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UNIVERSIDADE REGIONAL INTEGRADA DO ALTO URUGUAI E DAS MISSÕES – CAMPUS DE ERECHIM
ÊMILE JANE PICCOLI
ENTRE A CEGUEIRA E A LUCIDEZ: ENSAIOS SOBRE O
HOMEM DUPLICADO.
ERECHIM 2011
ÊMILE JANE PICCOLI
ENTRE A CEGUEIRA E A LUCIDEZ: ENSAIOS SOBRE O
HOMEM DUPLICADO.
Trabalho de Conclusão de Curso, apresentado ao Curso de Letras, Departamento de Linguística, Letras e Artes da Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões – Campus de Erechim. Orientadora: Profª. Dra. Lionira M. G. Komosinski
ERECHIM 2011
À Lindamara, minha mãe, por ter a coragem de ser quem é, a ousadia de sê-
lo propositalmente, e por incentivar-me, sempre, a fazer o mesmo.
Aos meus pequenos irmãos, Leonardo e Ana Laura, amores eternos na
efemeridade da existência...
Ao meu querido nono Luizinho, para sempre criança, que sorria com os olhos
e pensava com o coração...
Agradeço à turma de Letras/2008 da URI–
Campus de Erechim, da qual tenho
orgulho de fazer parte, por ser sinônimo
de amizade e solo fértil para construção
de conhecimentos.
“Por trás da luta entre opostos, segundo
certas normas, existe uma oculta
harmonia ou afinação, que é o mundo.”
(HERÁCLITO DE ÉFESO, século VI a.C.)
“Com seus princípios, quer-se tiranizar ou
justificar ou honrar ou insultar ou ocultar
seus hábitos: - é provável que dois
homens com princípios idênticos queiram
com eles algo fundamentalmente
diferente.”
(NIETZSCHE, 1884-1900)
“Será possível imaginar algo mais ridículo
do que essa miserável criatura, que nem
sequer é dona de si mesma, que está
exposta a todos os desastres e se
proclama senhora do universo?”
(MONTAIGNE, 1533-1592)
“Se o homem é formado pelas
circunstâncias, é preciso formar as
circunstâncias humanamente”.
(MARX, 1818-1883)
“[...] porque do chão só devemos querer o
alimento e aceitar a sepultura, nunca a
resignação."
(SARAMAGO, 1981)
RESUMO
A literatura como expressão do pensamento consciente, como lugar comum das questões sociais. É a essa atitude que José Saramago dedicou sua carreira a partir dos anos noventa: uma literatura engajada, profícua, na qual os romances Ensaio sobre a cegueira, Ensaio sobre a lucidez e O homem duplicado se encontram inseridos, sob uma perspectiva pós-moderna que, na concepção de Linda Hutcheon, é cúmplice e delatora do meio em que habita. E por estar envolvida no que pretende contestar, essa tarefa torna-se, por vezes, perigosa, posto que a iluminação mental através da consciência nem sempre seja bem quista nos sistemas sociais. Escrever como forma de expor pensamentos, compartilhar opiniões, ensaiar a existência: nisso consiste o valor da pós-modernidade, nisso se dá o conflito entre a cegueira e a lucidez.
Palavras – chave: Ensaio. Alegoria. Saramago. Hutcheon. Retrato.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO .................................................................................... 8
1. SARAMAGO: CIDADÃO DO MUNDO ............................................ 10
1.1 ERA UMA VEZ...SARAMAGO: .........................................................................10
1.2 PECULIARIDADES DA ESCRITA SARAMAGUIANA: DA ORALIDADE AO
COMPROMISSO SOCIAL.......................................................................................11
1.3 SOBRE A CEGUEIRA, A LUCIDEZ E O HOMEM DUPLICADO: RESUMOS ..13
1.3.1 Ensaio sobre a cegueira ..............................................................................13
1.3.2 Ensaio sobre a lucidez .................................................................................13
1.3.3 O homem duplicado .....................................................................................14
2. PÓS-MODERNIDADE .................................................................... 15
2.1 UMA EXPLICAÇÃO NECESSÁRIA .................................................................15
2.1.1 Pós-modernismo: desconstruindo pré-conceitos, buscando
esclarecimentos ....................................................................................................15
2.1.2 A escrita pós-moderna: indagações e inquietudes no limiar da
consciência ............................................................................................................18
2.2 ENSAIO: UMA FALA ESTRITAMENTE PESSOAL ...........................................20
2.2.1 O literal edificado em entrelinhas: alegoria, além dos limites da arte .....21
3. UM OLHAR ATENTO ...................................................................... 23
3.1 A VISÃO SARAMAGUIANA DO HOMEM PÓS-MODERNO: UM RETRATO
SOB PESRPECTIVAS PRÓPRIAS .........................................................................23
3.2 ENTRE A CEGUEIRA E A LUCIDEZ: ENSAIOS SOBRE O HOMEM
DUPLICADO ...........................................................................................................31
CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................ 34
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................... 36
8
INTRODUÇÃO
O estudo do comportamento do homem pós-moderno visa à
compreensão de sua mentalidade e a consequência de suas atitudes na formação
do meio social, principalmente no que concerne à construção de uma identidade que
se sobreponha à generalização.
Nesta pesquisa, pretende-se traçar um perfil literário deste homem pós-
moderno enquanto sujeito de ações e reações, a partir da visão de Saramago
retratada nos romances Ensaio sobre a cegueira, Ensaio sobre a lucidez e O homem
duplicado.
Para isso, conhecer o escritor e seu modo narrativo, esclarecer a ideia de
pós-moderno, com base na escritora Linda Hutcheon e no que o próprio autor dos
livros nos diz, definir um conceito de romance pós-moderno e sua função, falar sobre
o que são o ensaio e a alegoria e conceber a visão saramaguiana sobre a sociedade
pós-moderna faz-se imprescindível para que ocorra a construção de um trabalho
consistente e que se caracterize por ser de caráter bibliográfico.
Nasceu do desejo de uma estudante de entender um pouco sobre o
pensamento daquele que é, indiscutivelmente, um dos melhores escritores de nossa
Língua Portuguesa e, ainda assim, tão mal compreendido na maioria de suas
concepções. Embora não compartilhe cegamente de suas ideologias, posso afirmar
que, desde que tive contato com sua obra pela primeira vez, há dois anos, o modo
como entendo a literatura e sua função na sociedade, se é que de verdade a tem,
transformou-se.
E, sinceramente, espero que este trabalho, tendo sido como um divisor de
águas de meu pensamento, seja também, de certa forma, não só útil, mas
verdadeiramente esclarecedor na busca por entendimentos, por mínimos que sejam
destas três obras que considero tão importantes na formação de um caráter
9
questionador, não no concernente a seu intuito pedagogizante, posto que ele não
exista, mas em seu caráter didático, como forma de despertar de consciências.
