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1 NOTA TÉCNICA 1 Embrapa: o futuro chegou [Cinco temas para discussão] Zander Navarro 2 [ [email protected] ] Observação : fotografia de autoria do sociólogo José de Souza Martins, professor emérito da USP. Mostra uma parede do Trinity College (Universidade de Cambridge, Inglaterra). Não existiria uma explicação para o fechamento da janela, fato que vem se mantendo por alguns séculos. A fotografia (2010), intitulada “O que aconteceu?”, integra a série “Inquietação da parede num mundo sem janelas”. 1 Documento de circulação restrita - pede-se que não haja multiplicação e nem distribuição para terceiros, sem a autorização do autor. Agradecimentos sinceros são devidos a um grupo de colegas, da Embrapa e externos à Empresa, que leram o documento com antecedência e ofereceram valiosos comentários críticos. Sem citá-los, todos os eventuais méritos da análise decorrem dessa generosa colaboração. Já os erros remanescentes e a versão final do texto são de exclusiva responsabilidade do autor. 2 Engenheiro Agrônomo, Doutor em Sociologia, pesquisador concursado (efetivado em 2011) lotado na SIM - Secretaria de Inteligência e Macroestratégia (Brasília). É professor aposentado da UFRGS (Porto Alegre). Professor e pesquisador no “Institute of Development Studies” (IDS, Brighton, Inglaterra), entre os anos de 2003 e 2010. Foi pesquisador visitante nas universidades de Amsterdam, Toronto e no MIT (Cambridge, Estados Unidos). Foi assessor especial do MAPA (2009-2011) e consultor de inúmeras organizações, brasileiras e internacionais, governamentais e da sociedade civil. Livros recentes (autor e/ou organizador, em coautoria): Agricultura brasileira. Desempenho, desafios e perspectivas (IPEA, 2010); Agricultura familiar: é preciso mudar para avançar (Embrapa, 2011); A pequena produção rural e as tendências do desenvolvimento agrário brasileiro: ganhar tempo é possível? (CGEE, 2013) e O mundo rural no Brasil do século 21. A formação de um novo padrão agrário e agrícola (Embrapa e Unicamp, 2014).

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Page 1: EMBRAPA: o futu

1

NOTA TÉCNICA1

Embrapa: o futuro chegou

[Cinco temas para discussão]

Zander Navarro2

[ [email protected] ]

Observação: fotografia de autoria do sociólogo José de Souza Martins, professor emérito da USP. Mostra uma

parede do Trinity College (Universidade de Cambridge, Inglaterra). Não existiria uma explicação para o

fechamento da janela, fato que vem se mantendo por alguns séculos. A fotografia (2010), intitulada “O que aconteceu?”, integra a série “Inquietação da parede num mundo sem janelas”.

1 Documento de circulação restrita - pede-se que não haja multiplicação e nem distribuição para terceiros, sem a

autorização do autor. Agradecimentos sinceros são devidos a um grupo de colegas, da Embrapa e externos à

Empresa, que leram o documento com antecedência e ofereceram valiosos comentários críticos. Sem citá-los,

todos os eventuais méritos da análise decorrem dessa generosa colaboração. Já os erros remanescentes e a

versão final do texto são de exclusiva responsabilidade do autor.

2 Engenheiro Agrônomo, Doutor em Sociologia, pesquisador concursado (efetivado em 2011) lotado na SIM -

Secretaria de Inteligência e Macroestratégia (Brasília). É professor aposentado da UFRGS (Porto Alegre).

Professor e pesquisador no “Institute of Development Studies” (IDS, Brighton, Inglaterra), entre os anos de

2003 e 2010. Foi pesquisador visitante nas universidades de Amsterdam, Toronto e no MIT (Cambridge,

Estados Unidos). Foi assessor especial do MAPA (2009-2011) e consultor de inúmeras organizações,

brasileiras e internacionais, governamentais e da sociedade civil. Livros recentes (autor e/ou organizador, em

coautoria): Agricultura brasileira. Desempenho, desafios e perspectivas (IPEA, 2010); Agricultura

familiar: é preciso mudar para avançar (Embrapa, 2011); A pequena produção rural e as tendências do

desenvolvimento agrário brasileiro: ganhar tempo é possível? (CGEE, 2013) e O mundo rural no Brasil

do século 21. A formação de um novo padrão agrário e agrícola (Embrapa e Unicamp, 2014).

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2

[ Janeiro de 2015 ]

Nota de esclarecimento preliminar: esta Nota Técnica começou a ser escrita no início de novembro de

2014. Um mês depois, foi desencadeada uma reveladora discussão entre alguns pesquisadores da

Embrapa, motivada inicialmente por uma sugestão de leitura sobre o tema “inovação” (postada para

todos em 8 de dezembro). O debate, inicialmente circunscrito à lista oficial “Pesq-l”, contudo, sofreu

restrições por parte de dirigentes da Empresa, forçando o seu transbordamento para listas de discussões

não oficiais na rede virtual. Foram contribuições de imensa importância para a discussão central desta

Nota, que é analisar “o lugar da Embrapa” em nossos dias. Diversos temas aqui enfocados, direta ou

indiretamente, convergem para os temas discutidos naquele debate. O autor agradece aos colegas pelas

reflexões, tanto na lista oficial como nas discussões que, ironicamente, intitularia de “clandestinas”.

Page 3: EMBRAPA: o futu

3

Sumário

Introdução (p. 3)

1. Primeiro desafio: expansão produtiva e o papel da pesquisa pública (p. 10)

2. Segundo desafio: qual o modelo tecnológico?Ou seriam modelos? (p. 21)

3. Terceiro desafio: a transição geracional na Embrapa (p. 37)

4. Quarto desafio: a governança da Embrapa - a necessidade de

aperfeiçoamentos (p. 42)

5. Quinto desafio: pesquisa agrícola e extensão rural. É aproximação

recomendável? (p. 57)

6. Conclusões (p. 63)

Introdução

“Estamos tão acostumados a nos esconder dos outros que terminamos nos escondendo

de nós mesmos” (La Rochefoucauld, 1665)

“A guerra das ideias é uma invenção grega – uma das invenções mais importantes de

toda a história. De fato, a possibilidade de lutar com palavras, em vez de lutar com

armas, constitui o fundamento de nossa civilização” (Popper, 1956)

“(...) Perhaps the single most important factor separating countries of the world that

have successfully sustained long-term productivity growth in agriculture from those that

have not is their national capacity in agricultural research. Countries that have built

national research systems capable of developing and adapting a continuous stream of

new technologies suitable for local farming systems are generally the ones that achieved

higher rates of long-term agricultural TFP growth” (FUGLIE et al, 2012, p. 10. Grifo

acrescido).3

Este é um comentário analítico elaborado tentativamente sob a forma de uma

“nota técnica” (NT). Portanto, pretende estar ancorado em fatos práticos, aplicados e

imediatamente identificáveis, além de fundar-se mais em injunções derivadas do mundo

real da agropecuária brasileira no período contemporâneo e, menos, em digressões

históricas ou especificamente teórico-conceituais. Utiliza a literatura disponível como

sustentação para a análise, sem recorrer aos cânones da redação científica. A Nota tem o

objetivo principal de oferecer à consideração do grupo dirigente maior da Embrapa,

incluindo ex-chefes e lideranças diversas, mas também ao seu corpo de pesquisadores,

diversas reflexões concisamente esquematizadas, relacionadas a um conjunto de cinco

processos em curso, cuja ação e resultados poderão ser potencialmente prejudiciais ao

3 FUGLIE, K. O. et al. Productivity Growth in Agriculture. An International Perspective. Wallingford: CAB

International, 2012

Page 4: EMBRAPA: o futu

4

futuro imediato da Empresa. São, de fato, desafios e impasses que atualmente se

apresentam à Embrapa, os quais, no geral, ainda não parecem ter encontrado respostas

adequadas. Essas situações-problema consideradas de maior relevância, de diferentes

magnitudes e naturezas, sem dúvida, exigirão caminhos de solução muito variados entre

si e, alguns deles, de extraordinária complexidade. São temas apresentados com um

único e exclusivo intuito: estimular o debate interno. Espera-se que este ocorra de forma

abrangente e rigorosa, seguindo metodologias democráticas e participativas que possam

apontar luzes robustas para a reorganização em algumas de suas áreas internas e linhas

de atuação.

Deve ser também enfatizado, categórica e enfaticamente, que o autor desta NT

não se imiscui em disputas internas por posições de poder e o documento foi escrito sob

um sincero sentimento de busca do aperfeiçoamento institucional e da construção

coletiva da Empresa. A Nota não representa uma crítica pessoal a nenhum colega, ou

grupos de colegas, em especial àqueles que se esforçam atualmente para gerir a

Embrapa com grandeza de propósitos. Portanto, não é crítica direta à Diretoria ou a

embrapianos em particular, inclusive porque três dos desafios são problemas crônicos

que vêm sendo catalisados há diversas administrações, enquanto os outros dois são

processos que exigem a interpretação apropriada. A Diretoria Executiva, se entender

que a análise oferecida é embasada em razoável fundamento empírico e desejar

promover as mudanças necessárias, apresenta irrepreensível legitimidade para realizá-

las – e estou certo que contará com o apoio maciço da comunidade abrigada na

Embrapa, incluindo o autor da Nota.

Esses são comentários que, em especial e principalmente, pretendem sugerir a

necessidade de um decisivo e muito mais ousado esforço de “reinvenção da Embrapa”,

ante dois focos principais que merecem destaque já nessa introdução: (a) uma

inquietante sensação sobre a gradual desnecessidade da Embrapa como contribuinte

relevante para a modernização, a sustentabilidade produtiva e o crescimento da

produtividade geral da agropecuária, sentimento que parece espraiar-se no âmbito da

Empresa, embora ainda sem repercussões ampliadas entre a sociedade; (b) a

constituição recente de uma nova e dinâmica fase do desenvolvimento agrário e

agrícola brasileiros, discutida em publicação lançada neste ano.4 Trata-se de um

4 Conforme os principais argumentos apresentados em diversos capítulos do livro editado por BUAINAIN, A. M. et

al. O mundo rural no Brasil do século 21. A formação de um novo padrão agrário e agrícola. Brasília:

Page 5: EMBRAPA: o futu

5

período emergente que em termos analíticos poderia ser interpretado como a “etapa

financeira” de um ciclo expansivo de produção que foi impulsionado a partir do final

dos anos sessenta. Além do crescimento explosivo da produção, as marcas principais

desta fase atual são a complexidade (muito além das facetas agronômicas ou aquelas

estritamente tecnológicas); o pressuposto do uso contínuo das inovações e o imperativo

da produtividade como principal determinante do negócio agropecuário; o domínio do

capital financeiro; a ampliação dos riscos e, como seu aspecto mais desconcertante, os

descaminhos do Estado e suas políticas (portanto, afetando igualmente a missão

institucional da Embrapa). Da mesma forma, como em outras atividades econômicas, as

dimensões sociais e ambientais também passaram a definir a “rationale” das atividades

agropecuárias, inclusive por imposições normativas. Nesta nova fase, a Embrapa não

teria ainda localizado qual seria o seu lugar mais adequado.

Adicionalmente, em velocidade nunca antes experimentada, o novo padrão vem

selecionando os “vencedores e os perdedores” e promovendo intenso processo de

seletividade social, condenando à marginalização a maior parte dos produtores rurais,

especialmente aqueles de menor porte econômico, produtivo e tecnológico. Enquanto os

aspectos acima referidos são normalmente associados, na literatura, à dimensão virtuosa

da nova fase de expansão ora em curso, este último aspecto representa a “dimensão

social perversa” do atual processo de desenvolvimento agrário no país. A vasta maioria

dos produtores está sendo alijada da atividade em face do acirramento concorrencial

instalado e do impacto de outros fatores que serão citados à frente. Lidar com essas duas

dimensões opostas é o maior desafio para todos os atores sociais e institucionais, direta

e indiretamente envolvidos com “o mundo rural”.5 É desafio que também se apresenta à

Embrapa, pois suas atividades de pesquisa agrícola, para serem consequentes, precisam

Embrapa (coedição com o Instituto de Economia da Unicamp), 2014. Disponível em sua versão completa nos

endereços a seguir referidos:

1. https://www.embrapa.br/busca-de-publicacoes/-/publicacao/998996/o-mundo-rural-no-brasil-do-seculo-21-

a-formacao-de-um-novo-padrao-agrario-e-agricola

2. https://www3.eco.unicamp.br/nea/images/arquivos/O_MUNDO_RURAL_2014.pdf

3. http://www.agrosecurity.com.br/biblioteca/estudos/

5 O que foi intitulado de “desenvolvimento agrário bifronte”, em artigo assinado pelo autor desta Nota e três outros

colegas. Ver BUAINAIN, A. M. et al, “Sete teses sobre o mundo rural brasileiro”, Revista de Política

Agrícola, ano XXII, nº 2, abril/junho de 2013, p. 105-121. Disponível em:

http://www.agricultura.gov.br/politica-agricola/publicacoes/revista-de-politica-agricola

Page 6: EMBRAPA: o futu

6

interpretar e lidar com um aspecto estrutural que atualmente marca fortemente as

regiões rurais – sua profunda heterogeneidade produtiva e tecnológica.6

A NT reflete a experiência profissional do autor, como sociólogo pesquisador do

desenvolvimento agropecuário brasileiro e as decorrentes transformações na vida social

rural, assim como as particularidades da atividade econômica chamada “agricultura” –

pelo ângulo das Ciências Sociais Rurais e da Agronomia. Também reflete a percepção

do autor em relação à urgência das mudanças requeridas nas orientações e diretrizes

principais da Embrapa, reposicionando-a no âmbito do “admirável mundo novo” que

vem se estruturando nas regiões rurais brasileiras. Entende-se que se tais mudanças

internas não ocorrerem, fundadas em uma nova estratégia lógica de atuação, a Empresa,

provavelmente, não mergulhará em “crise institucional” e nem enfrentará algum

turbilhão administrativo nos anos vindouros. Mas, sem mudanças profundas (e

urgentes) a Embrapa dificilmente irá manter um papel relevante no desenvolvimento

agrícola futuro do país. Também não estará imune ao processo de decadência que se

instala em instituições e empresas (públicas ou não) que são incapazes de interpretar

mudanças contextuais e novas demandas, dos clientes e da sociedade. Há um risco ainda

mais grave em uma Organização que fomenta inovações destinadas a modernizar e

garantir a sustentabilidade da economia agropecuária, a qual vem se transformando em

ritmo vertiginoso. Se alguma dúvida persistir, bastaria comparar as tecnologias de hoje

e compará-las com a fronteira técnica de apenas duas décadas atrás, para perceber a

radicalidade das mudanças. E o futuro próximo promete ultimar a mesma comparação,

quando então o “moderno” de hoje será visto como quase irrelevante.

O sentimento de inquietação interno se avoluma a cada dia e atualmente são

visíveis diversos sinais de obsolescência da Empresa, em muitas de suas partes

componentes. Urge, portanto, provocar e concretizar as transformações institucionais

que possam produzir caminho mais promissor para o seu futuro imediato. O primeiro

ciclo de vida da Embrapa, completados os seus primeiros quarenta anos com

reconhecido sucesso, esgotou-se em significativa medida e gera, em nossos dias, uma

crescente hesitação sobre metas e objetivos, além de indefinições que são indesejáveis e

insustentáveis. Em particular, potencializa impasses institucionais derivados da

inexistência de uma consistente estratégia adequada ao momento vivido pela Empresa,

6 Ver VIEIRA FILHO, J. E., “Transformação histórica e padrões tecnológicos da agricultura brasileira”. In:

BUAINAIN et al, op. cit., 2014, p. 395-422.

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7

o que pode fazer a explicitação de sua atual missão institucional uma frase que é

meramente retórica.

Parece ser inegável que é este o maior obstáculo que a Embrapa precisa vencer

atualmente: assegurar-se de que estaria sendo construído um sólido rumo, uma

estratégia assentada em missão institucional que seja lógica com os fatos e

compreensível para todos, os embrapianos e aqueles que externamente acompanham e

se relacionam com a Empresa. Um dos seus principais pesquisadores e ex-presidente,

Eliseu Alves, valendo-se de sua lendária objetividade e elegância, vê um contexto onde

prevalece um excesso de “procedimentos” que estaria afetando a produtividade final da

Embrapa, alertando que tal relação é inversa porque existem “(...) rumos obscuros,

tarefas que transcendem a formação dos pesquisadores, senso exagerado de confiança e

poder, obstáculos ao empreendedorismo, dispersão de esforços e excesso de

burocracia”.8 De fato, essas são palavras polidas para indicar, sob o manto de uma

finíssima ironia, exatamente o inverso. Ou seja, há realmente um “senso exagerado”,

mas não de confiança, e sim, entre muitos, de profunda hesitação, camuflada algumas

vezes por postura de soberba que é puramente defensiva, um comportamento ilusório

que supostamente protegeria a Empresa do verdadeiro cul-de-sac institucional

atualmente em curso, o qual em certa medida até independe da vontade ou da

consciência de parte de seus dirigentes, pesquisadores e os demais funcionários.

Outro especialista em temas relacionados à inovação na agricultura, sem se referir

diretamente à Embrapa, faz alerta semelhante, quando apresenta a pergunta: “(...) um

sistema que se implanta de forma virtuosa gera situações que perduram, estados

estacionários, ou equilíbrios dinâmicos? Ou ao contrário (...) a continuidade desse

sistema demanda soluções com crescente complexidade ou uma redefinição de seus

elementos dinâmicos? (...) sistemas complexos, baseados em conhecimento, geram

dependência de caminho. Tudo indica que a experiência do agronegócio brasileiro está

justamente a enfrentar esse grande dilema”.9 Somados os argumentos, parece ter

chegado a hora de mobilizar a coragem, a competência e a motivação transformadora de

todos os embrapianos de boa fé, para enfrentar os desafios descritos a seguir, pois

8 ALVES, E., “Fontes de inspiração da Embrapa”, in Revista de Política Agrícola, janeiro-março de 2014, ano

XXIII, nº 1, p. 129. Disponível em:

http://www.agricultura.gov.br/politica-agricola/publicacoes/revista-de-politica-agricola

9 SILVEIRA, J. M., “Agricultura brasileira: o papel da inovação tecnológica”, in BUAINAIN, A.M. et al, op. cit,

2014, passim (grifo acrescido).

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8

decisões mais ousadas, algumas de problemática implantação, serão necessárias. A

escolha que vai se materializando parece ser cruamente dicotômica: ou a manutenção de

uma provável marcha à obsolescência e à derrocada, talvez até pacífica e alegremente,

como na fábula do flautista de Hamelin, ou a inevitável turbulência advinda de decisões

destinadas a concretizar a refundação da Embrapa, em busca de um novo ciclo que

possa ser igualmente virtuoso. Não existiria uma terceira via.

A Nota Técnica aponta, sustentada em breve argumentação (especialmente

empírica), alguns dos problemas principais e mais imediatos que precisam ser

discutidos com profundidade para embasar decisões e ações, muitas urgentes. Alguns

são de amplo escopo e gigantesca complexidade. Outros são mais específicos e

localizados. Se forem desafios confrontados com êxito, sinalizarão as soluções que

garantirão, à Embrapa, a possibilidade de navegar com mais segurança a sua segunda

geração de vida, associada às transformações sociais e econômicas da economia

agropecuária. Seu contrário, que seria a omissão ou fracasso na implantação de tais

mudanças, poderá situar a Empresa, em prazo até curto, no campo da irrelevância.10

A NT divide-se em cinco seções, antes de uma breve conclusão. A primeira

destaca a tendência mais ampla do processo de transformação estrutural das agriculturas

que se modernizam intensamente em regimes capitalistas. Realça também que ante tal

transformação, o termo “inovação” assume significados mais abrangentes, densos e

complexos, sob os quais as instituições estatais de pesquisa agrícola, como um padrão

recorrente em comparação com outros países, observam seu rebaixamento relativo ou

até mesmo seu ocaso, em face da capacidade técnica e da agilidade operacional dos

demais agentes privados produtores de inovações. Nesta seção recomenda-se que a

Embrapa passe a estudar detidamente o processo de criação e difusão de inovações e as

cadeias produtivas, pois são esses os “sistemas complexos” que estão sendo

estruturados ante à dinâmica econômica e financeira da agropecuária. A segunda seção

discute um tema urgentíssimo, que se relaciona diretamente à sua missão institucional:

conhecer intimamente o “modelo tecnológico” dominante e suas mudanças históricas e,

também, aferir a possibilidade de existirem “modelos” que possam coexistir. Aqui se

argumenta que a Embrapa ainda está demasiadamente presa à visão do passado que lhe

10 Por tratar de temas controversos e lidando com processos sócio-políticos sujeitos a distintas interpretações,

provavelmente muitos discordarão que este documento possa ser uma “Nota Técnica” propriamente dita, pois

nem sempre os argumentos podem ser sustentados em fatos empíricos de irrefutável comprovação. Saliente-

se, pelo menos, que esse foi o espírito condutor em sua elaboração.

Page 9: EMBRAPA: o futu

9

deu origem, quando aquele padrão produtivo então hegemônico, de fato, na vida real já

foi transformado e caminha para direções muito diferentes. O modelo centrado no

melhoramento de variedades de sementes, em seu sentido clássico, vai perdendo a sua

posição determinante e sendo ultrapassado, em função da verdadeira revolução

científica e tecnológica do período contemporâneo, divisando novos formatos que

passam a orientar a estrutura produtiva da agricultura mais avançada. Segundo todas as

evidências, caminhamos para a possibilidade real de customizar formatos tecnológicos

para as propriedades rurais individuais. Estaríamos, assim, na direção de uma

possibilidade inédita de especificidade tecnológica circunscrita a cada caso decisório

particular.

