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Revista Latino-Americana de História Vol. 2, nº. 6 – Agosto de 2013 – Edição Especial © by PPGH-UNISINOS Página 767 Ensino de história: os livros didáticos e o pensamento autoritário no Brasil Michele Borges Martins * Resumo: As práticas autoritárias efetivadas no período conhecido como Estado Novo atingiram todas as “faces” da sociedade – política, cultural, econômica e etc. Foi a partir das discussões educacionais efetivadas neste período que se desenvolveu o primeiro processo de avaliação dos livros didáticos no Brasil. Com o intuito de construir uma estrutura capaz de centralizar as etapas de produção, distribuição, utilização e importação dos manuais pedagógicos foram impostas normas que atingiram não só autores e editores como também o público no qual esse material circulava. Os artifícios de manutenção do poder implementados por Vargas adentraram o meio educacional com veemência, fazendo com que os livros didáticos contribuíssem para a perpetuação de seu ideal nacionalista. Palavras-chave: Estado Novo, livro didático, Comissão Nacional do Livro Didático. Abstract: The Authoritarian practices effected in the period known as the New State influenced all the "faces" of society - political, cultural, economic and so on. It was from the effect of educational discussions that occurred in this period that was developed the first evaluation process of textbooks in Brazil. In order to build a structure capable of centralizing the stages of production, distribution, use and import of teaching manuals were imposed standards that reached not only authors and publishers as well as the public in which this material was circulated. The maintenance of the power devices implemented by Vargas entered the educational environment strongly, making the textbooks contribute to the perpetuation of his nationalistic ideal. Keywords: New State, Textbook, Commission National Textbook. Segundo Boris Fausto podemos verificar “duas fases na constituição e influência de um pensamento autoritário no Brasil...” (FAUSTO, 2001:20). O autor explica que em um primeiro momento – década de 1920 – houve a consolidação do entendimento ideológico dos * Mestranda do programa de Pós-Graduação em História, pesquisa e vivências de ensino-aprendizagem –FURG. Email: [email protected].

Ensino de história: os livros didáticos e o pensamento ... · Dentre esses teóricos podemos citar Oliveira Vianna, pois para o mesmo o liberalismo seria um mal para a nação –

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Ensino de história: os livros didáticos e o pensamento autoritário no Brasil

Michele Borges Martins*

Resumo: As práticas autoritárias efetivadas no período conhecido como Estado Novo

atingiram todas as “faces” da sociedade – política, cultural, econômica e etc.

Foi a partir das discussões educacionais efetivadas neste período que se desenvolveu o

primeiro processo de avaliação dos livros didáticos no Brasil. Com o intuito de construir uma

estrutura capaz de centralizar as etapas de produção, distribuição, utilização e importação dos

manuais pedagógicos foram impostas normas que atingiram não só autores e editores como

também o público no qual esse material circulava. Os artifícios de manutenção do poder

implementados por Vargas adentraram o meio educacional com veemência, fazendo com que

os livros didáticos contribuíssem para a perpetuação de seu ideal nacionalista.

Palavras-chave: Estado Novo, livro didático, Comissão Nacional do Livro Didático.

Abstract: The Authoritarian practices effected in the period known as the New State

influenced all the "faces" of society - political, cultural, economic and so on. It was from the

effect of educational discussions that occurred in this period that was developed the first

evaluation process of textbooks in Brazil. In order to build a structure capable of centralizing

the stages of production, distribution, use and import of teaching manuals were imposed

standards that reached not only authors and publishers as well as the public in which this

material was circulated. The maintenance of the power devices implemented by Vargas

entered the educational environment strongly, making the textbooks contribute to the

perpetuation of his nationalistic ideal.

Keywords: New State, Textbook, Commission National Textbook.

Segundo Boris Fausto podemos verificar “duas fases na constituição e influência de

um pensamento autoritário no Brasil...” (FAUSTO, 2001:20). O autor explica que em um

primeiro momento – década de 1920 – houve a consolidação do entendimento ideológico dos

* Mestranda do programa de Pós-Graduação em História, pesquisa e vivências de ensino-aprendizagem –FURG. Email: [email protected].

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teóricos e, em seguida, ocorreu à valorização do pensamento autoritário e de seus

“sistematizadores”, os quais influenciaram a política brasileira do período.