Sem nenhuma pretensão de ser autoridade no assunto, apresento um
pouco daquilo que entendo como relevante nesta minha busca por esclarecimentos,
conhecimentos e novos significados, apaixonada pela literatura que sou...
10
1 SARAMAGO: CIDADÃO DO MUNDO.
1.1 ERA UMA VEZ... SARAMAGO.
“Aonde vai o escritor, vai o cidadão”, costumava dizer o português nascido
José de Sousa (1922 – 2010) e que, por intervenção de um destino caprichoso sob a
forma de um escrivão mal intencionado, também veio a chamar-se Saramago,
apelido de sua família na pequena Azinhaga, região do Alentejo, Golegã, onde
moravam, e que, por ironia, é o mesmo nome de uma erva ruim, que se alastra
facilmente e em abundância.
Assim ficou mundialmente conhecido, por ocasião da atribuição do prêmio
Nobel, em 1998: um escritor autodidata, um homem forjado pelas circunstâncias,
neto de camponeses e sem grandes ambições (era serralheiro mecânico).
Fez-se cidadão do mundo por meio de sua arte literária, cuja temática deu-se,
constantemente, nas entrelinhas históricas, tendo produção literária intensa ainda
que tardia (inicia a carreira propriamente dita aos cinquenta e três anos), mas,
indiscutivelmente, notória.
Saramago era um homem ético em sua simplicidade, de atitudes francas e
pensamento complexo, que buscava, por meio da escrita, seu trabalho, criar uma
consciência coletiva do ser e sua função social que para ele era, antes de tudo,
humanitária.
Ao longo de sua vida teve a mais variada gama de ocupações: foi do
tecnicismo para a glória artística e, como pessoa transparente que era, reconhecia
que esta sua formação profissional foi o que, de fato, moldou sua vocação, quando
dizia: “a inspiração é só o esqueleto de uma ideia; o trabalho e a disciplina são o que
formam o corpo desse esqueleto” (AGUILERA, 2010, p.204), complementando com
ironia, sua marca registrada, que “o escritor é um pobre-diabo que trabalha” (Id. Ibid,
p.210).
11
Um ativista literário, ser comprometido com as causas da humanidade,
prezando o direito à liberdade de pensamento; José de Sousa Saramago, o neto de
Jerónimo Melrinho, criador de porcos e, a seu ver “a pessoa mais sábia que
conhecia”, tornou-se um dos maiores expoentes da literatura portuguesa
contemporânea e uma personalidade de grande influência no cenário mundial.
Palavras suas: “Embora eu não faça da literatura panfletos, nunca fiz,
qualquer leitor atento perceberá, numa leitura de um romance meu, o que é que eu
penso sobre o mundo, sobre a vida, sobre a sociedade.” (AGUILERA, 2010, p.208).
E é sobre o homem Saramago, sujeito de ações e reações sociais e sua
forma de escrever, ao mesmo tempo encantadora e pungente, que esta monografia
se pôs, modestamente, a tratar.
1.2 PECULIARIDADES DA ESCRITA SARAMAGUIANA: DA ORALIDADE AO
COMPROMISSO SOCIAL.
“Ninguém é escritor por haver decidido dizer certas coisas, mas por haver
decidido dizê-las de determinado modo. E o estilo, decerto, é o que determina o
valor da prosa.” (SARTRE, 1999, p.22).
José Saramago, a partir de Levantado do Chão (1980), criou um estilo
notoriamente dotado de particularidades, concebendo a escrita como sendo algo
inerente da oralidade e, por isso mesmo, usando um tom de conversa que visava à
aproximação, no intuito de tornar a relação autor/obra/leitor uma relação de intensa
interação, de reciprocidade.
Prova disso é a ausência de preocupação com a pontuação, tal qual a
conhecemos e praticamos culturalmente, usando vírgulas e pontos como bem lhe
aprouvessem, conforme o sentido que queria dar ao que escrevia, mostrando que
seu “comportamento de escritor não se subordinou nunca a preceitos, a regras de
escola” (AGUILERA, 2010, p.198), fazendo com que o leitor esteja sempre atento.
“O leitor de meus livros deverá ler como se estivesse a ouvir dentro da sua cabeça
uma voz dizendo o que está escrito.” (Id. Ibid, p.327).
12
Essa oralidade estilística acrescenta fluidez ao texto, pois segundo Saramago
dizia: “A fala compõe-se de sons e pausas – nada mais” (AGUILERA, 2010, p.238),
fazendo conexões com a música, ao proferir
O que tento é conduzir meu relato como se fosse uma orquestra. [...] não é uma soma de palavras, é uma integração, como o som que uma orquestra produz, no qual podes identificar de onde vem cada um, a sensação de diversidade, ao mesmo tempo em que aquilo é uma unidade. (AGUILERA, 2010, p. 237-238).
José, certa feita, disse que “o escritor é um homem de seu tempo ou não”,
que apenas transforma seu trabalho “em ação política ou omissão” (AGUILERA,
2010, p.192), querendo com isto dizer que a literatura, a seu modo, não passa de
um trabalho como outro qualquer, sujeito à disciplina, pois para ele escrever não era
só inspiração, mas verdadeira labuta, propensa à rotina, embora, indiscutivelmente,
reconhecesse que quem escreve não está isento de apresentar em seu discurso as
ideologias que regem sua própria existência, pois pessoa e escritor são, a seu ver,
indissociáveis.
Saramago acreditava que a literatura não tinha função social obrigatória ainda
que, por vezes, excedesse a arte. Segundo sua concepção, a mesma, sozinha, não
seria fator de transformação da sociedade, antes seu reflexo, agindo como
denúncia, nunca doutrina, pois supunha que “nada do que entra em um livro vem de
outro lugar que não seja este mundo” (AGUILERA, 2010, p.182), e que o papel de
sujeito atuante, compromissado, cabe unicamente à pessoa que é o escritor,
inserida nesta mesma sociedade, a qual influenciará sua vida real.
Então a literatura seria um eterno faz de conta, algo estranho ao seu autor?
Obviamente, não. O que de verdade ela nos traz, segundo o que Saramago
acreditava, é a oportunidade de pensar e repensar uma realidade que é múltipla e,
nem sempre, justa. Em uma de suas entrevistas (AGUILERA, 2010, p.186), José,
citando Kafka, a quem muito admirava, dá-lhe razão quando este dizia que não era
válido escrever algo, se esta escrita não tivesse a mesma “função de um machado,
rompendo o mar gelado da consciência, cheio de superstições e preconceitos,” os
quais atravancam o progresso social.
