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  11 UNIVERSIDADE CÂNDIDO MENDES MESTRADO EM CIÊNCIAS PENAIS EDUCAR OU PUNIR? PERMANÊNCIAS HISTÓRICAS NA JUSTIÇA DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE Pedro Roberto da Silva Pereira Rio de Janeiro 2005

EDUCAR OU PUNIR? PERMANÊNCIAS HISTÓRICAS NA JUSTIÇA DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE

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Dissertação de Mestrado em Ciências Penais - UCAM - RJ - 2005

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UNIVERSIDADE CNDIDO MENDES

MESTRADO EM CINCIAS PENAIS

EDUCAR OU PUNIR? PERMANNCIAS HISTRICAS NA JUSTIA DA INFNCIA E DA JUVENTUDE

Pedro Roberto da Silva Pereira

Rio de Janeiro 2005

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UNIVERSIDADE CNDIDO MENDES

MESTRADO DE CINCIAS PENAIS

EDUCAR OU PUNIR? PERMANNCIAS HISTRICAS NA JUSTIA DA INFNCIA E DA JUVENTUDE

Dissertao apresentada ao Curso de Mestrado em Direito, rea de Cincias Penais, como requisito parcial para obteno do ttulo de Mestre em Direito, sob a orientao do Professor Doutor Pedro Trtima.

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Rio de Janeiro 2005

UNIVERSIDADE CNDIDO MENDES

MESTRADO DE CINCIAS PENAIS

EDUCAR OU PUNIR? PERMANNCIAS HISTRICAS NA JUSTIA DA INFNCIA E DA JUVENTUDE

Pedro Roberto da Silva Pereira

Dissertao apresentada ao Curso de Mestrado em Direito, submetida aprovao da Banca Examinadora composta pelos seguintes membros: ___________________________ Orientador: Prof. Dr. Pedro Trtima ____________________________ Prof. Dr. nome do 2 membro da banca ____________________________ Prof. Dr. nome do 3 membro da banca

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Rio de Janeiro 2005

s crianas e adolescentes do Brasil.

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AGRADECIMENTOS Agradeo em primeiro lugar a Deus, a seu filho Jesus e sua me Maria, companhias imprecndiveis na minha caminhada, que esto sempre do meu lado apoiando, na minha frente indicando o caminho e atrs de mim me protegendo. Ao Dr. Pedro Trtima, orientador atento e cuidadoso, em quem encontrei um campo vivo de reflexes crticas, que mesmo na premncia do tempo foi capaz de acompanhar as diversas etapas desse trabalho, propondo sempre boas sugestes e crticas pertinentes. Universidade Cndido Mendes pela oportunidade do convvio com grandes mestres, com os quais aprendi muito. E Aos meus estimados colegas do mestrado. Aos meus pais Pedro de Sousa Pereira e Maria Izabel da Silva Pereira por seus exemplos de vida e por todos os sacrifcios que passaram em favor do bem estar de seus filhos. s minhas queridas irm Isabel Cristina e sobrinha Maria Alice. Aos meus fihos-tesouros, fonte da minha alegria minhas princesinhas Mara e Isabela, das quais aprendo a cada dia lies importantes sobre a infncia e ao meu primognito Rodrigo David que nasceu no ano em que o Estatuto da Criana era aprovado. Com muito amor a minha companheira Rosimere Pinto Carias pelo carinho, apoio e incentivo. E pelo auxilio na reviso do texto e pelas importantes contribuies. Aos amigos Dyrce Drach, Eliana Rocha, Carla Cerqueira, Wanderlino, Valria Nepomuceno, Esther Arantes, Celso Carias e Aurelina Cruz e aos companheiros e companheiras da Associao Beneficente So Martinho e da ANCED e ao Dr. Geraldo Prado pelo apoio e incentivo. Ao Dr. Nilo Batista meus especiais agradecimentos. Ao Instituto Carioca de Criminologia pela concesso da bolsa de estudos, sem a qual no seria possvel meu ingresso e permanncia no mestrado. A Dra. Vera Malaguti minha especial homenagem, pelo convite para ingressar no mestrado, pelo incentivo e orientaes dadas com grande generosidade e disponibilidade. Ao companheiro Jorge Barros, que partiu desse mundo enquanto escrevi as ltimas pginas desse trabalho. Deixa muitas saudades e exemplo de companheiro coerente, tico e guerreiro at o fim. Gostaria muito ter tido a oportunidade de partilhar essas reflexes com voc meu amigo.

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Eu diria que se julgssemos esse sistema, o condenaramos por apropriao indbita de vidas, muitas vidas. Vera Malaguti Batista

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RESUMO

Este estudo pretende analisar permanncias histricas, ou seja, prticas antigas que permeiam a atuao da Justia da Infncia e da Juventude, frente nova sistemtica do Estatuto da Criana e do Adolescente. Entendidas aqui como resqucios de vises adultocntricas e tutelares impregnadas de representaes scio-ideolgicas a respeito da criana e do adolescente empobrecidos (representados como perigo e ameaa social).

Busca-se, tambm, correlacionar os contedos flagrados em decises judiciais, portarias-normativas, projetos de lei, emendas constitucionais e do direito penal juvenil, com a nova condio jurdica e de direitos humanos da criana e do adolescente, reconhecidos como sujeitos de direitos a partir da Doutrina da Proteo Integral.

O objetivo geral que se deseja alcanar, formulado como hiptese central da investigao, demonstrar que h, no mbito da justia da infncia um dficit histrico de cumprimento da funo declarada pela Doutrina da Proteo Integral ao mesmo tempo em que o cumprimento excessivo de outras funes no apenas distintas, mas opostas s oficialmente declaradas. No desdobramento desta hiptese fundamental procuramos inventariar permanncias presentes tambm nas prticas de outros atores do sistema de garantia de direitos, representados pelos poderes executivo e legislativo.

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RESUMEN Este estudio pretende analizar permanencias histricas, es decir, prcticas antiguas que permean la actuacin de la justicia de la infancia y la juventud, frente a la nueva sistemtica del Estatuto del Nio y del Adolescente. Entendidos aqu como resquicios de visiones adultocntricas y tutelares impregnadas de representaciones socio-ideolgicas respecto al nio y al adolescente empobrecidos (representados como peligro y amenaza social).

Se procura, tambin, correlacionar los contenidos encontrados en decisiones judiciales, normas administrativas, proyectos de ley, enmiendas constitucionales y en el derecho penal juvenil, con la nueva condicin jurdica y de derechos humanos del nio y del adolescente, reconocidos como sujetos de derecho a partir de la doctrina de la proteccin integral.

El objetivo general que se desea alcanzar, formulado como hiptesis central de la investigacin, es demostrar que existe en el mbito de la justicia de la niez un dficit histrico de cumplimiento de la funcin declarada por la doctrina de la proteccin integral, al mismo tiempo en que se cumple excesivamente con otras funciones no solo distintas, sino opuestas a las declaradas oficialmente. en el desarrollo de esta hiptesis fundamental procuramos inventariar permanencias presentes en las prcticas de otros actores del sistema de garantas de derechos, representados por los poderes ejecutivo y legislativo.

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SUMRIO 1. INTRODUO CAPTULO 1 - SITUAO DE VULNERABILIDADE DAS CRIANAS E ADOLESCENTES NO BRASIL 1. Crianas sem Infncia 1.1 Distribuio das crianas e adolescentes por faixa de idade 1.2 Percentual de crianas e adolescentes segundo a freqncia creche ou escola 1.3 Percentual de crianas e adolescentes pobres (vivendo em famlias com renda familiar per capit de at meio salrio mnimo), por raa/etnia 2. Um pouco da histria da infncia no Brasil CAPTULO 2 A POSIO DA CRIANA DENTRO DE UMA SOCIEDADE DE CLASSES 1. Origem social da infncia e sua funo histrica 2. Menores Classes Perigosas 3. Viso adultocntrica e tutelar 4. O Surgimento dos Tribunais de Menores no mundo viso tutelar originria 5. O Surgimento dos Tribunais de Menores no Brasil 6. O novo paradigma: crianas e adolescentes como sujeitos de direito e pessoas em desenvolvimento 6.1 A Conveno sobre os Direitos da Criana 6.2 Relatrio ao Comit dos Direitos da Criana da ONU 6.3 Das Recomendaes do Comit dos Direitos da Criana da ONU 6.4 Mudana de Paradigma 6.5 Interesse Superior da Criana 7. A Justia da Infncia e Juventude CAPTULO 3 PERMANNCIAS HISTRICAS 1. Portarias-Normativas editadas pela Justia da Infncia e Juventude que autorizam o indiscriminado recolhimento de crianas e adolescentes em situao de rua 1.1 Portaria n 05/90 1 Vara de Menores da Comarca da Capital do Rio de Janeiro 1.2 Portaria n 05/98 1 Vara da Infncia e Juventude da Comarca da Capital do Rio de Janeiro 1.2.1 Ao Civil Pblica proposta pela Promotorias da Infncia e Juventude

Pg. 11-14 15-39

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40-54 44-47 47 48-52 52-55 55 55 55-58 58-59 59-60 60-63 63-64 6566

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RJ 1.2.2 Projeto Resgate de recolhimento de crianas e adolescentes em situao de rua, proposto pela 1 Vara do Juizado da Infncia e Juventude e o 4 Centro de Apoio Operacional das Promotorias da Infncia e Juventude 1.3 Operao Turismo Seguro e a interveno do Centro de Defesa dos Direitos da Criana e do Adolescente 1.4 Portaria n 02/99 Juizado da Infncia e Juventude do Recife (PE) 1.5 Consideraes 2. Outros exemplos de execuo de programas e projetos pela Justia da Infncia e Juventude 2.1 Programas e Projetos Desenvolvidos pela 1 Vara do Juizado da Infncia e Juventude 2.1.1 Servio de Localizao de Desaparecidos SLD 2.1.2 Servio de Atendimento a Usurios de lcool e Drogas SAUD 2.1.3 Servio de Orientao Famlia 2.1.4 Projeto Resgate Recolhimento Sistemtico de Garotos em Situao de Risco 2.2 Programas e Projetos Desenvolvidos pela 2 Vara do Juizado da Infncia e Juventude 2.2.1 Programa Apadrinhamento Scio-educativo PASE 2.2.2 PROUD Programa Especial para Usurios de Drogas (Justia Teraputica) 2.2.3 Projeto Educao para Incluso Social dos Adolescentes Envolvidos pelo Trfico de Drogas 3. Permanncias nas Decises Judiciais 3.1 No mbito do Juizado de Menores e na Justia da Infncia e Juventude 3.2 Na Justia da Infncia e Juventude 3.2.1 Internaes psiquitricas de adolescente por ordem judicial 3.2.1.1 Anlise de Ana Bentes sobre a entrevista com o MM Juiz da 2 Vara do Juizado da Infncia e Juventude da Comarca da Capital RJ 3.3 Manuteno de internao por Transtorno de Personalidade Dissocial CID 10 (F60.2) A experincia de So Paulo 4. Permanncias no Legislativo 4.1 Propostas de Emenda a Constituio para reduo da idade penal 4.2 Os artigos 227 e 228 da Constituio como Clusulas Ptreas 4.3 Direito Penal Juvenil pena e internao 4.4. Consideraes

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85 85 86

8787-95 95-97 97-99 99-101 102-104

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Bibliografia Anexos Anexo 1 Projeto Resgate

