexo os levantamentos I, II e III.
— ^ J 1 0 1
iniciou-se no ano de 1974 quando publicou o livro Para uma
Nova Dimensão do Desporto. Antes, porém, já havia publi
cado obras literárias, como crônicas e poesias, e posterior
mente escreveu também narrativas de cunho jornalístico.
Entre a sua extensa obra (considerando seus livros e artigos
temos mais de trinta publicações), interessa-nos a bibliogra
fia referente à tese da CMH. Nesse sentido, a publicação
que inaugura o seu pensamento acerca daquela tese, apa
renta ser Prolegómenos a uma Ciência do Homem, publi
cado pela primeira vez na revista Ludens, em 1979, e pos
teriormente num livro intitulado Filosofia das Atividades
Corporais, em 1981. Como o próprio título sugere a inten
ção do autor é apresentar de forma ainda sincrética a nova
ciência que futuramente denominaria de CMH. Naquele
momento Manuel Sérgio oscilava na dúvida sobre a sua me
lhor denominação: Ciência do Movimento Humano ou
Quinantropologia? Entretanto, é interessante ressaltar que,
em 1974, Manuel Sérgio já perguntara pela existência de
uma Ciência do Movimento Humano (Quinantropologia?).
Trata-se de uma rápida passagem, num pequeno capítulo
intitulado “Educação pelo Desporto”, do livro Para uma Nova
Dimensão do Desporto, de sua própria autoria. Nesse livro,
dizia Sérgio (1975), que, se confirmada a existência da Ciên
cia do Movimento Humano (Quinantropologia?), faria parte
dela a “iniciação desportiva”, tendo, aí, o pedagogo lugar
privilegiado e função imprescindível. Sua grande preocupa
ção centrava-se na “humanização” do desporto, possibilita
da, segundo ele, somente pela adequada orientação peda
gógica - diga-se científica4.
4 Nesse texto Sérgio (1975) considera a pedagogia uma ciência e por isso reclama sua inserção na educação desportiva. Afirma ele que “no campo da ‘iniciação desportiva’ [...] a atualização científica mais se torna necessária, já que a pedagogia
é uma ciência e não é possível orientar uma criança (seja no que for) à base da intuição, esquecendo as exigências hodiernas da pedagogia” (p. 82).
Daí em diante, Manuel Sérgio assumiu com determi
nação o seu maior projeto - a tese da CMH - e com isso deu
prosseguimento à sua elaboração teórica, concentrando-se quase que exclusivamente nesse intento. Isso fica bem evidente na vasta publicação a respeito - em média um livro ou
artigo por ano. Entre elas, podemos destacar: Filosofia das
Atividades Corporais (1981); Uma Nova Ciência do Ho
mem - a Quinantropologia (1983); A Investigação Epistemo
iógica na Ciência da Motricidade Humana (1985); Motricidade humana: uma nova ciência do Homem (1986); Edu
cação Física ou Ciência da Motricidade Humana? (1991);
Para uma Epistemologia da Motricidade Humana (1994);
Motricidade Humana: um Paradigma Emergente (1995).
Entretanto, é no decorrer das leituras que percebemos variações no trato com a sua tese, apresentando-a de formas diferentes, bem como fundamentando-a a partir de referen
ciais diversos.
Com o objetivo de levantar essas diferenças, discutimo-
as em torno das seguintes categorias: motricidade humana;
homem; Ciência da Motricidade Humana; e corte epistemo
lógico.
Cabe ressaltar que essas são apenas categorias centrais, escolhidas por aparecerem constantemente em sua obra e porque, no decorrer do estudo, evidenciaram variações ao
longo do pensamento do autor - ocorrendo inclusive mudanças nas suas denominações. Contudo, devido à limitação de
espaço, dada pelo caráter deste livro, não foi possível apre
sentar essa evolução de forma resumida sem esvaziar seu
conteúdo e/ou prescindir das relações possíveis e reflexões
necessárias. Desse modo, ao final deste capítulo encontra-se
um quadro resumo da evolução do pensamento de Manuel Sérgio em torno da CMH, que pretende apenas situar o
leitor, ilustrando suas tendências ao longo da sua obra. Para
maiores esclarecimentos, remetemos à leitura do capítulo II
da monografia em questão.
Levantando questões
Partindo do que foi evidenciado na obra de Manuel
Sérgio acerca da tese da CMH, recuperamos, abaixo, algu
mas dúvidas/contradições levantadas por nós e, em seguida
estabelecemos um debate com autores que nos serviram de
auxílio nesta discussão. Acreditamos que nesses momentos
estaremos também contribuindo para aclarar um pouco aque
las variações que citamos anteriormente.
- Qual é a concepção de ideologia defendida por Sérgio em
sua relação com a ciência?
- Quais implicações surgem ao considerar-se a motricidade
humana como objeto de estudo e a ciência que dela se
ocupa pertencente às ciências do homem, como defende
Manuel Sérgio?
- Está claro qual é a especificidade dessa nova ciência?
- O que significa a educação motora ser considerada um
ramo pedagógico da CMH? Como se daria a relação da
quela com esta?
- O que significam algumas mudanças conceituais, de fun
damentação teórica e/ou de termos, identificadas na tese
da CMH?
- Qual é a possibilidade de conjugarem se dois autores, con
siderados pela discussão epistemológica atual como repre
sentantes legítimos de tendências opostas, para fundamentar
a existência da CMH? Tais autores são Popper e Kuhn.
- Nesse texto Sérgio (1975) considera a pedagogia uma
ciência e por isso reclama sua inserção na educação despor
tiva. Afirma ele que “no campo da ‘iniciação desportiva’
[...] a atualização científica mais se torna necessária, já
que a pedagogia é uma ciência e não é possível orientar
uma criança (seja no que for) à base da intuição, esquecen
do as exigências hodiernas da pedagogia” (p. 82). Em que
se baseia a necessidade de afirmar a E. F. como ciência?
Ela realmente possibilita um acesso superior ao conheci
mento do homem, como quer Manuel Sérgio? No plano
pedagógico, quais são suas limitações?
Discutindo questões
Ciência e ideologia
Podemos dizer que, com base no pensamento
althusseriano, categorias como corte epistemológico e pro
blemática dão início à fundamentação teórica do surgimento
da nova ciência proclamada por Manuel Sérgio. No texto,
“Louis Althusser ou uma Certa Maneira de Ler o Desporto”,
Sérgio (1984) faz uma leitura do desporto à luz do pensa
mento epistemológico de Althusser. Para ele “o Desporto
integra uma nova ciência do Homem (a Cinantropologia)” e
“o Desporto é ciência e filosofia” (p. 140). Sintetizando,
Sérgio (1984) apresenta as idéias de Althusser a respeito da
relação entre ciência, filosofia e política:
“Em meia dúzia de palavras podemos afirmar que a prática
filosófica se recorta no labor da produção de teses respeitantes
à rotura entre ciência e ideologia. Fazer filosofia equivale a
uma expressão intensa de vitalidade intelectual ao traçar
linhas de demarcação entre o científico e o ideológico [grifo
nosso], entre o idealismo e o materialismo [neste segundo
caso, a filosofia intervém na prática social, fornecendo teses
a uma das classes em luta], (p.137)
Diante disso ocorrem-nos duas questões referentes à
dicotomia estabelecida entre ciência e ideologia e o papel atribuído à filosofia:
a) Entendendo a realidade como um campo de luta de clas
ses (Althusser é de filiação marxista), se está realmente garantindo uma prática científica isenta de ideologia ao proclamar-se que a filosofia deve optar por uma das classes em luta e fornecer-lhe teses? Para “desideologizar” a ciência, basta vinculá-la a uma das classes? A verdade, nomeadamente científica, pertence a esta ou àquela clas
se social?
Entender a ciência como campo permeado por relações de poder, onde os cientistas ficam submetidos a instâncias burocráticas que nada ou pouco têm relação com a atividade propriamente racional, é facilmente compreensível; mas propor sua “desideologização” e seu “preenchimento” com a ideologia de uma das classes em luta é desconsiderar o avanço do conhecimento científico alcançado até os nossos dias.
b) Na leitura apresentada por Manuel Sérgio, a filosofia aparece como orientadora dos rumos que a ciência deve seguir. Antes vejamos de que forma isso se daria. A partir da distinção althusseriana entre leitura literal e leitura
sintomal, Sérgio (1984) relaciona-as com o aparecimento das categorias de problemática e corte epistemológico. A leitura literal aparece como descrição aparente, enquanto a leitura sintomal é responsável pelos questionamentos,
através de uma contextualização histórico-política. Apressadamente podemos dizer que neste segundo tipo de leitura é possível buscar uma problemática, ou seja, explicitar questões que a ciência coloca ao seu objeto, possibilitando um corte epistemológico, que consagra “a linha de sepa
ração entre a ciência e a ideologia” (p. 136). Nesse senti
do, a filosofia cumpre o papel de vigilância epistemoiógica operando com teses/teorias que garante aquela ruptura. Podemos adentrar agora na segunda questão; pergunta
mos, então, pelo ponto de vista onde reside a superiorida
de da filosofia.
Evangelista (1990) nos lembra que, para Althusser,
“a principal palavra de ordem era reduzir oposições, como
por exemplo as propostas por Kuhn entre os paradigmas a
uma única e absoluta oposição, à oposição entre A ciência e
A ideologia”, (p. 222)
E prossegue ele:
“quem decretava a cientificidade da ciência era uma filo
sofia científica, o Marxismo enquanto filosofia científica”
(p. 222).
Entretanto, Evangelista (1990) ressalta que Althusser,
diante da
“demonstração de Dominique Lecourt será forçado [...] a fa
zer uma auto-crítica”. (p. 222).
