Ensino de Português

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Linguistica

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  • Ensino de portugus

  • Ensino de portugusFundamentos, percursos, objetos

    Jos Carlos de Azeredo

    Rio de Janeiro

  • Copyright 2007, Jos Carlos de Azeredo

    Copyright desta edio 2007:Jorge Zahar Editor

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    tel.: (21) 2108-0808 / fax: (21) 2108-0800e-mail: [email protected]: www.zahar.com.br

    Todos os direitos reservados.A reproduo no-autorizada desta publicao, no todo

    ou em parte, constitui violao de direitos autorais. (Lei 9.610/98)

    Projeto grfico e composio: Leo BoechatCapa: Dupla Design

    Para Clia Therezinha, in memorian.

    CIP-Brasil. Catalogao-na-fonteSindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.

    Azeredo, Jos Carlos de Ensino de portugus: fundamentos, percursos, objetos / Jos Carlos de Azeredo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007. Inclui bibliografi a ISBN 978-85-378-0021-8 1. Lngua portuguesa Estudo e ensino. I. Ttulo.

    CDD: 469.79807-2326 CDU: 811.134.3271.1(81)

    A985e

  • Apresentao ..........................................................................................................................

    PRIMEIRA PARTE: FUNDAMENTOS, PERCURSOS, OBJETOS

    1. Aspectos bsicos da construo do texto e do sentido .....................2. Ensino de portugus: fundamentos e objetos .........................................3. Texto e construo do sentido ...........................................................................4. Leitura e escrita na lngua materna: uma tarefa multidisciplinar ............................................................................................................. 5. Lngua e texto: o livro didtico de portugus nos anos 1960 e 1970 ..............................................................................................

    SEGUNDA PARTE: LEITURAS

    6. O aposto e o intertexto .........................................................................................7. Construo sinttica e coeso lexical ...........................................................8. Rosa, rosae: uma estilstica da irreverncia ...............................................9. De pedras e palavras: o atrito como esttica ..........................................10. Lugares da lngua na crnica de Carlos Drummond de Andrade ...................................................................................................................

    Notas .......................................................................................................................................Bibliografi a ...........................................................................................................................

    Sumrio

    7

    13

    31

    69

    95

    113

    129

    145

    159

    173

    183

    201

    209

  • 7Nossa experincia cotidiana da vida em sociedade no deixa qual-quer dvida sobre a importncia da palavra como instrumento das relaes humanas. No entanto, a conscincia dessa impor-tncia no gera automaticamente uma compreenso fecunda do lugar da palavra na vida das pessoas. Todos reconhecem que as palavras so smbolos, mas em geral as encaram como simples nomes das coisas, recursos usuais com que simbolizamos idias, entidades, objetos para comunicarmos o que percebemos, que-remos, sabemos, sentimos, pensamos. Tudo muito natural. A premissa de que tudo isso se d de modo inconsciente e espontneo tem por efeito a sensao de que falar uma atividade to natural quanto respirar, mastigar ou engolir. Obviamente, es-tes so atos que praticamos por simples impulso biolgico e graas a uma combinao de movimentos fi siolgicos que s se alteram por uma exigncia ou acomodao orgnica natural. A lingua-gem, no entanto, segue outra ordem de estmulos, que tm de ser procurados no universo social, e se integra numa outra ordem de fenmenos: a dos fenmenos culturais, portanto aprendidos. Leigos mas prticos, fi camos quase sempre tentados a tra-tar as palavras como se pertencessem a um estoque guardado na memria, como uma lista de etiquetas distintas e indepen-dentes que aplicamos s entidades do mundo real e do mundo imaginrio. Assim, cada vez que precisamos mencionar alguma coisa ou exprimir alguma idia, buscamos naquela lista as pa-lavras ou etiquetas apropriadas e as combinamos umas com as