13
Se “as palavras trazem a sabedoria do vivido” (AGUILERA, 2010, p.189), ser
escritor não é meramente contar histórias, “é mais uma atitude perante a vida, uma
intervenção” (Id, Ibid, p. 191), pois “o livro é como um espelho, o que mais se
aproxima do que somos - e provavelmente é a expressão mais fiel àquilo que somos
em cada momento (...)” (Id. Ibid, p.199).
Assim sendo, tomaremos conhecimento sobre os livros dos quais trata este
trabalho monográfico, comprovando a „teoria do espelho‟ saramaguiana, mostrando
que Ensaio sobre a cegueira, Ensaio sobre a lucidez e O homem duplicado somos
todos nós, em algum momento da nossa história, aqui especificamente, referente
àquilo que se denomina o pós-modernismo.
1.3 SOBRE A CEGUEIRA, A LUCIDEZ E O HOMEM DUPLICADO: RESUMOS.
1.3.1 Ensaio sobre a cegueira.
Um dia normal na cidade. Os carros parados numa esquina esperam o sinal mudar. A luz verde acende-se, mas um dos carros não se move. Em meio às buzinas enfurecidas e à gente que bate nos vidros, percebe-se o movimento da boca do motorista, formando duas palavras: Estou cego. Assim começa o romance de José Saramago. A „treva branca‟ que acomete esse primeiro cego vai se espalhar incontrolavelmente pela cidade e, em breve, uma multidão de cegos precisará aprender a viver de novo, em quarentena. E, de fato, o que se verá é a redução da humanidade às necessidades e afetos mais básicos, um progressivo obscurecimento e correspondente iluminação das qualidades e dos terrores do homem. „Parece uma parábola‟, comenta alguém no romance; mas sua força, como nas melhores parábolas, vem precisamente do realismo e da descrição, no limite do inominável. (Arthur Nestrovski, orelha do livro Ensaio sobre a cegueira, Companhia das Letras, 2004).
1.3.2 Ensaio sobre a lucidez.
Num país qualquer, num dia chuvoso, poucos eleitores compareceram para votar, durante a manhã. As autoridades eleitorais, preocupadas, chegaram a supor que haveria uma abstenção gigantesca. À tarde, quase no encerramento da votação, centenas de milhares de eleitores compareceram aos locais de votação. Formaram-se filas quilométricas, e tudo pareceu normal. Mas, para desespero das autoridades eleitorais, houve quase
14
setenta por cento de votos em branco. Uma catástrofe. Evidentemente que as instituições, partidos políticos e autoridades, haviam perdido a credibilidade da população. O voto em branco fora uma manifestação inocente, um desabafo, a indignação pelo descalabro praticado por políticos pertencentes aos partidos da direita, da esquerda e do meio. Políticos de partidos diferentes, mas de atuações iguais, usufruindo de privilégios que afrontavam a população. Os eleitores estavam cansados, revoltados. Os governantes, sentindo-se ameaçados, trataram de agir em nome da ordem, perseguindo, prendendo, maltratando, eliminando. Alguns que viveram os horrores da cegueira branca, novamente sofreram. Os governantes, preocupados em salvar a própria pele, em garantir o poder, não perceberam que a cegueira branca de outrora, demonstrativo de que há muito o homem estava cego, tinha paralelo com o voto branco de agora, indicativo de que a população não perdera a lucidez. Estranhamente, não houve uma mobilização para o facto. A partir daqui desenvolve-se a trama do livro: o governo e as autoridades deixam a cidade entregue a si própria, abandonando-a e isolando-a. Acabarão por entrar em cena os mesmos personagens da obra Ensaio sobre a cegueira, pelo que se aconselha o leitor a fazer uma leitura desta obra antes de proceder à leitura de Ensaio sobre a Lucidez. Neste livro, Saramago desenvolve uma crítica mordaz às instituições do poder político: sob a democracia podem estar vetores de natureza autoritária - lúcido é quem os enxerga. (Wikipédia, a enciclopédia livre)
1.3.3 O homem duplicado.
O professor de história Tertuliano Máximo Afonso descobre, certo dia, que é um homem duplicado. Ao assistir a um vídeo, ele se reconhece em outro corpo, idêntico ao dele próprio: um dos atores do filme é seu sósia. Os desdobramentos dessa história são imprevisíveis. Mas o romance de José Saramago, esclareça-se logo, não tem nada a ver com clonagem ou outras experiências de laboratório. O que está em jogo é a perda da identidade numa sociedade que cultiva o individualismo e, paradoxalmente, estabelece padrões estreitos de conduta e de aparência. Em O homem duplicado, Saramago constrói uma ficção extraordinária, apoiada numa questão extremamente atual e inquietante: a perda do eu no mundo globalizado. (O homem duplicado, contracapa, Companhia das Letras/Companhia de Bolso, 2008)
15
2. PÓS-MODERNIDADE
2.1 UMA EXPLICAÇÃO NECESSÁRIA:
2.1.1 Pós-modernismo: desconstruindo pré-conceitos, buscando
esclarecimentos.
Em uma época de grande progresso tecnológico, final do século XIX e início
do XX, quando a ciência pensava ter encontrado todas as respostas possíveis e
muitas pessoas desfrutavam confortavelmente das maravilhas do mundo moderno,
um acontecimento bombástico abala a comodidade geral: Hiroshima explode e, com
ela, toda uma geração. A Segunda Grande Guerra, seguindo uma trilha que vinha
sendo traçada desde a Primeira (1914-1918), destruiu os sonhos do mundo,
dilacerou almas, minou promessas de futuro; 1945 ficou marcado pelo estigma do
horror: a morte da esperança. Walter Benjamin (apud Bauman, 1997, p. 21) disse
da modernidade, que ela nasceu sob o signo do suicídio; Freud (Id. Ibid), que ela foi
dirigida por Tânatos – o instinto da morte.
O niilismo recai sobre a humanidade e tudo que dela advém retrata este
estado de torpor em que se afunda o ser humano. O estilo de vida moderno,
comprovadamente nocivo, passa a ser questionado: os valores antes tidos como
certos, culturalmente aceitos, não mais suprem as necessidades do mundo. Para
Granni Vattini (apud LIMA, 2004), a humanidade encerra a Era da Modernidade
quando percebe que não mais poderia depositar esperanças na Razão, vendo que o
setor do progresso é perpassado pelo jogo de interesses do mercado financeiro. E
aqui ocorre o „choque‟ do positivismo: a razão não é mais absoluta.