Nas palavras de Althusser (1966) citado por Evangelista
(1990):
“necessário [...] reconhecer a ilusão e a impostura de seu pro
jeto [ou seja de uma epistemologia]. É preciso (...) ele renun
ciar e criticar o idealismo ou os mofos idealistas de toda
epistemologia”, (p. 222)
Parece que, assim como Althusser, Manuel Sérgio tam
bém reviu algumas de suas colocações anteriores sobre cate
gorias utilizadas, bem como a relação entre ciência e ideolo
gia. Em “Carta Aberta à Presidente do CBCE”, à época, a
professora Celi Taffarel, Sérgio (1989), depois de quase dois
anos de permanência no Brasil, despede-se do CBCE. Nes
sa carta, além dos gentis agradecimentos a todos que o re
ceberam neste país, Manuel Sérgio reflete rapidamente a
respeito de alguns pontos que a Educação Física brasileira
precisa observar, defendendo, obviamente, a tese da CMH.
Num desses pontos, Sérgio (1989) afirma que “a Educação
Física brasileira precisa de criar uma teoria, que nasça do
diálogo com a sua prática específica” (p. 74). Contudo, lem
bra que não defende atualmente, “um corte epistemológico
(grifo do autor) ao jeito althusseriano” (p. 74). Ainda, segun
do ele, “a ideologia não é o simples reverso das Ciências”
(p. 74). Entretanto, aí reside uma dúvida: Manuel Sérgio não explicita em nenhum momento (nesse e nos seus outros
escritos) os motivos que o levaram a pensar diferentemente,
bem ao contrário do que fez anteriormente, quando preferiu a categoria de problemática (da linha Bachelard-Althusser) à
de paradigma (formulada por Kuhn).
Pensamos não ser possível demarcar claramente o que
é ideológico daquilo que é científico. Não existe uma linha
clara que pode consagrar essa separação, nem tampouco
uma disciplina pode ser responsável por isso. Essa tentativa poderia ser (talvez seja realmente) inócua. Uma alternativa
que achamos viável é aquela trilhada pela “epistemologia
crítica”, que, segundo Japiassu (1991), surge da interrogação sobre a significação real da ciência, de uma reflexão histórica feita pelos cientistas sobre os resultados, o lugar, o alcance, os limites e as significações socioculturais da ativi
dade científica, interrogando-se portanto sobre a responsabilidade social dos cientistas. Japiassu constata que a
racionalidade científica transformou-se em ideologia, quan
do pretendeu impor-se como a única forma de racionalidade
possível, criando, assim, a ideologia do cientificismo, em
que o homem alienado deposita toda a sua confiança na
ciência, como se ela fosse uma nova religião. E a fé cega na ciência e nos seus resultados: o domínio da natureza, a ri
queza material, a organização eficaz da vida social, etc.
Objeto de estudo, especificidade e filiação epistemológica
É bastante evidente, desde o início dos escritos de
Manuel Sérgio, a consideração da/do Motricidade Humana/
Movimento Humano como objeto de estudo da CMH, bem
como sua filiação epistemológica às ciências do homem5.
Sérgio (1981, p. 126), afirma, por exemplo, que “a Ciência
do Movimento Humano tem portanto o seu lugar assegurado
entre as Ciências do homem, como uma região da realidade
bem específica: o movimento humano” (p. 126). Diante dis
so perguntamos se de fato podemos afirmar o objeto de
estudo de uma ciência a partir da delimitação de uma “re
gião da realidade”, como defende Manuel Sérgio.
Bracht (1993), partindo de uma breve contextualização
histórica acerca da incorporação das “práticas científicas”
no interior da EF/CE, bem como da reivindicação desta por
um “status científico”, indaga que ciência é essa (EF/CE),
apresentando-nos nesse sentido algumas questões que na
sua opinião devem necessariamente acompanhar essa rei
vindicação. Entre elas, uma pode-nos ser útil na discussão do
objeto de estudo da CMH: o objeto de estudo desta(s)
ciência(s)6 é o esporte, a atividade física ou o movimento
humano? Especificamente nesta última, a tentativa de se
fazer do movimento humano o objeto de estudo de uma
ciência7 é criticada por Bracht (1993). Ele entende que o
objeto de estudo não é um simples recorte da realidade
empírica, caracterizando essa visão como uma concepção
empirista ingênua de ciência. No entanto, sabendo-se que o
objeto de estudo não está dado na realidade, a construção
desse objeto de estudo8 se dá pela maneira como essa reali
dade é abordada (p. 114). Dessa forma o movimento huma
no, como bem-lembram Ferreira e Bracht (1995), pode ser
5 Muitas vezes a CMH é confundida mesmo com a própria ciência do homem.
6 Bracht indaga se a melhor denominação não é ciências da Educação Física ou do esporte (no plural)
7 Aí incluímos a CMH.
8 Para Bracht (1993) a EF “é antes de tudo uma prática pedagógica, e portanto uma
prática de intervenção imediata” (p. 114). Neste caso a construção de seu objeto deestudo deve partir da intenção pedagógica.
abordado de diversas maneiras ou pontos de vista, cada qual
a partir d& condição epistemológica de cada disciplina que
dele se ocupa (p. 57). Essa fragmentação do conhecimento
observada em torno do movimento humano apresenta-se
então como um obstáculo a qualquer ciência que intente
construir seu objeto de estudo tendo o movimento humano
como objeto de estudo9.
Nesse sentido ainda, sabemos que as diferentes disci
plinas que se ocupam do estudo do movimento humano se
orientam por matrizes epistemológicas específicas1̂ ou seja,
pautam-se por princípios epistemológicos das ciências da
natureza ou das ciências sociais e humanas11. Enquanto, por
exemplo, a fisiologia e a biomecânica (CN) estão interessa
das em explicar os aspectos fisiológicos ou biomecânicos do
movimento humano, a sociologia e a filosofia (CSH) ínteres-
sam-se pela compreensão do movimento humano nos seus
aspectos sociológicos ou filosóficos. Constatado isso, uma
interrogação surge: como defender a inserção da suposta
CMH no interior das ciências do homem (CSH), inclusive
com o mesmo status das demais, se a ela não pode prescin
dir dos conhecimentos acerca do movimento humano oriun
dos das ciências da natureza? Ao mesmo tempo, contradito
riamente, Manuel Sérgio afirma que os princípios da expli
cação e da compreensão cabem inteiramente na CMH
como foi evidenciado no capítulo II da monografia em ques
tão. As contradições se ampliam aprofundando a incoerên
cia da sua tese, quando ele, Manuel Sérgio, começa a
referenciar o filósofo português Boaventura Souza Santos.
Esse autor defende que, na transição para uma ciência pós-
9 A respeito da fragmentação do conhecimento, bem como dos limites e das possibi
lidades da interdisciplinaridade, consultar Veiga Neto (1996).
>o Essa é uma discussão bastante complexa e polêmica que neste momento deixare-
mos suspensa.
11 Esta última Manuel Sérgio prefere nominar de ciências do homem.
moderna, “começa deixar de fazer sentido a distinção entre
ciências naturais e ciências sociais” (1998, p. 48). Ainda segundo este, o paradigma emergente que se anuncia no
horizonte fundamenta-se na superação daquela dicotomia
entre Ciências Naturais e Ciências Sociais, cuja “distinção assenta numa concepção mecanicista de matéria e da natu
reza a que contrapõe, com pressuposta evidência, os conceitos de ser humano, cultura e sociedade” (p. 60). Sabendo-se
da insistente tentativa de Manuel Sérgio de entender o ho
mem através da sua tese, que se daria pela superação das dicotomias inauguradas com a modernidade, torna-se difícil aceitar que ele ao longo de toda a sua obra, defenda a CMH
enquanto ciência do homem, principalmente quando busca
sustentação em Souza Santos. Ademais, essa sua considera
ção vem carregada de todo tipo de problema epistemológico detectado acima. Ele não deveria, na verdade, caminhar
para essa superação? Ou será que está-se apoiando na tese
da curvatura da vara12?
Parece que Manuel Sérgio é capturado também por uma armadilha que afeta a própria ciência: a fragmentação do conhecimento. Veiga Neto (1996) ressalta que o conheci
mento disciplinar (fragmentado) é fruto da própria moder
nidade, ou seja, “a disciplinariedade é a maneira pela qual
não só o conhecimento se organizou como, ainda e principalmente, organizou o próprio mundo contemporâneo” (p.
132). Além dessa perspectiva foucaultiana de entender a
constituição das ciências13, ele lembra que a causa dessa
12 Observação feita, em tom de brincadeira, pelo professor Francisco Caparroz, em
conversa particular. Grosso modo, essa tese afirma que para alcançarmos um ponto de chegada a partir de um extremo devemos buscar o outro extremo, como na
tentativa de endireitar uma vara torta. Analogamente, será que defendendo a CMH
enquanto ciência do homem, Manuel Sérgio busca um ponto de superação a partir
da negação da ciências da natureza? Pensamos ser essa uma hipótese improvável.
13 Segundo Japiassu (1991) a constituição das ciências, numa perspectiva foucaultiana,
está alicerçada no importante conceito de epistéme, ou seja, como a infra-estrutura cultural do saber propriamente dito , caracterizado como representação, como
registro epistemológico específico de todo um período do pensamento e da cultura.
^JTÍT*N
suposta doença do conhecimento científico14 pode ser bus
cada mais na “separação entre a res cogitans e a res exten
sas [grifos do autor], ou seja, no nosso afastamento, enquanto pensantes, do resto do mundo” (p. 136). Lembra ainda as
contribuições recentes da filosofia que apontam no sentido
de ser impossível “o estabelecimento de um campo
epistemológico único” (p. 132). Kuhn ressalta que
“os paradigmas, nos quais se circunscrevem áreas do conhe
cimento (e seus praticantes), são partilhados por comunida
des de linguagem. Isso significa que cada paradigma tem não
só seu próprio discurso e sua própria maneira de colocar suas
questões e de determinar o que é e o que não é relevante e
problemático. Tal especificidade paradigmática faz com que
aquilo que é visto como um problema e/ou objeto de pesquisa
numa comunidade possa até nem ser visto ou notado por
outra comunidade.” (p. 132).
