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Agradecimentos
À Sra. Presidente da Academia de História, Prof. Doutora Manuela Mendonça, pelos importantes ensinamentos,
estímulo e apoio que sempre nos prestou;
Às Profs. Doutoras Maria Isabel R. Gonçalves e Ana Alexandra Sousa, pela preciosa ajuda e incondicional
disponibilidade;
À Prof. Doutora Maria João Violante Branco, pelo seu interesse e valiosos conselhos;
Ao nosso amigo e colega Hugo Miguel Crespo, pelo seu inestimável apoio e incentivo.
EM TORNO DA CLAVES REGNI – DO TEXTO À SIMBÓLICA
Ana Patrícia Dias
Mestranda em História Medieval na F.L.U.L.
Maria Fernandes
Mestranda em História e Cultura das Religiões na F.L.U.L.
Ao ver toda a importância conferida – e justamente – à bula Manifestis Probatum, decidimos
escolher como objecto do nosso trabalho a carta Claves Regni (datada de 13 de Dezembro de
1143), que desencadeou o processo da legitimição do novo reino de Portugal, bem como o
conceito de miles Sancti Petri na sua relação com o ideal e paradigma de guerreiro cristão
reflectido na acção e personalidade de Afonso I.
Ao atentarmos nas várias publicações da Claves Regni, verificámos que a única tradução que nos
aparece é a da Monarquia Lusitana (talvez porque a maioria dos historiadores que a têm
estudado dominavam perfeitamente a língua latina), pelo que procedemos à tradução de três
versões diferentes publicadas mais recentemente, com o objectivo de analisá-las à luz de outros
textos latinos relacionados com o miles Sancti Petri. A nossa pesquisa por esta expressão na
Patrologia Latina conduziu-nos ao Regesto de Gregório VII e seus Apêndices, únicos textos que
a continham em toda a colectânea, com especial incidência em dois juramentos vassálicos
prestados ao sucessor de S. Pedro. Num segundo momento, reconhecendo a necessidade de
estudos direccionados para as figuras régias, visamos encetar uma análise atinente à dimensão
simbólica do primeiro monarca, concentrando-nos no contexto particular do período de 1143.
Dedicaremos o primeiro ponto à análise da construção do conceito de Cavaleiro de S. Pedro,
visando “revisitá-lo” na sua extensão histórica, desde os seus primordiais sentidos, e acompanhar
a sua evolução até ao reinado de Afonso I através de uma comparação sistemática dos textos
latinos mencionados. Seguidamente incidiremos sobre o carácter de Afonso Henriques como
paradigma do Cavaleiro Cristão, numa reflexão e associação com o mesmo conceito, buscando
na cronística, na gesta, nos relatos, o reflexo dessa mesma representação, desse maravilhoso que,
inerentes à história do primeiro monarca, contribuem para a construção do seu “retrato”
simbólico.
No espaço dedicado à formulação de novas questões que podemos avançar, considerámos
sempre as reservas que devemos ter na análise dos períodos da formação da nacionalidade.
O Texto
Traduzimos três versões diferentes da Claves Regni, a dos Monumenta Henricina1, a da
Monarquia Lusitana2 e a do Elucidário
3 de Viterbo (cf. Anexos I, II e III, respectivamente), que
comparámos entre si e depois cotejámos com outras ainda, a saber, as reproduzidas na
compilação Patrologiae Latinae4, em Gonzaga de Azevedo
5 e nos Documentos Régios anotados
por Rui Pinto de Azevedo.6
1 MONUMENTA HENRICINA, Comissão Executiva das Comemorações do V Centenário da Morte do Infante D.
Henrique, vol. I, Coimbra, Com. Executiva das Comem. do V Cent. da Morte do Inf. D. Henrique, 1960, pp. 1 e 2.
2 Frei Bernardo de BRITO et Alii, MONARQUIA LUSITANA, vol III, Lisboa, Imprensa Nacional da Casa da Moeda,
1973, pp. 136 fl.e 136 fl. v.
3 Joaquim de Santa Rosa de VITERBO, “Dinheiro de S. Pedro”, Elucidário das Palavras, Termos e Frases que em
Portugal Antigamente se Usaram e Que Hoje Regularmente Se Ignoram, Mário FIÚZA (edição crítica), Porto –
Lisboa, Livraria Civilização, 1993, pp. 195 e 196.
4 “Variorum ad Lucium Papam 18 Epistolae” in Patrologiae Cursus Completus Omnium SS. Patrum, Doctorum
Scriptorumque Ecclesiasticorum sive Latinorum, sive Graecorum, J.-P. MIGNE (edição), vol. 179, Turnholt,
Brepols, 1977, I, cols.935 e 936.
5 Luís Gonzaga de AZEVEDO, História de Portugal, vol. IV, Lisboa, Editora Bíblion, 1942, pp. 231 e 232.
Muitas são as diferenças de pormenor entre as várias publicações, aliás na sua maioria apontadas
e comentadas por Pinto de Azevedo, que faz um estudo diplomático do documento, já objecto de
ampla discussão por parte de vários historiadores. A nível linguístico, é extremamente
interessante a problemática resultante da comparação da linguagem utilizada na Claves Regni
com o latim clássico, e observar quer a distância semântica de termos idênticos, quer mesmo a
inexistência de certas palavras (como [h]ominium, homenagem ou vassalagem), que apenas se
encontram em dicionários específicos para a época medieval. Registámos, por exemplo, que o
Elucidário de Viterbo (que espelha, segundo Pinto de Azevedo “com alguns erros”,7 a cópia do
A.D.B. do séc. XIII), é o único que contém a palavra “constituo”, “submeto, coloco sob” em vez
do “offero”, mais suave, de todas as outras versões consultadas, conferindo maior força e
intencionalidade à entrega da terra portucalense ao Apóstolo e seu vigário. Na Claves Regni
publicada por João Pedro Ribeiro8 está presente essa mesma palavra, pelo facto de aquele
historiador a ter copiado do Elucidário.
Foi, contudo, a Claves Regni da Monarquia Lusitana que nos surpreendeu, quer na tradução que
dela fez Frei António Brandão, quer na sua forma latina, baseada na cópia conseguida por
Gaspar Lousada, escrivão da Torre do Tombo, a partir da cópia do séc. XIV conservada na
Biblioteca Nacional de Madrid.9 Passamos a descrever as principais discrepâncias relevadas.
Em todas as versões que estudámos, incluindo a de Gonzaga de Azevedo que tem a mesma
origem da cópia da Monarquia, Afonso Henriques diz ter constituído S. Pedro como seu
padroeiro para o ajudar nos momentos felizes (oportunitatibus), enquanto a Monarquia Lusitana
transcreve que ele o quer para seu advogado nas aflições (necessitatibus). Poderemos inferir que
6 Documentos Medievais Portugueses: Documentos Régios, Rui Pinto de AZEVEDO (introdução diplomática e
notas), vol. 1, tomo I, Lisboa, Academia Portuguesa de História, 1958, p. 250.
7 Ibidem, vol. I, tomo II, 1962, nota XLI, p. 695.
8 Dissertações Chronologicas e Criticas sobre a Historia e Jurisprudencia Ecclesiastica e Civil de Portugal, tomo I,
Lisboa, Academia Real das Sciencias, 1860, pp. 73 e 74.
9 Documentos Régios, vol. I, tomo II, 1962, nota XLI, p. 695.
Frei Brandão transportou para a carta que constituía o reino sob a protecção do primeiro
Apóstolo algum sentimento de impotência perante a situação portuguesa da época, aproveitando
para clamar por socorro ao padroeiro de Portugal? Veríssimo Serrão entenderia esta dedução
como pouco provável, já que segundo ele não consta que o cronista tivesse sido “autonomista no
aspecto político”, conquanto tivesse “o pressentimento que se aproximava a madrugada da
Restauração”.10
Quanto à vassalagem prestada pelo príncipe ao Papa na pessoa do seu Legado, expressa
claramente pela expressão [h]ominium ou [h]omagium11
feci, a mais significativa do documento,
é pura e simplesmente omitida pelo cronista.