    Apresentao

  • Ensino de portugus8

    outras conforme um ordenamento lgico, que seria um refl exo da maneira como a prpria realidade est construda. Esta crena deriva, na verdade, de uma outra, mais ampla porm menos bvia: a de que o mundo a que nossas palavras fazem referncia se acha organizado como uma estrutura aut-noma e separada da linguagem, como um conjunto de coisas, fatos, sensaes pronto para receber a respectiva etiqueta. De acordo com essa crena, os contedos do nosso pensamento se-riam apenas refl exos do mundo, e nossa linguagem no passaria de um simples meio de pr rtulos nesses refl exos ou de propi-ciar sinais para eles. Porm, essa crena falsa: a linguagem no uma simples ferramenta ou instrumento, tampouco o espelho de um mundo de objetos e fenmenos que preexistem conscincia humana. O contedo de nossos textos no um retrato fi el de nossas ex-perincias de mundo, simplesmente porque o que nossos textos signifi cam resulta de uma fi ltragem e modelao dessas experi-ncias por meio das categorias da lngua em que so construdos. A transformao de nossas experincias de mundo em matria textual envolve, necessariamente, fatores socioculturais e lings-tico-textuais que so propriedade coletiva. Uns e outros se refl e-tem em nossos textos, na medida em que, balizando nossas esco-lhas por meio de um sistema coletivo de representaes, fazem do que dizemos/escrevemos um meio de contato que viabiliza o entendimento entre dois sujeitos. Portanto, o que vale para a interao por meio da palavra no o que est na minha ca-bea, mas o que meu interlocutor compreende graas aos sinais que produzo. Ensinar a lngua ensinar a lidar com esses sinais, seja na construo dos nossos textos, seja na compreenso dos textos alheios. Esta uma verdade to antiga quanto consensual, mas o consenso cede lugar polmica quando a questo se refere aos meios adequados consecuo de tal objetivo. J longo mas provavelmente nunca ser conclusivo o debate sobre a utili-

  • Apresentao 9

    dade e os benefcios da refl exo sobre a lngua no processo de ensino concebido nos termos com que iniciei este pargrafo. O tema no novo, apenas voltou ao debate.1 Da mesma manei-ra, tampouco nova a tese de que o conhecimento descritivo de uma lngua no fator determinante no desenvolvimento das habilidades de expresso e escrita.2 A lio do bom senso, antiga mas no menos atual, : ningum aprende a ler e a escrever estu-dando gramtica e fazendo exerccios de anlise gramatical. Quando, porm, se fala em refl exo sobre a lngua, no de anlise gramatical que se fala. Refl exo sobre a lngua outra coi-sa bem mais abrangente: uma prtica que, sem perder de vista a funo instrumental da palavra, faz da lngua o foco do processo de aprendizagem e constri sobre ela um conhecimento que , no fundo, sobre a natureza humana e sobre a vida dos homens em sociedade.3

    O ensino da lngua uma espcie de idia fi xa que percorre os ensaios reunidos nesta obra. Em todos, insistimos na condi-o que o texto detm de objeto e objetivo do ensino da lngua materna. A primeira parte abrange os fundamentos (aspectos tericos e conceituais, abordados nos trs primeiros ensaios) e os percursos (um pouco da histria do ensino do portugus, as-sunto dos ensaios 4 e 5). A segunda parte rene propriamente os objetos desse ensino; os ensaios 6 e 7 oferecem anlises da fun-cionalidade textual de dois recursos gramaticais, o aposto e a no-minalizao; os ensaios restantes so incurses no territrio da literatura. Esses objetos so artefatos construdos com palavras e na natureza dessa construo que reside o sentido de cada um. Embora no tenha havido a preocupao em oferecer, na segun-da parte, uma aplicao dos conceitos expostos na primeira, as anlises empreendidas tendem a realizar essa conexo.

  • PRIMEIRA PARTE:

    FUNDAMENTOS, PERCURSOS, OBJETOS

  • 13

    Introduo

    A convivncia das pessoas em sociedade se desenrola sob a for-ma de gestos e atos de signifi cao.2 Produzimos e captamos sen-tidos por meios variados, que podemos agrupar em trs ordens muito amplas: a primeira compreende os sinais, que so criados, desenvolvidos e adotados essencialmente com esse fi m como os gestos do cumprimento, os desenhos que identifi cam toaletes femininos ou masculinos, as notas musicais, o silvo do amolador de facas, as palavras; a segunda ordem abrange objetos a cuja utilidade primria se acrescenta um valor simblico como em-balagens, roupas, adereos; a terceira abarca tudo o mais a que se pode atribuir sentido circunstancialmente, segundo a predispo-sio ou a expectativa que liga cada pessoa ao objeto de sua aten-o. Com efeito, tudo nossa volta fonte ou possibilidade de algum signifi cado, ainda que no esteja a com esse propsito. conferindo sentido aos atos e objetos que nos orientamos no mundo. Conferir signifi cado a qualquer coisa seja um fato, um objeto, um gesto, uma frase equivale a reconhecer seu lu-gar em algum contexto que a abrigue ou a engendre, com todos os ingredientes desse contexto: cenrio, ocasio, personagens etc. Se ao passar na rua recebo o cumprimento de um desco-nhecido, normal que eu fi que embaraado e no reaja como o outro espera. como se eu no visse sentido no gesto do meu

    1. Aspectos bsicos da construo do texto e do sentido 1

  • Ensino de portugus14

    interlocutor. Mas se ele e eu estivermos vestindo a camisa do time de futebol que se sagrou campeo na vspera, o gesto se contextualiza e imediatamente entendo o cumprimento. Ao considerarmos as variveis integrantes do contexto, va-mos preenchendo de sentido os objetos de nossa ateno: uma porta fechada, um sino que bate, um perfume, um cheiro, um penteado, um olhar, um gesto. Movemo-nos ou nos orientamos, portanto, em um espao ou situao qualquer graas atribuio de sentido a cada coisa que vemos, percebemos, descobrimos. Com essa formulao ampla, estamos dizendo que os sen-tidos so construdos na interao das pessoas umas com as outras, e com o mundo que existe volta delas. Esses sentidos construdos na interao resultam de nossa capacidade de con-ferir aos dados e fatos do mundo um lugar ou funo no terri-trio fsico, social, moral, cultural etc. em que nos situamos e no qual nos movimentamos. O objeto das refl exes que faremos ao longo deste ensaio compreende as formas cuja fi nalidade primordial, e talvez nica, a prtica da interao humana. Trata-se da linguagem verbal, cujos sinais so uma propriedade de todo corpo social, veculos que so de sentidos compartilhados coletivamente e organiza-dos em sistemas. claro que os sinais lingsticos, embora fundamentais, no respondem sozinhos pelo processo de signifi cao e comu-nicao. Nossos enunciados se prestam freqentemente a mais de uma interpretao, e o sentido que lhes atribumos sempre depende da colaborao de outras variveis integrantes do con-texto sociocomunicativo. Um exemplo banal oferecido pelo ato de dizer boa noite. Esta frase corresponde, denotativa-mente, a um cumprimento, mas seu sentido no se esgota nessa constatao, pois podemos dizer o mesmo boa noite quando chegamos a algum lugar, quando nos despedimos ou quando passamos por um conhecido.

  • Aspectos bsicos da construo do texto e do sentido 15

    Qualquer evento social seja um encontro casual de dois co-nhecidos que trocam cumprimentos banais, seja uma solenidade de formatura na qual se fazem muitos discursos se desenrola, portanto, mediante a troca de sinais organizados em sistemas compartilhados por pelo menos dois indivduos. Em uma di-menso mais ampla, qualquer evento necessariamente se baseia em algum modelo comportamental, ou esquema,3 que defi ne papis sociais, torna previsveis certos atos e legitima um certo modo de se expressar. A expectativa das pessoas envolvidas em um evento comu-nicativo qualquer que ele acontea de forma entrosada, de sorte que qualquer coisa no prevista em seu esquema ou mo-delo pode representar um rudo causador de algum embarao ou incompreenso.4 Em suma, o evento comunicativo se desenrola graas a uma espcie de contrato implcito assumido pelos diversos parcei-ros. Isto , no dizemos qualquer coisa, a qualquer pessoa, em qualquer ocasio e situao, de qualquer maneira.