Com as considerações acima, tentamos evidenciar que
a constituição de uma ciência que tenha o movimento humano como objeto de estudo encontra obstáculos erguidos
pela própria maneira como o conhecimento se organizou, o
que leva a diferentes possibilidades de abordar o movimento humano, cada qual a partir da sua especificidade (para
digma?). Dessa forma a proposição de uma CMH que tenta abarcar todo o conhecimento (científico) em torno do movi
mento esbarra nos mesmos obstáculos observados anterior
mente, pois, como bem-lembra Veiga Neto (1996), “o co
nhecimento disciplinar [no caso do movimento humano, frag
mentado por disciplinas como a fisiologia, a biomecânica, a
sociologia e a filosofia] não pode ser extinto por atos de
vontade e por decretos epistemológicos” (p. 132).
É notável a boa vontade e o otimismo impregnados no espírito de Manuel Sérgio, todavia, um projeto dessa enver
gadura é fruto nada menos do que de muita audácia. Pode-
14 Para Veiga Neto a fragmentação do conhecimento não pode ser considerada uma
doença. Já Japiassu a vê assim, inclusive publicou um livro intitulado
Interdisciplinariedade e Patologia do Saber.
mos, no entanto, até especular se ele não está mais interessado em reconstruir as próprias ciências do homem, que por
muito tempo estiveram pautadas por princípios positivistas que ele tanto condena. Com isso afastou-se de uma aborda
gem nova que vem anunciando, a qual pode conferir especificidade e, portanto, uma identidade epistemoiógica15 à uma área (EF) que, como ele tão bem observa/denuncia, sempre foi usada a serviço das mais variadas formas de poder. Resta, para Manuel Sérgio, explicitar a especificidade da CMH,
que traduz uma maneira própria de abordar o movimento humano. Entendemos que o primeiro passo é apresentar um conjunto de questões que configura uma problemática própria a essa “ciência”.
Considerações finais
Para a aceitação da tese da Ciência da Motricidade
Humana tornam-se necessários esclarecimentos e/ou respostas a questões respeitantes, por exemplo, à sua especificidade, à sua filiação epistemoiógica, à sua relação com outras “ciências” e com a prática pedagógica de Educação Física e às suas necessidades e possibilidades. Essas
questões foram levantadas durante o decorrer do trabalho e acreditamos que são questões geradoras de dúvidas e
impasses que comprometem o/a surgimento/afirmação da CMH. Entretanto, uma autocrítica também nos cabe: não foi possível discorrer sobre todas as questões levantadas, bem como aprofundar as exposições desenvolvidas. Dessa forma, na revisitação de alguns pontos e na exploração dos outros,
estamos abertos e esperamos, críticas e sugestões para a concretização deste trabalho.
Bracht (1996) lembra-nos que identidade epistemoiógica “significa a forma pró-pria com que cada disciplina científica interroga e explica a realidade, o que é
determinado pelo tipo de problema que levanta, pelos métodos de investigação e linguagem que desenvolveu e utiliza” (p. 6).
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A EPISTEMOLOGIA DA EDUCAÇÃO FÍSICA: UM DIÁLOGO
COM MAURO BETTI1
Avoluma-se e cresce em qualidade a discussão em tor
no da caracterização científica da área da Educação Física (Ciências do Esporte; Ciência do Movimento Humano; Ciên
cia da Motricidade Humana)2. A preocupação com tal caracterização tem-se concentrado em três aspectos distintos e
complementares: a) a identificação da distribuição da produção do conhecimento nas diferentes “subáreas” (biológica, sociológica, psicológica, pedagógica, etc.); b) a identificação das concepções de ciência (positivismo, neopositivismo, fenomenologia-hermenêutica, materialismo histórico dialético) que têm orientado as pesquisas na área; e c) a tentativa de delimitar e caracterizar epistemologicamente a área ou o campo, ou seja, caracterizar a identidade da área no que diz
respeito à sua relação com a ciência.
Em estudos anteriores (Bracht, 1992, 1993, 1995,
1996 e 1997) enfocamos esses três aspectos. Uma tese
recorrente nesses nossos estudos, entre outras, é a da não
1 Trabalho apresentado no GTT de Epistemologia do X CONBRACE (Goiânia/GO, 1997).
2 A denominação da área se dá de forma diferenciada. No entanto, qualquer que seja
a denominação, sempre está-se referindo a uma tradição que teve como denomina
ção comum o termo Educação Física (e anteriormente a esta, ginástica). Ou seja, todas se colocam como herdeiras do campo da Educação Física.
existência de um elemento norteador da produção do conhe
cimento na área que permite vislumbrar a construção de uma unidade (seja disciplinar, seja interdisciplinar), ou seja, a
produção do conhecimento é disciplinar e caminha na dire
ção de sua crescente fragmentação e especialização. Colocam-se aí pelo menos duas questões: a) quais são as razões dessa tendência à fragmentação? b) Qual pode ser o ele
mento orientador a conferir uma unidade que permita falar
de uma área do conhecimento?
Mais recentemente (Bracht, 1996, 1997), recuperan
do o processo histórico de construção do campo acadêmico (ou da área) da Educação Física (EF), viemos construindo a
tese de que existe a possibilidade de construir um campo acadêmico a partir de um elemento integrador do esforço
teórico na área da “EF”. Para tanto temos de superar o entendimento empirista-ingênuo de que o esporte, a ativi
dade física, o movimento ou a motricidade humana podem
ser entendidos como um objeto científico (de uma ou de
mais ciências). Assim, um pressuposto inicial é o de que tal
elemento integrador, ou o nosso objeto, é uma problemática
teórica compartilhada.
Analisando a história da EF, entendo ser possível
caracterizá-la como uma prática pedagógica (com sua especificidade) e que, como tal, requereu e requer um corpo
de conhecimentos que a sustente. Esse corpo de conheci
mentos (que muitos, entre eles, Betti [1996], entendem deve ser adjetivado de científico), se o entendermos vinculado a essa prática, precisa ser construído a partir da problemática
que identifico como o movimentar-se humano e suas
objetivações culturais na perspectiva de sua participação/
contribuição para a educação do homem3. Portanto, ele-
3 Desde logo, para prevenir possíveis mal-entendidos, esclareço que essa é uma
caracterização meramente descritiva. Educação do homem, objetivações culturais
e outros conceitos nela presentes precisam receber tratamento teórico para adqui
rirem concretude.
mento caracterizador indispensável dessa proposta de pro
blemática é a intenção pedagógica, ou seja, o olhar que
orientará a reflexão (na busca de explicações e compreen-
sões), sobre o movimentar-se humano e suas objetivações
culturais (cultura corporal de movimento), é o pedagógico.
Betti (1996)4, em recente trabalho, analisa criticamen
te essa tese e os elementos que a sustentam e levanta uma
série de perguntas e questionamentos. Na seqüência nos
ocuparemos, então, em acompanhar o raciocínio do autor
buscando refletir sobre os questionamentos levantados, na
perspectiva de melhor fundamentar nossas posições.
Debatendo com M. Betti
Betti (1996) intitulou seu trabalho de forma sugestiva:
Por uma Teoria da Prática. O título já indica uma opção e
uma direção: a sua preocupação com a prática, em ofere
cer uma teoria da prática; é ao longo do texto que ele carac
teriza, então, seu entendimento do que é prática no âmbito da EF.
O autor se propôs no texto a estabelecer um debate
com autores que, nos últimos anos, no seu julgamento, “con
tribuíram significativamente para a constituição de uma teo
ria da EF de matizes brasileiras”. Os autores tomados para
tal interlocução foram: Tani (1988, 1989), Lovisolo (1994),
Kolyniak Filho (1994, 1995a, 1995b) e Bracht (1993). Tra
ta-se em nosso entender de um dos mais brilhantes esforços
já empreendidos para analisar sistematicamente o pensa
mento epistemológico da EF brasileira.
4 Estamos nos valendo aqui do texto na versão a nós enviada pessoalmente pelo autor,
pelo que agradecemos de público. O texto foi publicado, não sabemos se com modificações, na revista Motus Corporis (v. 3, n. 2, dez. 1996).
Uma tônica presente ao longo do texto é o combate
aos diversos dualismos/dicotomias (EF versus Esporte; es
porte versus jogo; EF como área do conhecimento uersus EF
como prática pedagógica, etc.) que o autor entende existi
rem na nossa área. Aliás, para o autor é possível identificar
uma “nova macro dicotomia” na divisão dos discursos atuais
sobre a teoria da EF: uma, que vê a EF como área do conhe
cimento científico; outra, que a vê como prática pedagógi
ca. Situa os diferentes autores nessas duas “matrizes”,
alocando-nos na segunda, ou seja, na matriz pedagógica5.
Inicialmente Betti observa que os defensores da matriz
pedagógica,
“desesperados com o desaparecimento da EF, buscam
resguardá-la no interior da Escola, restringindo o seu alcance
conceituai, quando deveriam buscar ampliá-lo. Perdem igual
mente a EF quando a encontram. Antagonizam com o espor
te, hostilizam as academias, criticam as bases epistemológicas
das ciências da natureza e associam a si próprios com as ciên
cias humanas [e instalam aí uma nova dicotomia...]”6.
É claro que o autor está trabalhando, necessariamente,
com generalizações. Cada um dos “atingidos” pode sentir-se
não-contemplado ou “injustiçado”. Particularmente, para o
nosso caso, entendemos que a caracterização acima não é
adequada, como procuraremos argumentar na seqüência.
Antes, porém, é importante colocar melhor a recepção, por
parte de Betti, do nosso pensamento.
5 Observe-se aqui que não será possível, neste momento, debater também com o
conjunto de autores revisados/criticados por Betti (1996). Limitar-nos-emos a um
diálogo com as interpretações de Betti de nossas posições, embora tangencie postu
ras de outros autores.
6 Uma observação rápida: os termos dualismo e dicotomia são utilizados alternadamente, sem que nos dois casos aconteça o seu tratamento conceituai.