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Anexo 2 Portaria n. 05/90 1 Vara do Juizado de Menores - RJ Anexo 3 Portaria n 05/98 1 Vara do Juizado da Infncia e Juventude Anexo 4 Pronunciamento n. 002/2000 da Associao Nacional dos Centros de Defesa ANCED Assunto: Recolhimento de crianas e adolescentes nas ruas do Recife Anexo 5 Pronunciamento n 001/1999 da Associao Nacional dos Centros de Defesa dos Direitos da Criana e do Adolescente - ANCED Assunto: Reduo da Idade Penal Anexo 6 Resoluo n 1.408/94 do Conselho Federal de Medicina - CFM Anexo 7 Perfil dos Adolescentes Anexo 8 - Alguns pontos do Relatrio apresentado pelo Brasil ao Comit dos Direitos da Criana da ONU Anexo 9 - Algumas Recomendaes dadas pelo Comit dos Direitos da Criana da ONU Anexo 10 - Lista de Centros de Defesa dos Direitos da Criana e do Adolescentes associados a ANCED

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1 INTRODUO Este trabalho resulta de nossa insero concreta e cotidiana ao longo de oito anos de trabalho como advogado no Centro de Defesa dos Direitos da Criana e do Adolescente Dom Luciano Mendes 1 e na participao do Grupo de Trabalho sobre Ato Infracional da Associao Nacional de Centros de Defesa dos Direitos da Criana - ANCED. Trata-se de uma tentativa de sistematizao, que permita questionar, confrontar a nossa prpria prtica e superar o ativismo. Mas tambm um dilogo entre saberes: uma articulao criadora entre o saber cotidiano e os conhecimentos tericos, que se alimentam mutuamente (Holliday, 1996, p.44). 2 Se no houver frutos valeu a beleza das flores. Se no houver flores valeu a sombra das folhas. Se no houver folhas valeu a inteno da semente. (Henfil) A partir desse lugar e da interpretao crtica das experincias vivenciadas pude chegar a algumas constataes. A primeira delas diz respeito s prticas antigas que permeiam a atuao da Justia da Infncia e da Juventude da Cidade do Rio de Janeiro envolvendo crianas e adolescentes empobrecidos 3 frente a nova sistemtica da Lei n. 8.069/90 (Estatuto da Criana e do Adolescente). Que se caracteriza no cumprimento excessivo de outras funes no apenas distintas, mas opostas s oficialmente declaradas pela nova legislao. Fomos surpreendidos por algumas decises judiciais, inclusive de Tribunais Superiores, que a primeira vista parecem formalmente fundamentadas na nova Lei, mas com contedo menorista, o que restaura na prtica a vigncia do Cdigo de Menores, mesmo com sua expressa revogao, desde 1990.

O Centro de Defesa uma das linhas de ao da Associao Beneficente So Martinho. Filiado a ANCED - Associao Nacional dos Centros de Defesa dos Direitos da Criana e do Adolescente. 2 HOLLIDAY, Oscar Jara. Para Sistematizar Experincias. P.44 3 O termo empobrecimento entendido como o estado de restrio de acesso a recursos, gerado e mantido por relaes desfavorveis de poder. Pobreza infanto-juvenil (no restrita anlise da renda) entendida como um processo complexo, multidimensional e dinmico, parte de um contexto muito mais amplo, ou seja, a prpria insero dos adultos no mercado de trabalho, nas relaes sociais ampliadas que tm remota origem..

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Observamos tambm a atuao irregular da Justia da Infncia e Juventude como formulador, coordenador e executor de polticas pblicas, mesmo a poltica de atendimento / garantia dos direitos da criana e do adolescente (art. 87 - Estatuto cit.), seja atravs de programas, projetos e servios ou dispondo atravs de ato normativo geral atravs de portaria-normativa, que sem base legal, extrapola o poder limitado legalmente (art. 149 combinado com o art. 148 Estatuto cit.) que elenca taxativamente as oportunidades em que o juiz pode dispor atravs de portarias; hoje medida excepcional no Estatuto, diversamente do que ocorria, com srios abusos, no revogado Cdigo de Menores. Refletindo num profundo desrespeito criana e ao adolescente como sujeitos de direitos. Outra constatao se deu a partir da observao de resqucios de vises adultocntricas e tutelares impregnadas de representaes ideolgicas a respeito da criana e adolescente empobrecido, reveladas negativamente no imaginrio social uma representao do menor 45

como perigo e ameaa, mesmo de depois da aprovao da Lei

n 8.069/90 (Estatuto da Criana e do Adolescente). Trata-se de permanncias histricas, como observadas por Gizlene Neder por prticas e costumes arcaicos que permanecem na estrutura scio-ideolgica 6 da histria do controle social no Brasil de hoje. Neder as identifica ainda como [...]permanncias histrico-culturais do Direito em Portugal podem ser observadas nas prticas jurdicas e no pensamento jurdico no Brasil contemporneo [...} 7 . As permanncias 8 manifestam-se em grande parte da sociedade pela desinformao, preconceito, informaes distorcidas a respeito do Estatuto, propiciando uma viso distorcida da lei.

4 Todas as vezes que, neste estudo, usamos o termo menor assim aspeado, estamos querendo significar justamente esta representao. Ou seja, menor entre aspas, para ns, a criana ou adolescente empobrecido, dito o menor. Quando usamos o termo no seu sentido de designar uma determinada faixa etria, ele aparece sem aspas. 5 Tambm rotulado como exposto, pixote, pi, pivete, trombadinha, vapor, capoeira, infrator, malandro, pivete, vagabundo, bandido, cheira-cola, p-de-chinelo, ral, z-povinho, perigoso. 6 NEDER, Gizlene. Pedagogia da Violncia. In Violncia & Cidadania. p. 58 7 idem. Absolutismo e punio. in Revista Discursos Sediciosos. p.192. 8 Permanncia - Derivada da forma gerndia de permanere (permanecer, ficar como est, persistir), entende-se o estado de estabilidade ou de firmeza, em que se conservam as coisas, mantendo-se na mesma situao ou se mostrando sem qualquer alterao na posio, em que se encontram. demonstrativo, assim, da posio ou da situao, opondo-se, assim, ao que passageiro ou no efetivo. a persistncia, portanto, revela a intangibilidade ou a continuidade, donde a efetividade, ininterruptibilidade ou inalterabilidade de tudo aquilo a que se atribui semelhante qualidade. SILVA, D. P. Vocabulrio Jurdico, p. 604.

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Muitas pessoas reconhecem o Estatuto como uma lei para crianas pobres e infratoras ou como uma lei muito avanada para o Brasil, inaplicvel a nossa realidade; ou ainda uma lei que s traz direitos e no deveres. Posio que partilhada por grande parte dos operadores do direito (advogados, promotores de justia e magistrados), por legisladores e pela sociedade, e refletem de diferentes formas: decises judiciais com base no Estatuto, mas com a lgica e o sentido do antigo cdigo de menores; execuo de programas pelo juizado da infncia e juventude; legislar atravs de portarias, principalmente para determinar o recolhimento de crianas e adolescentes pobres em situao de rua; propostas de alteraes do estatuto, principalmente com vistas ao agravamento das medidas scio-educativas e pelo rebaixamento da idade penal. Tais comportamentos podem ser caracterizados como uma resistncia mudana de paradigma da doutrina da situao irregular de menor-objeto-tutelado que deve ter suas necessidades supridas pelo Estado, ao novo paradigma da doutrina da proteo integral que reconhece a criana como sujeito de direitos, pessoa em desenvolvimento e prioridade absoluta, cujos direitos devem ser reconhecidos e respeitados nos mbitos nacionais e internacionais. ***

Assim, procedemos elaborao deste estudo que apresentamos com o seguinte ordenamento: - Uma introduo, da qual faz parte esta breve apresentao, seguida da justificativa - na qual discorremos sobre as razes que nos fizeram julgar este tema como relevante - e, ainda, dos objetivos que pretendemos atingir com este estudo. - O primeiro captulo trata da situao de vulnerabilidade de crianas e adolescentes no Brasil nos anos de 1990 a 2000. Traando resumidamente o processo histrico da infncia empobrecida no Brasil, a partir do olhar da prpria criana. - O segundo captulo trata do referencial terico que nos serviu de guia para este trabalho. A posio do menor dentro de uma sociedade de classes e os mecanismos de controle social que justificam a catalogao desse perigo social.

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Abordamos tambm a origem social da infncia, sua funo histrica e sua categorizao como crianas e adolescentes sujeitos de direitos e pessoas em desenvolvimento. - No terceiro captulo apresentaremos alguns exemplos de permanncias histricas observadas no Sistema de Garantia de Direitos, em especial na Justia da Infncia e Juventude. Em seguida apresentamos as concluses que visam apontar para as possibilidades da nova lei se tornar uma realidade prtica no cotidiano de milhes de crianas e adolescentes pobres no Brasil. Aps as concluses, apresentamos as referncias bibliogrficas e Fontes primrias de pesquisa: decises judiciais, programas, jornais, revistas e outros peridicos da sociedade civil. ***

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CAPTULO 1 SITUAO DE VULNERABILIDADE DAS CRIANAS E ADOLESCENTES NO BRASIL 1. Crianas sem Infncia Os avanos, no presente contexto, no plano jurdico nacional e internacional 9 , no podem nos fazer esquecer a atual deteriorizao das polticas sociais bsicas em toda parte, agravando os problemas econmicos-sociais que tanto afetam as crianas, e que transformam a necessidade de lhes assegurar o direito de criar e desenvolver seu projeto de vida uma inesgotvel questo de justia. De acordo com os indicadores sociais do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica - IBGE 10 , o Brasil inicia a dcada de 90 com um dos piores desempenhos entre os pases pobres do Terceiro Mundo no que diz respeito pobreza e distribuio de renda. Estudos tm constantemente registrado que desde as dcadas de 60 e 70 o pas passa por um processo de contnua deteriorao na distribuio de renda. A dcada de 80 no fugiu a este padro, pelo contrrio, caracterizou-se pelo crescimento dos indicadores de pobreza, qualquer que seja a tica adotada. 11 A combinao entre estagnao econmica e piora na distribuio de renda trgica, quando se considera o nvel de pobreza j existente no pas. O crescimento da renda na dcada de 80, alm de ter sido modesto, foi distribudo de forma muito desigual. As conseqncias deste processo atingiram de forma bastante grave toda a populao, principalmente as crianas e os adolescentes. Em 1990, no Brasil mais da metade da populao infanto-juvenil 58,2% - era pobre. Segundo estimativa da PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra de Domiclio) em 1990, 53,5% das crianas e adolescentes brasileiros viviam em famlias cuja renda mensal per capita no ultrapassava 1/3 do salrio mnimo. Em nmeros absolutos, este percentual corresponderia a quase 32 milhes de pessoas, enquanto no incio da dcada o nmero de pessoas vivendo nesta faixa de renda era de aproximadamente 30 milhes.Constituio Federal, Estatuto da Criana e as inmeras Convenes de Direitos Humanos ratificadas pelo Brasil. Crianas e a Adolescentes: Indicadores Sociais Fundao Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica, v. 4 Rio de Janeiro, 1992. 11 TOLOSA, H. C. (1981). Pobreza no Brasil: Uma Avaliao dos Anos 80. A Questo Social no Brasil. Frum Nacional. Rio de Janeiro. Apud Crianas e a Adolescentes: indicadores sociais Fundao Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica, v. 4 Rio de Janeiro, 1992, p. 1410 9

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Os resultados nocivos desta situao de pobreza tm efeito direto sobre a vida das crianas nos seus aspectos mais fundamentais: sade, nutrio e educao. Segundo dados do ltimo censo demogrfico realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica IBGE em 2000 12 , o Brasil conta com uma populao de 169.872.856 habitantes. Deste total, 61.098.878 so pessoas na faixa etria de 0 a 17 anos, o que representa 35.96% do total da populao. Este o universo de pessoas sujeitas aos dispositivos do Estatuto da Criana e do Adolescente. Do total de 61.098.878 habitantes, 65% esto na faixa etria de 0 a 11 anos, sendo, portanto, crianas e 35% so adolescentes, entre 12 e 17 anos de idade.