  • Ensino de portugus18

    Lngua, discurso e texto

    A aptido humana para a comunicao atravs de smbolos , portanto, condio indispensvel vida na dimenso cultural. A manifestao mais ampla e verstil dessa aptido constitui o que chamamos de lngua. A atividade comunicativa por meio de uma lngua constitui o discurso. E os objetos por meio dos quais essa atividade se desenrola se chamam textos. por meio de textos, bsica e universalmente orais, mas em muitas socie-dades tambm escritos, que os contedos ou informaes circu-lam entre as pessoas. Materialmente falando, os textos so entidades construdas por meio de palavras. Mas, quando chamamos um objeto verbal qualquer de texto, no levamos em considerao apenas sua face material, representada nas palavras e construes. Mais que isso, os textos so objetos lingsticos investidos de funo social no amplo e complexo jogo das interaes humanas. No so meros instrumentos, mas partes essenciais dos acontecimentos que di-namizam as relaes sociais e fazem a histria das sociedades, a prpria face do relacionamento humano. Como veremos mais frente, h uma ntima integrao entre as funes sociocomu-

  • Aspectos bsicos da construo do texto e do sentido 19

    nicativas dos textos e a respectiva formatao (gnero, modo de organizao, registro, vocabulrio, gramtica). E mesmo a even-tual supresso do discurso o silncio no constitui sua nega-o, mas uma de suas expresses. Os contedos e informaes veiculados nos textos tm um certo valor interlocutivo no mercado das trocas verbais. Esse valor interlocutivo lhes conferido pelas coordenadas do contrato de comunicao (ver adiante) vigente em cada evento interativo. Uma receita mdica, por exemplo, detm em nossa sociedade um valor interlocutivo bem distinto do que comumente se atribui a um horscopo. O contrato de comunicao que rege cada um desses textos s confere o status de uma prescrio ao primeiro. Certos textos so caminhos de mo nica: o manual do Imposto de Renda, as instrues de uso de eletrodomsticos, as receitas mdicas, as convenes de condomnio. Estes so, em geral, textos utilitrios, de vis instrucional ou normativo, tpi-cos das prticas discursivas caracterizadas por uma assimetria dos papis discursivos e por conseqncia das prerrogativas de fala desempenhados pelos interlocutores. Outros textos, porm, tm sentido fl utuante, de acordo com as experincias, expectativas e interesses das pessoas que se comu-nicam. Nesses casos, podemos dizer que os sentidos no depen-dem apenas daquilo que a pessoa que fala ou escreve quer ou tem a dizer; eles tendem a ser elaborados numa espcie de negocia-o dialtica entre autor e leitor. Essa heterognea classe de textos compreende as obras a que o leitor responde basicamente com a refl exo. So os textos formadores, que veiculam valores de toda ordem estticos, morais, msticos, ideolgicos etc. e que inspi-ram aes por opo de seus leitores. A se incluem os textos de fi co, de opinio, humorsticos, fi losfi cos, os poemas. Podemos ainda conceber uma terceira classe: a dos textos construdos com a fi nalidade explcita de criar ou infl uenciar comportamentos. o caso do horscopo. E tambm os textos publicitrios e de propaganda, alguns textos religiosos, didticos,

  • Ensino de portugus20

    as correntes e as simpatias. Esta categoria abriga ainda textos como o do seguinte recado, que se v afi xado em tantas portas de garagem: Entrada e sada de veculos. A mensagem apenas um disfarce para amenizar o verdadeiro recado: No estacione!

    O contexto e o contrato de comunicao

    Construir e atribuir sentido a sntese do processo que chama-mos de interao humana e que codifi camos em sinais de toda espcie, como gestos, desenhos, cores, sons, palavras. Esse pro-cesso envolve mltiplos fatores de ordem afetiva, cultural, socio-cultural, psicossocial e ideolgica. Um dado, porm, por si s evidente e embasa qualquer tentativa de compreender e explicar o evento comunicativo: a comunicao entre as pessoas se processa sempre num contexto sociocomunicativo. Este no se resume no cenrio fsico e social objetivo, mas corresponde, principalmente, ao condicionamento mental ou psicolgico que nos predispe ao comportamento discursivo adequado e pertinente. claro que o cenrio fsico e social faz parte desse condicionamento, mas nem sempre seu componente mais decisivo. O componente crucial a imagem que os interlocutores fazem um do outro, o papel social que cada um atribui ao outro enquanto atores do evento comunicativo em curso. A atuao discursiva dos interlocutores no respectivo con-texto sociocomunicativo necessariamente sensvel, portanto, a um conjunto de convenes constitutivas do contrato de co-municao, segundo uma terminologia j corrente.7 Este cor-responde, em ltima anlise, a um acordo, no necessariamente consciente, entre os interlocutores sobre cinco pontos: 1) os respecti-vos papis sociointerativos, 2) as estratgias comunicativas a serem empregadas, 3) os contedos oportunos, 4) a variedade de lngua utilizada e 5) as formas de discurso (tipos, gneros e modos de or-ganizao) pertinentes.