Na última condição estipulada na Claves Regni, Afonso Henriques afirma que não quer receber
no seu território nenhuma autoridade ou poder (potestatem) de qualquer eclesiástico ou secular
que não seja o do Pontífice romano ou de seu Legado. A versão da Monarquia Lusitana, porém,
estabelece que Afonso se recusa a receber qualquer “seguinte, sucessor (posterum) de
eclesiástico ou de senhor secular”12
, seguindo-se a mesma excepção; isto é, o príncipe português
não admitia que no seu reino entrasse qualquer eclesiástico “que viesse a seguir” que não fosse
Legado do Papa (o que implica que excluía também os de Cluny e quaisquer enviados de
Bernardo de Claraval, por exemplo, o que nos parece, no mínimo, improvável, sem falar nos que
pudessem ser provenientes das dioceses estrangeiras sufragâneas de Braga), nem qualquer
senhor secular que “viesse a seguir”. A seguir a quem?, poderíamos perguntar. É de crer, no
entanto, que se trate apenas de um erro ao copiar a palavra, cuja grafia é muito similar (posterum
por potestatem).
Grande perplexidade nos suscitou, finalmente, a tradução do frade cisterciense que, além das
imprecisões apontadas, omite na totalidade a condição fulcral posta à Santa Sé por Afonso
10
Joaquim Veríssimo SERRÃO, A Historiografia Portuguesa, vol. II, Lisboa, Editorial Verbo, 1973, pp. 36 e 38.
11 VITERBO, Elucidário…, op. cit., p. 195; J. P. RIBEIRO, Dissertações Chronologicas, op. cit., p. 73.
12 MONARQUIA LUSITANA, op. cit., p. 136 fl. v.
Henriques: “e que não receba nunca na minha terra nenhum sucessor de eclesiástico ou de
senhor secular, salvo somente da Sé Apostólica(...)”. Mais ainda, não só não traduz a frase, como
aproveita algumas palavras no meio das linhas ignoradas (vel a latere ejusdem missi), com as
quais termina o seu trecho: “e de seus Legados a latere” (cfr. Anexo II), certamente para lhe
compor o sentido (deixando em latim a expressão que corresponde a “da parte de”). Tal omissão,
como a do juramento de homenagem prestado, não foi certamente fruto de acidente fortuito, mas
constituiu uma escolha deliberada e intencional, já que o latim, confinado ao ensino nas
universidades e conventos, fizera parte do curriculum académico do cronista, doutorado em
Teologia, pelo que não nos parece justificável como desconhecimento da língua.
De registar que, após a Claves Regni e sua tradução, o cisterciense publica a pseudo-bula de
resposta de Inocêncio II e aduz: “estas cartas refere o Dr. Frey Bernardo de Brito que uieraõ de
Toledo, em cujo archiuo estão. O mesmo affirma o Licenciado Gaspar Alures Lousada, a quem
uieraõ dirigidas”.13
Daqui inferimos que a cópia, antes de chegar a Frei António, passou pelas
mãos de Gaspar Lousada e de Frei Bernardo de Brito. Teria algum deles omitido o juramento de
homenagem, sem que Frei António Brandão disso tivesse tido conhecimento?
Nas obras que consultámos acerca deste cronista não vimos menção desta matéria. João Pedro
Ribeiro, que sova com indignação Frei Bernardo de Brito e Gaspar Álvares de Lousada, não tem
idêntica atitude para com Frei António Brandão14
, e Fernando Castelo Branco, conquanto não
mostre por ele grande consideração, apenas lhe critica certo exagero mítico devido ao desejo
patriótico de enaltecer compatriotas de antanho e de exaltar a sua pátria,15
com enfoque no relato
da conquista de Lisboa. Alexandre Herculano tinha por ele grande consideração e o Pe. Miguel
Oliveira reputa-o possuidor de “espírito de ciência histórica”16
. Erdmann, conquanto conceda
13
Monarquia Lusitana, op. cit., p. 137.
14 Dissertações Chronologicas..., op. cit., pp. 65 a 73.
15 O Valor Histórico de Frei António Brandão, Lisboa, [s.n.], 1977, p. 137.
16 Pe. Miguel de OLIVEIRA, História Eclesiástica de Portugal, Lisboa, União Gráfica, 1968, p. 262.
que ele publicou alguns documentos falsos, entende que os fundamentos do seu trabalho são o
rigor e a singeleza.17
Oliveira Marques relata o seu escrúpulo relativamente à publicação do
apócrifo sobre as Cortes de Lamego,18
enquanto Veríssimo Serrão o encomia como “historiador
de alto nível para a época, (...) cronista digno do maior crédito”.19
Tais opiniões corroboram a
ilação óbvia de que houve intencionalidade da parte de Frei Brandão.
No tocante ao espírito que presidiu à formulação do diploma em apreço, veremos que seguiu os
ditames que na época se reputavam apanágio do bom cavaleiro cristão. Tomado sob a protecção
da Santa Sé, Afonso I garantiria para si e para as suas gentes e território, através da intercessão
de S. Pedro e das orações em seu favor do seu máximo representante na terra, apoio real e eficaz,
que lhe conferiria maior força perante os notáveis (leigos como clérigos) e lhe consolidaria o
poder e o prestígio na organização de terras e bens. Que ele estava ciente de que o seu
enfeudamento ao Papa o equiparava aos outros príncipes cristãos de dignidade real, entrevê-se
nas condições que descreve na Claves Regni, que afinal constituem o verdadeiro motivo da
vassalagem prestada; conquanto o príncipe comece por expor o de ordem religiosa, mostrando
que a primeira contrapartida que requer do Pontífice romano é que a Santa Sé o aceite sob a sua
protecção e sufrágio, em honra e em dignidade, bem como ao seu território, para o qual ele
deseja os benefícios da Santa Igreja Romana. Erdmann defende que a “dignidade” que Afonso
Henriques reclamava da Santa Sé era o reconhecimento do título de rei,20
interpretação avisada,
sendo certo que, não se contrariando ser esse o objectivo oculto do rei portucalense, este é mais
subtil, já que a aplica, bem como à “honra”, às “coisas que concernem” o território de que é
detentor, que evidentemente ele desejava que fosse reconhecido como um reino independente.
17
Carl ERDMANN, Papsturkunden in Portugal, Berlim, Weidmannsche Buchhandlung, 1927, p. 153.
18 A. H. de Oliveira MARQUES, Antologia da Historiografia Portuguesa, vol. I, pp. 173 e 174.
19 J. Veríssimo SERRÃO, op. cit., p. 58 et passim.
20 Carl ERDMANN, O Papado e Portugal No Primeiro Século da História Portuguesa, separata de O Boletim do
Instituto Alemão, J. da Providência COSTA (tradução), vol. V, Coimbra, 1935, p. 50.
Analisámos comparativamente alguns textos encontrados nos regestos de Gregório VII, o papa
que ergueu a formidável estrutura que opôs o poder temporal ao espiritual, considerando com
especial atenção o juramento prestado pelo duque normando Roberto ao Papa Gregório VII em
1077 (Anexo IV) e a fórmula de juramento de fidelidade que o próprio Papa escreveu em 1080
destinada a ser proferida pelos príncipes (Anexo V), bem como, a par deles, duas bulas
pontifícias, a Carta aos Príncipes da Hispânia de Gregório VII datada de 1073 (Anexo VI) e a
bula Devotionem Tuam de Lúcio II, de 01 de Maio de 1144.
