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Série Selena 2 Em Seus Sonhos Robin Jones Gunn Título original: In Your Dreams Tradução de Myrian Talitha Lins Editora Betânia, 2000 Digitalizado por deisemat Revisado por deisemat http://semeadoresdapalavra.top-forum.net/portal.htm

Em seus sonhos

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Page 1: Em seus sonhos

Série Selena 2Em Seus Sonhos

Robin Jones Gunn

Título original: In Your DreamsTradução de Myrian Talitha Lins

Editora Betânia, 2000Digitalizado por deisematRevisado por deisemat

http://semeadoresdapalavra.top-forum.net/portal.htm

Page 2: Em seus sonhos

Série Selena 2

Em Seus Sonhos

Robin Jones Gunn

Para minha cunhada, Kate Gunn Medina, e seu marido e filhos: Al, Adrian, André e Alysssa.

Que Jesus esteja sempre presente em seus sonhos

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_______________________________________________________________________

Capítulo Um

- Como é que você consegue viver desse jeito? indagou Tânia, a irmã de Selena.

Ela pegou no chão uma calça jeans que estava caída no seu lado do quarto e atirou sobre

a cama da irmã, ainda desarrumada. A calça foi parar bem em cima de uma pilha de roupas

que Selena lavara na segunda-feira. Era quinta-feira, e a garota ainda não as guardara.

- Eu não estou me intrometendo com suas coisas! replicou Selena, pegando o jeans e

colocando-o junto com suas outras roupas sujas que se achavam no chão. Só porque você tem

mania de arrumação, isso não quer dizer que todo mundo tem de ter!

- Você não precisa ser igual a mim, Selena. Mas tente ao menos ser normal.

- Normal? Eu sou normal. Você é que tem neurose de arrumação, Tânia. Seu cabelo está

sempre superpenteado. Você não sai sem se maquiar. Suas unhas estão sempre impecáveis.

Você não se cansa de parecer uma “modelo” o tempo todo?

- Que grosseria, Selena!

- Ah, é? E você?

- Eu não estou sendo grosseira, não!

- Pois eu acho que jogar minha calça pra cá desse jeito foi uma tremenda grosseria, sim!

- Se você arrumasse suas coisas de vez em quando, eu não precisaria jogar nada por aí.

Nesse final de semana, po exemplo, será que daria para você deixar o meu lado arrumadinho

como está agora e, até quando eu voltar, dominga à noite, tentar ajeitar o seu?

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Selena mordeu o lábio inferior para não soltar as palavras que lhe vieram à mente.

Parecia que não adiantava nada retrucar. Nas vezes em que o fizera, acabara arrependendo-se

depois. Estava convencida, porém, de que ter de ficar no mesmo quarto com uma irmã que

tinha mania de arrumação era uma das piores formas de sofrimento que podiam existir no

mundo. Devia estar na lista das torturas. Algum dia ela ainda iria descobrir essa lista e mostrar

aos pais. Aí eles compreenderiam o quanto ela já sofrerá nos seus dezesseis anos de vida por

ter de aturar a sempre perfeita Tânia Jensen.

- Estou falando sério, Selena, insistiu a irmã, fechando o zíper de sua mala. Um dia

desses você vai ter de parar de ser tão bagunceira. Sugiro que comece agora, nesse final de

semana.

Selena sentou-se no chão, perto do seu montinho de roupas sujas, e correu os olhos pelo

quarto. Os dois lados do aposento eram completamente diferentes, o oposto um do outro. A

cama de Tânia estava perfeita. Não se via nela nem uma ruguinha. As almofadas bordadas

achavam-se posicionadas no ângulo exato. Sobre a cômoda havia um forro branco, rendado,

onde tudo se encontrava perfeitamente de acordo. Parecia um pequeno palco. Bem no centro,

estava uma jarrinha com três tulipas, que ela colhera pela manhã no jardim. Ao lado dela,

havia dois porta-retratos. Num deles, estava a foto de formatura de Tânia e no outro, uma que

fora tirada quando ela era bebê. Havia quatro vidros de perfume ou “fragrâncias”, como dizia

a irmã. Estavam bem enfileirados e com o rótulo virado para a frente, para a “platéia”.

Perfume era a “paixão” de Tânia. A moça trabalhava no setor de perfumaria da Loja

Nordstrom. Fora lá que fizera amizade com as pessoas com quem iria passear nesse final de

semana. Iam esquiar no monte Bachelor.

Selena também tinha planos para o final de semana, mas nãoera fazer um passeio com

amigos. Desde que a família se mudara para Portland, algumas semanas antes, Tânia já fizera

amizade com uma porção de gente. Já havia até enchido uma página e meia da sua agenda de

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endereços com o nome e telefone desses novos amigos. A agenda de Selena ainda não tinha

um nome sequer.

Fazer amizades era de fato um de seus problemas. Contudo mais difícil ainda era

arranjar dinheiro. Tinha esperanças, porém, de resolver essa questão muito breve. No sábado

de manhã, teria uma entrevista numa floricultura, para ver se arranjava um trabalho ali. A loja

ficava em Hawthorne, a sete quadras da casa em estilo vitoriano onde morava a família de

Selena. E ela gostava de flores, mas não tinha muita certeza se conseguiria aprender a fazer

arranjos. Sua visão estética e artística era um pouco diferente da maioria das pessoas. Notava-

se isso pela maneira como Selena se vestia. Gostava de roupas simples, informais. Não tinha

nada “vistoso”, tipo vitrine, como era o caso de Tânia, com suas roupas e seu lado do quarto.

E era assim que ela se via também. Uma pessoa simples, natural, descontraída. Seu

cabelo louro, bem anelado, dava nos ombros. E ela o deixava ao natural. Tinha olhos azul-

acinzentados, como a cor do céu numa manhã de inverno, que alegravam seu rosto de

expressão sincera. E não usava maquiagem nem para disfarçar as sardas que cobriam todo o

nariz.

Certo dia, alguns meses antes, Selena estava examinando suas sardas ao espelho e em

dado momento se deu conta de que o que tinha de mais bonito eram os lábios. Tanto o

superior como o inferior eram de igual tamanho, redondos e cheios, perfeitos para ser

beijados. É, mas isso ela ainda não sabia direito, pois o único garoto que a beijara nos lábios

fora seu sobrinho Tyler, de três anos.

- Selena!

Ela ouviu uma batida na porta e a voz da mãe.

Ah, essa é ótima! pensou. Tânia já foi falar com mamãe para vir implicar comigo por

causa do quarto.

- Entra! gritou. Já até sei o que a senhora vai dizer!

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Sua mãe apareceu à porta. Seu rosto, normalmente tranquilo, tinha naquele instante uma

expressão preocupada Usava uma saia jeans justa e uma blusa branca, com as mangas

arregaçadas. Tinha na mão um pedaço de papel.

- O que foi? indagou Selena. A senhora não está passando bem?

- Tio Daniel acabou de telefonar. Grace está no hospital. Ela e os gêmeos tiveram um

acidente de carro. Os meninos não sofreram nada, mas Grace quebrou os dois braços. Falei

com Daniel que vou tentar pegar o primeiro vôo para lá. Tem um que sai às sete da noite.

Selena se levantou, sentindo que precisaria fazer algo.

- E tia Grace está bem?

A mãe fez um aceno de cabeça, respondendo que sim.

- Está, disse. Ela terá de permanecer internada pelo menos até amanhã. Mas vai ficar

com os braços engessados durante várias semanas. Obviamente não poderá cuidar de Ivan e

Nathan. Os dois estavam dormindo no carro na hora do acidente. Foi um outro veículo que

bateu no deles, num cruzamento. Daniel disse que eles estão bem.

Selena sabia o quanto sua mãe era ligada a Grace, sua irmã mais nova. Ela sentia quase

obrigação de ajudar Grace sempre que esta precisasse. Por isso fora para Phoenix, por ocasião

do nascimento dos gêmeos. Isso acontecera um ano e meio atrás. Parecia que ela era uma

espécie de mãe para a irmã. Assumira essa posição quando a mãe delas morrera, havia cerca

de vinte anos. Agora, então, era também uma espécie de “avó” para os filhinhos dela.

- Então a senhora vai hoje, às sete da noite? indagou Selena.

- Ainda preciso conversar com seu pai, quando ele chegar, disse a mãe, dando uma

olhada para o relógio de pulso. Ele deve estar chegando. E como Tânia foi esquiar, e seu pai

está pensando em ir acampar com os meninos, você terá de ficar sozinha com Vó May.

- Tudo bem.

- É, eu sei que você é capaz de cuidar de tudo, continuou. Só que, às vezes, quando Vó

May tem uma daquelas falhas de memória, fica difícil lidar com ela.

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- Mas eu dou conta, mãe. Comigo, quase sempre ela fica com a mente lúcida.

A mãe de Selena ajeitou atrás da orelha o cabelo castanho-claro, cortado curto. Selena

notou que ela também tinha lábios redondos e cheios.

- A senhora está preocupada porque Vó May terá de ficar sozinha o dia inteiro amanhã?

Eu posso faltar de aula, se a senhora achar melhor.

- Não. Não quero que você perca aula, não. Creio que não vai haver nenhum problema.

Afinal, antes de nos mudarmos para cá, ela ficou anos sozinha.

- Mamãe, disse Selena cruzando os braços, vai dar tudo certo. Me dá uma oportunidade

de provar que sou capaz de cuidar de tudo.

- Você não precisa provar nada, filha, replicou a mamãe.

Nesse momento, elas ouviram os passos do pai de Selena subindo a escada. Instantes

depois, ele chegava ao quarto da filha. Era um homem de aparência vigorosa. Seu cabelo, já ia

escasseando na testa, era a única indicação de que entrara na faixa dos quarenta anos.

- Eu escutei, disse ele, dando um rápido beijo na esposa.

Selena pensou se o pai já percebera que a mãe dela tinha lábios bonitos, perfeitos para

ser beijados, como ele acabara de fazer. Será que os homens notavam esse tipo de detalhe?

Principalmente depois de já haverem passado vinte e cinco anos beijando os mesmos lábios?

- Posso pegar o vôo das sete horas, explicou a mãe, mostrando ao marido o pedaço de

papel. Tem um que sai 10:20h, mas faz escala em Los Angeles.

- Pode pegar o das 7:00h. Eu cancelo o passeio com os meninos.

- Não precisa não, pai, interveio Selena. Eu fico com Vó May. Não vai ter problema

algum.

Os pais de Selena se entreolharam com ar de hesitação.

- O que foi? indagou a garota, levantando-se e dando um passo sobre seu monte de

roupas, pronta para confirmar o que dissera. Vocês estão me olhando como se eu não fosse

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capaz de encarar essa situação. Já se esqueceram de que um mês atrás viajei sozinha para a

Inglaterra e voltei direitinho? É claro que posso ficar uns dias aqui com minha avó.

- Não é com você que estamos preocupados, não, explicou o pai.

- Vó May tem passado bem, disse Selena. Já faz uma semana ou menos, que ela não fica

esquecida. E ela não foi ao médico outro dia mesmo?

- Foi, replicou a mãe.

Ela caminhou até a porta e cerrou-a silenciosamente. Depois continuou falando em voz

baixa, para que só o marido e Selena escutassem:

- O médico pediu alguns exames e eu a levei hoje de manhá ao laboratório.

- Sim, e daí? indagou o esposo.

- Acho que os resultados devem ficar prontos na próxima semana. Mas tudo que vai dar

nos exames, nós já sabemos. A mente dela está falhando, mas no mais ela está com ótima

saúde.

- Podem confiar em mim, afirmou Selena. Nós duas vamos ficar muito bem aqui.

Vamos, sim!

E aliás, pensou consigo, nem vou precisar cancelar meus compromissos sociais, já que

não tenho nenhum mesmo.

Sua mãe deu um suspiro.

- Os meninos estavam aguardando com tanta ansiedade o passeio para ir acampar...

- Está bem. Nós vamos, disse o pai, tomando a decisão prontamente. Selena, você vai

ficar no comando da situação, filha. Meu bem, continuou ele, virando-se para a esposa, vou

levá-la ao aeroporto daqui a uma hora e, às 4:30h da madrugada, irei acampar com os garotos,

como já havíamos programado. Se você tiver algum problema, Selena, ligue para o Cody ou

então para o Wesley, tá bom?

Selena logo pensou que não adiantaria nada ligar para um de seus irmãos mais velhos.

Cody - que era casado com Katrina e tinha um filho de nome Tyler - morava no estado de

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Washington, a mais de uma hora de distância. Wesley estudava fora, num lugar chamado

Corvallis, que ficava a quase duas horas. Se ela tivesse algum problema, eles não poderiam

ajudá-la em nada. Contudo tinha certeza de que poderia resolver quaisquer dificuldades que

surgissem.

- Você é simplesmente incrível, Selena! Sabia? Disse a mãe, dando-lhe um beijo na

testa. Estou sempre muito admirada com você; e muito feliz também! Ah, e por falar nisso, se

arranjar um tempinho nesse final de semana, dá um jeito de arrumar o quarto, o.k.?

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Capítulo Dois

- Selena, uma voz grave sussurrou bem perto do ouvido da jovem. Querida, eu e os

meninos já estamos saindo.

A garota fez um esforço para abrir os olhos pesados.

- Pai?

- Não precisa acordar, não, filha. Só queria lhe dizer que já estamos de saída. Você pôs

o relógio para despertar, não pôs?

- Sim.

Ele deu-lhe um beijo leve na face.

- Obrigado por se dispor a assumir as rédeas de tudo aqui. E lembre que se houver

algum problema é só ligar para sua mãe, na casa da tia Grace, ou para Wesley ou Cody.

- Vai dar tudo certo, pai, tenho certeza, resmungou ela, puxando mais as cobertas e

encolhendo-se bem. Divirtam-se bastante! E peguem muito peixe, viu?

- Vamos pegar, sim. Tchau, querida!

Selena relaxou para dormir, mas ficou um longo tempo na “zona” intermediária - não

estava completamente desperta nem dormindo. E aí os sonhos iam sempre mudando.

Uma hora via Vó May, com ar distraído, procurando uma pena num dos armários.

Depois era Kevin, seu irmãozinho de seis anos, tentando permanecer firme às margens do

regato, enquanto um peixe enorme o puxava para a água. Daí a pouco, a pena aparecia

esvoaçando e caía na página do seu livro de Biologia. Quando ela ia pegá-la via, com o canto

dal olhos, um vulto masculino com um chapéu tipo Indiana Jones e uma mochila de couro.

Imediatamente abriu os olhos. Viu apenas o quarto às escuras. Paul. Selena soltou um

suspiro e fechou os olhos, procurando voltar a dormir. Queria cair num sono profundo, onde

os fragmentos de sonhos podem ir e vir numa dança louca, mas desaparecem com a luz do

amanhecer. Era aí que Paul teria de permanecer - em seus sonhos.

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Ficou mais de duas horas remexendo-se na cama, tentando adormecer, mas sem

sucesso. Afinal, às 7:00h, levantou-se mal-humorada e dirigiu-se para o banheiro meio

cambaleante. Não sabia ao certo se deveria acordar a avó ou simplesmente deixar-lhe um

bilhete, avisando que fora para a aula e que estaria de volta em torno de 4:00h da tarde.

Decidiu vestir uma calça jeans bem larga (que Tânia achava ridícula) e uma blusa

bordada (que a irmã considerava horrível). Parou em frente do espelho grande que havia no

corredor e ficou a examinar sua imagem alguns minutos. Ainda bem que hoje Tânia não iria

dar palpites sobre sua maneira de vestir. Ouviu Vó May remexendo no quarto e foi até lá,

batendo de leve na porta.

- Entre, queridinha!

Bom sinal. “Queridinha” era um apelido carinhoso que Vó May usava com a neta. E

ultimamente ele passara a ter um outro sentido também. Se a avó a chamasse por esse apelido,

podia-se saber que estava vivendo “no presente”. Se não a tratasse por “queridinha”,

provavelmente estava pensando que Selena era alguém do seu “passado”. Momentos antes,

Selena tivera receio de que a mente da avó “embarcasse” na sua perigosa “máquina do

tempo”, que a transportaria para outra fase de sua vida.

- Bom dia! exclamou Selena em tom alegre, entrando no amplo quarto.

Vovó estava arrumando a cama. Retirava o edredom grosso e quente e estendia a velha

colcha feita à mão. Era uma colcha de retalhos que ela mesma confeccionara, utilizando

pedacinhos de tecidos das roupas dos filhos, que fora guardando durante vários anos. O

cômodo era agradável e de aspecto alegre. Havia uma lareira que ela acendia com frequência

e uma janela grande, junto à qual se via um assento.

- Já estou quase pronta para ir pra aula, disse Selena. O que a senhora vai fazer o dia

todo aqui sozinha?

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- Hmmm, creio que vou fazer o de sempre: patinar de manhã e jogar boliche à tarde. E

pode ser também que sobre tempo para ir tomar chá com o prefeito antes de você voltar da

escola, disse ela, com um brilho brincalhão no olhar.

Selena sentiu que ela estava alerta e com seu humor de sempre.

- Ahn! Parece que vai se divertir muito! disse a jovem, brincando também. Não se

esqueça de colocar as cotoveleiras, hein?

Nesse momento o telefone tocou, e Selena atendeu na mesinha de cabeceira da avó,

antes que esta pudesse fazer a volta e pegá-lo. Bateu os olhos no relógio eletrônico, que

marcava 7:58h. Tinha de sair dentro de dois minutos.

- É a Sra. Jensen? indagou uma voz masculina.

- Aqui é Selena Jensen, filha da Sharon, explicou.

- Eu queria falar com May Jensen.

- Um momento. Ela está bem aqui.

Selena tapou o bocal com a mão e disse para a avó:

- É um dos seus namorados. Provavelmente vai sugerir que a senhora vá fazer um

bungee jumping * hoje também.

Vó May pegou o fone e Selena tratou de terminar de arrumar a cama dela. Ouviu-a

responder ao seu interlocutor.

- Ah, é? Oh! Não, não! O.k.! É... Bom, não! Está bem! Tchau!

A senhora recolocou o fone no gancho no instante e que a neta saía porta afora.

- E aí? indagou Selena, olhando por sobre o ombro. O que mais vai fazer hoje? Bungee

jumping ou pára-quedismo?

- Vou operar da vesícula, replicou Vó May.

Selena riu, vendo a avó continuar a brincar.

- Então, divirta-se! falou.

* Bungee jumping: um esporte moderno em que o praticante salta de um ponto elevado, amarrado a uma corda elástica. (N. da T.)

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Desceu a escada correndo e parou junto à porta da frente para pegar sua mochila, que

estava no cabide.

- Tenha um ótimo dia, vó!

- Selena! gritou a avó com voz aguda, ainda no alto da escada. Você pode me dar uma

carona?

A garota parou, sentindo uma leve irritação ao pensar que talvez chegasse atrasada à

escola. Volta e meia, ia levar a avó à farmácia ou à mercearia, mas será que hoje ela não

poderia deixar isso para depois das aulas?

- Vó, eu levo a senhora aonde quiser, mas depois que chegar da escola.

Já ia saindo e fechando a porta quando ouviu Vó May outra vez.

- Mas eu tenho de estar lá antes das nove.

- Nove da manhã ou nove da noite?

- Da manhã, explicou ela, com sua vozinha tremida.

Selena entrou de volta na sala e, procurando controlar a irritação, indagou:

- Aonde é que a senhora tem de ir?

- Para o hospital.

Selena ficou certa de que a cabeça de Vó May começava mesmoa vacilar de novo.

- Não é hoje não, vó.

- É hoje, sim. O Dr. Utley ligou agorinha mesmo e disse que não posso beber, nem

comer nada e tenho de estar lá às nove. Mas então pego um táxi.

Dizendo isso, ela se virou e foi caminhando para o quarto.

- Está bem, disse Selena. Tchau! Até de tarde!

- Eu não vou estar aqui não, replicou Vó May. Vou para o Hospital St. Mary. Você pode

ir direto pra lá.

Selena ficou sem saber o que fazer. Como era possível que a mente da avó mudasse

assim de uma hora para outra? Não poderia deixá-la ali sozinha, com esse problema. Ela era

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bem capaz de chamar um táxi e sair para algum lugar. O que faria se chegasse em casa e a avó

não estivesse? Soltou um resmungo de impaciência, largou a mochila no chão e subiu a

escada de dois em dois degraus. Vó May estava no quarto, dobrando algumas peças de roupa

e guardando-as numa bolsa de viagem.

- Ele disse que não posso comer nem beber nada, nem mesmo água. E agora, só porque

não posso, estou morrendo de fome. Foi uma bênção o Dr. Utley ter resolvido ler os

resultados dos exames hoje cedo. Ele vai viajar às três da tarde e ficará fora uma semana. Não

posso esperar esse tempo lodo.

Vó May pegou um vidro de loção hidratante e continuou falando e arrumando a mala.

- É por isso que não me incomodo de ele ter avisado e cima da hora. É claro que quero

que ele mesmo faça a cirurgia. Foi ele que operou Paul, quando ele teve apendicite.

Paul era um dos filhos dela. Ele morrera na guerra do Vietnã, o que a deixara bastante

traumatizada. Sempre que ela começava a falar desse filho, tinha uma crise de esclerose.

Selena sentou-se na beirada da cama e colocou a mão sobre o braço dela, para tentar

fazer com que parasse de arrumar a maleta.

- Vamos fazer uma coisa, disse. A senhora fica em casa hoje e me espera aqui, no seu

quarto. A senhora vai ficar muito bem. Pode assistir à televisão ou ler um livro. Quando eu

voltar, nós duas vamos procurar o Dr. Utley. Que tal? Ta bom assim?

Vó May dirigiu-lhe um olhar irritado e retirou a mão lentamente.

- Não sei por que você está falando comigo desse jeito Selena. Mas quero lhe dizer que

não estou brincando. Quem me telefonou há pouco foi o Dr. Utley. Pelo resultado dos exames

que fiz, ele disse que tenho de extrair a vesícula o mais rápido possível. E como quero ser

operada por ele, tenho de ir agora de manhã. Mas não se preocupe com nada. Pode ir pra

escola. Eu pego um táxi.

Selena não sabia mais o que pensar e ficou em dúvida sobre o que fazer.

- É... posso me atrasar um pouco, disse afinal.

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Resolveu que iria esperar que essa crise matinal da avó passasse. Iria para a escola

assim que percebesse que a mente dela voltara ao normal.

- Oh, meu pai! exclamou Vó May, olhando para o relógio. Já são 8:25h. Estou

atrasando-a para a aula, não é, queridinha?

Selena ficou paralisada. Ela me chamou de “queridinha”. E ela só me trata assim

quando está em seu juízo normal. E se realmente estiver dizendo a verdade?

Com a cabeça a mil, Selena levantou-se e disse:

- Está bem. Enquanto a senhora termina aqui, vou dar uma chegadinha lá embaixo.

Em seguida, saiu do quarto, fechou a porta, desceu a escada correndo e entrou na saleta

do andar de baixo. Foi até uma velha escrivaninha de carvalho e pegou a agenda telefônica.

Abriu-a nervosamente, procurando o nome do Dr. Utley. Discou o número e assim que a

telefonista atendeu disse:

- Alô! Preciso falar com o Dr. Utley imediatamente. É urgente! Meu nome é Selena

Jensen.

- Um minuto, por favor!

Para Selena, que estava aguardando, aquele minuto pareceu uma hora. Escutava os

passos da avó no andar de cima.

- Vamos, vamos! Depressa! murmurou ao telefone.

- Alô! Dr. Utley falando!

- Alô, Dr. Utley. Aqui é Selena Jensen. Sou neta da Sra. May Jansen. Sinto muito ter de

incomodá-lo, mas minha avó disse que o senhor ligou para ela agora de manhã, e que ela vai

ter que fazer uma cirurgia. E não estou sabendo direito o que fazer, porque às vezes ela fica

meio esquecida e confunde as coisas e...

- Entendi, disse o médico, interrompendo-a. Sua mãe está em casa?

- Não, replicou a moça. Será que o senhor poderia conversar com minha avó e explicar

tudo direitinho para ela?

Page 16: Em seus sonhos

- Na verdade, tenho de explicar é para você. Sua avó fez uns exames ontem, e o clínico

enviou os resultados para mim. Ela está com vários cálculos na vesícula. Um deles deslocou-

se e está entupindo um dos canais biliares. Já marquei a cirurgia dela para hoje às 11:00h. Ela

precisa estar no hospital até às 9:00h.

Selena teve a sensação de que o ar da saleta havia acabado.

- Está bem, conseguiu dizer afinal. Vou levá-la para lá imediatamente.

Recolocou o fone no gancho e deu um suspiro profundo. Sentiu o coração bater com

força.

- Queridinha, disse vovó com sua vozinha frágil, estou pronta.

Page 17: Em seus sonhos

Capítulo Três

O Hospital St. Mary ficava a poucos quilômetros da casa de Vó May. Selena encontrou

uma vaga bem perto da porta de entrada. Às dez para nove, elas estavam se apresentando na

recepção. Vó May assinou uns documentos, e em seguida ela pegaram um elevador e foram

para um quarto. Lá vovó iria trocar de roupa e vestir a camisola do hospital. A seguir, deveria

deitar-se na cama e esperar.

- Volto já! disse Selena afastando-se, pensando em ligar para a mãe.

- Espere aí, queridinha! Fica vigiando a porta aí pra mim enquanto troco de roupa. Não

deixa nenhum enfermeiro entrar não.

Selena abriu a cortina que havia em torno do leito e postou-se à porta. Daí a pouco

chegava um funcionário do laboratóro. Selena barrou-o.

- Ela está trocando de roupa, disse. Espere só um minuto.

- É o Ted? indagou Vó May.

Selena mordeu o lábio inferior. Ted era o nome do seu avô. E ele morrera quando ela

ainda era bem pequenina. Agora, Vó May devia estar mesmo confusa.

- Meu nome é Larry, senhora. Preciso retirar amostra do seu sangue. Quando estiver

pronta, me avise.

- Estou pronta, replicou ela em voz calma.

Selena abriu a cortina. A avó estava deitada na cama, coberta até no queixo com o

lençol branco. Tinha uma expressão passiva, tranqüila. A animação que demonstrara cedo

desaparecera.