  • 183

    10. Lugares da lngua na crnica de Carlos Drummond de Andrade1

    As crnicas de Carlos Drummond de Andrade que somam milhares constituem-se num corpus dos mais signifi cativos para o conhecimento da pluralidade de usos do portugus do Brasil. Diferentemente de um Mrio de Andrade, Drummond no teorizou sobre a linguagem literria nem se aplicou cria-o de um dialeto literrio; diversamente de um Guimares Rosa, tambm no subverteu a sintaxe nem se emaranhou no territrio da inventividade lexical, a no ser esporadicamente. De fato, num estilo que o aproxima mais de Bandeira, investiu fecundamente na experimentao dos gneros de composio, e, valendo-se da elasticidade conceitual do gnero que chamamos de crnica, adotou o auto-recomendado vis gauche2 para, com timbre no raro machadiano, captar e exprimir o desconcerto da existncia. Justamente num poema dedicado a Machado de Assis, com quem partilhava inquietaes relativas realidade e linguagem que a traduz, escreveu Drummond:

    Todos os cemitrios se parecem,

    e no pousas, em nenhum deles, mas onde a dvida

    apalpa o mrmore da verdade, a descobrir

    a fenda necessria;

    onde o diabo joga dama com o destino,

    ests sempre a, bruxo alusivo e zombeteiro,

    que revolves em mim tantos enigmas.3

  • Ensino de portugus192

    A crnica: um gnero singular

    Referi-me anteriormente natureza da crnica. Tendo surgido na transio da Idade Mdia para o Renascimento como regis-tro da histria e da vida dos reis, e tendo se tornado, a partir do sculo XIX, o gnero preferido dos autores literrios inte-grados atividade jornalstica que ento se expandia, a crni-ca se transformou no gnero elstico propcio aliana entre a temporalidade da notcia e a imprevisibilidade do fazer literrio. O cronista est sujeito ao burburinho da informao cotidiana, trazida pelo prprio jornal para o qual devolver matria que lhe serviu de suporte ou de pretexto, segundo o justo coment-rio de Antnio Dimas.13 Prefaciando a coletnea de Drummond intitulada Boca de luar, Fausto Cunha assim caracterizou a re-cepo da crnica na comunidade leitora:

    Gnero supostamente menor, a crnica lida por um pblico infi -

    nitamente maior que o do romance ou da poesia, um pblico que

    se renova sem cessar. Gnero dito efmero, atravessa galhardamen-

    te os anos, e at os sculos, assumindo funes que se sucedem,

    como as de distrair, informar, testemunhar, documentar, fi xar a

    evoluo do escritor e da lngua, o esprito da poca.14

  • Lugares da lngua na crnica de Carlos Drummond de Andrade 193

    E o prprio Drummond, respondendo certa vez acusao de frivolidade, resumiu o esprito da pgina que escrevia para o jornal O Globo:

    tenho certa prtica em frivoleiras matutinas, a serem consumi-

    das com o primeiro caf. Este caf costuma ser amargo, pois sobre

    ele desabam todas as afl ies do mundo, em 54 pginas ou mais.