A terceira seção comenta rapidamente sobre a renovação dos quadros de

pesquisadores promovida pela Embrapa no último decênio e salienta as virtudes do

processo, mas, igualmente, destaca as ameaças para o seu futuro, em face da

inexistência de um processo de transição adequado entre tais gerações. Sugere-se, nesta

seção, que reside aqui um de seus riscos mais imediatos, pois poderão estar sendo

enraizados estilos de pesquisa que a dissociam de sua missão principal. Além disso, a

energia (e alta qualificação) dos novos pesquisadores, que é extremamente bem-vinda

ao processo de renovação, estaria sendo mantida parcialmente inerte. São colegas que

estão à espera de lideranças que conduzam esse novo corpo de pesquisadores a partir de

uma estratégia geral da Embrapa, que hoje parece ser inexistente.

A quarta seção da NT apenas levanta aquele desafio que é, talvez, o mais

premente e perturbador de todos – a confusa governança administrativa da Empresa.

Esse é tema apenas esboçado, pois precisaria ser organizado mais detidamente em outra

NT ou documento específico. Como adentra subtemas de maior controvérsia, esta Nota

tem o cuidado de apenas alertar para determinados aspectos, sem analisá-los em

profundidade, à espera de decisões superiores decididas a enfrentar o tema e sua

delicadeza político-administrativa. Mas, sem dúvida, é preciso aceitar como premissa

que a Embrapa vive atualmente uma profunda incerteza administrativa, produzindo

mais amarras imobilizadoras do que aquelas que naturalmente nasceriam em

organizações que atingem relativa maturidade. Como seria lógico, esse estado de

ambivalência reflete, primordialmente, como antes citado, a inexistência de uma

estratégia, pois sua missão institucional vem sendo fortemente erodida em anos

recentes, ainda sem substituição por outro ideário norteador. Por esta razão, discute-se

Page 10: EMBRAPA: o futu

10

nesta parte (sucintamente) o documento intitulado “Visão 2014-2034”, pois foi o mais

recente esforço de superar esse quadro de incertezas.11

Finalmente, a quinta e última seção conclui apontando um tema de crescente

presença interna, mas que é encorpado principalmente por demandas (e pressões)

externas, que é a relação entre uma instituição de pesquisa científica e uma atividade

finalística e operacional, como a assistência técnica, embutida na empresa sob a

expressão “transferência de tecnologias”. É também tema de relativa dificuldade, mas

os desenvolvimentos recentes estão indicando, de fato, uma grande ameaça para o

futuro da Embrapa. Como se arguirá nesta parte, a maciça presença de tal atividade

poderá condenar a área de pesquisa à marginalização ou, até mesmo, ao seu

desaparecimento, conforme outras experiências o demonstraram à exaustão.

1. Primeiro desafio: expansão produtiva e o papel da pesquisa pública

É preciso ressaltar, inicialmente, que as dúvidas atuais acerca do lugar e do escopo

da pesquisa agrícola pública decorrem, em larga proporção, do próprio sucesso da

Embrapa nos últimos quarenta anos.12

Mas a dimensão da empresa como produtora de

tecnologias relevantes que sejam “suitable for local farming systems” (como destacado

na epígrafe) foi sendo diminuída com o passar do tempo, exatamente porque a

modernização agrícola brasileira tem sido marcada por enorme êxito, ampliando a

produtividade, elevando os montantes físicos da produção, gerando mais valor e

incorporando continuamente novos agentes privados no processo de desenvolvimento

técnico-produtivo. Os números e exemplos são bem conhecidos e não requerem

repetição nesta NT, mas apenas as lições a serem extraídas, que são universais, quando

comparados a outros casos nacionais similares. Esse aprendizado é sistematicamente

arrolado a seguir.

(i) A literatura demonstra que períodos históricos de sucesso da modernização

agrícola produzem riqueza crescente e, desta forma, atraem novos participantes

privados, os quais, por sua vez, são também produtores de novas tecnologias agrícolas e

11 EMBRAPA, Visão 2014-2034. O futuro do desenvolvimento tecnológico da agricultura brasileira. Brasília:

Embrapa, Secretaria de Inteligência e Macroestratégias (SIM), 2014.

12 Sempre que houver referência genérica à atuação da Embrapa como produtora de pesquisa agrícola, entenda-se

que a referência inclui as OEPAS, ou “o sistema nacional de pesquisa agropecuária”. Como é notório, há uma

significativa variação entre tais instituições no tocante à sua eficácia operacional, algumas completamente

irrelevantes e outras com relativa pujança na área, além de outras que ostentam histórias institucionais

admiráveis. Para evitar comentários específicos, registre-se a advertência: o autor não está ignorando as

contribuições estaduais, mas pretende iluminar um foco particular - a Embrapa.

Page 11: EMBRAPA: o futu

11

inovações em geral. O sucesso da ação transformadora da Embrapa, desde a sua

fundação, semeou um campo fértil para o surgimento de seus futuros competidores, o

que é natural que ocorra em processos desse tipo. Mas, não se tem percebido que muitos

dos novos entrantes são, de fato, aliados potenciais da Embrapa e assim precisaria ser

entendido nos anos vindouros. Os novos participantes, cujo papel é cada vez mais

estratégico e necessário, são principalmente (ou quase exclusivamente) privados e, desta

forma, provavelmente serão mais ágeis do que as instituições públicas, seja na

identificação das demandas ou na captura de fatias do mercado.13

(ii) Esses mesmos períodos de intensificação tecnológica, se forem bem sucedidos

na modernização das estruturas de produção, desenvolvem diferentes cadeias produtivas

(ou cadeias de valor, filières ou cadeias agroalimentares, entre outras denominações

consagradas na literatura) e, desta forma, vão gradualmente integrando,

articuladamente, novos participantes privados, atraídos pela disputa do “bolo da

riqueza” que vai sendo gerado com a transformação das regiões produtoras.14

O itálico é

deliberado, pois enfatiza que uma cadeia produtiva, necessariamente, desenvolve

relações lógicas (comerciais, tecnológicas, financeiras) entre os seus participantes,

criando crescente interdependência entre os integrantes das cadeias. Mas, atenção: não

se trata de uma interdependência “neutra”, pois supõe, da mesma forma, uma hierarquia,

cada vez mais incisiva e consequente, mantida pela força econômica e capaz de impor a

racionalidade técnico-produtiva nesse ramo da produção. A existência de um padrão

hierárquico indica que no seu devido tempo um ou poucos agentes privados

participantes vão assumir-se como “dominantes”, subordinando os demais.

(iii) As cadeias produtivas variam muito entre si, nos espaços sociais

determinados pelo sistema agroindustrial correspondente. Algumas são regionalmente

circunscritas e muito rígidas, com o comando indiscutível de uma empresa.15

Outras são

13 “(...) Era 1989 (...) A agricultura era caseira e feijão e arroz atingiam 25% da área de grãos plantada no país. O

mercado externo ainda representava pouco (...). Hoje, o cenário é outro (...). Apenas o agronegócio trouxe

US$ 982 bilhões nominais nesses 25 anos”. In: “Vaivém das commodities”, Folha de São Paulo, 25 de maio

de 2014. O processo de “espraiamento da riqueza” nas regiões rurais não se restringe às esferas puramente

econômicas, pois vai transformando mentalidades, a cultura, os modos de vida e a organização da

comunidade política. Essas são as transformações que precisam ser conhecidas analiticamente, pois

determinam os comportamentos sociais. Ver STREECK, W., “How to study contemporary capitalism?”. In:

European Journal of Sociology, 43(1), p. 1-28, maio de 2012.

14 Outra expressão é “sistema agroindustrial” (SAI). Uma excelente discussão que mapeia o tema encontra-se em

ZYLBERSTAJN, D., “Coordenação e governança de sistemas agroindustriais”. In: BUAINAIN, A. M. et al,

op. cit., 2014, p. 267-294.

15 Os casos de cadeias produtivas mais rígidas e controladas, em processos de modernização da agropecuária,

ocorrem com maior frequência entre os ramos da produção de pequenos animais e, na produção vegetal, em

Page 12: EMBRAPA: o futu

12

também rígidas, em termos tecnológicos, mas a primazia econômica ainda é objeto de

competição entre as firmas principais – é o caso da cana-de-açúcar, provavelmente

também sendo este o caso da cadeia produtiva da soja. E existem também as cadeias que

são mais “frouxas”, pois se distribuem em espaços geográficos muito amplos e tem

diversos agentes privados disputando entre si o controle da cadeia. Por serem assim, não

desenvolveram ainda um modo de comando, tecnológico e econômico. Por isso, são

situações produtivas de grande heterogeneidade (um exemplo seria o caso da produção

de milho no Brasil). Como se espera, a rigidez de uma cadeia produtiva observa relação

direta com a magnitude de riqueza produzida no ramo analisado. Não esquecer: a

cadeia somente se constitui porque produz valor e, portanto, existirá sempre um

conflito em torno da apropriação e da distribuição do valor geral produzido na cadeia. É

ilusório julgar que alguma cadeia de produção se estruture fundada em alguma

“harmonia distributiva” e, portanto, os conflitos fazem parte dos arranjos existentes.

(iv) Dessa forma, conhecer empiricamente as cadeias produtivas, detalhadamente,

em situações de modernização agrícola, passa a ser fundamental para todos os

participantes, inclusive as organizações públicas de pesquisa agrícola. Ainda mais

decisivo será entender as relações das cadeias com os demais mercados, outras cadeias

e, assim, a teia de relações entre todos os elos econômicos e financeiros. Desconhecer as

características empíricas de cada cadeia produtiva, suas especificidades, os

participantes, suas hierarquias internas e a distribuição da riqueza gerada, significará

desconhecer as tendências e estruturas da produção e suas transformações e, no caso

específico da Embrapa, os requerimentos tecnológicos que vão se desenvolvendo ao

longo do tempo. Somente a partir do conhecimento dessas características, será possível

estabelecer as necessidades tecnológicas da cadeia e, por conseguinte, também aquelas

que precisariam ser operadas no interior dos estabelecimentos rurais. Portanto, se

desvendará com precisão o locus no qual a Embrapa deveria situar-se, visando

maximizar a eficácia de sua ação. Uma agenda de pesquisa que seja colada às

realidades empíricas – este deve ser o ponto de partida.

casos de hortaliças e alguns tipos de frutas. Examine-se, no caso brasileiro, a história notável da suinocultura,

analisada por MIELE, M. e MIRANDA, C., “O desenvolvimento da agroindústria brasileira de carnes e as

opções estratégicas dos pequenos produtores de suínos do Oeste Catarinense no início do século 21”. In:

NAVARRO, Z. e KANADANI, S. (orgs), A pequena produção rural e as tendências do desenvolvimento

agrário brasileiro. Ganhar tempo é possível? Brasília: CGEE, 2013, p. 201-232. Disponível em:

http://www.cgee.org.br/publicacoes/pequenos_produtores.php

Page 13: EMBRAPA: o futu

13

(v) Contudo, se este é o ponto de partida, fortemente vinculado ao presente, isto

não significa, é claro, que a construção de cenários futuros e seus desafios possam ser

objetivos secundários. Pelo contrário, a resiliência do setor agropecuário depende de

enorme esforço analítico e intensa discussão interpretativa sobre o futuro provável dos

sistemas agroalimentares e sobre o processo de inovações. Isto significa que a variável

“futuro” é parte essencial da compreensão que a Embrapa deve estar atualmente

internalizando em suas estruturas de pesquisa, se antecipando sobre os

desenvolvimentos hoje em gestação (ou mudanças apenas intuídas a partir de algumas

evidências esparsas). São inúmeros os temas gerais merecedores de estudo: estamos

pesquisando os sistemas agrícolas ou sistemas os agroalimentares e o “alimento” em sua

inteireza? Ou estamos apenas analisando “commodities agrícolas”? O que

conheceríamos além da exportação de mercadorias primárias, em seus destinos de uso e

consumo? E o tema das mudanças climáticas, que encontra dentro da Embrapa diversas

opiniões de especialistas influentes que julgam que “a tecnologia resolverá o problema”

em algum momento futuro, e assim erroneamente secundarizam o assunto? Como

discutir o tema da “sustentabilidade” seriamente, além dos jargões usuais utilizados –

por exemplo, seria possível discutir, de fato, “sustentabilidade social”, em termos

práticos, quando a lógica econômica produz tendências concentradoras que

marginalizam a maior parte dos produtores rurais? Tais questionamentos sugerem que o

tema das “inovações”, no mundo globalizado e intensamente sujeito às interferências

dos processos organizacionais, a crescente complexidade e a intensificação tecnológica,

vai muito além das cadeias produtivas, e este parece ser um conhecimento que ainda

passa ao largo da agenda orientadora da Embrapa.

Na realidade, como se insiste nesta NT, são dezenas os temas associados à

complexidade e às transformações que se associam ao tema das inovações, os quais

estariam exigindo ampla discussão. Outra ilustração: em face do foco central da ação da

Embrapa, por exemplo, haveria a necessidade de intensa discussão sobre o tema da

tecnologia e seu significado mais profundo, seus processos genéticos e sua evolução em

sistemas econômicos que se expandem. Qual a natureza da tecnologia e seu significado

conceitual? Existiriam “teorias sobre a tecnologia”? São muitos os desafios analíticos,

conforme um dos mais reconhecidos especialistas e estudiosos do assunto:

“(…) What is technology in its nature, in its deepest essence? Where does

it come from? And how does it evolve? (…) And so we are caught

between two huge and unconscious forces: our deepest hope as humans

Page 14: EMBRAPA: o futu

14

lies in technology; but our deepest trust lies in nature. These forces are

like tectonic plates grinding inexorably into each other in long, slow

collision. The collision is not new, but more than anything else it is

defining our era. Technology is creating the dominating issues and

upheavals of our time. We are moving from an era where machines

enhanced the natural (…) to one that brings in technologies that resemble

or replace the natural (…) we are moving from using nature to

intervening directly with nature. And so the history of this century will be

about the clash between what technology offers and what we feel

comfortable with (…) Technology, once a means of production, is

becoming a chemistry” (ARTHUR, W. B., 2009, p. 11-12, 25).16

(vi) Um aspecto relevante na gênese e no desenvolvimento das cadeias produtivas

diz respeito a um processo inevitável gerado nas estruturas econômicas e financeiras sob

as quais se enraízam os diferentes modos de hierarquização. No caso das cadeias

produtivas agropecuárias, um aspecto saliente das relações entre os agentes privados

participantes é a crescente subordinação dos produtores rurais. Esses, nas cadeias mais

rígidas, praticamente não tem mais poder decisório acerca das facetas gerais de seu

negócio agrícola, especialmente o formato tecnológico, cada vez mais imposto de fora

para dentro.17

Existe, em consequência, uma relação inversa entre a rigidez da cadeia

(em termos de coordenação) e a autonomia decisória dos produtores. Esses manterão

um relativo grau de autonomia apenas nas cadeias mais “frouxas”, mas se tornarão

crescentemente encurralados, à medida que o engessamento decisório em uma cadeia

produtiva começar a se estabelecer. Tal fato produz inúmeras implicações concretas,

uma delas sendo a perda de qualquer importância prática das visões sobre assistência

técnica e extensão rural que são centradas nas decisões supostamente “autônomas” dos

produtores rurais, tema também comentado na última seção desta NT. Essas são visões

que persistiram no passado, porém estão cada vez mais distantes das realidades rurais

brasileiras. Por esta razão, exige-se, em nossos dias, mais abertura analítica e

operacional para discutir os processos de transferência de tecnologia que melhores

resultados produziriam no Brasil rural.

(vii) Dois aspectos adicionais são igualmente cruciais, quando se estruturam

cadeias produtivas em setores agropecuários modernizados. Um deles diz respeito ao

significado da palavra “inovação” no tocante às transformações produtivas e

16 ARTHUR, W.B. The Nature of Technology. What it is and How it Evolves. Nova York, Free Press, 2009.

17 Uma ilustração de uma cadeia rígida com um agente privado “dominante” é o caso da cadeia produtiva da

suinocultura no Oeste catarinense, antes citada (ver MIELE, M. e MIRANDA, C., op. cit.). Em 1985, eram 55

mil os produtores integrados e, atualmente, seriam menos de dez mil. Esse processo de seleção dos

participantes na cadeia produtiva, sem dúvida alguma, é tendência que ocorrerá similarmente na pecuária de

leite, ora em plena expansão naquele estado sulista.

Page 15: EMBRAPA: o futu

15

tecnológicas do meio rural. Conforme a visão de um especialista, em texto recente,

referindo-se ao caso brasileiro, “(...) destaca-se aqui o isolacionismo da produção

intelectual da economia agrícola, sociologia rural e geografia agrária (para ficar nas

mais evidentes) que não tomou conhecimento do mais importante debate vivenciado no

mundo nos últimos 25 anos sobre o papel da ciência, tecnologia e inovação no

desenvolvimento das nações”.18

Trata-se de comentário crítico que, sem dúvida, poderia

ser estendido mais amplamente a muitas das atividades da Embrapa em seu primeiro

“ciclo de vida”. A discussão sobre as transformações produtivas do mundo rural

brasileiro, nas últimas quatro décadas, ficou estreitamente presa à noção de

“transferência de tecnologia” e os fatores que favoreceriam (ou impediriam) a “adoção

de inovações” nos estabelecimentos rurais. Ou seja, essas últimas (as inovações)

entendidas apenas como técnicas e processos tecnológicos no interior dos

estabelecimentos rurais. Ignoraram-se, no geral, a constituição das cadeias produtivas e

a necessária amplitude do conceito de inovação, uma vez constituídos os sistemas

agroalimentares (ou cadeias de valor).

Da mesma forma, manteve-se o foco estreitamente limitado à “tecnologia em

geral”, não sendo estudadas devidamente as mudanças na organização e na coordenação

daqueles sistemas destinados a produzir mais valor em função das persistentes

inovações introduzidas – ou seja, inovação é muito mais do que meramente “novas

técnicas” utilizadas pelos produtores.19

Em termos mais simples: parte expressiva da

Embrapa (com efeitos imediatos em sua agenda de ação) preferiu não ver que a

crescente complexidade da produção agropecuária vem se ampliando notavelmente

além da porteira dos estabelecimentos rurais, multiplicando as mudanças

organizacionais, financeiras, tecnológicas e as formas de administração, entre outras,

nas cadeias produtivas. Todas essas são mudanças que visam a criação de mais valor, no

geral apropriado por outros agentes privados que não os produtores rurais. Esses

últimos, com o desenvolvimento das cadeias, vão se tornando relativamente menores no

18 SALLES-FILHO, S. e BIN, A., “Reflexões sobre os rumos da pesquisa agrícola”. In: BUAINAIN, A. M. et al, op.

cit., 2014, p. 427.

19 Para ilustrar: uma simples embalagem diferenciada pode “criar valor”, assim como a adoção de códigos de barra

que sugerem existir rastreamento em toda a cadeia, garantindo a qualidade dos produtos. Um supermercado

participante pode criar uma seção especial, anunciando que todos os produtos ali vendidos têm “controle total

de qualidade” – e, obviamente, ampliando os preços de venda. São inovações que escapam da produção direta

e a maior parte dos produtores poderá até mesmo desconhecer que estas inovações existem.

Page 16: EMBRAPA: o futu

16

seu interior, em termos decisórios ou no tocante ao seu porte econômico relativo.20

A

história institucional recente indicou que enquanto se multiplicaram os fatos empíricos

sobre a crescente complexidade da produção agropecuária, a empresa preferiu manter o

foco, as prioridades e a decisões nos temas exclusivamente tecnológicos dentro da

porteira dos estabelecimentos rurais.

Outra implicação diz respeito aos “modelos teóricos de interpretação”. No caso

específico da transformação tecnológica em sistemas agrícolas, a teoria que dominou

durante tantos anos, centrada na seminal contribuição de Yujiro Hayami e Vernon

Ruttan, igualmente se tornou relativamente obsoleta em face da constituição dos

modernos “sistemas complexos” constituídos para abrigar o processo de formação de

inovações nos sistemas agroalimentares. Nesse caso específico, como se repetirá em

alguns momentos desta NT, reside outro problema embrapiano de alguma gravidade:

enquanto a densidade econômica e financeira da agropecuária brasileira foi crescendo

exponencialmente, diminuiu na mesma proporção a capacidade analítica da Empresa

sobre os mesmos temas.21

(viii) Finalmente, há que se ressaltar o foco desse item aqui enfatizado como “o

primeiro desafio” que se apresenta à missão maior da Embrapa nos próximos anos –

qual o lugar da pesquisa pública à luz de tais transformações? Se a modernização

agrícola implica na estruturação de cadeias produtivas, nas quais se ampliam as

inovações, aos poucos as instituições estatais de pesquisa agrícola vão sendo

marginalizadas. Por esta razão, os dados estatísticos e os poucos estudos realizados

indicam que em países com setores agrícolas avançados, as instituições públicas de

pesquisa agrícola gradualmente: (a) perdem seu lugar em termos de importância, no

tocante aos tipos de técnicas e processos tecnológicos desenvolvidos e às agendas de

20 Como exemplo de processos de produção de valor e os mecanismos diferenciados assumidos pelas inovações, ver

os artigos de autoria de Hildo Meirelles de Sousa Filho. Um deles, intitulado “Geração e distribuição de

excedente em cadeias agroindustriais: implicações para a política agrícola”. Encontra-se em BUAINAIN, A.