Dentre esses teóricos podemos citar Oliveira Vianna, pois para o mesmo o liberalismo

seria um mal para a nação – somente o Estado forte poderia manter a unidade nacional, a

modernização do país e a harmonia entre as os grupos sociais (MATOS, 2000). No mesmo

sentido Alberto Torres – mais um ideólogo do pensamento autoritário – deixa claro que a

articulação do nacionalismo deveria ser realizada pelas “grandes mentes”, as quais guiariam a

população. Ainda, para Azevedo Amaral o Estado autoritário também é imprescindível, visto

que a ordem e a hierarquia eram as bases necessárias para haver liberdades individuais

(FREITAS, sd).

Para alguns desses intelectuais, Getúlio Vargas representava o líder capaz de conduzir

a nação no desenvolvimento de um Estado forte – o que resultou no apoio desses pensadores

ao prolongamento do governo provisório de Vargas. O Estado-Novo, então, significou a

decadência dos ideais liberais, visto que se instaurou um regime que buscava realizar a

identificação da população com o chefe do Estado, intencionava suprimir os partidos políticos

e controlar as mobilizações sociais, por exemplo.

Na educação o pensamento autoritário foi transmitido a partir dos escritos e ações

políticas de Francisco Campos. O mesmo foi nomeado Ministro da Educação e Saúde no ano

de 1931 e por meio de decretos efetivou reformas educacionais que objetivaram a organização

do ensino superior, do ensino secundário e a criação do Conselho Nacional da Educação.

A organização política brasileira que foi implantada entre os anos de 1937 a 1945 e

que ficou conhecida como Estado-Novo teve como base as ideias e as ações desses

intelectuais, os quais viabilizaram uma nova forma de legitimar o poder atribuído ao

governante – a personificação do Estado na figura de Getúlio Vargas e a aceitação de políticas

foram possíveis devido a diversos mecanismos de caráter autoritário.

O que foi entendido posteriormente como a ditadura varguista, devido ao cerceamento de

liberdades por meios de um aparato repressivo que possuía como um de seus instrumentos o

DIP – Departamento de Imprensa e Propaganda –, por exemplo, também modificou as

diretrizes da educação brasileira. Por meio de reformas, discussões e alterações na legislação

vigente, os articuladores do governo Vargas objetivavam construir um arcabouço legal que

sustentasse práticas educacionais condizentes com o projeto político-ideológico estado-

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novista. Um exemplo claro foi a promulgação do Decreto-Lei 1006, de 30 de dezembro de

1938.

O mesmo estabeleceu as condições de utilização, produção e importação do livro didático,

a partir da criação da Comissão Nacional do Livro didático. Nesse sentido, a pesquisa aqui

desenvolvida se insere no campo do Ensino de história, o que objetivamos é justamente

analisar se o decreto-lei 1006 serviu como um desses mecanismos de perpetuação do Estado

autoritário. No entanto, para alcançarmos um melhor entendimento sobre essa legislação o

texto será orientado pelas seguintes questões: a lei 1006 de 1938 apresenta características do

pensamento autoritário? Se há a presença do pensamento em questão, que caraterísticas são

essas e como elas dialogam com o contexto histórico?

Assim, para que nossa pesquisa seja compreendida, primeiramente será necessário

explicitar qual marco teórico e metodológico norteou nossas análises, aspectos que

explicaremos a seguir.

A teoria e metodologia aplicada

A construção de nossas análises terá como principal referencial teórico para a leitura

da fonte, o contextualismo linguístico de Quentin Skinner. O mesmo é o maior expoente

desta forma de leitura dos textos no que ficou conhecido como “Escola de Cambridge”, e em

suas obras o mesmo propõem um alargamento do que se entende como contexto histórico:

… os próprios textos. A fim de percebê-los como respostas a questões

específicas, precisamos saber algo da sociedade na qual foram escritos. E, a

fim de reconhecer a direção e forças exatas de seus argumentos,

necessitamos ter alguma apreciação do vocabulário político mais amplo de

sua época. Mas, de qualquer modo, é necessário te acesso a esse nível de

compreensão se pretendemos interpretar os clássicos de maneira

convincente. Pois compreender as questões que um pensador formula, e o

que ele faz com os conceitos a seu dispor, equivale a compreender algumas

de suas intenções básicas ao escrever, e portanto implica esclarecer

exatamente o que ele pode ter querido significar com o que disse – ou deixou

de dizer. Quando tentamos situar desse modo um texto em seu contexto

adequado, não nos limitamos a fornecer um ‘quadro’ histórico para nossa

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interpretação: ingressamos já no próprio ato de interpretar (SKINNER, 1996:

13).

