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COLEÇÃO META Peter Buckman (org.) EDUCAÇÃO SEM ESCOLAS Tradução de ÁLVARO CABRAL CP eldorado

educação sem escolas

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COLEÇÃO META

Peter Buckman (org.)

EDUCAÇÃO SEM ESCOLAS

Tradução de

ÁLVARO CABRAL

CP eldorado

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A S O C I E D A D E DESESCOLARIZADA

IVAN ILLICH

Durante gerações, tentamos fazer do mundo um lugar melhor para se viver, proporcionando mais e melhor escola-ridade; mas, até agora, esse esforço tem fracassadq^Em vez disso, o que aprendemos foi que obrigar todas as crianças a galgar uma escada educacional em aberto não pode promover a igualdade mas, pelo contrário, favorece o indivíduo que inicia a subida mais cedo, que é mais saudável ou melhor preparado; que a instrução obrigatória aniquila, na maioria das pessoas, a vontade de aprendizagem independente; e que o saber tratado como uma mercadoria, devidamente empa-cotada para entrega e aceita como propriedade privada, uma vez adquirida, deve ser sempre escasso.

Eu acredito que a desinstitucionalização da escola tor-nou-se inevitável e que esse final de uma ilusão deveria encher-nos de esperança. Mas também creio que o fim da "era da escolarização" poderia dar início à época da escola global, que só se distinguiria no nome de um manicômio global ou de uma prisão global, na medida em que educação, correção e ajustamento se tornem sinônimos. Acredito, pois, que o colapso da escola nos força a olhar para além da sua extinção iminente e a enfrentar alternativas fundamentais em educaçãoy^Podemos trabalhar para novos e terríveis disposi-tivos educacionais que nos ensinam a respeito de um mundo que está progressivamente ficando mais opaco e proibitivo

A SOCIEDADE DESESCOLARIZADA 23 para o homem, ou podemos estabelecer as condições para uma nova era em que a tecnologia seria utilizada para tornar a sociedade mais simples e transparente, de modo que todos os homens possam voltar, uma vez mais, a conhecer os fatos e usar os instrumentos que moldam suas vidas. Em resumo, podemos desinstitucionalizar as escolas ou podemos descola-rizar a cultura.^

O currículo oculto das escolas

Para vermos com clareza as alternativas com que nos deparamosy^Óevemos distinguir primeiro a aprendizagem da escolaridade, o que significa separar a meta humanística do professor do impacto da estrutura invariável da escola. Essa estrutura oculta constitui um curso de instrução que perma-nece eternamente além do controle do professor ou da sua junta escolar. Ela transmite, indelevelmente, a mensagem de que só através da escolaridade pode um_ indivíduo preparar-se para a vida adulta na sociedade; que tudo o que não for ensinado na escola é de escasso valor; e que tudo o que é aprendido fora da escola não vaie a pena ser sabido. Chamo isso de currículo oculto da escolaridade porque constitui a estrutura inalterável do sistema, dentro da qual são feitas todas as mudanças no currículo.

O currículo oculto é sempre o mesmo, independente-mente de escola ou lugar. Exige que todas as crianças de uma certa idade se reúnam em grupos de cerca de trinta, sob a autoridade de um professor diplomado, durante umas 500, 1000 ou mais horas por ano. Não importa se o currículo está planejado para ensinar os princípios do facismo, liberalismo, catolicismo, socialismo ou libertação, desde que a instituição se arrogue a autoridade para definir que atividades consti-tuem a "educação" legítima. Não importa se a finalidade da escola é produzir qidadãos soviéticos ou norte-americamos, mecânicos ou doutores, na medida em que ninguém pode

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ser um cidadão ou um doutor legítimo a menos que tenha um diploma. Não faz diferença alguma se todas as reuniões ocorrem no mesmo lugar, desde que, de um modo ou de outro, sejam entendidas como presença: cortar cana é traba-lho para cortadores de cana, a correção é para prisioneiros e parte do currículo é para estudantes.