1.1 Distribuio das Crianas e Adolescentes por Faixa de Idade

35% 65%

0 a 11 anos 12 a 17 anos

fundamental respeitarmos e promovermos os direitos de todas as crianas e todos os adolescentes, como prega a doutrina da proteo integral. No entanto, sabemos que, apesar de positivados, os direitos garantidos s crianas e aos adolescentes no so cumpridos da forma preconizada em nossa Carta Magna. Ainda hoje no Brasil, nascer indgena ou branco, viver na cidade ou no campo, ser filho de me com baixa ou alta escolaridade, ter ou no alguma deficincia determina as oportunidades que as crianas e adolescentes tero em sua vida no que diz respeito ao acesso sade, educao, ao saneamento bsico ou de ser ou no explorados como trabalhadores infantis. O Estado Social e Democrtico de Direito ainda est por realizar-se no Brasil. H iniqidades histricas e persistentes a serem enfrentadas com aes12

Disponvel em: . Acesso em 24 mar.2005

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especficas que exigem, muitas vezes, uma mudana de postura dos agentes que esto atuando na promoo dos direitos da criana e do adolescente. Mais do que isso, tais dados exigem uma reviso dos modelos que criamos ou que reproduzimos e que servem apenas para garantir privilgios para alguns e negar os direitos de outros. O relatrio da Situao da Infncia e Adolescncia Brasileira, produzido pelo UNICEF - Fundo das Naes Unidas para a Infncia com dados do Censo Demogrfico de 2000, traz dados sobre as diferenas de acesso a servios de sade e educao entre crianas pobres e ricas, que vivem em reas rurais ou urbanas, que crescem no sul ou no norte do Pas. Reproduzimos alguns dados que caracterizam a infncia e a adolescncia no Brasil. Com dados do Censo/2000, podemos ainda verificar o percentual de crianas e adolescentes que freqentam creche ou escola. 1.2 Percentual de Crianas e Adolescentes segundo a Freqncia Creche Ou Escola

68% 32%

frequentavam creche ou escola no frequentavam creche ou escola

De acordo com estes dados, verificamos que 68% das crianas e adolescentes do Brasil no tm acesso educao, situao em que caberia muita bem alguma das medidas protetivas elencadas no ECA.

1.3 Percentual de Crianas e Adolescentes Pobres (vivendo em famlias com renda familiar per capita de at meio salrio mnimo), por Raa/Etnia

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80% 70% 60% 50% 40% 30% 20% 10% 0% Indigenas Negros Brancos Amarelos 71% 58% 33%

24%

O relatrio elaborado pelo UNICEF ainda traz dados sobre o percentual de crianas pobres no Brasil, de acordo com sua raa/etnia, demonstra que 71% das crianas e adolescentes indgenas vivem em famlias com renda de menos de salrio mnimo per capita; entre as crianas e adolescentes negros, este nmero de 58%, passando a 33% para os brancos e 24 % para amarelos. Ou seja, no geral, 45% das crianas e adolescentes brasileiros so pobres, vivendo com menos de R$ 130,00 (cento e trinta reais) por ms.

De acordo com o Fundo das Naes Unidas para a Infncia UNICEF (Relatrio 2000), dos 3,3 milhes de bebs que nascem todos os anos, um milho (34,6%) no registrado, 57 mil (1,7%) morrem na primeira semana de vida, 120 mil (3,5%) morrem no primeiro ano e 140 mil (4,2%) morrem nos primeiros 5 anos. Cinco mil mulheres no sobrevivem ao parto. Os que sobrevivem no encontram uma adolescncia melhor. Atualmente, 1,8 milho de jovens brasileiros so analfabetos, apenas 18,4% dos adolescentes entre 15 e 19 anos tm mais de 8 anos de estudo e, todos os anos, 30 mil so privados de sua liberdade.

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700 mil crianas que nascem na rede pblica so filhos de meninas entre 10 e 18 anos e 14% das adolescentes brasileiras entre 14 e 19 anos tm pelo menos um filho. 13 H ainda no pas o problema do trabalho precoce: 6,5 milhes de crianas e adolescentes de 5 a 17 anos trabalham. J 91% das crianas de 0 a 3 anos no freqentam creches e 42% das crianas de 4 a 6 anos no freqentam escolas de Educao Infantil. Ademais, as condies de deteno dos jovens privados de liberdade so pssimas e desumanas, como bem apontam relatrios de direitos humanos no Brasil, que ressaltam a barbrie perpetrada contra jovens. 14 Somos um pas ainda pobre e, sobretudo, desigual. O Produto Interno Bruto (PIB) do Brasil, com uma populao de 171 milhes de habitantes (IBGE/PNAD 2002), o 13 do mundo em termos absolutos 15 , porm, quando analisamos o PIB per capita em relao ao PIB absoluto vemos que a posio do Brasil cai para 74. Esse o atual perfil excludente da maioria das crianas e adolescentes brasileiras, que foi se formando ao longo da histria do Brasil. Ao tratar da situao da criana no Brasil Jos de Souza Martins 16 introduz a concepo de Criana sem infncia, no como a da criana abandonada, embora tal noo a esta se inclua, mas a ela no se limita. Abrange, de acordo com Martins (1991), multides de crianas que tm lar e famlia, mas no tm infncia. Algumas carecem de amor, cujas famlias s vezes mutiladas sucumbiram s adversidades de um mercado de trabalho excludente, ao trabalho incerto, ao salrio insuficiente, a brutalizao chamada mo-de-obra sobrante. Outras carecem de justia. Seus supostos direitos esto sendo cotidianamente violados e negados. Todas carecem de infncia, pois nelas j foi produzido fora o adulto precoce, a vtima precoce, o ru precoce. O tema da criana abandonada aponta um problema social, uma doena da sociedade. J o tema da criana sem infncia indica um problema sociolgico, uma

13 14

IBGE- PNAD 1995 e Relatrio Unicef 2000).

Para maiores detalhes ver relatrios anuais de direitos humanos da Anistia Internacional http:www.amnesty.org, Human Rights Watch http:www.hwr.org, Centro pela Justia e o Direito Internacional http:www.cejil.org e Comisso Interamericana de Direitos Humanos da OEA http:www.cidh.oas.org 15 Fundo Monetrio Internacional 2002. Disponvel em: www.imf.org. Acesso em 24 mar. 2005 16 MARTINS, Jos de Souza (coord.) O Massacre dos Inocentes A criana sem infncia no Brasil

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mutao da sociedade, que se manifesta como problema social, mas que , tambm um problema poltico (MARTINS, 1991, p. 13). *** Se pudssemos resumir a longa histria das crianas e adolescentes no Brasil, repleta de excluso, violncia, mas de muita luta e resistncia, diramos o seguinte:Crianas sem infncia [...] efeitos do mesmo processo, que o da supresso da infncia, em nome de interesses e da lgica de uma opo poltica de desenvolvimento econmico, que mutila no bero aquele que poderiam um dia construir a sociedade nova. Jos de Souza Martins 17 Eu diria que se julgssemos esse sistema, o condenaramos por apropriao indbita de vidas, muitas vidas. Vera Malaguti Batista 18

*** 2. Um pouco da Histria da Infncia no BrasilE quem garante que a Histria carroa abandonada Numa beira de estrada Ou numa estao inglria A Histria um carro alegre Cheio de um povo contente Que atropela indiferente Todo aquele que a negue! Chico Buarque e Pablo Milanez 19

Se crianas e adolescentes pudessem contar resumidamente sua insero na histria do Brasil nos ltimos 500 anos 20 , poderiam iniciar contando como viviam os primeiros habitantes do Brasil, antes da chegada do homem branco. Iniciando sua narrativa talvez dissessem da estranheza ao perceberem a chegada do homem branco com suas canoas enormes e monstruosas flutuando no mar, parecendo esprito de outro mundo. Os habitantes originais 21 jamais poderiam imaginar o que aqueles espritos vinham fazer aqui, se vinham trazer o bem ou o mal?MARTINS, op. cit. p. 12 BATISTA, Vera Malaguti. Difceis Ganhos Fceis Drogas e Juventude Pobre no Rio de Janeiro. 19 ALENCAR, Chico; RIBEIRO Marcus e CECCON, Claudius. Brasil Vivo. v. 1, p. 55 20 A presente idia foi inspirada nas seguintes obras. DOURADO, Ana Cristina Dubeux; FERNANDEZ, Maria Aparecida Arias. Uma Histria da Criana Brasileira. BH, Palco, 1999. Coleo Cadernos CENDHEC Centro Dom Hlder Cmara de Estudos a Ao Social Vol. 7. E tb. O Pequeno Imperador Uma Histria de 500 anos. Produo e Direo Murilo Santos. Centro de Defesa dos Direitos da Criana e do Adolescente Pe. Marcos Passerini.18 17

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A resposta a essa pergunta viria ao longo dos sculos. Os colonizadores chegaram aqui no Brasil a populao era estimada em 6 a 8,5 milhes, com 970 povos, 1.200 lnguas, numa rea ocupada de 70% do atual territrio nacional (ALENCAR, 1986, p. 67). Muitos daqueles milhes de habitantes originais eram crianas e adolescentes. 22 De acordo com o Censo Demogrfico 2000 do IBGE a populao Indgena no Brasil de 734.131. 23 *** As crianas tambm estiveram presentes epopia martima. Subiam a bordo na condio de grumetes ou pagens trabalhando duro nas embarcaes e submetidas a situaes degradantes e at abuso sexual por parte dos marujos, ou como rfs do Reino enviadas ao Brasil para se casarem com os sditos da Coroa 24 . Nos primeiros navios portugueses vieram tambm alguns rfos que ajudaram os jesutas na conquista das crianas e adolescentes indgenas, para que abandonassem os costumes dos seus ancestrais e passassem a vestir-se, comer e rezar conforme os padres sociais europeus. 25 Os rfos vindos para o Brasil eram meninos muito pobres 26 que viviam nas ruas ou em orfanatos de Lisboa e de outras cidades. Segundo SANTOS (1994, p. 10) 27 registram-se no Brasil Colnia 28 (sculos XVI e XVII) os primeiros trabalhos desenvolvidos com crianas realizados pelos jesutas: a21 Segundo Chico Alencar: Os habitantes originais foram denominados de nativos ou aborgenes ou silvcolas ou autctones ou ndios. Que tais denominaes foram dadas pelos que vieram depois, e que definiam aqueles povos por oposio a eles, recm-chegados. Desconsiderando a pluralidade entre os da terra, esquecendo que os nativos so muito diferentes entre si e jamais constituram um todo homogneo. Os europeus que so portugueses, espanhis, franceses, holandeses generalizaram: na terra nova (nova para eles) todos so ndios. Como se os xavante fossem iguais aos kaiap, como se os guarani tivessem um modo de viver igual ao dos yanomami! Errando at no termo: ndio o habitante das ndias. ALENCAR, Chico. BR-500: um guia para a redescoberta do Brasil Petrpolis, RJ: Vozes, 1999 p. 47-48 22 Para mais detalhes ver ARANTES, Esther. Rostos de Crianas no Brasil. A Arte de Governar Crianas: A Histria das Polticas Sociais, da Legislao e da Assistncia Infncia no Brasil. P.172-220. 23 De acordo com o Conselho Indgena Missionrio (CIMI) Atualmente tem-se conhecimento da existncia de povos indgenas, com suas respectivas terras tradicionais, demarcadas ou no, vivendo em 24 unidades da federao, de um total de 27. H tambm grande quantidade de indgenas morando em centros urbanos, alm daqueles pertencentes a povos ainda sem contato com a sociedade nacional e outros que hoje reassumem suas identidades tnicas at ento ocultadas. N de Lnguas: 180; n de Povos Indgenas: 235 e n de Terras Indgenas: 825. (fonte: www.cimi.org.br, acesso em 15/04/2005) 24 ver RAMOS, Fbio Pestana. A Histria Trgico-Martima das Crianas nas Embarcaes Portuguesas do Sculo XVI apud Histria das Crianas no Brasil. Mary Del Priore. So Paulo: Contexto, 2000. p. 20 25 DOURADO. op..cit.. p. 27 26 idem, p. 28 termo utilizado por Darcy Ribeiro para referir-se aos meninos rfos que perambulavam pelas ruas de Portugal. No queremos aqui discutir a propriedade da expresso, estamos apenas utilizando-se como ilustrao da verso do antroplogo sobre a vinda de rfos portugueses para a Colnia. 27 SANTOS, Benedito. Histria da Criana. In Revista Frum DCA 1 Polticas e Prioridades Polticas, 1994. p. 13 28 Segundo ARANTES, Esther Maria de Magalhes. in Desafios implementao do Estatuto da Criana e do Adolescente: questes histricas e atuais. (mimeo). A Histria do Brasil pode ser dividida em perodo pr-colonial (1500-1530), no tendo Portugal ocupado as

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catequese na chamada Casa dos Muchachos - onde se reuniam rfos da terra para ensinar a ler, escrever e aprender os bons costumes. Antes de 1830 as crianas e os jovens eram severamente punidos, sem muita diferenciao dos adultos, a despeito do fato de que a menor idade constitusse um atenuante da pena, desde as origens do direito romano. De acordo com as Ordenaes do Reino 29 , legislao que vigorava no Brasil Colnia, os menores que praticassem delitos eram aplicadas as penas previstas no art. 134 do Livro V das Ordenaes Filipinas:Quanto aos menores, sero punidos pelos delitos que fizerem. Se for maior de 17 anos e menor de 20, fica ao arbtrio do juiz aplicar-lhe a pena e, se achar que merece pena total, dar-lhe-, mesmo que seja a de morte. Se for menor de 17 anos, mesmo que o delito merea a morte, em nenhum caso lhe ser dada.