Os dois juramenta regis contêm a mesma fórmula: o príncipe protesta a sua fidelidade ao
Apóstolo e ao Papa, seu vigário. Em plena luta cismática21
contra o poder temporal do imperador
perjuro, o juramento do duque normando, recém-aliado à causa de Gregório, expressa fidelidade
à Igreja de Roma e ao seu pontífice, dirigindo-se-lhe usando o epíteto “Papa universal”,22
por
este doutrinado no Dictatus Papae (1075); enquanto o juramento concebido por Gregório para
Rodolfo da Suábia, o imperador que se opunha a Henrique IV, continha a reforçá-lo a expressão
de obediência humilde à Santa Sé e as palavras rectam fidem, “por juramento inquebrantável”,23
repetidas nos pontos considerados vitais (no caso de Roberto, no que respeita aos tributos anuais
à Santa Sé e no final do juramento - cfr. Anexo IV). Está ausente da Claves Regni esta
21
No âmbito da querela das investiduras que dividiu o Papado e o Império, o imperador germânico Henrique IV
proclamou a destituição do Papa Gregório VII no Sínodo Imperial de Worms de 1076. O Papa excomungou o
imperador que, ameaçado de deposição, se viu forçado a ir implorar-lhe perdão a Canossa. Obtido este, no entanto,
abjurou de tudo aquilo a que se comprometera. Os príncipes alemães entretanto tinham elegido um anti-rei, Rodolfo
da Suábia (que veio a ser morto em batalha) e Henrique IV, de novo excomungado por Gregório VII, elegeu um
anti-papa e vários bispos seus seguidores, seguindo-se uma guerra entre o Império e o Papado que se prolongou até à
paz assinada em Worms em 1122 (cfr. Joseph BERNHART, O Vaticano, Potência Mundial, Carlos DOMINGUES
(tradução), Rio de Janeiro, Irmãos Pongetti Editores, 1942, p. 111 et passim).
Ao referirmo-nos a “cisma” ou “cismáticos”, queremos significar o imperador Henrique IV, seus aliados e
eclesiásticos seus adeptos, seguindo a nomenclatura da época.
22 Patrologiae, op. cit., vol. 148, 1980, 8, I, col. 574.
23 Ibidem, 9, III, col. 608.
formulação, certamente proferida perante Guido De Vico em termos similares e implícita nas
palavras “[h]omagium/[h]ominium feci”.
Interessante é notar a evolução que sofreu a imagem do sumo pontífice (que adquirira, desde
Gregório VII e suas reformas, um ascendente muito maior sobre a Cristandade), aqui referido
como “meu Pai, o Papa” (cfr. Anexo I). É verdade que, nas suas bulas, os Papas tratavam por
“filhos” os príncipes destinatários, mas aqui é o príncipe que quer fazer-se mais próximo do
pontífice, vincando deste modo um laço de maior afectividade do que aquele que poderia ligá-lo
a um suzerano/domino secular. Essa afectividade entende Afonso I que lhe confere o direito de,
como fiel miles sancti Petri, ser reconhecido de jure como rex que já é de facto. Por sua vez,
Lúcio II, usando o vocativo dilecte in Domino fili, começa por aceitar a formulação: “prestaste
homenagem com louvável devoção”, mas tem o cuidado de ressalvar que Afonso Henriques
tomara S. Pedro por padroeiro humiliter, advérbio ausente da Claves Regni.24
A primeira vantagem que advém do juramento para o príncipe é clara: pretende-se o auxílio
divino e a intercessão do Papado em todas as circunstâncias da vida terrena e garante-se entrada
no reino dos Céus através de S. Pedro, visando a eterna bem-aventurança. Na bula dirigida por
Gregório VII aos Príncipes da Hispânia, quando da campanha contra os Sarracenos organizada a
partir da terra franca por Ebles de Roucy, irmão da rainha de Aragão, o pontífice aproveita para
consolidar a noção da sua soberania e da Igreja de Roma sobre o território peninsular,25
exortando a Cristandade a ganhar terras para o Apóstolo e vinculando-a, ipso facto, a colocar-se
sob a protecção (e a prestar tributo) à Santa Sé, numa estratégia que mais fortemente escudava
Gregório VII contra os cismáticos imperiais que o ameaçavam. Não duvidamos que os termos da
carta fossem conhecidos dos prelados peninsulares e é natural que as fórmulas fossem
24
“Lucii II Papae Epistolae et Privilegia” in Patrologiae, op. cit., vol. 179 (1977), XXVI, cols. 860 e 861.
25 O Papa baseava-se na doação de Constantino, então aceite como genuína pela Cristandade ocidental, para
reivindicar suserania temporal sobre as regiões, aplicando essa reivindicação, por extensão, à Península Hispânica
(cfr. Steve RUNCIMAN, História das Cruzadas, vol. I, Mª. Margarida MORGADO (tradução), vol. I, Lisboa,
Livros Horizonte, 1992, p. 82).
aproveitadas e repetidas nas ocasiões solenes, visto que as mesmas expressões relativas ao
“socorro na vida presente” e a “alcançar os prémios” futuros se encontram já na Carta à Hispânia
(cfr. Anexo VI). Lúcio II confirma a dispensa da benesse pedida por Afonso Henriques: ele terá
a benção e protecção do Apóstolo para defender-lhe a alma contra todo o mal e garantir-lhe
acesso celeste.
O Papa Gregório VII, no entanto, no juramento que concebeu, transforma o que para os outros
constitui um bem almejado numa ameaça, terrível para o espírito da época: se não for fiel à Santa
Sé, o rei é anátema, arrisca-se a perder a sua alma (cfr. Anexo V) – e em caso de excomunhão,
isso significa a exclusão social com todas as suas implicações. Se recordarmos que o contexto
era de guerra entre os imperiais e as facções que a Henrique IV tinham oposto Rodolfo da
Suábia, que o Papado veio finalmente a adoptar como imperador legítimo, e que o juramento lhe
era destinado, a cláusula não surpreende.
É sabido que a homenagem prestada ao suzerano implicava o pagamento de um tributo, que a
Santa Sé assume com a maior naturalidade como obrigação taxativa do vassalo, sublinhando-se,
no caso do duque normando e do juramentum regis, que proventos de igrejas no território dos
vassalos reverterão também para a Igreja de Roma (cfr. Anexos IV e V). Afonso Henriques não
inclui esta última cláusula na sua carta, mas são conhecidas as viagens de João Peculiar à Cúria
Papal para levar tributos e pedir privilégios de isenção para diversos mosteiros, cumprindo assim
os ditames que certamente conhecia serem do agrado do Papado, estreitando cada vez mais os
laços que ligavam a terra portucalense à Igreja de Roma e porfiando, ao mesmo tempo, em
aumentar a distância que queria separasse o seu território de Leão e Castela. Também a
Devotionem Tuam pontua essa obrigação de Afonso e seus sucessores com a palavra promisisti,
que vincula o vassalo cristão a um juramento sagrado e por isso inquebrantável, sob pena de
sacrilégio.26
26
“Lucii II Papae Epistolae et Privilegia” in Patrologiae, op. cit., XXVI, 861.
O juramento formulado por Gregório VII não contém mais cláusulas. Mas a Claves Regni expõe
cruamente a contrapartida ambicionada pelo duque portugalense: sacudir o jugo do seu suzerano
leonês, com o qual ele quer igualdade de circunstâncias. Existe no entanto o cuidado de, antes de
declarar que não quer receber qualquer outra autoridade no seu território que não seja da Santa
Sé ou de seus legados, se manifestar a necessidade de conseguir os benefícios, por parte do
Papado, da benevolência e orações pontifícias. A Devotionem Tuam responde ao desejo de
Afonso I assegurando-lhe a “benção e protecção de S. Pedro para o seu corpo, para defesa na luta
contra os seus inimigos visíveis, para si e seus sucessores”, guardando prudente silêncio quanto
ao restante,27
como é apanágio da habitual ambiguidade pontifícia na sua delicada missão de
manter boas relações com todos os príncipes da Cristandade.
Não foi contudo Afonso Henriques o único a requerer do Papado uma benesse secular, vendo-se
que em 1077 já o juramento do rei Normando estipulava que o Papa ou quem o sucedesse lhe
confirmariam a investidura (cfr. Anexo IV), o que reforça a importância que revestia para um
príncipe da época a consagração por parte do Papa. A Claves Regni é, todavia, diferente de
outros documentos afins, contendo uma linguagem forte e mais ousada, de uma confiança e uma
assertividade que está longe da fórmula submissa e contrita que o Papa Gregório VII concebera
para sujeitar ao espírito a arrogância dos príncipes.