M. et al, op. cit., 2014, p. 317-336. Outro artigo é intitulado “Oportunidades e desafios para a inserção de

pequenos produtores em mercados modernos” (coautoria de Renato Manzini Bonfim) e foi publicado em

NAVARRO, Z. e KANADANI, S. (orgs), op.cit, p. 71-100. Disponível em:

http://www.cgee.org.br/publicacoes/pequenos_produtores.php

21 Hayami, Y. e Ruttan, V. W. Desenvolvimento agrícola: teoria e experiências internacionais. Brasília: Embrapa,

1988 (originalmente publicado em inglês pela Johns Hopkins University Press, 1985). Consulte-se também

VIEIRA FILHO, J. E. e SILVEIRA, J. M., “Mudança tecnológica na agricultura: uma revisão crítica da

literatura e o papel das economias de aprendizado”. In: Revista de Economia e Sociologia Rural, volume

50, nº 4, p. 721-742, 2012, assim como o pioneiro artigo de POSSAS, M. L.; SALLES-FILHO, S. e

SILVEIRA, J. M., “An evolutionary approach to technological innovation in agriculture: some preliminary

remarks”. In: Research Policy, 25, p. 933-945, 1996. Igualmente fundamental para este debate é o livro de

W. Brian Arthur, op. cit, 2009.

Page 17: EMBRAPA: o futu

17

pesquisa, e (b) tem investimentos relativamente menores em C&T vis-à-vis as empresas

privadas, o que igualmente contribui para secundarizar o papel das instituições públicas

de pesquisa agrícola.22

Esse é o primeiro repto a ser destacado nesta NT - o Brasil

conseguirá trilhar uma tendência radicalmente distinta, comparado às agriculturas

avançadas submetidas a lógicas capitalistas? Ante o extraordinário quadro de

intensificação produtiva experimentada pela agropecuária brasileira, por que esperar que

a Embrapa mantenha a pujante ação que foi sua marca durante o primeiro “ciclo de

vida”, competindo com um número crescente de agentes privados?23

Ressalte-se, contudo, que o tema sobre o “lugar social” das instituições públicas

de pesquisa agrícola, em processos de expansão capitalista, é ainda um debate em

andamento. Primeiramente, em função de problemas de pesquisa que sempre existem,

os quais jamais atrairão o interesse dos agentes privados, o que reforça a necessidade da

presença de instituições públicas de pesquisa agrícola. Sobretudo, contudo, no caso

brasileiro, em decorrência da abissal heterogeneidade estrutural que caracteriza “o

mundo rural” no país. Somente a pesquisa pública poderá lidar com essas diferenças,

pois elas, no geral, afastam os agentes privados. Mais claramente: o caso brasileiro é

profundamente marcado pela desigualdade social em regiões rurais e por uma

impressionante heterogeneidade produtiva e tecnológica e, dessa forma, existe amplo

espaço para a ação da pesquisa pública. O desafio é aprofundar o conhecimento

empírico sobre as realidades rurais, assim assegurando uma identificação correta dos

temas de pesquisa prioritários.

1.1 Primeiro desafio: recomendações

Sintetizado esse desafio, cabe uma ação imediata. A Embrapa está diante do fato,

inequívoco e reconhecido em muitos documentos internos, mas ainda sem impor uma

22 Em recente debate interno envolvendo os pesquisadores, através da lista oficial “Pesq-l”, Judson Ferreira

Valentim, que foi Chefe Geral da Embrapa Acre, foi cristalino sobre esta tendência, quando escreveu que

“(...) ao analisar o Balanço Social de 2013, verificamos que apenas 7% do resultado financeiro são

decorrentes de tecnologias geradas nos últimos 15 anos. Os outros 93% são decorrentes de tecnologias

geradas nos primeiros 25 anos da Embrapa. Cabe notar que os últimos 15 anos coincidem com o avanço do

setor privado na inovação agropecuária, particularmente na geração de cultivares e pacotes tecnológicos para

commodities como milho, soja e algodão. Nessas commodities a contribuição atual da Embrapa para os

resultados é muito pequena” (Mensagem eletrônica de 11 de dezembro de 2014).

23 Conforme um dos raros estudos que analisaram o tema, em uma amostra de países de renda elevada, “(...) In 2007

(…) the private sector spent $19.7 billion on food and agricultural research (56 percent in food manufacturing

and 44 percent in agricultural input sectors) and accounted for about half of total public and private spending

on food and agricultural R&D in high-income countries” (FUGLIE, K. O. et al, “Research investments and

market structure in the food processing, agricultural input, and biofuel industries worldwide”. In: Economic

Research Report, 130, dezembro de 2011, Washington: ERS/Department of Agriculture. Disponível em:

http://www.ers.usda.gov/media/199879/err130_1_.pdf

Page 18: EMBRAPA: o futu

18

reorientação das suas metas e diretrizes - a agropecuária é uma atividade econômica

formada de diferentes ramos e sub-ramos produtivos, os quais vão construindo cadeias

produtivas de diferentes tipos e naturezas pari passu com o processo de modernização

agrícola. Embora a afirmação seja uma primária obviedade, no cotidiano da Empresa

esse fato ainda não parece ser traduzido em posicionamento adequado na construção de

agendas de pesquisa e diversas outras iniciativas. É curioso observar que ante a

iminência do Brasil tornar-se o maior produtor mundial de alimentos, com sua

agropecuária crescentemente globalizada, muitos ainda idealizam esse setor produtivo

meramente como um “modo de vida” ou, ainda mais grave, como uma atividade que

poderia prescindir de imperativos econômicos.24

Assim, a Embrapa requer estar articulada, valendo-se de diferentes mecanismos

de cooperação, com os agentes econômicos principais em cada caso particular. Fechar-

se (relativamente) em si mesma, produzindo novas agendas de pesquisa a partir de

esforços relativamente desconectados (ou desinformados) das realidades produtivas,

pouco produzirá, a não ser ocasionalmente e em situações de puro acaso. Excetuando-se

as iniciativas especificamente destinadas a perscrutar o futuro (que são esforços de

pesquisa essenciais), não faz sentido algum desperdiçar recursos públicos produzindo

esforços tecnológicos distantes das realidades econômicas e produtivas. Pelo contrário,

o sucesso de uma “Embrapa de segunda geração” dependerá, fundamentalmente, do

aprendizado construído a partir de interações virtuosas da Empresa com os agentes

privados das cadeias produtivas. Sobre esse novo momento, a Embrapa deixará de ser

“competidora” e seu papel principal deverá ser o desvendamento da lógica geral da

governança dos sistemas agroindustriais, permitindo que possa atuar contrariamente a

desvirtuamentos derivados da ação de agentes concentradores de poder econômico,

enquanto favorece processos de distribuição de conhecimento, igualmente socializando

os benefícios do processo de inovações. Essas são funções das empresas públicas.

Em síntese e abreviadamente: por um lado, a Embrapa, atualmente, está em

alguma medida afastada do mundo real da produção agropecuária, do ponto de vista

econômico e financeiro (inclusive por não contar com o conhecimento que seria

necessário, por parte da Economia Rural, sobre os processos produtivos). Mas, por

24 Ou ainda nas situações, incluindo também doutores universitários e não apenas pesquisadores embrapianos, que

recuperam do passado remoto o termo “campesinato”, para assim identificar setores da pequena produção

rural no Brasil. Aqui se adentra o terreno do patético.

Page 19: EMBRAPA: o futu

19

outro lado, quase certamente, não é assim do ponto de vista tecnológico ou agronômico,

para os quais um exército de pesquisadores de alta qualificação se dedica

cotidianamente nas suas unidades de pesquisa. Este é o mais valioso ativo da empresa,

mas é necessário aceitar um fato da história: inicialmente (nos anos setenta) o foco

tecnológico bastou para animar o crescimento da produção agropecuária, em face do

primitivismo produtivo então reinante. Mas, nos anos mais recentes, há uma inversão e

os focos econômico e financeiro passaram a ser determinantes. Ilustrando: se nos anos

iniciais da modernização agrícola, que foi uma década de preços reais expressivos para

diversos produtos agropecuários e a base tecnológica a ser modificada era ainda

primária e sem nenhuma sofisticação, três décadas depois tudo mudou. A parte mais

dinâmica da agropecuária se tornou fortemente capitalizada e as exigências de capital se

tornaram muito mais expressivas e, dessa forma, o econômico passou a subordinar o

tecnológico.

Portanto, a agropecuária é, em nossos dias, primordialmente, uma atividade

econômica e esse foco, necessariamente, deve ser o ponto de partida para a ação

institucional da Embrapa. Trata-se de uma observação acaciana, mas apropriada para

uma Empresa na qual pelo menos uma parte dos pesquisadores e dirigentes não vê aqui

o eixo determinante e causal. Insista-se: nada que não seja economicamente viável o

será sob algum outro ângulo. Caso se mantenha movida, principalmente (ou

exclusivamente), por um foco tecnológico, rebaixando as considerações econômicas

para um plano secundário, a Embrapa se descolará da realidade e perderá contato com

as decisões dos participantes das cadeias produtivas.25

Por esta razão prática, a empresa

precisa reconstituir mais ambiciosamente a sua capacidade analítica de interpretar o

desenvolvimento agrário e agrícola do Brasil sob a perspectiva das Ciências Sociais

Rurais – sobretudo, a Economia. Na origem do CECAT (depois extinto, atual SIM), se

defendeu que a nova unidade deveria ser “sediada na Avenida Paulista”, uma metáfora

geográfica que propunha, exatamente, esta aproximação da Embrapa com o mundo real

da economia agropecuária e seus principais agentes privados. Infelizmente, esta

intenção ainda não prosperou adequadamente no âmbito interno, pois o foco

25 Inovação implica em risco e não é sempre possível aferir ex-ante a viabilidade econômica de alguma mudança,

técnica ou organizacional. Da mesma forma, é também preciso considerar que a Embrapa, necessariamente,

precisará sempre desenvolver atividades de pesquisa destinadas ao futuro, cujos imperativos econômicos

podem ser ainda desconhecidos. O ponto aqui a ser ressaltado, contudo, é que as evidências estariam

indicando que a Empresa tem mantido perigosamente distante de sua pauta as exigências econômicas

atualmente impostas pelo desenvolvimento da agropecuária brasileira.

Page 20: EMBRAPA: o futu

20

essencialmente tecnológico é amplamente dominante. É um erro surpreendente a

Embrapa não contar com uma unidade específica destinada a pesquisas sociais e

econômicas, nos moldes do “Economic Research Service”, mantido pelo Departamento

de Agricultura dos Estados Unidos ou, até mesmo, uma unidade similar ao IFPRI,

vinculado à rede CGIAR.26

A iniciativa dos anos iniciais da Empresa, quando foram constituídos os “centros

nacionais de pesquisa por produto”, de integrar economistas às equipes

multidisciplinares de cada centro, não produziu os efeitos esperados. A maior parte

desses técnicos e pesquisadores, após alguns anos, se envolveu em atividades

administrativas e muitos foram se desligando das atividades propriamente de pesquisa.

E a Embrapa, com raras e honrosas exceções, foi sendo privada de conhecimento

analítico sobre os focos econômicos e financeiros, exatamente quando a agropecuária

brasileira foi ficando mais densamente envolta em tais dimensões. Abriu-se assim um

abismo interpretativo entre “o tecnológico”, que continuou a ser dominante no âmbito

interno da Empresa, e “o econômico-financeiro”, que gradualmente passou a ser

dominante na vida real da produção. Confrontada com essa visível tendência, a

Embrapa já deveria ter constituído uma unidade específica para lidar com a necessidade

de produzir análises sociais e econômicas que fossem convergentes com as

transformações em desenvolvimento nas regiões rurais.

Ensinamentos da história: complexidade e expansão econômica produzem a padronização e a simplificação produtiva

Partindo-se do pressuposto de ter sido o modelo tecnológico que moldou a agropecuária brasileira inspirado no caso norte-americano, a partir do final da década de 1960 e, também, aceitando-se que vivemos sob a lógica de um regime econômico capitalista (nem todos aceitam esta segunda premissa, por inacreditável que possa parecer), as tendências observáveis naquele país do Norte deveriam estar sendo analisadas cuidadosamente, para que pudéssemos iluminar o nosso próprio futuro, observadas, certamente, as diferenças entre os dois países. Se o fizéssemos, existiria mais cautela em implantar certos programas governamentais e a Embrapa seria igualmente mais restritiva em algumas de suas atividades.

Tome-se, por exemplo, o componente dedicado à “integração lavoura-pecuária-florestas” do chamado “Programa ABC” instituído pelo MAPA, com a colaboração técnica da Embrapa. Do ponto de vista agronômico, trata-se de proposta irresistivelmente sedutora, pois seria o sonho de ocupação dos recursos naturais no mundo agrícola, desenvolvendo paisagens de uso da terra e exploração produtiva que encantariam qualquer observador. Mas, são combinações econômicas viáveis? E, também, seriam combinações cuja complexidade os produtores rurais estarão dispostos a

26 CECAT era o “Centro de Estudos e Capacitação”, tendo sido substituído pela SIM (Secretaria de Inteligência e

Macroestratégia). O IFPRI é o “International Food Policy Research Institute”, mantido pela rede CGIAR

(“Consortium of International Agricultural Research”).

Page 21: EMBRAPA: o futu

21

administrar? O desenvolvimento da agricultura nos Estados Unidos demonstra, com nitidez estatística, que a crescente complexidade dos sistemas agroalimentares gradualmente forçou os produtores a desenvolverem a especialização, padronizando seus sistemas agrícolas e concentrando-se em número cada vez menor de cultivos. A necessidade de comandar conhecimentos que se tornaram complexos e o acirramento concorrencial puseram poucas alternativas aos produtores – ou serem os melhores em poucos cultivos (ou criações) ou verem reduzidas as suas chances de permanecer no negócio. O gráfico abaixo demonstra tais comportamentos sociais em pouco mais de um século, com a diversificação produtiva desabando ao longo do tempo. Primeiramente, houve a separação entre a produção animal e a vegetal e, posteriormente, as propriedades passaram a se tornar mais e mais especializadas em um número menor de cultivos. Em uma atividade econômica (a agricultura) que não permite a diferenciação do produto, a especialização simplificadora da produção move-se pela busca incessante da produtividade, como a única forma de garantir o lucro final. Por essas e outras razões, é improvável que o sistema ora proposto no Brasil venha a ser aceito por número considerável de produtores, pois a combinação complexidade + acirramento concorrencial também está em pleno desenvolvimento nas regiões mais dinâmicas da agricultura brasileira.

Estados Unidos. Cultivos principais distribuídos por proporções de

propriedades rurais, 1900-2010(Fonte: Economic Research Service, Departamento de Agricultura, 2013)

0

10

20

30

40

50

60

70

80

90

100

1900 1910 1920 1930 1940 1950 1960 1970 1980 1990 2000 2010

% de propriedades

Milho

Algodão

Trigo

Soja

2. Segundo desafio: qual o modelo tecnológico? Ou seriam modelos?

Inicialmente, é preciso um esclarecimento algo simplório, mas nem sempre

percebido imediatamente: o formato tecnológico que chamamos de “agricultura

moderna” é uma longa construção social com antecedentes remotos, embora tenha

seguido uma linha mais nítida de encadeamento de processos a partir de meados do

século 19. Diversas contribuições em termos de novas técnicas e descobertas são

anteriores, desde a chamada “primeira revolução agrícola”, mas, para os efeitos desta

NT se considerará que o coração do padrão tecnológico associado à agricultura moderna

teria nascido com a dupla Mendel e Liebig. É um forçado exagero, reconheça-se, mas o

objetivo aqui é apenas insistir que observamos um período aproximado de oitenta anos

Page 22: EMBRAPA: o futu

22

durante o qual aquele modelo se constituiu em sua inteireza (tendo as descobertas de

Mendel como o ponto inicial). Como resultado, suas facetas principais se

materializaram na década de 1930 e, com a expansão econômica dos Estados Unidos,

no final daqueles anos, a agricultura moderna e seus impactos na reconfiguração da

paisagem agrícola se tornaram realidade, a partir de diversas iniciativas experimentadas

nas principais regiões rurais daquele país. Nasceu, naqueles anos, o padrão tecnológico

da agricultura moderna. É um formato centrado na semente e seu melhoramento

desenvolvido através das pesquisas experimentais, observadas as demais práticas

recomendadas (fertilização do solo, controle de pragas e doenças, entre outras) e os

requerimentos de um ecossistema determinado. Como a última etapa tecnológica da

agricultura moderna foi o desenvolvimento do controle químico de pragas e doenças, a

era derradeira associada a este processo histórico de transformações tem sido intitulada

de “era da química”, conforme o gráfico reproduzido adiante.

Os dados reproduzem a evolução dos rendimentos físicos de milho e de trigo nos

Estados Unidos, cobrindo um período de aproximadamente cem anos. Inúmeras lições

poderiam ser extraídas a partir do exame desses dados. A principal delas sendo a

verificação sobre os efeitos nos rendimentos a partir da década de 1940, nos Estados

Unidos, quando uma combinação virtuosa entre o completo “pacote tecnológico” agora

disponível e uma política de incentivos à modernização agrícola tornou-se realidade.

Essa expansão não nasceu do acaso, pois o crescimento dos rendimentos físicos,

especialmente no caso do milho, refletiu inúmeras iniciativas realizadas em diferentes

regiões agrícolas, muitas operadas décadas antes. São fatores antecedentes de grande

relevância para determinar, sobretudo, os comportamentos das famílias rurais e sua

receptividade em relação ao progresso técnico.

Em um extraordinário livro, Mauro Lopes mostrou que os Estados Unidos, ao

emergirem como a principal potência agrícola do planeta, a partir daqueles anos citados,

estavam, de fato, colhendo os resultados de centenas de iniciativas anteriores de seus

produtores rurais e das instituições ligadas ao “mundo rural”, as quais foram enraizando

as condições que, posteriormente, viabilizariam a implantação da agricultura moderna

no país. Muitas das iniciativas se concretizaram ainda nas últimas décadas do século 19.

Em especial, o livro analisa a trajetória das organizações agrícolas nos Estados Unidos e

Page 23: EMBRAPA: o futu

23

o processo de ação política dos produtores rurais.28

Além disso, foi crescimento que

exigiu um fato que a literatura posteriormente enfatizou, já discutido na primeira seção:

a agricultura moderna seria um conjunto interdependente de técnicas e práticas, as quais

exigiriam sua completa aplicação, para produzir os resultados desejados e que acabaram

sendo observados.

Fonte: diversas (elaboração do autor)

Esse padrão tecnológico, que poderia ser intitulado de “modelo melhorista”,

contudo, gradualmente começou a ser transformado, a partir da década de 1980.

Decorreu do advento de técnicas e processos ligados à biotecnologia, igualmente

impulsionados pela revolução dos sistemas computacionais e outros campos científicos

que foram emergindo no período contemporâneo, todos convergindo para uma

verdadeira “revolução científica e tecnológica” da qual somos todos participantes (e, no

caso da Embrapa, protagonistas) nesse singular período histórico expansivo que ora

observamos. A semente manteve sua centralidade, mas agora submetida a verdadeiros

processos industriais de “desmontagem e reconstrução”, dos quais a transgenia é apenas

uma das técnicas disponíveis e, certamente, a mais discutida publicamente. Trata-se de

28 LOPES, M. R. Agricultura política. História dos grupos de interesse na agricultura. Brasília: Embrapa, 1996.

Ver, em especial, os capítulos 1 a 5 (p. 11-110). Por exclusivo preconceito ideológico (pois é publicação

dedicada à história rural estadunidense), o livro de Lopes tem sido pouco lido e comentado. É outra

manifestação da pobreza analítica reinante entre nós, quando se lembra de que o processo de modernização da

agropecuária brasileira foi montado a partir da experiência norte-americana do pós-guerra. Logicamente, seria

fundamental conhecermos profundamente a experiência daquele país, para entendermos em parte o nosso

próprio desenvolvimento agrário. A lógica e o pensamento racional, contudo, não parecem fazer parte do

substrato mais profundo de nossa cultura e dos nossos comportamentos sociais. Sempre optamos

primeiramente, com pueril entusiasmo, pelo pensamento mágico.

Page 24: EMBRAPA: o futu

24

uma nova “era da biologia”, como às vezes se intitula em alguns estudos a respeito.29

Sob esse novo momento, as práticas de pesquisa convencionais da Agronomia vêm

sendo modificadas, pois a capacidade de “abrir molecularmente e reconstruir sementes”

dessa nova etapa de desenvolvimento tecnológico comandado pela biotecnologia pode

prescindir, muitas vezes, de alguma das demais fases agronômicas antes associadas ao

“pacote da agricultura moderna”. Não se trata, por certo, de ignorar o ambiente e a

natureza sistêmica da produção agrícola (pelo contrário), mas apenas enfatizar que o

foco rigidamente interdependente do formato tecnológico da etapa anterior está sendo

modificado, pois algumas das partes do “pacote” vêm ocupando a primazia, em termos

de seus impactos no resultado final da produção e da produtividade.30

Por tais razões, parece estar no horizonte próximo uma possibilidade ainda

inédita, mas revolucionária para o futuro da agricultura: a customização do formato

tecnológico de cada estabelecimento rural específico. Com o uso de bancos de dados

atualmente existentes (cada vez mais completos), somados ao mais moderno que a

tecnologia desenvolveu, um produtor específico poderá esperar, exclusivamente para o

seu estabelecimento rural, a recomendação de um padrão tecnológico único. Exclusivo

porque eventualmente diferirá de todos os demais, inclusive de seus vizinhos. E tal

modelo tecnológico poderá ser sugerido de longe, por um serviço de assistência técnica

que apenas tenha acesso aos dados particulares daquele estabelecimento. Conforme o

exemplo sucintamente descrito no box à frente, o produtor que for capaz de manejar tal

complexidade e enfrentar com êxito as vicissitudes da lógica econômica, aumentará a

expectativa de ampliar seus ganhos e a escala de seu negócio agropecuário. Se este é um

futuro próximo discernível e factível, são inúmeras as implicações que precisariam ser

29 Um livro já relativamente antigo, que antecipou tais transformações foi escrito por GOODMAN, D. et al. Da

lavoura às biotecnologias. Agricultura e indústria no sistema internacional. Rio de Janeiro: Editora

Campus, 1990 (especialmente os capítulos 1 e 2). Livros que discutiram o desenvolvimento passado dos

sistemas agrários e a formação do padrão tecnológico da “agricultura moderna” são MAZOYER, M. e

ROUDART, L.. História das agriculturas no mundo. São Paulo: Editora da UNESP, 2009. Consulte-se

também CHONCHOL, J. Sistemas agrarios en América Latina. México: Fondo de Cultura Ecnómica,

1996. Sobre o papel dos transgênicos, a bibliografia é vasta e, como exemplo, consulte-se GOMES, W. S. e

BORÉM, A., “As contribuições da biotecnologia para o desenvolvimento do agronegócio”. In: TEIXEIRA,

E. C. et al. A contribuição da ciência e da tecnologia para o desenvolvimento do agronegócio. Viçosa:

Editora da UFV, 2013, p. 317-341.