// O que importa, no currículo oculto, é que os estudantes aprendem que a educação ó valiosa quando adquirida na escola, através de um processo gradual de consumo; que o grau de êxito de que o indivíduo gozará na sociedade de-pende do montante de aprendizagem que ele consomeve que a aprendizagem sobre o mundo é mais valiosa do qiíe a aprendizagem do mundo. A imposição desse currículo oculto, dentro de um programa educacional, distingue a escolari-dade de outras formas de educação planejada. Todos os sis-temas escolares do mundo têm características comuns em relação ao seu produto institucional — e este é o resultado do currículo oculto comum de todas as escolas.

Os reformadores educacionais que aceitam a idéia de que as escolas fracassaram dividem-se em três grupos. Os mais respeitáveis são, certamente, os grandes mestres de al-quimia que prometem melhores escolas — sendo alquimistas aqueles que desejam refinar os elementos básicos conduzindo seus espíritos depurados através de doze fases sucessivas de racionalismo iluminista, de modo que, para seu próprio bem e benefício de todo o mundo, esses elementos possam ser transmudados em ouro. Os reformadores mais atraentes são aqueles mágicos populares que prometem converter toda e qualquer cozinha num laboratório alquímico. Os mais sinistros são os jovos .Macons do _UnÍYerso, c ue qucrcrn transformar o mundo inteiro num giRantesqp templo d& aprendizagem-

Notáveis entre os mestres atuais da alquimia são certos diretores de pesquisas, empregados ou patrocinados pelas grandes Fundações, os quais acreditam que as escolas, se puderem, de um modo ou de outro, ser melhoradas, também poderão tomar-se economicamente mais viáveis do que as

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que estão atualmente em apuros e, simultaneamente, poderão vender uma quantidade maior de serviços. Os que estão prin-cipalmente preocupados com o currículo afirmam que ele é obsoleto ou irrelevante. De modo que o currículo é abarro-tado de novos cursos "enlatados' sobre Cultura Africana, Imperialismo Norte-Americano, Womeris Lib, Poluição ou Sociedade de Consumo. A aprendizagem passiva está errada (e está, de fato), de modo que permitimos graciosamente aos estudantes que decidam o quê e como querem ser ensinados. As escolas são prisões. Portanto, os diretores estão autoriza-dos a aprovar aulas ao ar livre (teach-outs), transportando as mesas da escola para uma rua do Harlem isolada por cordas. O sensitivity training virou moda. Então, importa-se a terapia de grupo para a sala de aula. A escola, que se supunha ter a finalidade de ensinar tudo a todos, converteu-se agora em todas as coisas para todas as crianças.

Outros críticos enfatizam que as escolas fazem um uso ineficaz da ciência moderna. Alguns administrariam drogas para tornar mais fácil ao professor mudar o comportamento da criança. Outros transformariam a escola num estádio para jogos educativos. Ainda outros, eletrificariam a sala de aula. Se forem discípulos simplistas de McLuhan, substituirão o quadro negro e os compêndios por happenings, com o apoio de múltiplos meios de comunicação audiovisual; se seguirem Skinner, afirmarão estar aptos a modificar o comportamento mais eficientemente do que qualquer mestre-escola antiquado poderá fazer na sala de aula.

Muitas dessas mudanças têm, é claro, alguns bons efeitos. As escolas experimentais têm menos gazeteiros. Os pais têm uma sensação de maior participação num distrito escolar descentralizado. Os alunos que são destacados pelo seu pro-fessor para um aprendizado resultam, freqüentemente, mais competentes do que os seus colegas que permanecem na sala de aula. Algumas crianças melhoram, de fato, os seus conhe-cimentos de espanhol no laboratório de línguas, porque pre-ferem manejar os botões de um toca-fitas do que conversar

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com seus colegas portorriquenhos. Entretanto, todos esses progressos atuam dentro de limites previsivelmente estreitos, visto que deixam intato o currículo oculto da escola. Alguns reformadores gostariam de se desvencilhar do currículo oculto das escolas públicas mas raramente têm êxito. As escolas livres geram uma miragem de liberdade, muito embora a cadeia de freqüência seja muitas vezes interrompida por lon-gos interregnos de desperdício de tempo e de vadiagem. A freqüência através da sedução inculca a necessidade d© trata-mento educacional mais persuasivaanente do que a freqüência relutante imposta por um fiscal escolar. Os professores toleran-tes numa sala abarrotada podem facilmente tornar seus alunos impotentes para sobreviverem, uma vez que deixem a escola.