Segundo NEDER o Livro V das Ordenaes Filipinas era um amontoado secular de disposies draconianas e inoperantes:Eram (as Ordenaes Filipinas) as bases mesmas do edifcio que aluam, bases empedernidas em prolixos sculos de iniqidade, de fanatismo e de ignorncia, concepo monstruosa do direito penal, que erigia o crime em pecado, em delitos os vcios, tirava pena sua fixidez essencial para deixar-lhe a aplicao arbitrria segundo a graveza do caso e a qualidade da pessoa, punia com a pena capital as mais estpidas, ridculas ou inquas prticas da feitiaria, da magia, da bruxaria... 30

*** As crianas negras e escravas poderiam contar tambm um pouco de sua histria, da tristeza de serem separadas dos pais antes de embarcarem nos navios negreiros. E quando chegavam na Amrica, juntamente com os adultos, eram levadas aos mercados, para serem vendidas.

terras do Brasil; Colnia, quando tem incio esta ocupao (1530-1822); Imprio, quando o Brasil se declara independente de Portugal e passa a ser governado por D. Pedro I e posteriormente por D. Pedro II (1822-1889); e Repblica, a partir de 1889, tendo o processo democrtico sido interrompido por dois Golpes de Estado que deram incio s Ditaduras Vargas, em 1937 e Militar, em 1964. 29 Conhecidas tambm como Ordenaes do Reino, eram compilaes de leis portuguesas que vigoraram de 1446 a 1867, at ser aprovado o primeiro Cdigo Civil de Portugal. Ordenaes Afonsinas (1446-1521), Ordenaes Manuelinas (1521-1603) e Ordenaes Filipinas (1603-1867) No Brasil, a parte criminal (Livro V) foi mantida at 1830 com a promulgao do Cdigo Criminal do Imprio do Brazil e a parte cvel at 1916, quando se deu a promulgao do nosso Cdigo Civil (L. 3.071, de 1.1.1916) que, no Art. 1.807, sentenciou: "Ficam revogadas as Ordenaes, Alvars, Leis, Decretos, Resolues, Usos e Costumes concernentes a matrias de direito civil reguladas neste Cdigo".30

NEDER, Gizlene. Iluminismo Jurdico-Penal Luso-Brasileiro Obedincia e Submisso. p. 186

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Muitas crianas j chegavam com a barriga inchada devido desnutrio, que levava quase sempre morte 31 . O trfico negreiro e a comercializao de escravos sobreviveu durante quase trezentos anos, no Brasil. As crianas escravas eram vendidas por baixos preos, nos mercados, pois no eram capazes de produzir um lucro imediato para os senhores de engenho. Poucas crianas eram trazidas como escravas nos navios negreiros, pois os comerciantes preferiam trazer homens jovens e fortes para o trabalho no plantio e colheita de cana-de-acar. 32 Alm disso, a alta taxa de mortalidade infantil durante a travessia da frica para o Brasil desestimulava os comerciantes a transportarem crianas muito pequenas. Aquelas que conseguiam sobreviver s terrveis condies dos navios eram vendidas por um quarto do valor de um escravo adulto,33

que ao chegar aos sete anos no poderia ser mais criana, comeava a sentir na

pele o que ser escravo, trabalhando como mensageiro, nas plantaes, como carregador de encomendas, cuidando de cavalos, lavando os ps dos donos da casa e de seus visitantes, servindo mesa, espantando mosquitos, balanando a rede 34 . Resumindo Filho de escravo, escravo . 35O sufoco para aquelas vidinhas que os senhores chamavam de crias comeava cedo. Muitos recm-nascidos morriam com poucos meses de idade. Trs dias depois do parto, as mes j voltavam ao trabalho, tendo que carregar os filhos nas costas e amament-los durante o servio na lavoura. A criana escrava s no passaria por isso se fosse criada dentro da casa-grande. Nesse caso, seriam como bichinhos de estimao das sinhazinhas e criadinhos das sinhs. Tinha que ser crianas bem comportadas e aceitar desde cedo a condio 36 escrava.

Muitos viajantes ficavam espantados com o tratamento oferecido pelos patres s crianas escravas ainda pequenas. O gravurista francs Jean Baptiste Debret, por exemplo, em visita residncia de uma rica senhora brasileira, observou que os bebs negros ficavam

NEVES, Maria de Ftima R. das. Infncia das Faces Negras: a criana escrava brasileira no sculo XIX. Dissertao de Mestrado, apresentada ao Departamento de Histrica da Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo, USP, 1993 apud.DOURADO. op. cit.. p. 44. Afirma que, entre 1726 e 1769, cerca de 5% do total de escravos trazidos da frica para o Brasil eram crianas e que, a partir da segunda metade do sculo XVII, at o incio do sculo XIX, essa cifra caiu para menos de 1%. Outros autores, como Horcio Gutierrez, defendem que, em alguns momentos, a porcentagem de crianas escravas embarcadas nos navios negreiros pode ter chegado a 10% do total de escravos transportados. 32 HERBET, Klein, citado por NEVES, op. cit. (il.) apud.DOURADO. op. cit. p. 44 33 NEVES op. Cit. apud DOURADO. op. cit.. p. 44 34 idem, apud.DOURADO. FERNANDEZ. Ob. Cit. p. 49 35 De acordo com DOURADO.op. cit.. No perodo colonial brasileiro, um menino ou menina de 13 anos j era considerado um pequeno adulto. Os escravos comeavam a trabalhar da mesma maneira que seus pais, tanto na lavoura quanto nos servios domsticos. 36 ALENCAR. p. 54

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sempre no cho e eram tratados como bichinhos de estimao por sua senhora. Costumavase jogar comida s crianas escravas como se faz com os cachorros. 37 De acordo com FREYRE (1966) as crianas brancas tambm aprendiam a brincar com os escravos. Como no havia muitos livros nem uma grande variedade de brinquedos, uma das maiores diverses das crianas, na poca colonial, era ouvir histrias e lendas contadas por escravos mais velhos. Alguns desses contadores de histrias andavam de casa em casa e reuniam crianas, amas e mucamas para ouvir lendas de assombrao, histrias africanas e fbulas de bichos. Ainda hoje, nossa cultura guarda personagens que apareceram a partir da mistura de histrias africanas, indgenas e europias. O saci-perer, o caipora, o papa-figo, a mula-sem-cabea e o boitat so alguns deles. Outros so menos conhecidos, mas ainda esto na lembrana dos que viveram nos engenhos de acar do Nordeste, nas regies mineradoras de Minas Gerais ou nas fazendas de caf de So Paulo. 38 Em 1871 as crianas negras em algum momento poderiam pensar que teriam melhor sorte, porque a partir daquele ano passava a vigorar a Lei do Ventre Livre, mas a sorte no duraria muito, depois dessa lei aumentou em muito a quantidade de crianas negras abandonadas; quem haveria de querer criar um negrinho livre? As crianas negras iam parar na roda dos enjeitados, e o leite de suas mes que deveriam ter tomado seria destinado outra criana. O aluguel das mulheres negras lactentes dava muito lucro ao senhor. As crianas filhas de escravos permaneceram sob a autoridade dos senhores, que tinham por obrigao sustent-la at a idade de oito anos. Mas a partir da, o menino ou menina teria que pagar, com seu trabalho o investimento feito pelo senhor no seu sustento. Isso se prolongava at os 21 anos, quando enfim, os nascidos depois da Lei do Ventre Livre podiam deixar as propriedades. A lei tambm permitia que a criana negociasse a liberdade integral com o senhor de escravos, pagando-lhe um preo equivalente ao trabalho que faria at os 21 anos. Se fosse do interesse do senhor a criana poderia ser entregue ao Estado que, em troca, pagaria uma indenizao. Essas crianas entregues ao Estado eram criadas em37 DEBRET, Jean Baptiste. Viagem Pitoresca e Histrica ao Brasil. Vol. I pp. 163-64. So Paulo: Circulo do Livro. Apud DOURADO. op. cit. p. 48 38 FREYRE, Gilberto. Casa Grande e Senzala, t. 1. Rio de Janeiro : Jos Olympio, 1966. apud DOURADO. op. cit. p. 49

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instituies pblicas parecidas com orfanatos. Mas a maioria dos senhores preferia utilizarse da mo-de-obra dessas crianas. Valia mais a pena sustent-las que comprar novos escravos, sobretudo depois da alta dos preos provocada pelo fim do trfico negreiro, em 1850. 39 *** Poderamos mais uma vez dar lugar fala da criana, dessa vez no seria a criana ndia, negra ou branca, mas a criana rotulada como filho ilegtimo, exposto, enjeitado, por esse e outros motivos, j recm nascidos eram abandonados pelas ruas, nas portas das igrejas, nos lugares pblicos. De acordo com Dourado (1999:66) em geral isso acontecia noite para ningum ver quem as deixava. Nas cidades, havia muitos animais como porcos, burros, cavalos, cachorros e ratos que comiam o lixo deixado nas ruas. Algumas pessoas chegavam a abandonar os bebs no meio dessa sujeira, e as crianas eram devoradas pelos animais. Foi por esta razo que a Igreja Catlica decidiu pedir Coroa Portuguesa, em 1726, que a Santa Casa de Misericrdia fundasse a Roda 40 dos Expostos 41 no Brasil. A roda era um cilindro de madeira que parecia um armrio giratrio, pois permitia que a criana fosse deixada na abertura voltada para a rua e recebida dentro da Santa Casa, sem que a identidade de quem estivesse abandonando fosse revelada. 42 *** A criana est agora no incio do Brasil Repblica, onde a escravido fora abolida um ano antes da proclamao da Repblica, em 1888, e os grandes fazendeiros do caf do sudeste do pas passaram a valorizar a mo-de-obra mais qualificada dos imigrantes europeus.Com a liberdade, os ex-escravos tiveram que procurar trabalho numa sociedade que no estava preparada para absorver toda uma massa de trabalhadores, o bando de trabalhadores acostumados s pesadas atividades da agricultura, ao servio domstico e ao comrcio informal. A abolio no foi acompanhada por uma ampla distribuio de terras ou de uma poltica de gerao de empregos.39 LIMA, Lana Lage da Gama e VENNCIO, Renato Pinto. O abandono de crianas negras no Rio de Janeiro. In DEL PRIORI, apud DOURADO. op. cit. p. 56 40 Roda dos Expostos consistia num dispositivo giratrio, onde as crianas abandonadas pelos seus pais (que permaneciam no anonimato) eram colocadas para serem criadas pelas Casas dos Expostos ou pela caridade da comunidade. 41 Exposto era o termo utilizado para se referir s crianas abandonadas ou entregues Roda pelos familiares. 42 EWBANK, Thomas. A vida no Brasil ou Dirio de uma visita ao pas do cacau e das palmeiras. V.1. Rio de Janeiro : Conquista, 1973 Apud DOURADO.op. cit.. p. 66