30 O foco “melhorista” ainda é amplamente dominante na Embrapa. Somada as considerações desta seção sobre os

novos modelos tecnológicos, com a anterior, que enfatizou a crescente predominância dos atores privados,

não deveria ser nenhuma surpresa a perda de importância da Empresa no mercado de sementes. Destaquei

esse ponto em documento escrito em outubro de 2012 e distribuído internamente (“Um ano de Embrapa: uma

visão impressionista”, manuscrito não publicado).

Page 25: EMBRAPA: o futu

25

discutidas em profundidade no âmbito de uma empresa de pesquisa agrícola, como a

Embrapa.

Neste ponto, um bosquejo analítico é necessário, pois parecerá contraditório que

exista a tendência geral à possibilidade de desenhar uma receita tecnológica específica

para cada estabelecimento rural e esta garantir, necessariamente, a sua sobrevivência na

atividade. Se existir a possibilidade de propor um arranjo tecnológico específico,

supostamente deveria existir também a chance de sua permanência como produtor

agrícola, mantendo-se forte do ponto de vista econômico e resistindo à competição com

os demais atores econômicos das cadeias produtivas.

Na prática, em ambientes de recente modernização capitalista, o tecnológico e o

econômico são processos que caminham com lógicas próprias e paralelas, ainda que

necessariamente articulados. De certa forma, repete-se aqui o impasse que foi sendo

desenvolvido ao longo da história da Embrapa, pois a customização do “modelo

tecnológico” para cada estabelecimento rural recolhe a excelência agronômica existente

(que caracterizou a primeira fase da organização) e, ante as inovações disponíveis

atualmente, é a especificidade que é iminente de se tornar viável para os

estabelecimentos rurais. Contudo, sendo a agricultura uma atividade econômica,

existem determinantes causais que são externos, antecedentes e dominantes sobre os

estabelecimentos rurais e que conformam, prioritariamente, as chances dos formatos

tecnológicos agronomicamente adequados para cada caso específico.

Em termos mais simples: a possibilidade de customização de formatos

tecnológicos é específica e proposta do ponto de vista agronômico, se fixa apenas em

resultados produtivos a partir das particularidades de cada estabelecimento (tipos de

solos, declividade, recursos hídricos disponíveis, mão de obra que pode ser mobilizada,

entre outros aspectos). Mas o estabelecimento rural mantém “relações com o mundo”

(econômico-financeiro) e com os mercados, e esses são os determinantes principais.

São os fatores que, em última instância, garantem as chances ou não de permanência na

atividade e, por isto, devem ser priorizados em termos de produção de conhecimento. O

corolário (urgente) é imediato: se irá existir a customização dos formatos tecnológicos e

esses não forem ancorados, preliminarmente, em sua sustentação econômica, serão

propostas técnicas que tenderão a fracassar. Ainda mais diretamente: formatos

tecnológicos se constroem em espaços privados particulares, mas os processos

econômicos são necessariamente gerais. Os primeiros podem garantir a máxima

Page 26: EMBRAPA: o futu

26

produtividade, mas é meta que não garante per se a proteção contra a competição

econômica e os processos seletivos que esta enseja.

Sem diversos outros comentários adicionais, talvez seja suficiente sugerir dois

possíveis impactos, um geral e outro específico. Em termos mais gerais, a customização

do padrão tecnológico em cada propriedade rural exigirá, em especial, o “manejo da

complexidade” e capacitações bastante particulares, para dar conta da intensidade

tecnológica e organizacional decorrentes. O que acontecerá com a maior parte dos

produtores rurais brasileiros, quando trinta por cento deles sequer sabem ler, de acordo

com os dados censitários? Esse futuro que se projeta, portanto, certamente aprofundará,

ainda mais, o processo de concentração da produção agropecuária, nas mãos dos poucos

produtores que poderão ser capazes de lidar com a complexidade que vai sendo formada

nas regiões rurais do capitalismo avançado. O comentário específico diz respeito à

agenda de pesquisas da Embrapa, pois esta ainda se estrutura em boa medida segundo

os ditames de um “modelo melhorista”, muito provavelmente porque a primeira geração

de seus pesquisadores foi assim formada. Parece urgente, portanto, abrir um amplo

debate interno sobre as tendências do modelo tecnológico ora sendo formado nas

regiões rurais de maior dinamismo econômico e produtivo, as quais vão construindo

formatos tecnológicos que ultrapassam aquele modelo centrado no melhoramento de

novas variedades. Em termos mais provocativos: parte, talvez significativa, da pesquisa

patrocinada pela Embrapa ainda tem a mente no passado, ao mesmo tempo em que um

futuro expressivamente distinto já começou a comandar a produção e os sistemas

agroindustriais.

O futuro da atividade econômica “agricultura”

Em recente reportagem (01/12/2014), o jornal “New York Times” relatou as características da produção agrícola moderna, descrevendo alguns aspectos de um estabelecimento rural no estado de Indiana. A matéria é reveladora das tendências atuais do “modelo tecnológico” que está se concretizando como o dominante, evidenciando a íntima relação entre a intensificação tecnológica e a produção agrícola. Mostra diversos aspectos indicativos de uma tendência à “customização do modelo tecnológico”, como realçado nesta NT.

A reportagem é também ilustrativa das tendências mais gerais, destacando-se três aspectos principais: (a) a necessidade de comandar conhecimentos complexos para extrair a máxima produtividade possível, permitindo ao produtor sobreviver à concorrência; (b) a sintomática referência ao filho do vizinho, que já trabalha como empregado do produtor que é o centro da matéria jornalística, uma referência ao processo mais geral de “diferenciação social” que tipifica a expansão da agricultura capitalista, e (c) a tendência à concentração da produção, sugerida pelo crescimento da propriedade e do volume monetário do negócio.

Page 27: EMBRAPA: o futu

27

Trata-se de extraordinária matéria, em face das inúmeras lições e o aprendizado geral contido, explicitamente ou nas entrelinhas da descrição oferecida aos leitores. Para a finalidade desta NT, talvez baste a reprodução de um cartaz desenhado pelo próprio produtor, mantido em seu escritório principal, na propriedade. A figura é uma fabulação do futuro imediato da atividade econômica “agricultura”, mas já vivida pelo produtor, seus familiares e o seu cotidiano. A agricultura propriamente dita, conforme o desenho, é apenas uma parte de uma complexa estrutura, envolvendo um sem-número de outros agentes econômicos. Sugere, da mesma forma, a rede financeira que cerca o produtor e seu negócio e, igualmente, a densa base técnica e o moderníssimo aparato de dados e comunicações (drones, aviões e satélites) que já determinam diversas decisões sobre a produção e suas marcas mais distintivas. É uma ilustração do formato tecnológico “customizado” que, gradualmente, vem tomando conta da agricultura que se moderniza e o centro da rede de relações, curiosamente reproduzida no desenho, não é a propriedade, mas a “nuvem” que armazena todos os dados, internos e externos, os quais permitem a construção da especificidade tecnológica e econômico-financeira da atividade particular desse produtor rural.

Fonte: New York Times, 1 de dezembro de 2014 (http://www.nytimes.com/2014/12/01/business/working-the-land-and-the-data.html?_r=0)

2.1 E os temas sociais?

A argumentação até aqui apresentada poderia sugerir, prima facie, um aparente

determinismo econômico e tecnológico. Seria este o caminho para o desenvolvimento

agrário brasileiro que gradualmente se tornará o exclusivo? Se existe um processo de

expansão econômica que concentra a produção agropecuária, enquanto desenvolve

simultaneamente um processo de seletividade social que marginaliza parte significativa

dos produtores rurais, como lidar com tais tendências? Como seria logicamente

esperada, em termos práticos, a combinação complexidade + acirramento

Page 28: EMBRAPA: o futu

28

concorrencial aprofunda a diferenciação social e produz (como referido anteriormente)

“vencedores e perdedores”.31

Em um país que enraizou um fortíssimo padrão de

desigualdade social, marcado por um dos mais altos indicadores de concentração

fundiária, associado às diferenças produtivas profundas entre as regiões rurais, é

evidente que um período expansivo oferecerá chances relativamente mais promissoras

aos estabelecimentos de maior escala integrados aos mercados, com menores custos de

transação, maiores produtividades e mais preparados para enfrentar a complexidade e os

seus competidores. Contrariamente, a multidão de pequenos produtores, com poucos

recursos, relativamente desinformados sobre as relações econômicas e financeiras e suas

armadilhas e, igualmente, sem políticas de apoio adequadas, gradualmente vem se

vendo empurrada contra a parede. Suas chances de persistir no negócio agropecuário,

cada vez mais, vão sendo reduzidas. Sobre este tema, alguns comentários gerais são

necessários.

Primeiramente, deve ser enfatizado que existe um “modelo geral”, tanto

econômico como tecnológico – a agricultura moderna em regimes econômicos

capitalistas. É padrão que desenvolve algumas leis universais, independentes das

especificidades históricas de cada caso nacional. Por esta razão, nesta NT os exemplos

são extraídos do caso norte-americano, por duas razões principais: (a) por existirem

dados censitários desde 1840, permitindo comparações históricas e o exame detalhado

das tendências estruturais de tal padrão de desenvolvimento; (b) por ter sido o berço da

agricultura moderna, que depois se estendeu para o restante do mundo, incluindo o

Brasil. Dessa forma, trata-se de uma história rural que aponta algumas tendências

gerais, que precisariam ser conhecidas em profundidade.

Em segundo lugar, existem as especificidades nacionais, as quais impõem o que

seria típico do desenvolvimento agrário brasileiro. Por exemplo, sendo um país

continental, a heterogeneidade das transformações produtivas será mais acentuada do

que seria o caso de um país de dimensões mais modestas, conforme demonstra a

literatura disponível. Também por ter sido um país marcado pela escravidão, cujas

31 O conceito de diferenciação social surgiu com o nascimento da Sociologia e foi fundamental para discutir a nova

divisão do trabalho derivada da industrialização (e urbanização) na Europa do século XIX. As origens do

conceito remontam ao Iluminismo Escocês (Ferguson, Millar), posteriormente inspirando Marx, Durkheim e

outros autores fundadores da disciplina. A expressão teórica mais densa se encontra na obra de Parsons. É um

conceito central para entender os grupos e classes sociais existentes nas regiões rurais e suas facetas

principais (incluindo as opções tecnológicas), embora ignorado na discussão brasileira sobre “agricultura

familiar”, por exemplo.

Page 29: EMBRAPA: o futu

29

atividades agrícolas caracterizaram um “modelo agroexportador”, os índices de pobreza

são igualmente estruturais e, embora tenham sido diminuídos em função de recentes

políticas de transferência de renda, ainda são muito presentes nas regiões rurais.

Não se estendendo em comentários adicionais sobre inúmeros outros aspectos que

seriam também relevantes, deve ser ainda citado um terceiro aspecto, que introduz os

temas que deixam de ser primordialmente econômico-financeiros e tecnológico-

produtivos, passando também a ser “social”. Para tanto, observe-se a famosa tabela

construída com os dados apurados em 2005 e, no ano seguinte, publicados no último

censo disponível (dados já defasados em uma década!). Esses dados foram agrupados

por Eliseu Alves e seus colaboradores e talvez sejam os dados mais relevantes

publicados nos últimos anos. Embora Alves seja um pesquisador-ícone da Embrapa, é

de se lamentar que não se tenha feito divulgação ampla desses resultados, pois são

dramáticos, conforme a tabela mostrada adiante. São dados que demonstram

numericamente diversos processos econômicos em curso, assim como suas implicações

sociais. Em especial, a tabela se tornou objeto de análise preocupante em função da

aguda concentração do valor da produção agropecuária, a partir da qual se demonstrou

que um diminuto grupo de produtores (0,62% do total), altamente tecnificados, seria

responsável pela metade da produção agropecuária brasileira (e apenas 13%

responderiam por quase 90% do total da produção).32

Para os propósitos principais desta NT, contudo, os dados sintetizados na tabela

permitem introduzir a “problemática social” do desenvolvimento agrário no país na

atualidade. Grosso modo, com algum exagero estatístico, o exame da tabela permite

concluir que um vasto contingente de estabelecimentos rurais, variando entre 2,5

milhões a 3 milhões (praticamente dois terços do total de estabelecimentos) tem chances

escassas de permanecer como produtores agrícolas nos próximos anos, em suas regiões

de moradia e de trabalho, ainda que eventualmente parte dessas famílias permaneça

morando no campo. Comandam atividades agrícolas tão reduzidas que o valor bruto de

produção (VBP) auferido é igualmente minúsculo e, desta forma, são famílias rurais que

dificilmente permanecerão na atividade em um período de tempo curto a médio. O

segundo estrato, englobando aproximadamente um milhão de estabelecimentos,

32 Eliseu Alves e seus colaboradores publicaram diferentes artigos analisando os dados censitários. No tocante aos

dados da tabela, o artigo mais impactante se intitula “Lucratividade na agricultura” e foi publicado na Revista

de Política Agrícola, ano XXI, nº 2, p. 45-63, 2012, Brasília. O artigo está disponível em:

http://www.agricultura.gov.br/politica-agricola/publicacoes/revista-de-politica-agricola

Page 30: EMBRAPA: o futu

30

provavavelmente forma o tão falado “estrato médio” de produtores rurais, os quais

teriam alguma chance, caso encontrem diversas políticas de apoio, incluindo o acesso à

tecnologia moderna. E, finalmente, existiria o terceiro estrato (aproximados 500 mil

estabelecimentos rurais) que parece ser aquele que constitui o “grupo dos vencedores”,

a elite responsável pela maior parte da produção agropecuária brasileira.

O Brasil e o mundo rural contemporâneo

Brasil. Concentração da renda e pobreza

(Censo de 2006)

Sal. min.

mensal

Número de

estabelec. %

Renda

bruta (%)

rb/est./ sal. min.

mensal

(0 a 2] 2.904.769 66,01 3,27 0,52

(2 a 10] 995.750 22,63 10,08 4,66

(10 a 200] 472.702 10,74 35,46 34,49

>200 27.306 0,62 51,19 861,91

Total 4.400.527 100,0 100,0 10,45

Dados do IBGE, Alves et al. (2012)

Apontada essa configuração geral, no entanto, permanece uma longa lista de

perguntas sobre as realidades rurais, iniciando-se pela mais óbvia: quais são, quantos

são e onde residem os subtipos de produtores, extraídos daquele grande primeiro grupo

que, em tese, estaria condenado ao desaparecimento em prazo curto a médio? Esta é

pesquisa inexistente, ainda que pudesse ter sido realizada a partir dos microdados

censitários. Dessa forma, o Estado brasileiro, o que inclui a Embrapa, tateia no escuro

sobre suas recomendações tecnológicas e outras políticas, pois sequer produziu ainda

uma fotografia empírica minuciosa sobre as evidências concretas relativas à

heterogeneidade demonstrada por indicadores gerais e nacionais. No caso específico da

Embrapa, essa deficiência é demonstrativa de outra de suas insuficiências no campo das

pesquisas sociais, comprobatórias da lamentável inexistência de uma unidade dedicada

às pesquisas econômicas e sociais. E, sem dúvida, deixando outra pergunta no ar: como

desenvolver uma agenda de pesquisa agronômica “colada às realidades rurais”, se tais

estudos não existem? Ou, então, se ampliada a pergunta para o campo da extensão rural,

como recomendar formatos tecnológicos aos produtores rurais, se esse inexistente

diagnóstico não aponta as diferenças de renda, a disponibilidade de força de trabalho e

Page 31: EMBRAPA: o futu

31

de outros recursos (terra e tecnologia disponível), de capital e de conhecimento sobre

mercados, nas diferentes regiões rurais? Ficamos, assim, caminhando a esmo e

especulando sobre o mundo da produção. A Empresa, em face das transformações

recentes em curso nas regiões rurais, especialmente aquelas de maior dinâmica

produtiva, tem sido incapaz de produzir fotografias precisas dos processos econômico-

financeiros em curso.

2.2 Segundo desafio: recomendações

A principal recomendação derivada das observações acima é imediata: é

necessário um esforço muito maior e ambicioso, mobilizando todos os pesquisadores e

analistas, no sentido de, por um lado, analisar e conhecer as tendências do

desenvolvimento agrário brasileiro e suas marcas distintivas e, de outro lado, as

tendências mais gerais das transformações do negócio agropecuário no mundo e suas

peculiaridades tecnológicas. Esse cotejo é que indicará com clareza as possibilidades de

transformação dos formatos técnicos no caso brasileiro, em cada cadeia produtiva, além

de iluminar os requerimentos de pesquisa agrícola e, portanto, o “lugar” da Embrapa e

de suas atividades nos anos vindouros. Em termos mais prosaicos, não se pode

permanecer exaltando continuamente o passado glorioso e imaginar que o presente está

repetindo-o em suas características gerais. Como defendido acima, o que tem sido

modificado, nos anos mais recentes, são também as marcas essenciais dos formatos

tecnológicos e, como resultado, urge conhecer tais tendências e examinar as

possibilidades concretas de seu desenvolvimento no caso brasileiro. Se não se aceitar

que a natureza da agricultura moderna está sendo transformada, não se divisará o

futuro e nenhuma estratégia consistente poderá ser materializada.

A segunda recomendação diz respeito à estrutura existente de centros de pesquisa

da Embrapa. Causa alguma perplexidade que a empresa não pareça ter disposição para

discutir, mesmo que discreta e intramuros, sobre a gigantesca rede de unidades de

pesquisa e de negócios, espalhada por todo o Brasil, em praticamente todos os estados.

Há aqui uma observação que não exige nenhum conhecimento mais aprofundado, mas é

apenas histórica e decorrente do senso comum: a portaria que criou a Embrapa é de

dezembro de 1972 e, naquele ano, a agropecuária e o mundo rural eram radicalmente

distintos. Com algum exagero, se poderia dizer que o Brasil era então apenas um

Page 32: EMBRAPA: o futu

32

produtor de café – e nada mais.34

Parte considerável das unidades descentralizadas da

empresa foi sendo criada, na década de 1970 e na primeira metade dos anos oitenta,

quando as atividades agropecuárias eram ainda muito primitivas, sob qualquer dos

ângulos analisados. A decisão de criar aquelas unidades observou a necessidade, os

contextos e as especificidades regionais que então existiam, gerando, em particular, os

chamados “centros de produtos”.

Meio século depois, (quase) tudo mudou no tocante ao mundo rural, no Brasil e

no mundo, em relação às atividades econômicas agropecuárias. Mas, a lógica geral e a

estrutura de unidades de pesquisa da Embrapa não foram readaptadas em sua essência,

pois se enraizaram ainda mais em suas locações espaciais, também mantendo boa parte

de suas tradições originais e as rotinas de pesquisa. Ou seja, sem maior aprofundamento

empírico: foi sendo criado um fosso crescente entre uma história passada, no geral

muito bem sucedida (sempre será fundamental ressaltar), e as realidades atuais da

produção agrícola, inclusive no tocante à concentração espacial, que mudou em muitos

casos, em função de circunstâncias específicas. Apenas uma ilustração: como analisar o

CPATU (a “Embrapa Amazônia Oriental”), a maior das unidades da Embrapa, com o

maior orçamento e unidade das mais antigas, Centro que foi criado especificamente em

função de uma “problemática amazônica” (sobretudo, florestal), em meio à ocupação

épica daquela região na década de 1970, se comparado com o Pará atualmente, um

estado que provavelmente logo abrigará o maior rebanho bovino do país, além de

desenvolver importantes atividades agrícolas que tendem a crescer exponencialmente?

Qual seria a missão daquela Unidade atualmente, seria possível explicitá-la? Em face da

dinâmica econômica da agropecuária naquele estado, não seria mais apropriado que se

tornasse uma “Embrapa Pará”, dedicada à variada (e problemática) lista de desafios, de

todas as ordens, relacionados ao desenvolvimento da agropecuária estadual?

Caberia aqui agregar as contribuições de outra recente Nota Técnica, elaborada

por quatro colegas da antiga Secretaria de Gestão Estratégica (atual Secretaria de Gestão

e Desenvolvimento Institucional). Os autores analisaram a “perda de participação dos

conhecimentos e tecnologias gerados e produzidos pela Embrapa”, situando-a em

relação ao “conjunto de conhecimentos e tecnologias em uso no setor produtivo”. Para

34 Será iluminadora, neste particular, a leitura do texto do técnico do IBGE e atual coordenador do Censo

Agropecuário, Flavio Bolliger, autor do artigo “Brasil agropecuário. Duas fotografias de um tempo que

passou”. In: BUAINAIN, A. M. et al, O mundo rural, op. cit., 2014, p. 1049-1080.

Page 33: EMBRAPA: o futu

33

tanto, estudaram rigorosamente as séries de dados existentes, investigando a evolução

das receitas próprias da empresa, assim como a evolução da parcela referente ao uso de

tecnologias computadas na apuração anual do lucro social da Empresa.36

As conclusões

dos autores são peremptórias e merecem intensa reflexão, se associando aos temas

referidos nesta Nota Técnica. Segundo aqueles pesquisadores,

“(…) O conjunto de dados que pudemos reunir e as análises que eles

ensejam confirmam a proposição inicial de que as tecnologias e os

conhecimentos ofertados pela Embrapa vêm perdendo participação no

conjunto de tecnologias e conhecimentos em uso nas cadeias produtivas

do setor agropecuário. Cai em termos relativos e em termos absolutos a

receita tecnológica da empresa, tal como pode ser aferida diretamente nos

seus registros contábeis, pelos métodos do Siafi (...). É estável, em termos

absolutos, o valor econômico e social das tecnologias embrapianas, se

aferimos esse valor segundo o método empregado na elaboração do

balanço social da Empresa. Dado que o valor global das tecnologias e

conhecimentos em uso no setor produtivo não para de crescer, só se pode

deduzir que a participação da Embrapa decresce em termos relativos”

(CAVALCANTI et al, 2014, op. cit., p. 15).

