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NOTA TÉCNICA1
Embrapa: o futuro chegou
[Cinco temas para discussão]
Zander Navarro2
Observação: fotografia de autoria do sociólogo José de Souza Martins, professor emérito da USP. Mostra uma
parede do Trinity College (Universidade de Cambridge, Inglaterra). Não existiria uma explicação para o
fechamento da janela, fato que vem se mantendo por alguns séculos. A fotografia (2010), intitulada “O que aconteceu?”, integra a série “Inquietação da parede num mundo sem janelas”.
1 Documento de circulação restrita - pede-se que não haja multiplicação e nem distribuição para terceiros, sem a
autorização do autor. Agradecimentos sinceros são devidos a um grupo de colegas, da Embrapa e externos à
Empresa, que leram o documento com antecedência e ofereceram valiosos comentários críticos. Sem citá-los,
todos os eventuais méritos da análise decorrem dessa generosa colaboração. Já os erros remanescentes e a
versão final do texto são de exclusiva responsabilidade do autor.
2 Engenheiro Agrônomo, Doutor em Sociologia, pesquisador concursado (efetivado em 2011) lotado na SIM -
Secretaria de Inteligência e Macroestratégia (Brasília). É professor aposentado da UFRGS (Porto Alegre).
Professor e pesquisador no “Institute of Development Studies” (IDS, Brighton, Inglaterra), entre os anos de
2003 e 2010. Foi pesquisador visitante nas universidades de Amsterdam, Toronto e no MIT (Cambridge,
Estados Unidos). Foi assessor especial do MAPA (2009-2011) e consultor de inúmeras organizações,
brasileiras e internacionais, governamentais e da sociedade civil. Livros recentes (autor e/ou organizador, em
coautoria): Agricultura brasileira. Desempenho, desafios e perspectivas (IPEA, 2010); Agricultura
familiar: é preciso mudar para avançar (Embrapa, 2011); A pequena produção rural e as tendências do
desenvolvimento agrário brasileiro: ganhar tempo é possível? (CGEE, 2013) e O mundo rural no Brasil
do século 21. A formação de um novo padrão agrário e agrícola (Embrapa e Unicamp, 2014).
2
[ Janeiro de 2015 ]
Nota de esclarecimento preliminar: esta Nota Técnica começou a ser escrita no início de novembro de
2014. Um mês depois, foi desencadeada uma reveladora discussão entre alguns pesquisadores da
Embrapa, motivada inicialmente por uma sugestão de leitura sobre o tema “inovação” (postada para
todos em 8 de dezembro). O debate, inicialmente circunscrito à lista oficial “Pesq-l”, contudo, sofreu
restrições por parte de dirigentes da Empresa, forçando o seu transbordamento para listas de discussões
não oficiais na rede virtual. Foram contribuições de imensa importância para a discussão central desta
Nota, que é analisar “o lugar da Embrapa” em nossos dias. Diversos temas aqui enfocados, direta ou
indiretamente, convergem para os temas discutidos naquele debate. O autor agradece aos colegas pelas
reflexões, tanto na lista oficial como nas discussões que, ironicamente, intitularia de “clandestinas”.
3
Sumário
Introdução (p. 3)
1. Primeiro desafio: expansão produtiva e o papel da pesquisa pública (p. 10)
2. Segundo desafio: qual o modelo tecnológico?Ou seriam modelos? (p. 21)
3. Terceiro desafio: a transição geracional na Embrapa (p. 37)
4. Quarto desafio: a governança da Embrapa - a necessidade de
aperfeiçoamentos (p. 42)
5. Quinto desafio: pesquisa agrícola e extensão rural. É aproximação
recomendável? (p. 57)
6. Conclusões (p. 63)
Introdução
“Estamos tão acostumados a nos esconder dos outros que terminamos nos escondendo
de nós mesmos” (La Rochefoucauld, 1665)
“A guerra das ideias é uma invenção grega – uma das invenções mais importantes de
toda a história. De fato, a possibilidade de lutar com palavras, em vez de lutar com
armas, constitui o fundamento de nossa civilização” (Popper, 1956)
“(...) Perhaps the single most important factor separating countries of the world that
have successfully sustained long-term productivity growth in agriculture from those that
have not is their national capacity in agricultural research. Countries that have built
national research systems capable of developing and adapting a continuous stream of
new technologies suitable for local farming systems are generally the ones that achieved
higher rates of long-term agricultural TFP growth” (FUGLIE et al, 2012, p. 10. Grifo
acrescido).3
Este é um comentário analítico elaborado tentativamente sob a forma de uma
“nota técnica” (NT). Portanto, pretende estar ancorado em fatos práticos, aplicados e
imediatamente identificáveis, além de fundar-se mais em injunções derivadas do mundo
real da agropecuária brasileira no período contemporâneo e, menos, em digressões
históricas ou especificamente teórico-conceituais. Utiliza a literatura disponível como
sustentação para a análise, sem recorrer aos cânones da redação científica. A Nota tem o
objetivo principal de oferecer à consideração do grupo dirigente maior da Embrapa,
incluindo ex-chefes e lideranças diversas, mas também ao seu corpo de pesquisadores,
diversas reflexões concisamente esquematizadas, relacionadas a um conjunto de cinco
processos em curso, cuja ação e resultados poderão ser potencialmente prejudiciais ao
3 FUGLIE, K. O. et al. Productivity Growth in Agriculture. An International Perspective. Wallingford: CAB
International, 2012
4
futuro imediato da Empresa. São, de fato, desafios e impasses que atualmente se
apresentam à Embrapa, os quais, no geral, ainda não parecem ter encontrado respostas
adequadas. Essas situações-problema consideradas de maior relevância, de diferentes
magnitudes e naturezas, sem dúvida, exigirão caminhos de solução muito variados entre
si e, alguns deles, de extraordinária complexidade. São temas apresentados com um
único e exclusivo intuito: estimular o debate interno. Espera-se que este ocorra de forma
abrangente e rigorosa, seguindo metodologias democráticas e participativas que possam
apontar luzes robustas para a reorganização em algumas de suas áreas internas e linhas
de atuação.
Deve ser também enfatizado, categórica e enfaticamente, que o autor desta NT
não se imiscui em disputas internas por posições de poder e o documento foi escrito sob
um sincero sentimento de busca do aperfeiçoamento institucional e da construção
coletiva da Empresa. A Nota não representa uma crítica pessoal a nenhum colega, ou
grupos de colegas, em especial àqueles que se esforçam atualmente para gerir a
Embrapa com grandeza de propósitos. Portanto, não é crítica direta à Diretoria ou a
embrapianos em particular, inclusive porque três dos desafios são problemas crônicos
que vêm sendo catalisados há diversas administrações, enquanto os outros dois são
processos que exigem a interpretação apropriada. A Diretoria Executiva, se entender
que a análise oferecida é embasada em razoável fundamento empírico e desejar
promover as mudanças necessárias, apresenta irrepreensível legitimidade para realizá-
las – e estou certo que contará com o apoio maciço da comunidade abrigada na
Embrapa, incluindo o autor da Nota.
Esses são comentários que, em especial e principalmente, pretendem sugerir a
necessidade de um decisivo e muito mais ousado esforço de “reinvenção da Embrapa”,
ante dois focos principais que merecem destaque já nessa introdução: (a) uma
inquietante sensação sobre a gradual desnecessidade da Embrapa como contribuinte
relevante para a modernização, a sustentabilidade produtiva e o crescimento da
produtividade geral da agropecuária, sentimento que parece espraiar-se no âmbito da
Empresa, embora ainda sem repercussões ampliadas entre a sociedade; (b) a
constituição recente de uma nova e dinâmica fase do desenvolvimento agrário e
agrícola brasileiros, discutida em publicação lançada neste ano.4 Trata-se de um
4 Conforme os principais argumentos apresentados em diversos capítulos do livro editado por BUAINAIN, A. M. et
al. O mundo rural no Brasil do século 21. A formação de um novo padrão agrário e agrícola. Brasília:
5
período emergente que em termos analíticos poderia ser interpretado como a “etapa
financeira” de um ciclo expansivo de produção que foi impulsionado a partir do final
dos anos sessenta. Além do crescimento explosivo da produção, as marcas principais
desta fase atual são a complexidade (muito além das facetas agronômicas ou aquelas
estritamente tecnológicas); o pressuposto do uso contínuo das inovações e o imperativo
da produtividade como principal determinante do negócio agropecuário; o domínio do
capital financeiro; a ampliação dos riscos e, como seu aspecto mais desconcertante, os
descaminhos do Estado e suas políticas (portanto, afetando igualmente a missão
institucional da Embrapa). Da mesma forma, como em outras atividades econômicas, as
dimensões sociais e ambientais também passaram a definir a “rationale” das atividades
agropecuárias, inclusive por imposições normativas. Nesta nova fase, a Embrapa não
teria ainda localizado qual seria o seu lugar mais adequado.
Adicionalmente, em velocidade nunca antes experimentada, o novo padrão vem
selecionando os “vencedores e os perdedores” e promovendo intenso processo de
seletividade social, condenando à marginalização a maior parte dos produtores rurais,
especialmente aqueles de menor porte econômico, produtivo e tecnológico. Enquanto os
aspectos acima referidos são normalmente associados, na literatura, à dimensão virtuosa
da nova fase de expansão ora em curso, este último aspecto representa a “dimensão
social perversa” do atual processo de desenvolvimento agrário no país. A vasta maioria
dos produtores está sendo alijada da atividade em face do acirramento concorrencial
instalado e do impacto de outros fatores que serão citados à frente. Lidar com essas duas
dimensões opostas é o maior desafio para todos os atores sociais e institucionais, direta
e indiretamente envolvidos com “o mundo rural”.5 É desafio que também se apresenta à
Embrapa, pois suas atividades de pesquisa agrícola, para serem consequentes, precisam
Embrapa (coedição com o Instituto de Economia da Unicamp), 2014. Disponível em sua versão completa nos
endereços a seguir referidos:
1. https://www.embrapa.br/busca-de-publicacoes/-/publicacao/998996/o-mundo-rural-no-brasil-do-seculo-21-
a-formacao-de-um-novo-padrao-agrario-e-agricola
2. https://www3.eco.unicamp.br/nea/images/arquivos/O_MUNDO_RURAL_2014.pdf
3. http://www.agrosecurity.com.br/biblioteca/estudos/
5 O que foi intitulado de “desenvolvimento agrário bifronte”, em artigo assinado pelo autor desta Nota e três outros
colegas. Ver BUAINAIN, A. M. et al, “Sete teses sobre o mundo rural brasileiro”, Revista de Política
Agrícola, ano XXII, nº 2, abril/junho de 2013, p. 105-121. Disponível em:
http://www.agricultura.gov.br/politica-agricola/publicacoes/revista-de-politica-agricola
6
interpretar e lidar com um aspecto estrutural que atualmente marca fortemente as
regiões rurais – sua profunda heterogeneidade produtiva e tecnológica.6
A NT reflete a experiência profissional do autor, como sociólogo pesquisador do
desenvolvimento agropecuário brasileiro e as decorrentes transformações na vida social
rural, assim como as particularidades da atividade econômica chamada “agricultura” –
pelo ângulo das Ciências Sociais Rurais e da Agronomia. Também reflete a percepção
do autor em relação à urgência das mudanças requeridas nas orientações e diretrizes
principais da Embrapa, reposicionando-a no âmbito do “admirável mundo novo” que
vem se estruturando nas regiões rurais brasileiras. Entende-se que se tais mudanças
internas não ocorrerem, fundadas em uma nova estratégia lógica de atuação, a Empresa,
provavelmente, não mergulhará em “crise institucional” e nem enfrentará algum
turbilhão administrativo nos anos vindouros. Mas, sem mudanças profundas (e
urgentes) a Embrapa dificilmente irá manter um papel relevante no desenvolvimento
agrícola futuro do país. Também não estará imune ao processo de decadência que se
instala em instituições e empresas (públicas ou não) que são incapazes de interpretar
mudanças contextuais e novas demandas, dos clientes e da sociedade. Há um risco ainda
mais grave em uma Organização que fomenta inovações destinadas a modernizar e
garantir a sustentabilidade da economia agropecuária, a qual vem se transformando em
ritmo vertiginoso. Se alguma dúvida persistir, bastaria comparar as tecnologias de hoje
e compará-las com a fronteira técnica de apenas duas décadas atrás, para perceber a
radicalidade das mudanças. E o futuro próximo promete ultimar a mesma comparação,
quando então o “moderno” de hoje será visto como quase irrelevante.
O sentimento de inquietação interno se avoluma a cada dia e atualmente são
visíveis diversos sinais de obsolescência da Empresa, em muitas de suas partes
componentes. Urge, portanto, provocar e concretizar as transformações institucionais
que possam produzir caminho mais promissor para o seu futuro imediato. O primeiro
ciclo de vida da Embrapa, completados os seus primeiros quarenta anos com
reconhecido sucesso, esgotou-se em significativa medida e gera, em nossos dias, uma
crescente hesitação sobre metas e objetivos, além de indefinições que são indesejáveis e
insustentáveis. Em particular, potencializa impasses institucionais derivados da
inexistência de uma consistente estratégia adequada ao momento vivido pela Empresa,
6 Ver VIEIRA FILHO, J. E., “Transformação histórica e padrões tecnológicos da agricultura brasileira”. In:
BUAINAIN et al, op. cit., 2014, p. 395-422.
7
o que pode fazer a explicitação de sua atual missão institucional uma frase que é
meramente retórica.
Parece ser inegável que é este o maior obstáculo que a Embrapa precisa vencer
atualmente: assegurar-se de que estaria sendo construído um sólido rumo, uma
estratégia assentada em missão institucional que seja lógica com os fatos e
compreensível para todos, os embrapianos e aqueles que externamente acompanham e
se relacionam com a Empresa. Um dos seus principais pesquisadores e ex-presidente,
Eliseu Alves, valendo-se de sua lendária objetividade e elegância, vê um contexto onde
prevalece um excesso de “procedimentos” que estaria afetando a produtividade final da
Embrapa, alertando que tal relação é inversa porque existem “(...) rumos obscuros,
tarefas que transcendem a formação dos pesquisadores, senso exagerado de confiança e
poder, obstáculos ao empreendedorismo, dispersão de esforços e excesso de
burocracia”.8 De fato, essas são palavras polidas para indicar, sob o manto de uma
finíssima ironia, exatamente o inverso. Ou seja, há realmente um “senso exagerado”,
mas não de confiança, e sim, entre muitos, de profunda hesitação, camuflada algumas
vezes por postura de soberba que é puramente defensiva, um comportamento ilusório
que supostamente protegeria a Empresa do verdadeiro cul-de-sac institucional
atualmente em curso, o qual em certa medida até independe da vontade ou da
consciência de parte de seus dirigentes, pesquisadores e os demais funcionários.
Outro especialista em temas relacionados à inovação na agricultura, sem se referir
diretamente à Embrapa, faz alerta semelhante, quando apresenta a pergunta: “(...) um
sistema que se implanta de forma virtuosa gera situações que perduram, estados
estacionários, ou equilíbrios dinâmicos? Ou ao contrário (...) a continuidade desse
sistema demanda soluções com crescente complexidade ou uma redefinição de seus
elementos dinâmicos? (...) sistemas complexos, baseados em conhecimento, geram
dependência de caminho. Tudo indica que a experiência do agronegócio brasileiro está
justamente a enfrentar esse grande dilema”.9 Somados os argumentos, parece ter
chegado a hora de mobilizar a coragem, a competência e a motivação transformadora de
todos os embrapianos de boa fé, para enfrentar os desafios descritos a seguir, pois
8 ALVES, E., “Fontes de inspiração da Embrapa”, in Revista de Política Agrícola, janeiro-março de 2014, ano
XXIII, nº 1, p. 129. Disponível em:
http://www.agricultura.gov.br/politica-agricola/publicacoes/revista-de-politica-agricola
9 SILVEIRA, J. M., “Agricultura brasileira: o papel da inovação tecnológica”, in BUAINAIN, A.M. et al, op. cit,
2014, passim (grifo acrescido).
8
decisões mais ousadas, algumas de problemática implantação, serão necessárias. A
escolha que vai se materializando parece ser cruamente dicotômica: ou a manutenção de
uma provável marcha à obsolescência e à derrocada, talvez até pacífica e alegremente,
como na fábula do flautista de Hamelin, ou a inevitável turbulência advinda de decisões
destinadas a concretizar a refundação da Embrapa, em busca de um novo ciclo que
possa ser igualmente virtuoso. Não existiria uma terceira via.
A Nota Técnica aponta, sustentada em breve argumentação (especialmente
empírica), alguns dos problemas principais e mais imediatos que precisam ser
discutidos com profundidade para embasar decisões e ações, muitas urgentes. Alguns
são de amplo escopo e gigantesca complexidade. Outros são mais específicos e
localizados. Se forem desafios confrontados com êxito, sinalizarão as soluções que
garantirão, à Embrapa, a possibilidade de navegar com mais segurança a sua segunda
geração de vida, associada às transformações sociais e econômicas da economia
agropecuária. Seu contrário, que seria a omissão ou fracasso na implantação de tais
mudanças, poderá situar a Empresa, em prazo até curto, no campo da irrelevância.10
A NT divide-se em cinco seções, antes de uma breve conclusão. A primeira
destaca a tendência mais ampla do processo de transformação estrutural das agriculturas
que se modernizam intensamente em regimes capitalistas. Realça também que ante tal
transformação, o termo “inovação” assume significados mais abrangentes, densos e
complexos, sob os quais as instituições estatais de pesquisa agrícola, como um padrão
recorrente em comparação com outros países, observam seu rebaixamento relativo ou
até mesmo seu ocaso, em face da capacidade técnica e da agilidade operacional dos
demais agentes privados produtores de inovações. Nesta seção recomenda-se que a
Embrapa passe a estudar detidamente o processo de criação e difusão de inovações e as
cadeias produtivas, pois são esses os “sistemas complexos” que estão sendo
estruturados ante à dinâmica econômica e financeira da agropecuária. A segunda seção
discute um tema urgentíssimo, que se relaciona diretamente à sua missão institucional:
conhecer intimamente o “modelo tecnológico” dominante e suas mudanças históricas e,
também, aferir a possibilidade de existirem “modelos” que possam coexistir. Aqui se
argumenta que a Embrapa ainda está demasiadamente presa à visão do passado que lhe
10 Por tratar de temas controversos e lidando com processos sócio-políticos sujeitos a distintas interpretações,
provavelmente muitos discordarão que este documento possa ser uma “Nota Técnica” propriamente dita, pois
nem sempre os argumentos podem ser sustentados em fatos empíricos de irrefutável comprovação. Saliente-
se, pelo menos, que esse foi o espírito condutor em sua elaboração.
9
deu origem, quando aquele padrão produtivo então hegemônico, de fato, na vida real já
foi transformado e caminha para direções muito diferentes. O modelo centrado no
melhoramento de variedades de sementes, em seu sentido clássico, vai perdendo a sua
posição determinante e sendo ultrapassado, em função da verdadeira revolução
científica e tecnológica do período contemporâneo, divisando novos formatos que
passam a orientar a estrutura produtiva da agricultura mais avançada. Segundo todas as
evidências, caminhamos para a possibilidade real de customizar formatos tecnológicos
para as propriedades rurais individuais. Estaríamos, assim, na direção de uma
possibilidade inédita de especificidade tecnológica circunscrita a cada caso decisório
particular.
A terceira seção comenta rapidamente sobre a renovação dos quadros de
pesquisadores promovida pela Embrapa no último decênio e salienta as virtudes do
processo, mas, igualmente, destaca as ameaças para o seu futuro, em face da
inexistência de um processo de transição adequado entre tais gerações. Sugere-se, nesta
seção, que reside aqui um de seus riscos mais imediatos, pois poderão estar sendo
enraizados estilos de pesquisa que a dissociam de sua missão principal. Além disso, a
energia (e alta qualificação) dos novos pesquisadores, que é extremamente bem-vinda
ao processo de renovação, estaria sendo mantida parcialmente inerte. São colegas que
estão à espera de lideranças que conduzam esse novo corpo de pesquisadores a partir de
uma estratégia geral da Embrapa, que hoje parece ser inexistente.
A quarta seção da NT apenas levanta aquele desafio que é, talvez, o mais
premente e perturbador de todos – a confusa governança administrativa da Empresa.
Esse é tema apenas esboçado, pois precisaria ser organizado mais detidamente em outra
NT ou documento específico. Como adentra subtemas de maior controvérsia, esta Nota
tem o cuidado de apenas alertar para determinados aspectos, sem analisá-los em
profundidade, à espera de decisões superiores decididas a enfrentar o tema e sua
delicadeza político-administrativa. Mas, sem dúvida, é preciso aceitar como premissa
que a Embrapa vive atualmente uma profunda incerteza administrativa, produzindo
mais amarras imobilizadoras do que aquelas que naturalmente nasceriam em
organizações que atingem relativa maturidade. Como seria lógico, esse estado de
ambivalência reflete, primordialmente, como antes citado, a inexistência de uma
estratégia, pois sua missão institucional vem sendo fortemente erodida em anos
recentes, ainda sem substituição por outro ideário norteador. Por esta razão, discute-se
10
nesta parte (sucintamente) o documento intitulado “Visão 2014-2034”, pois foi o mais
recente esforço de superar esse quadro de incertezas.11
Finalmente, a quinta e última seção conclui apontando um tema de crescente
presença interna, mas que é encorpado principalmente por demandas (e pressões)
externas, que é a relação entre uma instituição de pesquisa científica e uma atividade
finalística e operacional, como a assistência técnica, embutida na empresa sob a
expressão “transferência de tecnologias”. É também tema de relativa dificuldade, mas
os desenvolvimentos recentes estão indicando, de fato, uma grande ameaça para o
futuro da Embrapa. Como se arguirá nesta parte, a maciça presença de tal atividade
poderá condenar a área de pesquisa à marginalização ou, até mesmo, ao seu
desaparecimento, conforme outras experiências o demonstraram à exaustão.