A aprendizagem dessas escolas reduz-se, freqüentemente, à aquisição de aptidões socialmente apreciadas, as quais são definidas, nesse caso, pelo consenso de uma comunidade e não por decreto de uma junta escolar. O novo presbítero é, simplesmente, o velho padre com outra apresentação.

í^ks escolas livres, para serem verdadeiramente livres, devem satisfazer duas condições: primeiro, devem ser diri-gidas .de _ um._mpdo_.que_ impeça a introdução do currículo oculto de freqüência escalonada por séries e alunos aprovados estudando aos pés de professores aprovados. E, mais impor-tante ainda, devem fornecer uma estrutura em que todos os participantes, professores e alunos, possam livrar-se dos ali-cerces ocultos de uma sociedade escolarizada. A primeira condição é freqüentemente enunciada nos objetivos de uma escola livre. A segunda condição só raramente é reconhecida e é difícil de enunciar como a meta de uma escola livre^//

Para ir além da simples reforma da sala de aula, uma escola livre deve evitar a incorporação do currículo oculto da escolarização. Uma escola livre ideal tenta fornecer edu-cação e, ao mesmo tempo, procura evitar que a educação seja usada para estabelecer ou justificar uma estrutura de classe; que se converta num fundamento lógico para medir o aluno contra alguma escala abstrata; e que o reprima, con-

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trole e talhe à medida. Mas quando a escola livre tenta fornecer "educação geral"' ela não pode ir além dos pressu-postos ocultos da escola. Entre, esses pressupostos está, o^qiie jios _iippele_a tratar as pessoas como se fossejp que tivessem de passar ( por um prpcesso rle naturalização. SÓ os consumidores autenticados de conhecimentos são ad-mitidos à cidadania. Um outro pressuposto, é que o homem nasce imaturo_e deve "amadurecer" antes de,poder ajustar-se à sociedade civilizada. O homem deve ser orientado para se afastar do seu meio natural e passar através de um ventre social em que endureça suficientemente para se ajustar à vida cotidiana. As. escolas livres, jpQdem_j3QScmpenhar essa função,, muitas^ vezes .melhor do que as escolas de um tipo menos sedutor.

Os estabelecimentos de educação livre compartilham de uma outra característica com os estabelecimentos menos livres. Eles despersonalizam a responsabilidade pela "educa-ção". Eles colocam uma instituição in loco parentis. Perpe-tuam a idéia de que o "ensino", se realizado fora da família, deve ser feito por uma agência, da qual cada professor é, individualmente, um agente. Numa sociedade escolarizada, até a família é reduzida a uma "agência de aculturação." As agências educacionais que empregam professores para exe-cutar os propósitos comuns das respectivas juntas escolares são instrumentos da despersonalização das relações íntimas. 1

Recuperação da responsabilidade em relação ao ensino e à aprendizagem

Uma revolução contra aquelas formas de privilégio e poder que se baseiam em reivindicações de saber profissional deve ter início com uma transformação da consciência sobre a natureza da aprendizagem/^Isto significa, sobretudo, uma mudança na responsabilidade para com o ensino e a apren-dizagem. O saber pode ser definido como uma mercadoria

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somente quando é visto como o resultado de um empreendi-mento institucional ou como a realização de objetivos insti-tucionais. [££> _ .quando um Jiomem.. recupera o sentido de responsabilidade , pessoal pelo_que aprende e ensina é que esse feitiço pode ser quebrado e a alienação da aprendizagem, em relação à existência,-ser-superada—