O indivíduo pós-moderno caracteriza-se por ser dinâmico em relação ao seu
status quo, porém, quando se trata de si mesmo como ser humano, a apatia se faz
presente na forma de insensibilidade, pois, além de carregar em seu DNA cultural o
16
individualismo modernista, acrescenta a ele o narcisismo característico da pós-
modernidade.
Em vista disso, formou-se uma nova sociedade, que se viu reduzida ao papel
de mera consumidora. O apelo estético, visual, fomenta a necessidade de ter que se
alastra sobre as pessoas, fazendo com que o mundo real se desmaterialize no afã
da estetização, da compra de imagens. Cria-se um mundo virtual, onde as fronteiras
não mais existem, onde os comportamentos individuais se pautam na coletividade,
baseados no senso comum que, para Hutcheon (1991, p.26), não passa de “pura
ideologia de um grupo dominante”, disseminada pelo mass media. Para Baudrillard
(apud HUTCHEON, 1991, p.280), o mass media criou o simulacro, a destruição total
do significado, um mundo que se desfaz da realidade até que não mais se perceba
parte integrante dela.
Linda Hutcheon discorda de Baudrillard, pois para ela, é justamente aí que se
dá o valor da arte pós-moderna, “ao contestar este processo de simulacrização”
(1991, p.280), não apenas em atitudes de negação ou lástima, mas como forma de
problematização, ou seja, tomando conhecimento sobre “a distinção entre os
acontecimentos do passado que realmente ocorreu e os fatos por cujo intermédio
proporcionamos sentido a esse passado” (Id. Ibid, p.281).
A essa atitude de indagar sobre as ações humanas e suas consequências
históricas, sociais e culturais é que se pode parcialmente denominar o pós-
modernismo. Uma reação à disseminação de condutas impostas, um repúdio ao
falso discurso globalizado, esse mundo pós-guerra, formado a partir dos anos 60,
não mais aceita seus grilhões dourados.
Nas palavras de Umberto Eco
A resposta pós-moderna ao moderno consiste em reconhecer que o passado, como não pode ser realmente destruído, porque sua destruição conduz ao silêncio [a descoberta do modernismo], precisa ser reavaliado: mas com ironia, e não com inocência. (ECO, 1983, p. 67 apud HUTCHEON, 1988, p. 124).
17
Segundo Linda Hutcheon (1991), “o pós-modernismo é um fenômeno
contraditório, que usa e abusa, instala e depois subverte os próprios conceitos que
desafia (...)”, sendo “deliberadamente histórico e inevitavelmente político”. Assim, o
que de novo nos traz a vertente pós-moderna, ironicamente, é a presença do
passado, mas não de forma nostálgica ou pesarosa e sim, como uma releitura crítica
desse mesmo passado que é indissociável do presente em que vivemos, posto que
o antecede e direciona.
Lima (2004, p. 2) afirma que
A idéia de "pós-modernismo" surgiu pela primeira vez no mundo hispânico, na década de 1930, uma geração antes de seu aparecimento na Inglaterra ou nos EUA. Perry Anderson, conhecido pelos seus estudos dos fenômenos culturais e políticos contemporâneos, em "As Origens da Pós-Modernidade" (1999), conta que foi um amigo de Unamuno e Ortega, Frederico de Onís, que imprimiu o termo pela primeira vez, embora descrevendo um refluxo conservador dentro do próprio modernismo. Mas coube ao filósofo francês Jean-François Lyotard, com a publicação "A Condição Pós-Moderna" (1979), a expansão do uso do conceito. Em sua origem, pós-modernismo significava a perda da historicidade e o fim da "grande narrativa" - o que no campo estético significou o fim de uma tradição de mudança e ruptura, o apagamento da fronteira entre alta cultura e da cultura de massa e a prática da apropriação e da citação de obras do passado.
A partir disso, o termo pós-moderno é aplicado, inicialmente, na arquitetura,
quando do acontecimento da Bienal de Veneza, em 1980, sendo que, dali em diante,
espalha-se pelas demais manifestações artísticas, como a pintura e a narrativa
ficcional histórica, sempre como sinônimo de reflexão crítica, ou seja, pensando o
passado como parte integrante do agora, como seu fator condicional.
Hutcheon (1987, p.13), considera que no pós-modernismo “seus debates
demonstram [...] uma força problematizadora em nossa cultura atual: ele levanta
questões sobre o senso comum e o „natural‟, mas nunca oferece respostas que
ultrapassem o provisório e o que é contextualmente determinado (e limitado)”.
18
E é neste caráter provisório que muitos estudiosos se baseiam, ao questionar
o valor da arte pós-moderna. Linda Hutcheon, em sua Poética do Pós-modernismo,
cita Andreas Huyssen, quando este afirma que o mesmo deve ser “resguardado
contra seus defensores e detratores” (apud Hutcheon, 1991, p.11), pois para ela, é
um fenômeno que deve ser avaliado em sua duplicidade: a de cúmplice e delator de
um sistema no qual está plenamente inserido, posto que “tudo que ele pode fazer é
questionar a partir de dentro” (Id. Ibid, p.15), já que o prefixo pós, em si só,
pressupõe “incorporar aquilo que pretende contestar” (Id. Ibid, p.19).
“Eu sei bem do que eu estou fugindo, mas não o que eu estou buscando.”
Esta frase é atribuída a Montaigne, famoso ensaísta do século XVI, e representa
muito bem a indagação pós-moderna, principalmente no que concerne a uma
definição do que seja esta vertente histórica ou filosófica, e de qual seja sua função
na sociedade.
2.1.2 A escrita pós-moderna: indagações e inquietudes no limiar da
consciência.
Aguilera considera que Saramago concebia o romance como sendo
Um lugar literário que, ultrapassando os limites do gênero, mostra-se capaz de incorporar, de forma convulsa, a poesia, o drama, a filosofia, a ciência, a ética... Uma espécie de grande recipiente que aspira – com certa dose de idealismo – à expressão total. (AGUILERA, 2010, p.245).
Sendo assim, é válido afirmar que o escritor-cidadão fazia de sua arte literária
o lugar comum das vicissitudes mundanas, procurando tornar conhecidas suas
opiniões acerca do que lhe conviesse. Mais ainda, se necessário o fosse, pois
acreditava que o papel do escritor, em tudo quanto lhe compete, era trazer à luz não
só as suas ideias, como também a sua indignação perante os fatos que se
apresentam. Uma atitude bastante pós-moderna, pois do meio para o meio se dão
suas reflexões.
19
Saramago acreditava que o narrador separado do autor é um mito, pois “só o
Autor exerce função narrativa real na obra de ficção” (LOPES, 2010, p.216),
demonstrando que os discursos encontrados em suas obras não são outra coisa
senão um retrato dele mesmo, de suas ideias e concepções. “Em substância, eu sou
a matéria do que escrevo” (AGUILERA, 2010, p.206).