O miles sancti Petri surge quer explícita, quer indirectamente nos escritos que analisamos. Uma
das marcas do cavaleiro cristão é a de guerrear contra os inimigos de Cristo. Na Península
Ibérica tal luta poderá ter adquirido estatuto de guerra santa quando, em 1063, após a morte do
rei Ramiro I, o papa Alexandre II prometeu indulgência aos que combatessem pela Cruz em
terras de Hispânia.28
Por sua vez, em 1073 Gregório VII exortava os Príncipes a “entrar na terra
para honra de S. Pedro e arrancá[la] aos Pagãos” (vide Anexo VI), tal como Roberto, o
Normando, jura auxiliar a Igreja de Roma e o Papa a “obter, adquirir e defender a residência real
27
“Lucii II Papae Epistolae et Privilegia” in Patrologiae, op. cit., XXVI, 861.
28 Steven RUNCIMAN, História das Cruzadas, op. cit., p. 91.
de S. Pedro e as suas possessões contra todos os homens” (cfr. Anexo IV), aqui em contexto
claramente cismático, mas que confere ao soldado que milita pelo Pontífice romano uma
obrigação sagrada de abraçar a causa da fé ortodoxa contra quem quer que a ameace. Podemos
avançar a hipótese de Afonso Henriques, certamente através dos seus prelados (e nomeadamente
D. João Peculiar e S. Teotónio), conhecer as doutrinas de Gregório VII e, apoiado na força de
Cluny, colocar-se sabiamente ao serviço de Roma importando o conceito do miles sancti Petri
que empresta o seu braço ao Papa para justamente “obter e adquirir” novas terras “para honra de
S. Pedro, arrancando-as aos pagãos”. Terras que de direito poderá guardar, como estabeleceu o
vigário do Apóstolo na Carta aos Príncipes da Hispânia, desde que pague tributo à Santa Sé,
novos espaços de independência, pois (vide Anexo VI), que esvaziariam de sentido a sujeição
vassálica a Afonso VII. Questão que, como veremos, Afonso I explorou sempre, insistindo na
primazia dos seus feitos bélicos face aos restantes milites da Cristandade, nas suas epístolas ao
Papado. Papado que o reconhece, desde logo, como ad expugnatione Paganorum intentus, nas
palavras da Devotionem Tuam. Afonso I faz suas as palavras expressas na fórmula do
Juramentum regis, afirmando-se já consagrado a prestar “digna honra e serviço a Deus e a S.
Pedro”: “(...) como cavaleiro de S. Pedro que sou(...)” (cfr. Anexos I, II e III). Não pede para ser
reconhecido como tal, mas avança, desde logo, que o é. Apenas não prestou vassalagem
pessoalmente perante o Pontífice, como previu S. Gregório no Juramentum regis: “no dia em
que pela primeira vez o tiver visto, eu me tornarei fielmente, pelas minhas mãos, miles sancti
Petri e seu” (cfr. Anexo V). Fê-lo o duque Normando Roberto, cuja investidura lhe foi conferida
pessoalmente por Gregório VII, fê-lo Rodolfo, fê-lo Sancho Ramirez de Aragão, quando da sua
estadia na Cúria Papal em 1068,29
desconhecendo-se se já teria sido usada a expressão miles
sancti Petri. Justamente, Lúcio II exprime na Devotionem Tuam o seu desgosto por Afonso
Henriques não ter podido ir prestar-lhe pessoalmente vassalagem a Roma. Tentou o príncipe
29
Paul KEHR, Cuándo y Cómo Se Hize Aragón Feudatario de La Santa Sede - Estudio Diplomatico, Zaragosa, “La
Academica”, 1945, p. 17 et passim.
obviar a esse inconveniente, enviando a epístola através de D. João Peculiar que, em sua
representação, alcançou Roma em Abril de 1144. Lúcio II não só aceita a vassalagem prestada,
como exprime satisfação pelo facto: maxime congaudemus.30
A Simbólica
Na sua reflexão sobre o termo miles, José Mattoso, na sua obra sobre a identidade nacional,
procurou desmitificar a sua aplicação (num período compreendido entre os meados do século XI
e os finais do XIII), visando destrinçar ambiguidades que o mesmo suscitou na sua compreensão.
Traduzindo uma função,31
este era aplicado como nomeação a todos os príncipes da Cristandade
que se voluntariavam para o arrecadamento de feudos em nome de S.Pedro, dedicando-se ao
combate e à conquista para e pela Igreja32
.
Constatámos que miles Sancti Petri foi um conceito pautado por reinvenções. Apesar de persistir
o desconhecimento da sua raiz original, referimos o contributo de Maria João Branco que nos
chamou a atenção para a possível existência de enfeudamentos deste género, anteriores às
primeiras considerações de Gregório VII, como o exemplo de Sancho Ramirez de Aragão33
.
30
“Lucii II Papae Epistolae et Privilegia” in Patrologiae, op. cit., XXVI, 860.
31 Consideramos importante referir que Eduardo Brasão se refere a miles como vassalo (cfr. "O Papado e Portugal
desde a Conferência de Zamora (1143) até à Bula de Alexandre III "M.P." (1179)" in 8º. Centenário do
Reconhecimento de Portugal pela Santa Sé, Lisboa, Academia Portuguesa de História, 1979, p.92.
32 José MATTOSO, Identificação de um País – Ensaio Sobre as Origens de Portugal 1096-1325, vol. I - Oposição,
Lisboa, Editorial Estampa, 1995, p. 116.
33 vide Aires Agusto do NASCIMENTO, Conquista de Lisboa aos Mouros:Relato de um Cruzado, Maria João
BRANCO (introdução), Lisboa, Vega, 2001, p.23; Maria João Violante BRANCO, Poder Real e Eclesiásticos: A
Evolução do Conceito de Soberania Régia e a Sua Relação com a Praxis Política de Sancho I e Afonso II,
Dissertação de Doutoramento em História Medieval policopiada, apresentada à Universidade Aberta, Lisboa, 1999,
p. 46.
Como anteriormente apurámos, é no seu Juramentum regis que, ao estabelecer um “formulário”
para o processo de enfeudamento dos reis cristãos que se submetem à autoridade da Santa Sé,
Gregório faz a primeira menção ao miles Sancti Petri (cfr. Anexo V).
Não podemos assim deixar de considerar a importância dos textos presentes nos apêndices à sua
obra, na Patrologia Latina. A crónica de Bernaldus Constantiensis - traduzindo acontecimentos
posteriores à morte de Gregório - permitiu-nos aproximar do que constituiria a ideia primordial
de um cavaleiro de S.Pedro: a luta contra os cismáticos, traduzida sobretudo na acção militar.
Esta crónica fala-nos de Ladislau, Rei dos Húngaros que, juntamente com vinte dos seus
cavaleiros, se proclamou fiel a S. Pedro contra os cismáticos, prometendo lutar contra estes se
necessário34
. Fala-nos também do prefeito da cidade de Roma, indefeso miles sancti Petri, que
por traição fora assassinado pela facção cismática, tendo-se atribuido ao seu corpo mais de vinte
milagres35
; e dá-nos ainda diversos exemplos da acção destes milites e doutros cavaleiros
devotos a S. Pedro que encontraram a morte na luta pela Igreja romana.
De acordo com a historiografia, Urbano II, no seu repto para a cruzada no Oriente - em
campanha de consolidação do poder da Igreja de Roma – havia mobilizado os milites Sancti
Petri para a função de combate, multiplicando-se assim essa “legião” de cavaleiros por Cristo,
com uma nova finalidade a estes atribuída: a luta contra o infiel maometano.
Apesar da visível construção deste conceito ao longo dos tempos, é notório o carácter universal a
este subjacente. O Cavaleiro de S.Pedro seria pois o missionário da cristandade, o agente activo
para a sua glorificação, através do combate efectivo dos seus inimigos, como verdadeiros
mártires pela fé que morrem e são imortalizados pelos seus actos, como Bernardo de Claraval
34
“Ad Opera S. Gregorii Appendices” in Patrologiae, op. cit., col. 1396: «Ladislaus rex Ungarorum missa
legatione ad idem colloquium se in fidelitate sancti Petri perseveraturum declaravit, et fidelibus sancti Petri cum
viginti milibus equitum contra scismaticos se affuturum, si necesse foret, promisit».