1. Primeiro desafio: expansão produtiva e o papel da pesquisa pública
É preciso ressaltar, inicialmente, que as dúvidas atuais acerca do lugar e do escopo
da pesquisa agrícola pública decorrem, em larga proporção, do próprio sucesso da
Embrapa nos últimos quarenta anos.12
Mas a dimensão da empresa como produtora de
tecnologias relevantes que sejam “suitable for local farming systems” (como destacado
na epígrafe) foi sendo diminuída com o passar do tempo, exatamente porque a
modernização agrícola brasileira tem sido marcada por enorme êxito, ampliando a
produtividade, elevando os montantes físicos da produção, gerando mais valor e
incorporando continuamente novos agentes privados no processo de desenvolvimento
técnico-produtivo. Os números e exemplos são bem conhecidos e não requerem
repetição nesta NT, mas apenas as lições a serem extraídas, que são universais, quando
comparados a outros casos nacionais similares. Esse aprendizado é sistematicamente
arrolado a seguir.
(i) A literatura demonstra que períodos históricos de sucesso da modernização
agrícola produzem riqueza crescente e, desta forma, atraem novos participantes
privados, os quais, por sua vez, são também produtores de novas tecnologias agrícolas e
11 EMBRAPA, Visão 2014-2034. O futuro do desenvolvimento tecnológico da agricultura brasileira. Brasília:
Embrapa, Secretaria de Inteligência e Macroestratégias (SIM), 2014.
12 Sempre que houver referência genérica à atuação da Embrapa como produtora de pesquisa agrícola, entenda-se
que a referência inclui as OEPAS, ou “o sistema nacional de pesquisa agropecuária”. Como é notório, há uma
significativa variação entre tais instituições no tocante à sua eficácia operacional, algumas completamente
irrelevantes e outras com relativa pujança na área, além de outras que ostentam histórias institucionais
admiráveis. Para evitar comentários específicos, registre-se a advertência: o autor não está ignorando as
contribuições estaduais, mas pretende iluminar um foco particular - a Embrapa.
11
inovações em geral. O sucesso da ação transformadora da Embrapa, desde a sua
fundação, semeou um campo fértil para o surgimento de seus futuros competidores, o
que é natural que ocorra em processos desse tipo. Mas, não se tem percebido que muitos
dos novos entrantes são, de fato, aliados potenciais da Embrapa e assim precisaria ser
entendido nos anos vindouros. Os novos participantes, cujo papel é cada vez mais
estratégico e necessário, são principalmente (ou quase exclusivamente) privados e, desta
forma, provavelmente serão mais ágeis do que as instituições públicas, seja na
identificação das demandas ou na captura de fatias do mercado.13
(ii) Esses mesmos períodos de intensificação tecnológica, se forem bem sucedidos
na modernização das estruturas de produção, desenvolvem diferentes cadeias produtivas
(ou cadeias de valor, filières ou cadeias agroalimentares, entre outras denominações
consagradas na literatura) e, desta forma, vão gradualmente integrando,
articuladamente, novos participantes privados, atraídos pela disputa do “bolo da
riqueza” que vai sendo gerado com a transformação das regiões produtoras.14
O itálico é
deliberado, pois enfatiza que uma cadeia produtiva, necessariamente, desenvolve
relações lógicas (comerciais, tecnológicas, financeiras) entre os seus participantes,
criando crescente interdependência entre os integrantes das cadeias. Mas, atenção: não
se trata de uma interdependência “neutra”, pois supõe, da mesma forma, uma hierarquia,
cada vez mais incisiva e consequente, mantida pela força econômica e capaz de impor a
racionalidade técnico-produtiva nesse ramo da produção. A existência de um padrão
hierárquico indica que no seu devido tempo um ou poucos agentes privados
participantes vão assumir-se como “dominantes”, subordinando os demais.
(iii) As cadeias produtivas variam muito entre si, nos espaços sociais
determinados pelo sistema agroindustrial correspondente. Algumas são regionalmente
circunscritas e muito rígidas, com o comando indiscutível de uma empresa.15
Outras são
13 “(...) Era 1989 (...) A agricultura era caseira e feijão e arroz atingiam 25% da área de grãos plantada no país. O
mercado externo ainda representava pouco (...). Hoje, o cenário é outro (...). Apenas o agronegócio trouxe
US$ 982 bilhões nominais nesses 25 anos”. In: “Vaivém das commodities”, Folha de São Paulo, 25 de maio
de 2014. O processo de “espraiamento da riqueza” nas regiões rurais não se restringe às esferas puramente
econômicas, pois vai transformando mentalidades, a cultura, os modos de vida e a organização da
comunidade política. Essas são as transformações que precisam ser conhecidas analiticamente, pois
determinam os comportamentos sociais. Ver STREECK, W., “How to study contemporary capitalism?”. In:
European Journal of Sociology, 43(1), p. 1-28, maio de 2012.
14 Outra expressão é “sistema agroindustrial” (SAI). Uma excelente discussão que mapeia o tema encontra-se em
ZYLBERSTAJN, D., “Coordenação e governança de sistemas agroindustriais”. In: BUAINAIN, A. M. et al,
op. cit., 2014, p. 267-294.
15 Os casos de cadeias produtivas mais rígidas e controladas, em processos de modernização da agropecuária,
ocorrem com maior frequência entre os ramos da produção de pequenos animais e, na produção vegetal, em
12
também rígidas, em termos tecnológicos, mas a primazia econômica ainda é objeto de
competição entre as firmas principais – é o caso da cana-de-açúcar, provavelmente
também sendo este o caso da cadeia produtiva da soja. E existem também as cadeias que
são mais “frouxas”, pois se distribuem em espaços geográficos muito amplos e tem
diversos agentes privados disputando entre si o controle da cadeia. Por serem assim, não
desenvolveram ainda um modo de comando, tecnológico e econômico. Por isso, são
situações produtivas de grande heterogeneidade (um exemplo seria o caso da produção
de milho no Brasil). Como se espera, a rigidez de uma cadeia produtiva observa relação
direta com a magnitude de riqueza produzida no ramo analisado. Não esquecer: a
cadeia somente se constitui porque produz valor e, portanto, existirá sempre um
conflito em torno da apropriação e da distribuição do valor geral produzido na cadeia. É
ilusório julgar que alguma cadeia de produção se estruture fundada em alguma
“harmonia distributiva” e, portanto, os conflitos fazem parte dos arranjos existentes.
(iv) Dessa forma, conhecer empiricamente as cadeias produtivas, detalhadamente,
em situações de modernização agrícola, passa a ser fundamental para todos os
participantes, inclusive as organizações públicas de pesquisa agrícola. Ainda mais
decisivo será entender as relações das cadeias com os demais mercados, outras cadeias
e, assim, a teia de relações entre todos os elos econômicos e financeiros. Desconhecer as
características empíricas de cada cadeia produtiva, suas especificidades, os
participantes, suas hierarquias internas e a distribuição da riqueza gerada, significará
desconhecer as tendências e estruturas da produção e suas transformações e, no caso
específico da Embrapa, os requerimentos tecnológicos que vão se desenvolvendo ao
longo do tempo. Somente a partir do conhecimento dessas características, será possível
estabelecer as necessidades tecnológicas da cadeia e, por conseguinte, também aquelas
que precisariam ser operadas no interior dos estabelecimentos rurais. Portanto, se
desvendará com precisão o locus no qual a Embrapa deveria situar-se, visando
maximizar a eficácia de sua ação. Uma agenda de pesquisa que seja colada às
realidades empíricas – este deve ser o ponto de partida.
casos de hortaliças e alguns tipos de frutas. Examine-se, no caso brasileiro, a história notável da suinocultura,
analisada por MIELE, M. e MIRANDA, C., “O desenvolvimento da agroindústria brasileira de carnes e as
opções estratégicas dos pequenos produtores de suínos do Oeste Catarinense no início do século 21”. In:
NAVARRO, Z. e KANADANI, S. (orgs), A pequena produção rural e as tendências do desenvolvimento
agrário brasileiro. Ganhar tempo é possível? Brasília: CGEE, 2013, p. 201-232. Disponível em:
http://www.cgee.org.br/publicacoes/pequenos_produtores.php
13
(v) Contudo, se este é o ponto de partida, fortemente vinculado ao presente, isto
não significa, é claro, que a construção de cenários futuros e seus desafios possam ser
objetivos secundários. Pelo contrário, a resiliência do setor agropecuário depende de
enorme esforço analítico e intensa discussão interpretativa sobre o futuro provável dos
sistemas agroalimentares e sobre o processo de inovações. Isto significa que a variável
“futuro” é parte essencial da compreensão que a Embrapa deve estar atualmente
internalizando em suas estruturas de pesquisa, se antecipando sobre os
desenvolvimentos hoje em gestação (ou mudanças apenas intuídas a partir de algumas
evidências esparsas). São inúmeros os temas gerais merecedores de estudo: estamos
pesquisando os sistemas agrícolas ou sistemas os agroalimentares e o “alimento” em sua
inteireza? Ou estamos apenas analisando “commodities agrícolas”? O que
conheceríamos além da exportação de mercadorias primárias, em seus destinos de uso e
consumo? E o tema das mudanças climáticas, que encontra dentro da Embrapa diversas
opiniões de especialistas influentes que julgam que “a tecnologia resolverá o problema”
em algum momento futuro, e assim erroneamente secundarizam o assunto? Como
discutir o tema da “sustentabilidade” seriamente, além dos jargões usuais utilizados –
por exemplo, seria possível discutir, de fato, “sustentabilidade social”, em termos
práticos, quando a lógica econômica produz tendências concentradoras que
marginalizam a maior parte dos produtores rurais? Tais questionamentos sugerem que o
tema das “inovações”, no mundo globalizado e intensamente sujeito às interferências
dos processos organizacionais, a crescente complexidade e a intensificação tecnológica,
vai muito além das cadeias produtivas, e este parece ser um conhecimento que ainda
passa ao largo da agenda orientadora da Embrapa.
Na realidade, como se insiste nesta NT, são dezenas os temas associados à
complexidade e às transformações que se associam ao tema das inovações, os quais
estariam exigindo ampla discussão. Outra ilustração: em face do foco central da ação da
Embrapa, por exemplo, haveria a necessidade de intensa discussão sobre o tema da
tecnologia e seu significado mais profundo, seus processos genéticos e sua evolução em
sistemas econômicos que se expandem. Qual a natureza da tecnologia e seu significado
conceitual? Existiriam “teorias sobre a tecnologia”? São muitos os desafios analíticos,
conforme um dos mais reconhecidos especialistas e estudiosos do assunto:
“(…) What is technology in its nature, in its deepest essence? Where does
it come from? And how does it evolve? (…) And so we are caught
between two huge and unconscious forces: our deepest hope as humans
14
lies in technology; but our deepest trust lies in nature. These forces are
like tectonic plates grinding inexorably into each other in long, slow
collision. The collision is not new, but more than anything else it is
defining our era. Technology is creating the dominating issues and
upheavals of our time. We are moving from an era where machines
enhanced the natural (…) to one that brings in technologies that resemble
or replace the natural (…) we are moving from using nature to
intervening directly with nature. And so the history of this century will be
about the clash between what technology offers and what we feel
comfortable with (…) Technology, once a means of production, is
becoming a chemistry” (ARTHUR, W. B., 2009, p. 11-12, 25).16
(vi) Um aspecto relevante na gênese e no desenvolvimento das cadeias produtivas
diz respeito a um processo inevitável gerado nas estruturas econômicas e financeiras sob
as quais se enraízam os diferentes modos de hierarquização. No caso das cadeias
produtivas agropecuárias, um aspecto saliente das relações entre os agentes privados
participantes é a crescente subordinação dos produtores rurais. Esses, nas cadeias mais
rígidas, praticamente não tem mais poder decisório acerca das facetas gerais de seu
negócio agrícola, especialmente o formato tecnológico, cada vez mais imposto de fora
para dentro.17
Existe, em consequência, uma relação inversa entre a rigidez da cadeia
(em termos de coordenação) e a autonomia decisória dos produtores. Esses manterão
um relativo grau de autonomia apenas nas cadeias mais “frouxas”, mas se tornarão
crescentemente encurralados, à medida que o engessamento decisório em uma cadeia
produtiva começar a se estabelecer. Tal fato produz inúmeras implicações concretas,
uma delas sendo a perda de qualquer importância prática das visões sobre assistência
técnica e extensão rural que são centradas nas decisões supostamente “autônomas” dos
produtores rurais, tema também comentado na última seção desta NT. Essas são visões
que persistiram no passado, porém estão cada vez mais distantes das realidades rurais
brasileiras. Por esta razão, exige-se, em nossos dias, mais abertura analítica e
operacional para discutir os processos de transferência de tecnologia que melhores
resultados produziriam no Brasil rural.
(vii) Dois aspectos adicionais são igualmente cruciais, quando se estruturam
cadeias produtivas em setores agropecuários modernizados. Um deles diz respeito ao
significado da palavra “inovação” no tocante às transformações produtivas e
16 ARTHUR, W.B. The Nature of Technology. What it is and How it Evolves. Nova York, Free Press, 2009.
17 Uma ilustração de uma cadeia rígida com um agente privado “dominante” é o caso da cadeia produtiva da
suinocultura no Oeste catarinense, antes citada (ver MIELE, M. e MIRANDA, C., op. cit.). Em 1985, eram 55
mil os produtores integrados e, atualmente, seriam menos de dez mil. Esse processo de seleção dos
participantes na cadeia produtiva, sem dúvida alguma, é tendência que ocorrerá similarmente na pecuária de
leite, ora em plena expansão naquele estado sulista.
15
tecnológicas do meio rural. Conforme a visão de um especialista, em texto recente,
referindo-se ao caso brasileiro, “(...) destaca-se aqui o isolacionismo da produção
intelectual da economia agrícola, sociologia rural e geografia agrária (para ficar nas
mais evidentes) que não tomou conhecimento do mais importante debate vivenciado no
mundo nos últimos 25 anos sobre o papel da ciência, tecnologia e inovação no
desenvolvimento das nações”.18
Trata-se de comentário crítico que, sem dúvida, poderia
ser estendido mais amplamente a muitas das atividades da Embrapa em seu primeiro
“ciclo de vida”. A discussão sobre as transformações produtivas do mundo rural
brasileiro, nas últimas quatro décadas, ficou estreitamente presa à noção de
“transferência de tecnologia” e os fatores que favoreceriam (ou impediriam) a “adoção
de inovações” nos estabelecimentos rurais. Ou seja, essas últimas (as inovações)
entendidas apenas como técnicas e processos tecnológicos no interior dos
estabelecimentos rurais. Ignoraram-se, no geral, a constituição das cadeias produtivas e
a necessária amplitude do conceito de inovação, uma vez constituídos os sistemas
agroalimentares (ou cadeias de valor).
Da mesma forma, manteve-se o foco estreitamente limitado à “tecnologia em
geral”, não sendo estudadas devidamente as mudanças na organização e na coordenação
daqueles sistemas destinados a produzir mais valor em função das persistentes
inovações introduzidas – ou seja, inovação é muito mais do que meramente “novas
técnicas” utilizadas pelos produtores.19
Em termos mais simples: parte expressiva da
Embrapa (com efeitos imediatos em sua agenda de ação) preferiu não ver que a
crescente complexidade da produção agropecuária vem se ampliando notavelmente
além da porteira dos estabelecimentos rurais, multiplicando as mudanças
organizacionais, financeiras, tecnológicas e as formas de administração, entre outras,
nas cadeias produtivas. Todas essas são mudanças que visam a criação de mais valor, no
geral apropriado por outros agentes privados que não os produtores rurais. Esses
últimos, com o desenvolvimento das cadeias, vão se tornando relativamente menores no
18 SALLES-FILHO, S. e BIN, A., “Reflexões sobre os rumos da pesquisa agrícola”. In: BUAINAIN, A. M. et al, op.
cit., 2014, p. 427.
19 Para ilustrar: uma simples embalagem diferenciada pode “criar valor”, assim como a adoção de códigos de barra
que sugerem existir rastreamento em toda a cadeia, garantindo a qualidade dos produtos. Um supermercado
participante pode criar uma seção especial, anunciando que todos os produtos ali vendidos têm “controle total
de qualidade” – e, obviamente, ampliando os preços de venda. São inovações que escapam da produção direta
e a maior parte dos produtores poderá até mesmo desconhecer que estas inovações existem.
16
seu interior, em termos decisórios ou no tocante ao seu porte econômico relativo.20
A
história institucional recente indicou que enquanto se multiplicaram os fatos empíricos
sobre a crescente complexidade da produção agropecuária, a empresa preferiu manter o
foco, as prioridades e a decisões nos temas exclusivamente tecnológicos dentro da
porteira dos estabelecimentos rurais.
Outra implicação diz respeito aos “modelos teóricos de interpretação”. No caso
específico da transformação tecnológica em sistemas agrícolas, a teoria que dominou
durante tantos anos, centrada na seminal contribuição de Yujiro Hayami e Vernon
Ruttan, igualmente se tornou relativamente obsoleta em face da constituição dos
modernos “sistemas complexos” constituídos para abrigar o processo de formação de
inovações nos sistemas agroalimentares. Nesse caso específico, como se repetirá em
alguns momentos desta NT, reside outro problema embrapiano de alguma gravidade:
enquanto a densidade econômica e financeira da agropecuária brasileira foi crescendo
exponencialmente, diminuiu na mesma proporção a capacidade analítica da Empresa
sobre os mesmos temas.21
(viii) Finalmente, há que se ressaltar o foco desse item aqui enfatizado como “o
primeiro desafio” que se apresenta à missão maior da Embrapa nos próximos anos –
qual o lugar da pesquisa pública à luz de tais transformações? Se a modernização
agrícola implica na estruturação de cadeias produtivas, nas quais se ampliam as
inovações, aos poucos as instituições estatais de pesquisa agrícola vão sendo
marginalizadas. Por esta razão, os dados estatísticos e os poucos estudos realizados
indicam que em países com setores agrícolas avançados, as instituições públicas de
pesquisa agrícola gradualmente: (a) perdem seu lugar em termos de importância, no
tocante aos tipos de técnicas e processos tecnológicos desenvolvidos e às agendas de
20 Como exemplo de processos de produção de valor e os mecanismos diferenciados assumidos pelas inovações, ver
os artigos de autoria de Hildo Meirelles de Sousa Filho. Um deles, intitulado “Geração e distribuição de
excedente em cadeias agroindustriais: implicações para a política agrícola”. Encontra-se em BUAINAIN, A.
M. et al, op. cit., 2014, p. 317-336. Outro artigo é intitulado “Oportunidades e desafios para a inserção de
pequenos produtores em mercados modernos” (coautoria de Renato Manzini Bonfim) e foi publicado em
NAVARRO, Z. e KANADANI, S. (orgs), op.cit, p. 71-100. Disponível em:
http://www.cgee.org.br/publicacoes/pequenos_produtores.php
21 Hayami, Y. e Ruttan, V. W. Desenvolvimento agrícola: teoria e experiências internacionais. Brasília: Embrapa,
1988 (originalmente publicado em inglês pela Johns Hopkins University Press, 1985). Consulte-se também
VIEIRA FILHO, J. E. e SILVEIRA, J. M., “Mudança tecnológica na agricultura: uma revisão crítica da
literatura e o papel das economias de aprendizado”. In: Revista de Economia e Sociologia Rural, volume
50, nº 4, p. 721-742, 2012, assim como o pioneiro artigo de POSSAS, M. L.; SALLES-FILHO, S. e
SILVEIRA, J. M., “An evolutionary approach to technological innovation in agriculture: some preliminary
remarks”. In: Research Policy, 25, p. 933-945, 1996. Igualmente fundamental para este debate é o livro de
W. Brian Arthur, op. cit, 2009.
17
pesquisa, e (b) tem investimentos relativamente menores em C&T vis-à-vis as empresas
privadas, o que igualmente contribui para secundarizar o papel das instituições públicas
de pesquisa agrícola.22
Esse é o primeiro repto a ser destacado nesta NT - o Brasil
conseguirá trilhar uma tendência radicalmente distinta, comparado às agriculturas
avançadas submetidas a lógicas capitalistas? Ante o extraordinário quadro de
intensificação produtiva experimentada pela agropecuária brasileira, por que esperar que
a Embrapa mantenha a pujante ação que foi sua marca durante o primeiro “ciclo de
vida”, competindo com um número crescente de agentes privados?23
Ressalte-se, contudo, que o tema sobre o “lugar social” das instituições públicas
de pesquisa agrícola, em processos de expansão capitalista, é ainda um debate em
andamento. Primeiramente, em função de problemas de pesquisa que sempre existem,
os quais jamais atrairão o interesse dos agentes privados, o que reforça a necessidade da
presença de instituições públicas de pesquisa agrícola. Sobretudo, contudo, no caso
brasileiro, em decorrência da abissal heterogeneidade estrutural que caracteriza “o
mundo rural” no país. Somente a pesquisa pública poderá lidar com essas diferenças,
pois elas, no geral, afastam os agentes privados. Mais claramente: o caso brasileiro é
profundamente marcado pela desigualdade social em regiões rurais e por uma
impressionante heterogeneidade produtiva e tecnológica e, dessa forma, existe amplo
espaço para a ação da pesquisa pública. O desafio é aprofundar o conhecimento
empírico sobre as realidades rurais, assim assegurando uma identificação correta dos
temas de pesquisa prioritários.