Como podemos perceber no trecho acima, para Skinner a intencionalidade do autor é

de extrema importância. Para além da hermenêutica na qual intencionamos cercar o texto – o

qual é nosso objeto de análise – das informações, diálogos e características do momento

histórico em que foi produzido, a proposta do autor é compreender o ato linguístico, a escrita

ou elocução como ação. No texto de Thiago Rodrigo Nappi – “Como interpretar os textos do

passado: aspectos da visada teórica de Quentin Skinner” –, o mesmo menciona que Skinner

exemplifica essa proposta “com a ideia da reação que viria causar a um grupo de patinadores

a frase ‘os gelo está fino’, já que tal frase além de possuir um significado, seria também um

ato de advertência ao grupo” (NAPPI, 2011: 160).

No entanto, para compreender essa intencionalidade autoral é necessário que o

historiador recupere o vocabulário específico do momento histórico, os significados que os

termos possuíam no próprio passado. Escrever deve ser entendido como uma intervenção na

realidade. Não se trata, então, de saber como a distribuição, elaboração e importação dos

livros didáticos eram reguladas legalmente. Assim como Skinner, iremos analisar o texto

“tentando descobrir que atos linguísticos estão presentes neles, tentando perceber sua

coerência interna, sua relação com outros textos e com as condições sociais que o geraram”

(BURKE, 2000: 332). Somente com essa compreensão é conseguiremos verificar se o

Decreto-lei 1006 de 30 de novembro de 1938 se configurou como uma ferramenta de

efetivação do pensamento autoritário característico do Estado-Novo.

Entretanto, além dos passos mencionados na proposta de Skinner como meio de

apreender os significados das ideias presentes nos textos do passado a partir da recuperação

das convenções linguísticas presentes no período histórico do autor, nossa análise também

necessitará de um método. O que especificamente iremos aplicar será uma análise temática de

conteúdo a qual “... consiste em descobrir os <<núcleos de sentido>> que compõem a

comunicação e cuja presença, ou frequência de aparição podem significar alguma coisa para o

objetivo analítico escolhido” (BARDIN, 1977: 105). Essa forma de tratamento dos dados

possibilita o desdobramento do texto em unidades de referencia e unidades de contexto, as

quais serão agrupadas em categorias de análise que permitiram a construção de um quadro que

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nos revelará que assuntos são centrais no interior dos conteúdos que integram a legislação em

questão.

Como podemos perceber os pressupostos teóricos que vamos utilizar e a metodologia

dialogam, pois ambos buscam perceber as intencionalidades presentes nos textos. Assim, será

a partir da verificação das principais mensagens – as quais constituíram uma categoria –

presentes nos escritos, que compõem o decreto-lei, que as intenções de intervenção na

realidade serão percebidas e analisadas.

O Decreto-Lei e seus contornos O Decreto-Lei 1006, de 30 de dezembro de 1938 significou o principio da

preocupação com os livros didáticos em nível nacional. A partir do momento de sua

promulgação, o as escolhas dos manuais pedagógicos deveriam ser realizadas com base na

lista dos livros autorizados pelo Ministério da Educação e Saúde.

Essa legislação que objetivava, então, estabelecer a normatização do processo de

elaboração dos livros didáticos foi publicada no Diário Oficial da União no dia cinco de

janeiro de 1939, mas o inicio de suas determinações foi previsto para o ano de 1940. Se

configurou, então, como um produto de um regime que busco normatizar inclusive os

materiais pedagógicos utilizados nos ambientes escolares do período. No entanto como o

pensamento autoritário aparece no seu conteúdo?

Para compreendermos a influencia do pensamento autoritário primeiramente será

necessário discutir o conceito. Para Assis Chateaubriand e Sérgio Buarque de Holanda o

autoritarismo “... era apropria dinâmica da intervenção estatal nos mais diversos assuntos

politico-administrativos do país” (MATOS, 2011). Essa intervenção apontada por ambos os

intelectuais também se faz presente no entendimento de Lamounier, visto que o mesmo

entende como autoritário:

... um sistema caracterizado por uma estrutura vertical de poder, numa estrutura

social em que existe ampla margem de pluralismo tradicional e um setor marginal

(populações favelas, etc.) sem formas desenvolvidas de vida associativa, quer

classista, quer étnica...” (LAMOUNIER, sd: 79)

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Como podemos perceber, o autoritarismo permite a multiplicidade de pensamento.