35 «Non multo post ejus interitum praefectus Romanae urbis, indefessus miles sancti Petri contra scismaticos
(…)crudeliter occiditur. Ad cujus corpus in parvo tempore plus quam viginti miracula contigerunt, ut fidelium
virorum relatione didicimus», ibidem, col. 1375.
advogou. É no seu De Laude Novae Militiae, imbuído desse espírito cruzadístico, que assistimos
à concretização teórica do cavaleiro espiritual – a ideia do homem armado em nome de Deus que
combate e assim se torna herói; o vingador dos pecados do inimigo pagão como legítimo
defensor (e resgateador) do feudo de Cristo:
«At vero Christi milites securi praeliantur praelia Domini sui, nequaquam metuentes aut de hostium
caede peccatum, aut de sua nece periculum, quando quidem mors pro Christo vel ferenda, vel inferenda,
et nihil habeat criminis, et plurimum gloriae mereatur».36
Ao encontro da doutrina agostinha da formulação de uma guerra justa, o miles sancti Petri é o
agente e confirmador dessa legitimidade, em que o homem “matando, tolhe a vida dos inimigos e
morrendo, a dá a si para sempre”.37
É portanto nesta perspectiva que analisamos Afonso I, como miles Sancti Petri, veiculado pela
sua acção e carácter de combatente ao infiel, que na particular especificidade da Península
Ibérica, contribuiu para a construção da sua imagem e representação simbólica.38
Afonso Henriques e o ideal do Guerreiro Cristão
“Aos príncipes, aos Homens do século e aos Guerreiros (bellatores) cabe o cuidado de vigiar a
astúcia dos inimigos (...)”, disse o Papa Zacarias, visando estabelecer as funções que mais tarde
Cluny definiu como presas às rédeas do Guerreiro - a protecção dos pobres, a vingança da
36
Obras Completas de San Bernardo (edição bilingue), vol I, Madrid, Biblioteca de Autores Cristianos, 1977, pp.
502 e 503.
37 « Matamdo tolhemos a vida a nossos jmijgos, morrendo damo-la a nos pera sempre», cfr. Duarte GALVÃO,
Crónica de El-Rei D. Afonso Henriques, Lisboa, Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1995, p. 53.
38 Para um panorâma geral desta questão, cfr. José MATTOSO, D. Afonso Henriques, Lisboa, Círculo dos Leitores,
2006, o estudo mais recente sobre Afonso Henriques, na forma de biografia.
injustiça e o alargamento do feudo de Deus - linhas primordiais e definidoras do ideal do
Guerreiro cristão39
.
Diversas foram as correntes narrativas que se verificam respeitantes ao primeiro monarca. No
importante artigo “As três faces de Afonso Henriques”40
, de José Mattoso, torna-se evidente a
pluralidade de imagens e representações coevas que se construíram, fortalecendo a criação de um
imaginário colectivo e da mitificação de um reinado, que ainda hoje, “ pelas obras valerosas, se
(vai) da lei da morte libertando”41
.
Pretendemos assim compreender precisamente a mediação entre primeira e a segunda face42
: - o
Guerreiro e o Instrumento divino.
Na crónica dos Cinco Reis,43
na de Duarte Galvão44
ou mesmo nos Annales D Alfonsi
Portugallesium Regis45
exaltam-se as conquistas e as qualidades do herói, o discurso de um
monarca ideal46
– agente divino – “de valerosos feitos”, predestinado e incumbido do projecto da
Reconquista cristã (como que um produto ou herança paterna, que dita o seu fatum):47
39
Georges DUBY, As Três Ordens ou o Imaginário do Feudalismo, Lisboa, Editorial Estampa, 1982, p. 99. Citação
do discurso de Gelásio que o Papa Zacarias dedicou a Pepino, o Breve, na exortação da função de combate aos
inimigos da fé. Sublinhado nosso.
40 Para uma panorâmica deste assunto vide José MATTOSO, «As três faces de Afonso Henriques», in Penélope –
Fazer e Desfazer a História, nº. 8, 1992, pp. 25-42.
41 Luís de CAMÕES, Os Lusíadas, Emanuel Paulo RAMOS (edição), Porto, Porto Editora, 1974, I, 13-14, p.53.
42 José MATTOSO, “As três faces de Afonso Henriques”... op. cit., p.31.
43 Crónica dos Cinco Reis de Portugal - Seguida da Parte da Crónica Geral de Espanha Que Insere as Histórias
dos Reis de Portugal, A. de Magalhães BASTO (edição), Porto, Civilização Editora, 1945.
44 Duarte GALVÃO, Crónica de El-Rei D. Afonso Henriques, op. cit., 1995.
45 Citados por Bernardo Vasconcelos SOUSA, «D. Afonso Henriques nas Primeiras Crónicas Portuguesas» in 2º
Congresso Histórico de Guimarães – D.Afonso Henriques na História e na Arte, vol III, Guimarães, Companhia
Editora do Minho, 1996, p. 23, passim.
46 Uma análise transversal destas fontes exige sempre as devidas precauções, sendo um exercício formulado, no
presente estudo, para a construção da imagem global do monarca português. Devemos salientar a distância
cronológica entre estas crónicas, que necessariamente correspondem aos sentidos políticos, simbólicos e religiosos
do seu tempo, em programas ao serviço da legitimação das monarquias e de determinados centros religiosos.
Comparando a Crónica dos Cinco Reis (1419) e a Crónica del Rey D.Afonso Henriques, de Duarte Galvão (1435-
1517), o retrato do monarca encontra-se necessariamente ao serviço de conjunturas distintas, tendo um século de
« s[e]n[h]or praza a D[eu]s que assj seiamoos porem tadauiahe bem que uos alçemos por rej & elle vendosse
muito affincado delles disse pois assi he fazede como por bem tiuerdes então esses mais nobres caualeiros ahi
erão aleuantaraõ por seu rej bradadando todos co[m] muj grande prazer e alegria dizendo.real real real por
elrej Dom Afons[o] henrrquez de Portugal & logo sem mais tardança elrej Dom A[fon]so caualgou em hu[m]
caualo grande fermozo que trouuera[m] cuberto de suas armas brancas (...) então sem mais tardar mouerão
contra os mouros que ia vinha[m] contra elles todos em hu[m] coração pera seruire[m] seu s[e]n[h]or (...).»48
«(...) elRey dom Affonsso com mujta deuaçam e vomtade tijnha dado, tomou em ssi gramde pesar: e
partimdosse do moesteiro foisse a guerrear as terras dAlemtejo que os moiros possuyam (...) E Deus que
sempre o ajudaua em todos seus feitos, lhe deu tam boa esquemça, que per força a tornou a tomar, posto que os
mouros a muy bem deffemdessem.»49
A Crónica Geral de Espanha, se por seu lado mais dedicada às façanhas bélicas do monarca,
confirma um “crescendo” na construção do carácter desse Guerreiro ideal, como que inspirada
na palavra e doutrina bernardina, do cavaleiro audaz pelos seus feitos e conquistas dedicadas
unicamente a Deus. No episódio da tomada de Santarém o cronista culmina com um processo
determinante: a transformação desse juvenis rebelde no cristão devoto50
, que se compreende no
presente excerto:
diferença na sua produção. Sobre estes assuntos veja-se Maria de Lurdes ROSA, “O corpo do chefe guerreiro, as
chagas de Cristo e a quebra dos escudos” in 2º Congresso Histórico de Guimarães, op.cit., p. 85, passim.
47 Bernardo Vasconcelos SOUSA, ibidem, p.25. Sobre este assunto temos referência do que teria o Conde
D.Henrique recomendado ao seu filho no seu leito fúnebre, estimulando e incutindo-lhe a continuidade das suas
obras (cfr. Crónica dos Cincos Reis, op. cit., capítulo III, pp. 50-52).