1.1 Primeiro desafio: recomendações
Sintetizado esse desafio, cabe uma ação imediata. A Embrapa está diante do fato,
inequívoco e reconhecido em muitos documentos internos, mas ainda sem impor uma
22 Em recente debate interno envolvendo os pesquisadores, através da lista oficial “Pesq-l”, Judson Ferreira
Valentim, que foi Chefe Geral da Embrapa Acre, foi cristalino sobre esta tendência, quando escreveu que
“(...) ao analisar o Balanço Social de 2013, verificamos que apenas 7% do resultado financeiro são
decorrentes de tecnologias geradas nos últimos 15 anos. Os outros 93% são decorrentes de tecnologias
geradas nos primeiros 25 anos da Embrapa. Cabe notar que os últimos 15 anos coincidem com o avanço do
setor privado na inovação agropecuária, particularmente na geração de cultivares e pacotes tecnológicos para
commodities como milho, soja e algodão. Nessas commodities a contribuição atual da Embrapa para os
resultados é muito pequena” (Mensagem eletrônica de 11 de dezembro de 2014).
23 Conforme um dos raros estudos que analisaram o tema, em uma amostra de países de renda elevada, “(...) In 2007
(…) the private sector spent $19.7 billion on food and agricultural research (56 percent in food manufacturing
and 44 percent in agricultural input sectors) and accounted for about half of total public and private spending
on food and agricultural R&D in high-income countries” (FUGLIE, K. O. et al, “Research investments and
market structure in the food processing, agricultural input, and biofuel industries worldwide”. In: Economic
Research Report, 130, dezembro de 2011, Washington: ERS/Department of Agriculture. Disponível em:
http://www.ers.usda.gov/media/199879/err130_1_.pdf
18
reorientação das suas metas e diretrizes - a agropecuária é uma atividade econômica
formada de diferentes ramos e sub-ramos produtivos, os quais vão construindo cadeias
produtivas de diferentes tipos e naturezas pari passu com o processo de modernização
agrícola. Embora a afirmação seja uma primária obviedade, no cotidiano da Empresa
esse fato ainda não parece ser traduzido em posicionamento adequado na construção de
agendas de pesquisa e diversas outras iniciativas. É curioso observar que ante a
iminência do Brasil tornar-se o maior produtor mundial de alimentos, com sua
agropecuária crescentemente globalizada, muitos ainda idealizam esse setor produtivo
meramente como um “modo de vida” ou, ainda mais grave, como uma atividade que
poderia prescindir de imperativos econômicos.24
Assim, a Embrapa requer estar articulada, valendo-se de diferentes mecanismos
de cooperação, com os agentes econômicos principais em cada caso particular. Fechar-
se (relativamente) em si mesma, produzindo novas agendas de pesquisa a partir de
esforços relativamente desconectados (ou desinformados) das realidades produtivas,
pouco produzirá, a não ser ocasionalmente e em situações de puro acaso. Excetuando-se
as iniciativas especificamente destinadas a perscrutar o futuro (que são esforços de
pesquisa essenciais), não faz sentido algum desperdiçar recursos públicos produzindo
esforços tecnológicos distantes das realidades econômicas e produtivas. Pelo contrário,
o sucesso de uma “Embrapa de segunda geração” dependerá, fundamentalmente, do
aprendizado construído a partir de interações virtuosas da Empresa com os agentes
privados das cadeias produtivas. Sobre esse novo momento, a Embrapa deixará de ser
“competidora” e seu papel principal deverá ser o desvendamento da lógica geral da
governança dos sistemas agroindustriais, permitindo que possa atuar contrariamente a
desvirtuamentos derivados da ação de agentes concentradores de poder econômico,
enquanto favorece processos de distribuição de conhecimento, igualmente socializando
os benefícios do processo de inovações. Essas são funções das empresas públicas.
Em síntese e abreviadamente: por um lado, a Embrapa, atualmente, está em
alguma medida afastada do mundo real da produção agropecuária, do ponto de vista
econômico e financeiro (inclusive por não contar com o conhecimento que seria
necessário, por parte da Economia Rural, sobre os processos produtivos). Mas, por
24 Ou ainda nas situações, incluindo também doutores universitários e não apenas pesquisadores embrapianos, que
recuperam do passado remoto o termo “campesinato”, para assim identificar setores da pequena produção
rural no Brasil. Aqui se adentra o terreno do patético.
19
outro lado, quase certamente, não é assim do ponto de vista tecnológico ou agronômico,
para os quais um exército de pesquisadores de alta qualificação se dedica
cotidianamente nas suas unidades de pesquisa. Este é o mais valioso ativo da empresa,
mas é necessário aceitar um fato da história: inicialmente (nos anos setenta) o foco
tecnológico bastou para animar o crescimento da produção agropecuária, em face do
primitivismo produtivo então reinante. Mas, nos anos mais recentes, há uma inversão e
os focos econômico e financeiro passaram a ser determinantes. Ilustrando: se nos anos
iniciais da modernização agrícola, que foi uma década de preços reais expressivos para
diversos produtos agropecuários e a base tecnológica a ser modificada era ainda
primária e sem nenhuma sofisticação, três décadas depois tudo mudou. A parte mais
dinâmica da agropecuária se tornou fortemente capitalizada e as exigências de capital se
tornaram muito mais expressivas e, dessa forma, o econômico passou a subordinar o
tecnológico.
Portanto, a agropecuária é, em nossos dias, primordialmente, uma atividade
econômica e esse foco, necessariamente, deve ser o ponto de partida para a ação
institucional da Embrapa. Trata-se de uma observação acaciana, mas apropriada para
uma Empresa na qual pelo menos uma parte dos pesquisadores e dirigentes não vê aqui
o eixo determinante e causal. Insista-se: nada que não seja economicamente viável o
será sob algum outro ângulo. Caso se mantenha movida, principalmente (ou
exclusivamente), por um foco tecnológico, rebaixando as considerações econômicas
para um plano secundário, a Embrapa se descolará da realidade e perderá contato com
as decisões dos participantes das cadeias produtivas.25
Por esta razão prática, a empresa
precisa reconstituir mais ambiciosamente a sua capacidade analítica de interpretar o
desenvolvimento agrário e agrícola do Brasil sob a perspectiva das Ciências Sociais
Rurais – sobretudo, a Economia. Na origem do CECAT (depois extinto, atual SIM), se
defendeu que a nova unidade deveria ser “sediada na Avenida Paulista”, uma metáfora
geográfica que propunha, exatamente, esta aproximação da Embrapa com o mundo real
da economia agropecuária e seus principais agentes privados. Infelizmente, esta
intenção ainda não prosperou adequadamente no âmbito interno, pois o foco
25 Inovação implica em risco e não é sempre possível aferir ex-ante a viabilidade econômica de alguma mudança,
técnica ou organizacional. Da mesma forma, é também preciso considerar que a Embrapa, necessariamente,
precisará sempre desenvolver atividades de pesquisa destinadas ao futuro, cujos imperativos econômicos
podem ser ainda desconhecidos. O ponto aqui a ser ressaltado, contudo, é que as evidências estariam
indicando que a Empresa tem mantido perigosamente distante de sua pauta as exigências econômicas
atualmente impostas pelo desenvolvimento da agropecuária brasileira.
20
essencialmente tecnológico é amplamente dominante. É um erro surpreendente a
Embrapa não contar com uma unidade específica destinada a pesquisas sociais e
econômicas, nos moldes do “Economic Research Service”, mantido pelo Departamento
de Agricultura dos Estados Unidos ou, até mesmo, uma unidade similar ao IFPRI,
vinculado à rede CGIAR.26
A iniciativa dos anos iniciais da Empresa, quando foram constituídos os “centros
nacionais de pesquisa por produto”, de integrar economistas às equipes
multidisciplinares de cada centro, não produziu os efeitos esperados. A maior parte
desses técnicos e pesquisadores, após alguns anos, se envolveu em atividades
administrativas e muitos foram se desligando das atividades propriamente de pesquisa.
E a Embrapa, com raras e honrosas exceções, foi sendo privada de conhecimento
analítico sobre os focos econômicos e financeiros, exatamente quando a agropecuária
brasileira foi ficando mais densamente envolta em tais dimensões. Abriu-se assim um
abismo interpretativo entre “o tecnológico”, que continuou a ser dominante no âmbito
interno da Empresa, e “o econômico-financeiro”, que gradualmente passou a ser
dominante na vida real da produção. Confrontada com essa visível tendência, a
Embrapa já deveria ter constituído uma unidade específica para lidar com a necessidade
de produzir análises sociais e econômicas que fossem convergentes com as
transformações em desenvolvimento nas regiões rurais.
Ensinamentos da história: complexidade e expansão econômica produzem a padronização e a simplificação produtiva
Partindo-se do pressuposto de ter sido o modelo tecnológico que moldou a agropecuária brasileira inspirado no caso norte-americano, a partir do final da década de 1960 e, também, aceitando-se que vivemos sob a lógica de um regime econômico capitalista (nem todos aceitam esta segunda premissa, por inacreditável que possa parecer), as tendências observáveis naquele país do Norte deveriam estar sendo analisadas cuidadosamente, para que pudéssemos iluminar o nosso próprio futuro, observadas, certamente, as diferenças entre os dois países. Se o fizéssemos, existiria mais cautela em implantar certos programas governamentais e a Embrapa seria igualmente mais restritiva em algumas de suas atividades.
Tome-se, por exemplo, o componente dedicado à “integração lavoura-pecuária-florestas” do chamado “Programa ABC” instituído pelo MAPA, com a colaboração técnica da Embrapa. Do ponto de vista agronômico, trata-se de proposta irresistivelmente sedutora, pois seria o sonho de ocupação dos recursos naturais no mundo agrícola, desenvolvendo paisagens de uso da terra e exploração produtiva que encantariam qualquer observador. Mas, são combinações econômicas viáveis? E, também, seriam combinações cuja complexidade os produtores rurais estarão dispostos a
26 CECAT era o “Centro de Estudos e Capacitação”, tendo sido substituído pela SIM (Secretaria de Inteligência e
Macroestratégia). O IFPRI é o “International Food Policy Research Institute”, mantido pela rede CGIAR
(“Consortium of International Agricultural Research”).
21
administrar? O desenvolvimento da agricultura nos Estados Unidos demonstra, com nitidez estatística, que a crescente complexidade dos sistemas agroalimentares gradualmente forçou os produtores a desenvolverem a especialização, padronizando seus sistemas agrícolas e concentrando-se em número cada vez menor de cultivos. A necessidade de comandar conhecimentos que se tornaram complexos e o acirramento concorrencial puseram poucas alternativas aos produtores – ou serem os melhores em poucos cultivos (ou criações) ou verem reduzidas as suas chances de permanecer no negócio. O gráfico abaixo demonstra tais comportamentos sociais em pouco mais de um século, com a diversificação produtiva desabando ao longo do tempo. Primeiramente, houve a separação entre a produção animal e a vegetal e, posteriormente, as propriedades passaram a se tornar mais e mais especializadas em um número menor de cultivos. Em uma atividade econômica (a agricultura) que não permite a diferenciação do produto, a especialização simplificadora da produção move-se pela busca incessante da produtividade, como a única forma de garantir o lucro final. Por essas e outras razões, é improvável que o sistema ora proposto no Brasil venha a ser aceito por número considerável de produtores, pois a combinação complexidade + acirramento concorrencial também está em pleno desenvolvimento nas regiões mais dinâmicas da agricultura brasileira.
Estados Unidos. Cultivos principais distribuídos por proporções de
propriedades rurais, 1900-2010(Fonte: Economic Research Service, Departamento de Agricultura, 2013)
0
10
20
30
40
50
60
70
80
90
100
1900 1910 1920 1930 1940 1950 1960 1970 1980 1990 2000 2010
% de propriedades
Milho
Algodão
Trigo
Soja
2. Segundo desafio: qual o modelo tecnológico? Ou seriam modelos?
Inicialmente, é preciso um esclarecimento algo simplório, mas nem sempre
percebido imediatamente: o formato tecnológico que chamamos de “agricultura
moderna” é uma longa construção social com antecedentes remotos, embora tenha
seguido uma linha mais nítida de encadeamento de processos a partir de meados do
século 19. Diversas contribuições em termos de novas técnicas e descobertas são
anteriores, desde a chamada “primeira revolução agrícola”, mas, para os efeitos desta
NT se considerará que o coração do padrão tecnológico associado à agricultura moderna
teria nascido com a dupla Mendel e Liebig. É um forçado exagero, reconheça-se, mas o
objetivo aqui é apenas insistir que observamos um período aproximado de oitenta anos
22
durante o qual aquele modelo se constituiu em sua inteireza (tendo as descobertas de
Mendel como o ponto inicial). Como resultado, suas facetas principais se
materializaram na década de 1930 e, com a expansão econômica dos Estados Unidos,
no final daqueles anos, a agricultura moderna e seus impactos na reconfiguração da
paisagem agrícola se tornaram realidade, a partir de diversas iniciativas experimentadas
nas principais regiões rurais daquele país. Nasceu, naqueles anos, o padrão tecnológico
da agricultura moderna. É um formato centrado na semente e seu melhoramento
desenvolvido através das pesquisas experimentais, observadas as demais práticas
recomendadas (fertilização do solo, controle de pragas e doenças, entre outras) e os
requerimentos de um ecossistema determinado. Como a última etapa tecnológica da
agricultura moderna foi o desenvolvimento do controle químico de pragas e doenças, a
era derradeira associada a este processo histórico de transformações tem sido intitulada
de “era da química”, conforme o gráfico reproduzido adiante.
Os dados reproduzem a evolução dos rendimentos físicos de milho e de trigo nos
Estados Unidos, cobrindo um período de aproximadamente cem anos. Inúmeras lições
poderiam ser extraídas a partir do exame desses dados. A principal delas sendo a
verificação sobre os efeitos nos rendimentos a partir da década de 1940, nos Estados
Unidos, quando uma combinação virtuosa entre o completo “pacote tecnológico” agora
disponível e uma política de incentivos à modernização agrícola tornou-se realidade.
Essa expansão não nasceu do acaso, pois o crescimento dos rendimentos físicos,
especialmente no caso do milho, refletiu inúmeras iniciativas realizadas em diferentes
regiões agrícolas, muitas operadas décadas antes. São fatores antecedentes de grande
relevância para determinar, sobretudo, os comportamentos das famílias rurais e sua
receptividade em relação ao progresso técnico.
Em um extraordinário livro, Mauro Lopes mostrou que os Estados Unidos, ao
emergirem como a principal potência agrícola do planeta, a partir daqueles anos citados,
estavam, de fato, colhendo os resultados de centenas de iniciativas anteriores de seus
produtores rurais e das instituições ligadas ao “mundo rural”, as quais foram enraizando
as condições que, posteriormente, viabilizariam a implantação da agricultura moderna
no país. Muitas das iniciativas se concretizaram ainda nas últimas décadas do século 19.
Em especial, o livro analisa a trajetória das organizações agrícolas nos Estados Unidos e
23
o processo de ação política dos produtores rurais.28
Além disso, foi crescimento que
exigiu um fato que a literatura posteriormente enfatizou, já discutido na primeira seção:
a agricultura moderna seria um conjunto interdependente de técnicas e práticas, as quais
exigiriam sua completa aplicação, para produzir os resultados desejados e que acabaram
sendo observados.
Fonte: diversas (elaboração do autor)
Esse padrão tecnológico, que poderia ser intitulado de “modelo melhorista”,
contudo, gradualmente começou a ser transformado, a partir da década de 1980.
Decorreu do advento de técnicas e processos ligados à biotecnologia, igualmente
impulsionados pela revolução dos sistemas computacionais e outros campos científicos
que foram emergindo no período contemporâneo, todos convergindo para uma
verdadeira “revolução científica e tecnológica” da qual somos todos participantes (e, no
caso da Embrapa, protagonistas) nesse singular período histórico expansivo que ora
observamos. A semente manteve sua centralidade, mas agora submetida a verdadeiros
processos industriais de “desmontagem e reconstrução”, dos quais a transgenia é apenas
uma das técnicas disponíveis e, certamente, a mais discutida publicamente. Trata-se de
28 LOPES, M. R. Agricultura política. História dos grupos de interesse na agricultura. Brasília: Embrapa, 1996.
Ver, em especial, os capítulos 1 a 5 (p. 11-110). Por exclusivo preconceito ideológico (pois é publicação
dedicada à história rural estadunidense), o livro de Lopes tem sido pouco lido e comentado. É outra
manifestação da pobreza analítica reinante entre nós, quando se lembra de que o processo de modernização da
agropecuária brasileira foi montado a partir da experiência norte-americana do pós-guerra. Logicamente, seria
fundamental conhecermos profundamente a experiência daquele país, para entendermos em parte o nosso
próprio desenvolvimento agrário. A lógica e o pensamento racional, contudo, não parecem fazer parte do
substrato mais profundo de nossa cultura e dos nossos comportamentos sociais. Sempre optamos
primeiramente, com pueril entusiasmo, pelo pensamento mágico.
24
uma nova “era da biologia”, como às vezes se intitula em alguns estudos a respeito.29
Sob esse novo momento, as práticas de pesquisa convencionais da Agronomia vêm
sendo modificadas, pois a capacidade de “abrir molecularmente e reconstruir sementes”
dessa nova etapa de desenvolvimento tecnológico comandado pela biotecnologia pode
prescindir, muitas vezes, de alguma das demais fases agronômicas antes associadas ao
“pacote da agricultura moderna”. Não se trata, por certo, de ignorar o ambiente e a
natureza sistêmica da produção agrícola (pelo contrário), mas apenas enfatizar que o
foco rigidamente interdependente do formato tecnológico da etapa anterior está sendo
modificado, pois algumas das partes do “pacote” vêm ocupando a primazia, em termos
de seus impactos no resultado final da produção e da produtividade.30
Por tais razões, parece estar no horizonte próximo uma possibilidade ainda
inédita, mas revolucionária para o futuro da agricultura: a customização do formato
tecnológico de cada estabelecimento rural específico. Com o uso de bancos de dados
atualmente existentes (cada vez mais completos), somados ao mais moderno que a
tecnologia desenvolveu, um produtor específico poderá esperar, exclusivamente para o
seu estabelecimento rural, a recomendação de um padrão tecnológico único. Exclusivo
porque eventualmente diferirá de todos os demais, inclusive de seus vizinhos. E tal
modelo tecnológico poderá ser sugerido de longe, por um serviço de assistência técnica
que apenas tenha acesso aos dados particulares daquele estabelecimento. Conforme o
exemplo sucintamente descrito no box à frente, o produtor que for capaz de manejar tal
complexidade e enfrentar com êxito as vicissitudes da lógica econômica, aumentará a
expectativa de ampliar seus ganhos e a escala de seu negócio agropecuário. Se este é um
futuro próximo discernível e factível, são inúmeras as implicações que precisariam ser
29 Um livro já relativamente antigo, que antecipou tais transformações foi escrito por GOODMAN, D. et al. Da
lavoura às biotecnologias. Agricultura e indústria no sistema internacional. Rio de Janeiro: Editora
Campus, 1990 (especialmente os capítulos 1 e 2). Livros que discutiram o desenvolvimento passado dos
sistemas agrários e a formação do padrão tecnológico da “agricultura moderna” são MAZOYER, M. e
ROUDART, L.. História das agriculturas no mundo. São Paulo: Editora da UNESP, 2009. Consulte-se
também CHONCHOL, J. Sistemas agrarios en América Latina. México: Fondo de Cultura Ecnómica,
1996. Sobre o papel dos transgênicos, a bibliografia é vasta e, como exemplo, consulte-se GOMES, W. S. e
BORÉM, A., “As contribuições da biotecnologia para o desenvolvimento do agronegócio”. In: TEIXEIRA,
E. C. et al. A contribuição da ciência e da tecnologia para o desenvolvimento do agronegócio. Viçosa:
Editora da UFV, 2013, p. 317-341.
30 O foco “melhorista” ainda é amplamente dominante na Embrapa. Somada as considerações desta seção sobre os
novos modelos tecnológicos, com a anterior, que enfatizou a crescente predominância dos atores privados,
não deveria ser nenhuma surpresa a perda de importância da Empresa no mercado de sementes. Destaquei
esse ponto em documento escrito em outubro de 2012 e distribuído internamente (“Um ano de Embrapa: uma
visão impressionista”, manuscrito não publicado).
25
discutidas em profundidade no âmbito de uma empresa de pesquisa agrícola, como a
Embrapa.
