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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO - UFRJ CENTRO DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS - CFCH INSTITUTO DE FILOSOFIA E CINCIAS SOCIAIS - IFCS
DEPARTAMENTO DE HISTRIA Programa de Ps-graduao em Histria Comparada
Dissertao de Mestrado
ENTRE A MACUMBA E O ESPIRITISMO: uma anlise comparativa das estratgias de
legitimao da Umbanda durante o Estado Novo
Por
Jos Henrique Motta de Oliveira
Rio de Janeiro, Maro de 2007
1
Jos Henrique Motta de Oliveira
ENTRE A MACUMBA E O ESPIRITISMO: uma anlise comparativa das estratgias de
legitimao da Umbanda durante o Estado Novo
Dissertao de Mestrado apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Histria Comparada, Instituto de Filosofia e Cincias Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessrios obteno do ttulo de Mestre em Histria.
Orientadora: Prof. Dr. Maria Conceio Pinto de Ges
Co-Orientador: Prof. Dr. Washington Dener S. Cunha
Rio de Janeiro, Maro de 2007
2
Ficha Catalogrfica
Oliveira, Jos Henrique Motta de. Entre a Macumba e o Espiritismo: uma anlise comparativa das
estratgias de legitimao da Umbanda durante o Estado Novo / Jos Henrique Motta de Oliveira. 2007. 165 fl.
Dissertao (Mestrado em Histria Comparada) Universidade
Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Filosofia e Cincias Sociais, Rio de Janeiro, 2007. Orientadora: Maria Conceio Pinto de Ges. Co-Orientador: Washington Dener dos Santos Cunha.
1. Umbanda. 2. Estado Novo. 3. Religies Brasileiras Teses.
I. Ges, Maria Conceio Pinto de (Orient.). II. Cunha, Washington Dener S. (Co-Orient.). III. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Programa de Ps-graduao em Histria Comparada. IV. Ttulo.
3
Jos Henrique Motta de Oliveira
ENTRE A MACUMBA E O ESPIRITISMO: uma anlise comparativa das estratgias de
legitimao da Umbanda durante o Estado Novo
Dissertao de Mestrado apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Histria Comparada, Instituto de Filosofia e Cincias Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessrios obteno do ttulo de Mestre em Histria.
Aprovado em 29 de Maro de 2007
__________________________________________________ Maria Conceio Pinto de Ges, Professora, Doutora, UFRJ
__________________________________________________ Artur Csar Isaia, Professor, Ps-Doutor, UFSC
__________________________________________________ Clara Rassa de Ges, Professora, Doutora, UFRJ
4
Para meus pais,
Guaracy e Ilka.
Para minha esposa,
Luzia.
Para o mestre e amigo,
Mrcio Bamberg (Mestre Thashamara).
Para os mdiuns da
Cabana de Pai Pescador das Almas.
5
AGRADECIMENTOS
Na trajetria da produo desta dissertao de mestrado contamos com o apoio de
diversas pessoas sem as quais no seria vivel a concluso desta misso. Os agradecimentos
se estendem a todos que participaram desta travessia. Ainda que correndo o risco de esquecer
algum nome, gostaria de mencionar algumas pessoas em especial.
Ao professor e amigo Washington Dener, que desde a graduao vem me ajudando na
tarefa de propor uma histria para a Umbanda, agradeo pela pacincia e sensibilidade de me
indicar os caminhos mais seguros a percorrer na seara acadmica.
professora Maria Conceio Pinto de Ges, devo a orientao cuidadosa, traduzida
no acompanhamento da pesquisa e discusso das vrias verses desse trabalho, alm do
estmulo, confiana e amizade.
Tambm aos professores Artur Csar Isaia, Emerson Giumbelli, Renato Ortiz, Silvio
de Almeida e Yvonne Maggie, agradeo a leitura atenta, rigorosa e polemizadora, a partir da
qual pude perceber alguns limites das escolhas realizadas, bem como as possibilidades que se
descortinavam. Aos professores Euracy Aguiar Prado e Edna Prado, agradeo a reviso
criteriosa dessa dissertao.
Ao Pai Antunes Dias Maciel, babala da Tenda de Umbanda Caboclo Pena Dourada,
agradeo pela ajuda inestimvel em disponibilizar os ttulos da biblioteca do templo que
dirige, onde encontrei as obras dos primeiros intelectuais da Umbanda e que foram
imprescindveis ao desenvolvimento desta dissertao.
O dia a dia da pesquisa foi partilhado com amigos de diferentes formas. Agradeo
equipe de retaguarda do PPGHC, Mrcia e Leniza, sempre solcitas em nos atender. Cntia
Parreira, pela providencial colaborao em revisar nossos abstracts. Aos companheiros de
jornada Jferson e Jorge Jos pelo apoio e incentivo nos momentos em que nosso nimo se
abatia. E, especialmente, ao Carlos Manuel de Hollanda pela sensibilidade em captar as
questes que permeavam nossa pesquisa, traduzindo-as na ilustrao que abre nosso trabalho.
No posso deixar de agradecer s vibraes emanadas do mundo invisvel (to real
que posso at toc-lo) por Pai Pescador das Almas e demais Guias Espirituais da minha
Coroa, sempre me amparando e me ajudando a superar as vicissitudes da vida. Nesta seara,
jamais me esquecerei do Senhor dos Caminhos, Tranca Ruas das Almas, o primeiro a me
apontar a pesquisa cientfica como uma das alternativas para servir Umbanda. Laroy, Es.
Elegb bab Esuri. Mo-Ju-Ib!
Cabe mencionar, por fim, aquela para quem mais difcil traduzir em palavras o meu
agradecimento: Luzia devo o incentivo e a participao constante nesse trabalho, alm do
amor e companheirismo que conduziu a nossa convivncia, amenizando, dessa forma, as
inmeras atribulaes que marcaram esse perodo.
6
Irmo!... Medita demoradamente sobre a tua condio de ente humano, e procura conhecer a razo de ser dos teus inmeros sofrimentos. Acompanha a evoluo da mais perfeita ideologia religiosa, que a Umbanda, e vers que os teus temores se dissiparo. Quando tomares conhecimento do mundo espiritual, os bondosos Orixs te mostraro a sublimidade das Leis Divinas, dando-te foras para suportares, com a resignao dos fortes, os mais atrozes padecimentos morais, materiais e espirituais. Vem... A Umbanda redentora e amiga te espera!... (FONTENELLE, 1953, p. 9).
7
RESUMO OLIVEIRA, Jos Henrique Motta de. Entre a Macumba e o Espiritismo: uma anlise comparativa das estratgias de legitimao da Umbanda durante o Estado Novo. Rio de Janeiro, 2007. Dissertao (Mestrado em Histria Comparada) Instituto de Filosofia e Cincias Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2007.
