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Educação Musical: do sentido à compreensão
Elen Pereira Escola de Música Walkíria Lima
Amapá [email protected]
Resumo:
A necessidade de atender alunos em iniciação musical requer um novo olhar sobre as práticas que permeiam o ensino da música em conservatórios e escolas especializadas. Nesse sentido, a prática docente em educação musical deve ser repensada enquanto processo capaz de oportunizar aos discentes uma nova visão sobre a percepção musical, vinculada à sua percepção de mundo, de forma que a música possa ser, primeiramente apreendida, para, posteriormente ser compreendida e decodificada como saber sistematizado. Enquanto forma de comunicação que transcende os limites do que se conhece como comunicação de fato, a música deve ser concebida como um conhecimento inerente à experiência emocional e orgânica, relacionada aos modos de viver, morrer e sentir de cada um, ou seja, uma possibilidade, antes de tudo, da percepção sensitiva que se materializa na vivência corporal e subjetiva que, indo além dos limites da razão, pode ser expressa também por símbolos sistematizados como qualquer linguagem propriamente dita. Dessa forma, torna-se pertinente mostrar que é possível, numa prática docente que vise uma melhor compreensão do aluno, buscar dentro de sua própria experiência de vida, argumentos concretos que o levem a uma aprendizagem satisfatória, dentro do contexto musical.
A evolução das formas de comunicação em uma sociedade, dentre as quais se
inclui a música como processo desenvolvido a partir das manifestações sonoras
praticadas pelo homem, gera ainda hoje, inúmeros questionamentos e discursos
controversos. Alguns autores inferem o caráter discursivo como condição necessária à
existência de qualquer linguagem, enquanto outros compreendem como linguagem
qualquer possibilidade de expressar idéias e sentimentos, ou seja, um sistema de
inserção de múltiplas relações estabelecidas entre os homens, no âmbito de suas
interações subjetivas e intersubjetivas, capazes de originar resultados comunicativos.
A comunicação transcende os limites da linguagem verbal, visto que o homem
é capaz de instituir diferentes modalidades que ampliam, com singularidade,
possibilidades lógicas de significações inadequadas à linguagem discursiva; pois,
utilizando-se de tons, cores e palavras, a música, a pintura e a poesia também
exteriorizam pensamentos, antes isolados na mente humana.
...os limites da linguagem não são os limites últimos da experiência, e coisas inacessíveis à linguagem podem ter suas próprias formas de concepção, isto é, seus próprios dispositivos simbólicos. Tais formas não-discursivas, carregadas de possibilidades lógicas de significado, fundamentam a significação da música; e seu reconhecimento amplia nossa epistemologia a ponto de incluir não apenas a semântica da ciência, mas uma séria filosofia da arte (LANGER; 1989; p.261).
Como meio de transmissão de mensagens, a música está condicionada a uma
perspectiva semiológica e centralizada no componente temporal, enfatizando elementos
subjetivos e intersubjetivos. Enquanto modo de comunicação, ela desperta sentimentos,
afeições e até emoções, porém, esse processo ocorre de maneira ampla, imprecisa, não
particularizada, mas peculiar a cada indivíduo, segundo sua visão subjetiva. A
simbologia musical sistematizada em signos criados pelo homem, é passível de
compreensão em formas de expressão e conotações que dependem tanto da imagem
sonora e sentido proposto pelo músico, quanto da relação estabelecida entre esta
realidade e a impressão psíquica do próprio ouvinte.
Embora a linguagem tenha um caráter eminentemente discursivo, as formas de
apreensão sensorial são inadequadas à compreensão de um conhecimento lógico
expresso pela linguagem verbal, visto que a experiência sensorial é caracterizada como
um processo de formulação, pois, um objeto não é simplesmente um dado, mas uma
forma de construção sensitiva experimentada individualmente, segundo a vivência
subjetiva de cada um, não sendo passível de cálculos matemáticos como se propõe a
lingüística aos fenômenos observáveis na linguagem propriamente dita (LANGER;
1989; p. 100).