    preciso que no meio dessa catadupa de desastres venha de roldo

    alguma coisa insignifi cante em si, mas que adquira signifi cado pelo

    contraste com a monstruosidade dos desastres. Pode ser um p de

    chinelo, uma ptala de fl or, duas conchinhas da praia, o salto de um

    gafanhoto, uma caricatura, o rebolado da corista, o assobio do rapaz

    da lavanderia.15

    O espao do jornal requer do cronista um compromisso com o tempo presente, sem contudo lhe impor o dever de dar notcias. O cronista um cidado de seu tempo num sentido mais elstico, que lhe d liberdade de converter fatos em matria de refl exo e comentrio, de se valer das experincias pessoais e de toda sorte de conhecimentos para discorrer sobre o que lhe parea oportu-no, e de se propor, perante seu leitor, a uma gama variada de atos comunicativos, de preferncia em tom de conversa. Referindo-se prtica do gnero a partir do modernismo na literatura brasileira, Davi Arrigucci Jr. viu nela um meio de mapear e descobrir um pas heterogneo e complexo, largamen-te desconhecido de seus prprios habitantes.16 Esmiuando esta avaliao, acrescenta:

    assim que uma conscincia mais abrangente do pas passa a reger

    o esprito da crnica modernista. Por isso, muitas vezes ela se volta

    para o passado colonial, retomando sua antiga forma histrica para

    recuperar retalhos da memria da nao. Por isso ainda, outras vezes

    lembra a voz do narrador oral, j fugidia no meio urbano, contando

    histrias de outros tempos, tentando resgatar uma experincia a ca-

    minho de se perder para sempre. E, ao mesmo tempo, ela o registro

  • Ensino de portugus194

    dos instantneos da vida moderna, das novidades avassaladoras, dos

    rpidos acontecimentos, dos encontros casuais, dos estmulos sem-

    pre chocantes do cotidiano das grandes cidades, frutos da acelerao

    do processo de urbanizao e industrializao da dcada de 30.17

    Que lugares a linguagem ocupa nas crnicas de Carlos Drummond de Andrade? A proposta que fao bastante simpli-fi cadora, mas pode ser um ponto de partida para uma refl exo mais detalhista. Entendo que Drummond lhe confere trs status principais: o de instrumento, o de etiqueta e o de objeto. claro que esta distino no se aplica privativamente a Drummond, mas nele tem uma pertinncia exemplar. A funo instrumental est no uso da palavra como meio de expresso da matria re-latada, seja ela uma histria, uma refl exo ou anlise, uma cena construda como dilogo. Digamos que este o caso da escrita em que Drummond assume a autoria do discurso e responde pela linguagem sintaxe, vocabulrio e estilo que adota. A ln-gua a utilizada rene os traos da variedade culta padro, ordi-nariamente exposta nas chamadas gramticas normativas, sendo, ela prpria, fonte de abonaes do padro culto. Enquadram-se amplamente nessa categoria as crnicas de Fala, amendoeira e Cadeira de balano. Testemunham-se nessa classe textos em tom elevado, de linguagem formal e cerimoniosa, e textos em tom co-loquial, variao que ditada pelo ponto de vista do enunciador e pela imagem que ele faz do assunto. Exemplar a crnica O viajante:

    Um dos mistrios do Natal caberem nele tantas festas: a religiosa,

    a familial, a infantil, a popular e mesmo a agnstica, dos que no

    apreendem o divino e entretanto o celebram. E todas essas come-

    moraes se fazem em dois planos: o Natal exterior e o interior se

    interpenetram, mas no se confundem. Assistimos festa nas ruas,

    nas casas, nas igrejas, participamos dela, mas promovemos em ns

    outra festa, ou tentamos promov-la, calados, at melanclicos.

    Ser o Natal solido em busca de companhia?18

  • Lugares da lngua na crnica de Carlos Drummond de Andrade 195

    Outro exemplo interessante pela mistura de nveis de lin-guagem Os olhos, crnica includa no livro Caminhos de Joo Brando. Trata-se do registro de uma paixo platnica, possi-velmente inspirada pelos olhos de alguma atriz de cinema. Este texto construdo inicialmente em tom elevado, numa costura de clichs medievais Em tempos que se esgaram na nebli-na dos tempos, conheci uma bela moa, a quem dediquei meus afetos. Servi-a como servem cavaleiros: sem ambio de paga espiritual, que da material jamais o impuro pensamento ousa-ria visitar-me19 e no compasso da idealizao de um mito. Passados os anos, e tendo mudado os sentimentos do cronista Olhava menos para suas imagens; ou olhava e no via o que vira antes. No era o tempo que passara no rosto, era eu mes-mo que no me via no meu passado20 , o esvaziamento da imagem mitifi cada registrado numa linguagem prosaicamente coloquial: A ela sentiu que a coisa tinha mudado, e em 1960 apareceu por aqui com ar de quem no queria nada. Segundo me confi denciou um seu ntimo, era para bulir comigo.21