A recuperação do poder de aprender ou ensinar significa que o professor que assume o risco de interferir nos assuntos privados de outrem também assume a responsabilidade pelos resultados. Analogamente, o estudante que se expõe à in-fluência de um professor deve assumir a responsabilidade pela sua própria educação. Para tais propósitos, as institui-ções educacionais — se porventura são necessárias — tomam idealmente a forma de centros de recursos e aparelhamento, onde se pode obter um teto na medida certa sobre a cabeça, ter acesso a um piano ou um forno, e a discos, livros ou slides. As escolas, estações de TV, teatros etc. são primor-dialmente planejados para serem usados por profissionais. Desescolarizar a sociedade significa, sobretudo, a negação de status profissional à segunda profissão mais antiga do mundo, a de ensinar. O registro de professores constitui hoje uma restrição ilegítima ao direito de falar; a estrutura empresarial e as pretensões profissionais do jornalismo são uma restrição indevida ao direito de imprensa livre; as leis de freqüência escolar obrigatória interferem com o direito de livre reunião.

fd- A desescolarização da sociedade é nada menos do que uma. ' mutação cultural, pela qual um povo recupera o uso efetivo

das suas liberdades constitucionais: "a aprendizagem e o. ensino feitos por homens que sabem ter nascido livres, e não por homens "tratados" para a liberdadey/Â maioria das pes-soas aprende, a maior parte do tempo, quando faz aquilo que gosta de fazer; a maioria das pessoas é curiosa e quer incutir um significado a tudo aquilo com que entra em contato; e a maioria das pessoas é capaz de um intercurso pessoal e ínfimo com outras, a menos que seja estupidificada por um trabalho desumano ou desalienada pela escola.

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O fato de as pessoas em países ricos não aprenderem muita coisa por conta própria não constitui prova em con-trário. É, outrossim, uma conseqüência da vida num meio em que, paradoxalmente, não podem aprender muita coisa, jus-tamente porque se trata de uma vida programada ao extremo. Elas sãó constantemente frustradas pela estrutura da socie-dade contemporânea, em que os fatos sobre os quais as deci-sões podem ser tomadas tornaram-se mais esquivos e inde-finíveis. Elas vivem num meio em que os instrumentos que podem ser utilizados para fins criativos se tornaram objetos de luxo, um meio em que os canais de comunicação servem a üns poucos para falar a muitos.

Uma nova tecnologia em vez de uma nova educação

Um mito moderno gostaria que acreditássemos que o sentimento de impotência em que a maioria dos homens atualmente vive é uma conseqüência da tecnologia, que não pode fazer outra coisa senão criar sistemas gigantescos. Mas não é a tecnologia que torna os sistemas gigantescos, as fer-ramentas imensamente poderosas, os canais de comunicação unilaterais. Muito pelo contrário: adequadamente controlada, a tecnologia pode dotar cada homem com a capacidade de compreender melhor o seu meio, de moldá-lo poderosamente com as suas próprias mãos e permitir-lhe a plena intercomu-nicação, num grau que nunca foi possível antes. Tal uso alternativo da tecnologia constitui a alternativa central em educação.

/ S e uma pessoa quiser desenvolver-se, ela precisará, antes de tudo, ter acesso a coisas, a lugares e a processos, a eventos e arquivos. Ela precisa ver, tocar, manipular, apreender tudo o que estiver num contexto significativo. Esse acesso é hoje negado, em grande parte. Quando o saber se converteu em

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mercadoria adquiriu as proteções dispensadas à propriedade privada e, assim, um princípio destinado a preservar a inti-midade pessoal passou a constituir um fundamento lógico para declarar que certos fatos estão fora dos limites permi-tidos a pessoas sem adequadas credenciais. Nas^sçolas,_ps1