Neste ponto, seria preciso também introduzir outro foco, embora sem discuti-lo

mais amplamente. Acima, os autores concluem pela redução relativa do “lugar da

Embrapa” no tocante ao grande conjunto de “tecnologias e conhecimentos ofertados”, o

que se aproxima com a tese da “crescente desnecessidade” da Empresa, discutida nesta

NT. Isto significaria menor impacto de sua ação, mas a partir da primeira década desse

século foi introduzida a noção de “multidimensionalidade dos impactos”, os quais

passaram a orientar a preparação do Balanço Social que, anualmente, tem sido

publicado. Desde 2001, esses documentos passaram a incluir impactos sociais e

ambientais, também adicionando resultados em termos de geração de empregos. A

avaliação multidimensional, igualmente, ampliou-se com o fator relacionado às citações

decorrentes da produção científica da Empresa. Finalmente, nos anos mais recentes, o

Balanço Social passou também a incluir atividades relacionadas à avaliação de políticas

públicas realizadas pelas unidades descentralizadas. Registre-se, contudo, o fato, pois

indica que a suspeita sobre a gradual perda de participação ou relevância da Embrapa,

atualmente, poderá ser analisada por ângulos de maior complexidade empírica.37

Os comentários e a análise dessa segunda Nota Técnica, somados a diversas

outras ilustrações empíricas que poderiam se estender para diversas outras unidades, são

36 Ver Cavalcanti, A.; Avila, F.; Gomes, E. e Marra, R., “Desafios para a Embrapa agora”. Brasília: Scretaria de

Gestão e Desenvolvimento Institucional, novembro de 2014 (manuscrito não publicado).

37 As informações sobre o impacto multidimensional e os detalhes correlatos são de Flávio Ávila (SGI), de acordo

com comentário oferecido à discussão recente entre pesquisadores da lista “Pesq-l” (ver a nota 22).

Page 34: EMBRAPA: o futu

34

citados apenas para por em relevo um fato de imensa obviedade e premente necessidade

de discussão: as unidades da Embrapa, em alguma proporção, perderam o seu sentido

original e precisam atualizar-se. Algumas precisariam se reorganizar menos, outras

bem mais – mas (praticamente) todas elas necessitam, com urgência, desenvolver maior

convergência com as realidades rurais, agrárias e agrícolas de suas respectivas regiões.

Existiriam diretrizes orientadoras para o tema? Seria mais apropriado transformar todas

elas em unidades de pesquisa com um foco geográfico, dedicadas exclusivamente aos

temas do seu estado, se associando intimamente às OEPAs que o desejassem? E as

unidades chamadas de “transversais”, estariam cumprindo o seu esperado papel?

Novamente fica a pergunta que não pode calar: por que não discutimos esse tema, visto

com um tabu intocável, quando uma parte expressiva das unidades descentralizadas não

parece estar cumprindo o seu papel, talvez até mesmo pela falta de clareza na ação geral

da Empresa? Antes que ocorra alguma reação extemporânea e ideologicamente

motivada, não se trata de propor um “ajuste neoliberal”, que implique em demissões e

atos similares, mas tão somente refletir sobre o que é o centro desta NT. Ou seja, a

Embrapa, como está, pode estar sendo condenada à decadência rápida e precisa se

reorganizar e esse caminho pode, sim, significar a extinção de alguma unidade, se este

for o caso. Assim como provavelmente significará a criação de unidades novas em

substituição. O que causa perplexidade é a reiteração da imobilidade, ou seja, a

percepção acerca da persistência dessas disfunções institucionais, sem que exista nem

mesmo um debate correspondente a respeito.38

Há uma terceira recomendação, de nítida dificuldade operacional, caso fossem

implementadas mudanças a respeito. A crescente complexidade tecnológica e

organizacional da agropecuária brasileira, assim como o cada vez mais intricado

desenvolvimento do “modelo tecnológico dominante” para a atividade que vai sendo

desenhado em outras economias avançadas, submete outro dilema para a Embrapa:

pesquisa aplicada, pesquisa básica – ou ambas? Parece óbvio que uma parcela crescente

de esforços científicos já em desenvolvimento (ou a serem desenvolvidos) pode ser

situada no campo da “pesquisa básica” ou, quando muito, “pesquisa básica com foco

38 Praticamente todas as unidades da Embrapa padecem de algum tipo de indefinição quanto à sua missão

institucional e ao seu ajustamento às peculiaridades do desenvolvimento da agropecuária brasileira. Quase

todos os “centros de produto”, por exemplo, mantêm atualmente distâncias consideráveis das regiões

produtoras principais, em função das mudanças ocorridas. Esse fato não produz problemas insanáveis, mas

prejudica a atuação mais eficaz da Unidade. Nenhum dos centros deveria mudar a sua localização?

Page 35: EMBRAPA: o futu

35

geral aplicado”, pois a crescente complexidade, de fato, tem quase feito esta fronteira

impossível de ser determinada, em termos práticos e operacionais. Haveria aqui um

problema institucional mais sério ou esta dicotomização e seu aprofundamento no

cotidiano da empresa representa apenas um resultado natural de uma agropecuária que

se modernizou? Não seria esperado que um setor que igualmente passou a ser

comandado por um estado de complexidade demande, igualmente, a realização de

esforços gigantescos em pesquisa básica, em seu sentido estrito?

Desta forma, como materializar tais esforços, criando novos centros, estimulando

projetos específicos em alguns centros, articulando iniciativas com áreas de pesquisa

das universidades ou outros centros de pesquisa, inclusive internacionais? Pesquisas

sofisticadas em áreas científicas emergentes, que apenas potencialmente gerarão novas

técnicas e processos para o melhor funcionamento da agropecuária são obviamente

necessárias e precisam ser tornadas uma realidade – mas qual o caminho mais

apropriado? Os laboratórios da Embrapa mais produtivos, eficientes e criativos

poderiam ter apoios financeiros de maior envergadura, sem o engessamento normativo e

burocrático que atualmente caracteriza os demais projetos? Um caminho possível seria

discutir a possibilidade de criar um braço intitulado “Embrapa Pesquisa Básica”, o qual

se dedicaria a estreitar laços com institutos de pesquisa e, em particular, com as

melhores universidades brasileiras e, talvez, até algumas internacionais, mobilizando

estudantes de pós-graduação. Por que não instituir um curso multidisciplinar de pós-

graduação em torno do foco “processos científicos básicos em agricultura” e, a partir da

iniciativa, mobilizar recursos humanos que pudessem aprofundar esforços de produção

científica em pesquisa básica? O locus ideal para a iniciativa, sem dúvida, seria o

Cenargen, por tantas razões óbvias, mas é também provável que um centro com essas

finalidades, localizado em torno de Campinas, fosse igualmente apropriado para

fomentar pesquisas “de ponta” em campos emergentes da ciência que, futuramente,

poderiam aportar inovações para a agropecuária brasileira.

Finalmente, um rápido comentário sobre os “temas sociais”. Sob este ângulo,

que combina a dimensão estrutural da pobreza rural com as insuficiências de recursos

apropriados pela vasta maioria das famílias rurais, os constrangimentos ambientais

(caso do semiárido nordestino, por exemplo), além de diversos outros obstáculos, de

naturezas diversas, antepostos à possibilidade de promover a prosperidade e o bem estar

das famílias moradoras nos estabelecimentos rurais de menor porte econômico, seria

Page 36: EMBRAPA: o futu

36

preciso, em especial, uma ação rigorosamente científica.39

E a Embrapa, nesse caso,

poderia oferecer um exemplo paradigmático sobre as formas de encaminhamento

possível no tocante a este histórico desafio que caracteriza as regiões rurais. Ou seja,

promover pesquisas rigorosas e assentadas estritamente no conhecimento científico, as

quais pudessem, finalmente, sugerir caminhos para os aproximados 3 milhões de

estabelecimentos rurais ora ameaçados de marginalização produtiva e econômica. É

preciso reconhecer que as universidades não têm sido capazes de realizar esse esforço,

senão perifericamente. Menos ainda, outras instituições do Estado na esfera do

Executivo, pois estão envolvidas em um cipoal de leituras ideológicas sobre o mundo

rural. Assim, por que a Empresa não realiza esse esforço de interpretação e

desvendamento dos cenários possíveis?

Brasil rural: uma “grande transformação” à vista40

Instituído um “novo padrão agrícola e agrário”, ancorado em imperativos econômicos e financeiros, e ante uma perspectiva comercial de médio e longo prazo que poderá ser promissora, com a agropecuária se transformando em máquina de produção de riqueza que passa a ser irreversível, desenvolve-se atualmente a dualidade já citada nesta NT. Trata-se de antinomia que combina o crescente acirramento concorrencial com a intensificação dos processos de seletividade social que poderão excluir, talvez rapidamente, uma parte significativa das famílias rurais da atividade agrícola. Esta é a principal, a de maior magnitude e a mais relevante questão social atualmente em curso nas regiões rurais – é o destino de milhões de pequenos produtores rurais que está em jogo.

Neste sentido, novamente será elucidativo verificar o ocorrido na história rural dos Estados Unidos, durante um período que cobriria uma geração (final dos anos 40 e até meados da década de 1970), conforme o gráfico adiante. Nesse período, quando a economia norte-americana cresceu a taxas expressivas (são os chamados “anos dourados” da história do capitalismo naquele país), desabou o número de estabelecimentos rurais e desenvolveram-se intensos processos migratórios. O número de propriedades caiu mais da metade, de um pico de quase 6,7 milhões de estabelecimentos em 1938, para o total atual, que é pouco acima de 2 milhões de propriedades rurais, considerando-se todos os tipos, conforme a linha verde tracejada na figura. Ao mesmo tempo, a intensificação tecnológica, aferida através da produtividade total de fatores (PTF), experimentou contínuas taxas de crescimento, indicando uma atividade que se modernizava de forma ininterrupta, fazendo nascer a agricultura mais moderna do mundo.

39 É preciso ter coragem analítica para ir além das nuvens ideológicas que tudo encobrem e estudar rigorosamente as

realidades empíricas. Veja-se, por exemplo, o artigo de Aldenôr Gomes da Silva e Fernando Bastos Costa,

especialistas no semiárido do Nordeste rural, que analisaram a saga dos agricultores pobres daquela região,

salientando que “(...) o Censo [da Agricultura Familiar] mais escondeu do que mostrou a respeito da realidade

no campo, ocultando cada vez mais a diversidade dos estabelecimentos rurais de menor porte econômico no

plano regional” (SILVA, A. G. e COSTA, F. B., “Os estabelecimentos rurais de menor porte econômico do

Semiárido nordestino frente às novas tendências da agropecuária brasileira”. In: BUAINAIN, A. M. et al, op.

cit., 2014, p. 945-977).

40 Apenas como informação para os leitores que não lidam com as Ciências Sociais, a expressão “a grande

transformação”, nesses campos disciplinares, sempre se refere à brilhante e clássica obra de Karl Polanyi,

“The Great Transformation. The Political and Economic Origins of Our Time”, originalmente publicada em

1944 (New York: Farrar & Rinehart). Há tradução em português (Rio de Janeiro: Campus, 1980).

Page 37: EMBRAPA: o futu

37

Segundo todas as evidências existentes, o Brasil iniciou um processo histórico de transformação produtiva similar à agricultura norte-americana daquele período, mesmo que a economia brasileira seja impulsionada por taxas bem mais modestas nos anos à frente. Contudo, em face das fragilidades sociais existentes nas regiões rurais e das circunstâncias contextuais que são diferentes, facilitando os processos migratórios, é bem provável que o esvaziamento do campo brasileiro ocorrerá em período de tempo mais curto, talvez não requerendo o intervalo de uma geração. Por esta razão, é urgente uma discussão ampla que encontre respostas apropriadas à pergunta: "qual o mundo rural que a sociedade brasileira deseja?”. Uma das instituições responsáveis por um dos lados da dualidade referida (a intensificação tecnológica), se a Embrapa não conseguir animar esse debate urgente, quem o fará?

3. Terceiro desafio: a transição geracional na Embrapa

Esse tema pode ser apresentado sinteticamente, pois é notório e faz parte do dia-a-

dia da Embrapa e de suas unidades espalhadas pelos estados, gerando crescentes

desacertos administrativos. Trata-se da notável estatística que nos informa que 70% dos

pesquisadores foram substituídos nos últimos dez anos, conforme os dados oficiais. Esta

mudança teria ocorrido (aproximadamente) na mesma proporção em todas as unidades

descentralizadas. Não obstante esse fato de enorme significação, em face de seus

impactos potenciais positivos, as luzes vermelhas se acendem quando se observa que a

Empresa não vem dando a devida importância ao tema da “transição entre gerações” de

pesquisadores. Não tendo sido desenvolvida uma estratégia fina e adequada para “passar

Page 38: EMBRAPA: o futu

38

o bastão” entre os pesquisadores pioneiros e os jovens que chegaram, os problemas

decorrentes têm sido inúmeros, como seria esperado.41

Impressiona que essa transição não tenha sido planejada com extremo cuidado,

pois são duas gerações de profissionais e cientistas oriundas de circunstâncias históricas

radicalmente distintas, seja no tocante aos ambientes universitários nos quais se

formaram ou, então, no que diz respeito às próprias realidades da produção. Bastaria

lembrar o Brasil ainda fortemente rural e agrário da década de 1970 e o Brasil dos

últimos dez anos, quando a nova geração de pesquisadores cruzou os umbrais da

Embrapa (insista-se aqui na consulta ao artigo de Bolliger, 2014, antes citado).

Separados por meio século, são dois países distintos, pois os indicadores estatísticos são

antípodas em centenas de aspectos, sociais e econômicos. E também políticos: a

Embrapa foi criada no contexto de uma ditadura militar e a nova geração chega à

Organização sob um regime político democrático, diferença que implica em inúmeras

consequências, inclusive comportamentais. A distribuição espacial da agropecuária e

sua estrutura de produção são extraordinariamente diferentes, comparando-se os dois

períodos e, acima de tudo, a constituição inicial da Embrapa foi uma ação épica e

marcada por registros de coragem, dedicação e comprometimentos éticos incomuns.

Uma vez consolidada a democracia brasileira, no entanto, os jovens pesquisadores

são portadores de mentalidades, escolhas, formas de interação e valores que repercutem

outras circunstâncias históricas. Esta é comparação que lembra a famosa frase de Marx,

que escreveu no seu panfleto “O Dezoito Brumário de Luis Bonaparte” (1852) que “A

tradição de todas as gerações mortas oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos”.

No caso específico discutido nessa seção da NT, contudo, o peso da “tradição” teria sido

(quase) perdido, pois o Brasil submeteu-se a passagens históricas radicais e, sob tais

transformações, o passado e seu conhecimento ficaram fortemente esmaecidos, não

determinando tão claramente as práticas científicas da nova geração de pesquisadores.

Bastaria lembrar, como uma das facetas mais nitidamente distintivas entre a primeira

geração e esta nova que gradualmente assume o comando, que os primeiros foram

contratados em meio a um regime político autoritário, o qual deixou marcas ainda

visíveis na empresa. A nova geração de pesquisadores, recrutada nos concursos

41 Sabe-se que algumas propostas metodológicas foram sugeridas e, se implantadas, permitiriam uma transição mais

suave entre as duas gerações. Mas há um fato: as recepções organizadas aos novos pesquisadores, segundo

todas as evidências, foram fracas em termos de conteúdo e, especialmente, foram metodologicamente

equivocadas, gerando o descompasso atualmente existente.

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39

recentes, se formou nas atividades científicas em ambientes profundamente

democráticos do Brasil pós-Constituinte. Não surpreende, portanto, que uma das mais

evidentes formas de inquietação atualmente reinantes nos diversos âmbitos da Empresa

seja esse descompasso entre expectativas de transparência, vigência de mérito,

publicização, respeito à pluralidade de opinião, entre outras marcas de ambientes

democráticos e republicanos, que a maior parte dos novos pesquisadores se acostumou

em seus ambientes de formação acadêmica. De outro lado permanecem os resquícios de

uma cultura institucional de maior rigidez e autoritarismo que relembram os anos

constitutivos e iniciais da Embrapa.

Entretanto, se este é aspecto decisivo para o futuro imediato, também são cruciais

as diferenças entre “conhecimento acumulado” e sua transmissão às novas gerações e,

sob esse particular, a Embrapa está notoriamente fracassando. Não existe nenhum

programa interno que promova maior integração entre as duas gerações, ou alguma

metodologia similar a algo corriqueiro em diversas instituições de ensino e de pesquisa,

como o “mentoring”. É possível especular com razoável chance de acerto sobre as

implicações de mais esta ausência na condução administrativa da Empresa:

conhecimentos que serão perdidos, práticas científicas valiosas que não serão

aprendidas e, portanto, não serão repetidas; tradições de pesquisa ainda relevantes para

o mundo da produção que serão interrompidas, entre outras consequências. Sobretudo,

(re)nascerá uma Embrapa que poderá ter pouco a ver com o passado e, desta forma, as

novas gerações de pesquisadores sequer compreenderão as vicissitudes do

desenvolvimento agrário brasileiro no último meio século.

Mas é preciso evitar desentendimentos sobre o que é acima afirmado: a renovação

do quadro de pesquisadores foi bem sucedida em termos da alta qualificação dos novos

quadros que chegaram e, certamente, a sua disposição geral para a pesquisa e o fomento

à produção científica. Inclusive, muitos têm publicado em revistas internacionais de alto

prestígio (como “Nature” ou “Science”), ampliando a credibilidade científica da

Organização. São outros os focos que merecem aprofundamento. Entre eles, por

exemplo, o hiato entre a missão original da Embrapa, concentrada em pesquisas

aplicadas (tecnologias, processos), e as práticas dos novos entrantes, acostumados,

sobretudo, aos objetivos prioritários de publicar resultados de pesquisa, como forma

principal de valorização acadêmica e profissional. A geração entrante, como outra

ilustração, foi formada sob a “ditadura do Qualis” imposta às universidades em anos

Page 40: EMBRAPA: o futu

40

recentes e acostumou-se, cada vez mais, às pressões para publicar, em movimento de

relativa degradação acadêmica (para atingir o objetivo de ampliar o estoque de

publicações, vale qualquer mecanismo ou artifício).42

Seriam inúmeros os temas que requerem não apenas reflexão, comparando-se os

dois grupos de pesquisadores, mas também formas de ação e iniciativas que

aproximassem as capacidades existentes e ampliassem a sinergia, assim potencializando

resultados mais amplos e consistentes. É um fascinante objeto de pesquisa para uma

tese de Antropologia que poderia bem explicar as dificuldades atuais entre as duas

gerações. Inclusive com um pano de fundo contextual cujo impacto nas práticas

científicas seria facilmente identificável: a própria noção do que vem a ser “ciência” (ou

a produção do conhecimento) modificou-se significativamente nesse último meio

século. Se a geração dos pesquisadores seniores se formou em ambiente de grandes

transformações tecnológicas, a mais recente também experimenta o mesmo, mas em

magnitude gigantesca, incomparavelmente maior. Comparem-se as décadas de 1960 e

de 1970 com os anos mais recentes desse novo século, em termos, por exemplo, de

compreensões sobre a ciência. No primeiro período, emergiram extraordinários

interpretadores que moldaram essas compreensões (destacando-se Lakatos, Kuhn,

Popper, entre muitos outros), os quais produziram um brilhante debate sobre “ciência”,

o qual enraizou um entendimento que ainda permanece influente. Como contexto, o

acelerado processo de crescimento econômico do pós-guerra que produziu fortes

mudanças nas conformações societárias e instituiu os primórdios de uma revolução

tecnológica. Já nos anos desse século, sob os quais se formaram os novos pesquisadores

recém-entrantes na Embrapa, experimenta-se uma intensificação tecnológica sem

precedentes na história humana, inclusive com a ampliação das formas de consumo em

níveis igualmente incomparáveis, entre outras “sísmicas transformações”. São fatos que,

somados aos processos de democratização das sociedades e à emergência de ameaças

planetárias, como as mudanças climáticas, constituem ambientes nos quais os

significados de “ciência” também vêm se modificando radicalmente. São, portanto,

inúmeras as formas analíticas que deveriam estar sendo consideradas e debatidas em

uma Empresa dedicada ao mesmo tema – ciência e a produção de conhecimento.

Deixando de fazê-lo, a Embrapa incentiva os comportamentos acomodatícios e permite

42 Lembrando que o autor desta NT foi professor universitário (na UFRGS, em Porto Alegre) durante mais de três

décadas e observador dessas mudanças apontadas.

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41

que se aprofunde um hiato entre os dois grupos de pesquisadores que principalmente

constituem a sua história institucional.43

Como ilustração sobre esse descompasso entre gerações de pesquisadores

embrapianos, é reveladora a citação abaixo de um dos mais reputados cientistas da

Embrapa, o pesquisador Alfredo Homma, que é considerado um dos maiores

especialistas sobre o tema “Amazônia”. Refletindo sobre as opções produtivas da região

e o papel de grupos sociais de pioneiros na história rural daquela vasta parte do

território nacional, Homma destaca que são produtores que estimularam o avanço das

atividades agrícolas, pois teriam sido vocacionados para determinadas explorações de

cultivos, inclusive ignorando, muitas vezes, as recomendações dos institutos de

pesquisa. Ao comentar sobre os potenciais de outras plantas típicas daquele bioma, o

estudioso enfatiza o atual descompasso entre as duas gerações de pesquisadores, ao citar

que:

“(…) A descoberta de oportunidades para a biodiversidade amazônica

dependerá de pessoas que dediquem 10, 20 ou 30 anos para o pau-rosa, o

tucumãnzeiro, o uxizeiro, o puxurizeiro, as plantas medicinais e

aromáticas, os inseticidas, etc. procurando vencer as limitações existentes.