Neste ponto, um bosquejo analítico é necessário, pois parecerá contraditório que
exista a tendência geral à possibilidade de desenhar uma receita tecnológica específica
para cada estabelecimento rural e esta garantir, necessariamente, a sua sobrevivência na
atividade. Se existir a possibilidade de propor um arranjo tecnológico específico,
supostamente deveria existir também a chance de sua permanência como produtor
agrícola, mantendo-se forte do ponto de vista econômico e resistindo à competição com
os demais atores econômicos das cadeias produtivas.
Na prática, em ambientes de recente modernização capitalista, o tecnológico e o
econômico são processos que caminham com lógicas próprias e paralelas, ainda que
necessariamente articulados. De certa forma, repete-se aqui o impasse que foi sendo
desenvolvido ao longo da história da Embrapa, pois a customização do “modelo
tecnológico” para cada estabelecimento rural recolhe a excelência agronômica existente
(que caracterizou a primeira fase da organização) e, ante as inovações disponíveis
atualmente, é a especificidade que é iminente de se tornar viável para os
estabelecimentos rurais. Contudo, sendo a agricultura uma atividade econômica,
existem determinantes causais que são externos, antecedentes e dominantes sobre os
estabelecimentos rurais e que conformam, prioritariamente, as chances dos formatos
tecnológicos agronomicamente adequados para cada caso específico.
Em termos mais simples: a possibilidade de customização de formatos
tecnológicos é específica e proposta do ponto de vista agronômico, se fixa apenas em
resultados produtivos a partir das particularidades de cada estabelecimento (tipos de
solos, declividade, recursos hídricos disponíveis, mão de obra que pode ser mobilizada,
entre outros aspectos). Mas o estabelecimento rural mantém “relações com o mundo”
(econômico-financeiro) e com os mercados, e esses são os determinantes principais.
São os fatores que, em última instância, garantem as chances ou não de permanência na
atividade e, por isto, devem ser priorizados em termos de produção de conhecimento. O
corolário (urgente) é imediato: se irá existir a customização dos formatos tecnológicos e
esses não forem ancorados, preliminarmente, em sua sustentação econômica, serão
propostas técnicas que tenderão a fracassar. Ainda mais diretamente: formatos
tecnológicos se constroem em espaços privados particulares, mas os processos
econômicos são necessariamente gerais. Os primeiros podem garantir a máxima
26
produtividade, mas é meta que não garante per se a proteção contra a competição
econômica e os processos seletivos que esta enseja.
Sem diversos outros comentários adicionais, talvez seja suficiente sugerir dois
possíveis impactos, um geral e outro específico. Em termos mais gerais, a customização
do padrão tecnológico em cada propriedade rural exigirá, em especial, o “manejo da
complexidade” e capacitações bastante particulares, para dar conta da intensidade
tecnológica e organizacional decorrentes. O que acontecerá com a maior parte dos
produtores rurais brasileiros, quando trinta por cento deles sequer sabem ler, de acordo
com os dados censitários? Esse futuro que se projeta, portanto, certamente aprofundará,
ainda mais, o processo de concentração da produção agropecuária, nas mãos dos poucos
produtores que poderão ser capazes de lidar com a complexidade que vai sendo formada
nas regiões rurais do capitalismo avançado. O comentário específico diz respeito à
agenda de pesquisas da Embrapa, pois esta ainda se estrutura em boa medida segundo
os ditames de um “modelo melhorista”, muito provavelmente porque a primeira geração
de seus pesquisadores foi assim formada. Parece urgente, portanto, abrir um amplo
debate interno sobre as tendências do modelo tecnológico ora sendo formado nas
regiões rurais de maior dinamismo econômico e produtivo, as quais vão construindo
formatos tecnológicos que ultrapassam aquele modelo centrado no melhoramento de
novas variedades. Em termos mais provocativos: parte, talvez significativa, da pesquisa
patrocinada pela Embrapa ainda tem a mente no passado, ao mesmo tempo em que um
futuro expressivamente distinto já começou a comandar a produção e os sistemas
agroindustriais.
O futuro da atividade econômica “agricultura”
Em recente reportagem (01/12/2014), o jornal “New York Times” relatou as características da produção agrícola moderna, descrevendo alguns aspectos de um estabelecimento rural no estado de Indiana. A matéria é reveladora das tendências atuais do “modelo tecnológico” que está se concretizando como o dominante, evidenciando a íntima relação entre a intensificação tecnológica e a produção agrícola. Mostra diversos aspectos indicativos de uma tendência à “customização do modelo tecnológico”, como realçado nesta NT.
A reportagem é também ilustrativa das tendências mais gerais, destacando-se três aspectos principais: (a) a necessidade de comandar conhecimentos complexos para extrair a máxima produtividade possível, permitindo ao produtor sobreviver à concorrência; (b) a sintomática referência ao filho do vizinho, que já trabalha como empregado do produtor que é o centro da matéria jornalística, uma referência ao processo mais geral de “diferenciação social” que tipifica a expansão da agricultura capitalista, e (c) a tendência à concentração da produção, sugerida pelo crescimento da propriedade e do volume monetário do negócio.
27
Trata-se de extraordinária matéria, em face das inúmeras lições e o aprendizado geral contido, explicitamente ou nas entrelinhas da descrição oferecida aos leitores. Para a finalidade desta NT, talvez baste a reprodução de um cartaz desenhado pelo próprio produtor, mantido em seu escritório principal, na propriedade. A figura é uma fabulação do futuro imediato da atividade econômica “agricultura”, mas já vivida pelo produtor, seus familiares e o seu cotidiano. A agricultura propriamente dita, conforme o desenho, é apenas uma parte de uma complexa estrutura, envolvendo um sem-número de outros agentes econômicos. Sugere, da mesma forma, a rede financeira que cerca o produtor e seu negócio e, igualmente, a densa base técnica e o moderníssimo aparato de dados e comunicações (drones, aviões e satélites) que já determinam diversas decisões sobre a produção e suas marcas mais distintivas. É uma ilustração do formato tecnológico “customizado” que, gradualmente, vem tomando conta da agricultura que se moderniza e o centro da rede de relações, curiosamente reproduzida no desenho, não é a propriedade, mas a “nuvem” que armazena todos os dados, internos e externos, os quais permitem a construção da especificidade tecnológica e econômico-financeira da atividade particular desse produtor rural.
Fonte: New York Times, 1 de dezembro de 2014 (http://www.nytimes.com/2014/12/01/business/working-the-land-and-the-data.html?_r=0)
2.1 E os temas sociais?
A argumentação até aqui apresentada poderia sugerir, prima facie, um aparente
determinismo econômico e tecnológico. Seria este o caminho para o desenvolvimento
agrário brasileiro que gradualmente se tornará o exclusivo? Se existe um processo de
expansão econômica que concentra a produção agropecuária, enquanto desenvolve
simultaneamente um processo de seletividade social que marginaliza parte significativa
dos produtores rurais, como lidar com tais tendências? Como seria logicamente
esperada, em termos práticos, a combinação complexidade + acirramento
28
concorrencial aprofunda a diferenciação social e produz (como referido anteriormente)
“vencedores e perdedores”.31
Em um país que enraizou um fortíssimo padrão de
desigualdade social, marcado por um dos mais altos indicadores de concentração
fundiária, associado às diferenças produtivas profundas entre as regiões rurais, é
evidente que um período expansivo oferecerá chances relativamente mais promissoras
aos estabelecimentos de maior escala integrados aos mercados, com menores custos de
transação, maiores produtividades e mais preparados para enfrentar a complexidade e os
seus competidores. Contrariamente, a multidão de pequenos produtores, com poucos
recursos, relativamente desinformados sobre as relações econômicas e financeiras e suas
armadilhas e, igualmente, sem políticas de apoio adequadas, gradualmente vem se
vendo empurrada contra a parede. Suas chances de persistir no negócio agropecuário,
cada vez mais, vão sendo reduzidas. Sobre este tema, alguns comentários gerais são
necessários.
Primeiramente, deve ser enfatizado que existe um “modelo geral”, tanto
econômico como tecnológico – a agricultura moderna em regimes econômicos
capitalistas. É padrão que desenvolve algumas leis universais, independentes das
especificidades históricas de cada caso nacional. Por esta razão, nesta NT os exemplos
são extraídos do caso norte-americano, por duas razões principais: (a) por existirem
dados censitários desde 1840, permitindo comparações históricas e o exame detalhado
das tendências estruturais de tal padrão de desenvolvimento; (b) por ter sido o berço da
agricultura moderna, que depois se estendeu para o restante do mundo, incluindo o
Brasil. Dessa forma, trata-se de uma história rural que aponta algumas tendências
gerais, que precisariam ser conhecidas em profundidade.
Em segundo lugar, existem as especificidades nacionais, as quais impõem o que
seria típico do desenvolvimento agrário brasileiro. Por exemplo, sendo um país
continental, a heterogeneidade das transformações produtivas será mais acentuada do
que seria o caso de um país de dimensões mais modestas, conforme demonstra a
literatura disponível. Também por ter sido um país marcado pela escravidão, cujas
31 O conceito de diferenciação social surgiu com o nascimento da Sociologia e foi fundamental para discutir a nova
divisão do trabalho derivada da industrialização (e urbanização) na Europa do século XIX. As origens do
conceito remontam ao Iluminismo Escocês (Ferguson, Millar), posteriormente inspirando Marx, Durkheim e
outros autores fundadores da disciplina. A expressão teórica mais densa se encontra na obra de Parsons. É um
conceito central para entender os grupos e classes sociais existentes nas regiões rurais e suas facetas
principais (incluindo as opções tecnológicas), embora ignorado na discussão brasileira sobre “agricultura
familiar”, por exemplo.
29
atividades agrícolas caracterizaram um “modelo agroexportador”, os índices de pobreza
são igualmente estruturais e, embora tenham sido diminuídos em função de recentes
políticas de transferência de renda, ainda são muito presentes nas regiões rurais.
Não se estendendo em comentários adicionais sobre inúmeros outros aspectos que
seriam também relevantes, deve ser ainda citado um terceiro aspecto, que introduz os
temas que deixam de ser primordialmente econômico-financeiros e tecnológico-
produtivos, passando também a ser “social”. Para tanto, observe-se a famosa tabela
construída com os dados apurados em 2005 e, no ano seguinte, publicados no último
censo disponível (dados já defasados em uma década!). Esses dados foram agrupados
por Eliseu Alves e seus colaboradores e talvez sejam os dados mais relevantes
publicados nos últimos anos. Embora Alves seja um pesquisador-ícone da Embrapa, é
de se lamentar que não se tenha feito divulgação ampla desses resultados, pois são
dramáticos, conforme a tabela mostrada adiante. São dados que demonstram
numericamente diversos processos econômicos em curso, assim como suas implicações
sociais. Em especial, a tabela se tornou objeto de análise preocupante em função da
aguda concentração do valor da produção agropecuária, a partir da qual se demonstrou
que um diminuto grupo de produtores (0,62% do total), altamente tecnificados, seria
responsável pela metade da produção agropecuária brasileira (e apenas 13%
responderiam por quase 90% do total da produção).32
Para os propósitos principais desta NT, contudo, os dados sintetizados na tabela
permitem introduzir a “problemática social” do desenvolvimento agrário no país na
atualidade. Grosso modo, com algum exagero estatístico, o exame da tabela permite
concluir que um vasto contingente de estabelecimentos rurais, variando entre 2,5
milhões a 3 milhões (praticamente dois terços do total de estabelecimentos) tem chances
escassas de permanecer como produtores agrícolas nos próximos anos, em suas regiões
de moradia e de trabalho, ainda que eventualmente parte dessas famílias permaneça
morando no campo. Comandam atividades agrícolas tão reduzidas que o valor bruto de
produção (VBP) auferido é igualmente minúsculo e, desta forma, são famílias rurais que
dificilmente permanecerão na atividade em um período de tempo curto a médio. O
segundo estrato, englobando aproximadamente um milhão de estabelecimentos,
32 Eliseu Alves e seus colaboradores publicaram diferentes artigos analisando os dados censitários. No tocante aos
dados da tabela, o artigo mais impactante se intitula “Lucratividade na agricultura” e foi publicado na Revista
de Política Agrícola, ano XXI, nº 2, p. 45-63, 2012, Brasília. O artigo está disponível em:
http://www.agricultura.gov.br/politica-agricola/publicacoes/revista-de-politica-agricola
30
provavavelmente forma o tão falado “estrato médio” de produtores rurais, os quais
teriam alguma chance, caso encontrem diversas políticas de apoio, incluindo o acesso à
tecnologia moderna. E, finalmente, existiria o terceiro estrato (aproximados 500 mil
estabelecimentos rurais) que parece ser aquele que constitui o “grupo dos vencedores”,
a elite responsável pela maior parte da produção agropecuária brasileira.
O Brasil e o mundo rural contemporâneo
Brasil. Concentração da renda e pobreza
(Censo de 2006)
Sal. min.
mensal
Número de
estabelec. %
Renda
bruta (%)
rb/est./ sal. min.
mensal
(0 a 2] 2.904.769 66,01 3,27 0,52
(2 a 10] 995.750 22,63 10,08 4,66
(10 a 200] 472.702 10,74 35,46 34,49
>200 27.306 0,62 51,19 861,91
Total 4.400.527 100,0 100,0 10,45
Dados do IBGE, Alves et al. (2012)
Apontada essa configuração geral, no entanto, permanece uma longa lista de
perguntas sobre as realidades rurais, iniciando-se pela mais óbvia: quais são, quantos
são e onde residem os subtipos de produtores, extraídos daquele grande primeiro grupo
que, em tese, estaria condenado ao desaparecimento em prazo curto a médio? Esta é
pesquisa inexistente, ainda que pudesse ter sido realizada a partir dos microdados
censitários. Dessa forma, o Estado brasileiro, o que inclui a Embrapa, tateia no escuro
sobre suas recomendações tecnológicas e outras políticas, pois sequer produziu ainda
uma fotografia empírica minuciosa sobre as evidências concretas relativas à
heterogeneidade demonstrada por indicadores gerais e nacionais. No caso específico da
Embrapa, essa deficiência é demonstrativa de outra de suas insuficiências no campo das
pesquisas sociais, comprobatórias da lamentável inexistência de uma unidade dedicada
às pesquisas econômicas e sociais. E, sem dúvida, deixando outra pergunta no ar: como
desenvolver uma agenda de pesquisa agronômica “colada às realidades rurais”, se tais
estudos não existem? Ou, então, se ampliada a pergunta para o campo da extensão rural,
como recomendar formatos tecnológicos aos produtores rurais, se esse inexistente
diagnóstico não aponta as diferenças de renda, a disponibilidade de força de trabalho e
31
de outros recursos (terra e tecnologia disponível), de capital e de conhecimento sobre
mercados, nas diferentes regiões rurais? Ficamos, assim, caminhando a esmo e
especulando sobre o mundo da produção. A Empresa, em face das transformações
recentes em curso nas regiões rurais, especialmente aquelas de maior dinâmica
produtiva, tem sido incapaz de produzir fotografias precisas dos processos econômico-
financeiros em curso.
2.2 Segundo desafio: recomendações
A principal recomendação derivada das observações acima é imediata: é
necessário um esforço muito maior e ambicioso, mobilizando todos os pesquisadores e
analistas, no sentido de, por um lado, analisar e conhecer as tendências do
desenvolvimento agrário brasileiro e suas marcas distintivas e, de outro lado, as
tendências mais gerais das transformações do negócio agropecuário no mundo e suas
peculiaridades tecnológicas. Esse cotejo é que indicará com clareza as possibilidades de
transformação dos formatos técnicos no caso brasileiro, em cada cadeia produtiva, além
de iluminar os requerimentos de pesquisa agrícola e, portanto, o “lugar” da Embrapa e
de suas atividades nos anos vindouros. Em termos mais prosaicos, não se pode
permanecer exaltando continuamente o passado glorioso e imaginar que o presente está
repetindo-o em suas características gerais. Como defendido acima, o que tem sido
modificado, nos anos mais recentes, são também as marcas essenciais dos formatos
tecnológicos e, como resultado, urge conhecer tais tendências e examinar as
possibilidades concretas de seu desenvolvimento no caso brasileiro. Se não se aceitar
que a natureza da agricultura moderna está sendo transformada, não se divisará o
futuro e nenhuma estratégia consistente poderá ser materializada.
A segunda recomendação diz respeito à estrutura existente de centros de pesquisa
da Embrapa. Causa alguma perplexidade que a empresa não pareça ter disposição para
discutir, mesmo que discreta e intramuros, sobre a gigantesca rede de unidades de
pesquisa e de negócios, espalhada por todo o Brasil, em praticamente todos os estados.
Há aqui uma observação que não exige nenhum conhecimento mais aprofundado, mas é
apenas histórica e decorrente do senso comum: a portaria que criou a Embrapa é de
dezembro de 1972 e, naquele ano, a agropecuária e o mundo rural eram radicalmente
distintos. Com algum exagero, se poderia dizer que o Brasil era então apenas um
32
produtor de café – e nada mais.34
Parte considerável das unidades descentralizadas da
empresa foi sendo criada, na década de 1970 e na primeira metade dos anos oitenta,
quando as atividades agropecuárias eram ainda muito primitivas, sob qualquer dos
ângulos analisados. A decisão de criar aquelas unidades observou a necessidade, os
contextos e as especificidades regionais que então existiam, gerando, em particular, os
chamados “centros de produtos”.
Meio século depois, (quase) tudo mudou no tocante ao mundo rural, no Brasil e
no mundo, em relação às atividades econômicas agropecuárias. Mas, a lógica geral e a
estrutura de unidades de pesquisa da Embrapa não foram readaptadas em sua essência,
pois se enraizaram ainda mais em suas locações espaciais, também mantendo boa parte
de suas tradições originais e as rotinas de pesquisa. Ou seja, sem maior aprofundamento
empírico: foi sendo criado um fosso crescente entre uma história passada, no geral
muito bem sucedida (sempre será fundamental ressaltar), e as realidades atuais da
produção agrícola, inclusive no tocante à concentração espacial, que mudou em muitos
casos, em função de circunstâncias específicas. Apenas uma ilustração: como analisar o
CPATU (a “Embrapa Amazônia Oriental”), a maior das unidades da Embrapa, com o
maior orçamento e unidade das mais antigas, Centro que foi criado especificamente em
função de uma “problemática amazônica” (sobretudo, florestal), em meio à ocupação
épica daquela região na década de 1970, se comparado com o Pará atualmente, um
estado que provavelmente logo abrigará o maior rebanho bovino do país, além de
desenvolver importantes atividades agrícolas que tendem a crescer exponencialmente?
Qual seria a missão daquela Unidade atualmente, seria possível explicitá-la? Em face da
dinâmica econômica da agropecuária naquele estado, não seria mais apropriado que se
tornasse uma “Embrapa Pará”, dedicada à variada (e problemática) lista de desafios, de
todas as ordens, relacionados ao desenvolvimento da agropecuária estadual?
Caberia aqui agregar as contribuições de outra recente Nota Técnica, elaborada
por quatro colegas da antiga Secretaria de Gestão Estratégica (atual Secretaria de Gestão
e Desenvolvimento Institucional). Os autores analisaram a “perda de participação dos
conhecimentos e tecnologias gerados e produzidos pela Embrapa”, situando-a em
relação ao “conjunto de conhecimentos e tecnologias em uso no setor produtivo”. Para
34 Será iluminadora, neste particular, a leitura do texto do técnico do IBGE e atual coordenador do Censo
Agropecuário, Flavio Bolliger, autor do artigo “Brasil agropecuário. Duas fotografias de um tempo que
passou”. In: BUAINAIN, A. M. et al, O mundo rural, op. cit., 2014, p. 1049-1080.
33
tanto, estudaram rigorosamente as séries de dados existentes, investigando a evolução
das receitas próprias da empresa, assim como a evolução da parcela referente ao uso de
tecnologias computadas na apuração anual do lucro social da Empresa.36
As conclusões
dos autores são peremptórias e merecem intensa reflexão, se associando aos temas
referidos nesta Nota Técnica. Segundo aqueles pesquisadores,
“(…) O conjunto de dados que pudemos reunir e as análises que eles
ensejam confirmam a proposição inicial de que as tecnologias e os
conhecimentos ofertados pela Embrapa vêm perdendo participação no
conjunto de tecnologias e conhecimentos em uso nas cadeias produtivas
do setor agropecuário. Cai em termos relativos e em termos absolutos a
receita tecnológica da empresa, tal como pode ser aferida diretamente nos
seus registros contábeis, pelos métodos do Siafi (...). É estável, em termos
absolutos, o valor econômico e social das tecnologias embrapianas, se
aferimos esse valor segundo o método empregado na elaboração do
balanço social da Empresa. Dado que o valor global das tecnologias e
conhecimentos em uso no setor produtivo não para de crescer, só se pode
deduzir que a participação da Embrapa decresce em termos relativos”
(CAVALCANTI et al, 2014, op. cit., p. 15).