    O que, por outro lado, chamo de funo de etiqueta a propriedade que tem o discurso de permitir que o autor-narra-dor se aproprie de outras vozes como autnticas mscaras dis-cursivas. Desse modo ele entra na pele e, portanto, assume o discurso de tipos regionais, sociais, ou mesmo institucionais. Nesses casos, a responsabilidade dos traos de linguagem des-se narrador, personagem ou enunciador-tipo. exemplar dessa transferncia, para um segundo narrador, a crnica Jacar de papo azul, relato de um pescador:

    Como estava lhe dizendo. De tanto viver assuntando o rio para ver

    se tem jacar, a gente acaba tendo parte com a gua, conhece o que

    ela esconde, sabe o que ela quer dizer. Rio no engana, mesmo se

    toma cautela de esconder no barro o que de esconder. Mas pros

    outros que esconde, no pra quem nasceu junto dele e carece

    viver dele.22

  • Ensino de portugus196

    O caso de transferncia para um enunciador-tipo de perfi l institucional exemplifi cado pela crnica O que voc deve fa-zer, que parodia o discurso publicitrio:

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    Por fi m, o papel de objeto assumido pela linguagem nas crnicas cujo assunto a prpria palavra. Esta categoria rene um expressivo nmero de textos, via de regra intermezzos meta-lingsticos construdos como enumerao ou listagem de casos, de exemplos, de situaes. Neles Drummond exercita com certa volpia o gosto pelo repasse ldico do que lhe parecem excen-tricidades ou gratuidades da linguagem, verdadeiros desafi os crena em que a palavra um instrumento de comunicao e de compreenso entre as pessoas. Esses exerccios no so comuns at Cadeira de balano e Fala, amendoeira. Neste, encontram-se duas crnicas Facultativo, j aqui mencionada, e Anncio de Joo Alves que prenunciam os trabalhos que comporo mais tarde o grupo a que nos referimos a seguir. A primeira aborda o descompasso entre o signifi cado dicionarizado de certas pa-lavras e o valor consagrado no uso; a segunda, a muitos ttulos primorosa (ver apndice, p.197), testemunho do prprio autor sobre as qualidades do estilo. , no entanto, s a partir de Caminhos de Joo Brando que as crnicas dessa categoria vo proliferar (Para um dicionrio, O outro nome do verde, A eterna impreciso de linguagem, An-tigamente, Exerccios de/sem (?) estilo). Aparecem em O poder ultrajovem e em De notcias & no notcias faz-se a crnica. Em Os

  • Lugares da lngua na crnica de Carlos Drummond de Andrade 197

    dias lindos, nada menos que catorze crnicas se acham agrupadas em uma subseo que se intitula O homem e a linguagem: por exemplo O homem no condicional, As palavras que ningum diz e Conversa na fi la. Em Boca de luar, outras cinco. E em Moa deitada na grama: A boca, no papel, Os animais e a linguagem dos homens e Os etcteras da vida, entre outras. A atividade de Carlos Drummond de Andrade como cronis-ta dialoga todo o tempo com seu ofcio de poeta maior no espao literrio brasileiro do sculo XX. Como nenhum outro, captou o desconcerto da existncia nos fl agrantes do cotidiano, e o expri-miu com a graa que apaga as fronteiras entre o ldico e o lrico. Fez do embate com a palavra, mais que um ofcio, um modo de ser e de estar no mundo. Poeta ou cronista, testemunhou e regis-trou seu tempo convertido em palavra, e como palavra o ofereceu posteridade.