Embora o caráter interventor tenha resultado no uso da força para controlar a sociedade e na

tentativa de eliminação das divergências políticas, o autoritarismo brasileiro não possuía uma

única ideologia que buscasse mobilizar todos os grupos. Além, disso o regime autoritário no

Brasil buscou o desenvolvimento do nacionalismo e ao contrario do totalitarismo – no qual há

um partido único que representa toda a sociedade -, a participação da população na política foi

“organizada” de forma a viabilizar a legitimação do poder do chefe do Estado.

Assim, o termo autoritarismo surgiu como uma necessidade de nomear a nova forma

de organização político-social efetivada no século XX. O Estado autoritário foi subsidiado

pelo pensamento de intelectuais que não só participaram ativamente das modificações

políticas, como também ofereceram as bases teóricas para essa forma de governo que se

caracterizava pela figura carismática do chefe de Estado – artifício que buscava a

identificação da população com a figura do presidente –, pelo conservadorismo e certa

independência das instituições religiosas.

Com base nessa reflexão, um dos primeiros aspectos que tentamos identificar na

leitura do Decreto-Lei foi que “personagens” são citados. Após o tratamento dos dados a

partir da análise do conteúdo construímos duas categorias de análise denominadas: “Censura”

e “Agentes”. A primeira categoria engloba as unidades de registros intituladas “Causa

técnica”, “causa Ideológica” e “Condição”. Enquanto que na segunda categoria podemos

verificar as unidades de registro intituladas “Usuários” e “Elaboradores e organizadores”, as

quais nos possibilitaram observar a seguintes características:

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71%

29%

Média das Porcentagens Referentes aos Agentes mencionados na legislação

Usuários

Elaboradores e Organizadores

I

nformações obtidas a partir do Decreto-Lei 1006, de 30 de dezembro de 1938 – disponível no site da Câmara dos

Deputados.

Para compreendermos melhor as porcentagens explicitadas é necessário evidenciarmos

que a categoria “Agentes” representa todos os indivíduos e instituições e órgãos

governamentais que exercem a ação no interior da legislação e que são alvo da regulação

estabelecida. Além disso, na unidade de registro “usuários” foram inseridas as palavras,

expressões e ideias que se referissem aos indivíduos, instituições que utilizam os livros

didáticos – escola, professores e alunos, por exemplo –, enquanto que a unidade de registro

“Elaboradores e Organizadores” foram englobadas todas as palavras e expressões que

aludissem os indivíduos, instituições e órgãos governamentais que foram responsáveis pela

fabricação, distribuição e regulação dos livros didáticos – Ministério da Educação, Comissão

Nacional do livro Didático e etc.

Como podemos perceber a partir das porcentagens evidenciadas, dentre a totalidade de

agentes citados no Decreto a média de inferências pertencentes à unidade “Elaboradores e

organizadores” é muito mais alta do que na unidade “usuários”. Mas o que essas informações

significam? Como uma primeira resposta podemos inferir que o processo de regulação esta

muito mais centrado dos agentes pertencentes ao poder público.

A constante menção ao Ministério da Educação, ao Ministro, aos autores e ao editor,

por exemplo, confirma uma centralização das ações nos “setores” articuladores do processo

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que resulta na materialização do livro didático e aprendizado dos alunos no interior das

escolas. Os agentes essenciais do processo de ensino-aprendizagem objetivado pelos manuais

são em última instância os responsáveis pelos órgãos públicos – visto que das 55 inferências

categorizadas, 30 são sobre os mesmos –, deixando claro que os professores e alunos não

ocupam uma posição significativa na regulação de como os conteúdos devem estar

apresentados ou, até mesmo, na decisão de que requisitos esses manuais foram avaliados.

Entendemos que essa marginalização dos principais personagens da prática exercida

no âmbito da educação é um reflexo do viés centralizador e nacionalista. Nesse sentido,

Oliveira Vianna em sua obra intitulada “Instituições Políticas Brasileiras” mencionou que:

Contendo um postulado inteiramente sem fundamento histórico, esta crença – de que

a descentralização política é, em nosso meio, condição de liberdade (quando a

verdade é justamente oposta) – não passou despercebida aos espíritos realistas.