- Feche a mão com força, disse o rapaz, pegando no braço muito branco. É só uma

espetadinha aqui... Fique firme, já está quase acabando... Pronto. Dobre o braço e segure isso

bem aqui.

Vó May nem pestanejou. Olhou para Selena e deu um sorriso.

Page 18: Em seus sonhos

Oh, minha querida vovó! pensou Selena. Quem será que a senhora acha que sou

quando olha pra mim? Uma das suas filhas? A enfermeira? Será que pelo menos sabe que

estou aqui? Que será que devo fazer?

Selena continuou ao lado da cama durante uma hora. As duas não conversaram muito.

Pelo menos Selena não falou muito. Vó May pediu uma xícara de café e um lenço de cabeça,

azul, que deixara no carro. Perguntou a que horas iria embora dali. Nada daquilo fazia sentido.

Selena não a contrariou, mas também não arredou pé.

Vó May parecia não estar se dando conta do que se passava. Sem fazer indagações,

assinou um documento no qual estavam relacionados todos os objetos com que chegara ao

hospital. A enfermeira lhe disse que fosse ao banheiro, e ela foi sem objetar. Estendeu o braço

para que lhe fosse aplicada uma injeção intravenosa e apenas piscou de leve com a picada da

agulha. Selena estava até aliviada de ver que ela se achava mais ou menos desligada

mentalmente dos preparativos para a cirurgia.

Quando vieram buscá-la, Selena indagou se poderia conversar ligeiramente com o

médico.

- Pode vir conosco, disse a enfermeira.

A moça seguiu-a, andando ao lado da maca. Num impulso, inclinou-se, pegou a mão da

avó e ficou a segurá-la com firmeza enquanto iam descendo o corredor. Sua avó tinha mãos

graciosas, a pele fina e sedosa e levemente enrugada.

- Agora espere aqui, falou a enfermeira.

Eles continuaram empurrando a maca, e Selena, não sem certa relutância, teve de soltar

a mão de Vó May.

- Tchau! murmurou baixinho.

Instantes depois, viu chegar um homem idoso, vestido com a roupa verde do hospital.

Ele se aproximou dela.

- Você é a filha de May? indagou ele.

Page 19: Em seus sonhos

- Neta, corrigiu Selena. É, eu sou a Selena. Queria só lhe dizer que ela está um pouco

confusa. De manhã, depois que o senhor ligou, ela estava ótima. Mas agora parece que está

com a crise de esquecimento de novo. Não sei se isso vai fazer alguma diferença no que diz

respeito à operação, mas eu queria lhe avisar.

- Obrigado, disse o médico, batendo-lhe de leve na mão. Não se preocupe. Ela vai ficar

boa. Você poderá ficar com ela na sala de observação? Acho que será bom que ela veja uma

pessoa conhecida na hora em que voltar da anestesia.

- Posso. Eu fico com ela.

Selena sentiu um forte aperto na boca do estômago. Sabia que tinha de telefonar para a

mãe e contar o que estava acontecendo, mas havia diversos problemas. Primeiro, não tinha de

cor o número do telefone de tia Grace. E estava na dúvida se deveria ir em casa olhá-lo ou

ficar junto da avó. Vó May estava sendo operada. Achou que era melhor permanecer no

hospital.

Talvez o melhor a fazer fosse ligar para o irmão e a cunhada. Eles deveriam saber o

número e ligariam para a mãe.

Selena vasculhou o fundo da mochila à procura de dinheiro e acabou descobrindo que o

que tinha não daria para pagar um interurbano. Teria de ligar a cobrar. Katrina iria

compreender.

O problema era que Katrina não estava em casa e a telefonista não permitiu que ela

deixasse recado na secretária eletrônica. Agora então o dinheiro acabara e ela não havia

resolvido nada. A única alternativa seria ir em casa.

Assim que entrou no casarão vazio, Selena foi logo dar telefonemas. Em primeiro lugar,

ligou para a tia e deixou um recado na secretária. Como não queria assustar a mãe dizendo-lhe

que Vó May estava no hospital, deixou um recado simples.

“Oi, mãe. Aqui é Selena. Assim que a senhora puder, liga para mim ainda hoje... o mais

depressa possível. Preciso conversar com a senhora.”

Page 20: Em seus sonhos

Desligou e depois ficou pensando se não deveria ter deixado um recado mais claro. Em

seguida, anotou o número num pedaço de papel e guardou-o na mochila. Mais tarde iria ligar

de novo, lá do hospital. Em seguida, discou novamente o número de Cody e deixou uma

mensagem, pedindo que entrasse em contato com ela em casa. Para eles também não disse

nada sobre Vó May nem sobre a cirurgia.

Pegou uma caixinha de suco de laranja, alguns biscoitos e umas moedas que a mãe

“escondia” na gaveta da mesa da cozinha. Eram moedas que ficavam esquecidas nos bolsos

da roupa e que sua mãe encontrava depois na secadora. Ela dizia que eram a sua “gorjeta”.

Em seguida, saiu apressadamente para retornar ao hospital. Ali esperou quase duas

horas. Tentou ligar para a tia duas vezes, e nas duas desligou um pouquinho antes de a

secretária se ligar automaticamente, para poder pegar as moedas de volta. Não havia mais o

que fazer, a não ser sentar e ficar aguardando que Vó May saísse do bloco cirúrgico. Forasm

as duas horas mais longas de sua vida.

Por volta de 13:30h, uma enfermeira veio até a sala de espera e disse que Selena já

podia ir para a sala de observação e ficar com a avó. Então a garota sentou-se numa cadeira e

pôs-se a esperar mais algumas horas. Ficou folheando algumas revistas que havia por ali e, de

vez em quando, cochilava. Pensou em fazer outra tentativa de ligar para a mãe, mas achou

melhor deixar para depois. E se Vó May voltasse a si enquanto ela estivesse telefonando?

Pegou o último biscoito e deu uma mordida. Nesse momenton, ouviu um gemido.

- Estou aqui! disse Selena, dando um salto e aproximando-se da cama.

Sentiu uma forte comoção interior e teve vontade de chorar. Sua avó querida parecia tão

fraquinha ali com aqueles tubos ligados a ela! Estendeu o braço e tocou de leve na mão dela.

- Está tudo bem! disse, tentando confortar a avó e a si mesma. A senhora vai ficar boa.

Uma enfermeira entrou no quarto e se pôs a olhar a paciente com os cuidados de praxe.

Selena deu um passo para trás.

- Volto já! disse a moça. Se ela disser qualquer coisa, explique que Selena volta já.

Page 21: Em seus sonhos

Caminhou apressadamente corredor abaixo em direção do telefone público e discou o

número da tia. Estava ocupado. Aguardou alguns minutos e ligou de novo. Ainda ocupado.

Ficou nervosa, como se fossem repreendê-la por haver levado Vó May para ser operada sem

ter pedido a permissão deles.

Discou de novo. Dessa vez, chamou. Aparentemente havia alguém em casa, então

Selena deixou o telefone tocar quatro vezes. Na quarta, a “secretária” ligou automaticamente.

“Oi!” disse. “É Selena de novo. Mãe, eu preciso muito falar com a senhora. Ahn...”

parou sem saber o que mais dizer. “Eu... ah...” gaguejou.

Receando que o dinheiro acabasse antes que terminasse o recado, soltou tudo de uma

vez.

“Estou no hospital e Vó May...”

Não pôde terminar a sentença. O tempo acabou e o fone ficou dando sinal de ocupado,

cortando o que ela dizia. “Ah, essa é ótima!” resmungou, procurando mais dinheiro.

Só tinha trinta e cinco centavos. Não era suficiente para ligar para Phoenix. Irritada,

Selena voltou correndo para quarto para ver a avó. Entretanto, quando chegou lá, Vó May não

se encontrava mais ali.

Page 22: Em seus sonhos

Capítulo Quatro

- Com licença, disse Selena para uma enfermeira de uniforme branco que passava.

Estou procurando a Sra. May Jensen. Sabe pra onde a levaram?

Ela consultou sua prancheta de mão onde havia uma lista de pacientes.

- Quarto 417, replicou. O elevador fica no fim do corredor.

Selena soltou um suspiro de alívio. Por uns instantes, pensou que houvera alguma

complicação e que tivessem levado sua avó de volta para a sala de cirurgia.

Entrou no elevador calmamente e concluiu que talvez estivesse assistindo à televisão

demais, principalmente aos programas com temas de “hospital”. O quarto 417 ficava no meio

do corredor, próximo ao posto de enfermagem. Selena entrou e viu que Vó May parecia

dormir tranqüilamente. Ela linha uma respiração bem peculiar quando adormecia. Era suave,

mas constante, como que “encrespando” o ar. A jovem parou ao lado da cama e falou em voz

baixa:

- Sou eu. Selena. A senhora está bem? Orei pela senhora. Tenho certeza de que correu

tudo bem.

Nesse momento, o Dr. Utley entrou no quarto.

- Ela já acordou? indagou ele.

- Não. Ou pelo menos não acordou de todo.

- É provável que fique dormindo mais algumas horas, explicou o médico. A essa altura,

o efeito da anestesia já passou, mas aplicamos uns analgésicos muito fortes que causam

sonolência.

Ele olhou atentamente para o rosto de Vó May e em seguida examinou o soro e as

sondas.

- Parece que ela está bem, disse. Acredito que vai ficar boa. Tivemos muita sorte de

descobrir o problema bem cedo. Havia apenas dois cálculos, mas ambos eram grandes. Tive

Page 23: Em seus sonhos

de fazer uma incisão de cerca de quinze centímetros aqui, explicou ele, correndo o dedo em

um ponto do lado direito do próprio abdômen, logo abaixo das costelas.

Selena teve vontade de levar as mãos à barriga, mas conseguiu conter-se. Sentira uma

estranha sensação no estômago só de ouvi-lo falar no corte, e achou que era melhor não

procurar ver nada.

- Ela terá de ficar internada pelo menos uma semana. Nos primeiros dias, estará meio

grogue, mas sabendo que você está aqui se sentirá melhor, continuou o Dr. Utley, sorrindo

para Selena. Você sabe que sua avó é uma mulher notável, não sabe?

Selena sorriu.

- É, eu sempre achei isso também, replicou.

- Eu não me espantaria nada se ela se recuperasse na metade do tempo que os outros

pacientes da idade dela levam para sarar.

- E no entanto, comentou Selena, abaixando a voz para o caso de Vó May estar

escutando, é muito doloroso saber que seu organismo está forte, mas a mente... concluiu ela,

deixando a voz sumir, sem saber como terminar a frase.

- É, eu sei, disse o Dr. Utley, acenando afirmativamente. É preciso um pouco de

paciência e muito amor. Isso ajuda bastante.

Ele deu uma espiada rápida no relógio.

- Bom, tenho de pegar o avião, disse num tom mais animado. Vou sair de férias. Estava

precisando de uma folga há um bom tempo. Meu assistente, o Dr. Adams, vai continuar

cuidando dela por mim. É possível que ele passe aqui mais tarde, hoje ainda.

- Obrigada, falou Selena. E tenha ótimas férias!

- Espero que sim, respondeu ele, caminhando para a porta.

Selen chegou perto da cama e tentou de novo conversar com Vó May.

- Ouviu isso, vó? O Dr. Adams virá aqui para ver a senhora. Vou ficar enquanto a

senhora quiser que eu fique, tá bom? Se precisar de alguma coisa, é só dizer.

Page 24: Em seus sonhos

A resposta de Vó May foi um suspiro ligeiramente mais profundo. Selena foi para uma

poltrona que havia num canto. Dobrou as pernas na cadeira, sentou-se sobre elas e se pôs a

olhar pela janela. O quarto dava para outra fachada do prédio do hospital. Lá embaixo, no

centro dos blocos do complexo hospitalar, havia um jardim muito bonito e bem cuidado.

Estava chovendo. Olhou para o céu. Algumas nuvens escuras pareciam estar mais baixas,

enquanto outras se mostravam fixas mais no alto. Não dava para ver o céu azulado acima

delas. Era uma típica tarde de primavera em Portland.

Selena se pôs a recordar tudo que lhe havia acontecido nos últimos meses. Em janeiro,

fora para a Inglaterra, numa viagem missionária. Ali fizera amizade com as três jovens que

haviam ficado no mesmo quarto que ela: Cris, Katie e Trícia. Embora essas moças fossem um

pouco mais velhas, Selena se dera muito bem com todas, em tudo e por tudo. Entendera-se até

melhor com elas do que com garotas da sua própria idade. Quando ela estava na Europa, sua

família que morava em Pineville, uma cidadezinha da Califórnia, mudara-se para Portland.

Em Pineville, ela conhecia todo mundo e todos a conheciam. Era uma das alunas mais

populares de sua escola. Em Portland, porém, era apenas uma ilustre desconhecida.

Aqui ela estudava numa escola particular, um colégio evangélico. A princípio gostara da

idéia, pois, como o colégio era menor do que as escolas públicas de Portland, achou que se

sentiria mais ou menos como em sua escola de Pineville. Contudo, depois que regressara da

Inglaterra, tivera certa dificuldade de ajustar-se ali. O início havia sido horrível para ela. Mais

tarde, tudo acabara se acertando, mas ela ainda não se integrara bem na turma. É claro que,

em parte, ela própria era a culpada. Não se esforçara nem um pouco para fazer amizade com

os colegas. Ainda assim, sendo ali uma escola evagélica, ela achara que os alunos seriam mais

amigáveis do que os da escola pública, que eram mais numerosos. Entretanto não era o que

estava acontecendo.

Page 25: Em seus sonhos

Vó May remexeu-se na cama. Selena olhou para ela, mas a avó acomodou-se,

retomando o ritmo constante de sua respiraçao. A jovem voltou a olhar pela janela e a

concentrar-se nas suas recordações.

Selena pensou que, embora não quisesse deixar Vó May ali sozinha, amanhã teria de ir

à entrevista na floricultura, onde havia a possibilidade de arranjar um emprego. Sem o

trabalho, não teria dinheiro, e assim seria mais difícil participar dos círculos sociais do

Colégio Royal.

Duas semanas atrás, Amy, uma colega, convidara-a para irem a uma pizzaria numa

sexta-feira à noite. Ela aceitara, mas quando a moça viera pegá-la, os pais de Selena não

estavam em casa para lhe darem dinheiro, e ela não tinha nada na bolsa.

Desculpou-se com Amy, dizendo que seus pais não estavam em casa e que não se sentia

com liberdade de sair sem a permissão deles. A amiga pareceu entender a situação, mas

depois disso nunca mais a convidara para nada. Então Selena estava convencida de que o

emprego seria a solução para sua falta de relacionamento social.

Selena permaneceu várias horas ao lado da cama, ouvindo a respiração compassada de

Vó May e cumprimentando cada enfermeira que entrava para dar uma espiada na paciente.

Sentiu o estômago “roncar” e pensou que deveria ir comer algo e tentar telefonar de novo para

a mãe. Contudo não queria sair antes que Vó May acordasse; para que ela soubesse que a neta

se achava ali. Afinal, quando começou a escurecer, achou que teria mesmo de sair. Foi ao

posto das enfermeiras e explicou que iria sair e que demoraria uma hora ou menos. Elas se

limitaram a sorrir compreensivamente, mas pareciam presas ao seu trabalho. Obviamente, não

tinham para com Vó May o mesmo interesse que a neta.

Selena teve uma sensação meio estranha quando subiu a escadinha da entrada da velha

casa, em meio à escuridão da noite e abriu a porta. Nunca estivera ali sozinha. Como em sua

família havia seis filhos, raramente ficava a sós. Sentiu-se meio tensa ao entrar na sala e

caminhar para acender a luz. Entretanto os cheiros peculiares da casa lhe transmitiram a

Page 26: Em seus sonhos

sensação de conforto. Havia um odor de canela misturado ao de naftalina. Eles estavam

associados a recordações de infância, ao lugar em que ela gostava de se esconder quando

brincavam de “pegador”: o armário largo e alto, forrado com um papel vermelho e amarelo, já

meio desbotado. Ela le enfiava bem no fundo dele, atrás dos pesados casacos de inverno,

sentindo aquele cheiro de naftalina e de canela. Ainda se lembrava de que numa de suas férias

seu pai havia lido um livro para eles. Era a história de quatro crianças que entravam num

armário cheio de casacos velhos e por ali chegavam a uma terra mágica chamada “Narnia”. E

Selena acreditara que aquilo poderia acontecer realmente. Aliás, estava convencida de que

aquele armário da casa de Vó May também era encantado. Se entrasse nele num momento

mágico, também seria levada para “Narnia”. E tentou isso várias vezes, até que completou

onze anos. No entanto, embora tivesse parado de fazer tentativas, lá no fundo ainda cria que

seria possível. Era um devaneio maravilhoso ao qual ela até gostaria de poder entregar-se.

Seria muito gostoso entrar no armário e ficar ali bem encolhidinha. Mas não. Agora já tinha

dezesseis anos e no momento sua responsabilidade era cuidar da avó. Então tentou novamente

ligar para a mãe. Dessa vez, o tio atendeu.

- Alô! É Selena! disse.

Antes que ela pudesse dizer outra palavra, o tio se pôs a berrar no telefone.

- Onde é que você está? O que é que está acontecendo? Que recado foi aquele que você

deixou na secretária? Sharon, vem cá! É sua filha!

Selena nunca gostara muito do tio Daniel. Sua mãe veio ao telefone. Falou com uma

voz calma, meio forçada, e a moça percebeu que ela estava cansada. Se ela estivesse em casa

agora, iria vestir uma roupa esportiva e sair para fazer seu cooper e voltar toda suada.

- Como é que você está, Selena?

- Estou bem, respondeu. O problema é com Vó May. Hoje de manhã o Dr. Utley ligou e

disse que, pelos resultados dos exames, ela deveria ser operada da vesícula imediatamente, E

a cirurgia foi às onze horas.

Page 27: Em seus sonhos

Selena deu os detalhes e mamãe ficou escutando calmamente. A garota ouvia a

respiração pesada do tio, que estava escutando na extensão. Aquilo a deixou irritada. Assim

que ela terminou de explicar tudo, ele disse:

- Nós passamos a tarde toda tentando entrar em contato com você. Deixou sua mãe

muito aflita, sabia?

- Está tudo bem, interveio a mãe. E como é que ela está?

- Quando saí de lá, ainda estava dormindo sob efeito dos remédios. Vou só fazer um

lanche e voltar para lá em seguida. Mãe, onde é que tem dinheiro nesta casa? Tive de pegar as

suas “gorjetas” da secadora pra poder ligar para a senhora.

Sua mãe explicou-lhe que dentro de uma das gavetas da escrivaninha do escritório havia

um envelope com dinheiro. Disse que ela podia pegar o quanto precisasse. Selena tirou $20,00

dólares.

- Vou ver se volto para casa amanhã, disse a mãe.

- Ah, que maravilha! resmungou tio Daniel na extensão, colocando o fone no gancho.

A mãe ficou em silêncio alguns instantes, e depois disse:

- A situação aqui está um pouco difícil. Acha que dá para passar a noite sozinha aí?

- Vou voltar para o hospital, replicou Selena. Quero passar a noite lá, com Vó May.

Houve outra pausa, e em seguida a mãe disse:

- Você é o sonho de toda mãe, filha. Sabia? Se houver algum problema, ligue para mim,

o.k.? Pode ligar, mesmo que seja no meio da noite. E se você não telefonar, então amanhã

cedo ligo para o hospital para saber notícias.

- 'Tá bom, disse Selena. Assim está ótimo. Tenho certeza de que ela vai passar muito

bem.

- Vou ficar orando por isso, concluiu a mãe.

Page 28: Em seus sonhos

Capítulo Cinco

Selena passou a noite encolhida na poltrona que havia no quarto de Vó May. Por volta

de 3:30 avó acordou. Gemeu alto e parecia estar chorando. Selena saltou da poltrona e correu

para perto da cama. Imediatamente apertou o botão par chamar a enfermeira.

- Calma, vó! disse. A enfermeira já está vindo. A senhora quer um pouco de água?

Pegou um copinho com água que estava na mesinha de cabeceira e deu para ela,

juntamente com um canudinho. Entretanto Vó May não quis beber. Nem ao menos abriu os

olhos. Ficou só gemendo e tentando se mover.

- Cadê essa enfermeira? resmungou Selena. A senhora está incomodada, vó? Quer que a

ajude a mudar de posição ou algo assim?

A enfermeira entrou no quarto.

- Oi! disse.

- Ela está gemendo, explicou Selena, procurando falar com calma, embora estivesse

nervosa. Não sei o que faço.

- Como é que você está, hein? disse a mulher para Vó May, pegando de leve a mão dela

para lhe sentir o pulso. Está sentindo dor?

Vó May gemeu mais forte.

- Ah, nós podemos dar um jeito nisso.

Ela examinou o frasco de soro e continuou falando mais para si mesma do que para

Selena ou a paciente.

- Vamos colocar outro frasco aqui para você.

- Serái que ela sabe que estou aqui? indagou Selena.

A enfermeira fez que sim.

- Ela está apenas grogue. É muito bom que você esteja aqui. Continue conversando com

ela. Volto já.

Page 29: Em seus sonhos

Selena pegou a mão de Vó May e segurou-a de leve. Estava fria e suada.

- Como é que está minha avozinha querida? perguntou com voz alegre.

Selena não levava muito jeito para animar uma pessoa doente. Contudo gostava muito

da avó e, por ela, seria capaz até mesmo de exibir uma fachada de coragem quando na

verdade se sentia meio insegura.

A enfermeira retornou e fez seu serviço. Em seguida, Vó May se acalmou e dormiu de

novo. Selena voltou para a poltrona e se ajeitou nela, cobrindo-se com um cobertor. Não

conseguiu dormir. Passou as horas frias da madrugada orando e pensando. Orou e pensou

bastante.

Passava um pouco de 7:00h quando a campainha do telefone a despertou de uma leve

sonolência. Deu um salto para atender.

- Alô!

- Alô! É mamãe. Como você está?

- Estou bem. Vó May passou a noite muito bem. Ainda está dormindo, replicou Selena,

sussurrando.

- Não. Não estou, não, queridinha. Quem é?

Selena olhou para a avó. Tinha os olhos um pouco inchados, mas não havia dúvida de

que estava acordada.

- É mamãe. Quer falar com ela?

- Acho que sim. Não tenho muito o que dizer, respondeu ela, com a voz meio rouca.

Selena aproximou o fone do ouvido da avó.

- Não, disse Vó May, respondendo a uma pergunta da mãe de Selena. Estou bem. Só

não estou conseguindo me mexer. Estou cheia de tubos por todo lado.

Selena fitava a avó e viu a expressão do rosto dela se anuviar, lembrando-lhe as nuvens

que vira no céu no dia anterior. O olhar dela era de quem estava confusa, sem lucidez. Ela

fitou Selena e depois o aparelho.

Page 30: Em seus sonhos

- Diga pra eles que não quero mais, falou com rispidez, afastando o rosto do telefone e

procurando virar o ombro.

Selena pegou o fone rapidamente.

- Mãe, disse ela, acho que ela está com uma de suas crises de esquecimento.

- Não quero nenhum, resmungava Vó May. Se eu quisesse mais panos de prato teria

dito para eles.

- Mãe! disse Selena.

- Calma, Selena. Fique calma e tranqüila. Vai dar tudo certo. Olhe, eu est...

Selena largou o fone e correu para segurar a mão da avó. Ela estava tentando arrancar o

fio do soro.

- Tem de deixar isso aí, falou com firmeza. Não pode tirar ainda não.

Com uma das mãos segurou o pulso da avó, para que ela não arrancasse o tubinho, e

com a outra apertou o botão para chamar a enfermeira. Do fone dependurado, vinha a voz de

sua mãe que a estava chamando.

- Fique assim, disse Selena, batendo de leve na mão da avó e afastando-a do fio do soro.

A senhora está boa!

- Mas eu não quero, insistia Vó May. Eles deviam ter me perguntado.

Em seguida, ela se pôs a chorar como uma criança que sente que perdeu a luta. Nesse

instante a enfermeira entrou no quarto. Era uma nova, que Selena ainda não vira.

- Oi! disse, cumprimentando-a nervosamente. Minha avó está tentando arrancar a

agulha do soro.

- Pode não! disse a enfermeira meio na brincadeira, como se estivesse repreendendo

uma criancinha.

Isso irritou Selena.

- Olhe aqui, falou em tom de defensiva, ela não está entendendo as coisas direito não,

viu?

Page 31: Em seus sonhos

A mulher olhou para a jovem com expressão de espanto e pegou a mão de Vó May para

examinar-lhe o pulso. Selena largou o braço que estava com o soro e pegou o fone.

- Mamãe?

- Pronto, querida, Está tudo bem aí?

- Não sei. Creio que sim. Ela está com uma de suas crises de esclerose e...

- Você agiu certo. Escute, eu ia lhe dizer que estou aqui no aeroporto.

- Em Phoenix?

- Não. Em Portland. Peguei o primeiro vôo hoje cedinho. Acha melhor eu tomar um táxi

para ir ao hospital?

Selena pensou um pouco. Sabia que levaria apenas meia hora para ir ao aeroporto e

voltar.

- Não, disse ela, com os olhos fixos na avó e na enfermeira. Vou aí buscá-la. Acho que

Vó May ficará bem aqui. Eu a encontro perto da esteira de bagagem.

Desligou e se pôs a observar a enfermeira, que fazia algumas anotações no computador

onde se achavam registrados todos os dados e medicamentos da paciente. Parecia que Vó May

voltara a dormir, embora estivesse meio inquieta.

- Dê uma olhada nela pra mim, disse para a mulher. Volto já.

- É pra isso que eu ganho os milhões que recebo todo mês, minha filha, replicou a

enfermeira num tom ríspido.

Selena saiu apressadamente, já desejando ter dito à mãe que pegasse um táxi. Não teve

dificuldade para sair do estacionamento do hospital e descer a via expressa em direção ao

aeroporto. O difícil seria acertar a pista certa ao chegar lá. Ela já se perdera mais de uma vez

nas vias expressas de Portland, mas hoje não tinha muito tempo de sobra. Senta-se

responsável por Vó May.