Como observarei adiante esses termos estão longe de serem auto-explicativos ou
não-problemáticos.
Betti faz menção ao nosso entendimento de que, para
a busca do objeto da EF, devemos ter claro que ela é antes
de tudo uma prática pedagógica e que reconhecer a EF
primeiro como prática pedagógica é fundamental para reco
nhecer o tipo de conhecimento, de saber necessário para
orientá-la, e para o reconhecimento do tipo de relação pos
sível/desejável entre a EF e o “saber científico”, ou as disci
plinas científicas. Refere-se, também, ao nosso entendimen
to de que o movimento humano enquanto fenômeno não é
já um objeto científico e que sua objectualização pelas dife
rentes disciplinas redunda, na verdade, em diferentes obje
tos. Apresenta nossa idéia de que a EF tem de assumir o
caráter de uma ciência da e para a prática. Betti diz entusias
mar-se, até esse ponto, com nossas conclusões. Mas, enten
de que, ao aprofundarmos nosso entendimento sobre tal ciên
cia, incorremos em uma nova dicotomia. Refere-se Betti a
nossa observação de que “precisaríamos aclarar se a EF ope
raria a partir dos princípios epistemológicos das ciências na
turais ou das ciências sociais e humanas”. Coloca ainda que,
em nosso entendimento, a “ciência clássica” introduz, inevi
tavelmente, reducionismos no estudo do movimento huma
no, e que sugerimos então que o teorizar em EF precisa
ultrapassar o próprio teorizar científico, contemplando o
biopsicossocial, o ético e o estético, numa perspectiva de
globalidade, portanto uma nova construção do nosso objeto.
Afirma Betti, ainda, que nós não acreditamos na interdisci
plinaridade, já que entendemos predominar a tendência à
fragmentação e não existir uma problemática teórica que
possa integrar as disciplinas que se ocupam cientificamente
do movimento humano.
Nesse ponto Betti (1996) diz ter, em relação às nossas
posições, muitas objeções: 1) se a ciência “clássica” ou “tradi
cional” a que nos referimos são as ciências naturais ou o po
sitivismo e se a alternativa são as ciências humanas/sociais;
nos imputa, nesse caso, uma assimilação entre positivismo e
empirismo e certa confusão entre positivismo e quantificação;
2) argumenta que, se o ético e o estético são remetidos para
a filosofia, isso não é pouco, pois Apel e Habermas são
filósofos; faltou, no seu entender, estabelecer relações mais
explícitas entre a filosofia e as demandas da pesquisa em
EF; 3) por que temos de escolher primeiro a prática pedagó
gica e depois o conhecimento científico
“Se Bracht reconhece que a ‘chave’ está na relação entre as
duas instâncias, o que interessa então é a inter-relação. Ter
que optar por um primeiro, é como ter que'optar entre o
indivíduo e a sociedade, o sujeito e o objeto, a teoria e a
prática, minimizando a possibilidade da mediação”. (Betti,
1996).
Por fim, o autor concorda ser preciso haver um princí
pio integrador, que nós entendemos ser a prática pedagógi
ca; nesse sentido Betti entende ser necessário que esta últi
ma abarque todas as manifestações da motricidade social
mente institucionalizadas.
Algumas das questões que Betti nos coloca são passí
veis de respostas razoavelmente imediatas e simples; outras,,
no entanto, e estas são as realmente substanciais, são extre
mamente complexas e dificilmente respondíveis, devido às
nossas limitações pessoais e à própria indefinição e polêmi
ca existente no plano do pensamento científico-filosófico mais
avançado. Ma;, vamos às questões!
As duas primeiras questões situam-se no plano geral
da teoria do conhecimento e/ou teoria da ciência.
Quando nos referimos à ciência “clássica” ou “tradicio
nal”, estamos nos referindo não às ciências naturais enquan
to tais, mas às ciências que fazem seus os princípios daque
las. É importante frisar que é esse o modelo ou a concepção
de ciência que torna-se hegemônico, inclusive no interior das
ciências sociais e humanas. O positivismo é apenas um exem
plo. Assim sendo, é claro que a alternativa para fundamen
tar a EF não é simplesmente as ciências sociais e humanas.
É, no entanto, no interior dessas que temos um movimento
contestador dos princípios da ciência tradicional ou hegemô
nica, que traz à luz as limitações (conseqüências) dessa para
a explicação/compreensão das ações humanas. Se existem
diferentes entendimentos do que é a racionalidade científi
ca, se temos no seu interior um debate em torno do monismo
ou dualismo metodológico, quando falamos em dar funda
mentos científicos para a EF, o que se exige, no mínimo, é
que nos posicionemos a esse respeito7. Não é possível falar
de ciência como se esta fosse um mar de unanimidades. E
preciso tomar posição e com fundamento racional, diga-se
de passagem, porque o que campeia são posições assumi
das com base em vinculações meramente emocionais, políti-
co-partidárias, ou então que se situam no plano da doxa ou
do senso comum.
A questão dois, vinculada a essa, diz respeito ao pres
suposto básico daquela ciência tradicional da qual faláva
mos. Trata-se da distinção entre o saber fático e o ético-
normativo. A ciência sempre se propôs a se pronunciar so
bre o que é a realidade e não sobre o que ela deveria ser.
Ou seja, a racionalidade científica não está em condições de
se pronunciar acerca do que deveríamos ou não ser; ela está
em condições de auxiliar as decisões éticas com conheci-
7 É interessante a crítica de incorrer no dualismo (ciências naturais versus ciências
sociais e humanas) que Betti nos endereça, porque ele mesmo trabalha com a distinção entre essas ciências para criticar Kolyniak Filho: “Para mim [M. Betti], a
limitação do positivismo não é tanto a fragmentação em áreas e subáreas cada vez mais especializadas (que atingiu tanto as Ciências da Natureza quanto as Ciências Humanas), mas na indistinção entre as metodologias das Ciências Naturais e Ciên
cias Humanas. Exige-se para estas últimas os mesmos critérios de cientificidade consagrados nas primeiras, não considerando a possibilidade de que a objetividade
das Ciências Humanas seja de outra ordem e esteja em construção, em adequação
crescente aos seus objetos (Ladrière, 1982)” (Betti, 1996).
mento seguro do que somos ou do que a realidade é, ou
melhor, de como a realidade funciona (quais as leis que a
regem). De sentenças sobre o que a realidade é não é possí
vel deduzir lógica e necessariamente (ou cientificamente, se
quiserem) o que ela deve ser. Como a EF, enquanto prática
pedagógica, necessariamente envolve a dimensão do ético-
normativo, para que a ciência (ou a racionalidade científica)
possa lhe fornecer a fundamentação necessária, é preciso,
ou complementar o conhecimento científico com a filosofia
(que me parece a opção de Betti porque fala por diversas
vezes (p. 33) em conhecimentos “científicos e filosóficos” e
em “ciências/filosofia”8, ou, trabalhar com um novo concei
to de racionalidade (que talvez não precise ser adjetivada de
científica se nos livrarmos do fetiche da ciência moderna),
que consiga estabelecer a ponte entre o fático e normativo
sem abdicar da pretensão à racionalidade para suas assertivas.
Esse é o projeto conhecido de J. Habermas, o da razão
comunicativa. Mas, base para tal empreendimento é a su
peração do paradigma científico centrado na relação sujeito-
objeto, a favor do paradigma da linguagem (a partir da vira
da linguística operada pela filosofia analítica e pela
hermenêutica), que se constitui em base do conceito de ra
zão comunicativa. Nessa, a linguagem não é mais mera for
ma de representação e sim uma forma de ação.
“Desloca-se o foco da investigação da racionalidade cognitivo-
insirumental para a racionalidade comunicativa. Não mais se
embasa o conhecimento na relação sujeito-objeto, mas na
relação intersubjetiva que assumem atores sociais capazes de
fala-ação ao se entenderem entre si sobre algo no mundo”.
(Marques, 1993, p. 86).
8 Devolvo aqui a crítica de incorrer numa dicotomia. Betti, quase ao final de seu texto,
afirma: “o princípio integrador possível neste processo advém de um processo de valoração; portanto, só a filosofia pode propiciar esta integração". Porque só a filosofia? A filosofia não estaria contemplada no plano da racionalidade científica? Que tipo de verdade seria produzida por uma e por outra?
Não se trata de considerar supérfluo o conhecimento
produzido a partir do interesse técnico (pelas ciências
empírico-analíticas), nem absolutizar o conhecimento produ
zido a partir do interesse prático pelas ciências histórico-
hermenêuticas. Trata-se, isto sim, de reconhecer seus limi
tes e possibilidades e reinterpretá-los, submetê-los a outro
critério, a uma racionalidade comunicativa. “Entrelaçam-se
na unidade da razão comunicativa o interesse prático das
ciências histórico-hermenêuticas e o interesse emancipatório
das ciências crítico-reflexivas” (Marques, 1993, p. 89).
Buscando superar o dualismo entre a racionalidade téc
nica e a racionalidade normativa, a teoria da ação comuni
cativa busca uma racionalidade prática de ação comum à
procura dos melhores objetivos através do diálogo.
Betti (1996) fez uma tentativa de pensar uma possível
teoria da prática para a EF, a partir da teoria da prática (da
ação) de P. Bourdieu. E uma tentativa interessante, mas
que, se não incorro em erro, exclui ou não contempla exata
mente o dualismo acima discutido (conhecimento fático uersus
conhecimento normativo), aspecto fundamental para uma
'teoria da prática, entendida como ação ética, normativa,
caracteristicamente humana. Assim, parece-me interessan
te, também, pensar uma teoria da EF a partir da proposta
de Habermas (num certo sentido E. Kunz e colaboradores na
UFSC estão engajados nesse projeto). A nós parece, e esse
é um julgamento preliminar e parcial, que a teoria da ação
comunicativa é mais produtiva para o caso de uma prática
pedagógica. Se pensarmos junto com Habermas (tomarmos
a sua posição), diríamos, provavelmente, que Bourdieu, com
sua tentativa de superar o impasse objetivismo uersus
subjetivismo, presente na sociologia, em favor de uma teoria
da prática, permanece no paradigma da filosofia da consciên
cia e recai, ora no objetivismo, ora no subjetivismo (por isso
ele é criticado por alguns autores como estruturalista e recla
ma-se dele algo propositivo). Mas esse debate não pode ser
levado a termo aqui.