A impressão psíquica mencionada por Saussure pode ser estendida, pois é
possível a existência de uma relação íntima entre a simbologia musical e o sentido como
fim proposto pelo músico, ou seja, aquilo que ele denomina imagem sonora ou espelho
sonoro desse sentido. Para isso, é necessário, que a apreciação da essência musical,
estabeleça uma relação entre essa imagem e o sentido a ela vinculado.
É possível considerar a coexistência de elementos interrelacionados e, ao
mesmo tempo, independentes e indiferentes uns aos outros; pois, é inegável a existência
concreta da universalidade simbólica musical convencionada entre os músicos, mas
dependente da intervenção e intenção destes para transcender sua concretude revelada
na impressão psíquica peculiar de cada ouvinte que apreende a música ao ser tocada.
“Desta forma, a simbologia musical desempenharia o papel essencial de estabelecer um
elo entre a realidade sonora e a nossa mente imaginativa” (SHURMANN; 1989; p. 156).
A música é elo efetivo entre o mental e o corporal, o intelectual e o afetivo,
uma linguagem não-verbalizável, além do visível, que transcende os limites defensivos
da consciência e da própria linguagem verbal; reveladora da estrutura oculta da própria
matéria, no que ela tem de animado; pois, enquanto “ordem que se constrói de sons, em
perpétua aparição e desaparição, escapa à esfera tangível e se presta à identificação com
uma outra ordem do real: isso faz com que se tenha atribuído a ela, nas mais diferentes
culturas, as próprias propriedades do espírito” (WISNIK; 1989; p.25).
Livre de configuração semântica, a música ultrapassa os limites significativos
da linguagem discursiva, sendo, portanto, superior a esta por ir além da verbalização,
atingindo o âmago da essência humana, elevando o homem ao infinito, a partir da
liberdade imaginativa dos sentidos em relação às próprias concepções conceituais
convencionadas socialmente; que, enquanto meio condutor do homem ao
compartilhamento de emoções e forma de acesso ao mundo subjetivo de outrem,
possibilita a fluência de sensações.
A comunicação transforma-nos em testemunhas de um mundo único, como a sinergia de nossos olhos os detém numa única coisa. Mas tanto num caso quanto no outro, a certeza, é inelutável, permanece inteiramente obscura; podemos vivê-la, não podemos nem pensá-la, nem formulá-la, nem erigi-la em tese. Toda tentativa de elucidação traz-nos de volta aos dilemas (MERLEAU-PONTY; 1999; p.22-23).
Na música existem duas faces simultaneamente independentes e
interdependentes. Na primeira face, a percepção sensorial dispensa a representação e a
compreensão dos signos convencionados na linguagem musical; sendo que na segunda,
o domínio da técnica relacionado à harmonia e ao conhecimento da teoria musical é
condição para a organização de um sistema lingüístico estruturado. Pode-se
compreender que a música, embora tenha uma organização sistematizada do fenômeno
sonoro, pode também ser audível e perceptível sensorialmente, ou seja, sua apreciação
pelo ouvinte independe do conhecimento de seu sistema gráfico.
Enquanto arte, a música desperta sensações adormecidas no íntimo do ser
humano, que não podem ser comunicadas ou descritas de maneira discursiva. Então,
como linguagem, ela pode comunicar sensações expressas por quem a executa, assim
como as desperta no ouvinte que a percebe sensorialmente. Entretanto, apesar de fluir os
mesmos sentimentos em pessoas diferentes, a percepção sensorial é única, oriunda da
impressão psíquica de cada ouvinte, peculiaridade decorrente da liberdade que se
adquire no decurso de uma vivência individualizada.