Esta dissertao tem como objetivo percorrer os caminhos histricos do Movimento
Umbandista durante a primeira metade do sculo XX, especialmente, durante o perodo do Estado Novo, no qual a Umbanda foi elevada condio de uma religio nacional. Neste sentido, identificam-se duas aes nodais para o processo de legitimao da nova religio: primeiro, a fundao da Federao Esprita de Umbanda (1939), cujo objetivo era servir de interlocutor entre os templos filiados, o Estado e a sociedade; e segundo, a realizao do Primeiro Congresso Brasileiro de Umbanda (1941), cuja finalidade era unificar as prticas rituais a partir de uma doutrina mnima. Assim, para atingir o objetivo proposto, o trabalho divide-se em trs captulos: o primeiro, a ttulo introdutrio, apresenta o encontro das culturas amerndias, europias e africanas no territrio brasileiro, cujas religiosidades se amalgamaram ao longo de quatro sculos de colonizao e ofereceram os elementos necessrios para o desabrochar de uma nova religiosidade que refletisse a mesma mestiagem da populao que a professava. O segundo captulo apresenta o contexto histrico em que se deu o desenvolvimento do Movimento Umbandista, ressaltando que a identidade do povo brasileiro ganhou contornos mais definidos no perodo Vargas, especialmente durante o Estado Novo. Por fim, no ltimo captulo, a partir da anunciao da Umbanda que se deu pela manifestao do Caboclo das Sete Encruzilhadas, no mdium Zlio de Moraes, no dia 15 de Novembro de 1908 , verifica-se a insero de elementos da classe mdia urbana na macumba carioca e a contribuio destes no processo de legitimao da Umbanda como uma religio aceita pela sociedade. De antemo, destacamos que a legitimidade da religio umbandista nasceu do dilogo entre os lderes do movimento e o Estado, estabelecido pela nica via disponvel naquele perodo histrico: a via institucional, no qual o teor do discurso reconhecia o carter evolucionista na formao da populao e o papel civilizador da elite brasileira.
8
ABSTRACT OLIVEIRA, Jos Henrique Motta de. Entre a Macumba e o Espiritismo: uma anlise comparativa das estratgias de legitimao da Umbanda durante o Estado Novo. Rio de Janeiro, 2007. Dissertao (Mestrado em Histria Comparada) Instituto de Filosofia e Cincias Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2007.
The present dissertation aims at following the historical paths of the Umbanda Movement during the first half of 20th century, especially, the Estado Novo (New State) period, in which Umbanda was given the status of a national religion. For this, it is possible to identify two actions which were crucial to the legitimization of the new religion: firstly, the foundation of the Spiritual Federation of Umbanda (1939) which aimed at serving as an interlocutor of the affiliated temples, the State and the society; secondly, the First Brazilian Congress of Umbanda (1941), which aimed at unifying the rituals through a doctrine. Thus, in order to achieve the goal, this work is divided into three chapters: the first one, as an introduction, presents the meeting of the Amerindian, European and African cultures in Brazil, whose religiosity mixed throughout four centuries of colonization offering the necessary elements to the birth of a new religiosity which reflected the mixture of the population which professed it. The second chapter presents the historical context in which the Umbanda Movement has developed, highlighting that the identity of the Brazilian people became better defined during Vargas government, especially during Estado Novo. Finally, in the last chapter, from the enunciation of Umbanda which was given through Caboclo das Sete Encruzilhadas in the medium Zelio de Moraes, on November 15th, 1908 it is possible to notice the insertion of the urban middle class elements in the macumba carioca and the contribution of such elements in the process of legitimization of Umbanda as a religion accepted by society. It is possible to anticipate that the legitimization of the umbanda religion was born from the dialog between the movement leaders and the State, established institutionally, in which the evolutionist character was recognized in the formation of the population and the civilization role of the Brazilian elite.
9
SUMRIO
1 Introduo 10
1.1 Umbanda: uma religio brasileira 13
1.2 Desenvolvimento temtico 19
2 Jesus e Oxal na Terra de Yorupari 21
2.1 A religiosidade amerndia 24
2.2 Catolicismo: uma religio obrigatria 30
2.3 A religiosidade dos escravos no Brasil 38
2.4 O Kardecismo no Brasil 47
2.5 Consideraes finais 53
3 O caboclo veio Terra: contexto histrico do Movimento Umbandista 55
3.1 O nacionalismo brasileira 60
3.2 Conjunturas que levaram Revoluo de 1930 64
3.3 O nacionalismo em Vargas 71
3.4 O Estado Novo e a construo de uma identidade brasileira 77
3.5 Os intelectuais e suas relaes com o poder 84
3.6 Consideraes finais 87
4 Das Macumbas Umbanda 90
4.1 Contribuies e oposies do Kardecismo Umbanda 93
4.2 Catolicismo versus Umbanda 100
4.3 A anunciao da Umbanda: nasce uma religio 106
4.4 Legitimao e institucionalizao do Movimento Umbandista 116
4.4.1 Umbanda e Estado Novo 118
4.5 O congresso de Umbanda e a construo de uma religio 126
4.5.1 O discurso da antiguidade da Umbanda: Tradio e Histria 128
4.5.2 As questes doutrinrias 132
4.5.3 O discurso cientificista 136
4.5.4 A homogeneizao da Umbanda 141
4.6 Consideraes finais 143
5 Concluso 145
6 Referncias Bibliogrficas 152
7 Anexos 160
10
1 Introduo
Umbanda , meu Pai! Eu vou firm cong.
Nas sete foras de Umbanda Eu vou abrir meu casu.
Quando o assunto religio afro-brasileira, o carter folclrico ocupa espao
significativo no imaginrio popular. Ainda mais quando estamos diante de um imenso
espectro de religies entendidas como tal: Candombl, Jurema, Macumba, Tambor de Mina,
Umbanda, Xang do Nordeste etc. A Umbanda, entretanto, apresenta uma peculiaridade que a
diferencia das demais: enquanto os adeptos das religiosidades mais africanizadas buscavam
legitimar suas prticas exaltando a pureza das tradies nag1, os lderes do Movimento
Umbandista2 fizeram questo de apresent-la como uma religio brasileira.
Acreditamos que o carter nacionalista atribudo Umbanda fazia parte de um
conjunto de estratgias de legitimao que incluam tambm a institucionalizao da nova
religio e a adoo de um discurso evolucionista, no qual a populao brasileira era o
resultado de um encontro singular entre ndios, brancos e negros. Nesta perspectiva,
trabalharemos com a hiptese de que essas estratgias visavam flexibilizar a ocupao do
campo religioso a partir de uma interpretao livre3 do projeto poltico-ideolgico
implantado pelo Estado Novo, no qual o carter mestio da populao brasileira contribuiria
1 A questo da pureza nag comea a ser traada nos Congressos Afro-brasileiros: o Primeiro em Recife (1934), idealizado por Gilberto Freyre, e o Segundo em Salvador (1937), organizado por dison Carneiro. Cf. DANTAS, Beatriz Gis. Vov Nag e Pai Branco. Rio de Janeiro: Graal, 1988. 2 Entendemos como Movimento Umbandista a unio dos adeptos da nova religio a fim de se protegerem contra a represso policial. Esta unio se consolidou com a fundao da Federao Esprita de Umbanda (1939), na realizao do Primeiro Congresso Brasileiro do Espiritismo de Umbanda (1941) e na produo e divulgao de todo um discurso legitimador das prticas religiosas, que se traduziram em livros, jornais, revistas, programas de rdios etc. 3 Entendemos como interpretao livre a capacidade do povo brasileiro em se apropriar do discurso estadonovista, selecionando aquilo que poderia benefici-lo como a legislao, os discursos sobre a famlia, o trabalho, o progresso e o bem-estar, e deixando de lado todo o aparato autoritrio, repressivo e excludente. Cf. FERREIRA, Jorge Luiz. A cultura poltica dos trabalhadores durante o primeiro governo Vargas. In: Estudos Histricos. Rio de Janeiro: vol. 3, n. 6, 1990.