Afinal avistou a placa que indicava a via de acesso para o aeroporto e conseguiu entrar

sem maiores problemas. Avistou a mãe no setor de recolhimento das bagagens e saltou do

Page 32: Em seus sonhos

carro para dar-lhe um abraço. Assim que sentiu os braços da mãe em torno dela, teve vontade

de chorar, mas resistiu ao impulso. Fora forte até aquele momento e poderia continuar firme

para não assustar a mãe.

Sua mãe jogou a mala no assento de trás do fusca, e Selena passou para o banco do

passageiro. Tão logo saíram da movimentada área do terminal, ela soltou um suspiro de

alívio. Agora a mãe estava na direção; e não era apenas do carro.

- Como é que você está? indagou ela, dando um olhar rápido para a filha.

Antes, porém, que a moça respondesse, ela continuou:

- Seria bom se a gente pudesse entrar em contato com seu pai. O médico falou quanto

tempo ela terá de ficar internada? Ela já comeu alguma coisa?

- Estou bem, creio que não e não, replicou Selena. Utilizara o método que seu irmão

Wesley adotara para responder à mãe, que sempre fazia as perguntas uma atrás da outra. Sua

mãe sorriu.

- Nem lembro mais as perguntas que fiz, disse ela. Estou tão preocupada com as duas!

Vamos começar de novo. Você está bem?

- Claro. Estou ótima.

- Você foi maravilhosa, Selena!

- Eu não fiz nada, mãe. Na verdade, quase estraguei tudo.

Contou-lhe que não acreditara em Vó May quando esta dissera que o médico havia

telefonado.

- Ainda bem que você teve o bom senso de não ir à aula, disse a mãe, abanando a

cabeça. Não sei se eu teria tido. Quer que a leve pra casa para você dormir um pouco?

- Não, quero ir para o hospital com a senhora.

Selena olhou pela janela do carro quando entravam na via expressa. Nesse momento se

lembrou de que tinha uma entrevista marcada na floricultura Zuzu's Petals, dali a pouco, às

9:00h.

Page 33: Em seus sonhos

- Na verdade, talvez seja melhor eu ir para casa mesmo. Quero tomar um banho antes da

entrevista. Acho que estou meio desarrumada.

- E você terá de ir a pé à floricultura, disse a mãe.

- Tudo bem, replicou a jovem. São apenas alguns quarteirões.

Momentos depois, às cinco para as nove, Selena achou que aqueles quarteirões haviam

se transformado em quilômetros. Apressou o passo. Com uma das mãos, pegou o cabelo, bem

cheio e encaracolado, e agitou-o de leve para cima e para baixo. Na nuca, ainda estava um

pouco molhado. Vestira uma camiseta clara, de mangas compridas, com um coletezinho

bordado. Pusera uma saia de algodão, bem leve que ia até um pouco abaixo dos joelhos. E

enfiara nos pés seu calçado predileto - a velha bota de cowboy que tinha sido de seu pai.

Selena se apegara muito a ela, embora estivesse velha e meio fora de moda. Aliás, esse

calçado era sua “marca registrada”.

Quando faltava apenas uma quadra para chegar à floricultura, começou a cair uma garoa

leve. Passou em frente de uma confeitaria, onde viu uma fila de clientes aguardando a “saída”

dos pãezinhos doces, quentes, temperados com canela. Naquele momento a porta se abriu e o

cheiro forte chegou até ela, dando-lhe vontade de entrar na fila também, entretanto, se

quisesse chegar à hora ao seu compromisso, não poderia parar agora. A Zuzu's Petals ficava

duas lojas abaixo.

E com mais alguns passos chegou à loja. Selena fez uma rápida oração e girou a

maçaneta da porta. Estava tranca

Page 34: Em seus sonhos

Capítulo Seis

Selena foi até a portinha lateral da loja e espiou pela fresta. Em seguida bateu de leve na

vidraça. A luz estava apagada; não se via movimento algum no cômodo dos fundos.

Estranho! pensou. Tenho certeza de que a entrevista seria hoje. E já passa de nove

horas. Por que será que não tem ninguém aqui?

Olhou para um lado e outro. Talvez a dona da loja tivesse ido tomar um café e comer

um daqueles pãezinhos quentes, com sabor de canela. Repassou mentalmente a conversa que

tivera com a mulher, uma semana atrás. Tinha certeza de que ela marcara para hoje, às 9:00h

da manhã.

Fora Vó May quem arranjara essa entrevista para Selena. A avó adorava flores e havia

muitos anos que era cliente da Zuzu's Petals. A moça já ouvira a avó dizer várias vezes:

- Se eu tivesse só dois dólares, com um compraria pão e o outro gastaria em flores. O

pão é alimento para o corpo, mas as flores satisfazem o coração.

Na semana anterior, Vó May ligara para a floricultura encomendando flores para uma

tia de Selena que tivera bebê. E antes de encerrar a conversa, ela estendera-o para a neta,

dizendo:

- Ela vai lhe dar um emprego, queridinha.

Selena conversara rapidamente com a mulher e combinara de ir lá. Agora encontrava-se

à porta da loja fechada, sando se aquilo não fora um sonho.

Um casal idoso passou perto dela, sob a chuva fina, cada um com um copo de café na

mão e um saquinho de papel branco, que parecia conter os pãezinhos de canela.

- Bom dia! disseram os dois juntos.

Ela deu um sorriso e respondeu ao cumprimento. Em seguida passaram duas mulheres

conversando animadamente. Logo depois delas, veio um senhor baixo, levando amarrado a

uma coleira um enorme cachorro preto. Postada ali debaixo do toldo verde da loja, Selena se

sentia quase como um porteiro de hotel. Seu estômago estava pedindo:

Page 35: Em seus sonhos

- Quero um pãozinho de canela!

O bom senso, porém, expondo uma porção de motivos, mandava que ela permanecesse

ali até aparecer alguém. Sentia-se um pouco apreensiva, pensando que talvez devesse ter ido

com a mãe para o hospital e, depois, ter ligado para a loja, marcando uma outra data para a

entrevista. Todavia permaneceu ali durante uns bons vinte minutos.

Afinal uma pequena van chegou e parou em frente loja. Na porta estavam gravadas em

letra cor-de-rosa as palavras Zuzu's Petals.

- Você é Selena? indagou a mulher que viera ao volante, saltando do veículo e correndo

para debaixo do toldo. Eu sou a Charlotte. Desculpe a demora.

Ela destrancou a porta e virou a placa onde se lia “Fechado”. *

- Tive pedidos de arranjos para dois casamentos agora de manhã e me atrasei, continuou

ela explicando. Vamos entrar. Quer café?

- Não, obrigada.

- Então você é a neta de Vó May, hein? Gosto muito dela. Como é que ela está?

A dona da loja era uma mulher de muita energia. Tinha cabelo preto, bem curto, e olhos

castanho-escuros, muito brilhantes, que combinavam com o cabelo. Na orelha direita tinha

uns seis brincos de prata. Selena ainda não conseguira perceber se simpatizaria com ela ou

não.

- Bom, pra falar a verdade, ela está internada. Fez uma operação de vesícula ontem.

Charlotte parou meio abruptamente e olhou para ela com expressão de preocupação.

- Ah, eu não sabia. Ela está passando bem? Está no St. Mary?

- Está. Parece que passa razoavelmente bem, replicou Selena.

- Você irá vê-la hoje? Vou mandar umas flores pra ela. Ontem recebi uns lírios amarelos

maravilhosos. Oh, mas que pena que ela está internada!

* Nos Estados Unidos, devido ao inverno rigoroso, as lojas ficam com as, portas fechadas. Para indicar que estão funcionando, colocam uma placa a com a palavra Open (Aberto). No outro lado da placa, há o aviso Closed (Fechado), que deixam à vista ao fim do expediente. (N. da T.)

Page 36: Em seus sonhos

Enquanto Charlotte expressava seus sentimentos de pesar, foi para trás do balcão e se

serviu de café. Perto havia uma pequena geladeira, que ela abriu com o pé. Retirou dela uma

caixa de leite com sabor de baunilha. Derramou um pouco no café e em seguida fechou a

porta da geladeira ainda com o pé. Fez tudo isso num só movimento.

- Tem certeza de que não quer café? insistiu.

- Não, obrigada, replicou Selena.

- Sou movida a café, disse Charlotte, virando-se e acendendo as luzes da loja, que de

fato era um encanto.

Selena pensou que muito da energia dessa mulher devia ser proveniente da cafeína, e

não um elemento natural de sua personalidade.

- Então vejamos, continuou Charlotte, sentando-se num tamborete atrás do caixa e

tomando um gole de seu café. Posso lhe pagar salário mínimo, e o horário de trabalho é das

8:00h às 17:00h, aos sábados e domingos. Você precisará ter carro próprio, mas lhe daremos

um acréscimo para o combustível. Quer a vaga?

Selena ficou parada, meio sem saber o que pensar. A entrevista é só isso?

- Posso trabalhar sábado o dia todo, replicou, mas nada aos domingos. E nem sempre

vou poder ter o carro à minha disposição. Achei que vocês queriam alguém para trabalhasse

aqui na loja, e não para fazer entregas.

- Não. Precisamos mesmo é de um entregador. Foi por isso que tive de sair cedo de

manhã. Aliás, minhas sócias ainda estão na rua. O caso é que temos de ficar as três na loja e

queremos arranjar um funcionário para ficar por conta das entregas. E essa pessoa vai ter que

trabalhar aos domingos também. Se você não puder trabalhar nos dois dias, não posso lhe dar

o emprego, explicou ela, sem rodeios.

- Então acho que não vai dar pra mim, respondeu Selena, também de forma direta. De

qualquer jeito, muito obrigada. Espero que consiga arranjar alguém.

Assim dizendo, virou-se para sair, mas Charlotte exclamou:

Page 37: Em seus sonhos

- Espere aí!

Desceu do tamborete e caminhou rapidamente para os fundos da loja. Instantes depois

retornava com um buquê de lírios amarelos, envolto em papel celofane e amarrado com uma

imensa fita cor-de-rosa.

- É para Vó May, explicou. Diga-lhe que todas nós lhe enviamos nossos votos de pronta

recuperação.

Selena pegou as flores e pensou que a melhor maneira de carregar aquilo era como se

fosse uma Miss Universo desfilando na passarela.

- Obrigada, disse. Acho que ela vai adorar.

- É, vai sim, disse Charlotte, retomando seu café. Até mais, Selena!

Chegando à calçada, Selena começou a desejar que tivesse trazido uma sombrinha. A

chuva fina havia aumentado um pouco. Não se importava de se molhar, mas queria proteger

as flores. Elas eram muito bonitas, mas o pacote todo era meio volumoso. Sentiu-se um pouco

sem jeito de ir caminhando com aquilo. Desistiu inclusive de comprar os pãezinhos de canela.

Não conseguiria carregar mais nada além das flores. Se pegasse mais um embrulho, teria

problemas, principalmente com toda aquela chuva. Passou direto pela padaria, prometendo ao

seu estômago que breve voltaria ali.

A chuva apertou. Selena pensou que deveria ter trazido um agasalho. A manga da

camiseta estava grudando em sua pele. Sentia a barra da saia também pegando na batata da

perna. O cabelo lhe caía nas costas e colava no rosto. Teve mu arrepio e se pôs a andar mais

depressa, procurando cobrir e proteger um pouco as flores. Sentiu-se deprimida.

Parecia que todas as suas emoções haviam se ajuntado numa enorme bola. Tinha a

sensação de estar carregando um peso de vinte quilos, debaixo daquela chuva. Não conseuira

o emprego. Não tinha dinheiro, nem amigos, nem previsão de que a situação fosse melhorar

num futuro próximo. Além disso, sua amada avó estava internada e ia pouco a pouco

perdendo a lucidez. Não havia dúvida de que a vidinha calma e pacata de Pineville acabara

Page 38: Em seus sonhos

mesmo. Antes eram os passeios a cavalo, os piqueniques com os vizinhos, as campinas

cobertas de flores silvestres. Agora eram ruas movimentadas, cachorros latindo, ônibus

soltando uma fumaça negra e floriculturas gerenciadas por pessoas frias, movidas a cafeína.

Selena sentiu uma enorme solidão.

Então se pôs a chorar, achando que talvez isso lhe trouxesse um pouco de alívio. E

lágrimas grandes e quentes lhe rolaram pela face, contrastando com a chuva fria. Ergueu o

rosto para o céu e deixou que a água a molhasse por completo. Soluços lhe subiam do peito.

Não se importou nem um pouco de que as pessoas a vissem chorar nem ligou para o que

pudessem pensar. Deixou escapar alguns soluços, sem tentar reprimi-los. Nada do que lhe

dizia respeito estava saindo do jeito como queria.

E a chuva continuava caindo. Tinha a impressão de que alguém derramara um balde de

água em cima dela. Faltavam apenas cinco quarteirões para chegar em casa. Assim que

entrasse, iria direto para a cama. Ou talvez fosse melhor tomar um banho bem quente, na

banheira.

Chegou a uma esquina onde havia um semáforo. Parou esperando o sinal abrir para ela.

Com o canto do olho, percebeu que um jipe negro também parará ali. Estava bem ao lado

dela, a poucos metros. Embora a janela do veículo estivesse fechada, dava para ouvir uma

música alta, que vinha lá de dentro. E ouviu também muitas risadas de homens. Será que

estavam rindo dela? Se estivessem, ela não poderia nem reclamar. Se ela estivesse dentro

daquele carro, provavelmente também iria rir da figura dela. Sabia que estava ridícula, mais

parecendo uma segunda colocada no concurso de beleza das “frangas molhadas”.

As gargalhadas daqueles homens só serviram para aumentar ainda mais sua ágoa. Sentiu

uma raiva enorme dominá-la. Piscou para remover as lágrimas dos olhos e virou a cabeça com

um movimento brusco. O rapaz que estava no banco do passageiro olhava diretamente para

ela. Seus olhares se encontraram. Selena suspendeu o fôlego. A expressão de seu rosto

mudou. E o cara que a fitava parou de rir.

Page 39: Em seus sonhos

Era Paul.

O sinal abriu. O carro arrancou e partiu. Paul virou para trás, continuando a olhar para

ela. Daí a pouco sumiram de vista.

Selena deu um passo para atravessar a rua e pisou numa poça de água. Sentia-se

entorpecida por dentro e por fora.

Era o Paul. Ele me viu e estava rindo de mim.

Selena nem viu como caminhou aquelas últimas quadras até em casa. Sua mente estava

longe. Estava no Aeroporto de Heathrow, em Londres, onde conhecera o rapaz. Ela fora a um

telefone público e o vira ali. Ele lhe pedira algumas moedas emprestadas para completar seu

telefonema. Naquele momento, parecera que houvera um “clique” entre eles. Depois, quando

estavam no avião, haviam conversado um pouco e acabaram descobrindo que tinham amigos

comuns. Tudo parecia estar correndo muito bem. Aí, em dado momento, ele ficou sabendo a

idade dela. Ele já estava na faculdade e tinha mais de vinte anos. Selena tinha apenas

dezesseis e ainda estava no segundo ano do curso médio. O interesse de Paul por ela

desapareceu no mesmo instante. Apesar disso, mais tarde ele lhe escrevera uma carta, que ela,

por sua vez, respondera. Isso acontecera várias semanas atrás. E ele ainda não dera resposta à

cartinha dela. Agora, depois daquele breve instante em que se viram na esquina, ela teve

certeza de que ele nunca mais iria escrever. Era outro motivo para chorar. E ela chorou a

valer.

Page 40: Em seus sonhos

Capítulo Sete

Selena se esticou bem na banheira antiga, sentindo a água quentinha. Fazia muito tempo

que não tomava um banho daqueles. A última vez fora na época em que era menina e todos

vinham passar as férias com a avó. Depois que tinham vindo morar na velha casa vitoriana de

Vó May, ela só tomara no chuveiro do banheiro do andar de cima, que fora remodelado.

Então gora procurou relaxar bastante na água morna e reconfortante.

Assim que chegara em casa, ligara para o hospital. A mãe dissera que Vó May estava

passando bem. Naquele momento estava descansando. Em seguida, a mãe lhe sugerira que

dormisse um pouco para se refazer da noite passada no hospital, sentada na poltrona. Após o

almoço, as duas voltariam para junto da avó.

Era o que Selena precisava - um tempo para relaxar. Depois do belo banho quente,

vestiu um blusão e uma calça de moletom. Com isso, e uma xícara de chá de jasmim, iria er-

guer o espírito, que se achava envolto em emoções pesadas havia cerca de uma hora.

Quando ela estava se servindo de mais um pouco de chá, o telefone tocou.

- Alô! disse atendendo e sentindo um desejo profundo de que fosse Paul.

- Oi, Selena! O que está fazendo? indagou uma voz feminina.

- Nada, replicou ela. Quem é?

Ela ficava furiosa quando as pessoas ligavam e iam conversando sem dizer quem eram.

- Puxa! Quer dizer que já se esqueceu da gente? continuou a outra brincando.

- Oi, Selena! falou outra voz de mulher. É Cris! Agora você já sabe de quem é a outra

voz.

- Katie! Cris! Oi, gente! Como é que vocês estão?

- Estamos bárbaras! replicou Katie. E você?

- Essa é a palavra que ela mais está usando agora, Selena, explicou Cris, entrando na

conversa. Você vai cansar de ouvir isso.

Page 41: Em seus sonhos

Selena tirou o saquinho de chá de dentro da xícara e foi para a saleta, equilibrando o

telefone sem fio entre o queixo e o ombro. Sentou-se numa poltrona de que gostava muito e

colocou a xícara num descanso de copos, na beirada de uma mesa próxima.

- Que legal que vocês ligaram! Parece que nossa viagem à Inglaterra foi há séculos!

- É mesmo! concordou Katie.

- Mas foi só algumas semanas atrás, disse Cris. Como é que você está?

- Nem pergunte, replicou Selena, bebericando um pouco do chá. As semanas que

passaram foram péssimas, e esses dois últimos dias foram um verdadeiro desastre. E vocês?

Me contem como estão. Quem sabe isso me deixará mais animada.

- Estamos aqui fazendo brownies, respondeu Cris. Quer dizer, estamos tentando fazer,

se a Katie não comer todas as “gotas de chocolate”.

- Comi só um pouquinho, defendeu-se a outra. Além disso, a gente pode pôr algumas

passas e ninguém vai notar a diferença.

- O Ted vai, replicou Cris.

- Ele está aí também? indagou Selena.

- Não; ele está na casa do pai, em Newport. Nós vamos para lá hoje à tarde, porque à

noite vai haver uma festa na casa da Trícia. Queríamos que você viesse também, Selena.

- Oh, gente, não me torturem assim. Vocês sabem que eu adoraria ir. Daria tudo para vê-

las de novo.

- Então, venha! exclamou Katie, dando mais ênfase à última palavra.

- Ah, ótimo! falou Selena. Vocês se esqueceram de um bom detalhe - estou a mais de

mil e quinhentos quilômetros de distância!

- Já ouviu falar em avião? perguntou Katie. É uma das maravilhas do mundo moderno.

Você pode chegar aqui em poucas horas.

- Já ouviu falar em dinheiro? retrucou Selena. Já escutou aquela frase: “Não tenho

dinheiro”?

Page 42: Em seus sonhos

- Então arranje, disse Katie.

- Já tentei, replicou Selena, levantando os pés e sentando-se em cima deles para aquecê-

los. Tive uma entrevista para um emprego hoje cedo. Foi a mais curta deste mundo. Mas não

consegui o trabalho. Era numa floricultura. Queriam que eu trabalhasse no domingo, o dia

todo, e que tivesse carro próprio, para fazer entregas.

- Você explicou que não trabalharia domingo porque vai à igreja? indagou Cris.

- Não. A mulher nem perguntou por quê. Eu só disse que não poderia trabalhar no

domingo.

- Olha, disse Cris, eu trabalhei numa loja de animais. Avisei para o meu patrão que não

poderia trabalhar no domingo porque tinha de ir à igreja, e ele foi muito compreesivo. Você

também poderia tentar explicar tudo para a mulher lá.

- É, exclamou Selena, mas não adiantaria. De qualquer jeito, não tenho carro próprio.

Temos um fusca aqui que eu minha mãe usamos, mas ele já é meio velho. Não dá pra confiar

nele. Mesmo que me aceitassem para trabalhar no sábado, nem sempre eu poderia ficar com o

carro o dia todo. É, não ia dar certo, não.

- Que pena! falou Cris. Vai tentar arranjar outro emprego?

- Vou, replicou Selena. Aqui por perto tem muita loja e lanchonete. Creio que dá para

encontrar um trabalho aqui sim.

- E assim que arranjar serviço, interveio Katie, vá logo avisando que vai folgar no

recesso da Páscoa, ouviu? Você tem de vir para cá, passar a semana toda conosco.

- Se eu tiver dinheiro.

- Tem de vir! disse Katie. É uma ordem!

Selena escutou um ruído de alguém mastigando.

- Katie, você está comendo o chocolate de novo? indagou Selena.

- Só um pouquinho.

Page 43: Em seus sonhos

- Assim vamos ter de comprar mais chocolate, Katie, falou Cris. Puxa, nunca pensei que

fosse dizer uma coisa dessas, mas talvez aquela sua crise de alimentação natural não tenha

sido tão ruim assim. Pelo menos os chocolates não acabavam tão depressa.

Selena riu.

- Ah, gente, estou com tanta inveja de vocês! disse ela.

- Inveja é pecado! exclamou Katie.

- Ah, você entendeu o que quero dizer. Vocês já são amigas há tanto tempo! Mas eu,

desde que me mudei para cá, não fiz amizade com ninguém. Não conheço uma pessoa sequer

que pudesse convidar para vir à minha casa para fazermos brownies.

- Já, já, você arranjará alguém, comentou Cris.

- Ah, é? Como?

- Ponha um anúncio, ensinou Katie, dando outra mastigada.

- Como assim?

- Ponha um anúncio no jornalzinho da escola.

Selena riu.

- E como seria esse anúncio? “Precisa-se de uma alma gêmea”?

- É, isso mesmo, replicou Katie, ainda mastigando. Que há de errado nisso?!

- Onde é que você arranja essas idéias, Katie? perguntou Cris. E pára de comer esses

chocolates!

- Você não sabe que o chocolate é a melhor coisa do mundo para o cérebro? observou

Katie. Aguça a percepção daquilo que é óbvio. E está claro que Selena está precisando de

amigos. Continuo achando que o melhor a fazer é pôr o anúncio no jornal.

- Pois eu, disse Cris, vou orar para que Deus lhe mande um tesouro peculiar, e que ele

venha à sua porta.

Page 44: Em seus sonhos

- Ei, espera aí. Ela não está querendo pedir uma pizza, não, interveio Katie. Ouça meu

conselho, Selena, ponha o anúncio no jornal. É o melhor jeito de arranjar amigos. É bárbaro!

Mas, falando de tesouro peculiar, e de tesouro bárbaro, o que aconteceu com Paul?

- Ah, que coincidência você falar dele! exclamou Selena.

- Quem é Paul? quis saber Cris.

- Lembra daquele cara que te falei que Selena conheceu no aeroporto de Londres,

quando ela estava voltando, que veio no mesmo avião, que eu disse que ele era crente, que

tinha um irmão chamado Jeremy, que era colega do Douglas e quando fui na casa do Douglas

no mês passado, Jeremy estava na reunião do grupo “Amigos de Deus”, e deu ao Douglas

uma carta que o irmão dele escreveu para Selena, e o Douglas entregou a carta pra mim e eu

mandei para Selena? explicou Katie num só fôlego.

- Você não me contou nada disso, falou Cris.

- Claro que contei!

- Contou não, insistiu Cris, senão eu lembraria.

- Tenho certeza de que contei, Cris. Parece que ultimamente sua memória anda muito

seletiva.

- O que você quer dizer com isso?

Selena tomou outro gole de chá e ficou a ouvir as duas amigas discutindo, cada uma na

sua extensão do telefone.

- Quando é algum assunto que diz respeito ao Ted, você guarda direitinho na memória.

O que não for relacionado com ele, fica perdido.

- Ah, obrigada, Katie! exclamou Cris em tom irônico. Essa foi ótima! A verdade é que

você não me contou mesmo que Selena tinha conhecido esse cara... como é o nome dele?

- Paul, replicaram Selena e Katie juntas.

- Ah, e eu o vi hoje, interveio Selena rapidamente, antes que as duas recomeçassem a

“batalha” amistosa.

Page 45: Em seus sonhos

- Que bárbaro! exclamou Katie. Como foi?

Selena descreveu a cena em que estivera toda molhada, carregando o enorme embrulho

do buquê de lírios. Do outro lado da linha, as duas a ouviam em completo silêncio,

interrompido apenas pelo ruído característico de um saquinho de gotas de chocolate.

- Alô! Será que estou deixando as duas chateadas com essa minha longa história?

- Claro que não! replicou Cris imediatamente. Só foi muito estranho você tê-lo visto

desse jeito. O que vai fazer agora?

- Nada. O que posso fazer?

- Talvez ele lhe telefone para perguntar se você está bem, comentou Katie. Pelo menos é

isso que acontece nos filmes.

- Não, interveio Cris. No filme, ele teria mandado o amigo dele parar o carro, teria

corrido em sua direção com um guarda-chuva aberto e a teria levado até em casa. Chegando

lá, você faria um chá para os dois.

Selena riu.

- E agora estou até tomando chá, explicou. Talvez, no meu caso, seja um filme classe B,

daqueles bem baratos, e acaba comigo tomando chá sozinha. Não tem o mocinho nem o

guarda-chuva.

- Então o meu, interveio Katie, seria classe Z. Não teria o mocinho, nem o guarda-

chuva, nem a história...

- O seu parece mais um filme de suspense, interrompeu Cris. O final dele é um que

ninguém espera.

- E a sua história, disse Katie para Cris, está se tornando um daqueles romances de final

previsível. A garota conhece o rapaz. Durante quatro anos, o rapaz se mostra um verdadeiro

bobo. A garota se transforma numa linda mulher. Afinal o rapaz “acorda” e a garota vira uma

perfeita abobalhada.

Selena riu.