Neste ponto, seria preciso também introduzir outro foco, embora sem discuti-lo
mais amplamente. Acima, os autores concluem pela redução relativa do “lugar da
Embrapa” no tocante ao grande conjunto de “tecnologias e conhecimentos ofertados”, o
que se aproxima com a tese da “crescente desnecessidade” da Empresa, discutida nesta
NT. Isto significaria menor impacto de sua ação, mas a partir da primeira década desse
século foi introduzida a noção de “multidimensionalidade dos impactos”, os quais
passaram a orientar a preparação do Balanço Social que, anualmente, tem sido
publicado. Desde 2001, esses documentos passaram a incluir impactos sociais e
ambientais, também adicionando resultados em termos de geração de empregos. A
avaliação multidimensional, igualmente, ampliou-se com o fator relacionado às citações
decorrentes da produção científica da Empresa. Finalmente, nos anos mais recentes, o
Balanço Social passou também a incluir atividades relacionadas à avaliação de políticas
públicas realizadas pelas unidades descentralizadas. Registre-se, contudo, o fato, pois
indica que a suspeita sobre a gradual perda de participação ou relevância da Embrapa,
atualmente, poderá ser analisada por ângulos de maior complexidade empírica.37
Os comentários e a análise dessa segunda Nota Técnica, somados a diversas
outras ilustrações empíricas que poderiam se estender para diversas outras unidades, são
36 Ver Cavalcanti, A.; Avila, F.; Gomes, E. e Marra, R., “Desafios para a Embrapa agora”. Brasília: Scretaria de
Gestão e Desenvolvimento Institucional, novembro de 2014 (manuscrito não publicado).
37 As informações sobre o impacto multidimensional e os detalhes correlatos são de Flávio Ávila (SGI), de acordo
com comentário oferecido à discussão recente entre pesquisadores da lista “Pesq-l” (ver a nota 22).
34
citados apenas para por em relevo um fato de imensa obviedade e premente necessidade
de discussão: as unidades da Embrapa, em alguma proporção, perderam o seu sentido
original e precisam atualizar-se. Algumas precisariam se reorganizar menos, outras
bem mais – mas (praticamente) todas elas necessitam, com urgência, desenvolver maior
convergência com as realidades rurais, agrárias e agrícolas de suas respectivas regiões.
Existiriam diretrizes orientadoras para o tema? Seria mais apropriado transformar todas
elas em unidades de pesquisa com um foco geográfico, dedicadas exclusivamente aos
temas do seu estado, se associando intimamente às OEPAs que o desejassem? E as
unidades chamadas de “transversais”, estariam cumprindo o seu esperado papel?
Novamente fica a pergunta que não pode calar: por que não discutimos esse tema, visto
com um tabu intocável, quando uma parte expressiva das unidades descentralizadas não
parece estar cumprindo o seu papel, talvez até mesmo pela falta de clareza na ação geral
da Empresa? Antes que ocorra alguma reação extemporânea e ideologicamente
motivada, não se trata de propor um “ajuste neoliberal”, que implique em demissões e
atos similares, mas tão somente refletir sobre o que é o centro desta NT. Ou seja, a
Embrapa, como está, pode estar sendo condenada à decadência rápida e precisa se
reorganizar e esse caminho pode, sim, significar a extinção de alguma unidade, se este
for o caso. Assim como provavelmente significará a criação de unidades novas em
substituição. O que causa perplexidade é a reiteração da imobilidade, ou seja, a
percepção acerca da persistência dessas disfunções institucionais, sem que exista nem
mesmo um debate correspondente a respeito.38
Há uma terceira recomendação, de nítida dificuldade operacional, caso fossem
implementadas mudanças a respeito. A crescente complexidade tecnológica e
organizacional da agropecuária brasileira, assim como o cada vez mais intricado
desenvolvimento do “modelo tecnológico dominante” para a atividade que vai sendo
desenhado em outras economias avançadas, submete outro dilema para a Embrapa:
pesquisa aplicada, pesquisa básica – ou ambas? Parece óbvio que uma parcela crescente
de esforços científicos já em desenvolvimento (ou a serem desenvolvidos) pode ser
situada no campo da “pesquisa básica” ou, quando muito, “pesquisa básica com foco
38 Praticamente todas as unidades da Embrapa padecem de algum tipo de indefinição quanto à sua missão
institucional e ao seu ajustamento às peculiaridades do desenvolvimento da agropecuária brasileira. Quase
todos os “centros de produto”, por exemplo, mantêm atualmente distâncias consideráveis das regiões
produtoras principais, em função das mudanças ocorridas. Esse fato não produz problemas insanáveis, mas
prejudica a atuação mais eficaz da Unidade. Nenhum dos centros deveria mudar a sua localização?
35
geral aplicado”, pois a crescente complexidade, de fato, tem quase feito esta fronteira
impossível de ser determinada, em termos práticos e operacionais. Haveria aqui um
problema institucional mais sério ou esta dicotomização e seu aprofundamento no
cotidiano da empresa representa apenas um resultado natural de uma agropecuária que
se modernizou? Não seria esperado que um setor que igualmente passou a ser
comandado por um estado de complexidade demande, igualmente, a realização de
esforços gigantescos em pesquisa básica, em seu sentido estrito?
Desta forma, como materializar tais esforços, criando novos centros, estimulando
projetos específicos em alguns centros, articulando iniciativas com áreas de pesquisa
das universidades ou outros centros de pesquisa, inclusive internacionais? Pesquisas
sofisticadas em áreas científicas emergentes, que apenas potencialmente gerarão novas
técnicas e processos para o melhor funcionamento da agropecuária são obviamente
necessárias e precisam ser tornadas uma realidade – mas qual o caminho mais
apropriado? Os laboratórios da Embrapa mais produtivos, eficientes e criativos
poderiam ter apoios financeiros de maior envergadura, sem o engessamento normativo e
burocrático que atualmente caracteriza os demais projetos? Um caminho possível seria
discutir a possibilidade de criar um braço intitulado “Embrapa Pesquisa Básica”, o qual
se dedicaria a estreitar laços com institutos de pesquisa e, em particular, com as
melhores universidades brasileiras e, talvez, até algumas internacionais, mobilizando
estudantes de pós-graduação. Por que não instituir um curso multidisciplinar de pós-
graduação em torno do foco “processos científicos básicos em agricultura” e, a partir da
iniciativa, mobilizar recursos humanos que pudessem aprofundar esforços de produção
científica em pesquisa básica? O locus ideal para a iniciativa, sem dúvida, seria o
Cenargen, por tantas razões óbvias, mas é também provável que um centro com essas
finalidades, localizado em torno de Campinas, fosse igualmente apropriado para
fomentar pesquisas “de ponta” em campos emergentes da ciência que, futuramente,
poderiam aportar inovações para a agropecuária brasileira.
Finalmente, um rápido comentário sobre os “temas sociais”. Sob este ângulo,
que combina a dimensão estrutural da pobreza rural com as insuficiências de recursos
apropriados pela vasta maioria das famílias rurais, os constrangimentos ambientais
(caso do semiárido nordestino, por exemplo), além de diversos outros obstáculos, de
naturezas diversas, antepostos à possibilidade de promover a prosperidade e o bem estar
das famílias moradoras nos estabelecimentos rurais de menor porte econômico, seria
36
preciso, em especial, uma ação rigorosamente científica.39
E a Embrapa, nesse caso,
poderia oferecer um exemplo paradigmático sobre as formas de encaminhamento
possível no tocante a este histórico desafio que caracteriza as regiões rurais. Ou seja,
promover pesquisas rigorosas e assentadas estritamente no conhecimento científico, as
quais pudessem, finalmente, sugerir caminhos para os aproximados 3 milhões de
estabelecimentos rurais ora ameaçados de marginalização produtiva e econômica. É
preciso reconhecer que as universidades não têm sido capazes de realizar esse esforço,
senão perifericamente. Menos ainda, outras instituições do Estado na esfera do
Executivo, pois estão envolvidas em um cipoal de leituras ideológicas sobre o mundo
rural. Assim, por que a Empresa não realiza esse esforço de interpretação e
desvendamento dos cenários possíveis?
Brasil rural: uma “grande transformação” à vista40
Instituído um “novo padrão agrícola e agrário”, ancorado em imperativos econômicos e financeiros, e ante uma perspectiva comercial de médio e longo prazo que poderá ser promissora, com a agropecuária se transformando em máquina de produção de riqueza que passa a ser irreversível, desenvolve-se atualmente a dualidade já citada nesta NT. Trata-se de antinomia que combina o crescente acirramento concorrencial com a intensificação dos processos de seletividade social que poderão excluir, talvez rapidamente, uma parte significativa das famílias rurais da atividade agrícola. Esta é a principal, a de maior magnitude e a mais relevante questão social atualmente em curso nas regiões rurais – é o destino de milhões de pequenos produtores rurais que está em jogo.
Neste sentido, novamente será elucidativo verificar o ocorrido na história rural dos Estados Unidos, durante um período que cobriria uma geração (final dos anos 40 e até meados da década de 1970), conforme o gráfico adiante. Nesse período, quando a economia norte-americana cresceu a taxas expressivas (são os chamados “anos dourados” da história do capitalismo naquele país), desabou o número de estabelecimentos rurais e desenvolveram-se intensos processos migratórios. O número de propriedades caiu mais da metade, de um pico de quase 6,7 milhões de estabelecimentos em 1938, para o total atual, que é pouco acima de 2 milhões de propriedades rurais, considerando-se todos os tipos, conforme a linha verde tracejada na figura. Ao mesmo tempo, a intensificação tecnológica, aferida através da produtividade total de fatores (PTF), experimentou contínuas taxas de crescimento, indicando uma atividade que se modernizava de forma ininterrupta, fazendo nascer a agricultura mais moderna do mundo.
39 É preciso ter coragem analítica para ir além das nuvens ideológicas que tudo encobrem e estudar rigorosamente as
realidades empíricas. Veja-se, por exemplo, o artigo de Aldenôr Gomes da Silva e Fernando Bastos Costa,
especialistas no semiárido do Nordeste rural, que analisaram a saga dos agricultores pobres daquela região,
salientando que “(...) o Censo [da Agricultura Familiar] mais escondeu do que mostrou a respeito da realidade
no campo, ocultando cada vez mais a diversidade dos estabelecimentos rurais de menor porte econômico no
plano regional” (SILVA, A. G. e COSTA, F. B., “Os estabelecimentos rurais de menor porte econômico do
Semiárido nordestino frente às novas tendências da agropecuária brasileira”. In: BUAINAIN, A. M. et al, op.
cit., 2014, p. 945-977).
40 Apenas como informação para os leitores que não lidam com as Ciências Sociais, a expressão “a grande
transformação”, nesses campos disciplinares, sempre se refere à brilhante e clássica obra de Karl Polanyi,
“The Great Transformation. The Political and Economic Origins of Our Time”, originalmente publicada em
1944 (New York: Farrar & Rinehart). Há tradução em português (Rio de Janeiro: Campus, 1980).
37
Segundo todas as evidências existentes, o Brasil iniciou um processo histórico de transformação produtiva similar à agricultura norte-americana daquele período, mesmo que a economia brasileira seja impulsionada por taxas bem mais modestas nos anos à frente. Contudo, em face das fragilidades sociais existentes nas regiões rurais e das circunstâncias contextuais que são diferentes, facilitando os processos migratórios, é bem provável que o esvaziamento do campo brasileiro ocorrerá em período de tempo mais curto, talvez não requerendo o intervalo de uma geração. Por esta razão, é urgente uma discussão ampla que encontre respostas apropriadas à pergunta: "qual o mundo rural que a sociedade brasileira deseja?”. Uma das instituições responsáveis por um dos lados da dualidade referida (a intensificação tecnológica), se a Embrapa não conseguir animar esse debate urgente, quem o fará?
3. Terceiro desafio: a transição geracional na Embrapa
Esse tema pode ser apresentado sinteticamente, pois é notório e faz parte do dia-a-
dia da Embrapa e de suas unidades espalhadas pelos estados, gerando crescentes
desacertos administrativos. Trata-se da notável estatística que nos informa que 70% dos
pesquisadores foram substituídos nos últimos dez anos, conforme os dados oficiais. Esta
mudança teria ocorrido (aproximadamente) na mesma proporção em todas as unidades
descentralizadas. Não obstante esse fato de enorme significação, em face de seus
impactos potenciais positivos, as luzes vermelhas se acendem quando se observa que a
Empresa não vem dando a devida importância ao tema da “transição entre gerações” de
pesquisadores. Não tendo sido desenvolvida uma estratégia fina e adequada para “passar
38
o bastão” entre os pesquisadores pioneiros e os jovens que chegaram, os problemas
decorrentes têm sido inúmeros, como seria esperado.41
Impressiona que essa transição não tenha sido planejada com extremo cuidado,
pois são duas gerações de profissionais e cientistas oriundas de circunstâncias históricas
radicalmente distintas, seja no tocante aos ambientes universitários nos quais se
formaram ou, então, no que diz respeito às próprias realidades da produção. Bastaria
lembrar o Brasil ainda fortemente rural e agrário da década de 1970 e o Brasil dos
últimos dez anos, quando a nova geração de pesquisadores cruzou os umbrais da
Embrapa (insista-se aqui na consulta ao artigo de Bolliger, 2014, antes citado).
Separados por meio século, são dois países distintos, pois os indicadores estatísticos são
antípodas em centenas de aspectos, sociais e econômicos. E também políticos: a
Embrapa foi criada no contexto de uma ditadura militar e a nova geração chega à
Organização sob um regime político democrático, diferença que implica em inúmeras
consequências, inclusive comportamentais. A distribuição espacial da agropecuária e
sua estrutura de produção são extraordinariamente diferentes, comparando-se os dois
períodos e, acima de tudo, a constituição inicial da Embrapa foi uma ação épica e
marcada por registros de coragem, dedicação e comprometimentos éticos incomuns.
Uma vez consolidada a democracia brasileira, no entanto, os jovens pesquisadores
são portadores de mentalidades, escolhas, formas de interação e valores que repercutem
outras circunstâncias históricas. Esta é comparação que lembra a famosa frase de Marx,
que escreveu no seu panfleto “O Dezoito Brumário de Luis Bonaparte” (1852) que “A
tradição de todas as gerações mortas oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos”.
No caso específico discutido nessa seção da NT, contudo, o peso da “tradição” teria sido
(quase) perdido, pois o Brasil submeteu-se a passagens históricas radicais e, sob tais
transformações, o passado e seu conhecimento ficaram fortemente esmaecidos, não
determinando tão claramente as práticas científicas da nova geração de pesquisadores.
Bastaria lembrar, como uma das facetas mais nitidamente distintivas entre a primeira
geração e esta nova que gradualmente assume o comando, que os primeiros foram
contratados em meio a um regime político autoritário, o qual deixou marcas ainda
visíveis na empresa. A nova geração de pesquisadores, recrutada nos concursos
41 Sabe-se que algumas propostas metodológicas foram sugeridas e, se implantadas, permitiriam uma transição mais
suave entre as duas gerações. Mas há um fato: as recepções organizadas aos novos pesquisadores, segundo
todas as evidências, foram fracas em termos de conteúdo e, especialmente, foram metodologicamente
equivocadas, gerando o descompasso atualmente existente.
39
recentes, se formou nas atividades científicas em ambientes profundamente
democráticos do Brasil pós-Constituinte. Não surpreende, portanto, que uma das mais
evidentes formas de inquietação atualmente reinantes nos diversos âmbitos da Empresa
seja esse descompasso entre expectativas de transparência, vigência de mérito,
publicização, respeito à pluralidade de opinião, entre outras marcas de ambientes
democráticos e republicanos, que a maior parte dos novos pesquisadores se acostumou
em seus ambientes de formação acadêmica. De outro lado permanecem os resquícios de
uma cultura institucional de maior rigidez e autoritarismo que relembram os anos
constitutivos e iniciais da Embrapa.
Entretanto, se este é aspecto decisivo para o futuro imediato, também são cruciais
as diferenças entre “conhecimento acumulado” e sua transmissão às novas gerações e,
sob esse particular, a Embrapa está notoriamente fracassando. Não existe nenhum
programa interno que promova maior integração entre as duas gerações, ou alguma
metodologia similar a algo corriqueiro em diversas instituições de ensino e de pesquisa,
como o “mentoring”. É possível especular com razoável chance de acerto sobre as
implicações de mais esta ausência na condução administrativa da Empresa:
conhecimentos que serão perdidos, práticas científicas valiosas que não serão
aprendidas e, portanto, não serão repetidas; tradições de pesquisa ainda relevantes para
o mundo da produção que serão interrompidas, entre outras consequências. Sobretudo,
(re)nascerá uma Embrapa que poderá ter pouco a ver com o passado e, desta forma, as
novas gerações de pesquisadores sequer compreenderão as vicissitudes do
desenvolvimento agrário brasileiro no último meio século.
Mas é preciso evitar desentendimentos sobre o que é acima afirmado: a renovação
do quadro de pesquisadores foi bem sucedida em termos da alta qualificação dos novos
quadros que chegaram e, certamente, a sua disposição geral para a pesquisa e o fomento
à produção científica. Inclusive, muitos têm publicado em revistas internacionais de alto
prestígio (como “Nature” ou “Science”), ampliando a credibilidade científica da
Organização. São outros os focos que merecem aprofundamento. Entre eles, por
exemplo, o hiato entre a missão original da Embrapa, concentrada em pesquisas
aplicadas (tecnologias, processos), e as práticas dos novos entrantes, acostumados,
sobretudo, aos objetivos prioritários de publicar resultados de pesquisa, como forma
principal de valorização acadêmica e profissional. A geração entrante, como outra
ilustração, foi formada sob a “ditadura do Qualis” imposta às universidades em anos
40
recentes e acostumou-se, cada vez mais, às pressões para publicar, em movimento de
relativa degradação acadêmica (para atingir o objetivo de ampliar o estoque de
publicações, vale qualquer mecanismo ou artifício).42
Seriam inúmeros os temas que requerem não apenas reflexão, comparando-se os
dois grupos de pesquisadores, mas também formas de ação e iniciativas que
aproximassem as capacidades existentes e ampliassem a sinergia, assim potencializando
resultados mais amplos e consistentes. É um fascinante objeto de pesquisa para uma
tese de Antropologia que poderia bem explicar as dificuldades atuais entre as duas
gerações. Inclusive com um pano de fundo contextual cujo impacto nas práticas
científicas seria facilmente identificável: a própria noção do que vem a ser “ciência” (ou
a produção do conhecimento) modificou-se significativamente nesse último meio
século. Se a geração dos pesquisadores seniores se formou em ambiente de grandes
transformações tecnológicas, a mais recente também experimenta o mesmo, mas em
magnitude gigantesca, incomparavelmente maior. Comparem-se as décadas de 1960 e
de 1970 com os anos mais recentes desse novo século, em termos, por exemplo, de
compreensões sobre a ciência. No primeiro período, emergiram extraordinários
interpretadores que moldaram essas compreensões (destacando-se Lakatos, Kuhn,
Popper, entre muitos outros), os quais produziram um brilhante debate sobre “ciência”,
o qual enraizou um entendimento que ainda permanece influente. Como contexto, o
acelerado processo de crescimento econômico do pós-guerra que produziu fortes
mudanças nas conformações societárias e instituiu os primórdios de uma revolução
tecnológica. Já nos anos desse século, sob os quais se formaram os novos pesquisadores
recém-entrantes na Embrapa, experimenta-se uma intensificação tecnológica sem
precedentes na história humana, inclusive com a ampliação das formas de consumo em
níveis igualmente incomparáveis, entre outras “sísmicas transformações”. São fatos que,
somados aos processos de democratização das sociedades e à emergência de ameaças
planetárias, como as mudanças climáticas, constituem ambientes nos quais os
significados de “ciência” também vêm se modificando radicalmente. São, portanto,
inúmeras as formas analíticas que deveriam estar sendo consideradas e debatidas em
uma Empresa dedicada ao mesmo tema – ciência e a produção de conhecimento.
Deixando de fazê-lo, a Embrapa incentiva os comportamentos acomodatícios e permite
42 Lembrando que o autor desta NT foi professor universitário (na UFRGS, em Porto Alegre) durante mais de três
décadas e observador dessas mudanças apontadas.
41
que se aprofunde um hiato entre os dois grupos de pesquisadores que principalmente
constituem a sua história institucional.43
Como ilustração sobre esse descompasso entre gerações de pesquisadores
embrapianos, é reveladora a citação abaixo de um dos mais reputados cientistas da
Embrapa, o pesquisador Alfredo Homma, que é considerado um dos maiores
especialistas sobre o tema “Amazônia”. Refletindo sobre as opções produtivas da região
e o papel de grupos sociais de pioneiros na história rural daquela vasta parte do
território nacional, Homma destaca que são produtores que estimularam o avanço das
atividades agrícolas, pois teriam sido vocacionados para determinadas explorações de
cultivos, inclusive ignorando, muitas vezes, as recomendações dos institutos de
pesquisa. Ao comentar sobre os potenciais de outras plantas típicas daquele bioma, o
estudioso enfatiza o atual descompasso entre as duas gerações de pesquisadores, ao citar
que:
“(…) A descoberta de oportunidades para a biodiversidade amazônica
dependerá de pessoas que dediquem 10, 20 ou 30 anos para o pau-rosa, o
tucumãnzeiro, o uxizeiro, o puxurizeiro, as plantas medicinais e
aromáticas, os inseticidas, etc. procurando vencer as limitações existentes.