11
para o desenvolvimento socioeconmico do Brasil, uma vez que aqui no ocorriam conflitos
tnicos e culturais como em outros pases.
Para compreendermos a possibilidade de a Umbanda ser apresentada como uma
religio brasileira, julgamos necessrio, em primeiro lugar, recuperar o conceito de religio
endgena fornecido por Renato Ortiz, no livro A Morte Branca do Feiticeiro Negro. O autor
desenvolve o conceito explicando que os principais atores do Movimento Umbandista foram
capazes de ultrapassar as fronteiras de um sincretismo espontneo e promover um sincretismo
refletido das diversas religies que se afrontaram no Brasil em mais de 400 anos de
colonizao4. A nova religiosidade nasceria, portanto, do processo de bricolagem5 entre as
manifestaes religiosas das culturas amerndias, mais a influncia da catequese jesutica,
mais o contato com os cultos de matriz africana, mais a influncia da doutrina kardecista. O
autor adverte, entretanto, que a religio umbandista mais do que uma sntese desses
elementos histricos, ao mesmo tempo tambm um produto simblico, mediatizado pelos
intelectuais umbandistas6 em um determinado momento histrico da sociedade brasileira. Isso
significa, para Ortiz, que sem o movimento dos intelectuais, que estabelece as normas de
orientao da religio, a Umbanda no existiria, pois o que encontraramos seriam somente
manifestaes heterogneas de rituais de origem afro-brasileira7. Por outro lado, o
4 ORTIZ, Renato. A Morte Branca do Feiticeiro Negro. 2 Edio. So Paulo: Brasiliense, 1999, p. 17. 5 Segundo Lvi-Strauss, o que caracteriza bricolagem a elaborao de conjuntos estruturados com resduos e fragmentos que faziam parte de outros conjuntos. (O Pensamento Selvagem. Apud MAGNANI, Jos Guilherme. Umbanda. 2 Edio. So Paulo: tica, 1991, p. 42). 6 Para Renato Ortiz, os intelectuais umbandistas se inserem na categoria de intelectuais eclesisticos, os quais Gramsci considerava organicamente ligados elite dominante. O perfil desses intelectuais no era diferente dos demais intelectuais brasileiros da primeira metade do sculo XX. Mesmo no desfrutando de igual prestgio no cenrio cultural, os intelectuais da Umbanda identificavam-se como escritores, haja vista o significativo nmero de obras literrias traduzindo o universo religioso para a comunidade laica. Nestas obras, encontram-se com facilidade os ideais nacionalistas, o evolucionismo tnico-social, o carter civilizador das elites e o racionalismo religioso. Profissionalmente, a maioria desses intelectuais-sacerdotes estava inserida no aparelho de Estado como membros da administrao pblica ou das Foras Armadas. 7 ORTIZ, Renato. tica, poder e poltica: Umbanda, um mito-ideologia. In: Religio e Sociedade. Rio de Janeiro: ISER, Dez., 1984, p. 41.
12
antroplogo argumenta tambm que sem a presena de uma herana cultural afro-brasileira
no seria possvel o bricolage do pensamento kardecista sobre essa realidade.
O conceito de religio endgena permite-nos, por conseguinte, ir alm das
interpretaes que classificavam a Umbanda como manifestaes rituais de origem
multicultural. Porque as religies mesmo quando consideradas como sistema de prticas
simblicas e de crenas relativas ao mundo invisvel no se constituem seno como formas
de expresso profundamente relacionadas s experincias sociais dos grupos que as pratica.
Como escreve Dominique Jlia, as mudanas religiosas s se explicam, se admitirmos que as
mudanas sociais produzem, nos fiis, modificaes de idias e de desejos tais que os
obrigam a modificar as diversas partes de seu sistema religioso8. Sem dvida, foi esse o
papel desempenhado pelos intelectuais umbandistas: reestruturar a herana multicultural de
modo que fosse possvel construir um sistema religioso que permitisse a Umbanda atingir o
status de religio forma institucionalizada de culto ao mesmo tempo em que refletia o
desejo de reconhecimento (e ascenso) social de uma parcela dos seus adeptos.
Ainda guiado por Renato Ortiz, identificamos no processo de legitimao da Umbanda
duas estratgias que refletem claramente a liderana de um grupo de pais de santo
(sacerdotes), o qual Ortiz classificou como intelectuais da religio9. Primeiro, temos a
fundao da Federao Esprita de Umbanda (1939), cujo objetivo primordial era servir de
interlocutor entre os templos filiados e o Estado a fim de negociar o fim da represso policial,
que se intensificara em meados de 1937 com a criao da Seo de Txicos e Mistificaes
nas chefaturas de polcia10. A segunda estratgia, conseqncia da primeira; foi a realizao
8 JULIA, Dominique. A Religio. Histria Religiosa. In: LE GOFF; NORA (Orgs.). Histria: novas abordagens. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1976, p. 106. 9 ORTIZ, 1984, p. 40 10 O Cdigo Penal de 1890 institua nos artigo 156, 157 e 158 a proibio da prtica ilegal da medicina (curandeirismo), o espiritismo e a magia ou feitiaria (charlatanismo). Em 1937, criou-se a Sesso de Txicos e Mistificaes a fim de intensificar as investigaes ao descumprimento desses artigos.
13
do Primeiro Congresso Brasileiro do Espiritismo de Umbanda (1941), cuja finalidade se
dividiria em duas funes: uma, interna, voltada para o corpo sacerdotal, visava unificar o
culto, estabelecendo uma doutrina pautada na prtica da caridade; e outra, externa, dirigida
sociedade laica, forneceria explicaes de cunho cientfico que pudessem desmistificar os
rituais mgicos que permaneciam na Umbanda como a utilizao de banhos com ervas,
defumadores, tabaco e, at mesmo, plvora para realizar os descarregos11. Nesse congresso
tambm seriam apresentadas pesquisas histrico-antropolgicas nas quais as origens da nova
religio estariam correlacionadas s tradies de antigas civilizaes. Sem negar a herana
africana, as prticas umbandistas transcenderiam a prpria frica escravizada e estariam
associadas ao continente mtico da Lemria, ou ainda religiosidade dos povos antigos da
ndia e do Egito12. Do ponto de vista organizacional, Ortiz argumenta que somente a partir
dessas duas datas que se pode falar em movimento pblico e oficial e que, por sua vez,
coincide com o perodo de consolidao de uma sociedade urbana, industrial, e de classe13.