professores guardam jw conhecimentos _para si próprios^ a menos que se-ajustem ao programa do dia. Os veículos de comunicação informam mas excluem aquelas coisas que con-sideram inadequadas para impressão ou divulgação. A infor-mação é encerrada em linguagens especiais e professores especializados ganham a vida retraduzindo-as. As patentes são protegidas por corporações, os segredos são guardados por burocracias e o poder para manter os outros fora dos territórios privados — sejam guaritas, cartórios, armazéns de sucata ou clínicas — é ciosamente guardado por profissões, instituições e nações. Tanto a estrutura política como pro-fissional de nossa sociedade, no Oriente e no Ocidente, não poderiam suportar a eliminação do poder para manter classes inteiras de pessoas alheias aos fatos que poderiam servir-lhes. O acesso aos fatos, que eu defendo, vai muito além da ver-dade nos rótulos. O acesso deve ser integrado na realidade, enquanto que tudo o que pedimos à publicidade é uma garantia de que não nos ludibrie. O acesso à realidade cons-titui uma alternativa fundamental em educação, para um sistema que apenas pretende ensinar sobre ela.

Abolir o direito ao sigilo da corporação — mesmo quando a opinião profissional sustenta que esse sigilo serve ao bem comum — é, como se verá em breve, uma meta política muito mais radical do que a tradicional exigência de propriedade ou controle público dos meios de produção. A socialização dos meios de produção sem a socialização efetiva do know--how em seu uso tende a colocar o capitalista do saber na posição anteriormente mantida pelo financeiro. A única pre-tensão do tecnocrata ao poder é o capital que possui em alguma classe de conhecimentos raros e secretos; e o melhor meio de proteger o seu patrimônio é uma vasta organização,

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intensamente capitalizada, que torne temível e proibitivo o sso ao know-how.

Q_aprendiz interessado _não_leva muito tempo para ad-, 'quirir quase qualquer-.aptidão..que,_pretenda..usac» Somos propensos a esquecer que esta é uma sociedade em que os professores diplomados monopolizam o ingresso em todos os campos e, por conseguinte, condenam todo o,ensino por indi-víduos não-diplomados como charlatanismçw\Existem poucas aptidões mecânicas utilizadas na indústria ou pesquisa que sejam tão exigentes, complexas e perigosas quanto dirigir um automóvel, uma habilitação que, não obstante, a maioria das pessoas adquire rapidamente de um igual. Nem todas as pessoas têm dotes adequados para a lógica avançada mas aquelas que os possuem realizam rápidos progressos, se forem desafiadas a fazer jogos matemáticos numa fase relativamente precoce. Um em cada vinte rapazes em Cuernavaca pode me derrotar em Wiff "n" Proof depois de um par de semanas de adestramento. Em quatro meses, todos os adultos moti-vàdos, com exceção de uma pequena porcentagem, no nosso centro CIDOC, aprende espanhol suficientemente bem para realizar suas tarefas acadêmicas no novo idioma.

//\Jm primeiro passo para estabelecer o acesso a aptidões seria proporcionar vários incentivos para que os indivíduos habilitados dividissem seus conhecimentos. Inevitavelmente, isso seria contra os interesses das corporações, das classes profissionais e dos sindicatos. Entretanto, o aprendizado múl-tiplo é atraente. Fornece a todo mundo uma oportunidade para aprender algo sobre quase tudo. Não há razão alguma por que uma pessoa não deva combinar a aptidão para con-duzir um carro, reparar telefones e caixas de descarga, atuar como parteiro e funcionar como desenhista num escritório de arquitetura. Os grupos de interesses especiais e seus disci-plinados consumidores reclamariam, é claro, que o público necessita da proteção de uma garantia profissionaL^Mas este argumento está sendo hoje firmemente contestado pelas asso-ciações de proteção ao consumidor. Temos de considerar

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muito mais seriamente a objeção que os economistas levantam contra a socialização radical das aptidões: esse "progresso" será impedido se o saber — patentes, habilitações e tudo o mais — for democratizado. Tais argumentos só podem ser contraditados se demonstrarmos a taxa de crescimento de deseoonomias fúfceis que são geradas por qualquer sistema educacional existente.