A terceira questão foi colocada por Betti da seguinte
forma: por que temos de primeiro escolher a prática peda
gógica e depois o conhecimento científico? Recoloquemos a
questão: postulamos que a EF deve ser entendida primeiro
como prática pedagógica, ou seja, definidor de sua identida
de, como prática social, é a sua característica de ser uma
prática de intervenção imediata, no caso, uma prática peda
gógica. Portanto, nossa questão não é colocá-la aqui ou ali:
ou ciência, ou prática pedagógica. Esses não são termos
antagônicos, embora diferentes. Alguns autores, como Tani,
em alguns momentos, e M. Sérgio, a quem as minhas afir
mações estavam endereçadas, parecem só ver uma possibi
lidade da EF alcançar legitimidade: afirmando-se como ciên
cia. Por que para nós a questão não se apresenta como
alternativa? Porque toda prática social, principalmente aquela
com características de prática pedagógica, exige um supor
te teórico que não pode prescindir do saber científico para
fundamentar as decisões com as quais está constantemente
confrontada. Constituir um campo acadêmico é, portanto,
necessário complemento/acompanhamento dessa prática.
Quais são as características e os contornos desse campo,
com quais outros interage e como, com qual concepção de
racionalidade (científica) vai ou deve operar? Bem, essa é a
questão! Mas, tentar afirmar a identidade da EF somente ou
primeiramente como ciência é, em nosso entendimento, uma
inversão, mesmo porque a EF (sua tradição), nessa perspec
tiva, se perde.
Talvez este seja o momento de fazer algumas conside
rações acerca da proposta de uma Ciência do Movimento
Humano ou Cinesiologia (Tani, 1996) ou Ciência da Motri-
cidade Humana (CMH) (Sérgio, 1994). Tani (1996), como
bem-observa Betti (1996), tem a virtude de se preocupar
com a Educação Física, entendendo-a como ciência aplica
da, enquanto Sérgio (1994) considera a EF (Educação Motora)
como ramo pedagógico da CMH. Já apresentamos nossos
argumentos que, no nosso entendimento, demonstram a im
possibilidade de tal ciência (no singular). De certa forma,
após duas décadas de experiência, uma boa parte dos estu
diosos alemães da área também concluiu que a ciência
desportiva continua e continuará sendo Ciências do Esporte
(no plural)9. No entanto, é claro que as Ciências do Movi
mento Humano ou as Ciências da Motricidade Humana po
dem se organizar “debaixo de um mesmo teto”, propiciando
um ambiente no qual cada um faz suas pesquisas em meio à
indiferença simpática dos demais. Parece-me inclusive ha
ver demanda, nos mais diversos setores sociais, para tal co
nhecimento (disciplinar, pluridisciplinar). Se então elas de
vem ocupar nas universidades um espaço específico, organi
zarem-se num instituto, centro, etc., é uma decisão política.
A decisão pode ser inclusive, a de transformar os hoje cen
tros/departamentos/escolas de Educação Física e Desportos
em centros/departamentos/institutos de Cinesiologia. No
entanto, qualquer que seja a decisão, esses não irão substi
tuir a prática social EF. Isto é, não devemos confundir a
reorganização dos saberes nas instâncias de sua produção e
de formação profissional com determinada prática social.
Particularmente, e esta é uma posição política, entendemos
e colocamos nossos esforços na perspectiva da EF entendida como prática pedagógica.
9 Ver a respeito Prohl (1991).
Considerações finais
Betti (1996) propõe corrigir nossa posição ampliando
o conceito por nós utilizado de “prática pedagógica” para
“prática social das atividades corporais de movimento, con
cebida como campo de dinamismo social, onde se dá a con
frontação e a disputa de modelos de prática e no qual atuam
diversas forças sociais (inclusive a comunidade acadêmico-pro-
fissional da EF). Uma prática social assim concebida é quase
sinônimo do conceito de ‘cultura corporal de movimento’.”
(Betti, 1996, p .31).
O problema que vejo aqui é que, assim definida, a EF
não é quase sinônimo de cultura corporal de movimento; ela
é sinônimo propriamente dito dessa expressão! Uma teoria
(geral) da EF é então uma teoria geral da cultura corporal de
movimento. Assim formulada, fica muito difícil identificar
uma problemática teórica que delimite os esforços teóricos
específicos deste campo. Entendemos que nossa formulação
permite identificar tal problemática quando centra/organiza
tal teorizar na perspectiva do pedagógico. Assim, repetindo,
a teoria da EF tem como problemática a participação/con
tribuição do movimentar-se humano e suas objetivações cul
turais na/para a educação do homem. A teoria daí decor
rente poder orientar/fundamentar os sujeitos da ação na
quelas instâncias sociais em que a intenção pedagógica con
fere o sentido (fosse o leitmotiu) dessas ações. Toda vez que
um profissional (da EF, do esporte...) pretendesse, em qual
quer instância social, tematizar qualquer elemento da cultura
corporal de movimento, a partir da intenção pedagógica, ele
encontraria fundamentos nessa teoria. Vale dizer, que a ins
tituição educacional possui especificidades que tornam ne
cessárias reflexões para adequar-lhe a teoria.
EPISTEMOLOGIA E POLÍTICA NA EDUCAÇÃO
“El discurso metafísico de Occidente está llegando a su fin y
la filosofia, en su atardecer, nos há hecho, através de los
grandes nombres dei siglo, un ultimo servido: deconstruir su
proprio terreno y crear las condiciones de su propia
imposibilidad. Pensemos, por ejemplo, en los indecidibles de
Derrida. Una vez que la indecidibilidad há alcanzado al propio
fundamento, una vez que la organización de un cierto campo
es gobernada por una decisión hegemónica - hegemónica
porque ella no es determinada objetivamente, porque decisiones
diferentes son también posibles - el reino de la filosofia llega
a su fin y comienza el reino de la política.” (Laclau, 1996)
Os desenvolvimentos científicos das últimas décadas
nos levaram a uma maior consciência dos limites da racio
nalidade científica. Acirrou-se o debate em torno dos funda
mentos da ciência, sobre as possibilidades/impossibilidades
de encontrar/construir fundamentos seguros para a ativida
de de conhecer cientificamente a realidade. Esse debate
parece ter resultado num grande não à possibilidade de um
fundamento último a partir do qual o edifício científico pu
desse ser construído. Afirma-se cada vez mais o caráter pro-
1 Texto enviado para o GTT Epistemologia do XI CONBRACE (Florianópolis/SC, 1999).
cessual da verdade. Acentuou-se também, muito em função
da ameaça ecológica, a consciência de que a produção cien
tífica (traduzida em tecnologia) não é inocente, que a produ
ção científica não pode ser reduzida a uma operação lógica,
ela é sempre intrinsecamente política, não sendo possível
isolar hermeticamente em pólos distintos o papel do cidadão
e o do cientista. As ciências naturais, outrora tão zelosas (e
arrogantes) quanto à propalada objetividade do conhecimen
to que produzem, precisaram aos poucos admitir, a partir de
seus próprios desenvolvimentos, que o objeto não permane
ce indiferente ao observador ou ao sujeito do conhecimento.
Nas ciências sociais e humanas ouvem-se, em volume cres
cente, vozes que admitem a necessidade de rever o antago
nismo natureza-cultura que permeou e permeia essas ciên
cias. A pretensão da racionalidade científica de eleger-se
como a própria racionalidade é acusada de ser coadjuvante
de reducionismos e totalitarismos, ao mesmo tempo em que
se busca e se propala a importância de outras racionalidades,
numa perspectiva psicologizante, outras inteligências, como
a emocional. Intervir a partir do conhecimento científico passa
a ser problemático porque o otimismo, a visão positiva da
racionalidade científica, como forma privilegiada de conhe
cer a realidade está sob forte suspeita: abalou-se a “crença”
no poder da razão científica, o que tem levado, por um lado,
à sua negação simplista, justificando um mergulho no
esoterismo e, por outro, a tentativas de redefinição/recons
trução do modelo de racionalidade, tomando-a como
fenômeno também histórico e portanto contingente. Da crí
tica à oposição cultura-natureza emerge a revalorização
da nossa (primeira) natureza, ou do corpóreo no homem,
não mais entendido como mero mecanismo de uma
estrutura superior, a mental, mas como uma estrutura com
plexa que ao mesmo tempo contém aquela (ou na qual aquela
radica), mas a transcende. Desenvolvimentos da filosofia da
^ ^ 130^ -—- - - - - —
linguagem mostram como somos seres imersos na lingua
gem, como as apreensões que fazemos do real são depen
dentes e préfiguradas pelos conceitos dos quais nos valemos,
isto é, a linguagem não é um instrumento/meio neutro na
ação do conhecimento. A superação paulatina do euro-
centrismo permite considerar outras culturas não como “in
feriores” mas como diferentes e dignas. A complexificação
do mundo pela interpenetração ou crescente intercâmbio de
várias ordens (econômico-financeiro, político e cultural) pa
rece-nos colocar de frente a uma “nova intransparência” (J.
Habermas).
Todos esses desdobramentos, internos e externos ao
fazer científico propriamente dito, afetam nossa vida e nos
sa produção acadêmica talvez mais do que num primeiro
momento possamos perceber, ou mesmo estejamos dispos
tos a admitir. Estamos confrontados com problemas que pa
recem desafiar nossos modelos de pensamento ou o modelo
moderno do conhecimento (cf. Marques, 1993). Entre as
inúmeras questões que nos desafiam a partir do quadro es
boçado acima, selecionei algumas que entendo afetam a
vida do CBCE (Colégio Brasileiro de Ciências do Esporte)
como comunidade que reúne pessoas interessadas no avan
ço do conhecimento e na intervenção social qualificada para
a qual esse conhecimento pode contribuir.