Isto , o nmero de terreiros comeou a se expandir no incio da dcada de 1930 (ascenso de
Vargas) e se consolidou como movimento organizado durante o Estado Novo.
1.1 Umbanda: uma religio brasileira
Tomaz Tadeu Silva explica que nomear uma identidade demarcar diferenas.
Explica tambm que a enunciao da diferena uma construo simblica, sujeita as
11 Ritual que remove energias negativas e afasta ou neutraliza a interferncia do esprito de pessoas mortas. 12 Mrio Teixeira de S avalia que entre os adeptos da Macumba havia grupos que se identificavam com a construo da alva nao brasileira. Sentindose pressionados pela perseguio desenvolvida contra os elementos da cultura negra, buscaram afastar-se dessa matriz. No entanto, carregaram consigo todo aprendizado adquiridos no convvio com esse modelo religioso, que na Umbanda adquiriu novo significado. Cf. TEIXEIRA DE S, Mario. A inveno da alva nao umbandista. Dissertao (Mestrado em Histria) Universidade Federal do Mato Grosso do Sul. Dourados: UFMS, 2004. 13 ORTIZ, 1984, p. 41.
14
relaes de poder que refletem o desejo manifestado por uma parcela da sociedade, de
garantir acesso aos bens sociais14. No caso dos umbandistas, o acesso aos bens sociais
representava o direito de professar livremente sua religiosidade sem sofrer qualquer tipo de
constrangimento, mesmo que essa religiosidade tenha nascido da evoluo multicultural da
populao brasileira. Em outras palavras, visava-se a liberdade de culto quando a Umbanda
foi apresentada como uma religio brasileira.
Para alcanar esta meta, os lderes do movimento umbandista traaram estratgias de
mediao que reconhecessem a presena de novos atores na administrao do espao sagrado,
sem que isso representasse conflito com as religies tradicionalmente j estabelecidas. Nesta
perspectiva, identificamos na ao de fundar uma Federao, tanto quanto na ao de realizar um
Congresso, a busca de mecanismos que pudessem mediar, simultaneamente, as relaes entre os
seguidores da Umbanda e desta com a sociedade. Salta-nos aos olhos, que tais mediaes foram
orquestradas por indivduos da classe mdia, que tinham acesso ao espao poltico, que
identificavam a Umbanda como uma religio que expressava a formao multicultural do povo
brasileiro e que acreditavam na possibilidade de construir uma opinio favorvel nova religio a
partir de um discurso afinado com a ideologia15 vigente naquele perodo histrico.
Assim, quando os umbandistas se organizaram em Federao para negociar como o
Estado a liberdade de culto, eles apresentaram a Umbanda como uma religio totalmente
inserida no modo de vida urbano e civilizado, pois, como argumenta Fontenelle, encontra-se
14 SILVA, Tomaz Tadeu. A produo social da identidade e da diferena. In: SILVA (Org.). Identidade e Diferena. Petrpolis, RJ: Vozes, 2000, p. 81. 15 Podemos apontar trs definies para o conceito de ideologia: (1) sistema de crenas caracterstico de um grupo ou classe social ligado aos meios de produo; (2) sistema de idias falsas (falsa conscincia) contrapostas ao conhecimento cientfico ou verdadeiro; (3) e o processo geral de produo de significados e idias. Mesmo reconhecendo que as trs definies podem se revelar frgeis diante de questionamentos possveis; entendemos que tanto a primeira definio quanto a ltima pode nos ajudar a compreender o processo de legitimao da religio umbandista. Vejamos: existe em primeiro lugar a ideologia estadonovista, que representa o sistema de crena da elite brasileira que ascendeu ao poder junto com Vargas; e, segundo, existe a ideologia dos intelectuais umbandistas, que se caracterizou pela re-significao da doutrina kardecista e das prticas mgicas mantidas na Umbanda, adequando-as quele momento histrico a fim de obter liberdade de culto. Como escreve Leandro Konder, um discurso que pretenda uma aliana entre classes sociais diferentes pode subordinar o apoio s reivindicaes populares igualitrias manuteno da ordem e do progresso. Isto , manter o controle nas mos da elite nacional. Cf. KONDER. A questo da Ideologia. So Paulo: Cia. das Letras, 2002, p. 252.
15
no novo culto somente o que h de melhor entre todas as religies existentes na Terra16. Ao
promoverem um congresso, a fim de unificar as prticas umbandistas e fornecer sociedade
explicaes cientficas que demonstrem claramente as diferenas entre a Umbanda e as
demais religiosidades de matriz africana (vulgarmente rotuladas como macumbas), os
intelectuais umbandistas exerceram, segundo Hannah Arendt, a essncia do pensamento
poltico, isto , a capacidade de formar uma opinio favorvel religio17. A legitimidade do
novo culto nasceria, portanto, do debate sobre uma doutrina mnima que fosse capaz de
atenuar o preconceito existente entre as parcelas mais conservadoras da sociedade nacional
sobre o passado afro-indgena da Umbanda.
A anlise que o historiador Jorge Ferreira desenvolveu sobre as relaes dos trabalhadores
com o Estado Novo refora tambm nossa hiptese de que as estratgias adotadas pelos
umbandistas no poderiam estar desassociadas da ideologia estadonovista. Ferreira explica que o
processo de hegemonia instaurado pela ditadura Vargas no impedia as pessoas de defenderem
seus interesses, nem de buscarem sadas alternativas, ou de procurarem brechas nas
regulamentaes autoritrias e nem lhes impedia de perceber os limites impostos pelo governo18.
Assim, dentro dos padres polticos e culturais da poca, as pessoas davam novos e diferentes
significados aos cdigos, normas e valores autoritrios e, de acordo com suas experincias,
procuravam redirecion-los em seu prprio benefcio. Portanto, ao pleitearem a legitimidade da
nova religio, os intelectuais da Umbanda no deveriam adotar uma poltica de enfrentamento,
mas lanar mo da mesma estratgia adotada pelos trabalhadores nas correspondncias mantidas
com o regime personalista de Getlio Vargas: assimilar o projeto poltico-ideolgico
estadonovista de modo que fosse mais fcil sua insero na sociedade nacional.
16 FONTENELLE, Aluzio. A Umbanda atravs dos sculos. Rio de Janeiro: Aurora, 1953, p. 76. 17 ARENDT, Hannah. O que Poltica? 3 Edio. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002, p. 30. 18 FERREIRA, 1990, p. 193.