Outrora não foi a razão da apostasia de Bernardo Vasconcelos, desapontado pelos

feitos maléficos que iam surgindo do Ato Adicional. Este expediente

descentralizador em vez de assegurar as liberdades, como se esperava, sacrificou-as

todas – não só a liberdade privada como a própria liberdade politica, a que se

designava garantir. (VIANNA, 1999: 480)

Como podemos perceber por meio do trecho citado, para o autor a centralização

política era o melhor caminho para a garantia das liberdades. O sociólogo também deixa claro

em seu texto que o liberalismo, o voto universal e democracia são propostas importadas, que

pertencem a uma condição social característica de outras nações – Inglaterra e Estados Unidos

da América, por exemplo – e que não foram adaptadas à realidade brasileira. Vianna entende

que a formação da nacionalidade do povo brasileiro necessita da centralização do poder

político. Característica essa que podemos observar como pratica visto que não só o Decreto –

Lei 1006 de 1938 limita as decisões sobre o livro didático em indivíduos responsáveis pelos

órgãos governamentais, como também influenciou a carta constitucional de 1937.

A mesma instaurou um Estado altamente centralizado, definiu as limitações do poder

Legislativo pelo Executivo, buscou suprimir a autonomia dos estados, regulamentou o uso dos

símbolos nacionais e possibilitou o Presidente da República legislar por meio de decretos.

Fernanda Xavier da Silva (2010), em seu texto “As Constituições da Era Vargas: uma

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abordagem à luz do pensamento autoritário dos anos 30”, deixa claro que a independência dos

estados brasileiros – federalismo – foi quase anulado, visto que o Presidente da República

poderia nomear um interventor o qual assumiria as funções que o Presidente lhe atribuísse.

Azevedo Amaral – ao encontro das ideias de Vianna – também mencionou que:

O autoritarismo, que mais de uma vez insistiremos em afirmá-lo – é da

própria essência da organização estatal e não pode ser divorciado do

exercício do governo, aparece em todas as formas de organização política

normais como condição imprescindível à ação eficiente do Estado no

desempenho das funções que são a razão de ser da sua própria existência

(AMARAL, 2002: 160-161).

Como podemos observar, o autor define o Estado autoritário como o único capaz de

organizar o país. O autoritarismo deveria ser, portanto, inerente ao poder estatal e

consequentemente estar presente nos setores administrativo do governo. Assim, a verificada

centralização do discurso nos órgãos e indivíduos responsáveis pela elaboração dos livros

didáticos é entendida como reflexo do pensamento desses intelectuais. As decisões centradas

no Ministério da Educação e nos indivíduos que, em última instancia, também deveriam

adequar seu trabalho as ordens desse órgão público, eram imprescindíveis para manter o

desenvolvimento da educação a partir da ordem estabelecida.

Além dessas características, o Decreto-Lei 1006, de dezembro de 1938 também nos

possibilitou verificar outros aspectos:

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Causa Ideológica17%

Causa Técnica12%

Condição71%

Média das Porcentegens Referentes as Unidades de Registro Pertencentes a

Categoria de Análise "Censura"

Informações obtidas a partir do Decreto-Lei 1006, de 30 de dezembro de 1938 – disponível no site da Câmara

dos Deputados.

Em nossa análise sobre o Decreto-Lei a categoria de análise denominada “Censura”

engloba três unidades de registro. Na unidade intitulada “Condição” foram inseridas todas as

palavras e expressões que expressassem a exigência para a prática de algo – autorização,

sujeito à determinações e julgamento, por exemplo. Na unidade intitulada “Causa Técnica”

foram inseridas todas as frases e expressões que transmitissem a ideia de veto da autorização

do Livro didático devido a divergências quanto a redação, formatação e ortografia. E na

unidade “Causa Ideológica” foram reunidas todas as frases e expressões que transmitem o

entendimento de negação a autorização do Livro didático devido ao seu conteúdo.

Um dos primeiro aspectos notados é que das 69 frases, expressões e palavras

categorizadas, 49 pertencem a unidade “Condição”. Essa porcentagem elevada colabora para

a compreensão de que o pensamento autoritário presente no Estado-Novo gerou uma estrutura

burocrática que objetivava manter a supervisão e controle da elaboração do livro didático e os

seus reflexos no processo de ensino aprendizagem.

Como já mencionamos, a construção de um sentimento nacional e a busca pela

unidade do Estado eram necessidades evidenciadas pelo pensamento autoritário do período.

Segundo Amaral o Estado autoritário “tem uma doutrina em torno da qual podemos postular a

existência de um consenso de opinião nacional...” (2002: 204), a identificação do Estado e

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Sociedade foi construída de tal forma que havia certa aceitação de que toda a ação cívica

possuísse espaço delimitado. Ainda de acordo com Amaral “no Estado autoritário, o eixo da

sua organização estrutural e o foco de irradiação do seu dinamismo é o próprio chefe da

Nação” (2002: 205), características essas que foram construídas a partir de ações cerceadoras

como a que estamos abordando. A constante ideia de prévia permissão para a comercialização

dos livros didáticos reafirma a preocupação de como não só a imagem de Getúlio Vargas

estava sendo retratada nos mesmos, mas também de tornar os manuais pedagógicos um

veiculo de transmissor de um sistema de valores que eram condizentes com o projeto nacional

de Vargas.