Os pesquisadores antigos estavam muito mais sintonizados com esse
perfil do que os da atualidade, que estão mais preocupados com a
publicação de trabalhos científicos por indução do atual sistema de
avaliação, o que tem prejudicado seriamente as pesquisas agronômicas na
região” (HOMMA, A. et al, 2014, p. 1003).44
O que deveria ser refletido como sendo mais positivo para o futuro: a inexistência
do passado, que não “oprimiria como um pesadelo o cérebro dos vivos”, mas
implicando na necessidade de recriar quase tudo, como se nada tivesse existido
anteriormente ou, então, uma transição inteligente entre as duas gerações, que
mantivesse o peso da tradição científica, não como uma opressão, mas como uma
virtude? Para qualquer observador externo, causa uma imensa surpresa que diversas
administrações da Empresa tenham sido desleixadas em relação a esse processo de
43 Outro tema de imenso impacto nos comportamentos acadêmicos e científicos, aqui apenas citado sem maiores
comentários, diz respeito à nítida dependência que é mantida no Brasil em relação ao Estado e suas políticas
para o setor de C&T, o que tolhe e apequena a “capacidade empreendedora” da maioria, quase sempre pouco
disposta a correr riscos. Em um ambiente que está exigindo que a criatividade inovadora seja estimulada, é
uma força contrária, de natureza cultural, que precisaria estar também sendo discutida amplamente. O
resultado tem sido práticas de pesquisa que mais se aproximam de comportamentos burocráticos, no sentido
mais negativo da expressão.
44 A citação é do artigo “Dinâmica econômica, tecnologia e pequena produção: o caso da Amazônia”. In:
BUAINAIN, A. M. et al, op. cit., 2014, p. 979-1010. Homma é o editor do monumental livro Extrativismo
vegetal na Amazônia. História, ecologia, economia e domesticação. Brasília: Embrapa, 2014. Disponível
em:
https://www.researchgate.net/profile/Alfredo_Homma/contributions?ev=prf_act
42
transição entre as gerações, em especial quando são coletados os inúmeros problemas de
relacionamento, conflitos internos, vícios que vão sendo formados, entre outras
consequências nefastas para o futuro próximo da Embrapa.
3.1 Terceiro desafio: recomendações
É oferecida aqui apenas uma sugestão de encaminhamento, ante o problema acima
citado, ainda que inúmeros e variados caminhos metodológicos possam ser arquitetados
para minimizar os impactos desta situação. Trata-se de aprofundar relações com o
CNPq e abrir uma cooperação específica que viabilize projetos em determinadas áreas
de pesquisa consideradas prioritárias. Neste caso, a Embrapa reservaria recursos de
pesquisa para equipes de pesquisadores, desde que mesclando aqueles mais antigos com
os novos e, além disso, também pesquisadores universitários, assim estimulando a
cooperação entre pares de subcampos disciplinares, em uma atividade específica de
pesquisa. Seria uma das muitas formas de promover a cooperação entre os colegas das
duas gerações de pesquisadores, também incluindo em certas situações colegas
pesquisadores de instituições universitárias. Mas, muitas outras vias possíveis de
confrontar esse desafio existiriam e precisam ser objeto de análise.
De qualquer forma, independentemente do que poderá ocorrer sob inúmeros
outros encaminhamentos, é também premente que a nova geração possa apropriar-se de
conhecimento mais aprofundado sobre as marcas principais do desenvolvimento agrário
brasileiro, no sentido de identificar com maior precisão e acuidade o locus respectivo de
sua especialização e interesses de pesquisa. Em uma Empresa onde “pesquisa aplicada”
foi a diretiva quase única em suas origens, o conhecimento detalhado das cadeias
produtivas e das realidades produtivas (conforme os dois primeiros itens discutidos
nesta NT) é que ensejarão a identificação das possibilidades existentes para constituir as
agendas de pesquisa. Esse esforço é necessário, insista-se novamente, porque as
necessidades tecnológicas do primeiro período (o formativo da Embrapa) e o atual são
muito distintos, além do estado de complexidade que vai sendo constituído ante à
dinâmica econômica e organizacional da agropecuária brasileira.
4. Quarto desafio: a governança da Embrapa - a necessidade de aperfeiçoamentos.
Surpreende que uma organização pública tão bem percebida pela sociedade
brasileira mantenha uma forma geral de administração, ou governança corporativa, que
43
é, quando menos, confusa e, muitas vezes, incompreensível para a maior parte de seus
empregados, além de ser distanciada de alguns preceitos que deveriam ser
compulsórios, por se tratar de uma empresa pública, sobretudo a transparência dos
processos. Entre outras causas, essas características parecem ser o reflexo de três
“pecados capitais” que tipificam comportamentos de parte de seus gestores e lideranças,
todos eles indicando ausências. Faltam humildade e coragem e, adicionalmente, o que
causa algum espanto, os comportamentos democráticos e o cultivo permanente de um
ethos cívico e republicano são insuficientes. São evidências indicativas de uma
interpretação sociológica de certa simplicidade, pois é de imediata verificação: desde a
sua fundação, como seria logicamente esperado, a Embrapa tem sua estrutura de poder
dominada por pesquisadores (usualmente engenheiros-agrônomos de formação básica),
portadores de especialização, até com sofisticação, em algum subcampo agronômico,
mas nunca em administração de grandes organizações. Foram os responsáveis principais
pelo sucesso da empresa em sua primeira geração, quando o foco tecnológico era o
principal e o determinante. Mas é preciso reconhecer um fato indiscutível: o êxito da
primeira fase ensejou a criação de uma gigantesca empresa (dez mil funcionários,
orçamento de um bilhão de dólares, capilaridade nacional) e, sob esta hipertrofia
organizacional, enraizou-se um estado de complexidade que passou a exigir habilidades
administrativas e de gestão para as quais uma parte, certamente significativa, dos
pesquisadores-tornados-dirigentes da primeira geração não estariam devidamente
preparados.
Aqui entra em cena a ausência de humildade, pois esta foi (e tem sido) uma
geração que tem sistematicamente bloqueado as portas aos não embrapianos e aos não
agrônomos que pudessem ter maior capacidade técnica e profissional de gerir a
empresa. Por que uma categoria profissional de agrônomos poderia esperar ser
portadora de conhecimentos multidisciplinares e habilidades administrativas ilimitadas,
que dariam conta da crescente complexidade da empresa? Não estaria aqui um dos mais
evidentes gargalos que atualmente impedem a modernização da Embrapa? Como é
evidente, a explicação para esse comportamento autoprotetor dispensa qualquer
conhecimento de Ciência Política: assim tem sido exclusivamente porque esse grupo de
dirigentes deseja manter em suas mãos e sob seu controle as privilegiadas estruturas de
44
poder que foram sendo construídas para si mesmo ao longo dos anos, gerando cargos
comissionados e altas gratificações em sua ocupação.45
A falta de coragem é outra faceta curiosa que é reiterada cotidianamente. São
também inúmeras as evidências, mas nesta NT bastaria citar apenas alguns exemplos,
sistematicamente comentados abaixo:
(a) ciência requer precisão conceitual: sendo uma empresa pública dedicada
explicitamente à prática da ciência, uma das exigências postas à Embrapa é manter o
rigor teórico, a exatidão e os cânones científicos. Isto implica, por certo, também
proteger a precisão terminológica e conceitual, quando as circunstâncias o exigirem.
Mas, parece não existir a coragem necessária para esse papel crucial e tem sido aceita a
dominação da esfera política sobre a racionalidade técnica. A determinação para
confrontar este fato é decisiva exatamente porque esta é a essência do trabalho diário de
seus empregados – fazer ciência. Se os cânones e conceitos consagrados das práticas
científicas forem erodidos, como realizar tais tarefas? Conforme a epígrafe popperiana
desta NT, é a “guerra de ideias” que fomenta a produção e o avanço do conhecimento.
Por isso, não se trata aqui de ortodoxia extremada, pois as inovações também exigem
criar novos conceitos, processos e até criar paradigmas, quem sabe até mesmo
emergentes “revoluções científicas”. Mas, se nitidamente o obscurantismo desenvolve
suas raízes em contextos e circunstâncias históricas específicas (como ocorre
atualmente), as instituições da ciência precisam reagir, para evitar retrocessos analíticos
e o estancamento da progressão do conhecimento.
Nos últimos anos, a discussão em torno do desenvolvimento agrário brasileiro
vem sendo encurralada pela tentativa de fazer emergir uma “narrativa dominante”, a
qual passou a ser exigida em todas as manifestações de gestores públicos nos anos deste
século, sem que fosse problematizada criticamente em contra-argumentações de maior
envergadura. O período recente tem observado a construção dessa narrativa, que tem
45 Na opinião do autor desta NT, é escandalosa a estrutura de cargos comissionados da Embrapa. Um chefe de
centro (que receba a aposentadoria do INSS, como é comum) pode ser premiado com até 15 mil reais como
gratificação adicional ao seu salário. Esse valor é quase um escárnio, relativamente a outras situações
similares no âmbito do Estado brasileiro. Somente esta comissão é equivalente ao salário de um professor das
universidades federais que seja titular e tenha trabalhado por tempo aproximado de três décadas. E o que dizer
dos cargos chamados de “supervisão” na empresa, usualmente alocados a empregados que mantenham,
sobretudo, lealdade pessoal ao superior que lhe indicou? Na vasta maioria dos casos, os supervisores são
chefes de si próprios. A Embrapa, ante um quadro macroeconômico de profundas dificuldades a ser vivido
pelo país, nos anos vindouros, deveria revisar imediatamente tais valores, até extinguindo todos os (inúteis)
cargos de supervisores e cortando drasticamente as demais gratificações, como medida, sobretudo, de uma
política de rejuvenescimento moral de seu cotidiano.
45
apenas objetivos políticos e partidários e, no geral, é profundamente anticientífica,
consagrando um retrocesso. Não se fará aqui a exegese desse claro esforço de natureza
ideológica, que em nossos dias vai destruindo tantas instituições públicas, mas algumas
ilustrações podem ser necessárias. O que dizer, por exemplo, da institucionalização de
uma expressão, como “agricultura familiar”, cuja absurda definição legal sugere a
eternização da pobreza (pois a lei propõe que os pequenos produtores nem contratem
“predominantemente” trabalho assalariado e nem aumentem majoritariamente os seus
ganhos buscando o trabalho fora da propriedade, como forma complementar de renda)
e, em face de tal descalabro, a Embrapa omitir-se, sem discutir cientificamente esse
equívoco?46
À luz da forte institucionalização da expressão, motivada por razões
políticas (produzindo até um “ano internacional da agricultura familiar”), o autor desta
NT tem sido quase uma voz isolada em relação a essas incongruências. Mesmo muitos
daqueles que concordam com os argumentos acerca de sua inapropriedade acabam se
rendendo ao peso da institucionalização e preferem aceitar os fatos como são,
coonestando a falácia de supor a existência de um grupo social em áreas rurais (os
“familiares”) que seriam portadores de características sócio-culturais essenciais, o que
é uma aberração antropológica. Apesar da insistência, que parece ser quixotesca, por ser
ato quase isolado, é preciso, contudo, continuar repetindo: a expressão nada diz em
termos concretos e nada avança em termos conceituais. É apenas mais uma expressão
do pensamento mágico que encanta, até mesmo, muitos pesquisadores da Embrapa.
E o que dizer de outra palavra igualmente tornada mágica, “agroecologia”, usada
em diversos âmbitos da Empresa e apoiada com generosos fundos públicos, sem que
exista nem mesmo um superficialíssimo verniz científico associado à palavra e, menos
ainda, em termos práticos, também inexiste um “formato tecnológico agroecológico”
que possa ser difundido entre os produtores rurais? Por que a principal empresa de
pesquisa agrícola do país não tem a coragem de enfrentar essa manipulação que vai se
espalhando? Por que a Embrapa aceita passivamente a desmoralização de sua própria
história e, pelo contrário, até aporta recursos financeiros para fomentar uma ação
46 Por que, por exemplo, no lugar de ficar financiando atividades supostamente de pesquisa sobre algo que não passa
de uma fantasia, do ponto de vista científico (“agroecologia”), a Embrapa não deu ampla divulgação de
recente trabalho de um dos mais sérios e respeitados econometristas brasileiros, Rodolfo Hoffmann, cuja
trajetória, como pesquisador, é brilhante e que escreveu um curto trabalho, demonstrando que a participação
da chamada agricultura familiar é, de fato, de apenas 22% no caso brasileiro? Em um artigo de apenas 3
páginas, Hoffmann joga por terra um mito que vem sendo propagado ad nauseam, inclusive por embrapianos.
Ver “A agricultura familiar produz 70% dos alimentos consumidos no Brasil?”, Campinas: Segurança
alimentar e nutricional, 21(1), 2014 (em vias de publicação).
46
política destinada a solapar as próprias bases do sucesso de seu primeiro ciclo de vida?47
E não se trata de problema menor, quando o CNPq lança editais para distribuir recursos
destinados a projetos sobre o assunto, e a CAPES, em desassombrada decisão, aprova
cursos de pós-graduação (já são mais de uma centena) sobre “agroecologia”, quando
não se trata sequer de alguma ciência, mesmo emergente. Uma nítida ação política
arquitetada com um único propósito: combater a bem sucedida agricultura moderna que
se instalou no Brasil, ainda que muitos colegas, movidos por ingenuidade política,
pareçam mesmo acreditar que agroecologia seria apenas um conjunto de “esforços
agronômicos” destinados a construir algo na direção da “agricultura sustentável”.
Em face de tantas evidências e fatos, por que, pelo menos, não esclarecer
corretamente os pesquisadores da empresa? Qual seria a grande dificuldade, por
exemplo, de organizar eventos plurais, que discutissem radicalmente (até à raiz) os
termos da “narrativa dominante” e, assim, esclarecer para o corpo de pesquisadores (e
para a sociedade) o que seria legítimo, em termos científicos, e o que não passaria de
empulhação? Não seria este o papel da Empresa?
(b) a rejeição do avanço científico: nos anos recentes, talvez a maior evidência da
incapacidade da Embrapa de enfrentar os bloqueios políticos e ideológicos seja o caso
do “feijão transgênico” (resistente ao vírus do mosaico dourado propagado pela mosca
branca) desenvolvido por pesquisadores embrapianos. Para os não especialistas e
aqueles que apenas observam de longe, é incompreensível a hesitação da Embrapa sobre
o tema. Estamos falando aqui de uma tecnologia e seus respectivos processos científicos
que representam o que seria mais moderno. Há até quem ainda insista sobre os
“perigos” dos OGMso que, com franqueza, adentra, a esta altura, o anedótico. Não
existe, portanto, nenhuma justificativa razoável para a procrastinação que vem
47 Sobre a grosseira manipulação que representa a palavra “agroecologia” no Brasil, infelizmente aceita passiva e
ingenuamente por muitos embrapianos, consulte-se NAVARRO, Z., “Agroecologia: as coisas em seu lugar (a
Agronomia brasileira visita a terra dos duendes”. In: Colóquio, volume 10(1), p. 11-45, 2013. Programa de
Pós-graduação em Desenvolvimento Regional/FACCAT. Sobre os equívocos da expressão “agricultura
familiar”, consulte-se NAVARRO, Z. e PEDROSO, M. T. M. “Agricultura familiar: é preciso mudar para
avançar”. In: Texto para discussão, número 42, 2011. Brasília: Embrapa. Esse mesmo tema foi também
discutido em artigo mais recente (“A agricultura familiar no Brasil: da promessa inicial aos impasses do
presente”), publicado também pelos dois autores e publicado em número especial da “Revista Econômica do
Nordeste”. Ver também PEDROSO, M.T.M., “Experiências internacionais com a agricultura familiar e o caso
brasileiro: o desafio da nomeação e suas implicações práticas”. In: BUAINAIN, A. M. et al, op. cit., 2014, p.
761-791. Os três textos iniciais estão disponíveis, respectivamente, nos endereços abaixo indicados:
1. https://seer.faccat.br/index.php/coloquio/issue/view/4
2. https://www.embrapa.br/busca-de-publicacoes/-/publicacao/913994/agricultura-familiar-e-preciso-mudar-
para-avancar
3. http://www.bnb.gov.br/content/aplicacao/publicacoes/ren-
numeros_publicados/gerados/ren_edicao_especial_2014.asp
47
caracterizando a ação dos dirigentes da Empresa sobre o assunto, impedindo a liberação
definitiva das sementes modificadas que foram produzidas. Pelo contrário, a Embrapa
deveria estar exaltando publicamente os pesquisadores responsáveis pelo
desenvolvimento do produto e este deveria ser motivo de imenso orgulho a ser
compartilhado por todos os seus pesquisadores. Toda a área de comunicação da
Embrapa já deveria ter sido mobilizada, há anos, para difundir a capacidade científica
daqueles que produziram este feito notável, valorizando, portanto, o melhor da ciência,
das práticas de pesquisa e o desenvolvimento de um produto que atende, inclusive, uma
dimensão crucialmente social, pois o feijão é produzido por centenas de milhares de
pequenos produtores rurais pobres. É de deixar boquiabertos aqueles que acompanham
mais de perto a saga do feijão transgênico e os kafkianos impedimentos criados para
impedir a sua distribuição livre e legal entre os produtores. Mesmo para aqueles que não
são especialistas no assunto, como o autor desta NT, é hilário (por ser completamente
ilógico) o argumento da não liberação que, alegadamente, não ocorre porque seria
necessário antes testar o comportamento da nova variedade a um novo vírus que estaria
afetando o feijão.48
Esta é situação emblemática da falta de coragem referida, pois as
pressões são meramente políticas e externas à Embrapa, mas estaria ausente a
disposição para confrontar cientificamente aqueles que pressionam contrariamente sobre
esta tecnologia.49
Impedindo a disseminação da nova variedade, a Embrapa,
infelizmente, vem se associando ao obscurantismo de um minúsculo grupo de
neoludistas que, por força de suas relações políticas, consegue impedir o avanço da
ciência e do conhecimento;50
(c) posições públicas e particularismos: muitos cargos na Embrapa são
preenchidos sem considerar o mérito, que comumente ocupa plano secundário em
relação a algum particularismo que jamais deveria estar presente. São diversas as
situações conhecidas, as quais dispensam exemplos nesta Nota. A Empresa, inclusive,
48 Consulte-se, para um comentário de especialista no assunto, o artigo de Colli, W., “Embrapa: uma decisão que se
impõe”. Disponível em: http://www.jornaldaciencia.org.br/embrapa-uma-decisao-que-se-impoe/
49 Outra omissão incompreensível da Empresa foi não ter tido praticamente nenhuma participação oficial nas
discussões sobre o novo Código Florestal, ainda que pesquisadores de algumas unidades tenham oferecido
apoio técnico de valor inestimável.
50 O “ludismo” se refere a uma forma de protesto depois transformada em movimento social que, na Inglaterra do
início do século 19, combatia a industrialização e a mecanização, pois eliminaria os postos de trabalho. Os
ludistas associavam o processo ao desemprego e à miséria social. Figurativamente, o termo passou a ser
estendido aos argumentos que combatem o progresso tecnológico, pois este seria “socialmente nocivo”. O
termo deriva do nome de um operário ativista daquele movimento, Ned Ludd.
48
eliminou o mecanismo do “comitê de busca” para o preenchimento dos cargos da
Diretoria, o que poderia ter sido um processo exemplar para o restante da Administração
Pública, retornando às indicações que requerem suporte político, rebaixando os
requerimentos técnicos a um segundo plano. É preciso, com “urgência urgentíssima”,
formalizar critérios objetivos de requerimentos e processos de seleção que sejam
irrestritamente fundados no mérito e torná-los compulsórios para a ocupação de todos
os cargos. Em se tratando de uma Empresa mantida com os recursos da sociedade, é o
mínimo que se espera. Trata-se de um requerimento que é obrigatório nas instituições
que julgam ser estruturadas democraticamente;
(d) o isolacionismo protetor: existe um sentimento relativamente generalizado de
antipatia entre os pesquisadores, em face das crescentes exigências burocráticas
associadas ao desenvolvimento da pesquisa na Embrapa. Ao que parece, gradualmente a
Empresa foi criando mais e mais requerimentos e amarras, multiplicando os formulários
e os “mecanismos de controle”. Entre esses últimos, saliente-se que grande parte
decorre de imposições externas originadas em imperativos do Estado e fruto de novos
dispositivos legais (como a Lei nº 8666). Mas, também segundo as evidências
históricas, parte desse engessamento é uma autêntica “criação embrapiana”.
Para o autor desta NT, egresso da vida universitária, onde foi professor e também
pesquisador por mais de três décadas, é curiosíssimo que a Embrapa não tenha se valido
da experiência de 63 anos do CNPq e tivesse estabelecido laços de cooperação íntimos
com aquele Conselho, instituindo seus mecanismos de submissão de projetos, avaliação
e acompanhamento em consonância com o CNPq e sua ação institucional. Se a Embrapa
é uma organização destinada, principalmente, a estimular a pesquisa agrícola e, para
tanto, se vale de projetos, enquanto o CNPq desenvolveu vastíssima experiência e
aprendizado, exatamente, em avaliar projetos e acompanhá-los, por que a Embrapa não
se associou àquele Conselho? É pelo menos estranha, talvez bizarra, a decisão de se
fechar e ir desenvolvendo internamente os processos e mecanismos de fomento à
pesquisa, ignorando o aprendizado acumulado pelo CNPq. A Empresa apenas se
beneficiaria, caso isto tivesse ocorrido, pois evitaria a burocratização hoje comandada
pelo Departamento de Pesquisa e Desenvolvimento (DPD) e seus instrumentos pouco
49
funcionais, como o Ideare e outras exigências.51
Além disso, caso aquele “casamento”
tivesse ocorrido, a Embrapa seria extremamente oxigenada pela interlocução com outros
pesquisadores, de outras instituições (especialmente as universidades) e também seria
forçada a se abrir mais, produzindo maior transparência em seus processos decisórios
relativos aos projetos e às decisões sobre a pesquisa. Ao se fechar, mantendo apenas
convites ocasionais e pesquisadores externos, a insularidade decorrente vem produzindo
um distanciamento da realidade rural. De qualquer forma, esse comentário sugere uma
recomendação que ainda poderia ser viabilizada, caso exista abertura para discuti-la em
suas possibilidades.