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Com isso, muitos ex-escravos passaram a viver nas cidades, procurando qualquer tipo de ocupao. Essa instabilidade trouxe a misria para muitos, crianas, jovens e adultos que saam da escravido e se juntavam aos pobres urbanos das grandes cidades brasileiras. Foi nesse contexto que os mdicos, juristas e polticos, enfim a elite intelectual brasileira, passaram a preocupar-se com a infncia pobre e marginalizada. 43

A ruptura dos laos familiares dos afro-descendentes foi uma das marcas da migrao compulsria dos africanos para uso como mo-de-obra escrava no Brasil entre os sculos XVI e XIX. Aps o processo de abolio do trabalho escravo, crianas e adolescentes que viviam nas senzalas, construindo, com dificuldade, suas identidades no convvio com o grupo de escravos, viram-se entregues prpria sorte.44 Deu-se incio a denominada cruzada para salvar a criana brasileira, num processo que tinha como principal motivao, construir um Brasil civilizado, a criana no sculo XIX teria um papel fundamental. Deveria, ento, ser educada, disciplinada e controlada, para que no virasse delinqente. Com a Proclamao da Republica do Brasil, em 1989, ocorreram transformaes scio-polticos e culturais e a ao caritivo-religiosa da Igreja Catlica ou da iniciativa individual de algumas pessoas proeminentes no era mais suficiente para tratar com a questo da infncia rf ou abandonada. Surge uma mentalidade filantrpica mdicohigienista que une os ideais positivistas republicanos de ordem e progresso com a necessidade da criao de Instituies governamentais que proporcionassem a educao elementar, bem como a capacitao profissional (alm da educao moral, e alimentao) para a criana, visando seu futuro sustento, evitando com isto o surgimento da delinqncia juvenil. No primeiro Cdigo Penal Republicano do Brasil sancionado em 1890, os menores de 9 anos eram absolutamente inimputveis, bem como os menores entre 9 e 14 anos que agissem sem discernimento.

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DOURADO. op. cit. p. 70 MATTOSO, Ktia de Queirs. Ser escravo no Brasil. 2. ed. So Paulo: Brasiliense, 1988. apud CERQUEIRA, Vinicius. Imprensa Inimiga da Criana O Discurso Jornalstico e os Direitos da Criana e do Adolescente em Situao de Risco. p. 127

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Todavia os menores entre 9 e 14 anos que agissem com discernimento eram imputveis e seriam internados em estabelecimentos correcionais disciplinares, at a idade de 17 anos. Aos maiores de 14 anos e menores 16 anos eram imputveis com penas atenuadas, predominando ainda a Teoria da Ao com discernimento. Em 24 de fevereiro de 1891 promulgada a primeira Constituio Republicana (2 Constituio do Brasil) por uma Assemblia Nacional Constituinte. Apesar do surgimento da mentalidade filantrpica mdico-higienista esta primeira Carta Magna, tambm, omissa sobre a infncia e a Juventude. *** A trajetria do longo sofrimento de crianas exploradas e largadas no curso da histria, podem ser lembradas a partir do estudo de Pedro Trtima Algumas Consideraes Sobre o Problema do Menor na Formao Social Brasileira 45 . Trtima inicialmente apresenta a velha Inglaterra da Revoluo Industrial como bero das prticas (abusivas) de explorao da mo-de-obra infantil intensificada drasticamente, sobretudo no perodo compreendido entre 1780 e 1850. Este fato foi observado, tanto nas pequenas e ineficientes minas, onde as galerias eram, muitas vezes, to estreitas que apenas as crianas poderiam atravess-las, quanto em diversos campos carbonferos maiores, onde os menores eram empregados como ajudantes de cozinheiro ou como operadores das portinholas de ventilao. Segundo Trtima, mesmo para aquela classe mdia mais alienada, o trabalho infantil nessa proporo, no era novidade. A criana era parte integrante da economia industrial e agrcola antes, mesmo, de 1780 e, como tal, permaneceu longamente.Certas ocupaes como a dos limpadores de chamins ou a dos garotos empregados em navios eram provavelmente, piores do que as funes mais rduas: desempenhadas nas primeiras fbricas; um rfo entregue como aprendiz pela parquia a um carvoeiro bbado, por exemplo, estava submetido a um tratamento cruel 46 , num isolamento ainda mais terrvel. 4745 TORTIMA, Pedro. Algumas Consideraes Sobre o Problema do Menor na Formao Social Brasileira. Rio de Janeiro: 2004. 64fl. dig. 46 TRTIMA. op. cit. p. 2 apud THOMPSON, Edward P. A Formao da Classe Operria Inglesa. V.2 Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987, p. 202

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De qualquer forma, ainda que a forma de trabalho infantil fosse predominantemente domstica na Inglaterra dos sculos XVIII e XIX, tinha laos muito fortes com a economia tanto urbana 48 como rural: era a criana quem substitua, s vezes em todos os nveis, a me e o pai nos trabalhos de casa com todos os nus como, por exemplo, ausncia da atividade escolar bsica. Para concluir apresentamos o impressionante relato da Inglesa Syvia Lynd, mencionado no trabalho de Trtima, 49 onde os pequeninos escravos rfos e abandonados eram entregues, s levas, pelos asilos, a qualquer empregador, por mais brutal que fosse, por mais perigoso e degradante que esse trabalho se constitusse. As crianas eram deformadas e mutiladas pelas mquinas, adquiriam novas e estranhas enfermidades industriais, passavam fome e eram espancadas. Crianas de dez, sete, cinco ou mesmo trs anos passavam doze horas seguidas ou mesmo dias e noites inteiros, na escurido das minas. s vezes, trabalhavam dentro dgua,

Thompson se refere ao relato de M. D. George, London Life in the Eighteenth Century, cap. 5. TRTIMA. op. cit. p. 3 apud MARX, Karl. Le Capital, v. 3. Paris: Alfred Costes, 1924.Reportando-se a essa fase da Revoluo Industrial e descrevendo a sordidez social de Londres, cita como exemplo Bethnal Geen, um distrito de m fama da capital britnica, onde todas segundas e teras feiras se organizava um mercado pblico, onde as crianas dos dois sexos, de nove anos ou mais se ofereciam aos fabricantes de seda da cidade. Por pouco mais de 1 shiling e bem menos de 2, entregues a seus pais, a questo da mo-deobra de obra estava resolvida: por esse preo o patronato tinha seus trabalhadores infantis pelo espao de uma semana. (Marx, K. Le Capital; livre premier; le procs de la production du capital; Paris: Alfred Costes, 1924., v. 3, p. 44) Baseando-se nos volumosos relatrios do Childrens Employment Comission, Marx revela que, com muita freqncia, as mulheres iam apanhar meninos nas instituies de caridade para alug-los por 2, 6 shiling semanais a qualquer comprador e que, a despeito da legislao, continuou-se a vender o jovem uma espcie de maquina humana destinada a limpar chamins, ainda que j existisse uma aparelhagem prpria para esse tipo de servio. (Marx, K. Op. cit., p. 45). Sempre lanando mo desses relatrios, Marx demonstra a fragilidade desse ncleo familiar, muitas vezes, obrigado a alugar seus filhos: mo-de-obra barata e dcil que o empresariado manifestamente dava preferncia (Ibid) Em O Capital, fica registrado que como resultado da revoluo verificada na maquinaria [fruto do desenvolvimento do sistema] nas relaes legais entre o comprador e o vendedor da fora de trabalho, toda a transao no se assemelha mais em nada com um contrato entre pessoas livres. (Ibid) Marx esclarece que o Estado, atravs do Parlamento, opera uma interveno e limita as horas de trabalho (6 horas dirias) do menor e os industriais se queixam. Segundo eles, alguns familiares retiravam seus filhos de suas industrias e os empregavam em outras ainda intocadas pela nova regulamentao onde os pequenos de menos de 13 anos eram forados a trabalhar como adultos e, conseqentemente, poderiam ser vendidos por outro preo. Mas, acrescenta Marx, como o capital naturalmente nivelador, quer dizer exige em todas as esferas da produo, como um direito natural inato, a igualdade das condies de explorao do trabalho, a limitao legal do trabalho das crianas em um ramo da industria torna-se a causa de sua limitao numa outra (Ibid). Reportando-se ao massacre social dos trabalhadores, em especial das crianas e das mulheres, Marx assinala o papel espoliativo do capital, inicialmente nas fbricas onde ele opera e, depois, em todos ramos da industria. Nesse sentido, ele fornece alguns dados sobre a mortalidade do menor operrio na Inglaterra no incio da dcada de 60 do sc. XIX. Segundo os registros oficiais (Sixth Report and Public Health. London, 1864. p.34) das 100.000 crianas registradas, em alguns distritos como Manchester, por exemplo, a mortalidade chegou a atingir 26125 crianas em 1861 (Ibid, p. 46). 49 TRTIMA. op. cit. p. 4 apud LYND, Sylvia. Crianas Inglesas. Rio de Janeiro: J. Olympio, s. d., p. 40. Muito interessante a similitude da anlise dessa historiadora com a de E. P. Thompson, de formao marxista. Friederich Engels em A situao da classe trabalhadora na Inglaterra, lana, j em 1845, pesadas acusaes ao sistema e tece uma fina crtica ao mesmo. Marx reconhece isso no O Capital. Naquele trabalho, bastante pioneiro e solitrio, Engels desvenda, entre outras coisas, a brutalidade da burguesia industrial britnica que no conhece limites: as crianas e mulheres no passam de instrumentos suplementares de suas maquinas so baratos e substituveis, numerosos e dceis.48

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manejando as bombas; outras vezes, ficavam encerradas em pequenas celas, puxando cordes para a ventilao dos poos. O que surpreende, conclui essa historiadora, no tanto que as primeiras experincias industriais fossem revestidas da imundcie, da brutalidade e da desorganizao geral da poca, mas que pudessem co-existir com tudo isso, o fausto do Imprio Britnico50

. Talvez esse mesmo fausto fosse o grande responsvel de semelhante estado. Aos poucos, relatrios mdicos publicados pela exigncia dos sindicatos e das

Trade-Unions, relatrios das Comisses sobre o Emprego das Crianas, organizadas pela minoria parlamentar, mostravam um quadro to ou mais aterrador: crianas com marcas de calvcie em funo do longo emprego de suas cabecinhas empurrando vagonetes nas minas de carvo ..., crianas de quatro anos trabalhando montadas, a cavaleiro, em traves distantes cinco ou seis metros do solo as escadas retiradas para, desta forma, mant-las presas ao trabalho ininterrupto, sem dormir, porque, se assim acontecesse, cairiam.