48 Crónica dos Cincos Reis, op. cit., cap. X, p.67; sublinhado nosso. O episódio do reconhecimento de Afonso
Henriques como rei, em Ourique, é igualmente referido na obra De Ministerio Armorum, descrevendo-se o ritual dos
escudos nos quais o rei é elevado pelos seus pares (cfr. Aires Augusto do NASCIMENTO (estudo e tradução),
Dissertação de Doutoramento em Linguística Latina apresentada à Faculdade de Letras de Lisboa, 1977), pp. 256 a
258.
49 Duarte GALVÃO, Crónica de El-Rei D. Afonso Henriques, op. cit, cap. XXVI, p.96.
50 Elisa Rosa Nunes ESTEVES, «O Retrato de Afonso Henriques na Crónica Geral de Espanha de 1344 » in 2º
Congresso Histórico de Guimarães, op.cit., p.51.
« Este rey dom Affonso, en sua macebia, foy muy braco e esquivo. Mas depois foy muy manso e mensurado e
boo cristãao e fez muyto serviço a Deus. E este era o mais esforçado cavalleiro assi/ em armas como en força
que avya em Espanha ne[m] de que os mouros mayor medo avyam.»51
E se esta cronística, ou analística, traduzia meros arquétipos comuns à concepção de miles Sancti
Petri, encontramos na Vida de D.Telo52
a relação destes arquétipos com a condição directa de
cavaleiro de S. Pedro, nas epístolas direccionadas ao Papa Adriano IV e a Alexandre III, nas
quais é traduzível a argumentação favorável a Afonso Henriques como o mais perfeito dos
Cavaleiros:
-« Satis superque satis nouit uestre paternitatis sublimitas me uestre sanctitatis ita esse filium specialem ut aut
nullum penitus aut uix aliquem michi per omnia habeatis consimilem. (...) Ego autem cum his que de possessionibus
parentum meorum per Dei gratiam mea industria adquisiui, beato Petro fideliter seruiens plura quam haberem per
eius auxilium sarracenis abstuli, unde et ea libens apostolico patrimonio adieci animo gerens strenuus beati Petri
miles existere et uestre paternitatis semper iussionibus obedire»53
.
Como Rolando ou Cid, Afonso Henriques destaca-se nas fontes como esse herói maravilhoso da
canção de gesta: é o rei divinamente protegido de Ourique, predestinado a grandes feitos e
51
Crónica Geral de Espanha de 1344, Luís Filipe LINDLEY CINTRA (edição crítica do texto português), vol. IV,
Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1990, pp. 232-234.
52 Devemos apontar que, de todas as fontes por nós referidas, a Vida de D.Telo (vide Hagiografia de Santa Cruz de
Coimbra : Vida de D. Telo, Vida de D. Teotónio, Vida de Martinho de Soure, Aires Augusto do NASCIMENTO
(edição crítica e tradução), Lisboa, Colibri, 1998) é a que, cronologicamente, se situa mais próxima do período que
aqui tratamos. Tendo sido redigida durante o século XII, esta constitui uma visão e entendimento coevo deste
panorâma político, religioso e mental. Dá-nos igualmente a conhecer informação que julgamos “mais fidedigna” ou
aproximada para a construção imagem (literária) de Afonso Henriques.
53 [1] « Muito bem conhece a celsitude de Vossa Paternidade que sou um filho tão especial de Vossa Santidade que
não tereis nenhum outro, ou dificilmente o podereis encontrar em qualquer local, que seja semelhante a mim.(...)
Eu, no entanto, servindo fielmente a S.Pedro com aquilo que por minha indústria obtive das possessões de meus
pais, muito mais do que tinha por seu intermédio eu o conquistei aos sarracenos e seguidamente, por livre vontade,
o adicionei ao património apostólico, mantendo intenção de ser estrénuo cavaleiro de S. Pedro e obedecer sempre
às ordens de Vossa Paternidade.», Hagiografia de Santa Cruz de Coimbra, op. cit., pp.112 e 113.
merecedor da conquista de um reino ; o intrepidus extirpator54
contra o Islão, e contra todos os
inimigos da fé cristã. É o mártir que dedica a sua causa a favor do único poder legítimo- o de
Deus e do seu representante terreno - cumprindo deste modo o ideal de miles Sancti Petri: a
mitificação à imagem de Cristo, o grande cavaleiro celeste - o “Justo e Verdadeiro” - que figura
no Apocalipse de S. João (cfr. Anexo VII), miles que combate pela sua glorificação eterna junto
do “Verbo de Deus”:
- « Depois, vi o céu aberto e apareceu um cavalo branco. O Cavaleiro chama-se «Justo e Verdadeiro». Ele julga e
combate com justiça (…) Estava vestido com um manto embebido em sangue e o seu nome é “Verbo de Deus”. Os
exércitos celestes seguiam-no montados em cavalos brancos e vestidos de linho branco e puro» 55
.
Considerações finais
Da análise das diversas versões da Claves Regni e da tradução encontrada na Monarquia
Lusitana, permanece como problemática a investigar a estranha posição de Frei António Brandão
relativamente àquela. Reputado historiador escrupuloso, está por explicar a razão que o levou a
ignorar por completo a sujeição do reino portucalense à Santa Sé e a condição que constituiu o
cerne nuclear daquele documento, bem como o motivo de uma tradução tão pouco rigorosa.
Quanto ao conceito de Cavaleiro de S. Pedro, apurámos que sofreu transformações operacionais
ao longo da História, estando conscientes porém da necessidade de averiguar a existência de
outras fontes que nos permitam uma reconstrução mais detalhada do seu surgimento, anteriores
às primeiras considerações de Gregório VII, remontando a Alexandre II ou mesmo antes.
54
Bula Manifestis Probatum, 8º. Centenário do Reconhecimento de Portugal pela Santa Sé, op. cit., p.233.
55 Apoc. XIX, 14-16 (Bíblia Sagrada, Herculano Alves e José Augusto Ramos (coordenação), Lisboa – Fátima,
Difusora Bíblica Franciscanos Capuchinhos, 2003).
Concluímos que o miles sancti Petri reúne um conjunto de características que o definem perante
a Santa Sé. Deve reconhecer a soberania do Papa, privilegiando o poder espiritual sobre o
temporal (e para isso as fórmulas de humildade presentes no juramento). Garante assim a
obtenção do favor e intercessão do Apóstolo de Cristo na vida terrena e na vida eterna, sendo sua
obrigação defender a Santa Sé e suas possessões, o que cumpre através de dois meios principais:
a entrega de um tributo que assegura a sua fidelidade e a consolidação dos bens materiais de
Pedro, e com os seus exércitos, em toda a extensão da terra da Cristandade. É um missionário e,
em última análise, um mártir de Cristo, que lhe concede as graças da santidade merecida, como
recompensa que lhe é devida, pela fidelidade para com a sua Igreja.
Consideramos também que, apesar dos inevitáveis discursos ideológicos, a cronística e o relato,
como principais fontes e testemunhos literários, constroem, na sua maioria, a imagem de Afonso
I como o príncipe ideal da cristandade, espelho da “Nova Milícia” de Bernardo, o miles Sancti
Petri na sua forma mais perfeita. Colocaríamos também a questão de o Príncipe portucalense ter
importado a ideia do cavaleiro militante contra os cismáticos tendo, por sua lealdade, sido
merecedor de constituir o seu próprio reino sob a benção de S. Pedro, isento de quaisquer outros
laços vassálicos seculares.
Gostaríamos de colocar nova tónica e lançar o repto para novos estudos atinentes à simbólica de
Afonso Henriques e do miles Sancti Petri. Exige-se uma reflexão mais demorada, de forma a
apurar qual o verdadeiro peso do conceito de miles Sancti Petri na efectiva visão e
“responsabilidade espiritual” do princeps medievo, assim como, se do ponto de vista da
elaboração textual ou iconográfica, o Cavaleiro de S. Pedro deteve algum tipo de dimensão
representativa.