4.1 Ciência e liberdade
Faz parte do senso comum uma evidência: as universidades e os centros de
pesquisa produtores de conhecimento mais relevantes são aqueles que preservam
ferreamente um ambiente de liberdade. Ciência e liberdade são irmãs siamesas, uma
perde sua essência e vida sem a outra e, como tal, se alimentam reciprocamente. Não é
preciso um exercício de Sociologia da Ciência nem citar os grandes autores desse
subcampo para entender esta relação. Afirmado de uma forma simples, o exercício da
ciência sempre se dirige, todo o tempo, para “rejeitar a hipótese” (de um experimento,
teorema, modelo teórico ou paradigma dominante), pois se isto for possível, o resultado
será o avanço do conhecimento e a descoberta de uma proposição explicativa superior.
Mas, para isto ocorrer, sempre será preciso um ambiente de reflexão e debate que
permita e estimule a oferta de novas hipóteses e a contestação daquelas dominantes em
dado momento histórico. E para isto, não podem existir restrições à liberdade de
pensamento e de expressão. Um ambiente de produção científica exige, como
pressuposto, que não existam limites à opinião, ao debate, à discussão irrestrita. Os
únicos limites e restrições tolerados são os legais, de um lado, e aqueles das práticas
científicas, de outro lado, as quais são amadurecidas com o tempo.
Oriundo do contexto (relativamente) livre de uma universidade federal, o
ambiente de rigidez e intolerância argumentativa na Embrapa surpreendeu o autor desta
NT. Por que existiriam esses limites? Não tendo realizado nenhuma pesquisa mais
rigorosa a respeito, seria possível apenas especular sobre os motivos, mas arrolar
51 Deixando de comentar nesta NT o atual quadro de “arranjos e portfólios” da Empresa, pois dificilmente alguém
explicaria a sua lógica, à luz da missão institucional da Embrapa ou até mesmo à luz de alguma lógica
científica.
50
algumas justificativas, sem a precisão empírica necessária, foge ao escopo desse
documento. Dessa forma, pretende-se, nesta parte, apenas registrar o alerta: a Embrapa
corre um alto risco, se mantiver práticas administrativas e de relacionamento pessoal
que estão muito próximas da fronteira do autoritarismo. E não apenas em função da
chocante contradição entre essa rigidez interna e a natureza democrática da sociedade e,
também, pelo fato de ser a Embrapa uma empresa pública e, assim, jamais poderia se
estruturar informada por esses bloqueios políticos. O risco maior, é claro, converge para
os argumentos principais que estão sendo apresentados nesta NT, pois a relativa falta de
liberdade argumentativa conspira fortemente contra a “vivacidade intelectual”, a
criatividade e a ousadia que animam a produção de conhecimento novo e inovador,
facetas que deveriam ser fomentadas a cada segundo na vida da Organização. Ainda
persistem resquícios, até mesmo, de comportamentos patrimonialistas (mais
corretamente, patriarcalistas), herdados de um passado remoto, os quais, sob diversos
aspectos, mantém a Empresa ainda um tanto distante das necessárias facetas de uma
verdadeira organização do moderno Estado burocrático, inspirado em uma estrutura
que, sempre e obrigatoriamente, requer o universalismo de suas práticas. Sob alguns
aspectos, o funcionamento cotidiano da Empresa lembra o comentário de Sérgio
Buarque de Holanda, no clássico “Raízes do Brasil” (1936):
“(…) a própria gestão política apresenta-se como assunto de seu interesse
particular; as funções, os empregos e os benefícios que deles aufere,
relacionam-se a direitos pessoais do funcionário e não a interesses
objetivos, como no verdadeiro Estado burocrático, em que prevalecem a
especialização das funções e o esforço para se assegurarem as garantias
dos cidadãos” (HOLANDA, S. B., 1993, p. 106).52
4.2 A inexistência de uma estratégia
Por que persiste esse quadro de sentimentos ambivalentes e um clima,
relativamente generalizado, de dúvidas sobre o estado atual e o futuro próximo da
Embrapa? A explicação que diversos membros da comunidade embrapiana, sem dúvida,
citariam, reside em um fato que vem sendo cada vez mais repetido – a Embrapa, em
nossos dias, não tem nenhuma estratégia que possa ser explicitada.
Ante esse diagnóstico não formalmente aceito, mas referido com crescente
frequência, a Empresa vem apoiando uma iniciativa que deveria gerar tal estratégia, que
foi a extinção do CECAT e a criação da Secretaria de Inteligência e Macroestratégia. E,
52 HOLANDA, S. B. Raízes do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1993 (25º edição).
51
como resultado da ação de uma de suas coordenadorias (o chamado “Agropensa”), em
boa parte dos últimos dois anos foram realizadas diversas iniciativas, destinadas a gerar
um produto que pudesse ser o balizador estratégico da Embrapa, uma vez concluído.
Trata-se do documento “Visão 2014-2034” (op. cit.).53
A publicação se propõe a ser o
“guia para o desenvolvimento tecnológico da agropecuária brasileira” (sic), cobrindo
um cenário de duas décadas, até 2034. Foi iniciativa de alto custo, envolvendo inclusive
fechados eventos internacionais e, supostamente, aplicando metodologia que traria luzes
para os caminhos futuros. Nesta NT se comentará exclusivamente, em breve reflexão, o
documento citado, mas não a reformulação realizada em termos do antigo Centro e a
constituição de uma nova Secretaria. Escapa ao objetivo primordial desta Nota qualquer
comentário sobre essas mudanças que foram sendo operadas, particularmente, a partir
de 2013.
Deve ser também enfatizado que os autores do documento referido acima não se
propuseram a delinear uma nova “estratégia geral” e, com cautela, advertem já nas
páginas iniciais que o documento “Visão” seria, em especial, um “primeiro impulso”
que poderia colaborar na construção de uma estratégia de futuro para a Embrapa e a
agropecuária brasileira. Posteriormente, a publicação se dedica a comentar sobre os
identificados “oito macrotemas” que foram nomeados e se afirma que o documento
“(…) é um ponto de partida importante, um elemento animador e aglutinador para guiar
a consolidação do sistema de inteligência estratégica da Embrapa e as fases seguintes de
discussão e revisão do plano diretor e de preparo das agendas de prioridades das
unidades da Empresa” (p. 17).
Infelizmente, o diagnóstico e as reflexões contidas na publicação “Visão” são um
nítido reflexo, talvez sintomático, do estado atual vivido pela Empresa, pois a análise
publicada é insuficiente e o documento, lido friamente, é caracterizado por ser
analiticamente pobre. É altamente improvável que a promessa acima referida possa
concretizar-se em algum momento, em face da natureza superficial das diversas partes
do “Visão”, chegando a ser simplório em algumas de suas partes. Não obstante os
louváveis esforços realizados e a mobilização de diversos especialistas, a maioria da
própria empresa, a análise e as propostas surpreendem pela linguagem inespecífica
53 O documento Visão 2014-2034. O futuro do desenvolvimento tecnológico da agricultura brasileira (2014)
pode ser acessado em:
https://www.embrapa.br/web/agropensa/documento-visao
52
adotada e, especialmente, pelo distanciamento da vida real da agropecuária brasileira.
Também não sendo o objetivo desta NT a análise crítica minuciosa do “Visão” (o que
exigiria outro trabalho em separado), comenta-se rapidamente a seguir alguns aspectos
centrais que tornam aquele recente documento, concretamente (embora resultado a ser
lamentado), uma proposta inapropriada para guiar a Embrapa até 2034. São três os
aspectos principais negativos que se destacam e inviabilizam a aplicação prática do que
está sendo proposto na publicação.
Primeiramente, causa surpresa que a maior Empresa de pesquisa agrícola do país,
ao atingir sua maturidade institucional, e dedicada precipuamente ao tema do
“desenvolvimento tecnológico da agricultura brasileira” (que também é o subtítulo do
“Visão”), em sua elaboração não tenha tido como ponto de partida um diagnóstico
rigoroso de realidade. Ou seja, é quase inacreditável que uma proposta da Embrapa
tornada institucional e acoplada à sua missão, ao propor aquele desenvolvimento, não
tenha iniciado (p. 19-35, op. cit.), como seria logicamente esperado, por uma discussão
abrangente, sobre o desenvolvimento agropecuário brasileiro e suas facetas e tendências
principais, ouvindo os especialistas de diferentes campos disciplinares. Como tantos
exercícios similares do passado (que fracassaram), aqui se repete o mesmo erro
primário, que é deixar de examinar detidamente um contexto, historicamente
determinado, e seus limites e possibilidades.54
E somente então, a partir de tal
interpretação, examinar cenários factíveis e capazes de animar o curso futuro. Os
autores do documento, segundo sugerem as evidências, preferiram ouvir com maior
ênfase os especialistas e a bibliografia internacional, os quais analisam superficialmente
o caso brasileiro, embora possam falar em termos mais gerais sobre a “agricultura no
mundo”. Por isto, uma leitura cuidadosa do documento revela, nesse particular, a sua
maior fragilidade: o seu descolamento da realidade da produção agropecuária
brasileira. Como a Embrapa poderá identificar novas agendas de pesquisa sem essa
estrita proximidade com a vida rural brasileira e suas características principais? A
análise sobre a situação atual do “mundo rural brasileiro” em seus ângulos produtivos e
tecnológicos, mas igualmente no tocante aos ângulos institucionais ligados à ação
governamental, os aspectos sociais e culturais e, sobretudo, as dimensões econômicas e
54 Entre muitos outros textos fundamentais sobre a história rural brasileira, consulte-se o capítulo de Geraldo Barros,
“Agricultura e indústria no desenvolvimento brasileiro”, publicado no já citado livro organizado por Antônio
Márcio Buanain e outros autores (incluindo o autor desta NT), O mundo rural no Brasil do século 21, 2014,
p. 79-116.
53
financeiras, é apenas citada superficialmente no texto do “Visão” e, ainda mais grave,
sem qualquer explicitação de suas relações causais – e, portanto, incapaz de definir as
prioridades e os focos principais. É impossível prever como esse documento poderá ser
orientador para as ações futuras da Embrapa, se a correspondência com o mundo real
não surge de suas páginas.
Associado a este argumento desabonador inicial, também surpreende que os
responsáveis pelo documento tenham preferido realizar o exercício de construção de
cenários isoladamente, sem convocar outras instituições governamentais que já
trabalham com metodologias e teorias que sistematicamente se dedicam a “examinar o
futuro”. O apoio óbvio seria aquele que poderia ter sido negociado com o Centro de
Gestão e Estudos Estratégicos (CGEE), organização social da órbita do Ministério de
Ciência e Tecnologia, com larga experiência no campo de estudos de prospecção e
avaliação estratégica. Se a Embrapa não tem nenhuma tradição em tais tipos de
pesquisa, por que optou pela condução isolada de uma atividade de fundamental
importância para o seu futuro próximo, recusando a parceria com instituições que
poderiam oferecer aporte técnico sólido para a tarefa?
O segundo aspecto, igualmente problemático, tornando inócua a publicação, é
exatamente ignorar o que foi citado nesta NT à exaustão, em suas primeiras páginas,
quando se apresentou sinteticamente o “primeiro desafio” ora confrontando o futuro da
Embrapa. Qual seja, a análise é também desconectada dos determinantes econômicos e
financeiros, como aqueles que primeiramente orientam o curso do desenvolvimento
agropecuário brasileiro. É outra omissão que surpreende, pois sendo a agricultura,
primordialmente, uma atividade econômica, este é o eixo fundador, o alicerce a partir do
qual os demais poderão ser propostos e erigidos. Não faz sentido algum, à luz desse
pressuposto, discutir “focos tecnológicos”, como faz o documento (nanotecnologias,
geotecnologia, automação, agricultura de precisão, entre outros), sem evidenciar,
inicialmente, a economicidade de seu desenvolvimento e possibilidades futuras de
concretização na vida real.
Não ter apresentado um retrato da “economia política da agropecuária brasileira”
é insuficiência que torna o “Visão”, de fato, um documento inaplicável. Examine-se
apenas um exemplo, para ilustrar o comentário: há atualmente uma nítida tendência na
distribuição do crédito rural e dos diversos mecanismos de financiamento e, observado
o caso do cultivo mais dinâmico, a soja, se verifica que o crédito público oficial está se
54
concentrando mais nos estados do Sul e dirigido aos estabelecimentos de menor porte
econômico. Enquanto isto, nas regiões de estabelecimentos de maior escala da
agropecuária brasileira (o Centro-Oeste), para uma parte significativa, que já é
aproximadamente a metade do total financiado, os recursos são de instituições
financeiras privadas, incluindo fornecedores de insumos e agroindústrias. Somente esta
clivagem relativa aos determinantes financeiros já produz possibilidades completamente
diferenciadas para os produtores em termos de seus formatos tecnológicos (e, claro, com
imediatas implicações para os produtores de pesquisa agrícola, como a Embrapa). Se
firmas privadas fornecem crédito para a soja, na última região citada, cada vez mais o
financiamento virá acoplado a um “pacote tecnológico” determinado. É um exemplo
concreto da exigência que a Embrapa deveria por a si própria: conhecer detalhadamente
o funcionamento atual da agropecuária, muito além da generalização, quase retórica,
contida no “Visão”.55
Finalmente, um terceiro aspecto precisa ser também referido nesse breve
comentário crítico e que diz respeito à inserção, solta e inconsequente, de expressões no
documento, para as quais sequer existe uma bibliografia de sustentação indicada.
Refere-se aqui às expressões “mercado” e “desenvolvimento rural”. No primeiro caso, a
mera inserção da palavra, sem qualquer explicação que demonstre a sua inteligibilidade
lógica (ou teórica), parece sugerir que “mercados” são autoexplicativos e apenas a sua
menção bastaria para sugerir algum tipo de relação causal. O que à luz da literatura
existente, pelo menos no que diz respeito às escolas mais influentes na Economia, não
passa de um primarismo que jamais poderia estar assim presente no documento, quando
se espera que o “Visão” possa ser a proposta norteadora da futura estratégia geral da
Embrapa. Aceitar que mercados são autoexplicativos é premissa de uma ortodoxia
neoclássica que, atualmente, poucos autores seguiriam sem problematizações. A ampla
discussão teórica disponível sobre os mercados como “construções sociais” e não
apenas simples mecanismos de troca foi ignorada no documento e esta omissão traz
implicações graves para a (falta de) validade da publicação.
Para evitar que esta observação pareça apenas um argumento de autoridade,
inclua-se a citação abaixo. Seu autor é Colin Leys, cientista político e atualmente
55 A discussão sobre as políticas de financiamento e seu detalhamento empírico pode ser encontrada no artigo
intitulado “O tripé da política agrícola brasileira: crédito rural, seguro rural e Pronaf”, publicado no já citado
livro organizado por BUAINAIN, A. M. et al, 2014, p. 827-864.
55
professor aposentado no Canadá, mas reconhecido especialista no campo da “teoria e
política do desenvolvimento”. Leys é o autor de “Underdevelopment in Kenya. The
Political Economy of Neocolonialism”, originalmente publicado pela Universidade da
Califórnia (1975), considerado um clássico nos estudos sobre a economia política do
desenvolvimento. Em um de seus últimos livros, esse autor faz referência aos mercados
como espaços sociais e políticos, e não apenas locais de meras trocas monetárias,
apontando a necessidade de estudá-los profundamente, como forma de entender seu
surgimento, sua natureza e suas possibilidades. A citação é relevante, sobretudo, à luz
do caso nacional comentado nesta NT, pois a produção agropecuária brasileira é
caracterizada por grau acentuado de heterogeneidade estrutural e o funcionamento dos
mercados, na maior parte dos casos já pesquisados, indica situações de abuso
econômico, controle de informações e ausências regulatórias. A ausência dessas
últimas, em particular, como seria esperado, prejudica, em especial, os pequenos
produtores rurais, os quais vão sendo assim crescentemente encurralados, em face das
condições de existência dos mercados concretos, que precisariam ser conhecidos
empiricamente. A inclusão dos “mercados” de forma solta e analiticamente
inconsequente, como consta no documento “Visão”, sugere, portanto, uma inclusão
leviana sobre a vida real. Segundo Leys,
“(…) Real markets are not like the „frictionless‟ markets with ghostly
auctioneers assumed in economic textbooks. On the contrary, every real-
like market is an elaborate set of social institutions that allow a particular
kind of commodity to be traded with a degree of confidence and
predictability, in spite of imperfect information and other problems of the
the kind that neoclassical economic assumes out of existence. So, markets
are highly political; what is always at stake for every firm is survival, to
be secured by any means, not „pure‟ competition alone (…) Real markets
have three characteristics that need to be kept in mind. First, they are
systems of rules and regulations; made and enforced by both State and
non-state agencies (…) everything is subject to regulation of one kind or
another. This is where „market politics‟ especially come in (...). The
second basic point to keep in mind about markets is that they are
complex. For one thing they are typically linked to a wide range of other
markets (…) markets are always „embedded‟ directly or indirectly, in a
vast range of other social relations (…) The third basic point about
capitalist markets is that they are inherently unstable, from the nature of
competition itself” (LEYS, 2001, p. 81-83. Grifo acrescido).56
56 Talvez seja relevante citar que o autor desta NT jamais tenha encontrado sequer uma única referência, entre os
autores brasileiros, ao livro clássico citado. Leys é também autor de The Rise and Fall of Development
Theory (University of California Press, 1996). A citação acima está contida em seu livro Market-driven
Politics: Neoliberal Democracy and the Public Interest (Verso Editions, 2001).
56
Já a inserção da expressão “desenvolvimento rural” é ainda mais curiosa e
inesperada. É sugerido no texto que seria uma “ação transversal”, a qual percorreria os
demais eixos indicados (p. 120-124). Qual seria o entendimento sobre tal expressão, no
documento? Não é indicada, também sugerindo que os autores talvez desconheçam que
o tema “desenvolvimento rural” nasceu no pós-guerra e a bibliografia sobre o assunto é
vastíssima. Infelizmente, no Brasil esta literatura é praticamente desconhecida, o que
produz enorme confusão, pois expressões como “desenvolvimento rural”,
“desenvolvimento agrário”, “desenvolvimento agrícola” e outras são usadas como se
fossem sinônimos. Tal como surge no documento, parece ser apenas uma expressão
destinada a emoldurar um discurso meramente retórico. Houvesse mais rigor conceitual,
se enfatizaria, por exemplo, que o Brasil jamais teve uma política de desenvolvimento
rural e, provavelmente, jamais terá, por tantas razões de alguma obviedade – a principal
delas sendo a percepção social acerca de um setor, a agropecuária, que estaria
“cumprindo as suas funções históricas”, pelo menos em termos produtivos. Se os
processos de seletividade social ora em curso não despertam o interesse da sociedade e
os alarmantes níveis de pobreza rural vão sendo reduzidos em função, ou das políticas
de transferências sociais ou, por outro lado, em decorrência do abandono do campo
pelas famílias mais pobres, então dificilmente uma política de “desenvolvimento rural”
algum dia nascerá no Brasil. Em face desses rápidos esclarecimentos, qual a função
explicativa que a expressão cumpre no documento?
Adicionalmente, o documento “Visão” sequer foi exposto a algum tipo de
validação externa, como seria esperado, em função de sua pretendida função de embasar
o “primeiro impulso” na construção de uma nova estratégia da Embrapa. E mesmo sem
esta validação, houve a decisão de integrá-lo ao “mapa estratégico da Embrapa 2014-
2034”, constante da versão preliminar (25.11.2014) do “Manual do usuário” da “Gestão
integrada de desempenho institucional, programático e de equipes (Integro)”. São
decisões que causam enorme alarme, pois são fundadas em um documento inicial
bisonho e, por isto, falho e insuficiente. Não há, neste particular, como escapar da
previsão: essas são decisões que constroem o “fracasso anunciado”, pois fogem de
qualquer lógica. Como estruturar projetos, formar equipes e forçar focos de projetos a
partir de um documento cuja elaboração contém as graves deficiências indicadas?
Ante o que foi acima sugerido, existe apenas uma atitude racional acerca desses
passos recentes, que seria suspender o “Integro” imediatamente e recomeçar o
57
processo, desenvolvendo um esforço de novamente propor o delineamento geral de uma
nova estratégia, em exercício radicalmente diferente do que foi realizado, em termos
analíticos e metodológicos. Manter o “Visão” como um suposto documento norteador
(o que jamais poderá ser) e, ainda mais grave, igualmente posicionando-o como
orientador de outros passos internos, como a compatibilização das propostas iniciais das
unidades descentralizadas (os planos diretores das unidades) e o futuro Plano Diretor da
Embrapa, além de passos burocráticos como o “Integro”, nada mais representará do que
um tipo de “marcha da insensatez”.