As questões a que me refiro estão ligadas a um conjun
to de conceitos que albergam polêmi;as e visões, ao menos
aparentemente, conflitantes: pluralismo, diversidade, dife
rença, particularismo, fragmentação, antifundacionalismo,
irracionalismo, acaso/caos, de um lado, e unidade, totalida
de, universalidade, ordem e racionalismo de outro2. A polê
mica em torno destes temas marca as posições e as ações
2 A polarização que fiz é meramente didática. Ela em verdade é precária, como
discutirei no texto.
em torno da relação epistemologia e política ou entre conhe
cimento e intervenção. Buscarei demonstrar como estas ques
tões não só afetam nossas noções de conhecimento, ciência
e verdade, como as de democracia e política. Destacam-se
neste sentido as discussões em torno do pluralismo e do
relativismo, temáticas caras ao antifundacionalismo e que
afetam mais diretamente nossas noções de democracia.
Delineando as posições presentes na Educação Física brasileira e no CBCE3
Na Educação Física brasileira e particularmente no
CBCE, depois de um debate entre os que advogavam uma
ciência neutra e aqueles que defendiam uma ciência engajada
(década de 80, principalmente), o debate que se impõe hoje
parece ser de outra ordem. Não mais o debate entre, de um
lado, o isolamento e, de outro, o engajamento da ciência,
mas sobre possibilidades, características, limitações, enfim,
sobre o que pode ou deve significar ciência engajada. Como
lembra Demo (1998), modernamente avolumou-se o inte
resse em caracterizar a relação entre ciência e política como
intrínseca, em que pese a fácil banalização que isso pode
acarretar.
Dentro desse novo quadro algumas posições se deli
neiam. Podemos observar, no campo, uma visão da relação
epistemologia e política que entende que no plano da produ
ção do conhecimento reflete-se a contradição, ou melhor, o
3 Neste texto opto por não identificar autores com as posições aqui delineadas por
dois motivos. O primeiro deles é que, ao caracterizar posições, esta é feita esquematicamente, ressaltando pontos e empobrecendo possíveis nuanças internas
à própria posição. O segundo é que, dada a pouca discussão acumulada na área, em EF tendemos a transformar essas caracterizações/aproximações imediatamente em rótulos valorativos.
' 132C v v w < - ^ wv
antagonismo social, o que leva a uma necessária dicotomia
que é determinada pela opção política a favor dos interesses
dominantes (capital) ou a favor dos interesses dominados
(trabalho). A opção pelo interesse (político) histórico da maio
ria (classe trabalhadora/proletariado) conferiria a condição
de um acesso privilegiado, em termos de conhecimento (ver
dadeiro), à realidade. A outra posição (opção) seria ideológi
ca, no sentido da falsa consciência. Essa posição desemboca
em contradições e está sustentada em bases hoje dificilmen
te defensáveis e muitas vezes é alvo de banalização. A mais
comum é
“o abandono apressado da lógica, como se democracia a subs
tituísse. Em vez do argumento cuidadoso, logicamente funda
do, prefere-se o discurso exacerbado, agressivo, demolidor,
sem dispor de nada mais sólido para colocar no lugár. No
extremo, pretende-se submeter lógica à democraciâ, fazendo
o erro oposto do positivismo, que submete democracia à lógi
ca. Falta apenas exigir que se vote, para decidir se lógica
ainda vale”. (Demo, 1998, p. 238)
Numa versão vulgar, essa posição advoga a possibilida
de da identificação de leis históricas (à semelhança das leis
da natureza) que indicam o proletariado como a classe res
ponsável pelo projeto de emancipação humana; a reconcilia
ção do homem com ele mesmo. Não há maiores problemas,
em princípio, em identificar um grupo, uma classe social
como responsável por um tal projeto. O problema se coloca
quando se o faz com a pretensão de que essa é uma neces
sidade histórica inelutável e portanto, “cientificamente
comprovável”. Entendo ser essa necessidade argumentável,
mas não pelo seu caráter inevitável e sim por razões políti
cas e éticas.
A idéia da prática como critério de verdade, muitas
vezes citada para indicar o entendimento de ciência adota
do, leva a um círculo vicioso. A vida concreta dos homens, é
..
claro, é nossa referência última. No entanto, essa prática
adquire significado humano quando por ele refletida. Portan
to, é a prática interpretada que é o critério de verdade. Para
tal interpretação concorrem (pré)conceitos que demandam
opções. Ou seja, estamos no plano de um círculo herme
nêutico.
Não obstante é preciso advertir:
“A negação que haja um fundamento a partir do qual os con
teúdos sociais obteriam um sentido preciso, pode ser facil
mente transformada na afirmação de que a sociedade carece
inteiramente de sentido; questionar a universalidade dos agen
tes da transformação histórica conduz, com freqüência, à pro
posição de que toda intervenção histórica é igualmente limita
da e sem esperança; e mostrar a opacidade dos processos de
representação é com frequência considerado como equivalen
te a negar que a representação seja em absoluto possível.”
(Laclau, 1996, p. 153)
A posição acima exposta adota a perspectiva da uni
dade metodológica no sentido de que determinada via per
mite um acesso privilegiado (verdadeiro) à realidade, negan
do assim, o relativismo e o pluralismo metodológico.
Outra posição vem-se delineando mais recentemente
no plano filosófico, científico e político-social e vai adquirin
do proeminência nos últimos anos, inclusive na Educação
Física. Trata-se de posições identificadas pelo jargão “pós-
moderno”; posições que parecem poder ser identificadas pela
idéia de superação do projeto e das crenças características
da modernidade, muitas delas já apresentadas no início do
texto.
Como mostrou Welsch (1988), o termo “pós-moderno”
tem significações muito distintas nos diferentes campos do
conhecimento e setores sociais: na arte, na filosofia, na socio
logia, na política, etc. Sem a possibilidade de perseguir o
processo de construção simbólica que envolve o tema da
134
pós-modernidade nesses diferentes campos, vou ater-me a
identificar alguns pontos que dizem diretamente respeito aos
objetivos da presente discussão.
Um deles é o antifundacionalismo que traz consigo a
discussão do relativismo e do pluralismo. Na Educação e na
Educação Física essa discussão acontece mais com base na
obra de M. Foucault, tendo como pano de fundo Nietzsche,
a partir dos quais a ciência é expressão da vontade de po
der, sendo que não há a possibilidade de qualquer discurso
situar-se fora de seu domínio.
O antifundacionalismo e o desconstrucionismo enten
dem que a pretensão da razão científica moderna é desme
surada e expressa a aspiração à totalidade que leva intrinse
camente a totalitarismos que massacram o particular e a
diferença, que pecam contra o pluralismo necessário para
que exista respeito a posições minoritárias e não-hege-
mônicas. Vários são os movimentos intelectuais que dão sus
tentação à posição antifundacionalista, entre eles situamos
os desenvolvimentos da lingüística e filosofia da linguagem
(virada lingüística) e as discussões no plano da filosofia da
ciência nas suas tentativas, frustradas, de encontrar um fun
damento último (não-metafísico) para a própria razão cien
tífica.
Colocada essa posição em termos genéricos, vou to
mar como referência a posição de um autor antifundacio
nalista importante, que é R. Rorty, com base na recepção
feita por E. Laclau (1996). Isso porque Rorty é um dos raros
antifundacionalistas que buscam pensar as conseqüências
dessa posição no plano da política. Isso adquire relevância
porque, conforme Laclau (1996), a adoção da posição que
advoga a indecidibilidade está afetando o sentido da ação
coletiva, está levando a um isolamento generalizado do
político.
Rorty se autodefine como liberal irônico (ironista libe
ral). Para Rorty, segundo Laclau (1996), liberais são aqueles
que pensam que a crueldade é o pior que se pode fazer. E
irônico é o tipo de pessoa que é capaz de assumir a contin
gência de suas crenças e desejos mais centrais - alguém tão historicista e nominalista a ponto de haver abandonado a
idéia de que essas crenças e desejos centrais remetam a algo
além do tempo e da oportunidade. Os liberais irônicos são
gente que inclui, entre os desejos impossíveis de fundamen
tar, sua própria esperança de que o sofrimento diminuirá, de que a humilhação dos seres humanos por outros seres humanos poderá cessar. Como podemos perceber, uma posição
francamente antifundacionalista.
Afirmar que a ordem social ou uma comunidade são
igualmente contingentes carece de fundamento último, na interpretação de Laclau. Rorty se manobraria numa dificul
dade, porque o vocabulário no qual a democracia liberal ha
via inicialmente se apresentado é o do racionalismo iluminista. Ele precisa, então, fazer um esforço para reformular o ideal
democrático de um modo não-racionalista e não-universalista.
Um dos pontos a ser enfrentado é o do relativismo, que é questionado com uma pergunta de Michael Sandel, citado por Laclau (1996): se as convicções próprias são ape
nas relativamente válidas, por que defendê-las resolutamen
te? Rorty tenta responder, buscando demonstrar que o pro
blema do relativismo é um falso problema. Descarta as noções de validade absoluta ou universal e diz que a única
alternativa é restringir a oposição entre formas racionais e
irracionais de persuasão aos confins de um jogo de lingua
gem dentro do qual é possível distinguir entre razões de uma crença e causas de uma crença que não são racionais.
A posição de Rorty leva a questionar a própria noção
de irracionalidade ou irracionalismo. A conseqüência é que a
questão da validade é essencialmente aberta e conversacional.
Mas, se, segundo Rorty, uma sociedade liberal é aquela que
se contenta em chamar verdadeiro ao resultado desses en
contros, qualquer que seja, como compatibilizá-la com uma
situação em que uma sociedade aceita um sistema de tabus
e a imposição de uma ordem social? Segundo Laclau (1996,
p. 191), o poeta e o revolucionário utópico, que são os
atores centrais na narrativa de Rorty, desempenham o papel
de protestar em nome da própria sociedade contra aqueles
aspectos da sociedade que são infiéis à sua própria imagem.