Com o auxílio da numismática, apurámos que os morabitinos de Sancho I fazem representar o
cavaleiro, insígnia máxima da afirmação do poder régio, moeda de cuja existência não
possuimos conhecimento no reinado do seu predecessor. Podemos colocar a questão: - se a
existir a cunhagem de morabitinos no reinado de Afonso I , não seguiriam estes a mesma linha
de representação do cavaleiro Cristão que Sancho, (como Afonso II e Sancho II) representaram
como ícone áureo? São questões nas quais gostaríamos de reflectir.
Esperamos assim ter contribuído para o despertar de uma nova atenção para o estudo da Claves
Regni, que - do texto à simbólica- tantas vezes foi negligenciada pela nossa historiografia, e que
na verdade, para além do seu carácter político, constituiu um documento de indubitável valor no
tocante à expressão simbólica e da representação do primeiro monarca português.
ANEXO I
TRADUÇÃO SEGUNDO A MONUMENTA HENRICINA
(…)1 Conhecendo que as chaves do reino dos céus
2 foram concedidas por Nosso Senhor Jesus
Cristo ao Bem-aventurado Pedro, dispus tê-lo por padroeiro e advogado (…), para experimentar
na vida presente o seu socorro e o seu conselho nas minhas ocasiões favoráveis, e conseguir
alcançar os prémios da felicidade eterna, pelos seus méritos sufragantes.
Pelo que eu, Afonso (Adefonsus), rei Portugalense pela graça de Deus, por mão do senhor
G[uido], Cardeal Diácono, legado da Sé Apostólica, fiz homenagem ao senhor e meu pai o
Papa Inocêncio, [e] também ofereço a minha terra ao Bem-aventurado Pedro e à Santa Igreja
Romana, sob censo anual (…) de quatro onças de ouro, na condição e acordo, convém a saber,
de que todos os que possuírem a minha terra, após a minha morte, paguem ao Bem-aventurado
Pedro o mesmo censo, anualmente. E (…) eu, como cavaleiro3 que sou do bem-aventurado
Pedro e do Pontífice Romano, (…) tanto em mim próprio quanto na minha terra, ou nas coisas
que concernem à dignidade e à honra da minha terra, tenha a defesa e a consolação da Sé
Apostólica e (…) não receba nunca na minha terra nenhuma autoridade de senhor algum,
eclesiástico ou secular, salvo somente da Sé Apostólica ou de enviado da parte dela própria.
Feita carta de oblação e firma4, nos idos de Dezembro da era de 1181.
5 Eu, sobredito Afonso
(Adefonsus), Rei Portugalense, que mandei que esta carta fosse feita de minha livre vontade,
confirmo de minha própria mão, na presença de testemunhas idóneas. Eu, João, arcebispo de
Braga, conf[irmo]. Eu, João,6 bispo de Coimbra, confirmo. Eu, P[edro], bispo do Porto,
conf[irmo].
1 As reticências indicam a falta de palavras ou expressões presentes nas outras versões do documento Claves Regni
que traduzimos.
2 As palavras a negrito indicam discrepância relativamente às outras versões traduzidas.
3 Optámos por traduzir a palavra miles, que em rigor significa militante ou soldado, pelo termo cavaleiro, por ser o
utilizado pela maioria dos medievalistas e porque, de facto, apenas os príncipes e os notáveis (isto é, os cavaleiros)
tinham directa ligação com o Papa e seus legados.
4 Juramento prestado de que apenas se contendia em juízo pela verdade ou justiça da causa; sinal de alguém, escrito
de sua própria letra ou por outro a seu rogo ou por pessoa pública perante testemunhas (cfr. “Firma”, Dicionário da
História de Portugal, Joel Serrão (direcção), vol. III – Fiança-Lisboa, Porto, Livraria Figueirinhas, 1981, p. 41).
5 Os idos de Dezembro são no dia 13 desse mês, sendo a datação a da Era Hispânica.
6 O Bispo de Coimbra, de 1128 a 1146, foi de facto D.Bernardo (cfr. Pe. Miguel de Oliveira, História Eclesiástica
de Portugal, op. cit., p. 436), erro que suscitou a questão largamente debatida por vários historiadores.
ANEXO II
TRADUÇÃO SEGUNDO A MONARCHIA LUSITANA
Afonso (Alfonsus), pela graça de Deus Rei de Portugal, beija o[s] pé[s] ao santíssimo e
beatíssimo Papa, Senhor D. Inocêncio. Conhecendo que as chaves do reino celeste foram
concedidas por Nosso Senhor Jesus Cristo ao Bem-aventurado Pedro, dispus tê-lo por padroeiro
e advogado junto de Deus omnipotente, para experimentar na vida presente o seu socorro e o
seu conselho nas minhas circunstâncias desfavoráveis, e conseguir alcançar os prémios da
felicidade eterna (…). Pelo que eu, Afonso (Adefonsus), pela graça de Deus rei de Portugal, por
mão do senhor G[uido] Cardeal, Legado da Sé Apostólica (...)7 [e] de nosso senhor o Papa
Inocêncio, ofereço também a minha terra ao Bem-aventurado Pedro e à Santa Igreja Romana,
sob censo anual, convém a saber, de quatro onças de ouro, na condição, e acordo (…), de que
todos os que possuírem a minha terra, após a minha morte, paguem ao Bem-aventurado Pedro o
sobredito censo (…), e de que eu, como cavaleiro que sou do Bem-aventurado Pedro e do
Pontífice Romano, tanto em mim próprio, como na minha terra, ou nas coisas que concernem à
dignidade e à honra da minha terra, tenha a defesa e a consolação da Sé Apostólica, e de que não
receba nunca na minha terra nenhum sucessor de eclesiástico ou de senhor secular, salvo
somente da Sé Apostólica8 ou de enviado da parte da mesma.
Foi feita firma desta doação nos idos de Dezembro da Era de 1180.
Eu, sobredito Afonso (Alfonsus), Rei de Portugal, que mandei que esta carta fosse feita de
minha livre vontade, confirmo de minha própria mão, na presença de testemunhas idóneas.
Eu, João, arcebispo de Braga, conf[irmo]. Eu B[ernardo], bispo de Coimbra, conf[irmo]. Eu
P[edro], bispo do Porto, conf[irmo].
7 É aqui omitida a expressão “fiz homenagem”.
8 Todo este passo foi eliminado da tradução de Frei António Brandão, desde “tenha a defesa...” (cfr. Monarquia
Lusitana, op. cit., p. 136 fl. v).
ANEXO III
TRADUÇÃO SEGUNDO O ELUCIDÁRIO...DE VITERBO
Oblação do Rei Portugalense. Em Regesto de Lúcio 2.
Conhecendo que as chaves do reino dos Céus foram concedidas por Nosso Senhor Jesus Cristo
ao Bem-aventurado Pedro, dispus tê-lo por padroeiro e advogado, para experimentar na vida
presente o seu socorro e o seu conselho nas minhas ocasiões favoráveis, e conseguir alcançar os
prémios da felicidade eterna, por meio dos seus méritos sufragantes. Pelo que eu, Afonso
(Adfonsus), rei Portugalense pela graça de Deus, por mão do S[enhor] G[uido], Cardeal
Diácono, Legado da Sé Apostólica, fiz Homenagem ao Senhor e meu Pai o Papa. Submeto
portanto a minha terra ao B[em-aventurado] Pedro e à S[anta] Igreja Rom[ana], sob um censo
anual de quatro onças de ouro; na condição e acordo, convém a saber, de que todos os que
possuírem a minha terra, após a minha morte, paguem o mesmo censo anualmente ao B[em-
aventurado].Pedro. E (…) eu, como cavaleiro que sou do B[em-aventurado] Pedro e do Pontífice
Rom[ano], tanto em mim próprio, quanto na minha terra, e nas coisas que concernem à
Dignidade e à Honra da minha terra, tenha a defesa e a consolação da Sé Apostólica, e (…)
nunca receba na minha terra nenhuma autoridade de eclesiástico ou senhor secular algum, salvo
somente da Sé Apostólica, ou de enviado da parte dela própria.