16
Vejamos: ao criar uma Federao para negociar com o Estado a regulamentao da
Umbanda e, consequentemente, o fim das represses policiais, os lderes do movimento
apropriavam-se do carter simblico que o vocbulo federao emprestava idia de
unidade nacional. Isto , os umbandistas souberam apreender elementos-chaves do discurso
estatal e redirecion-los ao seu favor, inserindo a Umbanda na estrutura do Estado pela via
institucional. Como nos ensina Aline Coutrot, os movimentos confessionais enquanto
representativos das aspiraes de seus membros so lugares de formao total,
particularmente cvica, extremamente rica, pois que eles se encarnam em aes concretas
desenvolvidas em comunidade19. Mesmo que a essncia desses movimentos no passe pelo
engajamento poltico-partidrio, a autora sublinha que so reconhecidos com freqncia pelo
poder pblico como engrenagens importantes de uma sociedade democrtica, uma vez que
so capazes de exercer presso sobre a opinio pblica. Jean-Jacques Becker, por sua vez,
sublinha que os governos que no mantm uma simbiose entre suas aes e os clamores da
opinio pblica correm riscos de desmoronar20. Deste modo, as negociaes para se obter
maior liberdade de culto devem ser analisadas como via de mo dupla, pois o Estado
varguista buscava tambm legitimar-se como um governo que estava atento aos anseios
populares, uma vez que mantinha canais de dilogo com os movimentos organizacionais. O
prprio Vargas reconhecia as organizaes de classe como colaboradoras da administrao
pblica. O ditador gabava-se de ter estabelecido no Brasil a verdadeira democracia, que no
seria a dos parlamentos, mas a que atende aos interesses do povo e consulta as suas
tendncias, atravs das organizaes sindicais e associaes produtoras21.
19 COUTROT, Aline. Religio e Poltica. In: RMOND (Org.). Por uma Histria Poltica. 2 Ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2003, p. 244. 20 O autor chega a essa concluso analisando o desempenho dos governos europeus no desenrolar da Primeira Guerra Mundial. Cf. BECKER. A Opinio Pblica. In: RMOND (Org.). Por uma Histria Poltica. 2 Ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2003, p. 204. 21 VARGAS. Apud PCAUT, Daniel. Os intelectuais e a poltica no Brasil. So Paulo: tica, 1990, p. 72
17
As comunicaes apresentadas durante o congresso, por sua vez, tm que ser
contextualizadas com a conjuntura poltica da poca. A grande dificuldade para que a religio se
legitimasse era o fato de a Umbanda possuir um passado afro-indgena no seio de uma
sociedade predominantemente catlica. Compreende-se, portanto, o esforo dos umbandistas
em disseminar uma srie de teorias que os afastassem das teias do Candombl e da macumba.
Aproximar-se do espiritismo de Kardec representava, naquele momento, o caminho mais vivel
Umbanda, principalmente porque o chefe da polcia poltica de Vargas, Filinto Mller,
pronunciara-se totalmente favorvel s atividades do Espiritismo, julgando-as inofensivas ao
regime22. Assim, na lgica daquele momento histrico, o caminho legitimidade passava pela
construo de uma identidade que ao mesmo tempo estivesse mais prxima do carter
cientfico da religio kardecista23 e o mais distante possvel das prticas religiosas de matriz
africana. Portanto, quando a nova religio foi apresentada como brasileira, os intelectuais
queriam dizer sociedade que a Umbanda no era apenas uma religio de origem afro-indgena,
mas o resultado da evoluo cultural do povo brasileiro. A estratgia era aproxim-la de uma
representao mestia24 da nacionalidade, to apreciada pelos idelogos do Estado varguista.
Os umbandistas no negavam a herana afro-indgena nas prticas rituais, mas
justificavam-na numa perspectiva evolucionista, prpria do discurso kardecista. Isto ,
valorizavam o ndio e o negro como importantes elementos formadores da nacionalidade,
22 Cf. MLLER, Filinto. As foras religiosas no Brasil do ponto de vista de suas influncias polticas e econmicas. Arquivo Fillinto Mller. Ref./Relatrio CHP-SIPS,I. CPDOC/Fundao Getlio Vargas-RJ. 23 Os adeptos da Umbanda identificavam-se a tal ponto com o Espiritismo que no se apresentavam como umbandistas, mas sim como espritas. Em todas as teses defendidas durante o congresso de Umbanda, seus proponentes sempre diziam que professavam o Espiritismo de Umbanda ou o Espiritismo na Lei de Umbanda. 24 Aprofunda-se, nesta poca, o mito de que o Brasil vivia em plena democracia racial. O mito da Democracia Racial foi estimulado pelos idelogos do Estado varguista, uma vez que se acreditava que a viabilidade socioeconmica do Pas residia no fato de que aqui no existiam conflitos tnicos e culturais como em outros pases. Frequentemente aponta-se Gilberto Freyre como o principal autor do conceito de Democracia Racial, contudo no se encontra uma linha em Casa Grande & Senzala que explique este conceito. Na verdade, trata-se de uma interpretao livre da famosa obra do pensador pernambucano realizada, primeiro, por Artur Ramos e, depois, por Roger Bastide. O que Freyre vinha defendendo, desde o incio da dcada de 1930, era que no Brasil existiria uma democracia social, uma vez que aqui era possvel a ascenso social de indivduos oriundos das mais diversas etnias. Freyre argumentava que a democracia social era a nica democracia possvel no perodo Vargas. Sobre uma analise diacrnica do conceito de Democracia Racial ver o artigo de Antnio Srgio Guimares, Democracia Racial (2003).
18
mas sob a tica da evoluo constante, capaz de aprimorar o que de selvagem e brbaro
prendia-os a um passado distante da civilizao25. Esta posio pode ser observada, por
exemplo, na tese que Martha Justina, representante da Cabana de Pai Joaquim de Loanda,
defendeu durante o Primeiro Congresso de Umbanda. Justina avaliava as prticas africanas
como coisas exticas e horripilantes26. Entretanto, argumentava que a Lei de Umbanda
possua um princpio evolutivo capaz de aprimor-la constantemente: deixava as grotas, as
furnas e as matas, fugia dos ignorantes e se infiltrava nas cidades para receber o banho de luz
da civilizao27. Artur Csar Isaia explica que os umbandistas daquele perodo tinham
necessidade de, ao mesmo tempo, apresentar uma religio com caractersticas sincrticas, de
fcil identificao popular, e distanci-la de contedos imagticos que a divorciavam do convvio
com os valores socialmente dominantes no Brasil da primeira metade do sculo XX28.
Para que a Umbanda pudesse dividir espao com a religio que detinha o monoplio do
sagrado29, seria necessrio obter o aval de parte da elite brasileira, aquela que se sentia atrada
pelo carter experimental e cientfico difundido pela doutrina kardecista30. A cincia, ento, se
transformaria em protagonista da ao legitimadora da religio umbandista, cujo resultado foi
demarcar os campos de ao dos lderes do movimento, distinguido-a nitidamente das prticas
afro-brasileiras. Como escreve Ortiz, na medida em que a Umbanda integra a linguagem
cientfica, ela se separa das supersties que constituem os demais cultos afro-brasileiros31.