Nesse sentido, sua conotação individual, com associações lógicas irisadas de
afeto, ritmo corporal e sonho, porém, preocupada com a riqueza de formulações para
seu próprio conhecimento sem palavras, um conhecimento da experiência emocional e
orgânica, de impulso vital, equilíbrio, conflito, os modos de viver, morrer e sentir de
cada um. “A música é reveladora, lá onde as palavras são obscurecedoras, porque lhe é
permitido ter não apenas um conteúdo, mas um jogo transiente de conteúdos. Ela pode
articular sentimentos sem ficar casada com eles” (LANGER; 1989; p.141).
Não se pode ignorar o caráter misterioso da música enquanto forma de
comunicação capaz de despontar como o alvorecer, iluminando a efemeridade dos
conteúdos mais íntimos presentes na mente e inerentes ao entendimento humano; caso
contrário, na obscuridade vocabular, ter-se-á apenas um conteúdo surgido da
significação convencional, permanente e, em alguns casos, ratificadas em conotações
imutáveis.
É indiscutível a influência da linguagem musical nas sensações anímicas
inerentes ao homem, pois, sendo capaz de despertar e expressar o mais íntimo
sentimento humano adormecido, concretiza-se no puro gozo de elevar o homem a um
êxtase sensorial inexplicável e intraduzível por outra forma de linguagem ajuizada pela
razão ou até mesmo pela cultura, onde “o eu se reconhece na música, por meio da
temporalidade, em sua essência mais simples e profunda; a tarefa da música, portanto,
não é expressar sentimentos, mas revela à alma sua identidade, graças à afinidade entre
sua estrutura e a da alma” (FUBINI, apud FONTERRADA; 2005; p.62).
As formas de apreensão sensorial são esposadas num processo de
aprendizagem e transformação, inerente à própria condição de existência do homem
enquanto ‘ser’ no mundo, que se dá mediante uma interação recíproca entre todos os
seus registros sensoriais capazes de materializar uma resposta em relação a determinado
objeto epistemológico, o que dificilmente acontecerá de maneira isolada ou repetitiva.
Abstraído de sua condição de ser no mundo para atingir a objetividade, o olhar/escutar puro não procura uma coisa do mundo, mas um objeto epistemológico, circunscrito, determinado e, às vezes, pré-fabricado no contexto de uma pesquisa à qual ele deve dar uma resposta precisa a uma questão também precisa. Entre ver/ouvir e
saber, há uma reciprocidade: é preciso ouvir/ver para saber mas também é preciso saber para ouvir/ver (CASNOK; 2003; p.127).
Como um dos requisitos essenciais de observação para uma iniciação musical,
a percepção destaca-se como liame entre as experiências sensitivas e não sensitivas,
sendo, portanto, ponto de encontro entre o indivíduo, enquanto ser único em sua
subjetividade, e o mundo exterior, captado por intermédio de sua vivência.
Na docência em educação musical, especialmente com alunos iniciantes, é
observável certa dificuldade na percepção auditiva de semelhanças e diferenças sonoras,
quer sejam de alturas entre os sons ou na organização rítmica que compõe uma melodia.
Considerando-se o aspecto temporal e o caráter abstrato da linguagem musical, que
possibilitam variações de execução e de interpretação para uma mesma composição,
torna-se difícil estabelecer um único significado ou valoração singular para essa
composição.
Diante disso, a trama expressiva do sensível enquanto vivência inerente ao ser
humano não se submete ao saber científico, devido a relação da percepção aos aspectos
sinestésicos de experiências sensíveis congênitas ao próprio homem; pois, não se pode
estabelecer sistematicamente formas de organização corporal ou apreender o próprio
mundo partindo de conceito e conteúdos que pré-determinam o que se deve ver, ouvir e
sentir. Assim:
A percepção sinestésica é a regra, e, se não percebemos isso, é porque o saber científico desloca a experiência e porque desaprendemos a ver, a ouvir e, em geral, a sentir, para deduzir de nossa organização corporal e do mundo tal como o concebe o físico aquilo que devemos ver, ouvir e sentir. (MERLEAU-PONTY; 1994; p. 308).