Page 46: Em seus sonhos

- É, disse ela, pelo visto, tudo está indo muito bem entre você o e o Ted.

- Mais ou menos, replicou Katie, respondendo pela amiga. Você precisa vir aqui logo,

Selena. Vou convocar uma reunião de emergência do nosso clube “Apenas Amigos”. Como

eu e você somos as únicas que ainda são sócias, você é obrigada a vir. Ainda lembra do nosso

clube, não lembra?

- Claro! replicou Selena. Como eu iria esquecer? E ainda tenho plenas credenciais para

fazer parte dele. Não há nenhum rapaz na minha vida, nem mesmo como amigo.

E como a garota estivesse se sentindo com um espírito de gozação, continuou:

- A não ser que, hoje de manhã, Paul tenha ficado tão impressionado com minha

estonteante beleza, que já tenha vindo para cá para me tomar em seus braços.

- Só em sonhos, Selena! comentou Katie. Na minha opinião, você pode riscar esse

gaiato de sua lista. Talvez deva especificar no anúncio que está procurando novos sócios para

o nosso clube “Apenas Amigos”. Podemos aceitar rapazes também em nosso grupinho.

- Não mexe com esse negócio de anúncio, não, aconselhou Cris. Comece a orar. Eu

também vou orar para que você conheça umas pessoas bem legais aí.

- Então ore também para eu arranjar um emprego, disse Selena. Falta menos de um mês

para o recesso da pascoa.

- Está bem, replicou a amiga.

Nesse momento, a porta da sala se abriu e Selena se ergueu de um salto. Sabia que sua

mãe só iria chegar à tarde. Olhou para o velho relógio que se achava sobre a mesa de

carvalho. Marcava 10:57h. A garota escutou passadas no assoalho de madeira de entrada.

Arrependeu-se de não ter trancado a porta. Cobrindo a boca e o fone com uma das mãos,

disse:

- Gente, entrou alguém aqui em casa.

- Você está sozinha? indagou Cris.

- Estou, replicou Selena em voz baixa.

Page 47: Em seus sonhos

A moça seguiu os passos se dirigindo para a cozinha e sentiu o coração bater com força.

Eram passadas pesadas, como de um homem.

- Não desliguem, não, falou para as amigas. Fiquem na linha. Se eu gritar aqui, liguem

para a polícia de Portland imediatamente!

Page 48: Em seus sonhos

Capítulo Oito

Selena prendeu a respiração. Pelo telefone escutou Katie, fazendo o ruído de quem

lambe os lábios. Logo Cris cochichou:

- Pssssiu, Katie!

Ao mesmo tempo, Selena ouvia as passadas ressoando pesadamente na cozinha e, em

seguida, vindo na direção da saleta.

- Está vindo para cá! sussurrou.

- O que está acontecendo? indagou Katie. Quem é?

De repente uma figura apareceu à porta.

- Ué! exclamou Selena. O que você está fazendo aqui?

Era Tânia. A jovem entrou na saleta, batendo as grandes botas de esquiar no assoalho de

madeira.

- E você? O que você está fazendo aqui? indagou ela. Cadê o carro? Achei que não

havia ninguém em casa, por isso fiquei espantada quando vi que a porta da frente estava

destrancada.

- Quem é? gritou Katie no telefone.

- É minha irmã, replicou Selena.

Em seguida, virou-se para Tânia e disse:

- Mamãe saiu com o carro. Ela está no Hospital St. Mary com Vó May. Ela fez uma

operação de vesícula ontem.

- Quem? perguntou Tânia com voz estridente. Quem operou a vesícula? Mamãe ou Vó

May?

- Ei, interrompeu Katie, você não nos contou isso.

- Vó May. Mamãe voltou hoje de manhã para ficar com ela. Ela está passando bem.

- Quem? quis saber Katie. Sua mãe ou sua avó?

- As duas, explicou Selena. Ó gente, posso ligar para vocês mais tarde?

Page 49: Em seus sonhos

- Claro, respondeu Cris. À noite vamos estar na casa da Tríci. Se você quiser, pode ligar

para lá. Senão, daqui a uma semana vamos entrar em contato com você de novo, para ver

como tudo está indo e se você virá aqui no recesso da Páscoa.

- Está bem. Tchau, gente. Digam ao Douglas, à Trícia e ao Ted que mandei um abraço.

- Pode deixar. Tchau, Selena!

Ela desligou e se virou para Tânia, que estava de pé, com as mãos nos quadris.

- Que é que está acontecendo? indagou ela em tom firme.

Selena narrou-lhe tudo que havia acontecido.

- Vou lá para o hospital, falou Tânia.

- Vou com você, disse Selena, erguendo-se de um salto. Espere só eu calçar o sapato.

- Primeiro vou trocar de roupa, explicou a irmã, que ainda estava com os trajes de

esquiar.

Em seguida foi saindo em direção à escada.

- O que foi que aconteceu que você voltou mais cedo? indagou Selena. Eu tinha

entendido que você iria ficar lá até domingo.

Tânia abriu a porta do quarto e logo soltou um berro:

- Selena!

- Que foi? Estou aqui.

- Parece que você não fez nada neste quarto depois que saí na quinta-feira.

- Não fiz não, Tânia. Não tive tempo. O que aconteceu no seu passeio?

- Nada! replicou a outra meio ríspida. Resolvi voltar mais cedo, foi só. E parece que foi

muito bom eu ter vindo. Como Vó May foi para o hospital?

- Eu a levei de carro.

- Você matou aula?

- Perdi aula, replicou Selena, calçando uma meia e em seguida o tênis. Era uma situação

de emergência.

Page 50: Em seus sonhos

Tânia não tinha um temperamento muito amistoso. Volta e meia brigava com Selena.

Nesse dia, porém, parecia ainda mais irritadiça. Selena resolveu não insistir em perguntar por

que ela regressara mais cedo do que deveria.

Tânia se aprontou em silêncio e guardou sua roupa caprichosamente no armário. Em

seguida, colocou as botas de esquiar dentro do closet. Por fim as duas rumaram escada abaixo,

Tânia na frente. Selena pegou sua mochila, ainda molhada por causa da chuva da manhã. As

duas saíram, e Selena já ia fechar a porta quando se lembrou das flores que deixara na

cozinha.

- Espere! disse. Tenho de pegar as flores.

Correu à cozinha e abriu o armário para procurar uma sacola de plástico para carregar o

buquê de lírios amarelos. Nisso, deu com os olhos num objeto muito importante, guardou-o,

enrolou-o num pano de prato e guardou-o na mochila. Em seguida, apanhou uma sacola de

plástico e colocou nela os lírios.

Quando chegou lá fora, Tânia já estava com o carro ligado e verificava a maquiagem no

espelhinho que havia na parte de trás do tapa-sol. Selena sentou-se no banco ao lado dela, mas

antes teve de pegar um saquinho de papel branco que a irmã deixara sobre ele. Sentiu um leve

cheiro de canela no ar. Ajustou o cinto de segurança, acomodou as flores no colo e em

seguida olhou o saquinho de papel. Estava vazio.

- O que é que linha aqui? indagou.

- Onde?

- Nesse saquinho de papel. Era um pão doce da confeitaria Mother Bear?

- Era. E daí? perguntou Tânia, com a voz ainda um pouco irritada.

- Nada. Só que eu estava com muita vontade de comer um pãozinho desses, só isso.

Selena sentiu a boca cheia d'água e engoliu a saliva. Se estivesse com outra pessoa

qualquer, iria abrir o saquinho e comer as migalhas.

Page 51: Em seus sonhos

‘Guenta firme aí, barriga! pensou. Prometo que muito breva vai chegar aí um pãozinho

da MotherBear!

Chegando ao hospital, Selena foi mostrando a Tânia o caminho para o quarto onde Vó

May se encontrava. A avó estava dormindo e a mãe cochilava sentada na poltrona.

- Vou colocar o vaso na mesinha, cochichou Selena, apontando para os lírios.

A mãe de Selena remexeu-se, acordou e olhou para Tânia surpresa. As duas puseram-se

a conversar em voz baixa, enquanto Selena procurava ajeitar os lírios na mesinha de

cabeceira. Teve vontade de ouvir o que as duas estavam conversando. Tinha certeza de que a

irmã contaria à mãe qual fora o problema que houvera na estação de esqui, bem antes de

revelá-lo a Selena.

- Queridinha! disse Vó May com a voz meio fraca.

- Estou aqui, vó, replicou a moça, indo para perto da cama, ainda com o vaso na mão.

Olhe aqui. A Charlotte lá da floricultura mandou esses lírios para a senhora. São lindos, não

são?

- Lírios! exclamou Vó May com expressão de satisfação. São minhas flores prediletas.

- Vou colocá-los bem aqui, disse Selena. Mamãe e Tânia também vieram.

As duas se aproximaram da cama e a avó ergueu o braço pegando a mão de Tânia.

- Nini! disse Vó May para Tânia, que se inclinou e deu-lhe um beijo na testa.

Vó May criara apelidos para todos os netos. Apenas Selena fora presenteada com o que

parecia mais “norma”". Na verdade, o “Nini” de Tânia fora obra de Selena. Quando ela era

pequenina, não conseguia pronunciar “Tânia” direito. Diziaapenas “Ni”. E Vó May o adotara.

Os irmãos mais novos de Selena também a chamaram de “Sissi”. Contudo o apelido não

pegara. Vó May sempre a chamara de “Queridinha” desde o dia em que ela nascera.

- A senhora está se sentindo bem, vó? indagou Tânia.

- Estou bem, mas ainda meio indisposta, respondeu Vó May, tentando sentar-se.

Tânia arrumou os travesseiros para ela.

Page 52: Em seus sonhos

- A senhora passou por uma cirurgia séria, vó, disse Tânia, sorrindo e alisando o cabelo

branco e macio da avó. Precisará pelo menos de mais uns dois dias para se sentir disposta. Eu

trouxe uma loção hidratante para a senhora. Quer que faça uma massagem nos seus pés com

ela?

- Oh, quero, sim, Nini. Meus pés estão frios. E será pode arranjar uma toalhinha úmida e

quente para eu passar no rosto?

- Vou pegar, disse Selena, levantando-se e indo para banheiro.

- Quer comer um pouco mais do seu almoço? perguntou a mãe.

E as três se puseram em ação, cuidando da querida paciente. E Vó May comeu todo o

almoço. Selena sentiu alívio que pelo menos naquele momento ela se achava lúcida. Quanto

tempo será que duraria essa fase de lucidez?

- Que dia é hoje? quis saber Vó May.

- Sábado, informou a mãe.

- Ué, Nini, não era pra você estar esquiando?

- Resolvi vir embora mais cedo, explicou Tânia. As coisas lá não eram do jeito que eu

pensava.

- Você chegou a esquiar? indagou a mãe.

- Esquiei ontem o dia todo. A neve estava com um pouco de gelo e lá no alto do monte

tinha neblina demais para o meu gosto. Mas o dia foi bom.

- Então à noite é que houve o problema, deduziu Vó May, com olhos brilhantes e a

mente bem alerta, evidentemente.

Tânia deu uma olhada para a mãe e em seguida virou-se para a avó. Ainda estava com o

vidro de loção hidratante na mão.

- É, acho que posso dizer isso, replicou, colocando em seguida um pouco de loção numa

das mãos. Creio que preciso arranjar amigos que tenham o mesmo conceito que tenho sobre

diversão.

Page 53: Em seus sonhos

Selena ficou a pensar se a irmã não iria aproveitar para falar sobre a questão da igreja

que freqüentavam. As duas já haviam conversado com os pais sobre o assunto, mas eles

tinham demonstrado certa relutância em abordá-lo com Vó May. A família estava

freqüentando a igreja da avó. Era uma igreja legal, pequena, tradicional. A maioria dos que

iam lá eram pessoas idosas, todas muito agradáveis. E havia também alguns casais jnvens.

Entretanto não havia união de adolescentes nem de mocidade. Portanto, não existia nenhum

tipo de reunião para eles, nem sequer classes de escola dominical.

Nas vezes em que a família havia conversado sobre o assunto, tinham chegado sempre à

mesma conclusão.

“Nós vamos à igreja é para adorar a Deus em grupo, a família toda, e não em busca de

sociabilidade.”

Agora estavam as duas ali, Tânia e Selena, com o mesmo problema: sem amizades

adequadas. Elas haviam tentado mostrar aos pais que, para jovens de 16 e 18 anos, a vida

espiritual se acha muito relacionada com a necessidade de sociabilidade.

- Precisamos arranjar uma igreja que tenha uma boa união de mocidade, falou Selena,

passando a toalha úmida na testa da avó.

Assim que ela disse isso, viu sua mãe estampar no rosto uma expressão tensa,

demonstrando que achava que Selena não deveria ter dito aquilo.

- Não se prendam por minha causa, comentou Vó May, fechando os olhos e esperando

outro toque da toalha.

Selena passou a toalha sobre os olhos da avó e parou ali um pouquinho mais do que

precisava, para poder fitar a mãe. Tânia também olhava para a mãe com expressão de

expectativa. A mãe parecia surpresa. Em seguida, deu de ombros e fez que sim com a cabeça.

- De vez em quando, iremos à igreja da senhora, Vó May, disse Selena corajosamente,

levando o assunto em frente. Mas a senhora não vai se importar se procurarmos uma igreja

Page 54: Em seus sonhos

que tenha mais programação para os jovens, não é, vó? E pode ser até que algumas vezes a

senhora queira ir à nossa greja também.

- Para mim está bem, queridinha!

Selena voltou a passar a toalha nos olhos da avó e deu um sorriso maroto, já esperando

ver uma expressão de admiração no rosto da mãe e da irmã. Ela conseguira algo que seu pai

nem tentara fazer: que Vó May concordasse em que procurassem outra igreja.

A mãe e Tânia sorriam agradecidas. Selena se pôs a secar o rosto da avó com uma

toalha enxuta e disse:

- eu trouxe outra coisa para a senhora, vó.

Tirou da mochila o pano de prato todo enrolado e abriu-o lentamente, mostrando para

ela o objeto: era a xícara de porcelana da avó com o pires. Em casa, Vó May sempre utilizava

uma xícara de porcelana para tomar café, água, suco, etc. Qualquer líquido que tomasse, era

sempre numa xícara. E o de que ela mais gostava era café.

- Vamos chamar a enfermeira e pedir um bule de café bem quente?

Page 55: Em seus sonhos

Capítulo Nove

- Acho que devíamos tentar ir à igreja de Vacouver, disse Tânia.

A jovem se achava recostada em sua cama, enquanto Selena conscienciosamente

procurava guardar suas roupas espalhadas pelo quarto. A mãe se sentara na ponta da cama de

Selena, que ainda estava desarrumada.

- É muito longe, observou a mãe. Essa é a vantagem da igreja de Vó May. Fica só a três

quadras daqui. Além disso, parece muito estranho ir a uma igreja que fica em outro estado.

- Ah, que é isso? E só atravessar o rio para chegar ao estado de Washington. A gente

não levaria mais que uns quinze minutos de carro. Ouvi dizer que o grupo de jovens da igreja

de Vancouver é muito bom, explicou Tânia.

- É, interveio Selena, lá na escola ouvi alguém falar que tem uma igreja em Gresham

que é muito boa também.

- Gresham fica na direção oposta, disse a mãe, e a gente levaria uns vinte minutos de

carro.

- Está vendo? continuou Tânia, pegando os óculos para ler um livro. É melhor irmos na

de Vancouver. Já liguei pra lá e me informram que o culto é às 10:00h.

- Queri que seu pai estivesse em casa para conversarmos sobre isso todos juntos. Talvez

seja melhor irmos à igreja de Vó May amanhã, pela última vez. Depois, no domingo que vem,

começamos a visitar outras igrejas.

- Por quê? quis saber Selena.

- Para quê isso? interveio Tânia. De qualquer jeito, Vó May não vai estar aqui. Essa é a

melhor ocasião para mudar-mos de igreja.

A mãe deu um suspiro e ergueu as mãos como que entregando os pontos.

Page 56: Em seus sonhos

- Estou com muito sono. Não consigo discutir mais. Vocês duas decidam aí. Vou aonde

quiserem. Nesse momento quero mais é ir para a cama. Alguém já verificou a secretária

eletrônica?

- Não.

- Estou preocupada com a Grace. Quando saí, ela não estava passando muito bem, e

ainda por cima Daniel não ajuda nada.

- Por que ele é sempre tão irritadinho? indagou Selena. Ontem, quando telefonei,

parecia que ele iria me morder.

A mãe deu outro suspiro. Pensou um pouco e depois disse:

- No momento, eles estão passando por alguns problemas. Ele foi despedido no mês

passado e o dinheiro do seguro saúde talvez não seja suficiente para pagar todas as despesas

hospitalares da Grace. E depois você sabe como os gêmeos são levados. A família está

passando por uma fase muito difícil.

- A senhora queria ter ficado com eles? indagou Selena. Nós poderíamos ter tomado

conta de Vó May.

A mãe abanou a cabeça.

- Já estava combinado que a irmã de Daniel iria para lá hoje à noite. Ela vai se sair

melhor do que eu, cuidando do Daniel e dos meninos. Se vocês ainda não agradeceram a Deus

pelo pai que têm...

- Quer dizer, em vez de ter um pai como Daniel? observou Selena.

- Eu só estou dizendo que devem agradecer a Deus pelo pai que têm. Eu às vezes

esqueço de como Harold é um bom marido e um bom pai.

A mãe se levantou para sair, mas parou no meio do caminho.

- Sabe de uma coisa? Vamos orar nós três aqui, juntas, como eu fazia quando as duas

eram pequenas.

Page 57: Em seus sonhos

A mãe dirigiu-se para a cama de Tânia, e Selena a seguiu. Sentaram-se de frente umas

para as outras, com as pernas cruzadas à moda oriental, e deram as mãos. Oraram por Vó

May, pelo pai e os irmãos, pela tia Grace e pelo tio Daniel. A mãe engasgou um pouco

quando orou por Grace e Daniel. Selena também sentiu um aperto na boca do estômago

quando ela pediu a Deus que salvasse o casamento deles e protegesse os gêmeos.

Em seguida a mãe fez uma petição cheia de ternura. Orou pelo futuro marido de Tânia e

de Selena. Pediu a Deus que ambos entregassem a vida a Deus, se é que ainda não haviam

entregado, que se tornassem homens de Deus e amassem muito a Tânia e Selena, bem como

aos filhos que viessem a ter. E ao dizer tais palavras, chorou.

Selena também sentiu os olhos se encherem de lágrimas, no momento em que disse

“Amém”. Sabia que a mãe fazia essa oração havia já muitos anos, assim como Vó May

também orara pelas pessoas com quem seus sete filhos iriam se casar. A mãe de Selena

mesmo fora a resposta da oração que Vó May fizera por seu filho Harold. Desde pequena,

Selena tinha conhecimento de que seus pais e sua avó oravam por seu futuro marido. Já até se

acostumara com isso.

Nessa noite, porém, fora diferente. Nesse momento, a oração de sua mãe parecera

revestida de um novo vigor. Interiomente, a jovem reconheceu que aquela mulher que ali

estava, de mãos dadas com ela, era uma poderosa intercessora. Sentiu que Deus iria enviar

gloriosas bênçãos para ela por causa da oração de sua mãe.

- Em nome de Jesus, que assim seja! disse a mãe, encerrando.

- Que assim seja! repetiu Selena, abrindo os olhos ainda molhados de lágrimas.

- Amém! disse Tânia.

- Eu amo muito as duas! disse a mãe, abraçando-as e dando-lhes um beijo no rosto.

- Eu também te amo, mãe! falou Selena, beijando-a também. E amo você também, disse

para Tânia, sorrindo e abrindo um pouco o semblante.

A irmã recebeu o beijinho de Selena, mas não disse nada.

Page 58: Em seus sonhos

- Durmam bem! falou a mãe, bocejando. Se até as 9:00h eu não acordar, podem me

chamar.

- Então podemos ir à igreja de Vancouver? indagou Tânia.

- Pra mim está bem, replicou Selena.

- Pode ser, concordou a mãe, bocejando de novo e caminhando para a porta.

Selena retirou seus pertences de cima da cama e entrou debaixo das cobertas. Sentiu que

Tânia lhe dirigiu um olhar de crítica.

- Que foi? indagou, sem olhar para a irmã.

- Não vai guardar seus objetos não?

- Amanhã! respondeu, imitando “Scarlett O'Hara”, a heroína de “E o Vento Levou...”

Vou resolver isso amanhã

E o amanhã acabou se prolongando por mais alguns dias. Afinal, na terça-feira, ela

resolveu encarar a pilha de roupas. Dessa vez veio decidida a arrumar tudo. Tânia estava

insistindo com ela para melhorar a aparência do quarto.

Nos últimos dias, as duas estavam se dando muito bem. Ambas haviam gostado bastante

da igreja de Vancouver. E na segunda-feira, Tânia tinha até permitido que Selena pegasse o

“querido” carro dela para ir visitar a avó no hospital enquanto ela própria se aprontava para ir

trabalhar.

Vó May estava melhorando sensivelmente. O médico havia dito que, se tudo corresse

bem durante o resto da semana, ela poderia voltar para casa no sábado. A velha senhora

passava a maior parte do tempo dormindo. Contudo, sempre que estava acordada, sua

memória estava boa.

Selena separou as roupas limpas das sujas. Em seguida, pegou as sujas e dirigiu-se para

o porão da casa, onde ficava a máquina de lavar. Assim que acabou de colocar nela a primeira

trouxa, escutou a voz do pai dentro de casa. Desde que voltara do passeio, ele passara boa

Page 59: Em seus sonhos

parte do tempo no hospital, com a mãe dele. Os dois irmãos menores, Kevin e Dilton, como

sempre, faziam muito barulho. Parecia que tudo voltara ao normal.

Nem tanto. Embora a crise relacionada com Vó May estivesse solucionada, os

problemas de Selena ainda não estavam. Ainda não conseguira emprego nem arranjara

amigos. Ademais, queria muito ir à Califórnia no recesso da Páscoa. Para isso, porém,

precisava da permissão do pai, que agora já retomara a rotina de sempre. Então era o

momento de lhe pedir.

Selena subiu a escada do porão de dois em dois degraus. O pai estava na cozinha

lavando uma maçã, na qual, em seguida, deu uma dentada.

- Oi, meu paizinho querido e maravilhoso! principiou Selena, abraçando-o pelos

ombros.

- Eh...quanto é que você está querendo? indagou o pai sem pestanejar.

Selena afastou-se dele.

- Por que o senhor acha que vou pedir dinheiro?

- Você vai, não vai?

- Bom, não exatamente!

- Seja o que for que vai pedir, vou ter que desembolsar algum dinheiro, não vou?

Selena passou os braços novamente em torno do pai e encostou a cabeça no ombro dele.

- Como é que o senhor consegue ser tão esperto e maravilhoso assim, meu paizinho

querido e maravilhoso?

Ele fitou a filha, que piscou várias vezes com ar de gozação. Harold Jensen caiu na

risada e quase se engasgou com um pedaço de maçã.

- É, parece que teremos uma conversa séria, disse ele ainda rindo. É melhor irmos para

o escritório.

- Pai! gritou Kevin lá do quintal, com sua vozinha aguda. O senhor pode vir aqui nos

ajudar?

Page 60: Em seus sonhos

- Que é que você quer?

- A roldana da corda da casa na árvore quebrou.

- Ah, eu vou aí daqui a uns... replicou ele e parou, olhando para Selena. Quanto tempo?

perguntou para a filha. Vinte minutos? Meia hora? Três horas?

- Vinte minutos, respondeu a jovem. Meu pedido é muito simples.

- Vou aí daqui a uns vinte minutos, respondeu ele para o menino. Esperem eu chegar.

Não tentem consertar sozinhos não, ouviu?

- Nós esperamos, falou Dilton, o irmão de oito anos, sempre eficiente.

- Está bom, concluiu o pai em voz baixa. Deu outra mordida na maçã.

- Vamos lá, disse ele para a filha, conduzindo-a para a saleta que chamava de seu

escritório.

Era o cômodo de que o pai mais gostava. Uma das paredes tinha uma estante que ia do

chão ao teto e estava repleta de livros. Muitos deles eram velhos volumes da coleção de Vó

May, que ela fora adquirindo desde jovem. Alguns eram escritos em dinamarquês, a língua

nativa da avó. O aposento tinha um cheiro peculiar de mofo, que lhe dava um ar de

importância e ao mesmo tempo “caseiro”. Aqueles livros eram como amigos silenciosos,

sempre dispostos a “dar” algo para os outros, sem exigir nada em troca, a não ser, vez por

outra, uma limpezinha.

Selena se instalou na sua poltrona predileta, que se achava encostada em um canto,

perto da porta de folha dupla que dava para o jardinzinho dos fundos. Quando a luz do sol

entrava ali, batia direto na cadeira. Um gato ali iria adorar deitar-se nela para tomar seu banho

de sol. Naquele momento, o sol não estava batendo lá, mas mesmo assim Selena se acomodou

nela e estendeu as pernas, colocando os pés no descanso que combinava com a poltrona.

Seu pai sentou-se na sua poltrona giratória que se achava junto à escrivaninha, e virou-

se para a filha.

- Muito bem, disse, continuando a comer sua maçã. Pode “atirar”!

Page 61: Em seus sonhos

- Eu queria ir visitar as amigas que conheci na Inglaterra. Elas me convidaram para

passar o recesso da Páscoa com elas. Posso ir de avião até San Diego ou então para Orange

County. Vou pagar todas as minhas despesas, só que ainda não arranjei trabalho. Estou a zero!

- Ah, replicou o pai calmamente. É só isso?

- Tentei arranjar um emprego na floricultura, mas a mulher disse que era para trabalhar

aos domingos e que eu precisava ter carro próprio. Ainda não procurei em nenhum outro

lugar, mas quero ver se arranjo um serviço aqui por perto, para não depender de carro.

- Muito sensato, comentou o pai.

- E aí? Posso ir?