Laclau (1996) mesmo se incumbe de colocar duas ob-
jeções à utopia liberal de Rorty: a primeira é que o abando
no de uma fundamentação metafísica das sociedades libe
rais as privará de um cimento social indispensável para a
continuidade das instituições livres e a segunda é que não é possível, desde um ponto de vista psicológico, ser um liberal
irônico sem se ter, ao mesmo tempo, algumas crenças
metafísicas acerca da natureza dos seres humanos (p. 193).
Além dessas objeções, gostaria de colocar que a posi
ção do liberal irônico parece conduzir para uma aporia se
melhante a identificada por Habermas (1988a, O discurso
filosófico da modernidade) na teoria do poder de M. Foucault;
a de que o sofrimento imposto pelo poder não pode ser
percebido como tal (sofrimento) porque não há nada exterior
ao próprio poder que possa servir de referência (tudo é discurso). Como julgar o caráter revolucionário e utópico de
uma ação, se todas são contingentes, se não há fundamento
não-questionável, não-contingente, ou melhor, se não se deve buscar um fundamento universal para as diferentes posições?
Como lembrou Luchi (1999) em recente palestra, afirmar a
diferença pura e simplesmente é canonizar o fraco, é cano
nizar o forte e, acrescentaríamos, o tolerante e o intolerante,
o democrático e o autoritário, ou, com diz Brayner (1999), o
problema é que existem certos “diferentes” que, uma vez no
poder, gostariam de suprimir a própria diferença que os per
mitiu se manifestar. A tolerância deve tolerar o intolerante?
Parece também que Rorty não consegue evitar a contradi
ção performativa como colocada por Apel (1988): argumentar resolutamente a favor de uma posição relativista é (impli
citamente) reivindicar validade para sua posição em detri
mento de outras - eu não posso argumentar sem pretender
validade para minha posição.
De qualquer forma, a posição acima discutida tem-se
apresentado como uma denúncia do caráter conservador e
de .suas vinculações com o poder de princípios e idéias como
as de universalidade, unidade e totalidade, contrapondo a essas as de diversidade, diferença, particularidade e contin
gência; uma postura que nega qualquer possibilidade de
hierarquizar o conhecimento em mais ou menos verdadeiro
(portanto, rejeita a idéia de ideologia), propugnando um
pluralismo radical, com base no relativismo, e que de forma
conseqüente declara como inimiga a idéia de unidade/totali
dade, erigindo como princípio a diferença.
Uma terceira posição presente na educação física bra
sileira (e no CBCE) é aquela estribada na teoria da razão
comunicativa de J. Habermas. Algumas idéias centrais aqui são: (a) faz sentido e é necessário diferenciar racionalismo
de irracionalismo; (b) a verdade (científica) não deve ser en
tendida como correspondência entre conceito e fenômeno,
mas sim como a validade de uma tese proveniente de um
consenso obtido num diálogo discursivo isento de coerção
(verdade é uma pretensão de validade); (c) a discutibilidade
radical das asserções sobre o real como princípio básico; (d)
não há como prescindir de um fundamento universal (na
ciência/na razão e na política); e (e) a conjugação da quali
dade formal e política do conhecimento, trazendo para a
cena da cientificidade, além do compromisso lógico sistemá
tico, a democracia dos consensos possíveis e bem-discutidos (Demo, 1998).
^ Í 3 8 t _
Demo (1998), de quem passo a me valer para apre
sentar a posição habermasiana, discutindo o caráter intrínse
co do questionamento crítico e autocrítico, observa que esse
fenômeno é também intrinsecamente político, identificando
três marcas políticas nesse processo:
“A primeira marca política está na necessidade de diálogo,
pois uma crítica solitária não acarreta resposta, destruindo
desde logo a complementariedade dialogai advinda da
contracrítica. A ciência sem diálogo é um aborto. Seria ape
nas um narcisismo lógico. A segunda marca política está na
pretensão de validade, revelando que implica ambiência hu
mana questionadora. Strito sensu uma posição só pode ser
aceita por consenso, para não ser coação ou artimanha. A
terceira marca política encontra-se na comunicação intersub-
jetiva, imprimindo ao conhecimento a fraqueza e a grandeza
dos fenômenos históricos humanos. O consenso, de si, não
garante necessariamente nada. Basta relembrar a condenação
consensual de Galileu. Entretanto, para algo valer, o consen
so aceitável é aquele discutido abertamente, nunca o imposto
ou cabalado. A abertura irrestrita do questionamento continua
sendo a arma lógica e política mais decisiva para se obter,
rever, superar consensos”. (Demo, 1998, p. 235)
Os defensores dessa posição não abdicam da idéia de
uma unidade possível ou de um consenso possível, que está, porém, submetido ao princípio do permanente questiona
mento e autoquestionamento. A idéia aqui é de que os acor
dos em torno das regras que regem o campo devem ser
resultado de um processo comunicativo que busca os melhores argumentos, mas que os entende como necessariamente
provisórios (comunidade ilimitada de comunicação).
Considerações finais
Como podemos perceber, superada a questão da neu
tralidade do conhecimento científico, advogada pelas postu
ras positivistas, a relação do conhecimento com a política
(com a questão da democracia) passa a ser intrínseca. No
entanto, admitir isso não é o fim da jornada, é antes colocar-
se de frente a uma série ainda maior de dificuldades, se não
quisermos banalizar o problema. Inúmeras são as armadilhas
que precisam ser superadas, algumas das quais procuramos debater aqui.
No nosso entender, para uma comunidade como o
CBCE, essa discussão é plena de conseqüências. Colo-
cam-se questões como: em que bases essa comunidade se
sustenta, qual é o cimento dessa organização? Quais são as
bases de sua intervenção e quais as crenças compartilha
das4? Por que a pluralidade e as diferenças nela presentes
não determinam sua desintegração? Qual é a base de sua
unidade (unidade da diversidade, é claro!)? E mais: como
deve essa comunidade tratar do diferente, a partir de quais
princípios tratar a diversidade? Qual vinculação entre conhe
cimento e política defender e como chegar a essa decisão?
Como manter coerência entre os princípios (as regras) que
orientam a produção do conhecimento e os que estruturam
as relações sociais na sua comunidade? Como evitar a con
tradição entre a forma (os princípios que orientam) de cons
trução do conhecimento (a verdade científica) e a interven
ção social (a verdade política)?
Podemos perceber que as diferentes posições esboçadas
aqui dariam, quanto a alguns aspectos, respostas diferentes
a essas perguntas. Não vou-me alongar nesse aspecto, ape
nas delineá-las resumidamente (com riscos de simplificação):
a) uma posição é a de que essa comunidade deve-se orientar
na idéia de que há uma verdade cujo acesso está franqueado
aos que fazem a opção política a favor de determinada clas
se social; (b) outra posição entende poder prescindir de uma
4 Uma resposta a essa questão com base na teoria de P. Bourdieu pode ser observada no estudo de Paiva (1994).
idéia fundamentadora, que confira unidade e oriente a co
munidade; a base é contingente e o mais importante é con
viver com a diferença e a indecidibilidade sobre a verdade; e
(c) uma posição que vai-se orientar pela idéia colocada no
horizonte de que deve valer o melhor argumento, que só
pode ser identificado, só terá validade, se construído por
uma comunidade ilimitada de comunicação.
Mas nossas reflexões aqui têm como alvo central as
três últimas questões, as que envolvem diretamente a rela
ção epistemologia e política. Minha posição pessoal a res
peito se aproxima dos caminhos apontados por Habermas,
embora concorde com uma série de críticas a ele endereçadas
e perceba seus impasses.
A questão central está nas conseqüências do relativismo
da verdade para a construção da democracia, da necessida
de do universal (ou não) para fundamentar a democracia.
Junto com Laclau (1996) entendo que o abandono total de
qualquer tipo de universalismo abala os fundamentos de uma
sociedade democrática. A proposta habermasiana (e de Apel)
é a pragmática universal que está radicada na linguagem -
na visão de uma comunicação livre de coerção. Mas, para
Laclau (1996), a própria idéia de universalidade é contin
gente/histórica. E preciso abraçá-la como base para a de
mocracia, mas sem abdicar da idéia de que o próprio univer
salismo é contingente. Na perspectiva habermasiana, a pró
pria comunidade, a partir desse princípio, define por con
senso as normar às quais se submeteria para decidir sobre os
discursos válidos (verdadeiros) e sobre como intervir. No en
tanto, as normas definidas por consenso, na perspectiva ado
tada, são provisórias e podem por exemplo, não respeitar o
diferente. Estaria esta posição, a habermasiana, subestimando
o elemento de coerção, de força (o poder) nas relações co
municativas? Uma resposta seria a de que as normas mu
dam, mas não muda o respeito à democracia. Mas se ela é
também contingente, também histórica, porque devemos
respeitá-la? Não há critério externo ao processo de sua cons
trução. Para Habermas o que a fundamenta é a pragmática
universal, a contradição performativa. Estamos num círculo
ou tratando com a auto-referencialidade. E o que aparece
em Laclau, quando diz:
“Toda teoria acerca do poder em uma sociedade democrática
tem que ser uma teoria acerca das formas de poder que são
compatíveis com a democracia, não uma teoria da eliminação
do poder”. (1996, p. 200)
A concepção de democracia que emana dessas refle
xões é a que tem por base a auto-referência. Para Maturana
(1998), a tarefa da democracia é criar um domínio de convi
vência no qual a pretensão de acesso privilegiado a uma
verdade absoluta desvanece. Ou, como afirma Laclau (1996):
“A condição de uma sociedade democrática é seu caráter
constitutivamente incompleto - o que implica, desde logo, a
impossibilidade de um fundamento racional último. Como
podemos ver, esta des-fundação escapa à perversa dicotomia
modernidade - nihilismo: ela nos enfrenta, não com a alter
nativa presença-ausência de um fundamento, e sim, com a
busca sem fim de algo que deve dar um valor positivo à sua
própria impossibilidade”, (p. 177)
Mas, esse não é um fundamento com pretensão uni
versal?