Para pessoas em iniciação musical, essa dificuldade se dá em decorrência de
associações que caracterizem e materializem a percepção sonora. Isso demonstra a
necessidade de, antecipadamente, ter domínio do código convencionado (notação
musical) para, posteriormente, estabelecer semelhanças ou diferenças entre parâmetros
sonoros simplesmente audíveis. Tal situação não seria possível, pois, mesmo com a
pretensão de uniformizar a confecção de instrumentos com padrões de medida
estabelecidos e o uso de materiais específicos, não se pode garantir que dois
instrumentos, alcançarão exatamente a mesma sonoridade.
Cada objeto sonoro está envolvido por um ectoplasma, que chamamos de envelope sonoro. Dentro, há uma existência vibrante, que podemos dividir em vários estágios de vida bioacústica. Aos diferentes estágios podem ser dados nomes diferentes, dependendo da maneira como se deseja observá-lo, mas as divisões do envelope permanecem mais ou menos as mesmas (SCHAFER; 1991; p.180).
Nesse sentido, deve-se analisar os aspectos enfatizados para estimular a
percepção auditiva, e qual compreensão de percepção musical é compartilhada entre
docentes e discentes das instituições que ensinam música, especialmente as que
oferecem cursos profissionalizantes na área (conservatórios). Assim surgem questões:
Os discentes de tais instituições são estimulados a um pensamento auditivo que
proporcione a percepção musical de determinada obra, independentemente do
conhecimento científico ou conceito teórico pré-estabelecido? Será que seus egressos
tornam-se músicos profissionais capazes de decodificar uma partitura através do
domínio técnico de um instrumento sem sequer percebê-la auditivamente de forma
atenta?
O que geralmente se observa é que o ensino da música, e a prática musical
difundida nas escolas especializadas conduz a uma surdez ingênua e inconsciente, na
qual o músico desenvolve a habilidade de leitura da grafia musical relacionada apenas à
organização das notas no pentagrama, sem uma compreensão e percepção auditiva da
altura que é inerente à ordem sistemática da notação musical, uma vez que a ocorrência
do fenômeno sonoro se dá na propagação do som, isto é, no momento em que ele é
produzido e não simplesmente na apreciação visual de determinada partitura que apenas
contenha os elementos musicais.
Entre todos os indivíduos assim unidos pela linguagem, estabelecer-se-á uma espécie de meio-termo, todos reproduzirão – não exatamente, sem dúvida, mas aproximadamente – os mesmos signos unidos aos mesmos conceitos ... Quando ouvimos falar uma língua que desconhecemos, percebemos bem os sons, mas devido à nossa incompreensão, ficamos alheios ao fato social (Saussure; 1978; p.21).
Na linguagem musical, ainda que transiente entre a diversidade e a imprecisão
inerentes às formas de execução do intérprete e leitura dos ouvintes, não se pode olvidar
o caráter unificador estabelecido pelos signos que materializam o fazer musical em
qualquer lugar e a qualquer tempo, na medida em que os sons e a melodia de
determinada obra podem ser perfeitamente percebidos sensivelmente, independentes da
compreensão dos signos e conceitos musicais pré-estabelecidos.
Referências Bibliográficas
CAZNOK, Yara B. Música: entre o audível e o visível. São Paulo: Ed. UNESP, 2003. FONTERRADA, M. T. de O. De tramas e fios: um ensaio sobre música e educação. São Paulo: Editora UNESP, 2005. LANGER, Susanne K. Filosofia em nova chave. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1989. MERLEAU-PONTY, M. Fenomenologia da percepção. São Paulo: Editora Martins Fontes, 1994. ___________________. O visível e o invisível. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1999. SAUSSURRE, F. de. Curso de lingüística geral. São Paulo: Editora Cultrix, 1999. SCHAFER, R. Murray. O ouvido pensante. São Paulo: Editora UNESP, 1991. SCHURMANN, E. F. A música como linguagem: uma abordagem histórica. São Paulo: Editora Brasiliense, 1989. WISNIK, J. M. O som e o sentido: uma outra história das músicas. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.