- Primeiro vou conversar com sua mãe sobre isso, mas acredito que não haverá

problema, não. Mas numa coisa você tem razão: terá mesmo de arranjar o dinheiro para pagar

a passagem. Essa viagem que sua mãe teve de fazer outro dia a Phoenix estava fora do nosso

orçamento. Vamos fazer um trato: você se esforça para conseguir um trabalho e eu vou tentar

encontrar um vôo que fique bem barato. Você tem preferência por algum aeroporto? Suas

amigas vão lá pegá-la, não vão?

- Claro! E o aeroporto não faz muita diferença. A cidade delas fica mais ou menos no

meio dos dois.

- O.k.! disse o pai. Então vou começar a ver preço de passagens.

Selena deu um sorriso alegre.

- Muito obrigada, meu paizinho querido e maravilhoso!

- E, não fique muito confiante não. Isso ainda está na dependência de você poder pagar

a passagem.

- Eu sei, mas muito obrigada por ser meu pai.

- De nada! replicou ele, abrindo a porta e dirigindo-se para a casa na árvore. Ah, e a

propósito, continuou ele, virando-se ligeiramente, você já deu uma olhada na correspondência

que está na escrivaninha? Tem uma carta lá para você.

Page 62: Em seus sonhos

Capítulo Dez

Selena saltou da poltrona e pegou a pilha de correspondência que estava sobre a mesa.

Conta de água, boletos para pagar, propagandas, etc. Afinal deu com um envelope onde havia

o nome Selena Jensen escrito em letras maiúsculas bem graúdas. Imediatamente reconheceu a

caligrafia. Ela recebera apenas uma carta com aquela letra, mas já a lera umas cinqüenta vezes

ou mais. Aliás, essa carta estava guardadinha debaixo do seu travesseiro. Agora chegava a

“irmã gêmea” dela.

Segurando o envelope com firmeza, voltou à sua poltrona e se pôs a virá-lo e revirá-lo

nas mãos, antes de abri-lo. Quando será que Paul escreveu? Antes daquela hora que me viu,

no sábado, ou depois? Será que escreveu para debochar de mim?

Não conseguindo mais conter a curiosidade, abriu a carta com gestos cuidadosos.

Dentro havia apenas uma folha, com uma cartinha curta, de poucas linhas. A escrita era

mesmo característica de Paul, meio manuscrita meio em letra de forma, em caracteres bem

grandes. Dizia o seguinte:

Minha cara princesa dos lírios,

Estou querendo saber uma coisa - e obviamente não é da minha conta - mas você

pegou pneumonia? Se tiver pegado, devo lhe mandar umas flores? Ou será que aqueles

lindos lírios irão durar todo o seu período de convalescença?

Sinceramente,

Um Mero Observador.

Page 63: Em seus sonhos

Selena leu a carta quatro vezes, e a cada vez interpretou-a de forma diferente. Na

primeira, achou-a engraçada. Na segunda, pensou que talvez fosse carinhosa. Na terceira, ela

lhe pareceu meio mal-educada. Na quarta vez em que a leu, ficou furiosa.

Foi até a escrivaninha, pegou uma folha de caderno e se pôs logo a responder, antes que

pudesse mudar de idéia.

Fique você sabendo, Sr. Sabichão, que minha avó está internada. Na sexta-feira, ela

recebeu um telefonema, informando de que teria de fazer uma cirurgia de emergência, e eu

estava sozinha em casa com ela. Passei a noite ao lado dela no hospital. Naquela hora em

que você me viu, eu estava voltando de uma floricultura onde tinha ido fazer uma entrevista

para ver se arranjava um emprego. A dona da loja me deu aqueles lírios para minha avó,

pois são as flores prediletas dela.

Agora, respondendo às suas perguntas:

É, não é mesmo da sua conta.

Não; não peguei pneumonia.

Não; não quero nenhuma flor sua. Já disse que aquelas fores eram para minha avó

que, como falei, está internada.

E caso você esteja curioso, devo dizer que não consegui o emprego não.

E mais uma coisa: ao assinar uma carta, só escreva “sinceramente” se estiver sendo

sincero mesmo. Irritadamente,

Selena.

Em seguida, com receio de se arrepender, Selena dobrou o papel, enfiou-o num

envelope e procurou um selo na gaveta da mesa. Subiu correndo para o quarto e pegou a

“amada” cartinha que estava debaixo do travesseiro. Deu uma espiada nela para ver o número

Page 64: Em seus sonhos

da caixa postal e em seguida amassou-a e atirou-a na direção da cesta de lixo. Errou. Ela foi

parar no chão, perto de uma pilha de cadernos escolares.

Desceu a escada de galope e gritou para o pai que se achava no quintal:

- Pai, vou lá no correio levar uma carta!

- Espere aí, Selena, replicou o pai.

Ele estava num barracão que havia nos fundos, onde instalara uma oficina. Dentro dele,

havia ferramentas de último tipo. Exteriormente, porém, parecia a casa da história “Joãozinho

e Maria”. O pai chegou à porta enxugando as mãos numa toalha. Enfiou uma das mãos no

bolso e pegou uma nota.

- Você pode dar um pulo na confeitaria Mother Bear e comprar alguns daqueles

pãezinhos de canela? Prometi à sua avó que levaria uns para ela amanhã, para o café.

- O senhor não imagina com que prazer vou fazer isso, pai, respondeu Selena. Não

precisa me dar dinheiro não.

- Ué, pensei que você estava sem dinheiro, a zero.

- Mamãe disse que, enquanto ela estivesse viajando, eu poderia pegar na gaveta da

escrivaninha. Usei daquele dinheiro para comprar algo pra comer e para pôr gasolina no carro.

Ainda tenho um pouco aqui que dá para comprar os pãezinhos.

- É, disse o pai sorrindo, acho que tenho de procurar outro esconderijo para meus

trocados.

- Vem, pai! gritou Kevin de dentro da casa na árvore.

- Quer ir com meu carro? perguntou o pai à filha.

- Não, disse ela, estou precisando caminhar um pouco. Volto logo!

E Selena saiu andando com passadas largas, segurando firme a carta. Ainda bem que a

agência do correio não era muito longe, senão o envelope iria ficar molhado pelo suor das

mãos. Entrou na agência e, com um movimento brusco, enfiou a carta na abertura devida.

Page 65: Em seus sonhos

Imediatamente arrependeu-se do que fizera. Ficou em pé, parada, e deu uma espiada

para um lado e para outro para ver se alguém a observava. Será que daria para pegar a carta de

volta? Passou a mão na abertura, mas logo constatou que não conseguiria retirá-la. Não havia

mais jeito; o que estava feito, estava feito.

Sentiu que precisava de uma compensação - um pãozinho de canela, da confeitaria

Mother Bear. Caminhou as sete quadras que faltavam num passo de cooper. Assim que entrou

na loja, sentiu-se aliviada. Era como se tivesse apostado corrida com a raiva e a mágoa e

tivesse ganhado delas.

A confeitaria estava quase vazia. Havia apenas três pessoas sentadas numa das mesas do

canto, realizando uma espécie de reunião qualquer. Estavam tomando um café bem cheiroso.

O aroma de canela não era tão forte como estivera no sábado, mas estava no ar, permeando

todo o aposento.

- Ainda está atendendo? indagou Selena para uma senhora gorducha, de rosto rosado,

que usava um uniforme branco e naquele momento limpava o balcão.

- Só mais cinco minutos, explicou ela, olhando para o relógio da parede, que marcava

17:55h.

Era um relógio grande, que tinha o formato de um urso. O mostrador ficava na barriga

do animal.

- Uhmmm! Que bom que cheguei a tempo! exclamou Selena. Quero uma caixa com

pãezinhos de canela.

A mulher pegou uma caixa apropriada para embalar os pãezinhos e indagou:

- Mais alguma coisa?

Selena se lembrou de seu irmão, Cody. Sempre que a garçonete ou vendedora lhe fazia

essa pergunta, ele replicava:

“Uma passagem para o Havaí! Pra ‘viagem’, por favor!”

Então a jovem sorriu e respondeu:

Page 66: Em seus sonhos

- Uma passagem para San Diego!

A mulher fitou-a com ar de quem não entendeu, mas em seguida sorriu.

- Está ficando cansada desse nosso clima chuvoso, não é? observou ela. Querendo um

pouco de sol!

Selena fez que sim.

- Na verdade, explicou, estou querendo visitar umas amigas lá, no recesso de Páscoa. E

preciso só do dinheiro para comprar a passagem. E pra isso tenho de arranjar um emprego.

Selena se deu conta de que estava falando de sua vida com uma pessoa desconhecida e

logo ajuntou:

- Mas agora o que quero é apenas uma caixa desses seus pãezinhos. Estou há vários dias

com muita vontade de comê-los.

A mulher pegou o dinheiro que a jovem lhe estendeu e fez o registro na caixa.

- Mas você não vai comer tudo sozinha, vai?

- Farei o possível para não comer tudo, disse ela, vendo a mulher colocar a caixa numa

sacola de papel. Tenho que deixar pelo menos um para Vó May, que está internada e

esperando um pãozinho desses.

- Você se refere a May Jensen?

- É. Ela é minha avó.

- Ah, que coincidência! E como é seu nome?

- Selena!

- Você é filha de...

- Harold e Sharon.

- Não! exclamou a mulher, juntando as mãos à frente, como faz uma cantora de ópera.

Meu irmão foi colega de classe do Harold. Quando eu era menina, era apaixonada por seu pai.

Diga pra ele que você conversou comigo. Meu nome é Amélia Kraus. Em solteira, era Amélia

Jackson. Fale com ele pra dar uma passada por aqui uma hora dessas.

Page 67: Em seus sonhos

- Acho que ele já veio aqui, falou Selena.

- Ah, pode ser. Geralmente não sou eu quem atende no balcão. Eu e meu marido somos

os donos desta confeitaria. Mas ultimamente tem dado tanto movimento, que tive de voltar a

atender. E sua avó, como está?

- Está bem. Ela fez uma cirurgia de vesícula.

- É mesmo? Coitada! Não esqueça de falar com seu pai para passar por aqui. Dê minhas

lembranças pra ele.

- Vou dar, replicou Selena, pegando o pacote. Obrigada! Przer em conhecê-la!

- Igualmente, Selena! replicou Amélia Kraus.

A jovem foi saindo, e a mulher veio atrás dela até a porta, virando então a placa e

deixando à vista a palavra “Fechado”.

- Tchau! disse.

Selena saiu para a rua fria, onde logo se viu cercada pelo cheiro de chão molhado e da

fumaça do cano de descarga dos carros. Era um contraste muito forte com o ambiente da

confeitaria, onde se sentia o cheiro gostoso da canela e do café. Contudo não deu mais que

quatro passos quando lhe ocorreu um pensamento óbvio. Virou-se e voltou em direção à loja.

Assim que se aproximou viu a porta se abrindo e D. Amélia aparecendo. As duas se puseram

a falar ao mesmo tempo. Ambas riram.

- A senhora primeiro, disse Selena.

- Eu pensei uma coisa, falou a mulher. Você disse que estava precisando de um

emprego e...

- Tive a mesma idéia, interrompeu Selena.

- Então entre aqui, filha, disse D. Amélia, abrindo mais a porta. Acho que foi a

providência divina quem a trouxe aqui!

Page 68: Em seus sonhos

Capítulo Onze

- Cheguei! gritou Selena, entrando em casa e batendo a porta para fechá-la.

- Estamos aqui! disse a mãe na sala de jantar.

A jovem colocou o embrulho com os pãezinhos sobre um móvel da copa e foi para onde

estavam os outros. A mãe havia preparado seu “jantar rápido”: batata assada, brócolis cozidos

ao vapor com molho de queijo.

- Adivinhem só! falou Selena, quase sem fôlego.

Todos olharam para ela com expressão de expectativa.

- Você encontrou um imitador do Elvis que acabou de chegar de Marte e se alimenta de

cérebros humanos, interveio Dilton.

- É, prosseguiu Kevin, e ele comeu o seu e continuou com fome!

- Meninos! repreendeu o pai. O que foi que aconteceu, Selena?

- Ela estava tão entusiasmada que nem mesmo as piadas idiotas de seus irmãos

diminuíram sua alegria.

- Arranjei um emprego! Na confeitaria Mother Bear! Começo na quinta-feira. Vou

trabalhar de 4:00h às 6:00h, às terças e quintas-feiras, e das 8:00h às 4:00h, aos sábados. É

perfeito! E a dona da loja, Amélia Kraus, conhece o papai. O nome de solteira era Amélia

Jackson. Disse para o senhor ir lá uma hora dessas. E me deu mais uma caixa de pãezinhos de

canela. O melhor de tudo, porém, disse que posso folgar no recesso de Páscoa, continuou

Selena, fazendo uma pequena pausa para respirar. E ela é crente. Dá pra acreditar? Eles não

abrem a confeitaria aos domingos. É incrível, não é?

- Incrível mesmo! concordou a mãe.

- D. Amélia disse que foi a “providência divina”. Ela falou que Deus opera de modo que

a gente não entende, ou algo mais ou menos assim.

Selena espetou o garfo numa batata da travessa e colocou-a em seu prato. Em seguida

partiu-a ao meio com a faca, deixando escapar o vapor quentinho.

Page 69: Em seus sonhos

- Nosso Deus é um Deus maravilhoso! exclamou o pai. Ele vivia repetindo essa frase,

que também era a letra de um corinho que ele gostava de cantar.

- Acho bom eu começar a verificar preços de passagens aéreas, continuou ele.

- Aonde é que ela vai? quis saber Dilton.

- Dilton, por favor, não fale com a boca cheia, interveio a mãe. Selena quer ir à

Califórnia na Páscoa para visitar umas amigas, explicou.

- Então quer dizer que a senhora deixa, mãe? indagagou Selena, sem conseguir conter a

empolgação.

- Claro. Com as condições que seu pai estabeleceu, Tânia, que ainda não dissera nada,

baixou o garfo no prato e indagou:

- Será que tem mais alguém aqui incomodado com o fato de que Selena já foi à

Inglaterra e agora vai à Califórnia, enquanto nós ficamos em casa, ou sou só eu?

- Nós fomos acampar, interpôs Kevin.

- É, falou Dilton, e você foi esquiar. E Selena ficou sozinha em casa naquele dia.

Tânia ergueu os olhos num gesto de impaciência.

- É, comentou, mas o meu passeio fracassou.

- Se você quiser, pode vir comigo para San Diego, falou Selena.

- Ótimo! exclamou Tânia. E o que eu ia ficar fazendo lá? Passear com você e suas

amiguinhas?

- Elas não são “amiguinhas”, explicou Selena. Todas elas são mais velhas que eu. A

Katie e a Cris são da sua idade. A Trícia tem mais de vinte anos e o Douglas e o Ted também.

Tânia olhou para ela espantada, como se o que ela acabara de dizer fosse uma grande

novidade.

- E por que elas a convidaram para ir lá?

- São minhas amigas. Tratam-me como se eu fosse da idade delas, replicou Selena,

sentindo o entusiasmo arrefecer um pouco por ter de se defender perante a irmã.

Page 70: Em seus sonhos

E realmente não via diferença entre ela, Katie, Cris e os outros, embora eles fossem

mais velhos. Contudo, com Tânia, sempre se sentia um pouco inferiorizada.

- Que bom que você arranjou o emprego! exclamou a mãe, mudando de assunto. Acho

que vai gostar muito de trabalhar lá.

- Pra mim não dava, comentou Tânia, erguendo-se da mesa e indo limpar os restos de

seu prato no lixo. Engordaria 10 quilos só de sentir o cheiro daqueles pãezinhos. Que pena

que não deu certo na floricultura. Bem menos engordante.

Selena nunca tivera de preocupar-se com excesso de peso. Herdara da mãe o

metabolismo rápido e, além disso, sempre fora muito ativa fisicamente, queimando logo todas

as calorias que acumulasse com doces. Tânia, não. Da família, era a que mais se preocupava

em contar as calorias de tudo que comia. Sendo filha adotiva, por diversas vezes comentara

que provavelmente sua verdadeira mãe fosse uma “pipa”.

- Podemos comer um pãozinho de canela de sobremesa? indagou Dilton.

Com oito anos, o garoto era o retrato do pai, tendo herdado inclusive o gosto para doces.

- Não, replicou a mãe, vamos deixá-los para o café da manhã. Alguém pretende ir visitar

Vó May hoje à noite?

- Eu posso dar uma chegada lá, informou o pai. Vocês querem ir comigo, meninos?

- De quem é a vez de cuidar das vasilhas? Quis saber a mãe.

- De Selena, respondeu Kevin.

- Claro! resmungou a jovem.

Ela se levantou e recolheu os pratos para limpá-los e colocá-los na lava-louças. Jogou

alguns deles na pia, produzindo um barulho característico de louça no bojo de aço.

- Calma aí! recomendou a mãe em tom firme.

- Estou calma! replicou Selena.

Não sabia por que detestava fazer aquele serviço de passar uma água nas vasilhas para

pô-las na máquina. Era tão simples. Ademais a mãe sempre ficava ao lado, auxiliando-a, e as

Page 71: Em seus sonhos

duas batiam bons papos nesses momentos. Entretanto quando lhe diziam que era sua vez de

cuidar das vasilhas ela tinha uma reação interior. Era como se alguém, lá dentro dela,

aspertasse a tecla da raiva. E se, ao abrir a máquina ainda encontrasse nela as últimas louças

que tinham sido lavadas, então o “raivômetro” subia mais uns três graus. Sabia que era um

grande tolice sentir isso; mas sentia. E nessa noite, o “raivômetro”, que estava operando a

todo vapor, subiu diversos graus assim que a abriu. Estava cheia de vasilhas.

Não levou mais que uns quinze minutos para fazer o serviço, e, como sempre, a mãe lhe

agradeceu pela ajuda.

- De nada! resmungou Selena, subindo em seguida para fazer o dever de casa.

Chegando ao quarto, viu que Tânia já estava sentada à mesa, fazendo um trabalho para

seu curso da faculdade. Sem dizer nada, Selena afastou alguns objetos que estavam sobre sua

cama e sentou-se nela. Em seguida, pôs-se a ler um livro didático, daqueles que são

distribuídos pelo governo. E o texto era muito aborrecido.

As duas irmãs permaneceram em silêncio durante quase uma hora. Afinal Tânia disse:

- Você estava falando sério quando sugeriu que eu fosse a San Diego com você?

Selena hesitou antes de responder. Fizera o convite num momento de descontração. Na

verdade, a última pessoa que queria ao seu lado no recesso de Páscoa era Tânia. E, em sã

consciência, nunca iria querer que a irmã entrasse para o seu amado grupo de amigas. Assim

que elas vissem Tânia, largariam Selena de lado.

- Por que pergunta? indagou cautelosamente.

Tânia virou-se para Selena. Tinha os olhos cheios de lágrimas.

- Só queria saber se você disse aquilo pra valer.

- Claro, replicou Selena, imediatamente comovida com a tristeza da irmã.

Sabia que Tânia também estava tentando arranjar amigas. E, ao que parecia, isso era o

único ponto que as duas tinham em comum. A irmã não falou mais nada. Virou-se de novo

para os livros e continuou seu trabalho.

Page 72: Em seus sonhos

- E então? indagou Selena. O que você diz? Quer ir comigo ou não?

- Não tenho certeza, replicou a outra em voz baixa. Depois eu lhe falo.

- Selena teve vontade de jogar um travesseiro na irmã. Como se não bastasse ter

chamado Tânia para ir com ela num impulso de momento, agora esta não decidia. Ela poderia

pelo menos responder que sim ou que não, para Selena saber logo se iria ficar arrasada ou

alegre. Não gostava nem um pouco desse joguinho de indecisão. Contudo essa atitude - fazer

os outros esperarem - era mesmo típica de Tânia.

Selena sabia que o melhor a fazer, quando se sentia irritada e frustrada, era abrir a Bíblia

e lê-la até chegar a uma solução. Pegou na mesinha de cabeceira sua preciosa Bíblia com

sobrecapa de couro e abriu-a no ponto marcado. Seu “marcador” era um papel de embrulho de

chocolate, já meio amassado. Pôs-se a ler a partir do lugar onde parara, dias atrás.

No seu momento devocional pessoal, Selena tinha o costume de ler sempre um mesmo

livro até o fim. Algumas vezes, lia apenas alguns versículos. Em outras, lia vários capítulos. E

quando, por acaso, passava um dia sem estudar a Palavra, não tinha nenhum sentimento de

culpa. No dia seguinte, simplesmente continuava de onde havia parado. Além disso, tinha um

caderno onde anotava os pensamentos que lhe ocorriam durante a leitura.

No momento, encontrava-se no livro de Isaías, cap 26. Fazia mais de uma semana que

estava lendo Isaías. De propósito, saltara alguns dos capítulos iniciais do livro. Contudo os

trechos que lera nos dias anteriores eram bem interessantes, e ela sublinhara algumas

passagens.

Nessa noite ela principiou lendo devagar e parou no versículo 3. “Tu, Senhor,

conservarás em perfeita paz aqueles cujo propósito é firme; porque ele confia em ti.”

Selena deu as costas para a irmã e releu o verso. Ficou a se indagar até onde ela

confiava em Deus e até onde tentava ela mesma resolver as situações difíceis da vida.

Continuou a ler. O trecho que lhe chamou a atenção a seguir foi uma frase do versículo 9:

“Com minha alma suspiro de noite por ti...”

Page 73: Em seus sonhos

É, não sei se te desejo assim, Deus. Mas eu gostaria. Quero confiar em ti todos os dias;

e com relação a todos os aspectos da minha vida.

Releu a frase.

É Pai, quero suspirar por ti com minha alma. Quero que o Senhor esteja presente em

tudo que me diz respeito; não apenas nos momentos problemáticos. Quero o Senhor em

minhas noites de inquietação. Quero o Senhor em meus sonhos.

Contudo, em vez de reconfortada e tranqüila, Selena se sentia contrariada. Não por

causa de Tânia. Já se acostumara com o fato de seu relacionamento com a irmã ser sempre

tumultuado. Estava chateada era com a carta que enviara a Paul. Tinha-a escrito no impulso

do momento e colocara nela palavras malcriadas. Se antes havia alguma possibilidade ter um

relacionamento com o rapaz, aquela carta, com certeza, iria atrapalhá-la. E agora ela não

poderia mais corrigir o erro.

Page 74: Em seus sonhos

Capítulo Doze

Selena enfiou a mão no pacotinho de chips e pegou mais um. Era sabor de cebola, o seu

predileto. Com a outra mão segurava um exemplar do jornalzinho da escola. Lia a última

página, onde se encontravam os anúncios. Leu as informações ao pé da página.

“Todos os anúncios e notas pessoais têm de ser entregues até sexta-feira ao meio-dia, no

setor de jornalismo. Tarifa: 2 centavos por palavra. Favor trazer o dinheiro trocado.”

Procurando desligar-se do barulho da cantina, pegou um pedaço de papel e se pôs a

escrever algumas palavras. Quando Katie lhe falara sobre a possibilidade de colocar um

anúncio no jornal para arranjar amigos, achara a idéia ridícula. Hoje, porém, sentada sozinha

na mesa onde estava lanchando, começou a achar que talvez ela tivesse algum sentido.

“Precisa-se”, escreveu. “Preciso de alguém para lanchar comigo.”

Riscou essa frase e se pôs a criar outra.

“Procurando um amigo? Também estou.”

Saltou algumas linhas e mais abaixo tentou de novo.

“Garota novata na escola procura um modo de entrar em uma das ‘panelinhas’. Aceito

sugestões.”

- Muito fácil, disse uma voz masculina atrás dela.

Selena agarrou depressa a folha de papel e virou-se para dar um olhar irado a quem

tivesse dito aquilo.

- Oh! falou o rapaz. Minha sugestão é que você se abra um pouco.

Era o Ronny, o primeiro aluno que Selena conhecera no Colégio Royal. Fora ele quem a

levara a dar uma volta pelas dependências da escola para que a moça a conhecesse. Por

diversas vezes, depois disso, ele tentara bater papo com ela. Selena respondia sempre por

monossílabos, dava de ombros e se afastava. E embora ela tivesse feito algumas tentativas de

conversar com os colegas, na maior parte do tempo ficava calada se mantinha sozinha.

Page 75: Em seus sonhos

De repente compreendeu como os outros alunos deviam vê-la. Parecia que o seu

“raivômetro”, que entrava em operação quando tinha de cuidar da louça, também funcionava

na escola. Não havia se esforçado muito para se enturmar com os colegas.

Ronny sentou-se ao lado de Selena, embora ela não o houvesse convidado. O rapaz

sacudiu a cabeça, jogando para trás o cabelo louro e comprido.

- Sabe de uma coisa, Selena Jensen? começou ele. Precisamos ter uma conversinha.

- É mesmo? indagou ela em tom irônico.

- É mesmo, replicou ele. Já está na hora de você começar a viver.

Selena sentiu uma pontada de raiva. E Ronny deve ter percebido isso no rosto dela, pois

inclinou-se para mais perto dela e deu um sorriso meio torto. Selena notou uma pontinha de

barba a lhe brotar no queixo.

- Posso começar? falou ele.

Selena fez que sim.

- Então quer ser minha amiga? indagou ele, com expressão sincera nos olhos claros.

- Por quê? Você já tem tantos amigos!

- Está vendo? indagou ele, dando um tapa na mesa para enfatizar o que dizia. Seu

problema é esse. Não deixa ninguém se aproximar de você. Por que está sempre tão

“armada”?

- Não sei, replicou Selena com toda sinceridade.

Sentiu lágrimas se formando contra sua vontade Imediatamente piscou e engoliu em

seco para que elas não lhe rolassem pelo rosto.

Ronny continuou a fitá-la ainda com a mesma expressão. Nesse momento, a sineta

tocou, indicando o fim do intervalo, e os alunos começaram a se levantar para sair da cantina.

O rapaz, porém, não se mexeu. Permaneceu sentado, olhando para Selena, aguardando que ela

falasse. A jovem desviou o olhar, sentindo-se um pouco incomodada. Por um lado, tinha

vontade de se abrir com ele, dizer que não se sentira bem aceita na escola, que tinha a

Page 76: Em seus sonhos

sensação de que era uma estranha. Bem lá no fundo, porém, reconhecia que noventa por cento

da culpa era dela. Talvez até mais. Ela própria assumira uma atitude bastante retraída.