Costumava dizer: “No romance pode confluir tudo, a filosofia, a arte, o direito,
tudo, inclusive a ciência. O romance como uma suma, o romance como um lugar de
pensamento.” (AGUILERA, 2010, p. 249). Acreditando que este “tudo, é uma
tentativa de compreender o mundo. Que consiga ou não, é outra coisa.” (Id. Ibid, p.
249)”.
Linda Hutcheon (1991) considera que, numa perspectiva pós-moderna, a
relação com a literatura vai muito além de mera decodificação/recepção de
conteúdos: o autor, o leitor e o contexto da obra são sempre levados em conta. Por
isso, o romance pós-moderno caracteriza-se por ser uma metaficção, pois
transcende a si mesmo no processo de leitura e nas repercussões que gera.
Umberto Eco (apud HUTCHEON, 1991, p.118), sugere que “o pós-
modernismo nasce no momento em que descobrimos que o mundo não tem nenhum
centro fixo”, significando que começamos os questionamentos quando não temos
mais em que nos apegar no processo de autoilusão.
Saramago declarou
Nós ainda somos descendentes do Iluminismo, da Enciclopédia, dos valores da Revolução Francesa, que durante dois séculos foram referências. Acabamos de atravessar uma ponte e na margem já não há lugares duradouros. Isto não é fatalismo e nada se processa em linha reta: ao mesmo tempo em que isto acontece sente-se uma necessidade de voltar atrás, uma insatisfação, sobretudo dos jovens, perante um Mundo que já não oferece nada, só vende! (LOPES, 2010, p.148).
Assim, segundo me parece, o romance dito pós-moderno cumpre com a
acepção do termo, principalmente no que concerne à questão da constante
20
indagação geradora da tomada de consciência, principalmente no que tange aos
valores morais que regem uma sociedade e são a mola propulsora da vida que
pulsa. Estar ciente já é o primeiro passo rumo a atitudes de mudança.
Ainda, algo que me parece calhar bem na descrição de um escritor engajado,
envolvido, questionador, enfim, pós-moderno, de acordo com o também escritor
francês Jean–Paul Sartre, quando se referia à imagem que a sociedade faz de
alguém com sua profissão:
O escritor lhe apresenta a sua imagem e a intima assumi-la ou então a transformar-se. E de qualquer modo ela muda; perde o equilíbrio que a ignorância lhe proporcionava, oscila entre a vergonha e o cinismo, pratica a má-fé; assim, o escritor dá à sociedade uma consciência infeliz, e por isso se coloca em perpétuo antagonismo com as forças conservadoras, mantedoras do equilíbrio que ele tende a romper. (SARTRE, 1999, p.65)
2.2. ENSAIO: UMA FALA ESTRITAMENTE PESSOAL.
“Não escrevo livros para contar histórias, só. No fundo, provavelmente eu não
seja um romancista. Sou um ensaísta, sou alguém que escreve ensaios com
personagens.” (AGUILERA, 2010, p. 247).
Segundo a Wikipédia, a palavra Ensaio vem do latim “exagiu(m)”, significando
a „ação de pensar‟, caracterizando-se por ser
Um texto literário breve, situado entre o poético e o didático, expondo idéias, críticas e reflexões éticas e filosóficas a respeito de certo tema, consistindo também na defesa de um ponto de vista pessoal e subjetivo (humanístico, filosófico, político, social, cultural, moral, comportamental, literário, religioso, etc.), sem que se paute em formalidades como documentos ou provas empíricas ou dedutivas, de caráter científico. Assume a forma livre e assistemática, sem um estilo definido. Por essa razão, o filósofo espanhol José Ortega y Gasset o definiu como "a ciência sem prova explícita". (Wikipédia)
21
O escritor e filósofo francês Michel de Montaigne (1533-1592) difundiu o
termo ao escrever seus essais, em 1580. Com seus escritos quis dizer que os
mesmos eram tentativas, simples esboços literários (significado original do termo
francês "essai"), que obtinham seu mérito na mistura de instinto com experiência,
sendo que o vivido era exposto como forma de compartilhar sentimentos,
concepções, ideologias. (Wikipédia)
José Saramago fez desta ação de pensar uma ideologia para viver. Quando
assumia publicamente sua postura de constante questionador da realidade social, o
escritor declarava: “O pensamento não pode jamais ser autista” (AGUILERA, 2010,
p.153) e ainda, sobre sua atitude como escritor:
Sou um romancista que não quer nem saberia limitar-se a contar uma história, por muito interessante que fosse. Preciso de mostrar todas as conexões possíveis, as próximas e as distantes, de modo que o leitor compreenda que, estando a falar de um elefante, por exemplo, estou a falar da vida humana. É a atitude do ensaísta. Deste ponto de vista, não vejo qualquer contradição entre romance e ensaio. (Id. Ibid, p. 318).
2.2.1 O literal edificado em entrelinhas: alegoria, além dos limites da arte.
“A alegoria se instala mais duravelmente onde o efêmero e o eterno
coexistem intimamente.” (BENJAMIN, 1984). “Uma metáfora isolada indica apenas
uma maneira figurada de falar; mas se a metáfora é contínua, seguida, revela a
intenção segura de falar também de outras coisas além do enunciado” (TODOROV,
1992).
A escrita saramaguiana pode ser considerada uma alegoria, posto que esteja
sempre propensa a livres interpretações por parte de quem a lê, sendo que
Saramago considera que: “Precisamos, pois, voltar à alegoria, para acentuar aquilo
que, em condições normais, não necessitaria mais do que a exposição do fato
22
simples [...]” (AGUILERA, 2010, p.239), encontrando-se nela uma abertura na qual a
relação autor/leitor se desenvolve. “O leitor também escreve o livro quando lhe
penetra o sentido, o interroga” (Id. Ibid, p.326). E é na apreensão do sentido que se
encontra nas entrelinhas que a alegoria se dá.
No entendimento do que se quis dizer, muito além do que realmente com
palavras escritas se disse, é que consiste o verdadeiro processo de interação e
cumprimento da função literária que se proclame pós-moderna. Uma escrita que
transcenda os limites do papel, criatura que supere seu criador, assim é a alegoria,
fina percepção do mundo, muito mais que mera representação simbólica.
Segundo a Wikipédia, a etimologia da palavra alegoria: Allos (outro) e
agoreuein (falar em público) nos remete à ideia de falas que literalmente indicam
uma coisa, quando na verdade expressam outra, trazendo à público o seu
significado implícito. Segundo Benjamin (1984) “a alegoria floresce no terreno do
desmoronamento da tradição”, e este falar uma coisa significando outra, nada mais
é do que a desmistificação da atemporalidade.