25 ISAIA, Artur Csar. O Elogio ao Progresso na Obra dos Intelectuais de Umbanda. Anais do 6 Congresso da Associao Internacional de Lusitanistas. Lisboa: 1999a. Disponvel em . Acesso em 24 jul. 2003. 26 As prticas exticas e horripilantes as quais Martha Justina se refere incluem-se as observadas pelo Candombl, tais como raspagem, recolhimento em camarinhas, sacrifcios de animais etc. 27 JUSTINA, Martha. Utilidades da Lei de Umbanda. In: Anais..., 1942, p. 94. 28 ISAIA, 1999a, no paginado. 29 Os catlicos representavam 95% dos brasileiros na dcada de 1940. Trinta anos depois, a porcentagem dos que se diziam catlicos estava ainda acima dos 90%. Portanto, podemos dizer que a Religio Catlica detinha o monoplio do mercado da f no perodo estudado. Sobre os dados estatsticos ver ORTIZ, 1999, p. 62. 30 Kardec (1998?) define o Espiritismo como uma cincia que trata da natureza, da origem e do destino dos espritos e do seu posterior retorno ao mundo corporal. 31 ORTIZ. Op. Cit, p. 172.
19
A ttulo de exemplo podemos citar a tese de Eurico Moerbeck, representante da Tenda
Esprita F e Humildade no Congresso de Umbanda, na qual recorreu s tradies dos povos
orientais de banhar-se com ervas aromticas para explicar a eficcia teraputica dos banhos
de descarga. O umbandista argumentava que esses banhos teriam, entre outras propriedades,
a capacidade de tirar o demnio do corpo32. Segundo Moerbeck, se uma pessoa afetada por um
esprito mau conseguir chegar a uma sesso da chamada Lei de Umbanda, seria atendido
por uma entidade espiritual que identificaria a ao malfica do obsessor, prendendo-o e
enviando-o para o espao a fim de se regenerar; e o paciente tratado com uma srie de
banhos de descarga, posto que as ervas indicadas possuiriam a propriedade de substituir
fludos maus por bons, recuperaria o equilbrio e a sade de antes.33
Como se pode notar, de um modo irrestrito e at mesmo exagerado, noes de
Botnica, Filosofia, Fsica, Histria, Medicina e Qumica eram cuidadosamente mediatizados
pelo sacerdote-intelectual com o objetivo de justificar (domesticar) as prticas mgico-
religiosas que permaneciam na Umbanda. Afinal, a magia utilizada pela Umbanda era para a
caridade, ou seja, usada criteriosamente para fazer o bem.
1.2 Desenvolvimento temtico
Visto que nossa dissertao tem por objetivo analisar as estratgias de legitimao de
uma religio que se apresenta como brasileira, uma vez que sua estrutura religiosa reflete as
heranas das religiosidades dos povos amerndios, europeus e africanos, pareceu-nos correto
apresentar, no primeiro captulo, os elementos que permitiram a bricolagem de culturas to
diversas. Portanto, a ttulo introdutrio, realizaremos uma reviso bibliogrfica das relaes
32 MOERBECK, Eurico Lagden. Banhos de Descarga e Defumadores. In: Anais..., 1942, p. 127-133. 33 Idem. Ibidem.
20
com o sagrado mantidas no interior de cada grupo e a mtua interferncia a partir do
momento que passaram a conviver no solo brasileiro durante o processo de colonizao.
Acreditamos que foi a partir dessa matria-prima multicultural que os intelectuais da
religio puderam construir todo um arcabouo doutrinrio capaz de viabilizar a legitimao
das prticas umbandistas no interior da sociedade brasileira.
No captulo seguinte, revisaremos o perodo histrico compreendido entre a
anunciao34 da Umbanda (1908) e sua consolidao como movimento pblico e
organizado, com a fundao da Federao Esprita de Umbanda (1939) e a realizao do
Primeiro Congresso de Umbanda (1941). Foi nesse contexto histrico, e principalmente no
governo de Getlio Vargas, que se construiu o esprito nacionalista do brasileiro e se
valorizou a identidade mestia da populao. Tanto um quanto a outra ofereceram os
argumentos para consolidar a presena de uma religio popular no seio da sociedade, uma vez
que esta se apresentava como uma religio to mestia quanto a populao brasileira.
No terceiro captulo percorreremos a trajetria que levou a Macumba35 a desfrutar do
status de religio. Nosso objetivo ser, portanto, demonstrar que as estratgias adotadas pelos
lderes do Movimento Umbandista refletiam as aspiraes sociais daquele perodo histrico e
visavam inserir a nova religio em uma conjuntura de recriao dos valores nacionais. Nesta
perspectiva, os umbandistas foram capazes de mediar, simultaneamente, cdigos sociais,
polticos e religiosos para transformar magia em religio, curandeiros em sacerdotes,
assistencialismo em caridade e, conseqentemente, prestgio poltico em respeitabilidade
religiosa.
34 Tomo emprestado aqui o significado de anunciao a semelhana do que ocorreu com a passagem bblica na qual o Anjo Gabriel apareceu Virgem Maria para anunciar a vinda do messias: Jesus. No caso da Umbanda, ocorreu a manifestao do Caboclo das Sete Encruzilhadas, no mdium Zlio de Moraes, durante uma sesso realizada na Federao Esprita de Niteri, no dia 15 de novembro de 1908. Na oportunidade, o esprito anunciou o incio de uma nova religio que falaria aos humildes. 35 Defino macumba como designao genrica dos cultos sincrticos afro-brasileiros derivados da cabula banto, influenciado pelo Candombl jeje-nag e com elementos amerndios e catlicos.
21
2 Jesus e Oxal na terra de Yurupari36
No fundo so misturas. Misturam-se as almas nas coisas; misturam-se as coisas nas almas. Misturam-se as vidas, e assim que as pessoas e as coisas misturadas saem cada qual de sua esfera e se misturam: o que precisamente o contrato e a troca (MAUSS, 1974, p. 71).
Antes de entrar no objeto de pesquisa propriamente dito a anlise do processo de
legitimao da Umbanda , faz-se necessrio percorrermos os caminhos da religiosidade
brasileira, a fim de apresentar os elementos multiculturais que contriburam para a construo
da Umbanda. Isto , a bricolagem de estruturas culturais distintas que permitiram o
amalgamento religioso das etnias amerndias, europias e africanas. Neste captulo, portanto,
a ttulo introdutrio, ser realizada uma breve reviso bibliogrfica na qual se destacam as
relaes com o sagrado mantidas no interior de cada grupo tnico e a mtua interferncia a
partir do momento que passaram a conviver no solo brasileiro com a colonizao portuguesa.