Os pesquisadores antigos estavam muito mais sintonizados com esse

perfil do que os da atualidade, que estão mais preocupados com a

publicação de trabalhos científicos por indução do atual sistema de

avaliação, o que tem prejudicado seriamente as pesquisas agronômicas na

região” (HOMMA, A. et al, 2014, p. 1003).44

O que deveria ser refletido como sendo mais positivo para o futuro: a inexistência

do passado, que não “oprimiria como um pesadelo o cérebro dos vivos”, mas

implicando na necessidade de recriar quase tudo, como se nada tivesse existido

anteriormente ou, então, uma transição inteligente entre as duas gerações, que

mantivesse o peso da tradição científica, não como uma opressão, mas como uma

virtude? Para qualquer observador externo, causa uma imensa surpresa que diversas

administrações da Empresa tenham sido desleixadas em relação a esse processo de

43 Outro tema de imenso impacto nos comportamentos acadêmicos e científicos, aqui apenas citado sem maiores

comentários, diz respeito à nítida dependência que é mantida no Brasil em relação ao Estado e suas políticas

para o setor de C&T, o que tolhe e apequena a “capacidade empreendedora” da maioria, quase sempre pouco

disposta a correr riscos. Em um ambiente que está exigindo que a criatividade inovadora seja estimulada, é

uma força contrária, de natureza cultural, que precisaria estar também sendo discutida amplamente. O

resultado tem sido práticas de pesquisa que mais se aproximam de comportamentos burocráticos, no sentido

mais negativo da expressão.

44 A citação é do artigo “Dinâmica econômica, tecnologia e pequena produção: o caso da Amazônia”. In:

BUAINAIN, A. M. et al, op. cit., 2014, p. 979-1010. Homma é o editor do monumental livro Extrativismo

vegetal na Amazônia. História, ecologia, economia e domesticação. Brasília: Embrapa, 2014. Disponível

em:

https://www.researchgate.net/profile/Alfredo_Homma/contributions?ev=prf_act

Page 42: EMBRAPA: o futu

42

transição entre as gerações, em especial quando são coletados os inúmeros problemas de

relacionamento, conflitos internos, vícios que vão sendo formados, entre outras

consequências nefastas para o futuro próximo da Embrapa.

3.1 Terceiro desafio: recomendações

É oferecida aqui apenas uma sugestão de encaminhamento, ante o problema acima

citado, ainda que inúmeros e variados caminhos metodológicos possam ser arquitetados

para minimizar os impactos desta situação. Trata-se de aprofundar relações com o

CNPq e abrir uma cooperação específica que viabilize projetos em determinadas áreas

de pesquisa consideradas prioritárias. Neste caso, a Embrapa reservaria recursos de

pesquisa para equipes de pesquisadores, desde que mesclando aqueles mais antigos com

os novos e, além disso, também pesquisadores universitários, assim estimulando a

cooperação entre pares de subcampos disciplinares, em uma atividade específica de

pesquisa. Seria uma das muitas formas de promover a cooperação entre os colegas das

duas gerações de pesquisadores, também incluindo em certas situações colegas

pesquisadores de instituições universitárias. Mas, muitas outras vias possíveis de

confrontar esse desafio existiriam e precisam ser objeto de análise.

De qualquer forma, independentemente do que poderá ocorrer sob inúmeros

outros encaminhamentos, é também premente que a nova geração possa apropriar-se de

conhecimento mais aprofundado sobre as marcas principais do desenvolvimento agrário

brasileiro, no sentido de identificar com maior precisão e acuidade o locus respectivo de

sua especialização e interesses de pesquisa. Em uma Empresa onde “pesquisa aplicada”

foi a diretiva quase única em suas origens, o conhecimento detalhado das cadeias

produtivas e das realidades produtivas (conforme os dois primeiros itens discutidos

nesta NT) é que ensejarão a identificação das possibilidades existentes para constituir as

agendas de pesquisa. Esse esforço é necessário, insista-se novamente, porque as

necessidades tecnológicas do primeiro período (o formativo da Embrapa) e o atual são

muito distintos, além do estado de complexidade que vai sendo constituído ante à

dinâmica econômica e organizacional da agropecuária brasileira.

4. Quarto desafio: a governança da Embrapa - a necessidade de aperfeiçoamentos.

Surpreende que uma organização pública tão bem percebida pela sociedade

brasileira mantenha uma forma geral de administração, ou governança corporativa, que

Page 43: EMBRAPA: o futu

43

é, quando menos, confusa e, muitas vezes, incompreensível para a maior parte de seus

empregados, além de ser distanciada de alguns preceitos que deveriam ser

compulsórios, por se tratar de uma empresa pública, sobretudo a transparência dos

processos. Entre outras causas, essas características parecem ser o reflexo de três

“pecados capitais” que tipificam comportamentos de parte de seus gestores e lideranças,

todos eles indicando ausências. Faltam humildade e coragem e, adicionalmente, o que

causa algum espanto, os comportamentos democráticos e o cultivo permanente de um

ethos cívico e republicano são insuficientes. São evidências indicativas de uma

interpretação sociológica de certa simplicidade, pois é de imediata verificação: desde a

sua fundação, como seria logicamente esperado, a Embrapa tem sua estrutura de poder

dominada por pesquisadores (usualmente engenheiros-agrônomos de formação básica),

portadores de especialização, até com sofisticação, em algum subcampo agronômico,

mas nunca em administração de grandes organizações. Foram os responsáveis principais

pelo sucesso da empresa em sua primeira geração, quando o foco tecnológico era o

principal e o determinante. Mas é preciso reconhecer um fato indiscutível: o êxito da

primeira fase ensejou a criação de uma gigantesca empresa (dez mil funcionários,

orçamento de um bilhão de dólares, capilaridade nacional) e, sob esta hipertrofia

organizacional, enraizou-se um estado de complexidade que passou a exigir habilidades

administrativas e de gestão para as quais uma parte, certamente significativa, dos

pesquisadores-tornados-dirigentes da primeira geração não estariam devidamente

preparados.

Aqui entra em cena a ausência de humildade, pois esta foi (e tem sido) uma

geração que tem sistematicamente bloqueado as portas aos não embrapianos e aos não

agrônomos que pudessem ter maior capacidade técnica e profissional de gerir a

empresa. Por que uma categoria profissional de agrônomos poderia esperar ser

portadora de conhecimentos multidisciplinares e habilidades administrativas ilimitadas,

que dariam conta da crescente complexidade da empresa? Não estaria aqui um dos mais

evidentes gargalos que atualmente impedem a modernização da Embrapa? Como é

evidente, a explicação para esse comportamento autoprotetor dispensa qualquer

conhecimento de Ciência Política: assim tem sido exclusivamente porque esse grupo de

dirigentes deseja manter em suas mãos e sob seu controle as privilegiadas estruturas de

Page 44: EMBRAPA: o futu

44

poder que foram sendo construídas para si mesmo ao longo dos anos, gerando cargos

comissionados e altas gratificações em sua ocupação.45

A falta de coragem é outra faceta curiosa que é reiterada cotidianamente. São

também inúmeras as evidências, mas nesta NT bastaria citar apenas alguns exemplos,

sistematicamente comentados abaixo:

(a) ciência requer precisão conceitual: sendo uma empresa pública dedicada

explicitamente à prática da ciência, uma das exigências postas à Embrapa é manter o

rigor teórico, a exatidão e os cânones científicos. Isto implica, por certo, também

proteger a precisão terminológica e conceitual, quando as circunstâncias o exigirem.

Mas, parece não existir a coragem necessária para esse papel crucial e tem sido aceita a

dominação da esfera política sobre a racionalidade técnica. A determinação para

confrontar este fato é decisiva exatamente porque esta é a essência do trabalho diário de

seus empregados – fazer ciência. Se os cânones e conceitos consagrados das práticas

científicas forem erodidos, como realizar tais tarefas? Conforme a epígrafe popperiana

desta NT, é a “guerra de ideias” que fomenta a produção e o avanço do conhecimento.

Por isso, não se trata aqui de ortodoxia extremada, pois as inovações também exigem

criar novos conceitos, processos e até criar paradigmas, quem sabe até mesmo

emergentes “revoluções científicas”. Mas, se nitidamente o obscurantismo desenvolve

suas raízes em contextos e circunstâncias históricas específicas (como ocorre

atualmente), as instituições da ciência precisam reagir, para evitar retrocessos analíticos

e o estancamento da progressão do conhecimento.

Nos últimos anos, a discussão em torno do desenvolvimento agrário brasileiro

vem sendo encurralada pela tentativa de fazer emergir uma “narrativa dominante”, a

qual passou a ser exigida em todas as manifestações de gestores públicos nos anos deste

século, sem que fosse problematizada criticamente em contra-argumentações de maior

envergadura. O período recente tem observado a construção dessa narrativa, que tem

45 Na opinião do autor desta NT, é escandalosa a estrutura de cargos comissionados da Embrapa. Um chefe de

centro (que receba a aposentadoria do INSS, como é comum) pode ser premiado com até 15 mil reais como

gratificação adicional ao seu salário. Esse valor é quase um escárnio, relativamente a outras situações

similares no âmbito do Estado brasileiro. Somente esta comissão é equivalente ao salário de um professor das

universidades federais que seja titular e tenha trabalhado por tempo aproximado de três décadas. E o que dizer

dos cargos chamados de “supervisão” na empresa, usualmente alocados a empregados que mantenham,

sobretudo, lealdade pessoal ao superior que lhe indicou? Na vasta maioria dos casos, os supervisores são

chefes de si próprios. A Embrapa, ante um quadro macroeconômico de profundas dificuldades a ser vivido

pelo país, nos anos vindouros, deveria revisar imediatamente tais valores, até extinguindo todos os (inúteis)

cargos de supervisores e cortando drasticamente as demais gratificações, como medida, sobretudo, de uma

política de rejuvenescimento moral de seu cotidiano.

Page 45: EMBRAPA: o futu

45

apenas objetivos políticos e partidários e, no geral, é profundamente anticientífica,

consagrando um retrocesso. Não se fará aqui a exegese desse claro esforço de natureza

ideológica, que em nossos dias vai destruindo tantas instituições públicas, mas algumas

ilustrações podem ser necessárias. O que dizer, por exemplo, da institucionalização de

uma expressão, como “agricultura familiar”, cuja absurda definição legal sugere a

eternização da pobreza (pois a lei propõe que os pequenos produtores nem contratem

“predominantemente” trabalho assalariado e nem aumentem majoritariamente os seus

ganhos buscando o trabalho fora da propriedade, como forma complementar de renda)

e, em face de tal descalabro, a Embrapa omitir-se, sem discutir cientificamente esse

equívoco?46

À luz da forte institucionalização da expressão, motivada por razões

políticas (produzindo até um “ano internacional da agricultura familiar”), o autor desta

NT tem sido quase uma voz isolada em relação a essas incongruências. Mesmo muitos

daqueles que concordam com os argumentos acerca de sua inapropriedade acabam se

rendendo ao peso da institucionalização e preferem aceitar os fatos como são,

coonestando a falácia de supor a existência de um grupo social em áreas rurais (os

“familiares”) que seriam portadores de características sócio-culturais essenciais, o que

é uma aberração antropológica. Apesar da insistência, que parece ser quixotesca, por ser

ato quase isolado, é preciso, contudo, continuar repetindo: a expressão nada diz em

termos concretos e nada avança em termos conceituais. É apenas mais uma expressão

do pensamento mágico que encanta, até mesmo, muitos pesquisadores da Embrapa.

E o que dizer de outra palavra igualmente tornada mágica, “agroecologia”, usada

em diversos âmbitos da Empresa e apoiada com generosos fundos públicos, sem que

exista nem mesmo um superficialíssimo verniz científico associado à palavra e, menos

ainda, em termos práticos, também inexiste um “formato tecnológico agroecológico”

que possa ser difundido entre os produtores rurais? Por que a principal empresa de

pesquisa agrícola do país não tem a coragem de enfrentar essa manipulação que vai se

espalhando? Por que a Embrapa aceita passivamente a desmoralização de sua própria

história e, pelo contrário, até aporta recursos financeiros para fomentar uma ação

46 Por que, por exemplo, no lugar de ficar financiando atividades supostamente de pesquisa sobre algo que não passa

de uma fantasia, do ponto de vista científico (“agroecologia”), a Embrapa não deu ampla divulgação de

recente trabalho de um dos mais sérios e respeitados econometristas brasileiros, Rodolfo Hoffmann, cuja

trajetória, como pesquisador, é brilhante e que escreveu um curto trabalho, demonstrando que a participação

da chamada agricultura familiar é, de fato, de apenas 22% no caso brasileiro? Em um artigo de apenas 3

páginas, Hoffmann joga por terra um mito que vem sendo propagado ad nauseam, inclusive por embrapianos.

Ver “A agricultura familiar produz 70% dos alimentos consumidos no Brasil?”, Campinas: Segurança

alimentar e nutricional, 21(1), 2014 (em vias de publicação).

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46

política destinada a solapar as próprias bases do sucesso de seu primeiro ciclo de vida?47

E não se trata de problema menor, quando o CNPq lança editais para distribuir recursos

destinados a projetos sobre o assunto, e a CAPES, em desassombrada decisão, aprova

cursos de pós-graduação (já são mais de uma centena) sobre “agroecologia”, quando

não se trata sequer de alguma ciência, mesmo emergente. Uma nítida ação política

arquitetada com um único propósito: combater a bem sucedida agricultura moderna que

se instalou no Brasil, ainda que muitos colegas, movidos por ingenuidade política,

pareçam mesmo acreditar que agroecologia seria apenas um conjunto de “esforços

agronômicos” destinados a construir algo na direção da “agricultura sustentável”.

Em face de tantas evidências e fatos, por que, pelo menos, não esclarecer

corretamente os pesquisadores da empresa? Qual seria a grande dificuldade, por

exemplo, de organizar eventos plurais, que discutissem radicalmente (até à raiz) os

termos da “narrativa dominante” e, assim, esclarecer para o corpo de pesquisadores (e

para a sociedade) o que seria legítimo, em termos científicos, e o que não passaria de

empulhação? Não seria este o papel da Empresa?

(b) a rejeição do avanço científico: nos anos recentes, talvez a maior evidência da

incapacidade da Embrapa de enfrentar os bloqueios políticos e ideológicos seja o caso

do “feijão transgênico” (resistente ao vírus do mosaico dourado propagado pela mosca

branca) desenvolvido por pesquisadores embrapianos. Para os não especialistas e

aqueles que apenas observam de longe, é incompreensível a hesitação da Embrapa sobre

o tema. Estamos falando aqui de uma tecnologia e seus respectivos processos científicos

que representam o que seria mais moderno. Há até quem ainda insista sobre os

“perigos” dos OGMso que, com franqueza, adentra, a esta altura, o anedótico. Não

existe, portanto, nenhuma justificativa razoável para a procrastinação que vem

47 Sobre a grosseira manipulação que representa a palavra “agroecologia” no Brasil, infelizmente aceita passiva e

ingenuamente por muitos embrapianos, consulte-se NAVARRO, Z., “Agroecologia: as coisas em seu lugar (a

Agronomia brasileira visita a terra dos duendes”. In: Colóquio, volume 10(1), p. 11-45, 2013. Programa de

Pós-graduação em Desenvolvimento Regional/FACCAT. Sobre os equívocos da expressão “agricultura

familiar”, consulte-se NAVARRO, Z. e PEDROSO, M. T. M. “Agricultura familiar: é preciso mudar para

avançar”. In: Texto para discussão, número 42, 2011. Brasília: Embrapa. Esse mesmo tema foi também

discutido em artigo mais recente (“A agricultura familiar no Brasil: da promessa inicial aos impasses do

presente”), publicado também pelos dois autores e publicado em número especial da “Revista Econômica do

Nordeste”. Ver também PEDROSO, M.T.M., “Experiências internacionais com a agricultura familiar e o caso

brasileiro: o desafio da nomeação e suas implicações práticas”. In: BUAINAIN, A. M. et al, op. cit., 2014, p.

761-791. Os três textos iniciais estão disponíveis, respectivamente, nos endereços abaixo indicados:

1. https://seer.faccat.br/index.php/coloquio/issue/view/4

2. https://www.embrapa.br/busca-de-publicacoes/-/publicacao/913994/agricultura-familiar-e-preciso-mudar-

para-avancar

3. http://www.bnb.gov.br/content/aplicacao/publicacoes/ren-

numeros_publicados/gerados/ren_edicao_especial_2014.asp

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47

caracterizando a ação dos dirigentes da Empresa sobre o assunto, impedindo a liberação

definitiva das sementes modificadas que foram produzidas. Pelo contrário, a Embrapa

deveria estar exaltando publicamente os pesquisadores responsáveis pelo

desenvolvimento do produto e este deveria ser motivo de imenso orgulho a ser

compartilhado por todos os seus pesquisadores. Toda a área de comunicação da

Embrapa já deveria ter sido mobilizada, há anos, para difundir a capacidade científica

daqueles que produziram este feito notável, valorizando, portanto, o melhor da ciência,

das práticas de pesquisa e o desenvolvimento de um produto que atende, inclusive, uma

dimensão crucialmente social, pois o feijão é produzido por centenas de milhares de

pequenos produtores rurais pobres. É de deixar boquiabertos aqueles que acompanham

mais de perto a saga do feijão transgênico e os kafkianos impedimentos criados para

impedir a sua distribuição livre e legal entre os produtores. Mesmo para aqueles que não

são especialistas no assunto, como o autor desta NT, é hilário (por ser completamente

ilógico) o argumento da não liberação que, alegadamente, não ocorre porque seria

necessário antes testar o comportamento da nova variedade a um novo vírus que estaria

afetando o feijão.48

Esta é situação emblemática da falta de coragem referida, pois as

pressões são meramente políticas e externas à Embrapa, mas estaria ausente a

disposição para confrontar cientificamente aqueles que pressionam contrariamente sobre

esta tecnologia.49

Impedindo a disseminação da nova variedade, a Embrapa,

infelizmente, vem se associando ao obscurantismo de um minúsculo grupo de

neoludistas que, por força de suas relações políticas, consegue impedir o avanço da

ciência e do conhecimento;50

(c) posições públicas e particularismos: muitos cargos na Embrapa são

preenchidos sem considerar o mérito, que comumente ocupa plano secundário em

relação a algum particularismo que jamais deveria estar presente. São diversas as

situações conhecidas, as quais dispensam exemplos nesta Nota. A Empresa, inclusive,

48 Consulte-se, para um comentário de especialista no assunto, o artigo de Colli, W., “Embrapa: uma decisão que se

impõe”. Disponível em: http://www.jornaldaciencia.org.br/embrapa-uma-decisao-que-se-impoe/

49 Outra omissão incompreensível da Empresa foi não ter tido praticamente nenhuma participação oficial nas

discussões sobre o novo Código Florestal, ainda que pesquisadores de algumas unidades tenham oferecido

apoio técnico de valor inestimável.

50 O “ludismo” se refere a uma forma de protesto depois transformada em movimento social que, na Inglaterra do

início do século 19, combatia a industrialização e a mecanização, pois eliminaria os postos de trabalho. Os

ludistas associavam o processo ao desemprego e à miséria social. Figurativamente, o termo passou a ser

estendido aos argumentos que combatem o progresso tecnológico, pois este seria “socialmente nocivo”. O

termo deriva do nome de um operário ativista daquele movimento, Ned Ludd.

Page 48: EMBRAPA: o futu

48

eliminou o mecanismo do “comitê de busca” para o preenchimento dos cargos da

Diretoria, o que poderia ter sido um processo exemplar para o restante da Administração

Pública, retornando às indicações que requerem suporte político, rebaixando os

requerimentos técnicos a um segundo plano. É preciso, com “urgência urgentíssima”,

formalizar critérios objetivos de requerimentos e processos de seleção que sejam

irrestritamente fundados no mérito e torná-los compulsórios para a ocupação de todos

os cargos. Em se tratando de uma Empresa mantida com os recursos da sociedade, é o

mínimo que se espera. Trata-se de um requerimento que é obrigatório nas instituições

que julgam ser estruturadas democraticamente;

(d) o isolacionismo protetor: existe um sentimento relativamente generalizado de

antipatia entre os pesquisadores, em face das crescentes exigências burocráticas

associadas ao desenvolvimento da pesquisa na Embrapa. Ao que parece, gradualmente a

Empresa foi criando mais e mais requerimentos e amarras, multiplicando os formulários

e os “mecanismos de controle”. Entre esses últimos, saliente-se que grande parte

decorre de imposições externas originadas em imperativos do Estado e fruto de novos

dispositivos legais (como a Lei nº 8666). Mas, também segundo as evidências

históricas, parte desse engessamento é uma autêntica “criação embrapiana”.