E o mais estranho em tudo isso era que tal conduta não tinha nada a ver com sua

personalidade. Até alguns meses atrás, ela sempre fora um tipo de pessoa que procurava as

amizades. Na escola onde estudara e na igreja que freqüentava, ela é que fora o “Ronny”. Era

ela quem tinha a iniciativa de fazer com que os recém-chegados se sentissem bem acolhidos.

Agora, porém, era a novata, e não sabia agir nessa situação.

- Bom, quando você resolver começar a entrevistar pessoas para o cargo de “amigo”,

falou o rapaz, lembre-se de que sou um dos candidatos.

Selena sentiu vontade de sorrir. Reconhecia que essa atitude de não querer conversar

abertamente com ele era tola e infantil.

- Ronny, principiou, é muito difícil...

- Não, interrompeu ele. Não é não. Você nem tentou...

Selena pensou que seria muito bom se soubesse umas palavras mágicas para melhorar a

situação. Queria uma palavra que fosse como uma “chave” para reabrir a conversa um outra

hora.

De repente, lembrou-se de algo que ouvira num dos cultos a que assistira quando estava

na Inglaterra, na viagem missionária. Ela anotara no caderno e, dias atrás, havia relido essa

anotação. O pregador dissera o seguinte: “No final das contas, quando queremos solucionar

problemas em nosso relacionamento com outros, existem apenas duas palavras que podemos

dizer. A primeira é ‘Perdão’, e a segunda é ‘Obrigado!’ Se dissermos a primeira com

freqüência durante o curso da vida, quando estivermos em nosso leito de morte, só

precisaremos dizer a segunda.”

Ronny, disse Selena prontamente, perdoe-me.

- Tudo bem, replicou ele. Mas perdoar de quê?

- Por eu ter sido tão desagradável. Quero ser sua amiga sim.

Page 77: Em seus sonhos

Ronny deu aquele seu sorriso meio torto.

- Quer dizer que estou empregado?

- Isso! respondeu ela, erguendo-se e estendendo-lhe a mão. Está admitido!

Em vez de apertar-lhe a mão, Ronny passou o braço pelo ombro dela e lhe deu um

abraço de lado.

- Amigos? indagou ele.

Selena recordou-se do clube “Apenas Amigos” sobre o qual ela e Katie sempre faziam

gozação.

- Amigos, repetiu.

- Então vamos, disse Ronny, senão a gente vai chegar atrasado.

Selena agarrou sua mochila e foi andando para a porta. Antes de sair, atirou na cesta de

lixo o papel em que tentara escrever o anúncio. Pela primeira vez, tinha alguém a seu lado

enquanto caminhava para a sala de aula.

Após as aulas, estava se encaminhando para o carro, quando Ronny e mais duas garotas,

Amy e Vicki, se aproximaram. Anteriormente, Selena já havia conversado um pouco com

aquelas colegas, e ambas haviam tentado desenvolver amizade com ela. Contudo a própria

Selena não fizera nada no sentido de retribuir a atenção das garotas.

Amy era do tipo “italiano”. Tinha cabelo negro e olhos castanho-escuros bastante

expressivos. Ela costumava usar roupas bem parecidas com as de Selena.

Vicki era uma aluna muito popular. Isso se devia, em parte, ao fato de ser muito bonita.

Tinha cabelo castanho, longo, que ela partia no meio e lhe caía sobre os ombros em ondas.

Seus olhos verdes eram amendoados, e as sobrancelhas,, finas, bem arqueadas. Tinha uma

aparência graciosa e feminina. Como Vicki era muito bonita, Selena achara que fosse meio

convencida e nem pensara muito em puxar conversa com ela.

Os três se acercaram de Selena e a rodearam.

- Nós vamos ao McDonald's. Quer ir?

Page 78: Em seus sonhos

- Tenho de ir trabalhar agora, explicou ela. Estou começando hoje e tenho que estar lá às

4:00h.

- Onde você trabalha? quis saber Vicki.

- Numa confeitaria em Hawthorne, onde fazem um pãozinho de canela muito bom.

- A Mother Bear? indagou Amy. Já fui lá. Adoro aquele lugar. Você sabe onde é, Vicki.

Fica do mesmo lado da rua da boutique onde costumo fazer compras, A Wrinkle in Time.

- Ah, é! exclamou Vicki. Que tal se a gente fosse lá em vez de ir ao McDonald's?

Selena engoliu em seco. É, esse negócio de fazer amizade com os colegas estava sendo

meio sem jeito para ela. E na certa, no primeiro dia num novo emprego também não iria ser lá

muito fácil. Juntar as duas atividades com certeza não seria uma boa.

- Mas lá não tem hambúrguer, tem? disse Ronny, causando alívio em Selena. Estou

querendo comer algo salgado.

- Ah, deixe disso, Ronny! interveio Amy. Lá tem aquele capuccino gostoso.

Ao que parecia, a menção de um café sofisticado não foi suficiente para fazer Ronny

mudar de idéia.

- Vamos deixar para uma outra vez, está bem? disse ele.

- Pra mim está bom, disse Selena, dando um suspiro de alívio e, só então, percebendo

que estivera com a respiração suspensa.

- Tchau, então, disse Vicki.

Os três se viraram para ir embora. Selena destrancou o carro, mas logo em seguida se

deteve e gritou:

- Oi, gente!

Eles se voltaram para ela.

- Obrigada! disse afinal.

- De nada! exclamou Ronny, respondendo pelo grupo e dando a impressão de que não

sabia ao certo do que é que ela estava agradecendo.

Page 79: Em seus sonhos

Selena experimentou enorme sensação de bem-estar quando se dirigia para a confeitaria.

Estava conseguindo avançar na questão das amizades. E isso não acontecera por acaso. Sabia

que quando alguém sentia uma paz assim, trazida pelo vento do Espírito, certamente era Deus

quem estava operando.

Abaixou o vidro da janela e pousou o cotovelo nela, sentindo o ar frio da tarde. Através

do pára-brisa, ergueu os olhos para o céu nublado e murmurou:

- Obrigada, Senhor!

Page 80: Em seus sonhos

Capítulo Treze

- É você, Selena? gritou a mãe, da cozinha.

- Sou, mãe, replicou a moça. É a sua filha desastrada.

Selena caminhou pesadamente até a cozinha e deixou-se cair numa cadeira. Pegou o

cabelo à latura da nuca com uma das mãos e ergueu-o para o alto da cabeça, como se fosse

um rabo de cavalo.

- A senhora não vai nem acreditar no que aconteceu, continuou ela.

A mãe abaixou o fogo de uma enorme panela de sopa que estava preparando, e

respondeu:

- Talvez acredite. Vamos ver.

Selena soltou o cabelo e começou a contar.

- Cheguei à confeitaria na hora certa, até um pouco adiantada. Me deram um avental

azul muito legal, e D. Amélia logo veio me explicar como se faz um capuccino. É muito

simples, sabe? Ou pelo menos deveria ser muito simples, comentou ela, abanando a cabeça.

Daí lá vou eu fazer meu primeiro capuccino para um freguês que estava esperando e olhando

pra mim. Só que não apertei direito aquela peça onde se põe o pó. Sabe, é aquela peça que

tem um cabo e se encaixa na parte superior da máquina. E ali passa a água superquente.

- Não me diga! exclamou a mãe.

- Digo sim! Liguei a máquina e esguichou água para todo lado: no meu avental novinho,

no balcão e no chão. Tentei arrumar o encaixe, e esguichou borra de café por todo lado. E foi

pra todo lado mesmo. Um desastre completo.

- Que horror, filha!

- Espera! Tem mais! D. Amélia, muito calma e tranquila me disse para fazer tudo de

novo e não me preocupar com a bagunça. Então limpei tudo e recomecei, com muito cuidado.

Tudo saiu maravilhosamente bem. O leite ferveu direitinho. Maravilha! Só houve um

problema. Esqueci de colocar o pó de café na vasilha. Nem acredito no que fiz. Estava tão

Page 81: Em seus sonhos

preocupada em fazer o negócio certinho que me esqueci de pôr o pó. Afinal entreguei o

capuccino ao freguês, que estava esperando uns dez minutos. Ele tomou um golinho e cuspiu

tudo em cima do balcão.

- Ai, Selena! exclamou a mãe com pena.

- O homem ficou com uma raiva! E na frente de todo mundo - tinha uns dez clientes na

loja - ele exigiu o dinheiro de volta e disse que nunca mais voltaria ali. Achei até que ele iria

jogar a xícara em mim. Pensei que D. Amélia iria me despedir na mesma hora.

- E despediu?

- Não! Continuou bem calma e disse: “Isso acontece filha! Vamos fazer de novo!”

- Que atitude maravilhosa!

- Não é? Ela é simplesmente extraordinária!

- E você tentou de novo?

- Tentei e dessa vez consegui. Fiz outro capuccino para outro freguês. O homem estava

sorrindo para mim o tempo todo e fiquei um pouco nervosa. Quando entreguei a xícara para

ele, deu-me uma gorjeta de um dólar e disse: “Uma heroína como você precisa receber um

prêmio!”

A mãe deu um sorriso abanando a cabeça.

- Só você, Selena! disse ela. E tudo no primeiro dia de trabalho!

- E ainda não acabou!

- Tá brincando! Tem mais?

Nesse momento, o pai entrou na cozinha tendo na mão a correia de Brutus. Pendurou-a

no gancho que havia atrás da porta e indagou:

- Está contando o primeiro capítulo da novela da confeitaria? O que foi que perdi?

- Depois te conto o princípio, falou a mãe. Escuta só. Selena se atrapalhou toda.

A jovem se pôs a rir. Riu demais, a ponto de lhe virem lágrimas aos olhos.

- Pra falar a verdade, a trapalhada caiu em cima de mim.

Page 82: Em seus sonhos

- Essa deve ter sido ótima! comentou o pai, passando o braço sobre o ombro da esposa e

ficando de frente para a filha.

- Fui pegar uma caixa com pãezinhos de canela que estava numa prateleira atrás da

caixa registradora. Só que pensei que ela estava fechada. Não estava. Peguei-a sem olhar para

ela e os pãezinhos caíram em cima de mim.

Ela pegou a ponta do cabelo e concluiu:

- A cobertura açucarada veio toda para o meu cabelo.

- Eu já estava mesmo imaginando o que teria acontecido com seu cabelo, disse a mãe.

Mas pra falar a verdade, não estava com muita vontade de saber o que tinha sucedido.

- Agora a senhora já sabe, comentou Selena. Tentei lavar um pouco na pia, lá na loja,

mas não consegui. Não entendo como não me despediram e ameaçaram me matar se

aparecesse lá outra vez. Ah, e tem ainda a “grande cena finaç”. Pouco antes da hora de eu sair,

meu avental se prendeu num gancho de uma batedeira enorme que tem nos fundo da loja e

rasgou.

- Rasgou muito? quis saber a mãe.

Selena ergueu as mãos e, com os indicadores, mostrou uma distância de mais ou menos

dez centímetros. A mãe pôs a mão na boca. Selena percebeu que ela estava reprimindo o riso.

- E eles ainda vão querer que você vá trabalhar sábado? indagou o pai.

- Querem! respondeu a jovem. Simplesmente incrível, não é?

- Será que o anúncio do emprego dizia que precisavam de um palhaço para entreter os

clientes? indagou ele brincando. Sabe, de repente eles querem dar uma incrementada na loja,

com um showzinho de variedades. Nos dias em que você estiver trabalhando, os clientes farão

fila só para ver o que vai acontecer.

Selena agarrou um pegador de panela e atirou-o na direção dele.

- Malvado! exclamou ela.

Page 83: Em seus sonhos

- Ué! Malvado? disse o pai, agarrando no ar o peguador de panela que ia atingir a mãe.

Antes eu era “o paizinho querido e maravilhoso” que estava verificando o preço das

passagens de avião para você.

- E o senhor já ficou sabendo algum? indagou Selena abaixando-se para escapar do

pegador de panela que estava voltando na direção dela.

- O que vamos jantar hoje, querida? indagou o pai.

- Canja, respondeu ela. E já está pronta.

- Oh pai, fala! pediu Selena.

- Canja? continuou o pai, levantando a tampa da panela, Quem é que está doente?

- O senhor! O senhor vai ficar doente já, se não me falar sobre as passagens, respondeu

Selena, dando um pulo e segurando o braço dele antes que ele pegasse outro pegador de

panela.

- Ah, depois de grande ficou mais espertinha, hein? falou o pai, inclinando-se e

cheirando o cabelo da filha. Estou gostando desse seu novo perfume, Selena. Tem uma

fragrância que poderia chamar-se “saído do forno agora”. Bastante suave, mas com um sabor

muito bom.

- O senhor é que vai ficar “saído do forno agora” se não me falar das passagens.

- 'Tá bom, 'tá bom! disse ele, erguendo as mãos como que se rendendo.

Na palma da mão direita havia alguns números escritos à tinta.

- Que é isso? quis saber Selena, agarrando a mão do pai e examinando-a.

- Não tinha um papel por perto e me deixaram um tempão esperando. Quando afinal me

atenderam...

A mãe abanou a cabeça, achando graça na brincadeira do marido.

- Esse do meio é o preço do vôo até o “John Wayne”. É o mais barato.

- “John Wayne”?

Page 84: Em seus sonhos

- É o novo nome do aeroporto do Condado Orange. Acha que poderá arranjar o dinheiro

em três semanas?

- Creio que sim, disse Selena, virando a cabeça para ler os outros dois números. Isso

aqui é dois ou cinco?

- Acho que é cinco. Deixe-me ver. É! É cinco!

- Qual é o dia da partida e da chegada?

- Você sai na sexta-feira e volta na outra quinta. Não havia mais vaga para o final de

semana e, por esse preço, só havia alguns lugares de resto.

- O senhor fez a reserva pra mim?

Nesse momento, o telefone tocou e a mãe atendeu na extensão do corredor.

- Claro que fiz, replicou o pai. Eu seria um secretário muito relapso se não tivesse

reservado a passagem para a minha patroa.

- Ai, ai, ai! falou a mãe.

Selena e o pai pararam com a brincadeira e se viraram para ela.

- Está bem! Entendi! continuou a mãe. Obrigada por terem ligado. Tchau!

Ela recolocou o fone no gancho. Tinha o rosto tenso.

- Precisamos ir lá agora.

- Era do hospital? Falaram alguma coisa sobre Vó May? indagou Selena.

A mãe fez que sim.

- Selena, você pode dar o jantar para os meninos? Os dois ainda têm que tomar banho e

precisam ir para a cama às 8:00h. Tânia deve chegar às 9:30h. Se houver algum problema,

ligue pra nós, no hospital.

- Como é que ela está?

- Não sei ao certo. Harold, podemos ir lá agora?

- Claro, meu bem. Vamos na perua. Já peguei a chave.

Page 85: Em seus sonhos

Terminaram apressadamente os preparativos e saíram. A cozinha, onde alguns

momentos antes ressoavam risadas alegres, ficou tristemente silenciosa. Selena fez um

esforço e respirou fundo.

- Kevin! Dilton! gritou para o quintal. Está na hora de jantar.

Page 86: Em seus sonhos

Capítulo Quatorze

Selena saiu do banheiro com uma toalha enrolada na cabeça. Sentiu um forte impulso de

ligar para o hospital. Havia já duas horas e meia que vinha sentindo vontade de fazê-lo.

Contudo resistiu a ele. Os irmãos haviam jantado, tomado banho e ido para a cama. Ela havia

colocado as vasilhas na lava-louças e arrumado a cozinha mais ou menos mecanicamente.

Tânia deveria chegar a qualquer momento. Selena precisava fazer um trabalho para a aula de

inglês - uma redação de quatro páginas. Amanhã era o último dia para entregá-la, mas como

ela deixava tudo para depois, ainda nem o começara.

Felizmente, porém, ela sempre se saía bem de tais situações. Nos seus boletins, os

professores costumavam escrever algo mais ou menos assim:

“Selena é uma aluna inteligente, mas ainda não desenvolveu todo o seu potencial.”

Isso era verdade. Nunca se sentira motivada a se esforçar mais. Para quê iria se

empenhar, se com pouco esforço conseguia os pontos necessários para passa de ano?

Vestiu um pijama de malha, o seu predieto, e calçou um pé de seu chinelo felpudo.

Abaixou-se para procurar o outro debaixo da cama. Não estava ali. Abriu o armário. Também

não. Selena procurou o chinelo em todo o quarto. Com isso foi obrigada a reconhecer que o

quarto estava muito desarumado. E parecia que era a primeira vez que o via.

- Que bagunça! exclamou. É, menina, assim não dá mesmo para encontrar nada!

Foi o quanto bastou. Não iria tolerar aquela bagunça mais um minuto. Com movimentos

frenéticos, Selena “engatou uma quarta” e se pôs a arrumar o quarto. Não fazia diferença

saber que já passava de 9:00h da noite e que ainda tinha o trabalho da escola. Não agüentava

passar um segundo naquele cômodo bagunçado. Nesse momento até teve pena da Tânia, que

todos os dias tinha de conviver com aquela confusão.

Calçada com um chinelo só e sentindo o cabelo molhado nas costas, Selena respirou

fundo e se pôs a trabalhar velozmente. Pendurou as roupas, amassou e jogou fora alguns

Page 87: Em seus sonhos

papéis. Guardou alguns objetos nas gavetas e arrumou o tampo da cômoda. Removeu a roupa

de cama e correu ao armário, pegando lençóis limpos, que ainda guardavam o perfume do

amaciante de roupas. Com movimentos rápidos e uma batida no travesseiro, a cama estava

arrumada. Provavelmente era a primeira vez que estava ajeitada desde que havia mudado para

aquela casa.

A seguir, pegando uma braçada de roupas sujas, foi para o porão da casa, onde estava a

lavadora. Colocou as roupas na máquina e ligou-a. Ao lado dela, viu uma bacia de plástico

com suas roupas de alguns dias atrás. Estavam limpas e dobradas. Em cima de tudo, achava-

se o chinelo que faltava. Estava limpinho e contrastava com o que ele calçara. Dentro dele,

havia um bilhete escrito com a letra da mãe. “Alguém te ama!”

Será que um dia vou ser uma mãe maravilhosa assim também? pensou ela, pegando as

roupas limpas e subindo para o andar de cima. Assim que passou pela entrada, ouviu uma

chave girando na porta. Era Tânia.

- Mamãe e papai foram chamados ao hospital, explicou ela para a irmã. Ainda não sei o

que aconteceu.

- Por que não ligou para lá? indagou Tânia, pendurando a bolsa no gancho do cabide da

entrada, onde sempre a colocava.

- Achei que eles iriam telefonar ou então voltariam para casa se tudo estivesse correndo

bem.

- A que horas eles foram para lá? perguntou a outra, andando apressadamente para a

cozinha e pegando o telefone.

- Por volta de seis e meia.

Tânia discou o número do hospital, que estava escrito com giz' num quadro-negro preso

à parede. Pediu que a ligassem com o quarto de Vó May. Ouviu o telefone chamando, mas

ninguém atendia.

Page 88: Em seus sonhos

- Ninguém atende, murmurou Tânia. O que será que está acontecendo? Será que as

enfermeiras do posto de enfermagem não poderiam atender?

- Talvez. Sei lá, replicou Selena, sentindo que começava a entrar em pânico. Será que

devemos ir ao hospital?

- Os meninos estão dormindo?

Selena fez que sim. Tânia estendeu o fone para a irmã, para que ela escutasse o ruído.

- É a sétima vez que está tocando. Não tem ninguém lá.

Recolocando o fone no gancho, Tânia saiu, dirigindo-se para a porta.

- Vou lá, falou. Você fica aqui com os meninos.

- Assim que você chegar lá, me telefone, viu?

- Vou tentar, replicou Tânia, saindo porta a fora com um movimento rápido e fechando-

a imediatamente.

Selena ficou uns instantes parada com a bacia de roupa limpa ao lado, sem saber direito

o que fazer. Afinal, decidiu. Pegou a mochila com os objetos escolares e foi para a saleta.

Fazendo um enorme esforço para se concentrar no trabalho, ligou o computador e se pôs a

digitar a redação.

Estava “ligada” no trabalho apenas em parte. Esperava que o telefone tocasse a qualquer

momento. A certa altura tirou o fone do gancho para ver se estava funcionando. Ouviu o ruído

característico de “linha”. Estava funcionando perfeitamente. Voltou a concentrar-se no dever

de casa. Escreveu sem parar durante vinte minutos.

Vamos lá, Tânia, me liga! Por que será que ela não liga? Selena se forçou a concentrar-

se na redação para concluí-la. Sua sensação era de que estava subindo um morro íngreme,

onde soprava um forte vento contrário. De dois em dois minutos consultava o relógio. Pegou

o telefone duas vezes para ligar para o hospital, mas nas duas resolveu esperar que a irmã

ligasse.

Page 89: Em seus sonhos

Estava quase terminando a redação. Selena olhou para o quintal, através da vidraça da

porta. Estava escuro como breu. Lembrou-se do versículo que lera em Isaías. Dizia algo sobre

“com minha alma te desejei de noite”. Ficou algum tempo sentada ali, em silêncio, olhando

para o telefone e orando por Vó May.

Fez um esforço para voltar a concentrar-se no trabalho. Encerrando-o, fez a correção

ortográfica e, em seguida, colocou para “imprimir”. Assim que ouviu a impressora começar a

funcionar, foi à cozinha e discou para o hospital. Passava de 22:40h. Fazia mais de uma hora

que Tânia havia saído. Pediu que a ligassem com o quarto de Vó May, e a mãe atendeu, na

segunda vez em que ele tocou.

- Mamãe, disse ela, como estão as coisas por aí? O que está acontecendo? Tânia ficou

de ligar para mim.

- Eu sei, respondeu a mãe calmamente. Sinto muito não termos ligado. Vai dormir,

filha. Vamos voltar pra casa daqui a pouco.

- A senhora não pode me dizer o que aconteceu? Insistiu ela.

A mãe fez uma pausa antes de responder.

- Vamos voltar para casa já, já, disse afinal, e desligou.

Dessa vez, Selena ficou ainda mais preocupada. Por que será que a mãe não queria dizer

nada no telefone? Pegou os papéis da redação e desligou o computador. Recolheu seus objetos

e saiu do escritório do pai. Segurando a bacia com as roupas secas, subiu para o quarto.

Derramou as roupas sobre a cama, agora arrumadinha, e se pôs a organizá-las. Fez uma pilha

de camisetas. Colocou de lado as que iria pendurar. Ananjou as peças íntimas em outra pilha.

Uma das meias estava sem o par dela. De repente lembrou-se de que a vira dentro da mochila.

Voltou ao andar inferior para pegar a mochila e retornou ao quarto. Como estava com

disposição de dar arrumação, derramou os objetos no chão para rearranjá-los dentro dela.

A meia estava lá, sim, mas suja. Resolveu correr ao porão e colocar mais algumas

roupas para lavar, completando assim a lavagem. Quando subia de volta para o quarto,

Page 90: Em seus sonhos

ocorreu-lhe que um lanchinho àquela hora da noite iria cair bem. Colocou uma fatia de pão na

torradeira e encheu um copo de leite. Seu pai dissera que a melhor maneira de comer uma

torrada à meia-noite era com manteiga e mel. Selena experimentara e gostara, passando a

adotar a sugestão do pai.

Segurando o prato com a torrada em uma das mãos e o copo na outra, Selena foi

andando e bebericando o leite. Sentou se no chão com as pernas cruzadas à moda oriental e se

pôs a pegar os objetos da mochila, guardando uns e jogando fora outros. Ao mesmo tempo ia

mordiscando a torrada e se esforçando para não se preocupar com Vó May.

Quando estava no meio da arrumação, ouviu a porta de entrada abrir-se. Ergueu-se de

um salto e correu escada abaixo.

- E aí? Como está ela?

Era Tânia, que pendurou a bolsa no gancho do cabide.

- Que confusão! Aquele hospital deve ser o mais desorganizado do mundo!

- O que aconteceu?

- Vó May teve uma de suas crises, um lapso de memória, levantou-se e saiu andando

pelo corredor.

- Com o soro e tudo? indagou Selena.

- Ela o arrancou do braço. Pegou o elevador, desceu para o saguão e entrou na loja de

suvenir. Aí ela escorregou e caiu. Mamãe e papai ficaram um tempão com ela na sala de raios

X. Foi por isso que eles não ligaram. Tiveram receio de deixá-la sozinha.

- Mas você tinha prometido telefonar, queixou-se Selena.

- E, e eu tentei, mas todas as vezes que ia ao telefone público estava ocupado. Você não

quer saber como elaestá?

- Claro que quero.

Page 91: Em seus sonhos

- Ela quebrou o pé, explicou Tânia. Quando vim embora, tinham acabado de engessá-lo.

Mamãe e papai vão ficar lá mais ou menos uma hora. Vão esperar até que ela se acalme e

durma.

- Ela ainda está com a mente confusa? indagou Selena.

- Bastante. Acho que o médico vai receitar um sedativo bem forte para ela dormir.

- Quando é que ela vai ter alta? Será que não seria melhor se ela viesse se recuperar em

casa, num ambiente familiar?

- Não sei o que o médico diria sobre isso. Aliás, acho que ele estava meio perdido, sem

saber direito o que fazer.

- Aquele não é o médico dela, explicou Selena, virando-se para subir ao quarto.

Tânia veio logo atrás.

- Pra falar a verdade, não gostei muito dele, comentou ela.

No instante em que Tânia entrou no quarto, deu um berro.

- Será que você nunca vai arrumar essa bagunça?

- Eu arrumei! disse Selena, protestando.

Em seguida, correu os olhos pelo aposento e percebeu que, embora o tivesse arrumado,

agora ele estava todo bagunçado de novo. Havia roupas em cima da cama. Os objetos da

mochila estavam espalhados pelo chão. Os restos do lanche noturno ainda se encontravam

sobre a cômoda, que uns minutos antes estivera em perfeito estado.

- Você pensa que pode me enganar! exclamou Tânia, tirando os sapatos e guardando-os

no armário.