Como dizia o próprio Saramago: “A alegoria chega quando descrever a
realidade já não serve” (AGUILERA, 2010, p.297).
23
3. UM OLHAR ATENTO
3.1 A VISÃO SARAMAGUIANA DO HOMEM PÓS-MODERNO: UM RETRATO SOB
PERSPECTIVAS PRÓPRIAS.
Saramago caracteriza a sua produção literária entre os anos 1990 e 2004
como sendo de caráter nitidamente pós-moderno, “sobretudo a partir de Ensaio
Sobre a Cegueira (1995). Existe, pois, um processo reflexivo ligado à pós-
modernidade e um questionamento.” (LOPES, 2010, p. 147).
Sobre a escrita deste livro, se manifestaria
[...] Cegos. O aprendiz pensou: Estamos cegos, e sentou-se a escrever o "Ensaio sobre a Cegueira" para recordar a quem o viesse a ler que usamos perversamente a razão quando humilhamos a vida, que a dignidade do ser humano é todos os dias insultada pelos poderosos do nosso mundo, que a mentira universal tomou o lugar das verdades plurais, que o homem deixou de respeitar-se a si mesmo quando perdeu o respeito que devia ao seu semelhante. [...] (SARAMAGO, 1998. Excerto do discurso Prêmio Nobel)
Lopes (2010), no tocante aos ensaios sobre a Cegueira e a Lucidez, fala
sobre o que seriam as “alegorias distópicas saramaguianas”. Para este crítico, são
os frutos de um sujeito definitivamente descontente com a sociedade cuja carga
cultural herdou, mas em cujas entrelinhas históricas e sociais se vê impelido a
penetrar, de forma reflexiva, a fim de provocar a quebra do marasmo intelectual e,
por que não dizer, do desinteresse humano em que se dão os processos de
formação de sua estrutura. Saramago faz desta distopia ou lugar ruim o eixo do
enredo, o centro de suas indagações.
24
Ensaio sobre a cegueira não se pretende parcial, apenas quer olhar a realidade cara a cara [...] vem a dizer que nós não estamos, e não estivemos nunca, a formar humanamente as circunstâncias para que estas, humanizadas, formassem um outro tipo de homem. É aonde eu quero chegar. (AGUILERA, 2010, p.296)
A intenção de apresentar a cegueira branca como uma alegoria da perda da
razão, se faz evidente, quando declara
[...] chegado agora a estes dias, os meus e os do Mundo, vejo-me diante de duas possibilidades: ou a razão, no homem, não faz senão dormir e engendrar monstros, ou o homem, sendo indubitavelmente um animal entre os animais, é, também, o mais irracional entre todos eles. (LOPES, 2010, p.147).
Saramago propunha que somente a perda da razão explicaria a cegueira
moral que deturpe nossa visão, aqui não condizente à faculdade de ver, mas sim,
relacionada à responsabilidade que o enxergar além das aparências acarreta, como
mostra a epígrafe “Se podes olhar, vê. “Se podes ver, repara”, que, em se tratando
do escritor, resume muito bem a sua intenção ao escrever a obra.
José acreditava que neste romance “[...] O mundo está todo aqui dentro [...]”.
(SARAMAGO, 1995, p.102), sendo possível, por seu intermédio, traçar uma imagem
da forma como vivemos: intolerante, exploradora, cruel, indiferente e cínica, onde a
bondade é quase inexistente e os interesses individuais se sobrepõem aos coletivos
“O meu romance reflete o horror contemporâneo, não é mais duro do que a
realidade que o cerca” (AGUILERA, 2010, p.298).
25
Desconfiança das boas intenções:
“[...] O zelo pareceu de repente suspeito ao cego, evidentemente, não iria deixar
entrar em casa uma pessoa desconhecida que, no fim de contas, bem poderia
estar a tramar, naquele preciso momento, como haveria de reduzir, atar e
amordaçar o infeliz cego sem defesa, para depois deitar a mão ao que
encontrasse de valor [...]” (p.15)
Preocupação em manter as aparências:
“[...] Espera-me aqui, se algum vizinho aparecer fala-lhe com naturalidade [...]
escusamos de estar já a dar notícia da nossa vida [...]”. (p.19)
Interesse disfarçado de generosidade:
“[...] no fim das contas, [...] não é assim tão grande a diferença entre ajudar um cego
para depois o roubar e cuidar de uma velhice caduca tatebitate com o olho posto na
herança. [...]”. (p.25)
Indiferença perante os infortúnios alheios:
“[...] O polícia, em tom que seria sarcástico se não fosse simplesmente grosseiro,
quis saber, depois de lhe ter perguntado onde morava, se ela dispunha de dinheiro
para o táxi [...]”. (p.36)
“[...] Nesse caso o que você deverá fazer é chamar um médico, um médico
autêntico, retorquiu o funcionário, e, encantado com o seu próprio espírito, desligou
o telefone [...]‟. (p.40)
“[...] Agora só falta decidir onde os iremos meter [...] Nesse caso, resta o manicômio
[...]”. (p.46)
Agir sem pensar nas consequências:
“[...] Estimulado pelo perfume que se desprendia dela e pela recente ereção, decidiu
usar as mãos com maior proveito, uma acariciando-lhe a nuca por baixo dos
cabelos, a outra, direta e sem cerimônias, apalpando-lhe o seio. [...] então a rapariga
26
jogou com força a perna atrás, [...] o salto do sapato [...] foi espetar-se na coxa do
ladrão [...]”,(p.57)
Atitude autoindulgente:
“[...] Se estou agora nesta situação, argumentou ele, não foi por lhe ter roubado o
carro, mas por ter ido acompanhá-lo a casa [...]”. (p.78)
Crueldade e frieza:
“[...] Isto o melhor era deixá-los morrer à fome, morrendo o bicho acabava-se a
peçanha [...]”.(p.89)
“[...] sobretudo o mal que, como todo o mundo sabe, sempre foi o mais fácil de fazer
[...]”.(p.90)
Animalização do ser humano:
“[...] sabia que estava sujo, sujo como não se lembrava de ter estado alguma vez na
vida. Há muitas maneiras de tornar-se animal, pensou, e esta é a primeira delas.[...]”.
(p.97)
“[...] principiaram a ouvir-se uns suspiros, [...] uns gritinhos primeiro abafados[...] ia
transformando em grito, em ronco [...] Porcos, são como porcos[...]”. (p.98)
Ensaio sobre a cegueira age como questionador da realidade que se
apresenta constantemente afligida pela questão: é possível continuar concebendo a
vida na atual situação, onde a humilhação costuma ser “o pão desgraçado de cada
dia”? (AGUILERA, 2010, p.298).