Para o autor desta NT, egresso da vida universitária, onde foi professor e também

pesquisador por mais de três décadas, é curiosíssimo que a Embrapa não tenha se valido

da experiência de 63 anos do CNPq e tivesse estabelecido laços de cooperação íntimos

com aquele Conselho, instituindo seus mecanismos de submissão de projetos, avaliação

e acompanhamento em consonância com o CNPq e sua ação institucional. Se a Embrapa

é uma organização destinada, principalmente, a estimular a pesquisa agrícola e, para

tanto, se vale de projetos, enquanto o CNPq desenvolveu vastíssima experiência e

aprendizado, exatamente, em avaliar projetos e acompanhá-los, por que a Embrapa não

se associou àquele Conselho? É pelo menos estranha, talvez bizarra, a decisão de se

fechar e ir desenvolvendo internamente os processos e mecanismos de fomento à

pesquisa, ignorando o aprendizado acumulado pelo CNPq. A Empresa apenas se

beneficiaria, caso isto tivesse ocorrido, pois evitaria a burocratização hoje comandada

pelo Departamento de Pesquisa e Desenvolvimento (DPD) e seus instrumentos pouco

Page 49: EMBRAPA: o futu

49

funcionais, como o Ideare e outras exigências.51

Além disso, caso aquele “casamento”

tivesse ocorrido, a Embrapa seria extremamente oxigenada pela interlocução com outros

pesquisadores, de outras instituições (especialmente as universidades) e também seria

forçada a se abrir mais, produzindo maior transparência em seus processos decisórios

relativos aos projetos e às decisões sobre a pesquisa. Ao se fechar, mantendo apenas

convites ocasionais e pesquisadores externos, a insularidade decorrente vem produzindo

um distanciamento da realidade rural. De qualquer forma, esse comentário sugere uma

recomendação que ainda poderia ser viabilizada, caso exista abertura para discuti-la em

suas possibilidades.

4.1 Ciência e liberdade

Faz parte do senso comum uma evidência: as universidades e os centros de

pesquisa produtores de conhecimento mais relevantes são aqueles que preservam

ferreamente um ambiente de liberdade. Ciência e liberdade são irmãs siamesas, uma

perde sua essência e vida sem a outra e, como tal, se alimentam reciprocamente. Não é

preciso um exercício de Sociologia da Ciência nem citar os grandes autores desse

subcampo para entender esta relação. Afirmado de uma forma simples, o exercício da

ciência sempre se dirige, todo o tempo, para “rejeitar a hipótese” (de um experimento,

teorema, modelo teórico ou paradigma dominante), pois se isto for possível, o resultado

será o avanço do conhecimento e a descoberta de uma proposição explicativa superior.

Mas, para isto ocorrer, sempre será preciso um ambiente de reflexão e debate que

permita e estimule a oferta de novas hipóteses e a contestação daquelas dominantes em

dado momento histórico. E para isto, não podem existir restrições à liberdade de

pensamento e de expressão. Um ambiente de produção científica exige, como

pressuposto, que não existam limites à opinião, ao debate, à discussão irrestrita. Os

únicos limites e restrições tolerados são os legais, de um lado, e aqueles das práticas

científicas, de outro lado, as quais são amadurecidas com o tempo.

Oriundo do contexto (relativamente) livre de uma universidade federal, o

ambiente de rigidez e intolerância argumentativa na Embrapa surpreendeu o autor desta

NT. Por que existiriam esses limites? Não tendo realizado nenhuma pesquisa mais

rigorosa a respeito, seria possível apenas especular sobre os motivos, mas arrolar

51 Deixando de comentar nesta NT o atual quadro de “arranjos e portfólios” da Empresa, pois dificilmente alguém

explicaria a sua lógica, à luz da missão institucional da Embrapa ou até mesmo à luz de alguma lógica

científica.

Page 50: EMBRAPA: o futu

50

algumas justificativas, sem a precisão empírica necessária, foge ao escopo desse

documento. Dessa forma, pretende-se, nesta parte, apenas registrar o alerta: a Embrapa

corre um alto risco, se mantiver práticas administrativas e de relacionamento pessoal

que estão muito próximas da fronteira do autoritarismo. E não apenas em função da

chocante contradição entre essa rigidez interna e a natureza democrática da sociedade e,

também, pelo fato de ser a Embrapa uma empresa pública e, assim, jamais poderia se

estruturar informada por esses bloqueios políticos. O risco maior, é claro, converge para

os argumentos principais que estão sendo apresentados nesta NT, pois a relativa falta de

liberdade argumentativa conspira fortemente contra a “vivacidade intelectual”, a

criatividade e a ousadia que animam a produção de conhecimento novo e inovador,

facetas que deveriam ser fomentadas a cada segundo na vida da Organização. Ainda

persistem resquícios, até mesmo, de comportamentos patrimonialistas (mais

corretamente, patriarcalistas), herdados de um passado remoto, os quais, sob diversos

aspectos, mantém a Empresa ainda um tanto distante das necessárias facetas de uma

verdadeira organização do moderno Estado burocrático, inspirado em uma estrutura

que, sempre e obrigatoriamente, requer o universalismo de suas práticas. Sob alguns

aspectos, o funcionamento cotidiano da Empresa lembra o comentário de Sérgio

Buarque de Holanda, no clássico “Raízes do Brasil” (1936):

“(…) a própria gestão política apresenta-se como assunto de seu interesse

particular; as funções, os empregos e os benefícios que deles aufere,

relacionam-se a direitos pessoais do funcionário e não a interesses

objetivos, como no verdadeiro Estado burocrático, em que prevalecem a

especialização das funções e o esforço para se assegurarem as garantias

dos cidadãos” (HOLANDA, S. B., 1993, p. 106).52

4.2 A inexistência de uma estratégia

Por que persiste esse quadro de sentimentos ambivalentes e um clima,

relativamente generalizado, de dúvidas sobre o estado atual e o futuro próximo da

Embrapa? A explicação que diversos membros da comunidade embrapiana, sem dúvida,

citariam, reside em um fato que vem sendo cada vez mais repetido – a Embrapa, em

nossos dias, não tem nenhuma estratégia que possa ser explicitada.

Ante esse diagnóstico não formalmente aceito, mas referido com crescente

frequência, a Empresa vem apoiando uma iniciativa que deveria gerar tal estratégia, que

foi a extinção do CECAT e a criação da Secretaria de Inteligência e Macroestratégia. E,

52 HOLANDA, S. B. Raízes do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1993 (25º edição).

Page 51: EMBRAPA: o futu

51

como resultado da ação de uma de suas coordenadorias (o chamado “Agropensa”), em

boa parte dos últimos dois anos foram realizadas diversas iniciativas, destinadas a gerar

um produto que pudesse ser o balizador estratégico da Embrapa, uma vez concluído.

Trata-se do documento “Visão 2014-2034” (op. cit.).53

A publicação se propõe a ser o

“guia para o desenvolvimento tecnológico da agropecuária brasileira” (sic), cobrindo

um cenário de duas décadas, até 2034. Foi iniciativa de alto custo, envolvendo inclusive

fechados eventos internacionais e, supostamente, aplicando metodologia que traria luzes

para os caminhos futuros. Nesta NT se comentará exclusivamente, em breve reflexão, o

documento citado, mas não a reformulação realizada em termos do antigo Centro e a

constituição de uma nova Secretaria. Escapa ao objetivo primordial desta Nota qualquer

comentário sobre essas mudanças que foram sendo operadas, particularmente, a partir

de 2013.

Deve ser também enfatizado que os autores do documento referido acima não se

propuseram a delinear uma nova “estratégia geral” e, com cautela, advertem já nas

páginas iniciais que o documento “Visão” seria, em especial, um “primeiro impulso”

que poderia colaborar na construção de uma estratégia de futuro para a Embrapa e a

agropecuária brasileira. Posteriormente, a publicação se dedica a comentar sobre os

identificados “oito macrotemas” que foram nomeados e se afirma que o documento

“(…) é um ponto de partida importante, um elemento animador e aglutinador para guiar

a consolidação do sistema de inteligência estratégica da Embrapa e as fases seguintes de

discussão e revisão do plano diretor e de preparo das agendas de prioridades das

unidades da Empresa” (p. 17).

Infelizmente, o diagnóstico e as reflexões contidas na publicação “Visão” são um

nítido reflexo, talvez sintomático, do estado atual vivido pela Empresa, pois a análise

publicada é insuficiente e o documento, lido friamente, é caracterizado por ser

analiticamente pobre. É altamente improvável que a promessa acima referida possa

concretizar-se em algum momento, em face da natureza superficial das diversas partes

do “Visão”, chegando a ser simplório em algumas de suas partes. Não obstante os

louváveis esforços realizados e a mobilização de diversos especialistas, a maioria da

própria empresa, a análise e as propostas surpreendem pela linguagem inespecífica

53 O documento Visão 2014-2034. O futuro do desenvolvimento tecnológico da agricultura brasileira (2014)

pode ser acessado em:

https://www.embrapa.br/web/agropensa/documento-visao

Page 52: EMBRAPA: o futu

52

adotada e, especialmente, pelo distanciamento da vida real da agropecuária brasileira.

Também não sendo o objetivo desta NT a análise crítica minuciosa do “Visão” (o que

exigiria outro trabalho em separado), comenta-se rapidamente a seguir alguns aspectos

centrais que tornam aquele recente documento, concretamente (embora resultado a ser

lamentado), uma proposta inapropriada para guiar a Embrapa até 2034. São três os

aspectos principais negativos que se destacam e inviabilizam a aplicação prática do que

está sendo proposto na publicação.

Primeiramente, causa surpresa que a maior Empresa de pesquisa agrícola do país,

ao atingir sua maturidade institucional, e dedicada precipuamente ao tema do

“desenvolvimento tecnológico da agricultura brasileira” (que também é o subtítulo do

“Visão”), em sua elaboração não tenha tido como ponto de partida um diagnóstico

rigoroso de realidade. Ou seja, é quase inacreditável que uma proposta da Embrapa

tornada institucional e acoplada à sua missão, ao propor aquele desenvolvimento, não

tenha iniciado (p. 19-35, op. cit.), como seria logicamente esperado, por uma discussão

abrangente, sobre o desenvolvimento agropecuário brasileiro e suas facetas e tendências

principais, ouvindo os especialistas de diferentes campos disciplinares. Como tantos

exercícios similares do passado (que fracassaram), aqui se repete o mesmo erro

primário, que é deixar de examinar detidamente um contexto, historicamente

determinado, e seus limites e possibilidades.54

E somente então, a partir de tal

interpretação, examinar cenários factíveis e capazes de animar o curso futuro. Os

autores do documento, segundo sugerem as evidências, preferiram ouvir com maior

ênfase os especialistas e a bibliografia internacional, os quais analisam superficialmente

o caso brasileiro, embora possam falar em termos mais gerais sobre a “agricultura no

mundo”. Por isto, uma leitura cuidadosa do documento revela, nesse particular, a sua

maior fragilidade: o seu descolamento da realidade da produção agropecuária

brasileira. Como a Embrapa poderá identificar novas agendas de pesquisa sem essa

estrita proximidade com a vida rural brasileira e suas características principais? A

análise sobre a situação atual do “mundo rural brasileiro” em seus ângulos produtivos e

tecnológicos, mas igualmente no tocante aos ângulos institucionais ligados à ação

governamental, os aspectos sociais e culturais e, sobretudo, as dimensões econômicas e

54 Entre muitos outros textos fundamentais sobre a história rural brasileira, consulte-se o capítulo de Geraldo Barros,

“Agricultura e indústria no desenvolvimento brasileiro”, publicado no já citado livro organizado por Antônio

Márcio Buanain e outros autores (incluindo o autor desta NT), O mundo rural no Brasil do século 21, 2014,

p. 79-116.

Page 53: EMBRAPA: o futu

53

financeiras, é apenas citada superficialmente no texto do “Visão” e, ainda mais grave,

sem qualquer explicitação de suas relações causais – e, portanto, incapaz de definir as

prioridades e os focos principais. É impossível prever como esse documento poderá ser

orientador para as ações futuras da Embrapa, se a correspondência com o mundo real

não surge de suas páginas.

Associado a este argumento desabonador inicial, também surpreende que os

responsáveis pelo documento tenham preferido realizar o exercício de construção de

cenários isoladamente, sem convocar outras instituições governamentais que já

trabalham com metodologias e teorias que sistematicamente se dedicam a “examinar o

futuro”. O apoio óbvio seria aquele que poderia ter sido negociado com o Centro de

Gestão e Estudos Estratégicos (CGEE), organização social da órbita do Ministério de

Ciência e Tecnologia, com larga experiência no campo de estudos de prospecção e

avaliação estratégica. Se a Embrapa não tem nenhuma tradição em tais tipos de

pesquisa, por que optou pela condução isolada de uma atividade de fundamental

importância para o seu futuro próximo, recusando a parceria com instituições que

poderiam oferecer aporte técnico sólido para a tarefa?

O segundo aspecto, igualmente problemático, tornando inócua a publicação, é

exatamente ignorar o que foi citado nesta NT à exaustão, em suas primeiras páginas,

quando se apresentou sinteticamente o “primeiro desafio” ora confrontando o futuro da

Embrapa. Qual seja, a análise é também desconectada dos determinantes econômicos e

financeiros, como aqueles que primeiramente orientam o curso do desenvolvimento

agropecuário brasileiro. É outra omissão que surpreende, pois sendo a agricultura,

primordialmente, uma atividade econômica, este é o eixo fundador, o alicerce a partir do

qual os demais poderão ser propostos e erigidos. Não faz sentido algum, à luz desse

pressuposto, discutir “focos tecnológicos”, como faz o documento (nanotecnologias,

geotecnologia, automação, agricultura de precisão, entre outros), sem evidenciar,

inicialmente, a economicidade de seu desenvolvimento e possibilidades futuras de

concretização na vida real.

Não ter apresentado um retrato da “economia política da agropecuária brasileira”

é insuficiência que torna o “Visão”, de fato, um documento inaplicável. Examine-se

apenas um exemplo, para ilustrar o comentário: há atualmente uma nítida tendência na

distribuição do crédito rural e dos diversos mecanismos de financiamento e, observado

o caso do cultivo mais dinâmico, a soja, se verifica que o crédito público oficial está se

Page 54: EMBRAPA: o futu

54

concentrando mais nos estados do Sul e dirigido aos estabelecimentos de menor porte

econômico. Enquanto isto, nas regiões de estabelecimentos de maior escala da

agropecuária brasileira (o Centro-Oeste), para uma parte significativa, que já é

aproximadamente a metade do total financiado, os recursos são de instituições

financeiras privadas, incluindo fornecedores de insumos e agroindústrias. Somente esta

clivagem relativa aos determinantes financeiros já produz possibilidades completamente

diferenciadas para os produtores em termos de seus formatos tecnológicos (e, claro, com

imediatas implicações para os produtores de pesquisa agrícola, como a Embrapa). Se

firmas privadas fornecem crédito para a soja, na última região citada, cada vez mais o

financiamento virá acoplado a um “pacote tecnológico” determinado. É um exemplo

concreto da exigência que a Embrapa deveria por a si própria: conhecer detalhadamente

o funcionamento atual da agropecuária, muito além da generalização, quase retórica,

contida no “Visão”.55

Finalmente, um terceiro aspecto precisa ser também referido nesse breve

comentário crítico e que diz respeito à inserção, solta e inconsequente, de expressões no

documento, para as quais sequer existe uma bibliografia de sustentação indicada.

Refere-se aqui às expressões “mercado” e “desenvolvimento rural”. No primeiro caso, a

mera inserção da palavra, sem qualquer explicação que demonstre a sua inteligibilidade

lógica (ou teórica), parece sugerir que “mercados” são autoexplicativos e apenas a sua

menção bastaria para sugerir algum tipo de relação causal. O que à luz da literatura

existente, pelo menos no que diz respeito às escolas mais influentes na Economia, não

passa de um primarismo que jamais poderia estar assim presente no documento, quando

se espera que o “Visão” possa ser a proposta norteadora da futura estratégia geral da

Embrapa. Aceitar que mercados são autoexplicativos é premissa de uma ortodoxia

neoclássica que, atualmente, poucos autores seguiriam sem problematizações. A ampla

discussão teórica disponível sobre os mercados como “construções sociais” e não

apenas simples mecanismos de troca foi ignorada no documento e esta omissão traz

implicações graves para a (falta de) validade da publicação.

Para evitar que esta observação pareça apenas um argumento de autoridade,

inclua-se a citação abaixo. Seu autor é Colin Leys, cientista político e atualmente

55 A discussão sobre as políticas de financiamento e seu detalhamento empírico pode ser encontrada no artigo

intitulado “O tripé da política agrícola brasileira: crédito rural, seguro rural e Pronaf”, publicado no já citado

livro organizado por BUAINAIN, A. M. et al, 2014, p. 827-864.

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55

professor aposentado no Canadá, mas reconhecido especialista no campo da “teoria e

política do desenvolvimento”. Leys é o autor de “Underdevelopment in Kenya. The

Political Economy of Neocolonialism”, originalmente publicado pela Universidade da

Califórnia (1975), considerado um clássico nos estudos sobre a economia política do

desenvolvimento. Em um de seus últimos livros, esse autor faz referência aos mercados

como espaços sociais e políticos, e não apenas locais de meras trocas monetárias,

apontando a necessidade de estudá-los profundamente, como forma de entender seu

surgimento, sua natureza e suas possibilidades. A citação é relevante, sobretudo, à luz

do caso nacional comentado nesta NT, pois a produção agropecuária brasileira é

caracterizada por grau acentuado de heterogeneidade estrutural e o funcionamento dos

mercados, na maior parte dos casos já pesquisados, indica situações de abuso

econômico, controle de informações e ausências regulatórias. A ausência dessas

últimas, em particular, como seria esperado, prejudica, em especial, os pequenos

produtores rurais, os quais vão sendo assim crescentemente encurralados, em face das

condições de existência dos mercados concretos, que precisariam ser conhecidos

empiricamente. A inclusão dos “mercados” de forma solta e analiticamente

inconsequente, como consta no documento “Visão”, sugere, portanto, uma inclusão

leviana sobre a vida real. Segundo Leys,

“(…) Real markets are not like the „frictionless‟ markets with ghostly

auctioneers assumed in economic textbooks. On the contrary, every real-

like market is an elaborate set of social institutions that allow a particular

kind of commodity to be traded with a degree of confidence and

predictability, in spite of imperfect information and other problems of the

the kind that neoclassical economic assumes out of existence. So, markets

are highly political; what is always at stake for every firm is survival, to

be secured by any means, not „pure‟ competition alone (…) Real markets

have three characteristics that need to be kept in mind. First, they are

systems of rules and regulations; made and enforced by both State and

non-state agencies (…) everything is subject to regulation of one kind or

another. This is where „market politics‟ especially come in (...). The

second basic point to keep in mind about markets is that they are

complex. For one thing they are typically linked to a wide range of other

markets (…) markets are always „embedded‟ directly or indirectly, in a

vast range of other social relations (…) The third basic point about

capitalist markets is that they are inherently unstable, from the nature of

competition itself” (LEYS, 2001, p. 81-83. Grifo acrescido).56

56 Talvez seja relevante citar que o autor desta NT jamais tenha encontrado sequer uma única referência, entre os

autores brasileiros, ao livro clássico citado. Leys é também autor de The Rise and Fall of Development

Theory (University of California Press, 1996). A citação acima está contida em seu livro Market-driven

Politics: Neoliberal Democracy and the Public Interest (Verso Editions, 2001).

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56

Já a inserção da expressão “desenvolvimento rural” é ainda mais curiosa e

inesperada. É sugerido no texto que seria uma “ação transversal”, a qual percorreria os

demais eixos indicados (p. 120-124). Qual seria o entendimento sobre tal expressão, no

documento? Não é indicada, também sugerindo que os autores talvez desconheçam que

o tema “desenvolvimento rural” nasceu no pós-guerra e a bibliografia sobre o assunto é

vastíssima. Infelizmente, no Brasil esta literatura é praticamente desconhecida, o que

produz enorme confusão, pois expressões como “desenvolvimento rural”,

“desenvolvimento agrário”, “desenvolvimento agrícola” e outras são usadas como se

fossem sinônimos. Tal como surge no documento, parece ser apenas uma expressão

destinada a emoldurar um discurso meramente retórico. Houvesse mais rigor conceitual,

se enfatizaria, por exemplo, que o Brasil jamais teve uma política de desenvolvimento

rural e, provavelmente, jamais terá, por tantas razões de alguma obviedade – a principal

delas sendo a percepção social acerca de um setor, a agropecuária, que estaria

“cumprindo as suas funções históricas”, pelo menos em termos produtivos. Se os

processos de seletividade social ora em curso não despertam o interesse da sociedade e

os alarmantes níveis de pobreza rural vão sendo reduzidos em função, ou das políticas

de transferências sociais ou, por outro lado, em decorrência do abandono do campo

pelas famílias mais pobres, então dificilmente uma política de “desenvolvimento rural”

algum dia nascerá no Brasil. Em face desses rápidos esclarecimentos, qual a função

explicativa que a expressão cumpre no documento?

Adicionalmente, o documento “Visão” sequer foi exposto a algum tipo de

validação externa, como seria esperado, em função de sua pretendida função de embasar

o “primeiro impulso” na construção de uma nova estratégia da Embrapa. E mesmo sem

esta validação, houve a decisão de integrá-lo ao “mapa estratégico da Embrapa 2014-

2034”, constante da versão preliminar (25.11.2014) do “Manual do usuário” da “Gestão

integrada de desempenho institucional, programático e de equipes (Integro)”. São

decisões que causam enorme alarme, pois são fundadas em um documento inicial

bisonho e, por isto, falho e insuficiente. Não há, neste particular, como escapar da

previsão: essas são decisões que constroem o “fracasso anunciado”, pois fogem de

qualquer lógica. Como estruturar projetos, formar equipes e forçar focos de projetos a

partir de um documento cuja elaboração contém as graves deficiências indicadas?

Ante o que foi acima sugerido, existe apenas uma atitude racional acerca desses

passos recentes, que seria suspender o “Integro” imediatamente e recomeçar o

Page 57: EMBRAPA: o futu

57

processo, desenvolvendo um esforço de novamente propor o delineamento geral de uma

nova estratégia, em exercício radicalmente diferente do que foi realizado, em termos

analíticos e metodológicos. Manter o “Visão” como um suposto documento norteador

(o que jamais poderá ser) e, ainda mais grave, igualmente posicionando-o como

orientador de outros passos internos, como a compatibilização das propostas iniciais das

unidades descentralizadas (os planos diretores das unidades) e o futuro Plano Diretor da

Embrapa, além de passos burocráticos como o “Integro”, nada mais representará do que

um tipo de “marcha da insensatez”.