Ainda, foi possível notar que das causas mencionadas, as quais poderiam levar ao veto

da autorização do livro, a porcentagem de fatores ideológicos que causam o veto é mais

elevada do que os fatores técnicos. Informação essa que nos conduz a compreensão de que o

Decreto-Lei aqui analisado se apresenta como um reflexo do próprio processo de maturação

política, visto que as próprias causas ideológicas citadas se referem a preocupação com a

transmissão de ideias que justifiquem – ou que pelo menos não levem ao questionamento – do

antiliberalismo, nacionalismo, elitismo, corporativismo e autoritarismo.

Portanto, assim como os demais âmbitos da República Brasileira a educação também

devia estar alicerçada nos pilares do pensamento autoritário. Entendimento esse que podemos

verificar nos escritos de Oliveira Vianna, visto que para o mesmo “a educação deve ser um

monopólio do governo federal; [...] visto que é necessário ‘imprimir diretrizes nacionais ao

problema da cultura e da educação do povo’” (ODALIA, 1997: 159).

É claro que em nossa reflexão citamos apenas alguns dos intelectuais que escreveram

sobre o autoritarismo durante a década de 1930. Mas a partir desses foi possível refletir sobre

como esse pensamento embasou as ações efetivadas durantes o estado-Novo. Especificamente

no que se refere ao Decreto-Lei 1006, de 30 de dezembro de 1938, notamos que o

aprendizado proposto pelos livros didáticos não poderiam denegrir a imagem da nação,

consequentemente se inicia um ensino que possuía como seu objetivo o desenvolvimento do

civismo. O cuidado com a formação moral dos discentes derivava da preocupação com a

segurança do Estado autoritário, a ausência do interesse em desenvolver a criticidade dos

alunos advém do entendimento de que o ensino deviria estar voltado a capacitação de

trabalhadores.

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Por fim, foi possível verificar que a legislação – a qual é o foco de nossas explanações

– foi elaborada a partir dos principais pilares do pensamento autoritário do período, visto que

proporciona a centralização das decisões a cerca da elaboração, utilização e distribuição do

livro didático nas mãos dos indivíduos responsáveis pelos órgãos ligados ao poder público.

Além disso, possibilita um ensino embasado na figura positiva do Estado Nacional e na

tranquilidade de convivência entre os grupos que compõem a sociedade. E visa uma educação

que condizente com a ideia desenvolvimentista e tecnicista do Estado-Novo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: ABUD, Katia Maria. Formação da Alma e do Caráter Nacional: Ensino de História na Era Vargas. Rev. Bras. Hist. [onine]. 1998, Vol. 18, n. 36, pp. 103-114. AMARAL, Azevedo. O Estado Autoritário e a Realidade Nacional. Versão para ebook, 2002. Decreto-Lei 1006, de 30 de dezembro de 1938 – disponível em: http://www2.camara.leg.br/legin/fed/declei/1930-1939/decreto-lei-1006-30-dezembro-1938-350741-publicacaooriginal-1-pe.html. Acessado em: 25/06/2012.

FREITAS, Marcos Cezar de. A educação como tema do pensamento autoritário no Brasil. Disponível em: www.periodicos.ufsc.br/index.php/politica/article/download/.../14206. Acessado em: 12/02/2013 MELLO, Wallace da Silva Melo. O pensamento político de Oliveira Vianna. Disponível em: http://www.ecsbdefesa.com.br/defesa/fts/PPOV.pdf. Acessado em 01/02/2013. ODALIA, Nilo. As Formas do Mesmo: ensaios sobre o pensamento historiográfico de Varnhagen e Oliveira Vianna. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 19997. SILVA, Fernando Xavier da. As Constituições da Era Vargas: uma abordagem à luz do pensamento autoritário doa anos 30. Disponível em: www.periodicos.ufsc.br/index.php/politica/article/download/.../14206. Acessado em: 01/02/2013. VIANNA, Oliveira. Instituições Políticas Brasileiras. Brasília: Conselho Editorial do Senado Federal, 1999.

Recebido em Julho de 2013 Aprovado em Agosto de 2013