Saramago considera que até o primeiro Ensaio havia “se preocupado com a
estátua somente” e, depois disso, “passou a se preocupar com a pedra”
(AGUILERA, 2010, p.3010). A afirmação alude ao fato de que a partir desta sua
publicação pode-se claramente fazer uma divisão na temática de seus romances
que, até 1990, faziam a linha histórica e passaram, então, a preocupar-se com a
27
sociedade, com o comportamento individual dos seres humanos e as suas
repercussões coletivas.
“[...] É como se eu me apercebe-se, a partir do Ensaio, que as minhas
preocupações passaram a ser outras. [...] Não penso que estou a escrever livros
melhores do que antes. Não tem a ver com qualidade, mas com intenção.[...]”
(AGUILERA, 2010, p.307), trazendo à tona a ideia de que estava cansado da
crueldade mundana. “Com Ensaio sobre a cegueira, passei a escrever de forma
mais atenta” (AGUILERA, 2010, p.311).
Igualmente, ao escrever Ensaio sobre a lucidez, dá continuidade à temática
do comportamento humano, agora fazendo-se presente no veto à falsa democracia
em que vivemos, em forma de voto em branco, reconhecendo que o mesmo “é um
romance fundamentalmente político” (AGUILERA, 2010, p.312).
Talvez, o que o tenha motivado a escrever este romance tenha surgido da
seguinte indagação a que se submetia constantemente: “E a democracia, esse
milenário invento de uns atenienses ingênuos para quem ela significaria, nas
circunstâncias sociais e políticas específicas do tempo, e segundo a expressão
consagrada, um governo do povo, pelo povo e para o povo? (SARAMAGO, 2002).
O voto em branco alude à também cegueira branca, fazendo a diferenciação
de que, no primeiro, a brancura se relaciona ao ganho da razão (expressa pela
lucidez), enquanto que na segunda, era sinônimo de falta de compreensão,
nitidamente proporcionando um jogo de claro-escuro. Este livro “no fundo, é um livro
sobre a razão de Estado, ou as razões de Estado” (AGUILERA, 2010, p.317).
O escritor-cidadão incita à questão: e se, espontânea e conscientemente, a
parcela populacional votante invalidasse uma eleição, fazendo uso do voto em
branco? E se fôssemos capazes de conviver em uma sociedade plenamente
organizada, sem influências políticas ou partidárias? E se tivéssemos êxito neste
intento?
28
“[...] sou um cidadão como outro qualquer, manifesto-me como e quando entenda, e
muito mais agora que já não é mais necessário pedir autorização. [...]”. (p.137)
“[...] como cidadãos livres, entramos e saímos à hora que nos apetece, não temos
de dar explicações a ninguém sobre as razões dos nossos atos [...]”. (p.22)
“[...] se entramos pela vereda dos subterfúgios e pelo atalho dos arranjinhos por
baixo da mesa iremos direitos ao caos e à dissolução das consciências [...]” (p. 26).
“[...] a população da capital [...] saberá exercer seu dever cívico com a dignidade [...]”
(p.27)
Esta obra suscita muitas questões relativas ao livre-arbítrio, gerando certo
desconforto, que por sua vez, levanta dúvidas que nos levam a questionamentos,
proporcionando a quebra de padrões, alargando horizontes.
Assim como no primeiro Ensaio, a mulher do médico conduz a história,
embora seja apenas mais uma eleitora, e é por meio dela que obtemos a percepção
de que a lucidez, sob a forma de indagações, trava uma batalha com a fragilidade da
democracia, fazendo-nos pensar sobre as consequências de nossos atos.
Saramago explicita
29
Em O homem duplicado, nos deparamos com a perda da identidade como
sendo consequência direta das atitudes de uma sociedade que prega padrões
egoístas de convivência.
“[...] rendeu-se à fraqueza de ânimo ordinariamente conhecida por depressão. [...]”.
(p.7)
“[...] O que por aí mais se vê, a ponto de já não causar surpresa, é pessoas a
sofrerem com paciência o miudinho escrutínio da solidão [...]”. (p.8)
“[...] tudo me cansa e aborrece, esta maldita rotina, [...] este marcar passo. [...]”.
(p.10)
“[...] É a carreira e o trabalho que me têm a mim, não eu a eles [...]”. (p.11)
“[...] Não gosto de mim mesmo, provavelmente é este o problema. [...]”. (p.12)
“[...] por indiferença, por alheamento, por preguiça de ter de escolher [...]”. (12)
“[...] o que é em pensamento não conta [...]”. (p.16)
“[...] O melhor caminho para uma desculpabilização universal é chegar a conclusão
de que, porque toda a gente tem culpas, ninguém é culpado. [...]” São os problemas
do mundo [...]. (p.34)
“[...] matou-a sua fraqueza moral [...]”. (p.266)
O professor de história Tertuliano Máximo Afonso representa o estigma do
niilismo que acomete os seres humanos pós-modernos, e que faz com que o
sentimento de impotência tome conta da existência. Este „eu‟ que se descobre
„outro‟ e não mais sabe se definir passa a questionar o valor da sua permanência no
mundo até então, sendo conduzido a uma assimilação de caráter que visa a uma
eliminação do „erro‟, mas que o leva a caminhos desconhecidos e perigosos, no
desvendamento da identidade que se sobreponha à „cópia‟.
30
Encontram-se também padrões de comportamento pós-moderno a respeito:
Da profissão:
“[...] vê-a ele desde há muito tempo como uma fadiga sem sentido e um começo
sem fim. [...]”. (p.7)
“[...] os últimos exercícios de seus alunos, que deverá ler com atenção e corrigir
sempre que atentem perigosamente contra as verdades ensinadas ou se permitam
excessivas liberdades de interpretação [...]”. (p.13)
“[...] A história que ensina [...] tem uma enorme quantidade de rabos de fora, alguns
ainda remexendo [...]”. (p.13)
Da falta de coragem:
„[...] tanto é o que precisamos de lançar culpas a algo distante quando o que nos
faltou foi a coragem de encarar o que estava na nossa frente [...]”. (p.8)
Da postura fatalista:
“[...] assim é a puta da vida, sempre nos acaba [...]. (p.15)
“[...] achou que não deveria contrariar o destino [...]”. (p.15)
“[...] semelhanças é o que não falta no mundo [...]”. (p.21)
Do culto à imagem:
“[...] Mas as aparências [...] não é raro que se neguem a si mesmas [...]”. (p.16)
31
Das obrigações:
“[...] Ao cabo de quatro páginas adormeceu serenamente, sinal de que tinha sido
perdoado [...]”. (p.180)
Sobre este livro, Saramago apontou
O que eu quero examinar, no fundo, é o tema do „outro‟. Se o „outro‟ é como eu, e o „outro‟ tem todo o direito de ser como eu, me pergunto: até que ponto eu quero que esse outro entre e usurpe o meu espaço? Nesta história, o „outro‟ tem um significado que nunca antes teve. Atualmente, no mundo, entre „eu‟ e o „outro‟ há distâncias, e essas distâncias não são possíveis de superar e por isso cada vez menos o ser humano pode chegar a um acordo. A nossa vida é composta de uns 95 por cento que são obra dos demais. [...] vivemos em um caos e não há ordem aparente que nos governe. A ideia-chave do livro é que o caos é um tipo de ordem a ser decifrada. [...] proponho que o leitor investigue a ordem que há nos caos. (AGUILERA, 2010, p.317).