Nosso objetivo, neste primeiro momento, ser destacar que o sincretismo fluido e
mvel, no rgido e nem se cristaliza. Como nos ensina Roger Bastide, as correspondncias
nascem e morrem conforme a poca; mas a variabilidade ainda maior quando a estudamos
no espao. O Brasil se formou a partir de povoados independentes, afastados uns dos outros
por verdadeiros desertos, sem outra comunicao entre si exceto o mar37. Portanto, quando
vrias religiosidades se encontram, como ocorreu no Brasil, tende a haver, por um lado, a
estratificao de uma delas, cujo simbolismo ser considerado superior ou mais
verdadeiro rejeitando-se os demais. Por outro lado, existir a tendncia de as religies
consideradas inferiores estabelecerem equivalncias entre as divindades tidas como
36 Uma das lendas que mais impressionou os jesutas no contato com a cultura amerndia foi o culto da cruz, com a revelao sobre um salvador denominado de Yurupari. Este nome quer dizer o mrtir, o torturado, o sacrificado... tal e qual Jesus no sacrifcio da cruz. Os jesutas, entretanto, diante de semelhante lenda, trataram de associ-lo ao demnio. Sobre a lenda de Yurupari ver MTRAUX, Aufred. A Religio dos Tupinambs. 2 ed. So Paulo: Nacional, 1979. 37 BASTIDE. Roger. As Religies Africanas no Brasil. So Paulo: EDUSP, v. 2, 1971, p. 371.
22
superiores, colocando-as num mesmo nvel de valorizao sem que isto, contudo, venha
afetar significativamente as peculiaridades de cada religiosidade.
O que facilitar o processo de sincretismo ser a homogeneidade do pensamento
mgico intimamente ligado ao desejo individual ou coletivo encontrado em todas as
culturas e em todas as pocas38. Assim, o sincretismo religioso, do modo em que se
notabilizou entre as religies afro-brasileiras, teve como agente facilitador vrios pontos de
convergncia e semelhana encontrados tanto nas prticas religiosas dos nativos quanto na
dos negros trazidos como escravos da frica e, tambm, com o catolicismo popular
implantado junto com a catequese jesutica39.
Foram as semelhanas entre as religies, mais do que o movimento de desagregao
cultural exercido pela coero senhorial, que permitiram o sincretismo entre Yurupari, Jesus
Cristo e Oxal. Foi a devoo aos inmeros santos catlicos que permitiu aos africanos
estabelecerem um quadro de aproximaes com o panteo iorub40. Na mesma linha de
raciocnio, pode-se dizer que foi a semelhana entre o culto aos ancestrais dos negros bantos
que aproximou a macumba carioca do kardecismo francs, na virado do sculo XIX para o
sculo XX. Nesta perspectiva, sero apresentadas, ao longo deste captulo, as relaes de
dominao e dependncia entabuladas tanto no Brasil monrquico (colonial e imperial), bem
como indicaremos as contribuies de cada cultura na formao de uma religio to mestia
quanto o povo brasileiro: a Umbanda.
Para falar da origem da religio umbandista ser preciso, antes, explicar o contexto
histrico no qual ocorreu a inter-relao das trs religies que se encontraram na terra de
38 BASTIDE, 1971, p. 386. 39 A lei do pensamento religioso a do simbolismo, das analogias ou das correspondncias msticas e, a lei do sincretismo, a da acumulao, da intensificao e da adio. Cf. Idem. Ibidem, p. 382. 40 Pode-se at afirmar, por um lado, que o catolicismo uma religio monotesta na qual se identifica um politesmo latente. Por outro lado, encontramos no complexo panteo africano o conceito de uma divindade suprema (Olorum) que criou os demais orixs para auxili-lo a governar o universo, o que nos permite identificar a existncia de um monotesmo latente nas devoes iorub. Cf. Item 2.2, p. 29 desta dissertao.
23
Pindorama aps a chegada dos portugueses: as crenas dos grupos amerndios, o catolicismo
do colonizador e as religies das vrias etnias africanas. Assim, quando Portugal iniciou a
colonizao do Brasil, no incio do sculo XVI, trouxe tambm a religio oficial: o
catolicismo. A Igreja Catlica sofria, naquele momento, crticas por parte dos reformistas e
perdia adeptos para as religies protestantes que se formavam na Europa. A expanso
ocidental representou, portanto, a possibilidade de ampliar a influncia da igreja papal por
meio da converso dos gentios do Novo Mundo. Para a Coroa portuguesa, a evangelizao
dos nativos tambm apresentava vantagem, uma vez que a Igreja ao torn-los temente ao
Deus dos cristos deixava-os submissos aos interesses da metrpole41.
A Igreja no Brasil, portanto, nasce com a estruturao de uma sociedade subordinada e
dependente do sistema capitalista-mercantil em expanso, no qual a colnia devia abastecer a
metrpole com metais preciosos e produtos agrcolas. Neste contexto, a catequese dos gentios
e a integrao da f crist na vida cotidiana do Novo Mundo faziam parte de uma estratgia de
governo e pea fundamental ao exerccio do poder, legitimando a colonizao. Neste sentido,
por meio do Padroado Rgio das ndias42, a Igreja de Roma colocou nas mos da Coroa a
responsabilidade de evangelizao da colnia. Eram os reis catlicos que enviavam os
missionrios e que tinham o direito de receber os dzimos para financiar a evangelizao e o
culto. Pablo Richard explica que a delegao do direito de padroado aos reis da Espanha e
Portugal manifestava a fraqueza da Igreja Catlica, absorvida no sculo XVI pela Reforma
41 D. Joo III em carta ao Governador Geral Tom de Souza reiterava o carter cristianizador da monarquia portuguesa: a principal cousa que me moveu a mandar povoar as ditas terras do Brasil foi para que a gente dela se convertesse nossa santa f catlica. (regimento de Tom de Souza. Apud SOUZA, Laura de Mello e. O Diabo e a Terra de Santa Cruz. So Paulo: Cia. das Letras, 1986, p. 32). 42 O direito de padroado dos reis de Portugal era uma forma tpica de compromisso entre a Igreja de Roma e o governo portugus, no qual o monarca passava a exercer ao mesmo tempo o governo civil e religioso, principalmente nas colnias. O padroado conferia Coroa portuguesa o direito de cobrana e administrao dos dzimos eclesisticos taxa de contribuio dos fiis para a Igreja a fim de sustentar o culto e seus ministros. Alm disso, cabia ao monarca apresentar nomes para ocupar o governo das dioceses, das parquias e outros benefcios eclesisticos, bem como a obrigao de zelar pela construo e conservao dos templos e de remunerar o clero e promover a expanso da f crist. Cf. HOORNAERT, Eduardo et al. Histria da Igreja no Brasil. 2 Edio. Petrpolis, RJ: Vozes, 1979. 11 v. 2. p. 163-4.
24
protestante e pelas guerras de religio. sua fraqueza que a obriga a delegar ao poder civil a
cristianizao da Amrica43.