Bem, com qual concepção da relação entre conheci
mento e democracia queremos (devemos) operar? E preciso
construir uma unidade (ética) como comunidade? Ou essa é
uma questão irrelevante e é ainda uma aspiração metafísica?
Com a palavra a comunidade (ilimitada) de comunicação.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Concordamos com Betti (1996), que as posições so
bre a identidade epistemológica da Educação Física, na dis
cussão brasileira, podem ser resumidas e classificadas em
dois grandes grupos: a) aqueles que entendem que a própria
Educação Física é uma ciência ou que no seu âmbito se
construiu/constituiu uma nova ciência, denominada às vezes
de Ciência da Motricidade Humana e outras de Ciência do
Movimento Humano, ou ainda Cinesiologia e também Ciên
cia do Esporte; e b) aqueles que a entendem como uma
prática pedagógica, como uma prática social de intervenção
imediata e que enquanto prática humana necessita ser teori
camente elaborada. Como aquele autor já indica, situamo-
nos no segundo grupo. Entendemos ter demonstrado que
sob o prisma epistemológico não existe a possibilidade de
fundamentar a existência de uma nova ciência nesse cam
po, ou, ainda, que não existe um novo objeto científico. No
entanto, existe também um forte movimento na área, que,
como estratégia de alcançar legitimidade no campo acadê
mico, começa a denominá-la de ciência e a organizar espa
ços de produção e veiculação do conhecimento a partir des
sa idéia. Como a Educação Física pode ficar órfã nesse pro
cesso e também por razões epistemológicas expostas, de
fendemos a posição política de envidar esforços para cons
truir teoria da Educação Física, tomando-a como prática pe
dagógica, ou seja, o debate/embate é inextricavelmente
epistemológico e político.
Quando falamos em teoria da Educação Física não in
sistimos na sua adjetivação como uma teoria científica. Isso
não significa que tenhamos abandonado a pretensão de
racionalidade para essa teoria; muito mais, significa alertar
para a necessidade de elucidar o conceito de racionalidade
científica que é utilizado no discurso e na prática, bem como,
para as dificuldades de tal empreendimento. O debate
epistemológico atual parece indicar muito mais, por um lado,
no sentido da superação da racionalidade científica clássica
ou predominante (originada no plano da física e adotada
pelas ciências naturais e também pelo positivismo como
modelo para as ciências sociais e humanas) e, por outro, no
sentido de certo relativismo que desloca a racionalidade cien
tífica do pedestal da racionalidade enquanto tal e a coloca
no mesmo nível de outras “racionalidades” ou discursos acer
ca da realidade. As dificuldades e os movimentos aludidos
parecem indicar prudência no que diz respeito à reivindica
ção de adjetivar uma teoria da Educação Física de científica,
embora indique também prudência quanto à propensão de
abandonar precocemente a pretensão da fundamentação
racional da prática. Nem consumar o casamento nem o
divórcio. Indicamos nos diferentes capítulos, mas apenas in
dicamos, a tentativa de J. Habermas de superar alguns des
ses impasses com sua teoria da razão comunicativa, como
alternativa para orientar uma possível teoria da prática, mes
mo porque, uma das questões que tal teoria necessita en
frentar é a relação entre o fático e o normativo, questão que
é central no pensamento habermasiano.
Para Chauí (1995, p. 251), uma teoria científica
144'!
“é um sistema ordenado e coerente de proposições ou enun
ciados baseados em um pequeno número de princípios, cuja
finalidade é descrever, explicar e prever do modo mais com
pleto possível um conjunto de fenômenos. A teoria científica
permite que uma multiplicidade empírica de fatos aparente
mente muito diferentes sejam compreendidos como semelhan
tes e submetidos às mesmas leis; e vice-versa, permite com
preender por que fatos aparentemente semelhantes são dife
rentes e submetidos a leis diferentes”.
Podemos observar nessa definição de teoria científica
o seu caráter “descritivo” e não prescritivo. Não ignoro o
fato de que as descrições podem assumir caráter prescritivo
e normativo, como também não ignoro o quanto as descri
ções são condicionadas histórica e ideologicamente. No en
tanto, apesar disso, nos parece que, de uma descrição de
como a realidade é não deriva, necessária e logicamente,
nenhuma norma de ação, embora essas possam ou devam
ser definidas a partir de uma análise atenta da realidade.
Construir uma “ponte” entre essas duas dimensões faz parte
do projeto habermasiano. Esse aspecto é importante por
que, enquanto teoria de uma prática de intervenção, a teo
ria da Educação Física é necessariamente prescritiva ou
normativa.
Tomado nessa perspectiva o teorizar em Educação Fí
sica está de frente a vários desafios. Entre eles destacamos a
necessidade de articular organicamente os conhecimentos
produzidos acerca do movimentar-se humano pelas diferen
tes disciplinas científicas; articular o conhecimento da reali
dade com uma visão prospectiva da realidade, portanto, com
uma visão de homem, mundo e sociedade - articular descri
ção com prescrição; articular o saber conceituai com o saber
prático.
Mas, é bom desde logo refletir sobre as possibilidades
e as limitações de uma teoria da e para a prática. Não
vamos retomar a discussão dos limites da racionalidade cien
tífica para tal intento. Muito mais, para finalizar, gostaría
mos de abordar os limites da teoria, num sentido lato, en
quanto organizadora e orientadora da prática pedagógica em Educação Física.
As teorias científicas, no âmbito das ciências da natu
reza (e muitas vezes também nas ciências sociais e huma
nas), à medida que retratam o funcionamento da realidade,
das leis que regem o seu movimento, permitem prever o seu
comportamento e, conseqüentemente, fornecem elementos
que orientam uma intervenção eficiente - o desenvolvimen
to de uma tecnologia. A ciência é, aí, um instrumento de
poder; amplia nossa capacidade de intervir na realidade.
São teorias desse tipo as teorias da aprendizagem, da fisio
logia do esforço, etc. Aliás, uma certa vertente educacional
pretendeu orientar-se por esses princípios (pedagogia tecni-
cista). Entender uma teoria da educação nessa perspectiva é
um reducionismo com conseqüências políticas bem-conheci-
das de todos nós. Assim, é preciso considerar que uma teo
ria de uma prática pedagógica não pode se resumir à discus
são dos meios eficientes para sua ação, mas, sobretudo,
precisa refletir sobre os fins, sobre o sentido dessa ação - os
meios lhe são subordinados.
Por outro lado, é comum perceber no âmbito da Edu
cação Física o entendimento de que a teoria deve ter como
tarefa primordial oferecer um conjunto de prescrições, ou
seja, oferecer uma tecnologia (ações eficientes) - aquilo que
convencionou-se chamar de “receitas”. Entendo ser essa uma
expectativa equivocada por várias razões, entre essas as de
que as receitas (dos outros) desobrigam os seus utilizadores
da tarefa de pensar, de criar. Não obstante, toda teoria que
não se apresenta na forma de uma tecnologia imediatamen
te consumível, tende a ser rotulada de “filosófica” (em senti
do pejorativo, distante da realidade). Ora, qualquer teoria,
no plano pedagógico, por mais que forneça indicadores para
a prática, não poderá nunca apresentar um conjunto de pres
crições de como agir do mesmo modo como um prospecto
indica os passos da montagem de uma mesa ou de uma
máquina. Uma teoria pedagógica não deve ser uma tecnologia
(Como dito anteriormente, isso aconteceu e acontece ainda
hoje). A relação pedagógica é (deve ser!) uma relação entre
sujeitos; deve ser uma relação criativa e criadora, não pode
ser reduzida a uma téchne-, ela deve ser sempre também
poíesis. A teoria não substitui a prática e vice-versa; cada
qual tem sua lógica, lógicas essas que precisam fecundar-se
mutuamente, para uma teoria da prática e para uma práti
ca teorizada.
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alter Bracht nasceu em Toledo
(PR) em 1957. Realizou seu
curso de graduação em
Educação Física na Universidade
Federal do Paraná. Na mesma
un ive rs idade rea l i zou curso
de especialização em treinamento
desportivo. Obteve o grau de mestre em
Educação Física na Universidade
Federal de Santa M aria (RS)
e doutorou-se na Universidade
de Oldenburg (Alemanha). Foi docente
da Universidade Estadual de Maringá e
da Universidade Federal de Santa
Maria e atualmente é professor do
Centro de Educação Física e Desportos
da Universidade Federal do Espírito
Santo onde íntegra, também,
o Laboratório de Estudos em Educação
Física (LESEF).
É autor dos livros Educação Física
e aprendizagem social (Magister, 1992)
e Sociologia crítica do esporte; uma
introdução (CEFD/UFES, 1997) e co-
autor de Metodologia do ensino
da educação física (Cortez, 1992). Foi
presidente do Colégio Brasileiro
de Ciências do Esporte por duas gestões
(1991/93 e 1993/95).
Educação Física deve tornar-se uma ciêncía!(!)
A esta, propõem-se os nomes de: Cinesiologia,
Cíência(s) do Movimento Humano, Ciência
da Motricidade Humana e Ciência(s) do Esporte.
Este "casamento" foi indicado, por algum tempo, para que
a Educação Física lograsse legitimidade enquanto área
do conhecimento, e, ao mesmo tempo, superasse sua crise
de identidade. Embora tivesse chegado a soar a marcha
nupcial, para o bem ou para o mal, o "casamento" não
concretizou-se. Não que faltasse torcida. No entanto, parece
que mais recentemente, também para a área da Educação
Física a ciência deixou de ser um "partido" inquestionável.
O objeto de discussão deste livro são os detalhes
e as conseqüências que este namoro trouxe e vem trazendoi
para a Educação Física.