Selena enfiou o resto dos objetos na mochila. Em seguida, como a irmã a deixara

irritada, pegou as roupas limpas já dobradas que estavam na cama e de propósito atirou-as no

chão. Afinal, deitou-se na cama, agora incapaz de curtir os lençóis limpos e cheirosos, e

apagou a luz com um movimento brusco.

Page 92: Em seus sonhos

Capítulo Quinze

No sábado à tarde, Selena, que estivera emocionalmente bem agitada havia algum

tempo, experimentou uma calmaria durante alguns momentos. De repente, porém, a agitação

recomeçou. Ela estava no trabalho e tudo transcorrera bem nas primeiras cinco horas. A

jovem começou até a achar aquilo estranho e ficou mais ou menos na expectativa que a

qualquer momento acontecesse algo errado.

A parte da manhã foi muito movimentada. O tempo passou voando. Ao meio-dia, D.

Amélia lhe disse para fazer o intervalo do almoço. Na cozinha, havia uma bandeja com alguns

pãezinhos doces que tinham ficado ligeiramente torrados, e ela deixara ali para quem

quisesse. Selena pegou um deles, mas depois de passar a manhã toda sentindo aquele cheiro

característico, não tinha vontade de comê-los.

Sentou-se e ficou uns instantes parada, com a percepção de que as mãos estavam

meladas e a roupa cheirava a café. Sentia-se feliz. Estava indo bem no trabalho. O pai fizera a

reserva da passagem para ela ir à Califórnia. Ontem, na hora do lanche, pudera conversar mais

com Vicki e Amy, fortalecendo sua amizade com elas. O sol voltara a brilhar.

Sorrindo consigo mesma, Selena mexeu no brinco da orelha direita e ajustou-o.

Lembrou-se de outro versículo de Isaías que lera de manhã, apesar de ter feito uma leitura

apressada. “ Na traniqüilidade e na confiança (está) a vossa força.” Nesse momentio, sentia

um pouco dessa tranqüilidade e dessa confiança no Senhor. Era uma sensação muito

agradável.

De repente, o “sobe e desce” emocional recomeçou. Naquele instante, D. Amélia

chegou à saleta dos fundos e disse:

- Selena, tem uma pessoa aí querendo conversar com você.

A jovem foi para a loja, que estava lotada de fregueses, e correu os olhos pelo aposento,

para ver quem seria. Era Ronny. O rapaz se encontrava perto da caixa registradora.

Page 93: Em seus sonhos

- Oi! disse ele. Quer sair comigo hoje à noite?

Selena sentiu o rosto avermelhar-se na mesma hora. Percebeu que vários dos presentes

olharam para ela.

- Hoje?

- Por volta de sete horas, explicou ele. Achei que talvez a gente pudesse ir a um cinema.

A que horas você larga o serviço?

- Às 4:00h.

Nesse momento, Selena percebeu que D. Amélia estava parada junto dela, querendo

registrar uma venda na caixa.

- Oh, desculpe! exclamou a jovem, dando um passo para o lado.

- Ronny... principiou Selena.

- Diga logo que sim, falou o rapaz, abaixando um pouco a voz. Não complique tudo,

Selena. Somos apenas amigos, não é? Então podemos ir assistir a um filme, sem compromisso

algum, não podemos?

- Mais alguém vai?

- Não. Você gostaria que mais alguém fosse?

- Bom...

Selena não sabia como iria explicar para ele que ninguém nunca a convidara para sair.

Nenhum rapaz a pedira para namorar. Assim sendo, não sabia se seus pais permitiriam. Eles

haviam dito que assim que ela fizesse dezesseis anos poderia começar a namorar. Contudo ela

já fizera dezesseis e nada acontecera nesse sentido.

- Você me faz um favor, Ronny?

- Claro, replicou o rapaz, abrindo mais o sorriso.

- Pode me telefonar por volta de 5:00h? Tenho de perguntar a meus pais.

Imediatamente pensou que ele poderia achar aquilo meio infantil, então acrescentou:

- É que minha avó está internada, e não sei se poderei sair à noite.

Page 94: Em seus sonhos

- Está bem, compreendo. Então eu também quero lhe pedir um favor. Posso?

- Claro! respondeu ela.

- Quer me dar seu telefone?

Selena pegou um guardanapo e escreveu nele o número.

- Obrigado! disse ele. Agora quero um pãozinho de canela, ou será que tenho de entrar

na fila?

- Não. Vou pegar pra você. Quer com calda de açúcar ou sem?

- Com, é claro.

Procurando agir com muito cuidado, Selena puxou uma bandeja com pãezinhos

recobertos de glacê. Pegou uma espátula e colocou um deles numa caixinha “para viagem”.

Pôs um pouco mais de calda sobre o pãozinho e fechou a tampa da caixa. Em seguida,

entregou-a a Ronny, que lhe pagou com a quantia exata.

- Então vou lhe telefonar, disse ele, dando um aceno, e foi embora.

Selena soltou um suspiro, relaxando a tensão, e olhou para o relógio. Seu horário de

almoço estava encerrado, então foi atender ao cliente seguinte. Nenhum dos colegas de

trabalho fez comentários sobre o rapaz. Ficou satisfeita por isso.

Ao mesmo tempo, porém, estava morrendo de vontade de conversar com alguém sobre

o acontecido. Afinal era o fato mais importante de sua vida. Um rapaz a convidara para sair!

Como na parte da tarde o movimento da loja caiu um pouco, Selena teve mais tempo

para ficar pensando no encontro com Ronny. Quando era mais nova, vivia sonhando com o

dia em que teria seu primeiro encontro com um rapaz. Imaginava como tudo aconteceria e

como o jovem seria. Contudo nunca pensara que seria assim tão seco e sem romantismo. E

nunca imaginara que seria uma pessoa do tipo do Ronny.

Não que houvesse algo de errado com ele, disse para si mesma, procurando se consolar.

Ele era muito bom “como amigo”. O problema é que nunca pensara em sair com ele. Ficou a

indagar-se quanto tempo havia que ele pensava em convidá-la para sair. Será que havia

Page 95: Em seus sonhos

gostado dela desde o primeiro dia? Ou será que o interesse dele despertara no dia em que ela

conversara com ele na escola e lhe estendera a mão para selar a amizade? E se ele sentira

algo, por que não acontecera o mesmo com ela?

A certa altura, quando estava limpando algumas mesas e colocando pacotinhos de

açúcar numa cestinha, ocorreu-lhe que talvez ele estivesse fazendo isso por piedade. Era

possível que estivesse com pena dela, pois ela havia se aberto com ele, confessando que não

tinha amigos. Selena coocou um saquinho de adoçante em pó numa das cestinhas e pensou:

Se é por isso, ele pode parar. Não preciso da piedade dele. Eu preferia não ter nenhum

encontro, nunca, do que aceitar um convite que é feito por piedade, principalmente de um

rapaz que diz ser meu amigo.

E pelo resto da tarde ficou firme nessa determinação. Isto é, ficou firme até o momento

em que passou pelo correio onde pusera a carta “malcriada” que escrevera para o Paul. Ainda

estava arrependida de havê-la escrito. Se ao menos tivesse parado para pensar melhor e

esperado um pouco mais... Na verdade, Paul, em sua carta, estivera brincando com ela, e não

agredindo-a.

No dia em que conhecera Paul, ele lhe causara uma impressão muito forte. Depois

disso, orara fervorosamente por ele durante um bom tempo. Agora, com sua carta, estragara a

pequena amizade que começara a formar-se entre os dois. Talvez amizade não fosse bem a

palavra, mas certamente havia algo entre eles; e ainda estava presente na mente dela.

- Mãe! gritou Selena, assim que entrou em casa. A senhora está aí?

- Não, respondeu Tânia, que se encontrava na saleta. Está no hospital.

Selena dirigiu-se para a saleta, que estivera em reforma. Seu pai montara ali um centro

de recreação para a família na noite anterior, dissera que estava pronto para ser utilizado. Os

meninos estavam deitados no chão, jogando video game. Tânia colava etiquetas em algumas

fitas de vídeo e em seguida guardava-as numa gaveta própria.

- Não esqueça de colocá-las em ordem alfabética, disse Selena, com ironia.

Page 96: Em seus sonhos

- Que piada é essa? indagou a irmã, virando-se ligeiramente para encará-la.

- Já sei que você vai ficar toda feliz depois que tudo estiver nos seus devidos lugares,

explicou Selena, sentando-se no chão ao lado dos irmãos. Quem está ganhando? indagou.

- Não há nada de mal em ser bem organizada e ordeira, Selena, observou Tânia, em tom

ríspido. Mas é claro que você não entende nada a respeito disso, não é?

A seguir, Tânia se concentrou no que fazia, e Selena, nos irmãos. E as duas

momentaneamente se “esqueceram” uma da outra.

- Quer jogar com o vencedor? indagou Dilton para Selena.

- Claro, replicou ela.

De repente, porém, lembrou-se de que Ronny iria ligar às 5:00h.

- Alguém sabe a que horas papai e mamãe vão voltar?

- Papai está aí, informou Kevin. Lá na oficina.

Selena ergueu-se rapidamente.

- Volto já, disse, e saiu em direção ao quintal.

Seu pai estava trabalhando no barracão, que parecia uma casa de bonecas. Tinha uns

óculos de proteção no rosto e cortava algo com a serra elétrica. Selena tapou os ouvidos com

as mãos e esperou que ele pudesse olhar para ela.

Ele chegou ao fim da tábua que estava serrando e avistou a filha. Desligou a ferramenta,

afastou os óculos para o alto da testa, e disse:

- Ah, já chegou, hein? Como foi o trabalho hoje? Mais unas aventuras iguais às de

quinta-feira? Por falar nisso, liguei para o Livro Guiness de Records e eles estão pensando em

colocá-la na lista do “pior primeiro dia de trabalho”.

- Pois diga a eles que podem arranjar outro otário para figurar no livro deles. Minha

vida de funcionária desastrada acabou. Hoje não houve praticamente nada de excepcional.

- Praticamente?

- Recebi um convite pra sair com um rapaz, disse Selena.

Page 97: Em seus sonhos

O pai de Selena largou a serra e chegou perto da filha, para olhá-la direto nos olhos. Ele

sempre fazia isso com os filhos desde que eram pequenos. Seu objetivo era descobrir se

estavam mesmo dizendo a verdade. Apesar de agora estarem crescidos, ele continuava com

essa prática. Selena achava que essa era a maneira que ele encontrara para descobrir as

alegrias e tristezas que os filhos abrigavam, mas que tinham aprendido a “esconder” no fundo

da alma assim que se tornaram mais velhos.

- Diga-me tudo, falou ele.

- É um rapaz lá da escola, explicou Selena. Apostoo que o senhor estava pensando que

era um colega de serviço que conheci há pouco tempo. Houve um dia nessa semana que nós

mais ou menos lanchamos juntos, na escola. O nome dele é Ronny. Ele foi lá no meu serviço

e perguntou se eu queria sair com ele hoje às 7:00h. Respondi que teria de conversar com o

senhor. Ele vai telefonar às 5:00h. O que devo fazer?

O pai foi abrindo o rosto num sorriso lento. Selena não conseguiu entender o que aquilo

significava.

- As 5:00h, hein? repetiu ele, consultando o relógio. Deixe comigo.

Ele deu uma ligada rápida na serra e, em seguida, desligou-a e colocou-a sobre a banca

de trabalho. Parecendo uma pessoa realizando uma missão importante, retirou os óculos de

proteção e, em passadas largas, saiu andando em direção à cozinha e ao telefone.

- Está bom, disse, virando-se ligeiramente para a filha. Deixe esse cara comigo, Selena.

Page 98: Em seus sonhos

Capítulo Dezesseis

- P\apai! disse Selena com voz de súplica, olhando para o relógio.

Faltavam quinze para as cinco, e o pai parou perto do telefone, com ar de quem iria

atendê-lo assim que tocasse.

- O senhor não vai fazer nenhuma maluquice não, né?

- Eeeeu? indagou ele em tom irônico.

- Pai, não faz com Ronny o que o senhor fez com o Martin, aquele namorado da Tânia,

pediu ela.

- Quem? Martin, o marciano? indagou.

- O que vocês estão falando de mim aí? perguntou Tânia, entrando na cozinha naquele

momento.

- Selena lhe contou? perguntou o pai. Um rapaz convidou-a para sair, de verdade.

- 'Tá brincando! exclamou Tânia.

- Não. É verdade sim. Um pobre e inocente garoto chamado Ronny foi lá no trabalho

dela hoje convidá-la para sair com ele.

- Como foi que você o conheceu? quis saber Tânia.

- É um colega da escola. Ele é apenas meu amigo, gente. Nunca imaginei que fosse me

convidar pra sair com ele.

- Está vendo? interveio o pai. Já está na hora de você reconhecer que é uma garota

muito bonita. \Aposto que Ronny será o primeiro, mas não o último.

- É, replicou Selena, cruzando os braços e dando um olhar sério para o pai. E espero

mesmo que ele não seja o último, depois que o senhor conversar com ele.

- Ô pai, interveio Tânia, o senhor não vai fazer com ele o mesmo que fez com o Martin,

vai?

Fazia um bom tempo que ela não tomava o partido da irmã.

Page 99: Em seus sonhos

- É isso aí, pai. Escuta o que Tânia está falando.

- Aquela tal “entrevista” que o senhor fez com ele foi demais. Não faça isso com esse

rapaz não, viu? Como é o nome dele?

- Ronny.

- Não faça o mesmo com o Ronny não, tá, pai! O senhor “assustou” o Martin, e todo

mundo lá em Pineville passou a me ver como uma garota que não podia namorar. O senhor

ainda lembra como todos riam de mim e diziam que quem quisesse sair com a Tânia tinha

primeiro que conquistar o pai dela?

- Ah, mas isso não te prejudicou em nada. E depois isso me valeu um jogo de golfe de

graça, e fui convidado para jantar fora duas vezes, comentou. Ademais, é isso que quero que

todos pensem de minhas filhas.

- É, mas não precisa exagerar, né pai? disse Tânia, assumindo uma atitude carinhosa e

defendendo a irmã. Talvez o senhor devesse convidá-lo para jantar ou passar umas horas com

a família numa atmosfera descontraída. Assim tudo bem. Mas aquela tal conversa “de homem

pra homem” é muito séria, tá bom?

O pai pensou uns instantes e em seguida disse:

- Ah, tive uma idéia!

Nesse momento o telefone tocou. Selena olhou para o relógio: 5:00h em ponto. Fitou o

pai e a seguir dirigiu à irmã um olhar de indagação.

- Eu atendo! falou o pai.

Ele fez um aceno para as filhas, como que dizendo: Fiquem tranquilas!

Selena mordeu o lábio inferior e ficou atenta a ele.

- Alô! Está. Selena está aqui sim. Ah, é o Ronny?

Seguiu-se uma pequena pausa.

- Prazer em conhecê-lo, Ronny. Antes de chamar a Selena, queria conversar com você.

Minha filha falou que vocês estavam pensando em sair hoje à noite.

Page 100: Em seus sonhos

Outra pausa.

- Bom, eu queria convidá-lo para vir comer uma pizza conosco às 6:00h, se você quiser.

Ainda outra pausa.

- Tá bom. Você quer falar com Selena? Ah, o.k.! Tchau.

E desligou. Pela expressão do seu rosto não dava para descobrir o que Ronny

respondera.

- Ele disse que não, certo? indagou Selena. Desistiu de tudo e disse que nunca mais iria

me incomodar, não foi?

O pai foi dando um sorriso lento, fechando um pouco os olhos, como fazia quando tinha

vontade de chorar mas reprimia o choro.

- Que foi que ele disse? indagou Tânia, agarrando um dos braços dele.

Selena pegou o outro braço e deu um puxão.

- Fale logo, pai, senão arrancamos os braços do senhor.

- Que tipo de pizza as senhoritas querem? indagou ele.

- Então ele vai vir?

- Às 6:00h.

O telefone tocou de novo. Selena pegou-o depressa, antes que o pai atendesse.

- Alô!

- Selena!

- É!

- Oi! Sou eu outra vez. Dei um fora tremendo. Esqueci de perguntar seu endereço.

A garota soltou uma risada nervosa. Em seguida, explicou a Ronny como se chegava em

sua casa, vendo que Tânia e o pai a observavam atentos.

- Então você não se importa de vir à minha casa, comer pizza com a gente?

- Claro que não! Nunca rejeito um convite para jantar, menina! replicou ele rindo.

Selena ficou mais tranqüila e disse:

Page 101: Em seus sonhos

- Então até mais ou menos daqui a uma hora.

- Até lá!

Selena desligou e olhou para o pai e a irmã com um leve sorriso.

- Não falei que era pra deixar comigo? comentou o pai. Eu sei que se conquista um

homem é pela boca. Sempre foi assim e sempre será. Podem confiar em mim, garotas.

- Então o que vai acontecer assim que esse coitado desse “cobaia” chegar? quis saber

Tânia. O senhor vai levá-lo para o seu escritório e obrigá-lo a assinar um documento antes de

eles saírem?

- Nããããão! respondeu o pai, dando um beijinho na testa de Tânia e fazendo o mesmo

com Selena.

- Então, o que o senhor vai fazer? indagou esta.

- Vocês vão ver! foi a resposta dele.

O pai foi até a porta da frente e se virou para a saleta onde os garotos estavam.

- Meninos, gritou ele, querem ir comigo pegar umas pizzas?

- Você vai trocar de roupa, não vai? indagou Tânia para a irmã.

Selena baixou os olhos para examinar a roupa que estava .usando: um macacão jeans e

uma camiseta branca.

- Ué! Por quê?

- Você ficou com essa roupa o dia inteiro, e até foi trabalhar com ela.

- E daí? Ela é muito confortável.

- Selena, você devia pelo menos fazer um pequeno esforço para sentir que se trata do

seu primeiro encontro com um rapaz. Sabe, né? Dar uma escovada no cabelo, ou algo assim.

Se quiser, posso lhe emprestar minha maquiagem.

Selena teve vontade de rir, mas reprimiu o riso. Nunca usara nem um pingo de

maquiagem. Não seria agora que ia começar a usar. E, ainda mais, por causa do Ronny. Era

ridículo pensar nisso. Contudo refreou o riso porque era a primeira vez que Tânia tinha uma

Page 102: Em seus sonhos

atitude generosa para com ela. Era um gesto totalmente diverso do temperamento da irmã. Ela

raramente partilhava algo com Selena; e menos ainda seus objetos pessoais como roupas,

jóias e maquiagem. Esta nunca sabia o que ia nos pensamentos da irmã, e não queria

“estragar” um momento tão bom.

- Obrigada, replicou, mas acho que não quero não. Não vou me maquiar só para ficar

aqui comendo pizza ou para ir ao cinema.

Tânia fitou a irmã com firmeza e insistiu.

- Só um pouquinho de rímel. É só isso que sugiro. Mas você é quem decide.

- Tá bom. Acho que dá. Mas é só um pouquinho, já que você insiste.

- Só estou querendo ajudar, Selena! disse Tânia, em tom seco.

- Eu sei, Tânia, e agradeço. Agradeço mesmo. Mas é só um pouquinho de rímel, tá

bom?

As duas foram subindo para o quarto e Tânia se pôs a orientar Selena.

- Você pode usar uma calça jeans, mas não essa largona aí.

- Por quê? O que tem de errado com ela? É a roupa que mais gosto.

- Ela a deixa gorda.

- Não acho.

- Deixa sim. E dá a impressão de que está avacalhada. Parece que você a comprou na

seção de vestuário masculino da Sears.

- Não foi, não! replicou Selena, protestando.

As duas pararam à porta do quarto, e Tânia virou-se olhando para a irmã com ar de

quem diz: Eu estou certa, e você, errada. Selena também fitou Tânia direto nos olhos.

- Não comprei essa roupa no setor masculino da Sear,s não.

Em seguida, abaixou um pouco a voz, deu um sorriso maroto e concluiu:

- Se quer saber, comprei-a no setor masculino da Marshalls. Lá ela era três dólares mais

barata.

Page 103: Em seus sonhos

Capítulo Dezessete

Faltavam dez minutos para as seis. Selena examinou atentamente sua imagem refletida

no espelho da cômoda. Tânia estava de pé, atrás da irmã, admirando sua “obra-prima”. O

cabelo de Selena estava penteado para trás, numa longa trança, presa na ponta com um

passador. Ela não estava usando brincos, o que quase lhe dava a sensação de estar nua. Tânia

dissera que os brincos atrapalhavam seu visual. Ela queria que a irmã tivesse uma aparência

bem jovem.

- Infantil, mas com um traço de personalidade, explicou ela, girando a escovinha de

rímel nos cílios de Selena. É assim que você é por dentro, Selena. A gente deve ser por fora

exatamente como é por dentro. Fique parada. Você está dificultando o trabalho.

- Você vai espetar meu olho.

- Vou não. Fique calma. Sei o que estou fazendo.

- Você está querendo que eu fique parecida com você, Tânia. E eu não sou você.

- Não estou querendo que fique parecida comigo, não.

- Então, por que está fazendo isso?

Tânia se afastou um pouco e disse em voz seca:

- Por que será que quando alguém quer tratá-la bem, você dificulta tudo, Selena?

A resposta de Selena foi:

- Talvez porque eu já esteja acostumada a ver certas pessoas só me criticando e nunca

me elogiando.

Tânia não respondeu nada. Voltou a passar o rímel nos cílios da outra.

- Pronto, disse ela, dando um passo para trás.

As duas ficaram a examinar o resultado final.

- Ficou muito bom, disse Tânia. Está vendo como um pouquinho de cuidado pode

mudar a aparência de uma pessoa?

Page 104: Em seus sonhos

Ah, meu pai! pensou Selena. A garota ainda não estava muito satisfeita com o fato de

estar “toda embonecada”, como dizia o pai. Ficou olhando para o próprio rosto por alguns

instantes sem dizer nada. Era verdade que os olhos pareciam mesmo maiores. E também mais

azuis. Contudo as sardas que tinha no nariz ainda lhe davam um ar de menina, e não aquele

aspecto sofisticado, próprio de Tânia. Parecia que por mais maquiagem que aplicasse, nunca

teria tal aparência.

É, mas apesar de tudo ela parecia ter mais de dezesseis anos. Pelo menos achava que

tinha um ar de mais velha. E Paul também achara isso quando haviam se conhecido, em

Londres. Ele custara a acreditar que ela tinha só dezesseis.

Preferia sair hoje com Paul a passear com Ronny, pensou. Se fosse com ele, deixaria

que você me maquiasse todinha, Tânia. Eu queria ficar com uma aparência belíssima. Mas

não é com ele que vou sair. Alias, é provável que nunca mais o veja. Eu devia ficar alegre de

saber que um cara como o Ronny está interessado em mim.

- E aí? indagou Tânia. O que está achando?

Selena se lembrou do dia em que Vó May viera ao seu quarto e ficara se olhando

naquele mesmo espelho. Ela se aproximara dele para ver melhor sua imagem refletida ali e

tocara de leve as rugas do canto dos olhos. Em seguida, contara que tinha a impressão de que

fora ontem mesmo que completara doze anos.

Por alguma razão, Selena compreendeu que ela também vivia um momento marcante

em sua vida. Era estranho pensar que a avó vira a própria imagem naquele espelho aos doze

anos, aos dezesseis e em todos os outros anos que se seguiram. Era estranho pensar em Vó

May com dezesseis anos.

- Não vai dizer nada? indagou Tânia.

- Está esquisito.

- Ah, muito obrigada, viu?

Page 105: Em seus sonhos

- Não estou falando da maquiagem, não. Estou me refetindo a um fato que acontece só

uma vez com a gente: atravessar a ponte que liga a infância com a vida adulta. E depois não

se pode voltar nunca mais. Isso tudo me dá a impressão que estou dando mais um passo nessa

ponte.

Tânia fitou a irmã com ar de espanto.

- Desde quando você virou filósofa?

- Você não pensa esse tipo de coisa?

- Claro que penso. Só que eu não achava que você também pensava.

- Pois penso algumas vezes. Como agora, por exemplo.

Tânia colocou a bolsinha de maquiagem sobre a cômoda e pegou um frasco de perfume.

Esguichou um pouco no ar, sobre a cabeça de Selena.

- Você combina com uma fragrância doce e bem suave, disse. Gosta dessa?

Selena deu uma cheirada forte. O perfume não era dos que Tânia usava. Tinha mais um

jeito de pessoa que acabara de tomar um banho.

- É. Gostei.

- Então feche os olhos, que vou borrifar no seu cabelo.

- O quê?

- Feche os olhos!

Selena fechou-os e Tânia borrifou o líquido no cabelo várias vezes.

- Agora está pronta. Quero dizer, com exceção da roupa.

- Vamos combinar uma coisa, disse Selena, você arrumou minha cabeça do jeito que

quis. Agora o resto eu vou arrumar.

Tânia deu de ombros, recolocou o frasco de perfume no lugar e se pôs a tirar os fios de

cabelo da escova.

- Você é quem sabe! disse.

Page 106: Em seus sonhos

Selena correu a mão por uma pilha de roupas que estava no chão e pegou uma camiseta

listada e uma calça jeans bem folgada. Ignorando os resmungos da irmã, levantou-se e foi

para o banheiro para acabar de se aprontar em paz.

O pai chegou de volta com a pizza antes de Ronny aparecer. Selena ouviu o pai e os

irmãos na cozinha. Quando descia a escada, a porta da frente se abriu e a mãe entrou, com

aparência cansada.

- Como está a Vó May? indagou Selena, indo ao encontro da mãe.

Ela fitou a filha, admirada.

- Ahn, você está ótima! Foi você que arrumou o cabelo?

- Não. Isso foi a grande “missão” de Tânia hoje. Vou ter um encontro com um rapaz .

Sua mãe relaxou a expressão tensa do rosto e deu um sorriso.

- Ué, você não me disse nada! Seu pai está sabendo?

- Claro. Ele até convidou Ronny para comer pizza conosco hoje. Aliás, ele deve chegar

a qualquer minuto. Estou parecendo uma boba?

- Selena Jensen! exclamou, pegando as mãos da filha. Você está linda! Não tem idéia de

como está bonita!

Nesse instante, ouviram passos na entrada e uma voz masculina pigarreando. Em

seguida, a campainha tocou. Selena e a mãe deram um leve aperto de mãos e se entreolharam,

dando risadinhas camufladas.