  • 201

    Apresentao (p.7-9)

    1. Tratam desse tema os seguintes trabalhos, entre outros: Fernanda Irene Fonseca,

    Gramtica e pragmtica; Carlos Franchi et alii, Mas o que mesmo gramtica?; J.

    Wanderley Geraldi, Linguagem e ensino; Rosa V. Mattos e Silva, O portugus so

    dois; Maria Helena de Moura Neves, Que gramtica estudar na escola?; Mrio A.

    Perini, Sofrendo a gramtica; Antonino Pagliaro, A vida do sinal; Srio Possenti, Por

    que (no) ensinar gramtica na escola.

    2. Em um pioneiro Livro de composio (1930), Olavo Bilac e Paulo Bonfi m

    escreveram: O aluno pode perfeitamente estar senhor de todas as regras da gram-

    tica, e no saber dizer o que pensa e o que sente. A gramtica seca, abstrata e rida,

    com que se cansa o crebro das crianas, no ensina a escrever.

    3. Essa estratgia de trabalho defendida nos trabalhos de Carlos Franchi et alii,

    Mas o que mesmo gramtica? e de Fernanda Irene Fonseca, Gramtica e pragmtica.

    1. Aspectos bsicos da construo do texto e do sentido (p.13-29)

    1. Texto indito, escrito originalmente para circulao exclusiva no meio acadmico.

    2. claro que h signifi cao no cacarejo das galinhas em pnico ou no rosnar de

    um co que defende seu alimento ou a propriedade de seu dono. Mas vamos ignorar

    essas manifestaes comunicativas, que no foram criadas para as funes simbli-

    cas e s tm por estmulo a circunstncia imediata.

    3. O esquema a representao mental da rotina de um evento qualquer, seja um

    jantar num restaurante, a compra de um par de sapatos, a postagem de uma carta

    no correio

    4. Em vrios casos, seja no domnio da fi losofi a, das cincias ou das artes, seja na

    esfera da administrao pblica ou privada, projetos, textos e obras podem vir a

    Notas

  • Ensino de portugus206

    10. Lugares da lngua na crnica de Carlos Drummond de Andra-de (p.183-99)

    1. Publicado em Francisco Salinas Portugal e Maria do Amparo Tavares Maleval

    (orgs.), Estudos galego-brasileiros (La Corua: Universidade da Corua, Servizo de

    Publicacins, 2006, vol.2, p.225-39).

    2. Quando eu nasci, um anjo torto/ desses que vivem na sombra/ disse: Vai Carlos!

    ser gauche na vida. (Carlos Drummond de Andrade, Poema de sete faces, in Poesia

    e prosa, p.70.)

    3. Carlos Drummond de Andrade, Reunio: 10 livros de poesia, p.237-9.

    4. Edward Lopes, A palavra e os dias, p.31.

    5. Este o trao caracterstico da modernidade nas artes, segundo Octavio Paz:

    O olhar maravilhado do artista se desdobra no olhar inquisitivo e introspectivo.

    Essa atitude crtica se bifurca em duas direes: crtica da sociedade e crtica da

    linguagem. (Convergncias, p.136.)

    6. Carlos Drummond de Andrade, Poesia e prosa, p.147-8.

    7. Ibid., p.338.

    8. Apud Snia Brayner, Carlos Drummond de Andrade: Seleo de textos, p.256.

    9. Carlos Drummond de Andrade, Poesia e prosa, p.1088-9.

    10. Ibid., p.95.

    11. Ibid., p. 321.

    12. Ibid., p.313.

    13. In Olavo Bilac, Vossa Insolncia, p.17.

    14. Carlos Drummond de Andrade, Boca de luar, p.3.

    15. Ibid., p.200.

    16. Davi Arrigucci Jr., Enigma e comentrio, p.63.

    17. Idem.

    18. Carlos Drummond de Andrade, Poesia e prosa, p.192.

    19. Carlos Drummond de Andrade, Caminhos de Joo Brando, p.76-7.

    20. Idem.

    21. Idem.

    22. Carlos Drummond de Andrade, Os dias lindos, p.49.

    23. Carlos Drummond de Andrade, Caminhos de Joo Brando, p.1181-2.

    24. Ibid., p.1115-6.