O acesso a pessoas dispostas a partilhar seus conheci-mentos e habilitações não é uma garantia de aprendizagem. Um tal acesso é restringido não só pelo monopólio dos pro-gramas educacionais sobre a aprendizagem e dos sindicatos sobre as licenças mas também por uma tecnologia da escas-sez. As aptidões que hoje contam são o knotü-how no uso de instrumentos qüe são deliberadamente escassos. Esses instru-mentos produzem bens ou prestam serviços que todo mundo quer mas de que unicamente alguns podem fruir, e que apenas um limitado número de pessoas sabe como usar. Só alguns indivíduos privilegiados, no número total de pessoas que têm uma determinada doença, podem beneficiar-se dos resultados da sofisticada tecnologia médica e ainda menos médicos desenvolveram sua capacidade pessoal para usá-la.

Contudo, os mesmos resultados de pesquisa médica foram também empregados para criar um instrumental básico que permite aos médicos do Exército e da Marinha, com apenas alguns meses de treino, obterem resultados, em con-dições de combate, que teriam estado muito além das expec-tativas dos médicos mais experimentados durante a II Guerra Mundial. Num nível ainda mais simples, qualquer moça do campo poderia aprender como diagnosticar e tratar a maioria das infecções se cientistas médicos preparassem dosagens e instruções, especificamente, para uma determinada área geo-gráfica.

Todos estes exemplos ilustram o fato de que conside-rações educacionais são suficientes, por si só, para exigir

iuma redução radical da estrutura profissional que hoje im-Ipede as relações mútuas entre o cientista e a maioria das

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pessoas que querem ter acesso à ciência. Se essa exigência fosse acatada, todos os homens poderiam aprender a usar os instrumentos de ontem, tornados mais eficazes e duradouros pela ciência moderna, para criar o mundo de amanhã.

Lamentavelmente, é a tendência contrária à que hoje prevalece. Conheço uma área costeira na América do Sul em que a maioria das pessoas se sustenta pescando em pequenas embarcações. O motor de popa foi certamente o instrumento que mudou mais espetacularmente a vida desses pescadores. Mas, na área que eu pesquisei, metade de todos os motores de popa que foram comprados entre 1945 e 1950 ainda está funcionando, graças a constantes remendos e consertos, ao passo que metade dos motores comprados em 1965 já não funciona, pois não foram construídos de modo a permitir reparos. 0_ progresso tecnológico . fornece à maioria ., das pessoas aparelhos _que_. elas não têm. meios de_ adquirir _e priva-as das ferramentas mais simples de que necessitam.

Metais, plásticos êTconcreto armado, utilizados na cons-trução, passaram por grandes aperfeiçoamentos desde a década de 1940 e deveriam propiciar a mais pessoas a opor-tunidade de criarem seus próprios lares. Mas, nos Estados Unidos, enquanto que em 1948 mais de 30% de todas as moradias de família eram construídas pelos seus proprietá-rios, no final da década de 1960 a porcentagem dos que atuaram como construtores de sua própria casa tinha baixado para menos de 20%.

O declínio do nível de aptidões, através do chamado desenvolvimento econômico, é ainda mais visível na América Latina. Aí, a maioria das pessoas ainda constrói suas próprias casas desde o chão ao telhado. Com freqüência, empregam lama, em forma de adobe, e colmo, de uma utilidade inul-trapassável no clima úmido, quente e ventoso. Em outros lugares, constroem suas moradias de cartão corrugado, lataria aproveitada de tambores de óleo e outros refugos industriais. Em vez de fornecerem às pessoas ferramentas simples e componentes altamente padronizados, duradouros e de fácil

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reparo, todos os governos enveredaram pela produção em massa de edifícios pré-fabricados e de baixo custo. É claro que nem um só desses países pode se dar ao luxo de fornecer unidades residenciais modernas e satisfatórias para a maioria da sua população economicamente desfavorecida. Por toda parte, entretanto, essa política torna progressivamente mais difícil, para a maioria, adquirir os conhecimentos e aptidões de que necessitam para construir melhores casas para si próprios.