4.3 Quarto desafio: recomendações

Sobre esse desafio específico, esta NT não fará recomendações. Em uma empresa

que, apesar de ser pública, ainda mantém cultura institucional relativamente autoritária,

esse é terreno minado e requer uma decisão da Diretoria Executiva e do Conselho de

Administração sobre a sua forma de encaminhamento. Em decorrência, o autor não tem

a pretensão de arrolar possíveis sugestões para tentar encaminhar as formas de solução

para os descaminhos atuais. Nesse documento, que fique apenas registrado que vivemos

um período no qual parecem ser demasiados os desacertos da governança corporativa da

Embrapa, assim requerendo aperfeiçoamentos.

5. Quinto desafio: pesquisa agrícola e extensão rural. É aproximação recomendável?

Em face da percepção, mais ou menos generalizada, sobre o estado deplorável dos

serviços de assistência técnica e extensão rural no país, com raras exceções em alguns

estados, vem se tornando quase um clamor a necessidade de reconstituição de tais

serviços, em seus formatos tradicionais ou inovando em sua natureza jurídica e

organizacional - estatais ou públicos, quem sabe até mesmo privados. Após o Censo de

2006, evidenciou-se empiricamente que a vasta maioria dos pequenos estabelecimentos

rurais estaria marginalizada ante a necessidade de acesso à melhor tecnologia.57

Por essa

razão, foi sendo amadurecida a proposta de efetivar alguma ação nesse campo,

finalmente acelerada com a aprovação, em maio de 2014, pelo Congresso Nacional, da

Agência Nacional de Assistência Técnica e Extensão Rural (Anater). Simultaneamente

às discussões que antecederam a aprovação do novo ente público, enfatizou-se que a

57 Consulte-se, a respeito, o artigo de Eliseu Alves e Geraldo da Silva e Souza, “Desafios da Agência de Extensão

Rural”. In: BUAINAIN, A. M. et al, op. cit., 2014, p. 925-941. No mesmo livro, ver também o artigo de

Marcus Peixoto, “Mudanças e desafios da extensão rural no Brasil e no mundo”, p. 891-923.

Page 58: EMBRAPA: o futu

58

Embrapa teria forte papel na implantação dos serviços a serem prestados futuramente

pela Anater. E, como forma de prover uma “ação integrada”, estão sendo previstas

iniciativas em estreita associação com a Embrapa, chegando-se até mesmo à

estranhíssima decisão de formalizar o dom da ubiquidade, com um diretor que ocuparia

simultaneamente uma diretoria nesta última e outro cargo na recém-formada Anater.

Enfatize-se: são movimentos e sinais que representam uma clara ameaça ao

futuro da Embrapa, e estão sendo ignoradas as lições da história. De fato, pesquisa

agrícola e assistência técnica precisam manter alguma separação institucional e, caso

estejam demasiadamente coladas, uma à outra, em um só guarda-chuva institucional, a

pesquisa, quase inevitavelmente, irá sendo marginalizada. A principal razão para esse

provável desenvolvimento diz respeito às naturezas radicalmente diferenciadas desses

dois eixos de ação governamental e o que a literatura já demonstrou, sob o subcampo

das Sociologias, tanto da Sociologia das Organizações como da Sociologia da Ciência.

Em um comentário de relativa simplicidade, insista-se apenas que a pesquisa é uma

atividade que precisa seguir rigorosamente cânones e rituais quase sacralizados, como

resultado do “mundo da ciência” e sua história e práticas correspondentes, já enraizados

há longo tempo. Existem, neste caso, instituições, valores, ritos de passagem, formas de

relacionamento, critérios rígidos de experimentação, teorias e metodologias consagradas

ou sob teste permanente, entre diversos outros aspectos que caracterizam o mundo da

ciência e da produção do conhecimento. É atividade que exige ancoragem abstrata e

teórica, muitas vezes se distanciando do mundo concreto, ainda que seja pesquisa

aplicada. É atividade, por fim, relativamente caracterizada por algum isolamento,

mesmo que sendo realizada através de equipes multidisciplinares.

Todos esses aspectos se distanciam, quase radicalmente, das facetas associadas à

assistência técnica e à extensão rural, que é (ou deveria ser) uma atividade

essencialmente “colada” ao mundo das realidades agrárias. Uma vez comandado um

conhecimento aplicável, a ATER (Assistência Técnica Rural) relativiza a atualização do

conhecimento, pois é comandada “pela razão prática” e sua repetição nos ambientes

rurais. Em face de tais distinções, usualmente corpos de pesquisadores e de técnicos de

campo desenvolvem grande estranheza no diálogo mais permanente, inclusive em face

de inúmeros preconceitos que são rapidamente fomentados em ambos os lados. Uma

Embrapa que seja fortemente envolvida com tais atividades, com grande probabilidade,

irá gradualmente reforçar o campo da assistência técnica e da extensão rural e reduzir

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(relativamente) o campo da pesquisa. Sem outras razões, que aqui não são citadas, há

outra especificidade tipicamente brasileira: pesquisadores não se unem

corporativamente para proteger seus interesses como grupo, são muito mais

individualistas, enquanto que os conjuntos de extensionistas e técnicos de campo, com

maior facilidade, estão dispostos a formar organizações de interesse, como sindicatos,

para a defesa de seus interesses. O resultado de tal disparidade, com o passar do tempo,

é facilmente previsível. Algumas experiências brasileiras que fizeram a fusão entre a

pesquisa agrícola e a extensão rural (os casos, por exemplo, de Santa Catarina e da

Bahia)58

são demonstrativas do que se afirma acima, mostrando resultados que são, pelo

menos, problemáticos para a pesquisa agrícola.

Essas são algumas das razões pela quais a crescente presença de uma área de

“transferência de tecnologia”, no interior da Embrapa, especialmente com o advento da

Anater, vai sendo, cada vez mais, uma área de “assistência técnica e extensão rural”, e

essas fronteiras são relativamente indefiníveis. O que representará, para a Empresa, uma

ameaça e, nunca, uma nova oportunidade. A Embrapa deveria estar discutindo muito

mais criticamente tais transformações operadas no período recente e as reais motivações

de alguns atores sociais e políticos externos à organização. Seria necessário, ante esse

novo contexto, um esforço maior de discussão sobre as implicações de uma presença

interna crescente da área de TT e as iniciativas em ATER, inclusive porque a maior

parte das propostas de ação, sob o rótulo de “transferência de tecnologia”, ignora o

conhecimento recente acerca das profundas transformações agrícolas e agrárias em

curso nas regiões rurais brasileiras e, no geral, repete a mesmice consagrada no passado

pelos serviços estaduais de extensão rural, apenas incorporando facetas da nova

“narrativa dominante”, as quais, sempre se salientará, são distanciadas do mundo real da

produção e suas necessidades.

58 Em 10 de dezembro de 2014, a Assembleia Legislativa da Bahia aprovou a extinção da Empresa Baiana de

Desenvolvimento Agrícola (EBDA). Esta tinha sido constituída em 1991, a partir da fusão entre a Empresa de

Pesquisa Agropecuária da Bahia (Epaba) e a Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural da Bahia

(Emater-BA).

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Pesquisa agrícola e assistência técnica: o caso da Dinamarca59

A principal organização de pesquisa agropecuária da Dinamarca é o “Danish Institute of Agricultural Sciences” (DIAS). Sua sede está localizada na cidade de Tjele, no centro da Jutlândia. Resultou da fusão do “Danish Institute of Animal Science” e o “Danish Institute of Plant and Soil Science”, ocorrida em 1998. Um estudo sobre o funcionamento do DIAS poderia ser proveitoso, para alimentar os debates sobre as relações entre uma organização de pesquisa agrícola e a difusão tecnológica entre os estabelecimentos rurais. Neste caso, por exemplo, seria possível aprender que no caso dinamarquês os temas de pesquisa nascem no interior do “sistema agroalimentar”, com intensa participação, em especial da indústria de processamento, que financia projetos de pesquisa e busca recursos em outras fontes. Para ser executado o projeto, o DIAS conta com equipe própria de pesquisadores, mas também inclui professores, pesquisadores e estudantes das universidades, além de recursos humanos do “Danish Agricultural Advisory Service” (DAAS), que seria o serviço de extensão rural, além dos produtores rurais. Sob tais tendências, a maior parte das pesquisas é essencialmente aplicada.

Na Dinamarca existem apenas 50 mil produtores rurais (pouco mais do que o Uruguai, bem menos do que no Rio Grande do Sul), incluindo aqueles ligados às cooperativas. Todos são cadastrados no DAAS, com os quais mantém rotineira troca de informações, com a finalidade de identificar problemas técnicos em suas propriedades e, a partir da fundação do DIAS, foi sendo formada uma rede, pois praticamente todos têm acesso à internet. Um dos resultados práticos tem sido a possibilidade de realizar experimentos nos estabelecimentos rurais privados, tornando assim desnecessário que a organização de pesquisa mantenha terras próprias para seus experimentos.

5.1 Quinto desafio: recomendações

O que está sendo feito pela Embrapa, sob o rótulo de “transferência de

tecnologia”, em nossos dias, está conceitualmente incorreto e se distancia radicalmente

das necessidades de difusão de tecnologia que um setor agropecuário modernizado,

como a brasileiro, demandaria. Por esta razão, se for permitida uma recomendação

mais direta e impactante, embora necessária, a principal recomendação desta NT sobre

esse quinto tema é reformular radicalmente o Departamento de Transferência de

Tecnologias (DTT). Esta recomendação deveria contemplar a possibilidade de extinção

do Departamento, tal como está atualmente organizado, para permitir o renascimento de

uma forma estratégica de atuação que fosse convergente com os desafios atuais. Assim

afirmado, se trata de uma aparente ousadia, disposta apenas a realçar quase uma

provocação. Contudo, não é nenhuma boutade, mas apenas a sugestão inevitável de uma

verificação empírica sobre os fatos atuais. O foco central do DTT está essencialmente

incorreto porque se dirige exclusivamente aos produtores rurais, o que não produz

resultados em uma agropecuária modernizada, conforme os argumentos submetidos na

59 Agradeço ao colega Amilcar Baiardi, professor titular na UFRBA, por essas informações sobre tendências

observadas na Dinamarca sobre o tema em discussão. Resultam de sua larga experiência acerca dos sistemas

de pesquisa agropecuária em alguns países europeus nos quais vem sistematicamente realizando pesquisas.

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primeira seção desta NT. Manter o foco nas decisões dos produtores, como se

mantivessem ampla autonomia sobre seus respectivos formatos tecnológicos e

processos decisórios é erro primário, pois os resultados sempre serão (e cada vez mais)

insatisfatórios. O processo de intensificação tecnológica no interior dos

estabelecimentos rurais, como antes enfatizado brevemente, depende do conhecimento

das cadeias produtivas e o detalhamento do processo de inovações nelas operado,

incluindo as redes decorrentes, e esta é a forma de identificar as chances produtivas dos

produtores rurais. Esperar que estabelecimentos submetidos a atores econômicos

“dominantes” em uma cadeia possam tornar realidade esta ou aquela alternativa

tecnológica, apenas porque são mais produtivas fisicamente, mas não tem demonstração

econômico-financeira, é o mesmo que esperar que milagres aconteçam na vida rural.

Outros bloqueios à ação do setor de transferência de tecnologias da Embrapa

decorrem da falta de problematização acerca da “narrativa dominante”, já antes

apontada. A pouca disposição para interpretar criticamente a leitura dominante impede

que aquela ação seja dirigida à concretude dos processos sociais e econômicos das

regiões rurais, mas, contrariamente, que formas de ação sejam propostas apenas in

abstrato. É preciso reconhecer (contra a existente “narrativa dominante”) que não

existem “agricultores familiares brasileiros” tout court, como uma categoria social que

seria portadora de relativa homogeneidade e características sociais específicas: esta é

uma ficcção, criada com propósitos políticos e partidários. Menos ainda existiria um

grupo social que sob esta denominação portaria particularidades culturais essenciais, o

que não é apenas ficcional, mas um absurdo inimaginável do ponto de vista científico,

embora a fantasia seja recebida passiva e acriticamente por instituições do Estado

brasileiro, que parecem fingir-se de míopes em relação a esses óbvios erros empíricos.60

Se uma empresa de pesquisa e de ciência não consegue avaliar criticamente aquela

expressão vazia e genérica, sem colagem às realidades rurais, dificilmente será capaz

de, igualmente, promover ações em transferência de tecnologia.

60 Situa-se perto do ridículo insistir na expressão “produtores familiares” quando o objetivo da política é apontar os

estabelecimentos rurais de menor porte econômico e circunscrever concretamente, em especial, as famílias

rurais mais pobres, visando a maior eficácia da ação governamental. Com esse objetivo, a expressão antes

utilizada, “pequenos produtores rurais”, seria mais apropriada. Intitulando-as genericamente de “familiares”,

não há, de fato, uma separação empírica entre os estabelecimentos, pois praticamente todos são familiares,

inclusive os imóveis de grande tamanho (pois a administração é familiar). Na maior economia capitalista do

mundo, 97,3% dos estabelecimentos rurais são familiares e, por isto, a separação empírica se dá pelo nível de

renda e nenhum outro critério. Consulte-se HOPPE, R. e MACDONALD, J., “America‟s diverse Family

farms: 2014 Edition”. Washington: ERS: Economic Information Bulletin 133, 2014. Disponível em:

http://www.ers.usda.gov/publications/eib-economic-information-bulletin/eib133.aspx

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É preciso reconhecer a profunda heterogeneidade do grande grupo dos

“estabelecimentos rurais de pequeno porte econômico”, pois o critério definidor é este:

produtores rurais desempenham uma atividade econômica e, quando chamados de

“familiares”, no sentido que se pretende apontar no Brasil, está se referindo àqueles de

“pequeno porte”. Similarmente ao que a literatura brasileira, até o final dos anos oitenta,

intitularia de “pequena produção rural” (ou “pequenos produtores”). Uma vez

reconhecida esta maior clareza empírica sobre o público-alvo, se identificará a sua

extrema heterogeneidade estrutural e, portanto, suas chances sociais e econômicas. Se

assim não for, a Embrapa apenas seguirá os erros mais gerais da ação governamental do

Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) destinada ao mesmo público: por se

mover apenas por motivações ideológicas, aquele Ministério produziu até aqui

resultados paupérrimos, em face dos recursos alocados, além de se mostrar intolerante à

discussão e ao debate centrado em fatos e estatísticas censitárias e da melhor pesquisa

brasileira. Seria este o roteiro que a Embrapa também persegue?

A proposta de radical transformação (ou talvez até a extinção) daquele

departamento é aqui recomendada porque a Embrapa precisa de uma reorientação

drástica nesse setor, reduzindo o espontaneísmo e o obscurantismo atualmente reinantes

e estimulando iniciativas de maior criatividade – à luz das realidades rurais. Como no

exemplo dinarmaquês acima citado, é preciso desenvolver diversos “casos

experimentais e pilotos”, para dar conta da heterogeneidade das situações sociais e

produtivas existentes, utilizando os mecanismos metodológicos mais ousados, se

articulando com os demais setores sociais e organizações existentes e, sobretudo,

aceitando suas limitações e se dispondo a aprender com outros parceiros que trabalham

na área, inclusive fora do Brasil. As propostas recentes conhecidas do DTT chocam pelo

primarismo, pelo engessamento ideológico e, em especial, pelo nítido desconhecimento

do processo recente de transformações da agropecuária brasileira. Nos últimos dez anos

(2004 a 2013), segundo as PNADs, foram extintos quatro milhões de postos de trabalho

no “mundo rural”, tornando o fator trabalho cada vez mais escasso, aumentando os

salários rurais e invertendo o que teria sido permanente em nossa história rural – a

oferta “ilimitada” de mão-de-obra, o que sempre permitiu a super-exploração dos

trabalhadores. Ante esta mudança, as chances de ampliar suas minguadas rendas,

ampliadas anteriormente com o trabalho temporário ocasional, entre os pequenos

produtores rurais mais pobres (especialmente no Nordeste rural) estão sendo

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diminuídas, ao mesmo tempo em que os pequenos produtores com alguma integração ao

mercado, os quais usam também diaristas e algum trabalho contratado ocasional,

também estão sendo encurralados em face desse novo contexto. Por esta e outras razões,

há em andamento um processo de esvaziamento das regiões rurais que está sendo

acelerado em todas as regiões rurais. São fatos reais, empiricamente comprovados em

estatísticas disponíveis – estariam sendo analisados nas propostas do DTT?61

6. Conclusões

“Pois bem, aqui estão meus humores e opiniões: escrevo-os por serem aquilo que creio,

não por serem aquilo que se deva crer. Aqui só tenciono descobrir a mim mesmo, que

porventura amanhã será outro, se nova aprendizagem me mudar” (MONTAIGNE, M.,

1580)62

“In decision making under uncertainty or with a high degree of complexity, behavior

may be due to what Keynes called our „animal spirits‟ rather than to identifiable features

of the situation to which we react in identifiable ways. People do, to be sure, act on rules

of thumb in these cases: the problem is that there are too many of them” (ELSTER, J.,

2007, p. 466. Grifo acrescido).63

O que ocorreria se a Embrapa, por um passe de mágica, em situação hipotética,

subitamente deixasse de existir? A tragédia que potencialmente poderá se concretizar

em breve é que a resposta mais provável em termos dos possíveis impactos poderá ser -

“nada ocorreu” (ou, provavelmente, “quase nada”). Certamente esta sensação seria

uma exagerada manifestação subjetiva, mas é o sentimento que vai sendo compartilhado

por muitos, pesquisadores da Embrapa ou aqueles externos à Empresa. Pois é fato que a

agropecuária brasileira, confrontada com tal situação, provavelmente saberia avançar

em novas iniciativas e procedimentos, em face dos desafios existentes e aqueles que

surgirão nos anos vindouros.

Em consequência dos argumentos sintetizados nesta NT, uma crise organizacional

observa o futuro de médio prazo da Embrapa, pois se vislumbra o espectro de sua

61 Para maior detalhamento sobre as mudanças no mercado de trabalho rural, examine-se o estudo do DIEESE, “O

mercado de trabalho assalariado rural brasileiro”. São Paulo, Estudos e Pesquisas, nº 74, 2014. Sobre as

tendências demográficas nas regiões rurais, é fundamental conhecer o recente artigo de Alexandre Gori, que

aponta as dramáticas mudanças em curso nas regiões rurais, inclusive o aumento de casais rurais sem filhos e

o crescente desequilíbrio das razões de gênero, indicando a masculinização do campo. Famílias menores ou

sem filhos e comunidades rurais com menor número de mulheres jovens e aumento dos casais de maior idade:

estaríamos discutindo em nossas ações de “transferência de tecnologia” essas facetas? Ou tais transformações

demográficas não tem nenhuma relação com o processo de TT em áreas rurais? O artigo intitula-se “O

esvaziamento demográfico rural” e encontra-se em BUANAIN, A. M. et al, op. cit., p. 1081-1100.

62 MONTAIGNE, M. de. Os Ensaios. São Paulo: Penguin, Companhia das Letras, 2010 (a citação está na p. 88-89).

63 ELSTER, J. Explaining Social Behavior. Cambridge: Cambridge University Press, 2007

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desnecessidade. É contexto que emergirá? É impossível saber se assim será, pois uma

situação-limite como aquela dependerá de muitas circunstâncias, algumas imprevisíveis.

Mas, seus elementos detonadores estão sendo fermentados no interior da Empresa, à

espera de mais humildade e coragem de seus dirigentes para discuti-los e, idealmente,

afastar as ameaças existentes, recolocando a Embrapa em um novo caminho

potencialmente mais favorável. Espera-se que esta NT possa ter apontado

construtivamente os principais elementos que exigem imediata discussão interna e,

como resultado, tenha iluminado as mudanças que os novos tempos estão exigindo. Em

particular, são dois os movimentos iniciais e imediatos. Primeiramente, animar espaços

de debate e discussão sem interdições acerca dos temas apontados e outros igualmente

relevantes, mas não discutidos nesta NT, gradualmente também incentivando a

constituição dos ingredientes formativos de uma cultura democrática ainda largamente

inexistente na Embrapa. Secundariamente, e como resultado da materialização do

antecedente, um esforço que seja sério e rigoroso que permita que uma nova e sólida

estratégia possa ser logo materializada, consentânea com os desafios atuais – os citados

e discutidos acima e outros que aqui não foram sequer referidos.

A Embrapa promoverá a sua própria reforma, que é claramente requerida por e

para inúmeras de suas áreas e formas de atuação? Para muitos, em especial os mais

experientes, esta é reforma impossível de ser realizada por dentro, e exigiria uma força

externa para ser implantada, inclusive com um mandato político explícito para impor as

reformas que forem decididas. Mas, seria assim mesmo? A Empresa não teria plenas

condições para a auto-reflexão e a implantação das mudanças? Seria necessária uma

espécie de “intervenção branca” externa? É um tema de debate e, claro, espera-se que a

comunidade embrapiana possa se mobilizar e aderir a esse exercício de interpretação

urgente sobre o estado atual e seu futuro e, idealmente, garantir um processo de

aperfeiçoamento que possa ser conduzido pelos próprios embrapianos, conscientes dos

desafios atuais.

Se navegar é preciso, sem uma carta de navegação correta, nunca se atingirá um

porto seguro. O Brasil precisa de uma empresa pública de pesquisa agrícola plenamente

ativa e adaptada à nova fase do desenvolvimento agrário pelo qual passamos

atualmente, capaz de assegurar o futuro alimentar de seu povo, mas também produzindo

com eficiência e sustentabilidade para um mundo crescentemente faminto.

É preciso mudar - e com urgência. Ou, então, resignar-se à irrelevância.