3.2 ENTRE A CEGUEIRA E A LUCIDEZ: ENSAIOS SOBRE O HOMEM
DUPLICADO.
A partir de Ensaio sobre a cegueira, Saramago assume o compromisso de
denunciar a condição social do ser humano, como também o faz nas obras Ensaio
sobre a lucidez e O homem duplicado. Obras estas que proporcionam uma aguçada
reflexão sobre os valores que regem a sociedade pós-moderna, completando-se e
traçando um perfil literário desta mentalidade, pois como costumava dizer: “Somos
muito mais filhos do tempo em que nascemos e vivemos do que do lugar em que
nascemos.” (AGUILERA, 2010, p.)
Fazendo uso de seu talento em construir alegorias, José, ao longo das três
narrativas, nos brindou com o espetáculo proporcionado pelo romance enquanto
espaço de constantes indagações, reflexões e conjecturas. No esmiuçar de nossos
conflitos morais, sociais ou políticos, arquitetou um plano de estudo comportamental,
32
que nos leva ao reconhecimento daquilo que somos nas mais variadas formas e
atitudes.
Sua forma digressiva de escrita proporciona uma visão holística das
situações, a qual resultará em um julgamento lúcido sobre as mesmas e sua
influência no cotidiano individual e, principalmente, coletivo.
Sabe-se que os significados que atribuímos aos acontecimentos provêm de
nossas experiências pessoais, forjadas no âmbito social. A leitura crítica da
sociedade pressupõe a compreensão e a interpretação do que se vê; mais do que
meramente decodificar símbolos, acarreta a apreensão de significados implícitos no
contexto que levem em conta que os textos reproduzem práticas sociais que são
reflexos do mundo em que vivemos e que, por vezes, passam despercebidos pelo
leitor cujo olhar é, ainda, superficial.
Segundo Vygotsky (1989), o homem se constitui na e pela linguagem, ou
seja, é na interação com outros sujeitos que formas de pensar são construídas por
meio da assimilação do saber da comunidade em que se insere, sendo que a
relação homem/mundo é uma relação de mediação, na qual existem elementos que
auxiliam a atividade humana de compreensão. Dentre eles, encontra-se a literatura.
Os livros dos quais trata este trabalho monográfico se enquadram no que,
particularmente, considero como um retrato saramaguiano da sociedade pós-
moderna, por tudo que este termo signifique, por todas as explicações que forneça,
por todas as situações que esmiúce. Uma sociedade carente de garantias, mas que,
ao mesmo tempo em que sofre de inseguranças, se autoafirma, corajosa e
tolamente, independente.
O que de verdade a leitura destes livros nos traz é a fina percepção de que
sempre existe algo que se possa fazer, embora a mudança seja, obviamente, um ato
volitivo, e neste caso, teria de ser um ato de vontade coletiva, que almejasse o bem
comum.
33
Quanto a isso, o próprio Saramago nos deixa sua opinião: “eu sou bastante
cético, porque penso que os seres humanos não aprendem nada das experiências
que fazem”. (AGUILERA, 2010, p.298), culminando: “talvez a história do homem seja
um longuíssimo movimento que nos leve à humanização. [...] talvez se possa chegar
um dia, e isto é a utopia máxima, em que o ser humano respeite o ser humano.” (Id.
Ibid).
Uma profusão de „outros‟ que habitam dentro do „eu‟, que vivenciam conflitos
existenciais, sociais e morais, e que precisam aprender a conviver muito mais do
que a sobreviver, este é o retrato saramaguiano da sociedade dita pós-moderna.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao finalizar este trabalho monográfico, tenho a certeza de que para José
Saramago a literatura era uma fonte de constantes questionamentos, meio e fim de
todas as causas, e que o escritor tem papel fundamental numa perspectiva de
percepção das entrelinhas históricas, posto que a história seja o nós em contínuas
mudanças, caleidoscópio de sensações.
Escrever sobre a condição humana requer um vastíssimo conhecimento das
várias teorias que regem o nosso pensamento, fio condutor da existência, ao longo
de um tempo que se traveste em atemporal. Saramago possuía esta característica,
agora imortalizada em seu espólio literário.
A meu ver, como admiradora e questionadora de sua escrita, que me
considero, as obras neste trabalho citadas pertencem ao que de melhor o escritor
Saramago produziu, pois as mesmas falam de um assunto que a todos deveria
interessar: a própria sociedade na qual estamos inseridos e onde não devemos viver
marginalizados, ignorantes de nossa situação.
Muito do que precisava ser dito no concernente ao assunto abordado ficou
por dizer, embora tenha tentado expor os fatos de forma a não prejudicar o
entendimento do trabalho a que me propus. De maneira geral, penso ter atingido os
objetivos que tinha ao iniciar esta pesquisa.
Como ser humano, mulher, estudante, futura professora que sou, sinto-me
compelida a dizer, dos sentimentos que a literatura saramaguiana me desperta, que
são os mais contraditórios e deliciosamente inquietantes possíveis. O tipo de
sentimento que faz realmente pensar, genuinamente se importar e sinceramente
querer intervir.
O que este menino do Alentejo metamorfoseado em cidadão do mundo nos
legou, em termos de ideias, é de valor inestimável. Sua urgência ao compartilhar da
indignação para com aqueles que considerava, assim como a si mesmo, co-
responsáveis pela situação mundial, mostrava-se na generosidade com que
35
expunha, por meio de sua escrita essencialmente humana, seu pensamento
indiscutivelmente inquieto.
Agitador do plano da consciência, irônico, sagaz, sensível, fraterno,
inteligente, humano: assim era José Saramago. Sua obra eterniza um sujeito de
qualidades admiráveis que, na tranqüila simplicidade de sua essência, foi
protagonista de tempestuosa intervenção.
Termino, fazendo minhas as palavras do grande escritor: “Perdoai-me se vos
pareceu pouco isto que para mim é tudo.”
36
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