4.3 Quarto desafio: recomendações
Sobre esse desafio específico, esta NT não fará recomendações. Em uma empresa
que, apesar de ser pública, ainda mantém cultura institucional relativamente autoritária,
esse é terreno minado e requer uma decisão da Diretoria Executiva e do Conselho de
Administração sobre a sua forma de encaminhamento. Em decorrência, o autor não tem
a pretensão de arrolar possíveis sugestões para tentar encaminhar as formas de solução
para os descaminhos atuais. Nesse documento, que fique apenas registrado que vivemos
um período no qual parecem ser demasiados os desacertos da governança corporativa da
Embrapa, assim requerendo aperfeiçoamentos.
5. Quinto desafio: pesquisa agrícola e extensão rural. É aproximação recomendável?
Em face da percepção, mais ou menos generalizada, sobre o estado deplorável dos
serviços de assistência técnica e extensão rural no país, com raras exceções em alguns
estados, vem se tornando quase um clamor a necessidade de reconstituição de tais
serviços, em seus formatos tradicionais ou inovando em sua natureza jurídica e
organizacional - estatais ou públicos, quem sabe até mesmo privados. Após o Censo de
2006, evidenciou-se empiricamente que a vasta maioria dos pequenos estabelecimentos
rurais estaria marginalizada ante a necessidade de acesso à melhor tecnologia.57
Por essa
razão, foi sendo amadurecida a proposta de efetivar alguma ação nesse campo,
finalmente acelerada com a aprovação, em maio de 2014, pelo Congresso Nacional, da
Agência Nacional de Assistência Técnica e Extensão Rural (Anater). Simultaneamente
às discussões que antecederam a aprovação do novo ente público, enfatizou-se que a
57 Consulte-se, a respeito, o artigo de Eliseu Alves e Geraldo da Silva e Souza, “Desafios da Agência de Extensão
Rural”. In: BUAINAIN, A. M. et al, op. cit., 2014, p. 925-941. No mesmo livro, ver também o artigo de
Marcus Peixoto, “Mudanças e desafios da extensão rural no Brasil e no mundo”, p. 891-923.
58
Embrapa teria forte papel na implantação dos serviços a serem prestados futuramente
pela Anater. E, como forma de prover uma “ação integrada”, estão sendo previstas
iniciativas em estreita associação com a Embrapa, chegando-se até mesmo à
estranhíssima decisão de formalizar o dom da ubiquidade, com um diretor que ocuparia
simultaneamente uma diretoria nesta última e outro cargo na recém-formada Anater.
Enfatize-se: são movimentos e sinais que representam uma clara ameaça ao
futuro da Embrapa, e estão sendo ignoradas as lições da história. De fato, pesquisa
agrícola e assistência técnica precisam manter alguma separação institucional e, caso
estejam demasiadamente coladas, uma à outra, em um só guarda-chuva institucional, a
pesquisa, quase inevitavelmente, irá sendo marginalizada. A principal razão para esse
provável desenvolvimento diz respeito às naturezas radicalmente diferenciadas desses
dois eixos de ação governamental e o que a literatura já demonstrou, sob o subcampo
das Sociologias, tanto da Sociologia das Organizações como da Sociologia da Ciência.
Em um comentário de relativa simplicidade, insista-se apenas que a pesquisa é uma
atividade que precisa seguir rigorosamente cânones e rituais quase sacralizados, como
resultado do “mundo da ciência” e sua história e práticas correspondentes, já enraizados
há longo tempo. Existem, neste caso, instituições, valores, ritos de passagem, formas de
relacionamento, critérios rígidos de experimentação, teorias e metodologias consagradas
ou sob teste permanente, entre diversos outros aspectos que caracterizam o mundo da
ciência e da produção do conhecimento. É atividade que exige ancoragem abstrata e
teórica, muitas vezes se distanciando do mundo concreto, ainda que seja pesquisa
aplicada. É atividade, por fim, relativamente caracterizada por algum isolamento,
mesmo que sendo realizada através de equipes multidisciplinares.
Todos esses aspectos se distanciam, quase radicalmente, das facetas associadas à
assistência técnica e à extensão rural, que é (ou deveria ser) uma atividade
essencialmente “colada” ao mundo das realidades agrárias. Uma vez comandado um
conhecimento aplicável, a ATER (Assistência Técnica Rural) relativiza a atualização do
conhecimento, pois é comandada “pela razão prática” e sua repetição nos ambientes
rurais. Em face de tais distinções, usualmente corpos de pesquisadores e de técnicos de
campo desenvolvem grande estranheza no diálogo mais permanente, inclusive em face
de inúmeros preconceitos que são rapidamente fomentados em ambos os lados. Uma
Embrapa que seja fortemente envolvida com tais atividades, com grande probabilidade,
irá gradualmente reforçar o campo da assistência técnica e da extensão rural e reduzir
59
(relativamente) o campo da pesquisa. Sem outras razões, que aqui não são citadas, há
outra especificidade tipicamente brasileira: pesquisadores não se unem
corporativamente para proteger seus interesses como grupo, são muito mais
individualistas, enquanto que os conjuntos de extensionistas e técnicos de campo, com
maior facilidade, estão dispostos a formar organizações de interesse, como sindicatos,
para a defesa de seus interesses. O resultado de tal disparidade, com o passar do tempo,
é facilmente previsível. Algumas experiências brasileiras que fizeram a fusão entre a
pesquisa agrícola e a extensão rural (os casos, por exemplo, de Santa Catarina e da
Bahia)58
são demonstrativas do que se afirma acima, mostrando resultados que são, pelo
menos, problemáticos para a pesquisa agrícola.
Essas são algumas das razões pela quais a crescente presença de uma área de
“transferência de tecnologia”, no interior da Embrapa, especialmente com o advento da
Anater, vai sendo, cada vez mais, uma área de “assistência técnica e extensão rural”, e
essas fronteiras são relativamente indefiníveis. O que representará, para a Empresa, uma
ameaça e, nunca, uma nova oportunidade. A Embrapa deveria estar discutindo muito
mais criticamente tais transformações operadas no período recente e as reais motivações
de alguns atores sociais e políticos externos à organização. Seria necessário, ante esse
novo contexto, um esforço maior de discussão sobre as implicações de uma presença
interna crescente da área de TT e as iniciativas em ATER, inclusive porque a maior
parte das propostas de ação, sob o rótulo de “transferência de tecnologia”, ignora o
conhecimento recente acerca das profundas transformações agrícolas e agrárias em
curso nas regiões rurais brasileiras e, no geral, repete a mesmice consagrada no passado
pelos serviços estaduais de extensão rural, apenas incorporando facetas da nova
“narrativa dominante”, as quais, sempre se salientará, são distanciadas do mundo real da
produção e suas necessidades.
58 Em 10 de dezembro de 2014, a Assembleia Legislativa da Bahia aprovou a extinção da Empresa Baiana de
Desenvolvimento Agrícola (EBDA). Esta tinha sido constituída em 1991, a partir da fusão entre a Empresa de
Pesquisa Agropecuária da Bahia (Epaba) e a Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural da Bahia
(Emater-BA).
60
Pesquisa agrícola e assistência técnica: o caso da Dinamarca59
A principal organização de pesquisa agropecuária da Dinamarca é o “Danish Institute of Agricultural Sciences” (DIAS). Sua sede está localizada na cidade de Tjele, no centro da Jutlândia. Resultou da fusão do “Danish Institute of Animal Science” e o “Danish Institute of Plant and Soil Science”, ocorrida em 1998. Um estudo sobre o funcionamento do DIAS poderia ser proveitoso, para alimentar os debates sobre as relações entre uma organização de pesquisa agrícola e a difusão tecnológica entre os estabelecimentos rurais. Neste caso, por exemplo, seria possível aprender que no caso dinamarquês os temas de pesquisa nascem no interior do “sistema agroalimentar”, com intensa participação, em especial da indústria de processamento, que financia projetos de pesquisa e busca recursos em outras fontes. Para ser executado o projeto, o DIAS conta com equipe própria de pesquisadores, mas também inclui professores, pesquisadores e estudantes das universidades, além de recursos humanos do “Danish Agricultural Advisory Service” (DAAS), que seria o serviço de extensão rural, além dos produtores rurais. Sob tais tendências, a maior parte das pesquisas é essencialmente aplicada.
Na Dinamarca existem apenas 50 mil produtores rurais (pouco mais do que o Uruguai, bem menos do que no Rio Grande do Sul), incluindo aqueles ligados às cooperativas. Todos são cadastrados no DAAS, com os quais mantém rotineira troca de informações, com a finalidade de identificar problemas técnicos em suas propriedades e, a partir da fundação do DIAS, foi sendo formada uma rede, pois praticamente todos têm acesso à internet. Um dos resultados práticos tem sido a possibilidade de realizar experimentos nos estabelecimentos rurais privados, tornando assim desnecessário que a organização de pesquisa mantenha terras próprias para seus experimentos.
5.1 Quinto desafio: recomendações
O que está sendo feito pela Embrapa, sob o rótulo de “transferência de
tecnologia”, em nossos dias, está conceitualmente incorreto e se distancia radicalmente
das necessidades de difusão de tecnologia que um setor agropecuário modernizado,
como a brasileiro, demandaria. Por esta razão, se for permitida uma recomendação
mais direta e impactante, embora necessária, a principal recomendação desta NT sobre
esse quinto tema é reformular radicalmente o Departamento de Transferência de
Tecnologias (DTT). Esta recomendação deveria contemplar a possibilidade de extinção
do Departamento, tal como está atualmente organizado, para permitir o renascimento de
uma forma estratégica de atuação que fosse convergente com os desafios atuais. Assim
afirmado, se trata de uma aparente ousadia, disposta apenas a realçar quase uma
provocação. Contudo, não é nenhuma boutade, mas apenas a sugestão inevitável de uma
verificação empírica sobre os fatos atuais. O foco central do DTT está essencialmente
incorreto porque se dirige exclusivamente aos produtores rurais, o que não produz
resultados em uma agropecuária modernizada, conforme os argumentos submetidos na
59 Agradeço ao colega Amilcar Baiardi, professor titular na UFRBA, por essas informações sobre tendências
observadas na Dinamarca sobre o tema em discussão. Resultam de sua larga experiência acerca dos sistemas
de pesquisa agropecuária em alguns países europeus nos quais vem sistematicamente realizando pesquisas.
61
primeira seção desta NT. Manter o foco nas decisões dos produtores, como se
mantivessem ampla autonomia sobre seus respectivos formatos tecnológicos e
processos decisórios é erro primário, pois os resultados sempre serão (e cada vez mais)
insatisfatórios. O processo de intensificação tecnológica no interior dos
estabelecimentos rurais, como antes enfatizado brevemente, depende do conhecimento
das cadeias produtivas e o detalhamento do processo de inovações nelas operado,
incluindo as redes decorrentes, e esta é a forma de identificar as chances produtivas dos
produtores rurais. Esperar que estabelecimentos submetidos a atores econômicos
“dominantes” em uma cadeia possam tornar realidade esta ou aquela alternativa
tecnológica, apenas porque são mais produtivas fisicamente, mas não tem demonstração
econômico-financeira, é o mesmo que esperar que milagres aconteçam na vida rural.
Outros bloqueios à ação do setor de transferência de tecnologias da Embrapa
decorrem da falta de problematização acerca da “narrativa dominante”, já antes
apontada. A pouca disposição para interpretar criticamente a leitura dominante impede
que aquela ação seja dirigida à concretude dos processos sociais e econômicos das
regiões rurais, mas, contrariamente, que formas de ação sejam propostas apenas in
abstrato. É preciso reconhecer (contra a existente “narrativa dominante”) que não
existem “agricultores familiares brasileiros” tout court, como uma categoria social que
seria portadora de relativa homogeneidade e características sociais específicas: esta é
uma ficcção, criada com propósitos políticos e partidários. Menos ainda existiria um
grupo social que sob esta denominação portaria particularidades culturais essenciais, o
que não é apenas ficcional, mas um absurdo inimaginável do ponto de vista científico,
embora a fantasia seja recebida passiva e acriticamente por instituições do Estado
brasileiro, que parecem fingir-se de míopes em relação a esses óbvios erros empíricos.60
Se uma empresa de pesquisa e de ciência não consegue avaliar criticamente aquela
expressão vazia e genérica, sem colagem às realidades rurais, dificilmente será capaz
de, igualmente, promover ações em transferência de tecnologia.
60 Situa-se perto do ridículo insistir na expressão “produtores familiares” quando o objetivo da política é apontar os
estabelecimentos rurais de menor porte econômico e circunscrever concretamente, em especial, as famílias
rurais mais pobres, visando a maior eficácia da ação governamental. Com esse objetivo, a expressão antes
utilizada, “pequenos produtores rurais”, seria mais apropriada. Intitulando-as genericamente de “familiares”,
não há, de fato, uma separação empírica entre os estabelecimentos, pois praticamente todos são familiares,
inclusive os imóveis de grande tamanho (pois a administração é familiar). Na maior economia capitalista do
mundo, 97,3% dos estabelecimentos rurais são familiares e, por isto, a separação empírica se dá pelo nível de
renda e nenhum outro critério. Consulte-se HOPPE, R. e MACDONALD, J., “America‟s diverse Family
farms: 2014 Edition”. Washington: ERS: Economic Information Bulletin 133, 2014. Disponível em:
http://www.ers.usda.gov/publications/eib-economic-information-bulletin/eib133.aspx
62
É preciso reconhecer a profunda heterogeneidade do grande grupo dos
“estabelecimentos rurais de pequeno porte econômico”, pois o critério definidor é este:
produtores rurais desempenham uma atividade econômica e, quando chamados de
“familiares”, no sentido que se pretende apontar no Brasil, está se referindo àqueles de
“pequeno porte”. Similarmente ao que a literatura brasileira, até o final dos anos oitenta,
intitularia de “pequena produção rural” (ou “pequenos produtores”). Uma vez
reconhecida esta maior clareza empírica sobre o público-alvo, se identificará a sua
extrema heterogeneidade estrutural e, portanto, suas chances sociais e econômicas. Se
assim não for, a Embrapa apenas seguirá os erros mais gerais da ação governamental do
Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) destinada ao mesmo público: por se
mover apenas por motivações ideológicas, aquele Ministério produziu até aqui
resultados paupérrimos, em face dos recursos alocados, além de se mostrar intolerante à
discussão e ao debate centrado em fatos e estatísticas censitárias e da melhor pesquisa
brasileira. Seria este o roteiro que a Embrapa também persegue?
A proposta de radical transformação (ou talvez até a extinção) daquele
departamento é aqui recomendada porque a Embrapa precisa de uma reorientação
drástica nesse setor, reduzindo o espontaneísmo e o obscurantismo atualmente reinantes
e estimulando iniciativas de maior criatividade – à luz das realidades rurais. Como no
exemplo dinarmaquês acima citado, é preciso desenvolver diversos “casos
experimentais e pilotos”, para dar conta da heterogeneidade das situações sociais e
produtivas existentes, utilizando os mecanismos metodológicos mais ousados, se
articulando com os demais setores sociais e organizações existentes e, sobretudo,
aceitando suas limitações e se dispondo a aprender com outros parceiros que trabalham
na área, inclusive fora do Brasil. As propostas recentes conhecidas do DTT chocam pelo
primarismo, pelo engessamento ideológico e, em especial, pelo nítido desconhecimento
do processo recente de transformações da agropecuária brasileira. Nos últimos dez anos
(2004 a 2013), segundo as PNADs, foram extintos quatro milhões de postos de trabalho
no “mundo rural”, tornando o fator trabalho cada vez mais escasso, aumentando os
salários rurais e invertendo o que teria sido permanente em nossa história rural – a
oferta “ilimitada” de mão-de-obra, o que sempre permitiu a super-exploração dos
trabalhadores. Ante esta mudança, as chances de ampliar suas minguadas rendas,
ampliadas anteriormente com o trabalho temporário ocasional, entre os pequenos
produtores rurais mais pobres (especialmente no Nordeste rural) estão sendo
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diminuídas, ao mesmo tempo em que os pequenos produtores com alguma integração ao
mercado, os quais usam também diaristas e algum trabalho contratado ocasional,
também estão sendo encurralados em face desse novo contexto. Por esta e outras razões,
há em andamento um processo de esvaziamento das regiões rurais que está sendo
acelerado em todas as regiões rurais. São fatos reais, empiricamente comprovados em
estatísticas disponíveis – estariam sendo analisados nas propostas do DTT?61
6. Conclusões
“Pois bem, aqui estão meus humores e opiniões: escrevo-os por serem aquilo que creio,
não por serem aquilo que se deva crer. Aqui só tenciono descobrir a mim mesmo, que
porventura amanhã será outro, se nova aprendizagem me mudar” (MONTAIGNE, M.,
1580)62
“In decision making under uncertainty or with a high degree of complexity, behavior
may be due to what Keynes called our „animal spirits‟ rather than to identifiable features
of the situation to which we react in identifiable ways. People do, to be sure, act on rules
of thumb in these cases: the problem is that there are too many of them” (ELSTER, J.,
2007, p. 466. Grifo acrescido).63
O que ocorreria se a Embrapa, por um passe de mágica, em situação hipotética,
subitamente deixasse de existir? A tragédia que potencialmente poderá se concretizar
em breve é que a resposta mais provável em termos dos possíveis impactos poderá ser -
“nada ocorreu” (ou, provavelmente, “quase nada”). Certamente esta sensação seria
uma exagerada manifestação subjetiva, mas é o sentimento que vai sendo compartilhado
por muitos, pesquisadores da Embrapa ou aqueles externos à Empresa. Pois é fato que a
agropecuária brasileira, confrontada com tal situação, provavelmente saberia avançar
em novas iniciativas e procedimentos, em face dos desafios existentes e aqueles que
surgirão nos anos vindouros.
Em consequência dos argumentos sintetizados nesta NT, uma crise organizacional
observa o futuro de médio prazo da Embrapa, pois se vislumbra o espectro de sua
61 Para maior detalhamento sobre as mudanças no mercado de trabalho rural, examine-se o estudo do DIEESE, “O
mercado de trabalho assalariado rural brasileiro”. São Paulo, Estudos e Pesquisas, nº 74, 2014. Sobre as
tendências demográficas nas regiões rurais, é fundamental conhecer o recente artigo de Alexandre Gori, que
aponta as dramáticas mudanças em curso nas regiões rurais, inclusive o aumento de casais rurais sem filhos e
o crescente desequilíbrio das razões de gênero, indicando a masculinização do campo. Famílias menores ou
sem filhos e comunidades rurais com menor número de mulheres jovens e aumento dos casais de maior idade:
estaríamos discutindo em nossas ações de “transferência de tecnologia” essas facetas? Ou tais transformações
demográficas não tem nenhuma relação com o processo de TT em áreas rurais? O artigo intitula-se “O
esvaziamento demográfico rural” e encontra-se em BUANAIN, A. M. et al, op. cit., p. 1081-1100.
62 MONTAIGNE, M. de. Os Ensaios. São Paulo: Penguin, Companhia das Letras, 2010 (a citação está na p. 88-89).
63 ELSTER, J. Explaining Social Behavior. Cambridge: Cambridge University Press, 2007
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desnecessidade. É contexto que emergirá? É impossível saber se assim será, pois uma
situação-limite como aquela dependerá de muitas circunstâncias, algumas imprevisíveis.
Mas, seus elementos detonadores estão sendo fermentados no interior da Empresa, à
espera de mais humildade e coragem de seus dirigentes para discuti-los e, idealmente,
afastar as ameaças existentes, recolocando a Embrapa em um novo caminho
potencialmente mais favorável. Espera-se que esta NT possa ter apontado
construtivamente os principais elementos que exigem imediata discussão interna e,
como resultado, tenha iluminado as mudanças que os novos tempos estão exigindo. Em
particular, são dois os movimentos iniciais e imediatos. Primeiramente, animar espaços
de debate e discussão sem interdições acerca dos temas apontados e outros igualmente
relevantes, mas não discutidos nesta NT, gradualmente também incentivando a
constituição dos ingredientes formativos de uma cultura democrática ainda largamente
inexistente na Embrapa. Secundariamente, e como resultado da materialização do
antecedente, um esforço que seja sério e rigoroso que permita que uma nova e sólida
estratégia possa ser logo materializada, consentânea com os desafios atuais – os citados
e discutidos acima e outros que aqui não foram sequer referidos.
A Embrapa promoverá a sua própria reforma, que é claramente requerida por e
para inúmeras de suas áreas e formas de atuação? Para muitos, em especial os mais
experientes, esta é reforma impossível de ser realizada por dentro, e exigiria uma força
externa para ser implantada, inclusive com um mandato político explícito para impor as
reformas que forem decididas. Mas, seria assim mesmo? A Empresa não teria plenas
condições para a auto-reflexão e a implantação das mudanças? Seria necessária uma
espécie de “intervenção branca” externa? É um tema de debate e, claro, espera-se que a
comunidade embrapiana possa se mobilizar e aderir a esse exercício de interpretação
urgente sobre o estado atual e seu futuro e, idealmente, garantir um processo de
aperfeiçoamento que possa ser conduzido pelos próprios embrapianos, conscientes dos
desafios atuais.
Se navegar é preciso, sem uma carta de navegação correta, nunca se atingirá um
porto seguro. O Brasil precisa de uma empresa pública de pesquisa agrícola plenamente
ativa e adaptada à nova fase do desenvolvimento agrário pelo qual passamos
atualmente, capaz de assegurar o futuro alimentar de seu povo, mas também produzindo
com eficiência e sustentabilidade para um mundo crescentemente faminto.
É preciso mudar - e com urgência. Ou, então, resignar-se à irrelevância.