"Pobreza" voluntária

As considerações educacionais permitem-nos formular uma segunda característica fundamental que qualquer socie-dade pós-industrial deve possuir: um instrumental básico que, pela sua própria natureza, se oponha ao controle tecno-crático. Por razões educacionais, devemos trabalhar por uma sociedade em que o conhecimento científico seja incorporado a ferramentas e componentes que possam ser significativa-mente usados em unidades suficientemente pequenas para estar ao alcance de todos. Só essas ferramentas podem socia-lizar o acesso às aptidões. Só essas ferramentas favorecem associações temporárias entre aqueles que querem utilizá-las para ocasiões específicas. Só essas ferramentas permitem que surjam metas específicas durante o seu uso, como qualquer curioso sabe. Só a combinação do acesso garantido aos fatos e do limitado poder na maioria das ferramentas torna possí-vel vislumbrar uma economia de subsistência capaz de incor-porar os frutos da ciência moderna.

O desenvolvimento de tal economia científica de subsis-tência é, indiscutivelmente, vantajosa para a esmagadora maioria da população nos países pobres. Também é a única alternativa à crescente poluição, exploração e opacidade nos países ricos. Mas, como vimos, o destronamento do PNB não pode ser realizado sem derrubar simultaneamente a ENB

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(Educação Nacional Bruta — usualmente concebida como capitalização de recursos humanos). Uma economia iguali-tária não pode existir numa sociedade em que o direito de produzir é conferido pelas escolas.

A viabilidade de uma moderna economia de subsistência não depende de novos inventos científicos. Depende, primor-dialmente, da capacidade de uma sociedade em concordar com restrições antiburocráticas e antitecnocráticas fundamen-tais e voluntariamente adotadas.

Essas restrições podem assumir muitas formas; mas só funcionarão se afetarem as dimensões básicas da vida. A substância dessas restrições sociais voluntárias seria uma matéria muito simples que pode ser plenamente entendida e julgada por qualquer homem prudente. Todas essas restri-ções seriam escolhidas para promover uma fruição estável e igual do know-how científico. Os franceses dizem que são necessários mil anos para ensinar um camponês a lidar com uma vaca. Não seriam necessárias duas gerações para ajudar toda a gente na América Latina e na África a usar e reparar motores de popa, carros simples, bombas, estojos de medicina e máquinas de concreto armado, se os seus modelos não mudassem quase de ano para ano. E como uma vida aprazível é uma de constante e significativo intercurso com outros, num meio significativo, prazer igual traduz-se em educação.

Atualmente, é difícil imaginar um consenso sobre a aus-teridade. A razão usualmente dada para a impotência da maioria é formulada em termos de classe política ou econô-mica. O que usualmente não se compreende é que a nova estrutura de classes de uma sociedade escolarizada é ainda mais poderosamente controlada por interesses estabelecidos. Sem dúvida, uma organização imperialista e capitalista da sociedade proporciona a estrutura social em que uma minoria pode exercer uma influência desproporcional sobre a opinião efetiva da maioria. Mas, numa sociedade tecnocrática, o poder de uma minoria de capitalistas do saber pode impedir a formação de uma autêntica opinião pública, através do

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controle do know-how científico e dos meios de comunicação de massa. As garantias constitucionais de livre opinião, livre imprensa e livre reunião tiveram por objetivo assegurar o governo pelo povo. A moderna eletrônica, a impressão offset, os computadores time-sharing e os telefones por radio-ondas forneceram, em princípio, o equipamento suscetível de dar um significado inteiramente novo a essas liberdades. Infe-lizmente, essas coisas são usadas, nos modernos meios de comunicação e informação, para aumentar o poder dos ban-queiros do saber, para canalizar seus programas padronizados através de cadeias internacionais para mais pessoas, em vez de serem utilizadas para aumentar verdadeiras redes que fornecessem igual oportunidade de encontro entre os mem-bros da maioria.

Desescolarizar a cultura e a estrutura social requer o •uso de tecnologia para tornar possível uma política^de^ parti-cipação. Somente na base de uma coalizão da maioria podem ser determinados os limites ao sigilo e ao poder crescente sem cair na ditadura. Precisamos de um novo meio em que o crescimento possa decorrer sem classes, ou teremos um admirável mundo novo em que o Big Brother educará todos nós.

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