- Acho que é pra você, falou a mãe, dirigindo-se para a cozinha.

Antes que Selena chegasse à porta, Kevin e Dilton passaram correndo por ela, brigando

para abri-la. Os dois agarraram a maçaneta ao mesmo tempo e a puxaram, mas ela saiu na

mão de Dilton.

- Tá vendo, você quebrou ela! falou o garoto imediatamente. Papai, Kevin quebrou a

maçaneta!

- Quebrei não! disse Kevin, dando um empurrão no irmão. Foi você!

Page 107: Em seus sonhos

- Ei, meninos! interveio Selena, gritando por causa do barulho. Parem com isso!

O pai veio da cozinha com a mãe logo atrás dele. Os dois perguntavam em voz alta o

que estava acontecendo. No mesmo momento, Tânia apareceu no alto da escada e desceu

correndo para ver o que se passava.

- Busque uma chave de fenda pra mim, disse o pai. Dilton, vai lá na oficina e pegue uma

chave phillips e uma comum.

- Não fui eu que quebrei, não, pai!

- Eu não disse que foi você que quebrou. Vai lá buscar pra mim, 'tá? Espere aí, Ronny!

gritou o pai diante da porta fechada. Vamos abrir já, já!

Selena percebeu que estava ficando tensa. Na certa, Ronny estava escutando toda aquela

barulhada. E ela nem poderia reclamar se ele resolvesse dar no pé. Todo mundo estava

falando ao mesmo tempo, dando sugestões para solucionar o problema. Dilton voltou com três

chaves de fenda. A mãe de Selena estava dizendo que a peça que faltava talvez tivesse caído

no chão. Ela se abaixou e ficou de gatinhas procurando a pecinha. Kevin também se abaixou e

encontrou um inseto morto, que logo resolveu guardar.

- Tenta abrir com a chave de fenda, sugeriu Tânia. Não precisa recolocar a maçaneta,

não, pai. Isso já aconteceu com a porta do banheiro, lembra? Vó May abre com a ponta do

cabide de arame. Ela o enfia lá e pronto.

- Eu sei o que estou fazendo! replicou o pai, meio irritado. Morei nesta casa velha

durante toda a minha infância, sabia?

Usando a chave comum, ele introduziu algo no orifício da maçaneta. Ela fez um

“clique”. Nesse momento a mãe ergueu a cabeça, que bateu no cotovelo do pai.

- Ai!

- Machucou?

- Abre a porta!

- Cheguem pra trás, gente!

Page 108: Em seus sonhos

- Espere aí. Deixe-me levantar!

- Cuidado com meu bichinho!

Afinal a porta se abriu, e os seis deram um sorriso para cumprimentar o “namorado” de

Selena. Não viram ninguém. Selena teve vontade de chorar.

- Oi, pessoal! disse uma voz atrás deles.

Todos se viraram. Era Wesley, o irmão mais velho de Selena. Ao lado dele, estava

Ronny.

- Encontrei este coitado lá fora na varanda, disse Wesley. Pertence a alguém aqui?

- É meu amigo, replicou Selena, sentindo o rosto avermelhar-se.

A mãe correu para o filho, o abraçou e o beijou.

- Você não avisou que vinha passar o final de semana conosco, disse ela.

- Ahn? Agora tenho de “fazer reserva” ou algo assim? Talvez seja esse o seu problema,

rapaz, disse ele, virando-se para Ronny. Você não ligou antes de vir. Se tivesse ligado, talvez

tivessem aberto a porta. Mas agora já sabe meu segredo. Entre pela porta dos fundos.

Todos riram e Selena disse:

- Gente, este é o Ronny. Estes aqui, Ronny, são meu pai, minha mãe e meus irmãos.

Esqueci de lhe avisar que eles são meio malucos.

Mais risos. Ronny ficou parado, com uma expressão de quem se sente meio perdido,

sem saber o que fazer.

- Vamos atacar aquela pizza enquanto está quente, pessoal, falou o pai, fazendo um

gesto que indicava que todos deveriam segui-lo à cozinha.

Quando passou perto de Ronny, indagou:

- Você gosta de pizza de anchova, Ronny?

- Ah... é... não muito.

- Oh que pena! exclamou o pai.

Selena aproximou-se do rapaz e disse:

Page 109: Em seus sonhos

- Não liga, não, Ronny. Não foi pizza de anchova que ele comprou não. Está brincando.

Detesta anchova. Provavelmente trouxe de calabresa ou outro sabor. Não se preocupe, não.

- Ah, não estou preocupado não, replicou Ronny, com um leve sorriso, falando baixo.

Selena olhou-o com expressão agradável, procurando sorrir também. Então percebeu

que a cara do rapaz era de quem estava preocupado, sim. Muito preocupado.

Page 110: Em seus sonhos

Capítulo Dezoito

Momentos depois, quando todos estavam sentados à mesa, comendo pizza em pratos

descartáveis e bebendo Pepsi em latinhas, Ronny mais descontraído.

- Você parece com aquele cara da banda de “rap” disse Kevin. É você?

O rapaz deu uma olhada rápida para Selena e replicou:

- Acho que não!

- Você canta em alguma banda? continuou o garoto.

- Não, respondeu ele.

Kevin fez uma expressão de decepcionado.

- Mas meu pai tocava numa, explicou Ronny. Tocava bateria.

- Hum! Que legal! exclamou Dilton. Você também toca bateria?

- Um pouco. E toco um pouco de piano também.

- Ah! fez o garoto.

Evidentemente, na opinião de Dilton, tocar piano não era tão legal quanto bateria.

- Em que ele trabalha agora? quis saber a mãe de Selena.

- Ele é cientista.

- O cientista louco! disse Kevin em voz grave, erguendo os braços e deixando as mãos

pender, como um gorila.

- Isso é um desenho animado, disse Dilton, explicando o gesto do irmão.

- Dava pra deduzir, comentou Wesley.

- Que tipo de cientista? indagou a mãe.

- Ele é uma espécie de geólogo.

- Uma espécie? Como assim? perguntou Tânia.

Ronny olhou para Selena e, em seguida, parecendo meio inseguro, respondeu:

Page 111: Em seus sonhos

- No momento ele trabalha com uma equipe de exploradores que está procurando a arca

de Noé, explicou o rapaz, fitando todos ali e aguardando a reação deles.

- Que interessante! exclamou o pai. Seria fabuloso se a encontrassem, não seria?

Ronny pareceu aliviado.

- Tem gente que acha isso meio esquisito, comentou Ronny. Ele trabalha também com

uns cientistas que estudam o vulcão do monte St. Helens. Mas agora está se dedicando mesmo

é ao projeto do monte Ararate.

- Ah, então foi assim que ele lhe deu aquele blusão espetacular que você usa na escola

de vez em quando, não foi? indagou Selena. Você me contou que ele o trouxe do Nepal.

- É; ele o trouxe no ano passado, quando foi lá.

- Sua mãe trabalha fora? quis saber a mãe de Selena.

- Trabalha. Ela leciona em uma escola cristã. Dá aulas para a terceira série.

Selena correu os olhos à sua volta. Sentiu-se aliviada ao ver que tudo corria

tranqüilamente, melhor do que no início. E o bate-papo foi continuando informal até que a

pizza acabou. Dilton convidou Ronny para disputarem um joguinho no computador, e logo

em seguida Wesley disse que depois jogaria com quem vencesse.

- Você fica chateada se eu for jogar? indagou Ronny para Selena.

A garota percebeu que ele estava doidinho para jogar.

- A que horas temos de sair para ir ao cinema? perguntou ela.

- Depende do que você quiser assistir, explicou Ronny.

Ele entregou o prato vazio para a mãe de Selena, que estava recolhendo as vasilhas.

- Obrigado! disse sorrindo. Estava uma delícia.

- De nada. Ainda bem que você gostou, pois passei o dia inteiro na cozinha preparando-

as, comentou ela brincando.

- A que filme você gostaria de assistir? disse Selena, procurando recuperar a atenção

dele.

Page 112: Em seus sonhos

- Qualquer um, desde que seja bom e não imoral.

- Ronny, gritou Dilton da saleta, já está tudo arrumado.

O rapaz olhou para Selena. A moça estava decidindo se iria ficar irritada ou não. Todo

mundo já havia saído da sala de jantar, e ela percebeu que teria liberdade para responder o que

quisesse.

- Ah, vai lá, disse afinal. Não precisamos sair e ir ao cinema. Podemos ficar por aqui

mesmo.

- Você não se importa?

Ela abanou a cabeça.

- Desta vez não.

- Ronny! gritou Dilton de novo.

- Então fico te devendo um cinema! falou o rapaz.

- Está bem, concordou Selena. E não vou deixar que você se esqueça disso não, 'tá?

Ela o levou à saleta, onde viu Wesley no lugar em que Ronny iria jogar.

- Vou lhe mostrar como isso funciona, disse Wesley.

- Ah, acho que já sei, replicou Ronny.

Wesley lhe entregou o controle e disse para o irmão:

- Cuidado aí, coleguinha! Esses caras que parecem tranquilões são verdadeiros

campeões tentando esconder seu mérito.

- O que é mérito? quis saber o garoto.

- Olhe pra mim que você vai ficar sabendo, respondeu Ronny, acomodando-se no chão e

pressionando a tecla start.

Selena teve a sensação de que ele ficaria ali pelo resto da noite. Foi à cozinha para beber

água. Sempre que comia pizza de calabresa sentia muita sede.

Tânia estava junto à pia, ajudando a mãe a lavar algumas vasilhas que haviam se

acumulado durante o dia.

Page 113: Em seus sonhos

- Não acredito que você está deixando o Dilton fazer isso! disse ela.

- Fazer o quê?

- Você praticamente “entregou” o Ronny para os meninos. Eles vão ficar jogando vídeo

game a noite toda. Você não acha ruim ele ter te largado assim, sem mais nem menos?

- Na verdade, não. Acho que me sinto até mais tranqüila de ver que meu primeiro

encontro está sendo assim.

- Mas isso nem é um encontro; ele a trocou por um jogo!

- Tânia! disse a mãe em tom suave.

- É um primeiro encontro, sim, insistiu Selena. Pra mim isso é meu primeiro encontro. E

por sinal, estou gostando mito.

- Pois tenho certeza de que eu não gostaria.

- Mas não é o seu primeiro encontro, falou a mãe para a filha mais velha. E me lembro

que o seu foi bem desastroso. Ele não te levou a um restaurante que não funcionava mais?

- O pai dele tinha dito que era um restaurante muito bom. Fazia apenas um ano que eles

tinham fechado.

- Ah, eu me lembro disso, interveio Selena. Vocês acabaram indo a uma sorveteria, e

você estava toda arrumada, tinha ido ao cabeleireiro e tudo.

- Mas apesar disso nós nos divertimos, falou Tânia com um certo despeito.

- E eu também pretendo me divertir hoje, replicou Selena. Alguém quer jogar Trivial

Pursuit *? indagou ela.

- Ótima idéia! falou a mãe. Vou dizer a seu para pegar o tabuleiro.

- Vou fazer dupla com Wesley! foi logo dizendo Tânia. Vinte minutos depois, as quatro

duplas estavam “mergulhadas” na batalha do joguinho. Selena e Ronny estavam ganhando.

Em segundo lugar, vinham a mãe e o pai, Kevin e Dilton eram os últimos e, após mais meia

hora, se cansaram e voltaram para a saleta para assistir a um vídeo

* Trivial Pursuit: um joguinho de mesa semelhante ao nosso “Master” (N. da T.)

Page 114: Em seus sonhos

E o jogo continuou. A certa altura, quando já eram quase 22:00h, Selena pegou um

punhado de pipoca e levou-o à boca. Ronny jogou o dado e disse:

- É agora, Selena! vamos ganhar o jogo!

O rapaz empurrou o pino deles, colocando-o no ponto devido, um quadradinho cor-de-

rosa. Wesley tirou a pergunta correspondente de dentro da caixa.

- Ah, beleza! exclamou ele, lendo-a em silêncio. Essa você nunca vai saber, Selena.

- Deixe-me ver, pediu Tânia, olhando por cima dos ombros do irmão. Não tenho a

menor idéia. Esta você não vai saber, Selena!

- Então leia! pediu a mãe.

- Está bem. Lá vai. A pergunta é: Qual era o segundo nome de Elvis Presley?

Selena soltou um gemido, mas Ronny respondeu imediatamente:

- Aaron!

- Tânia e Wesley se entreolharam sem compreender.

- É isso mesmo que você quer responder? A resposta tem de ser dada pela dupla, hein!

Selena olhou para o rapaz.

- Tem certeza de que é Aaron? Perguntou.

Ronny acenou que sim. A moça não conseguia decidir o que fazer. Não sabia se ele

estava mesmo falando sério. No início do jogo, ele dera umas respostas meio malucas, bem

erradas. Ela ainda não o conhecia o suficiente para saber se estava brincando ou não. Selena

respirou fundo.

- Está bem, disse afinal. Confirmo “Aaron”.

- Não acredito! exclamou Wesley, colocando o cartão na mesa. Está certo.

Ronny e Selena ergueram o braço e bateram a mão de um na do outro, dando um

“Toque aqui!”

- Vencemos! disseram eles.

- O.k.! Mas como foi que você soube disso?

Page 115: Em seus sonhos

- Eu não disse que meu pai tocava numa banda? Mas não falei que era uma banda

evangélica, falei?

Instantes depois, todos se puseram a tirar as vasilhas da mesa e levar para a cozinha os

copos e as tigelas de pipoca. Depois se sentaram e conversaram durante uma meia hora mais

ou menos. Afinal, Ronny se levantou para sair.

- Bom, acho que está na hora de ir embora, disse o rapaz. Muito obrigado por tudo,

gente. Foi uma noite muito agradável. Tchau, pessoal! Tive muito prazer em conhecê-los.

Todos se despediram dele, e Selena foi com o rapaz até a porta. O pai já havia

consertado a maçaneta. Mesmo assim, garota girou-a com cuidado.

- Muito obrigada por ter vindo e tudo o mais, disse ela. Passamos uns momentos bem

divertidos!

- Foi o melhor “primeiro encontro” que já tive, comentou Ronny.

Em seguida, ele olhou para um lado e outro para ver se alguém estava escutando e

perguntou:

- Posso lhe revelar um segredo?

- Claro!

- Foi meu primeiro encontro mesmo. Nunca tinha tido outro antes.

- Tá brincando? Foi o meu também, disse ela, começando a rir.

Ronny também riu.

- Assim o segundo vai ser bem mais fácil, disse ele. Ainda pretendo levá-la ao cinema,

viu? Talvez no próximo final de semana.

- Tudo bem. Vai ser ótimo!

- 'Tá bom. Boa noite, então, disse Ronny, dando aquele seu sorriso meio torto.

Ela ergueu a mão e deu um leve aceno.

- Segunda-feira a gente se vê na escola! disse.

Page 116: Em seus sonhos

O rapaz saiu e Selena fechou a porta devagar. Em seguida encaminhou-se para a

cozinha.

- E aí? Ele a beijou? quis saber Wesley.

- Claro que não! Somos apenas amigos. E quer saber de uma coisa? Ronny disse que foi

o primeiro encontro dele também.

- Parece que ele se divertiu bem, comentou a mãe. Isto é, depois que se recuperou do

choque da confusão que arru mamos no início.

- Obrigada, gente, por terem ficado comigo no meu encontro, disse a garota.

- De nada, replicou o pai. Podemos repetir quando você quiser.

E virando-se para Tânia, continuou:

- E agora? Foi melhor que seu encontro desastrado com Martin, o marciano?

- Depende, replicou a moça.

- Depende de quê?

- Vamos ver se Ronny vai convidar Selena para sair de novo. Isso vai ser o grande teste.

Page 117: Em seus sonhos

Capítulo Dezenove

Selena demorou muito para dormir naquela noi te. Tivera a impressão de que iria ficar

pensando em Ronny, que ele era um rapaz muito legal e que aquelas horas que passara ali

tinham sido maravilhosas. Na realidade, porém, ficou pensando foi em Paul, imaginando

como seria se ele um dia viesse visitá-la e comesse uma pizza com a família. Como será que

ele se sairia no joguinho Trivial Pursuit? Será que saberia o segundo nome de Elvis Presley?

Chutou o cobertor e virou de lado. Ah, mas que importância tem isso? Por que estou

pensando nele? A carta que escrevi para ele assustaria qualquer um. Como é que fui

escrever tudo aquilo? Lembrou-se de como concluíra a carta. Primeiro o criticara por haver

colocado a palavra sinceramente, sendo que ela sabia que ele não estava sendo sincero nada.

Em seguida, encerrara com a palavra “Irritadamente”, Ou fora “Muito irritada”? Não; dissera

“Irritadamente”. Por que fizera isso?

Com um gemido de impaciência, virou-se de novo, deitou de costas e ficou olhando

para o teto às escuras. Recordou-se do que escrevera em seu diário acerca de pedir perdão e

dizer “Obrigada!”. Lembrou-se de que anotara que era sensato começar a fazer isso ainda

jovem. Teve vontade de pedir perdão a Paul. Não importava se depois ele achasse que ela era

infantil e boba. Era melhor do que estar sempre pensando nas palavras impulsivas que

escrevera e pusera no correio precipitadamente.

Selena recordou-se de algo que sua avó lhe dissera no ano anterior. Ela mencionara que

sempre que tinha de tomar alguma decisão importante ou que algo a incomodava, “enterrava”

a questão durante três dias. No terceiro dia, se o problema ainda estivesse vivo, era porque

Deus o havia ressuscitado.

Naquela época, Selena não entendera muito bem o que Vó May quisera dizer com

aquilo e achara que ela não estava falando “coisa com coisa”. Agora, porém, compreendia

perfeitamente. Se tivesse “enterrado” a carta no momento em que a escrevera e voltasse a lê-

Page 118: Em seus sonhos

la três dias depois, já teria se acalmado e poderia raciocinar com mais clareza. Agiria assim da

próxima vez. Contudo, no momento, precisava pedir desculpas ao Paul.

Em meio ao silêncio do quarto, Selena se pôs a fazer planos. Amanhã à tarde iria

escrever ao Paul, pedindo desculpas pela carta anterior. Depois telefonaria para Katie e Cris

para dizer-lhes que o pai já fizera a reserva de sua passagem.

Sentiu-se bem mais tranqüila e, quando ia começando a pegar no sono, recordou-se do

versículo de Isaías que lera dias atrás. “Com minha alma te desejei de noite.”

Era a frase mais romântica que uma pessoa poderia dizer a outra. Então sussurrou-a para

Deus.

“Jesus, com minha alma te desejei de noite. O senhor fica impaciente comigo por eu

fazer tanta coisa errada? Às vezes faço o que é certo. Como hoje. Esse meu ‘primeiro

encontro’ foi maravilhoso. Agradeço-te porque tudo saiu do jeito como saiu. Obrigada por

minha família.”

Lembrou-se novamente da questão de agradecer e pedir perdão. Tinha a impressão de

que em sua relação com Deus - aliás, no seu relacionamento com todo mundo – as palavras

que mais dizia eram estas: “Perdoe-me!” e “Obrigada!” Entendeu que se sentiria muito

melhor depois que escrevesse a Paul pedindo perdão.

De repente arregalou os olhos. É que se lembrou de que amassara a primeira carta de

Paul e a jogara fora. Agora arrependia-se de ter feito isso. Mais uma vez percebeu a

importância daquele princípio de “enterrar” as questões e deixar passar três dias. Teria sido

muito bom se o tivesse aplicado nesse caso.

De manhã, quando se aprontava para ir para a igreja, sua mãe bateu à porta do quarto.

- Posso entrar, Selena?

- Claro!

- Liguei para o hospital para saber notícia de Vó May, e sabe o que aconteceu? O

médico estava no quarto dela e disse que ela pode voltar pra casa agora de manhã. Você pode

Page 119: Em seus sonhos

ir lá comigo para buscá-la? Ele quer que a gente vá lá imediatamente para nos dar algumas

instruções.

- Posso ir com a senhora sim, mãe. Espere só um pouquinho. Já estou quase pronta.

O pai e os outros membros da família foram visitar a igreja de Vancouver, de que Tânia

gostara. A mãe e Selena foram ao hospital.

- Estou aliviada de trazer Vó May para casa, disse a mãe. Sei que no começo vamos ter

muito trabalho, mas ainda bem que posso contar com você e Tânia para me ajudarem. Vó

May está com o pé esquerdo engessado, mas creio que eles vão nos dar uma bengala especial.

Assim ela vai poder subir a escada, com nossa ajuda, claro. Acho que ela vai gostar de voltar

e ficar no próprio quarto.

Quando chegaram ao hospital, o médico já as esperava com as instruções escritas.

Numa folha, estavam as informações de como se deve lidar com uma pessoa que sofreu uma

fratura. Em outra, havia orientação sobre o tratamento de um paciente que operou de vesícula.

Selena pensou que seria bom se houvesse outra série de instruções sobre como cuidar de um

idoso que está tendo falhas de memória.

- Como é que a senhora está, vovó? indagou Selena, inclinando-se e dando-lhe um beijo

no rosto. O médico já lhe disse que a senhora vai para casa hoje? A alta saiu mais cedo do que

imaginávamos, não é? Parece que a senhora está passando muito bem!

Vó May sorriu e disse:

- Existem muito poucos iguais a ele. Não o perca, viu?

Selena deduziu que ela se referia ao médico que se encontrava ao lado delas. Era

verdade que a avó gostava muito do Dr. Utley, o cirurgião que a operara e que ainda estava de

férias. Tânia não tivera boa impressão do médico que agora cuidava dela, mas, ao que parecia,

Vó May gostara dele. Era isso ou então ela estava variando de novo.

- Vamos mandar uma cadeira de rodas aqui para o quarto, disse o médico, no momento

em que a mãe de Selena assinava alguns papéis.

Page 120: Em seus sonhos

Uma enfermeira que estava por perto comentou:

- Talvez vocês precisem ir até o carro primeiro para levar todas estas flores.

- Eu levo! disse Selena. Creio que com umas duas viagens consigo levar todas.

Pegou o buquê que se achava mais perto e leu o cartão. Era de uma vizinha de Vó May.

Leu outro. Era do pessoal da farmácia Eaton's. Os amigos da igreja haviam mandado uma

plantinha. Selena tentou pegar os dois buquês e um vaso. Segurando-os com firmeza, foi até o

carro e só então descobriu que estava trancado.

Voltou ao quarto, pegou a chave e levou mais algumas flores. Colocou todas as flores

no banco de trás. Sobrou apenas um pequeno espaço para ela se sentar.

Voltou correndo ao quarto, pensando em como seria bom Vó May estar de volta em

casa. Fora ótimo que a cirurgia correra bem. Apesar do pé quebrado e dos lapsos de memória,

felizmente estava viva.

Lembrou-se da ocasião em que conhecera Paul. O rapaz estava voltando da Escócia,

aonde fora assistir ao enterro de seu avô. Eles haviam conversado sobre o assunto. Ambos

eram muito ligados aos avós. Selena sempre considerara Vó May uma boa amiga, além de

avó. Paul entendera isso perfeitamente.

Por que estou pensando em Paul? Tenho de parar com isso e seguir em frente. Tenho

outros amigos em quem posso pensar: Ronny, Amy e Vicki; e talvez Tânia também, em

algumas situações.

Recordou-se de que havia convidado a irmã para ir com ela à Califórnia, durante o

recesso da Páscoa. Ainda não sabia direito por que fizera isso. Tânia não mencionara o

assunto de novo, e Selena também decidiu não falar nada. Era provável que a outra até já

tivesse se esquecido do fato. O certo era que daí a duas semanas Selena estaria de partida para

visitar suas queridas amigas.

Page 121: Em seus sonhos

Até lá, iria procurar a companhia dos outros colegas na hora do lanche. Talvez fosse ao

cinema com Ronny no próximo final de semana. Iria servir muitos pãezinhos de canela no

trabalho, ajudar a cuidar da amada Vó May e escrever aquela carta pedindo perdão.

Quando entrou de volta no quarto, Vó May já estava sentada na cadeira de rodas e seu

rosto brilhava de felicidade.

- Falta só mais uma flor, queridinha! Quero levar todos os meus lírios para casa. Aquele

rapaz foi tão gentil! Sharon, ele ficou comigo um tempão depois que você foi embora ontem!

- Que bom! exclamou a mãe, pegando os outros objetos pessoais de Vó May.

Selena viu um pequeno vaso branco, com um lírio só, na bandeja do café da manhã.

Não o vira antes. Parecia que era apenas um enfeite que viera com a refeição. Imaginou que

talvez alguém do próprio hospital o colocara ali. Era possível que o rapaz a quem a avó se

referia fosse um dos “voluntários” que faziam visitas aos doentes. Aparentemente ele gostara

de Vó May e ficara a conversar com ela durante algum tempo. E fora no mesmo instante em

que a família de Selena estava jogando “Trivial Pursuit”.

- Podemos ir? indagou a mãe, começando a empurrar a cadeira em direção à porta.

Vó May virou-se para o médico e estendeu-lhe a mão. Ele correpondeu ao cumprimento

e a avó segurou a mão dele por alguns instantes.

- Muito obrigada! disse ela amavelmente.

Em seguida, agradeceu a cada uma das enfermeiras que vieram se despedir dela. Selena

pegou o vasinho com o lírio e foi caminhando corredor abaixo, seguindo o grupo.

- É, Vó May, parece que a senhora ficou muito conhecida aqui, disse Selena, no

momento em que passavam pelo posto das enfermeiras e duas delas se levantaram, acenando

para ela.

- É, Vó May, sei não! continuou ela brincando. A senhora, hein! Faz amizade com todo

mundo em todo lugar aonde vai. Depois um homem desconhecido lhe traz flores de noite...

Page 122: Em seus sonhos

Nesse momento, enquanto o pequeno grupo seguia pelo corredor, ela encostou o dedo

no cartão que estava junto com o vaso de flores. Olhou para ele e ficou paralisada. Viu uma

letra grande que conhecia bem, uma mistura de manuscrito e letra de forma. No cartão havia

apenas duas palavras:

Sinceramente, Paul.

Fim