*** Pequenos Trabalhadores do Brasil 51 podem dar seus depoimentos da longa histria brasileira de explorao da mo-de-obra infanto-juvenil. 52 Segundo Irma Rizinni 53 crianas pobres sempre trabalharam. Para quem? Para seus donos, no caso das crianas escravas da Colnia e do Imprio; para os capitalistas do incio da industrializao, como ocorreu com as crianas rfs, abandonadas ou desvalidas a partir do final do sculo XIX; para os grandes proprietrios de terras como bias-frias;

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RIZZINI, Irma. Pequenos Trabalhadores do Brasil. apud Histria das Crianas no Brasil. In Mary Del Priore. p. 377 No relatrio Um Futuro sem Trabalho Infantil, a OIT mostrou que uma em cada seis crianas e adolescentes com idade entre cinco e 17 anos no mundo exerce algum tipo de atividade econmica. So 246 milhes de crianas trabalhando, sendo que 73 milhes tem menos de dez anos. Outro dado impressionante revela que uma em cada oito crianas do mundo est exposta s piores formas de trabalho infantil, como trfico, explorao sexual e atividades danosas, o que pe em perigo seu bem-estar fsico, mental e moral. Nenhum pas est imune: 2,5 milhes de das crianas trabalham em pases desenvolvidos e outros 2,5 milhes, em pases em transio. E todo ano, 22 mil crianas morrem em acidentes de trabalho. No Brasil, grande parte da mo-de-obra do setor agrcola formada por crianas com menos de 15 anos. Em setores como caf, cacau e algodo, entre 25% e 30% dos trabalhadores so crianas, apesar de o Pas ter ratificado os dois tratados internacionais que probem trabalho infantil. Segundo a OIT, 70% de todos os casos de trabalho infantil no mundo ocorrem no setor agrcola, e 8% em lojas, restaurantes e hotis. Outro problema cujo enfrentamento com destaque nos ltimos tempos o trabalho infantil domstico. De acordo com dados do IBGE, h no Brasil, hoje, cerca de 5 milhes de crianas e adolescentes trabalhando. Desse total, em torno de 1,2 milho fazem trabalhos domsticos, mas metade no possui vnculo laboral. Disponvel em: . Acesso em 25 abr. 2005. 53 RIZZINI. op. cit. p. 377

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nas unidades domsticas de produo artesanal ou agrcola; nas casas de famlia; e finalmente nas ruas, para manterem a si e as suas famlias.A extino da escravatura foi um divisor de guas no que diz respeito ao debate sobre trabalho infantil; multiplicaram-se, a partir de ento, iniciativas privadas e pblicas, dirigidas ao preparo da criana e do adolescente para o trabalho, na indstria e na agricultura. O debate sobre a teoria que o trabalho seria a soluo para o problema do menor abandonado e/ou delinqente comeava, na mesma poca, a ganhar visibilidade. A experincia da escravido havia demonstrado que a criana e o jovem trabalhador constituam-se em mo-de-obra mais dcil, mais barata e com mais facilidade de adaptar-se ao trabalho. Nessa perspectiva, muitas crianas e jovens eram recrutados nos asilos de caridade, algumas a partir dos cinco anos de idade, sob a alegao de propiciarlhes uma ocupao considerada mais til, capaz de combater a vagabundagem e a criminalidade. Trabalhavam 12 horas por dia em ambientes insalubres, sob rgida disciplina. Doenas, como a tuberculose, faziam muitas vtimas... 54

*** A partir de 1920 praticamente a cada dcada eram criadas leis e instituies governamentais para proteger as crianas, embora muitas vezes o resultado fosse exatamente o contrrio. 55 Em 5 janeiro de 1921 sancionada a Lei 4242 que afasta da nossa legislao penal a teoria da ao com discernimento, declarando o menor infrator inimputvel, fixando a idade penal em 14 anos. Em 20 de dezembro de 1923 institudo pelo Decreto 16.272 o juizado privativo de Menores. No ano seguinte em 1924, comea a funcionar no Rio de Janeiro o primeiro Juizado de Menores do Brasil, graas ao esforo do legislador e jurista Mello Mattos. Com o decreto 16.272, foi criado um abrigo provisrio de menores, subordinado ao juizado privativo de Menores, onde era feita a triagem de menores (abandonados ou delinqentes) para encaminh-los para outros estabelecimentos. Em 12 de outubro de 1927, o Decreto 17.943-A, cria o primeiro Cdigo de Menores do Brasil, de autoria do jurista e legislador Jos Cndido Albuquerque de Mello Mattos (Cdigo Mello Mattos de 1927).

54 55

idem, ob. Cit. p. 377/378 1923 Juizado de Menores; 1927 1 Cdigo de Menores; 1940 SAM Servio de Atendimento ao Menor

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O Cdigo de Menores de 1927 conseguiu corporificar leis e decretos que, desde 1902, propunham-se a aprovar um mecanismo legal que desse especial relevo questo do menor de idade. Alterou e substituiu concepes obsoletas como as de discernimento, culpabilidade, responsabilidade, disciplinando, ainda, que a assistncia infncia deveria passar da esfera punitiva para a educacional. O objetivo e fim do Cdigo de Menores de 1927 so descritos logo no seu art. 1, que dispe: O menor, de um ou outro sexo, abandonado ou delinqente, que tiver menos de 18 annos de idade, ser submetido pela autoridade competente s medidas de assistencia e proteco contidas neste Cdigo. (grifei) O Cdigo trazia no seu bojo definies das categorias menores abandonados (art. 26); menores vadios (art. 28); mendigos (art. 29); e libertinos (art. 30), e por conseqncia medidas especficas para cada situao. Que poderia ser, por exemplo, a internao at a maioridade em escola de preservao (art. 61, II), com reviso de trs em trs anos (art. 65). Para RIZZINI (1993:3) 56 a promulgao do Cdigo de 1927 marcou o incio de uma fase intensa de interferncia do Estado como resposta aos apelos de soluo ao problema do menor abandonado expresso que se tornou popular durante o seu longo perodo de vigncia (1929-1990). Da dcada de 30 em diante, constituiu-se um sistema de proteo e assistncia tido como autoritrio e discriminatrio, pois que alicerado numa lei que centralizava poderes na figura do Juiz de Menores e se baseava em critrios de moralidade e classe social, sendo a noo de menor associada a abandono moral, criminalidade e pobreza. De acordo com ARANTES 57 , citando Silva, (2003) com a aprovao deste Cdigo consagra-se no Brasil um sistema dual no atendimento criana uma vez que enquanto o Cdigo Civil de 1916 tratava das crianas felizes ou filhos de famlia o Cdigo de Menores tratava das crianas expostas, abandonadas, vadias, mendigas e libertinas. Nas palavras de Silva:

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RIZZINI, Irene. As Bases da Nova Legislao da Infncia. In Subsdio. INESC, 1993, p. 3 ARANTES. op. cit. p. 3

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O Cdigo de Menores de 1927, que consolidou toda a legislao at ento emanada de Portugal, pelo Imprio e pela Repblica, consagrou um sistema dual no atendimento criana, atuando especificamente sobre os chamados efeitos da ausncia, que atribui ao Estado a tutela sobre o rfo, o abandonado e os pais presumidos como ausentes, tornando disponveis os seus direitos de ptrio poder. Os chamados direitos civis, entendidos como os direitos pertinentes criana inserida em uma famlia padro, em moldes socialmente aceitveis, continuou merecendo a proteo do Cdigo Civil Brasileiro (...) (Silva,2003: 1-2) 58

A concepo dessa Lei ps em relevo tambm questes controversas em relao legislao civil em vigor. Com o Cdigo de Menores, o ptrio poder foi transformado em ptrio dever, pois ao Estado era permitido intervir na relao pai/filho, ou mesmo substituir a autoridade paterna, caso este no tivesse condies ou se recusasse a dar ao filho uma educao regular, recorrendo ento o Estado utilizao do internato. J para o Cdigo Civil (1916), o pai, enquanto chefe da prole continuava detendo o ptrio poder sobre todos os que compunham a estrutura familiar: mulher, filhos, agregados, pessoas e bens sob o seu domnio. Desde 1916 o Brasil possui um Cdigo Civil 59 , em plena vigncia por mais de 86 anos, 60 que regulava os chamados direitos civis, entendidos como os direitos pertinentes criana inserida em uma famlia padro, continuou merecendo a proteo do Cdigo Civil Brasileiro (Silva,2003: 1-2). O Decreto n 17.943-A, de 12 de outubro de 1927, tambm conhecido por Cdigo de Menores Mello Mattos consolidou toda a legislao de assistncia e proteo sobre crianas emanada por Portugal, pelo Imprio e pela Repblica. No art. 1, dispunha sobre seu objeto e finalidade: O menor, de um ou outro sexo, abandonado ou delinqente, que tiver menos de 18 anos de idade, ser submetido pela autoridade competente s medidas de assistncia e proteo contidas neste Cdigo. Em 16 de julho de 1934 promulgada a segunda Constituio Federal da Repblica (3 Constituio Brasileira) por uma Assemblia Nacional Constituinte. a primeira

SILVA, Roberto da. A construo do estatuto da Criana e do Adolescente. Disponvel em:. Acesso em 20 jan. 2005. 59 Lei n 3.071, de 1 de janeiro de 1916. 60 O Cdigo Civil de 1919, que regulava os direitos individuais, o direito de propriedade e o direito de famlia. Especificando as as obrigaes dos pais em relao aos filhos, desde o nascimento at os 21 anos. Entre as obrigaes esto o direito de filiao, sucesso no nome e na herana, alimentao, a educao e sade, intervindo o Estado apenas a ttulo complementar, se faltar a proteo familiar.

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constituio republicana e brasileira que menciona questes vinculadas infncia e juventude. Incumbe Unio, aos Estados e aos Municpios, nos trmos das leis respectivas: amparar a maternidade e infncia e proteger a juventude contra tda explorao, bem como contra o abandono fsico, moral e intelectual (art.138, letras c e d). proibio de trabalho a menores de 14 anos; de trabalho noturno a menores de 16 e em indstrias insalubres, a menores de 18 anos e a mulheres;(art.121 par. 1, letra d). Em 10 de novembro de 1937 outorgada pelo Presidente Getulio Vargas (Golpe Militar do Estado Novo) a 3 Constituio Federal Republicana(4 Constituio Brasileira). A partir de 1937, ampliada a esfera de proteo criana desde a infncia, ficando ao encargo do Estado assisti-la nos casos de carncia e abandonado (art 127 caput). Quando a trabalho infanto-juvenil se mantm as mesmas regras da Constituio de 1934 (art. 137. letra K) Em 7 de setembro de 1940 sancionado o Cdigo Penal Brasileiro (Decreto Lei 2848) a idade penal foi fixada em 18 anos de idade. os menores de 18(dezoito) anos so penalmente inimputveis, ficando sujeitos s normas estabelecidas na legislao especial (art.23) Nesse perodo a sociedade brasileira inaugurava o seu desenvolvimento industrial, o problema do menor passa a ser visto como uma ameaa ao progresso econmico; para tirar essa ameaa das ruas o governo de Getlio Vargas 61 criou o Servio de Assistncia ao Menor SAM (Decreto n 3779/41) com a tarefa de prestar em todo o territrio nacional, amparo social aos menores desvalidos e infratores, isto , sua meta era centralizar a execuo de uma poltica nacional de assistncia, dando um suporte operacional ao Cdigo de Menores de 1927. Defendia uma pedagogia de internao onde a exposio mxima ao trabalho disciplinado resultaria na recomposio de identidade do menor abandonado e infrator, dentro dos padres de comportamento aceitveis pela sociedade brasileira. ***

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Para maiores detalhes ver: GOMES, ngela de Castro. A Inveno do Trabalhismo. Ed. Vrtice

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Em 1964 acontece o golpe militar. Foi um perodo repleto de atrocidades, torturas e direitos violados; e para as crianas e adolescentes a poltica de atendimento tinha um carter assistencialista, paternalista e repressivo. O golpe militar de 1964 produz um novo pacto poltico-social em que o Estado brasileiro aprofunda o seu carter autoritrio, de acordo com a doutrina de segurana nacional. 62 Com a ditadura militar a represso que tomou conta da sociedade tambm atingiu as aes relativas infncia e adolescncia. 63 Predomina neste perodo uma viso que a questo do menor abandonado e infrator brasileiro uma questo de segurana nacional, onde o Estado deve buscar disciplinar, reprimir, reeducar a criana abandonada, para que futuramente ela no se torne um instrumento de oposio contra o sistema democrtico capitalista. O auge jurdico-poltico dessa mentalidade se deu com a instituio do Cdigo de Menores de 1979 baseado na Doutrina da situao irregular. Nesse perodo o SAM desaparece e em seu lugar instituda a Poltica Nacional de Bem-Estar do Menor PNBEM 64 que executada em nvel nacional pela FUNABEM Fundao Nacional do Bem Estar do Menor e nos Estados pelas FEEM Fundao Estadual do Menor. Esta instituio segue a linha pedaggica de internao do antigo SAM, com o apoio doutrinrio e logstico da Escola Superior de Guerra. (ESG), atravs de sua Doutrina de Segurana Nacional. Essa poltica tratava especificamente da infncia pobre, meninos e meninas infratores ou carentes eram considerados incapazes de viver em sociedade, suas famlias eram consideradas incapazes de cuidar deles, logo cabia ao Estado proteg-los, suprir suas carncias e decidir sobre suas vidas.