Feita C[arta] de Oblação e Firma nos idos de Dezembro. Era de 1181. Eu, sobredito Afonso
(Adfonsus), Rei dos Portugalenses, que mandei que esta C[arta] fosse feita de minha livre
vontade, confirmo de minha própria mão, na presença de testemunhas idóneas.
Eu, J[oão], arcebispo de Braga, C[on]f [irmo]
Eu J[oão], bispo de Coimbra, C[on]f[irmo].
Eu P[edro], bispo do Porto, C[on]f[irmo].
ANEXO IV
JURAMENTO DO DUQUE ROBERTO
Ano de 1077
Eu Roberto, duque da Apúlia, da Calábria e da Sicília por graça de Deus e de São Pedro, desta
hora em diante serei fiel à santa Igreja Romana e à Sé Apostólica e a ti, Gregório, meu senhor,
Papa universal. Não farei parte de conselho ou facto do qual derive a perda da tua vida ou de teus
membros, ou a tua captura por meio de cilada desonesta. Nem revelarei em teu dano, com o meu
conhecimento, projecto que a mim tenhas confiado e me tenhas defendido revelar. Serei auxiliar
da Santa Igreja Romana e teu com o fim de obter, adquirir e defender a residência real de S.
Pedro e as suas possessões, conforme as minhas possibilidades, contra todos os homens, com
excepção da parte da Marca Firmana, e Salerno e Amalfi, da qual até agora não foi feita
definição, e ajudar-te-ei para que com segurança e honra conserves o Papado romano. A terra de
São Pedro que agora tens e que hás-de ter, depois de eu ter sabido pertencer ao teu domínio, não
invadirei nem procurarei adquirir, nem tão-pouco ousarei devastar enquanto [for] tua ou dos teus
sucessores que venham a ser ordenados para honra de São Pedro, salvo por autorização
categórica que tu me concedas, ou que os teus sucessores venham a conceder-me. O pagamento
da terra de São Pedro que eu tenha ou obtiver, tal como foi estipulado, procurarei com firme
juramento que o obtenha anualmente a Santa Igreja Romana. E também entregarei ao teu poder
todas as Igrejas, com os respectivos bens, que continuam sob o meu domínio, e serei seu
defensor para [assegurar a sua] fidelidade à Santa Igreja Romana. E se tu ou os teus sucessores
partirdes antes de mim desta vida, segundo o que me for recomendado pelos melhores cardeais,
clérigos Romanos e leigos, ajudarei a que seja elegido e ordenado um Papa para honra de São
Pedro. Tudo o que acima está escrito observarei para com a Santa Igreja de Roma, e para
contigo, com juramento inquebrantável, e observarei esta fidelidade para com os teus sucessores
ordenados para honra de S. Pedro, os quais, se a minha culpa não tiver persistido, me
confirmarão a investidura que por ti me foi concedida.
Escrito por Cipriano, no terceiro [dia] das calendas de Julho.
ANEXO V
JURAMENTUM REGIS9 CONCEBIDO POR GREGÓRIO VII
A partir desta hora e daqui em diante, serei fiel, por juramento inquebrantável, ao Bem-
aventurado Pedro apóstolo e ao seu vigário, Papa Gregório, que vive agora em carne: e tudo o
que o mesmo Papa me ordenar, sob estas palavras, convém a saber: Por verdadeira obediência,
cumprirei fielmente, assim como é conveniente a um Cristão. Na verdade, quanto à ordenação
das igrejas, e das terras ou censo que o imperador Constantino, e Carlos, deram a São Pedro, e
em relação a todas as igrejas ou proventos alguma vez oferecidos ou concedidos à Sé Apostólica
por alguns homens ou mulheres, e que estão ou venham a estar em meu poder, também isso
combinarei com o Papa, para não incorrer em perigo de sacrilégio e em perdição da minha alma;
e consagrarei a Deus e a S. Pedro, com o auxílio de Cristo, digna honra e serviço; e no dia em
que pela primeira vez o tiver visto, eu me tornarei fielmente, pelas minhas mãos, cavaleiro de S.
Pedro e seu.
9 Juramento do Rei.
ANEXO VI
TRADUÇÃO DA CARTA AOS PRÍNCIPES DA HISPÂNIA POR GREGÓRIO VII
Ano de 1073
Indica ao Conde de Roucy sob que condição [lhe] concedeu a parte da Hispânia que ele, por suas mãos,
conquistar aos Sarracenos. Proíbe aos outros príncipes de entrar com as suas tropas nesta mesma região
e reivindicar para si qualquer parte daquela província se não intervier um justo pacto a cumprir a
jurisprudência de São Pedro; por esta razão envia legados sobre essa matéria.
Gregório, eleito pontífice Romano, a todos os príncipes que queiram partir para a terra de
Hispânia, perpétua saúde no Senhor Jesus Cristo.
Cremos que não desconheceis que o reino da Hispânia pertenceu, desde tempos antigos, por
direito próprio, a São Pedro; e que (embora tenha, há muito tempo, sido ocupado por pagãos),
não tendo a lei da justiça, todavia, perdido ainda a sua força, não pertence a nenhum mortal, mas
apenas ex aequo à Sé Apostólica. Porque, na verdade, sendo Deus o garante, chegou uma vez
justamente [a ser] propriedade das Igrejas; e tendo permanecido, se não na utilização, pelo
menos por direito, [de propriedade] delas, ao longo da passagem dos tempos, não poderá ser
repartido sem legítima concessão. E assim o Conde Ebles de Roucy, cuja fama entre vós
julgamos não ser desconhecida, desejando entrar nessa terra para honra de São Pedro e
arrancá[-la] das mãos dos pagãos, obteve da Sé Apostólica esta concessão, a saber, que possuiria,
da parte que é de S. Pedro, aquela parte [da terra] de onde ele conseguisse expulsar os pagãos
com o seu zelo e juntando a si o auxílio de outros, sob a condição do pacto entre nós celebrado.
E todo aquele de entre vós que quiser ligar-se a esta empresa e labor, com toda a devoção da
caridade, tendo em mente a honra de S. Pedro, gera tal ânimo que da parte dele recebe, sereno,
quer socorro de defesa nos perigos, quer os prémios merecidos da fidelidade. Se, todavia, alguns
de vós, independentemente daquele [conde], com as suas próprias milícias conseguirem entrar
nalguma parte dessa mesma terra, convém que os exércitos se proponham, com espírito de
devoção, uma causa o mais justa possível, desde logo exprimindo em todos os [seus] votos e
estabelecendo com toda a sinceridade que, conquistada a terra, não façam a S. Pedro as mesmas
injúrias que aqueles que, desconhecendo Deus, agora a ocupam. Porque de facto não queremos
que nenhum de entre vós ignore isto, que se não decidirdes voltar-vos para aquele reino por um
pacto justo que cumpra a jurisprudência de S. Pedro, contrapôr-vos-emos, pela autoridade
apostólica, a [nossa] proibição de para ali vos dirigirdes, de preferência a que seja lesada a santa
e universal madre Igreja, sofrendo o mesmo da parte de seus filhos que suportou por parte dos
inimigos, não já em detrimento da sua propriedade, mas em detrimento da de seus filhos.
Eis porque enviámos este dilecto filho Hugo, cardeal e presbítero da Santa Igreja Romana, para
essa região, na boca do qual depositámos os conselhos que vos destinamos e decretos que devem
ser arrazoados de uma forma assaz cabal e clara, e estatuídos, em nossa representação.
Dada em Roma, II [dia] das calendas de Maio, décima primeira indicção.
Anexo VII
Fig.1 - O exército do céu. Apoc. XIX,11-16. Beato de LIÉBANA, Commentarium in
Apocalypsin; cópia ilustrada do Mosteiro de S. Mamede do Lorvão, DGARQ/ANTT,
Ordem de Cister - Mosteiro de S. Mamede do Lorvão, Livro 43 (C.F. 160), fl. 198.