WANDERLEY, Sonia. A Construo do Silncio. A rede globo nos projetos de controle social e cidadania: - Dissertao de mestrado. UFF. Niteri, 1995. p. 19 a doutrina de segurana nacional, na sua vertente brasileira, foi elaborado pela Escola Superior de Guerra, dentro da conjuntura da disputa ideolgica, fruto da guerra fria apud MALAGUTI, Vera. Ob. Ci. p. 69 63 nesse sentido ver BAZLIO, Luiz Cavalieri. O Menor e a Ideologia da Segurana Nacional. Belo Horizonte : Vega-novo Espao, 1985 64 Lei n 4513/64

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Mas, apesar de procurar dar uma nova orientao poltica de atendimento, a FUNABEM mantm a mesma estrutura do SAM, o que fez com que as condies precrias de atendimento e os maus tratos continuassem presentes nas novas unidades de atendimento que, geralmente, mantinham crianas e adolescentes confinados, autores ou no de ato infracional, longe de suas famlias e de seus Estados. A poltica correcional / repressiva, por outro lado, tenta assumir um carter mais assistencialista e a infncia pobre passa a ser vista como carente, fsica e psiquicamente, sem condies de enfrentar os desafios da sociedade moderna. Carncia esta causada por questes isoladas onde, em ltima instncia, a culpa era sempre da famlia e nunca do Estado ou da Sociedade. De acordo com Santos 65 aquela poltica tinha carter compensatrio, cuja finalidade era compensar as carncias sociais de determinados segmentos da populao tais como menor, idoso e no de estender a cobertura das polticas sociais bsicas a esses segmentos. O objetivo geral dessa poltica tem sido impedir que o carente se transforme em infrator, reprimir os infratores, punir sua delinqncia e recuper-los para a vida social integrada. Esta concepo, baseada na carncia da criana, foi marcada pela criao de centros de triagem e de internatos espalhados pelo pas onde os meninos e meninas eram levados com a inteno de serem recuperados para a sociedade. Mas, na verdade, o que acontecia era a separao da criana de sua famlia, de sua comunidade, de sua identidade e histria de vida e esta criana passava a ficar estigmatizada para o resto de sua vida.Esta poltica foi e tem sido estigmatizante e segmentadora, pois divide e rotula os filhos dos trabalhadores menor carente, menor abandonado, menor de conduta anti-social, infrator, delinqente -, criando assim uma carreira moral. O modelo de tratamento adotado assistencialista, paternalista e correcional. (...). um modelo autoritrio e perverso, pois se encontra apoiado no ciclo de apreensorecepo-triagem-deportao de crianas e adolescentes, visando manuteno da ordem estabelecida. E tambm irrelevante, pois na prtica a institucionalizao no evitou (nem evita) a formao de identidade delinqente e, tampouco, solucionou o problema em termos de cobertura do atendimento. 66

65 66

SANTOS. op. cit. p.14 idem, op. cit. 14

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Em 1979 no ano internacional da criana criado um novo cdigo de menores 67 baseado na doutrina da situao irregular. Com o surgimento do Cdigo de Menores de 1979, surge uma nova categoria: menor em situao irregular, isto , o menor de 18 anos abandonado materialmente, vtima de maus-tratos, em perigo moral, desassistido juridicamente, com desvio de conduta ou autor de infrao penal e, portanto, sujeito interveno do Juiz de Menores. O Cdigo de Menores de 1979, apesar de ter constitudo em relao ao anterior (de 1927), um avano em algumas direes, continha, no entanto, aspectos controversos que permitiam questionamentos e crticas, como o caso das caractersticas inquisitoriais do processo envolvendo crianas e adolescentes, quando a prpria Constituio garantia ao maior de 18 anos defesa ampla; o referido Cdigo no previa o princpio do contraditrio. Outro fato que pode ser colocado como exemplo dessa distoro era a existncia para os menores de 18 anos da priso cautelar, uma vez que o menor, ao qual se atribua a autoria de infrao penal, podia ser apreendido para fins de verificao, o que constitua uma verdadeira afronta aos direitos da criana, na medida em que para o adulto a priso preventiva s poderia ser aplicada em dois casos: flagrante delito ou ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciria competente. Ainda dentro do perodo da ditadura militar, mas j no incio do processo de abertura democrtica, no final dos anos 70, alm do surgimento de um novo cdigo de menores (1979) que no alterava, em muito, a essncia do anterior paralelo a essa concepo correcional assistencialista, comea a surgir uma nova concepo de atendimento infncia, trazida pelos chamados projetos alternativos. Iniciativas da sociedade civil foram os primeiros passos para o surgimento de entidades e movimentos que a partir da dcada de 70 assumem um papel importante na luta pelos direitos de crianas e adolescentes no Brasil.Esses projetos traziam duas idias, que mudaram radicalmente as concepes do chamado projeto filantrpico: a criana deve ser sujeito do processo pedaggico e deve ser trabalhada no contexto em que est inserida

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Lei n 6.697/79

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Esses projetos alternativos foram desenvolvidos em especial por iniciativa de movimentos populares e pastorais de Igreja que atuavam junto a meninos e meninas de rua e que abandonavam a antiga tica da criana como um objeto, passando a consider-la como sujeito de sua prpria histria. Esse tipo de trabalho se consolidou no final da dcada de 70 e ao longo da dcada de 80, fomentando a criao do Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua e de um amplo movimento de luta pela defesa dos direitos de crianas e adolescentes que viria culminar no surgimento do Estatuto da Criana e do Adolescente. As dcadas de 70 e 80, auge e fim do governo militar, marcam o ressurgimento da mobilizao social em prol dos direitos polticos. Corresponde a uma fase de enfrentamento do regime militar. Em conseqncia a rearticulao da sociedade civil, acompanhada de elaborao de vrios projetos de mudana social, a unio das foras de oposio, que culminou com a eleio do MDB 68 as eleies de 1974 da retomada pela redemocratizao, a necessidade de participao dos indivduos na sociedade. Esta fase corresponde a um perodo de intensa movimentao social, em que pese ter sido os anos oitenta considerados a dcada perdida em termos de desenvolvimento econmico no Brasil, mas altamente positiva tanto poltica como culturalmente, findandose com um quadro desanimador: a desmobilizao e descrena das massas (GOHN, 2001). Se por um lado, o pas passava por um acelerado processo de degradao, dado pelas caractersticas da conjuntura poltica, e bastante ampliado pela dimenso dos problemas sociais, pelo aumento do contingente populacional do pas por outro, os avanos polticos e institucionais, rumo ao estado democrtico de direito. Como sabemos, em 1982, o pas teve eleies diretas para os governadores dos estados, aps quase duas dcadas de indicaes pelo regime militar. Junto com a volta do jogo democrtico teve-se o acirramento da crise econmica e uma onda geral de desemprego.

68 MDB Movimento Democrtico Brasileiro, partido de oposio vitorioso nas eleies de 1974, foi considerado um vigoroso no da populao ao regime poltico vigente, constituindo-se respaldo suficiente aos grupos a formular planos e propostas de mudana. GONH, Maria . ob. cit. p. 114-115

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Esse movimento chegar ao final da dcada com um significativo saldo de conquistas e realizaes em favor da infncia e da juventude A dcada de 80 foi extremamente rica do ponto de vista das experincias polticosociais. A luta pelas Diretas-J em 1984 e pela implantao de um calendrio poltico que trouxesse de volta as eleies para Presidncia do pas 69 . Com a queda do governo militar em 1985 so convocadas as eleies para a Assemblia Constituinte abrindo espao para se pensar em uma nova lei para infncia e adolescncia. Enfim, em meio a uma crise econmica, o Pas elegeu um presidente civil, elaborou uma nova Carta Constitucional com ampla participao democrtica dos mais diversos segmentos da sociedade. Esse movimento chegar ao final da dcada com um significativo saldo de conquistas e realizaes em favor da infncia e da juventude. *** Em 1986 com a reeleio do Congresso Nacional que tambm funcionou como Assemblia Constituinte. As organizaes populares promoveram um intenso processo de sensibilizao dos parlamentares para incluso dos direitos infanto-juvenis na nova carta. O resultado dessa luta est nos artigos 227 e 228, em que crianas e adolescentes passam a ser prioridade absoluta. A Constituio significou um grande avano nos direitos sociais e isto por sua vez beneficiou, entre outros grupos nacionais, a criana e o adolescente. Nessa perspectiva, tem-se, exemplificativamente, que a idade mnima para admisso ao trabalho , novamente, fixada aos 14 anos - art. 7, XXXIII. Quanto educao, tal Carta Magna, em seu art. 208, determina como dever do Estado garantir ensino fundamental, obrigatrio e gratuito, mesmo para os que a ele no tiverem acesso na idade prpria. Em 1990 sancionado a Lei n. 8.069/90 - Estatuto da Criana e do Adolescente adotando expressamente a doutrina da proteo integral, reconhecendo a criana como69

Perodo de surgimento de vrias centrais sindicais (CONCLAT, CGT, CUT, FORA SINDICAL) e o surgimento de inmeros movimentos sociais em todo territrio nacional como das mulheres, negros, crianas, meio ambiente, etc.

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cidado, pondo fim a situaes repressivas do Cdigo de Menores de 1979 e das polticas da FUNABEM e tantas outras que implicavam numa ameaa aos direitos das crianas e dos adolescentes, suscitando, no seu conjunto de medidas, uma nova postura a ser tomada tanto pela famlia, pela escola, pelas entidades de atendimento, pela sociedade e pelo Estado, objetivando resguardar os direitos das crianas e adolescentes, zelando para que no sejam sequer ameaados.Quem esse menino que est sempre presente em vrios momentos da histria, vivendo situaes to diferentes? A resposta muito simples, eu sou a criana e o adolescente deste pas. E posso estar nas ruas pedindo, lavando carros, vendendo qualquer coisa, sendo vtima de violncia domstica e sexual, cometendo ato infracional, sendo preso, assassinado. Mas tambm posso estar na escola, brincando no parque, convivendo com outras crianas, participando de manifestaes culturais... 70

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SANTOS, Murilo. Trecho do vdeo O Pequeno Imperador Uma Histria de 500 anos. Op. cit.

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CAPTULO 2 A POSIO DA CRIANA DENTRO DE UMA SOCIEDADE DE CLASSES 1. Origem Social da Infncia 71 e sua Funo HistricaUma rigorosa anlise histrica demonstra que a histria da infncia a histria de seu controle. Emlio Garcia Mendez

A infncia constitui o resultado de um complexo processo de construo social cujas origens podem ser encontradas por volta do sculo XVII. Isto significa afirmar que a infncia de hoje no foi notada como uma categoria diferenciada dos adultos, antes de tal perodo (Mendez, 1994) 72 . Ao longo deste sculo, cresce o esforo pelo conhecimento da criana em vrios campos: nas diversas correntes da psicologia e da psicanlise; na histria; na sociologia; na antropologia e na educao. Na histria social da criana e da famlia, destaca-se a contribuio de Philipe Aris, atravs de seu livro Histria Social da Infncia e da Famlia, publicado tanto na Frana (1960) quanto nos E.U.A (1962), cuja fonte de documento heterodoxa era a pintura de poca, demonstrando que antes do sculo XVII, depois de passado o perodo estrito de dependncia materna, esses indivduos pequenos se integram totalmente ao mundo dos adultos. Aris tornou-se um dos precursores do estudo sobre o aparecimento da noo de infncia na sociedade moderna. Infncia essa nascida no interior das classes mdias que se formavam na burguesia. Snia Kramer 73 nos lembra que a idia da infncia surge no contexto histrico e social da modernidade, com a reduo de mortalidade infantil graas ao avano da cincia e mudanas econmicas e sociais.

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Segundo a origem etimolgica infans aquele que no fala. lat. infanta,ae 'dificuldade ou incapacidade de falar, mudez; infncia, meninice, primeira idade dos animais; o que novo, novidade', do lat. infans,ntis 'que no fala; criana'; ver fa-; f.hist. 1533 infancia, 1533 emfancia (dicionrio eletrnico Houaiss de lngua portuguesa) 72 MENDEZ. COSTA. Ob. cit. p. 63 73 KRAMER, Sonia; BAZLIO, Luiz Cavalieri. Infncia, Educao e Direitos Humanos.

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Kramer (2003:87) ao analisar a dupla viso observada por Aris sobre o modo de ver a infncia, ou seja, a idia de uma criana da burguesia que precisava ser moralizada e paparicada, lembra tambm da misria das populaes infantis daquela poca, do trabalho escravo e opressor que desde o incio da Revoluo Industrial as condenava a no serem crianas. A adolescncia confundia-se com a infncia, que terminava em torno dos sete anos de idade, quando iniciava, sem transio, a idade adulta. De acordo com Aris:Na Idade Mdia, nos tempos modernos, por mais tempo ainda nas classes populares, as crianas confundiam-se com os adultos assim que se considerava que eram capazes de passar sem a ajuda da me ou da ama, poucos anos aps um desmame tardio, por volta dos sete anos de idade.

Na dcada seguinte, em 1974, acrescida da publicao do texto de Lloyd De Mause sobre a evoluo da infncia. De acordo com Finkelsteins(1986) 74 a histria da infncia (Aris) e a histria da educao (De Mause) esto relacionadas tanto conceitual quanto socialmente:la histria de la infncia y la historia de la educacin estaban conectadas de modo inextricable, y em varios niveles. Em primer lugar, estaban conectadas conceptual e psicologicamente. Em segundo lugar, estaban relacionadas em el tiempo. Em tercer y ltimo lugar, estaban unidas social e institucionalmente. Tanto Aris como De Mause enfatizaron la simultaneidad em el tiempo Del descubrimiento o reconhocimiento de la infncia moderna y la aparicin de instituciones protectoras donde cuidar e formar a la generacin ms joven.

Para Mendez 75 (1994:64) a construo social da categoria infncia seria impossvel de se entender sem mencionar a instituio que contribui decisivamente para a sua consolidao e reproduo ampliada: a escola. No entanto, nem todos os integrantes desta nova categoria tm acesso instituio escola 76 . Tal a diferena scio-cultural que estabelece no interior do universo infncia, entre aqueles que permanecem vinculados instituio escola e aqueles que no tm acesso

74 FINKELSTEIN, Brbara. La incorporacion de la infncia e la historia de la educacin. Revista de educacin, Madrid, n 281 p. 19-46, 1986 apud QUINTEIRO, Jucirema. A Emergncia de uma Sociologia da Infncia no Brasil. Disponvel em: . Acesso em 16 mar. 2005. 75 MENDEZ & COSTA, ob. Cit. p. 64

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ou so expulsos dela, que o conceito genrico infncia no poder incluir a todos. Os excludos se convertero em menores. Para a infncia, a famlia e a escola cumpriro as funes de controle e socializao 77 . Para os menores, ser necessria a criao de uma instncia de controle scio-penal: o tribunal de menores 78 (que, no por acaso, recebe esta denominao desde suas origens). No Brasil apenas a partir da dcada de 1930 a escola elementar se tornou direito de todos (Kramer, 2003:97). Nesse sentido, Neder(1994:23-24) afirma que o pensamento social e poltico no Brasil, desde o fim da Escravido, vem apontando que a Educao a soluo para o pas. Entretanto, tal projeto no corresponde a uma real aceitao psico-afetiva dos intelectuais que a propem. Lembra que foi Joaquim Nabuco, distncia, afetiva e geogrfica (porque de Londres, escrever O Abolicionismo) props educar o ex-escravo para a cidadania.Afinal, com a hegemonia do paradigma cientfico biologista na virada do sculo XIX para o sculo XX, e com medo do descontrole social diante da Abolio da Escravido, era mais fcil defender o servio militar obrigatrio do que a instruo bsica obrigatria. Destarte, o servio militar tido e havido como uma escola de vida, onde os filhos das classes subalternas passam por uma ressocializao.

E ainda:Digo de outro modo, a escola possvel para uma massa de ex-escravos, biologicamente inferiores. O Brasil instituiu, assim, o servio militar obrigatrio antes de estabelecer a obrigatoriedade da educao bsica. 79 (grifei)

O reprter Josias de Souza no artigo Semi-analfabetos concluem o segundo grau, faz meno a educadora alem Ina Von Binzer que viveu no Brasil entre 1881 a 1883. Trabalhando como aia em casa ricas do Rio de So Paulo. Zelando pela educao domstica de crianas bem-nascidas:Eletrificado pelo debate em torno da iminente abolio da escravatura, o pas se contorcia sua volta. Em cartas enviadas para amiga na Alemanha, Ina lastimava que as crianas negras, quela altura j libertas ao nascer, no recebessem nenhum tipo de instruo. Segundo o raciocnio das almas brancas, seria um desperdcio de dinheiro. Livres, os negrinhos no dariam mais lucro.

77

nesse sentido ver BARATTA, Alessandro. O sistema escolar como primeiro segmento do aparado de seleo e de marginalizao da sociedade. In Criminologia Crtica e Crtica do Direito Penal. P. 171 ss. 78 Ver captulo sobre a histria dos tribunais de menores 79 NEDER, Gizlane, ob. Cit. p. 23-24

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Ina perguntava amiga: No estaro percebendo que, agindo assim, esto preparando a pior gerao que se possa imaginar para conviver mais tarde com seus prprios filhos. 80

recente a construo social da infncia como um novo paradigma 81 que enfatiza a necessidade de se elaborar a reconstruo do conceito adultocntrico da infncia. Para Jurirema Quinteiro (apud Narodowski, 1994, p. 173):a infncia um fenmeno histrico e no meramente natural, e as caractersticas da mesma no ocidente moderno podem ser esquematicamente delineadas a partir da heteronomia, da dependncia e da obedincia ao adulto em troca de proteo.82

As relaes de poder entre o adulto e a criana, via de regra so caracterizadas pela condio de subalternidade desta em relao quele. A insero concreta das crianas e seus papis como observado, variam com as formas de organizao social. Nesse sentido Mendez(1994:23) 83 afirma que Amrica Latina carece de investigaes no campo da histria social sobre a especificidade do processo que cria e fixa a categoria infncia. Em outra direo Kramer afirma que:[...] o significado ideolgico da criana e o valor social atribudo infncia tm sido objeto de estudo da sociologia, ajudando a entender que a dependncia da criana em relao ao adulto fato social e no natural. A distribuio desigual de poder entre adultos e crianas tem razes sociais e ideolgicas, que repercutem no controle e na dominao de grupos. Tambm a antropologia, pesquisando a diversidade, tem permitido conhecer as populaes infantis, suas brincadeiras, atividades, msicas, histrias e outras prticas culturais. Alm disso, este sculo assistiu busca de uma psicologia baseada na histria e na sociologia: as idias de Vygotsky e Wallon e o debate com Piaget mostram este avano e revolucionam os estudos da infncia. 84

80 SOUZA, J. Semi-analfabetos concluem o segundo grau. Folha de So Paulo, p. A-19. 24 ago. 2000. A correspondncia de Ina foi reunida em livro da dcada de 50. Chama-se Os Meus Romanos Alegrias e Trinstezas de uma Educadora Alem. Lendo-o, percebe-se que o Brasil das cartas da professora, embora velho de 120 anos, atualssimo. 81 Somente em 1990, os socilogos da infncia reuniram-se pela primeira vez no Congresso Mundial de Sociologia para debater sobre os vrios aspectos que envolvem o processo de socializao da criana e a influncia exercida sobre esta pelas instituies e agentes sociais com vistas sua integrao na sociedade contempornea (QUINTERO, Jucirema A Emergncia de Uma Sociologia da Infncia no Brasil) 82 NARODOWSKI, Mariano. Infncia e Poder: la conformacion de la pedagogia moderna. Buenos Aires : Ed. Aique, 1994 apud QUINTEIRO, Juciema, ob. Cit. p. 4 83 MENDEZ e COSTA. Op. Cit. p. 23 84 KRAMER, op. cit. p. 86

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A histria da infncia no Brasil marcada pelo etnocentrismo, 85 viso ocidental e adultocntrica da criana considerada como um vir a ser, tabula rasa, folhas em branco na qual os adultos imprimem a sua cultura, um objeto a ser tutelado.

2. Menores - Classes PerigosasDia a dia nega-se s crianas o direito de ser crianas. Os fatos, que zombam desse direito, ostentam seus ensinamentos na vida cotidiana. O mundo trata os meninos ricos como se fosse dinheiro, para que acostumem a atuar como o dinheiro atua. O mundo trata os meninos pobres como se fossem lixo, para que se transformem em lixo. E os do meio, os que no so ricos nem pobres, conservaos atados mesa do televisor, para que aceitem desde cedo, como destino, a vida prisioneira. Muita magia e muita sorte tm as crianas que conseguem ser crianas Eduardo Galeano 86

No Brasil somente na dcada de 20 os problemas relacionados criana tornaram-se objeto de alada jurdica, surgindo assim categoria social denominada menor, em outras palavras, o filho do pobre 87 e majoritamente afro-descendentes. interessante observar como a palavra menor passa ao vocabulrio corrente, tornando-se uma categoria classificatria da infncia pobre. Tal categoria foi criada em 1921, quando os adultos daquele perodo decidiram mudar o cdigo civil determinando que se considere abandonado o menor sem habitao certa ou meios de subsistncia, rfo ou com o responsvel julgado incapaz de sua guarda". 88 O termo menor vai deixando de ser apenas uma categoria jurdica e um qualificativo para determinada faixa etria, tornando-se um substantivo qualificado. A professora Maria de Ftima Migliari (1993) 89 ao analisar a ideologia acerca da infanto-adolescncia pobre, que de acordo com a autora - dominante - afirma a existncia

85 Etnocentrismo uma viso do mundo onde um determinado grupo social tomado como centro de tudo e todos os outros so pensados e sentidos atravs de seus valores e modelos (ROCHA, 1986, p. 7) 86 GALEANO, Eduardo. De pernas pro ar: a escola do mundo ao avesso. p. 11. 87 Muitos foram os rtulos criados para denominar a infncia empobrecido, tais como: inocentes - filhos da relao entre a mulher ndia e o homem branco, que eram abandonados por no terem o reconhecimento da tribo como ndios, e to pouco eram aceitos pela famlia tradicional portuguesa. O fruto da relao do homem branco com mulheres negras, tambm era abandonado, e passa a serem denominados como exposto, da o nome roda dos expostos. Novos rtulos ou etiquetas foram criadas, com por exemplo: menor menor abandonado, menor de rua, pivete, trombadinha, capites de areia, infrator, etc... 88 ALVIM, Maria Rosilene Barbosa; VALLADARES, Lcia do Prado. Infncia e sociedade no