O cultivo da cana de acar logo demonstrou potencial econmico, incentivando a
expanso da lavoura canavieira e despertando, conseqentemente, o interesse de holandeses e
franceses em se instalarem no extenso litoral brasileiro44. A metrpole portuguesa, com o
objetivo de exercer uma colonizao mais efetiva e um controle poltico mais intenso sobre o
territrio, instalou o Governo Geral em 1549 na capitania da Bahia, fundando a cidade de
Salvador. Foi neste perodo que chegaram as primeiras misses jesuticas a fim de domesticar
os ndios que ameaavam os engenhos de acar. A necessidade de amansar os nativos
atendia tambm aos interesses da produo aucareira, tendo em vista que a lavoura exigia
grandes contingentes de trabalhadores. A mo-de-obra indgena, contudo, no se adaptou ao
trabalho cotidiano e foi substituda pela de origem africana. Portugal, alis, era especializado
no trfico negreiro e no teve dificuldades de abastecer a colnia com escravos.
2.1 A religiosidade amerndia
A presena portuguesa nos primeiros tempos da colonizao representou um
verdadeiro genocdio45 contra a populao amerndia. Os que no foram mortos acabaram
escravizados e convertidos f Catlica. Todavia, como costuma acontecer entre culturas
diferentes que se encontram, os grupos indgenas no abandonaram totalmente as crenas
43 RICHARD, Pablo. A Morte da Cristandade e Nascimento da Igreja. So Paulo: Paulinas. 1982. p. 40. 44 Sobre holandeses e a questo do acar ver MELLO, Evaldo Cabral de. O negcio do Brasil: Portugal, Pases Baixos e o Nordeste, 1641-1669. Rio de Janeiro: Topbooks, 1998; e Olinda restaurada: guerra e acar no Nordeste - 1630-1654. 2 Edio. Rio de Janeiro: Topbooks, 1998. 45 O termo genocdio pode parecer anacrnico ao perodo de colonizao brasileira, mas a opo de empreg-lo visa qualificar melhor a ao do colonizador: uma populao estimada em cinco milhes de nativos, em 1500, foi reduzida a 200 mil indivduos. Tribos foram totalmente dizimadas, como a dos Tupinambs, que habitavam no litoral brasileiro. Cf. LIGIRO, Jos Luiz (Zeca) e DANDARA. Umbanda: Paz, Liberdade e Cura. Rio de Janeiro: Nova Era, 1998. p. 49.
25
tradicionais. Assim, ao mesmo tempo em que os ndios associaram as divindades nativas aos
santos46 e ao Deus dos catlicos, estes associaram os demnios aos espritos indgenas.
muito difcil reconstituir o que seriam as religies amerndias. Pelas poucas
informaes que se tem, e comparando-se com as prticas atuais dos grupos sobreviventes,
pode-se ter apenas uma idia das caractersticas bsicas dessa religiosidade. O ponto central
era o culto natureza deificada, valendo-se tambm de procedimentos mgicos para influir na
vida das pessoas e no mundo fsico, sobretudo atravs das almas de plantas e animais. O
paj ou xam era quem tinha acesso ao mundo dos mortos e dos espritos da floresta. A ele
competia, tambm, realizar rituais de cura, expulsar maus espritos e desfazer feitios. Pela
interveno e auxlio direto dos bons espritos, o paj poderia predizer o futuro, fazer chover,
interromper as tempestades e imunizar a tribo das pestes e proteger os guerreiros nas batalhas.
A ingesto de alimentos e bebidas fermentadas em muitos grupos tinha uma funo
ritual. At mesmo a antropofagia, que caracterizava os Tupinambs, se revestia de um tom
sagrado47. O uso de instrumentos mgicos, como chocalhos e adornos feitos com penas, era
indispensvel para o cerimonial do paj. A fumaa derivada da queima do tabaco tambm
assumia um papel ritualstico importante, pois apresentava a propriedade de restaurar a sade.
Os Guaranis, assim como os Tupinambs, acreditavam na fora potencial contida no corpo do
xam. Estavam convencidos de que o fumo soprado pelo mdico-feiticeiro sobre o paciente
tinha o dom de reforar o poder mgico de seu hlito. Assim como poderia restaurar a sade,
o paj tambm poderia levar a morte ao inimigo, bastando apenas cuspir-lhe no rosto48.
Entre outras atribuies do paj, Mtraux identifica duas atividades nitidamente
oriundas de uma assimilao da atividade sacerdotal dos padres missionrios: ouvir confisses
46 Sobre esse tema ver VAINFAS, Ronaldo. A Heresia dos ndios. So Paulo: Cia. das Letras, 1996. 47 Florestan Fernandes interpretou a prtica do canibalismo entre os Tupinambs como um ritual de sacralizao do esprito de coragem do inimigo e da vontade de preservar o patrimnio cultural do invadido pelo inimigo. No haveria nisso nenhum sadismo nem desprezo pelo inimigo, mas sim a captao da coragem que nele habitava. Sobre o tema ver, deste autor, A Funo Social da Guerra na Sociedade Tupinamb. 2 edio. So Paulo: Pioneira/EDUSP, 1970. p. 273-384. 48 MTRAUX, 1979, p. 72.
26
e aspergir gua benta por sobre os fiis. O paj ouvia, principalmente, as confisses das
mulheres, fossem elas casadas ou no. Eram ameaadas com tormentos espirituais aquelas
que se recusavam a se confessar. Assim que se anunciava a visita do paj aldeia, andam as
mulheres de duas em duas pelas casas, dizendo publicamente as faltas que fizeram a seus
maridos umas s outras, e pedindo perdo delas49. Segundo o padre Manoel da Nbrega,
essas confisses estavam em estreita relao com os deveres dos indgenas e, talvez, dizia
respeito vida sexual e s obrigaes matrimoniais50.
A cerimnia de asperso de gua, nos parece, revestida de um carter mgico e
purificador. Tal ritual visava imunizar a tribo contra as doenas e os guerreiros ficariam
protegidos das flechas inimigas.
Consiste em encher grandes potes de barro, proferindo secretamente algumas palavras sua superfcie e soprando dentro deles fumo de petun. Depois, untando-se com um pouco de p que guardam em casa, os ndios pem-se a danar. Finalmente, o feiticeiro, tomando um ramo de folhas, que mergulha nos potes, asperge, como os mesmo, a companhia. Isso feito, toma cada qual dessa gua em cuias com ela banhando a si e a seus filhos. 51
Estudos antropolgicos destacam que o carter descentralizador da cosmogonia
indgena acrescentava uma dificuldade a mais converso dos gentios a religio Catlica.
Uma vez que os ndios no eram capazes de identificar uma entidade onipotente no prprio
sistema religioso, no incorporavam efetivamente o monotesmo cristo52. Mtraux ressalta
que Tup seria uma divindade relativa gnese dos heris-fundadores cujos atributos estavam
associados aos raios e aos troves. Acredita, entretanto, que a associao de Tup ao deus
cristo se deva pelo fato de os nativos acreditarem que essa divindade morava no cu. A
confuso aumentaria quando os padres comearam a falar aos ndios do carter celeste de seu
Deus e do poder do mesmo sobre os elementos53.
49 MTRAUX, 1979, p. 73. 50 NBREGA, Manoel. Informaes da terra do Brasil. Apud MTRAUX, 1979, p. 73. 51 Idem. Ibidem. 52 LIGIRO e DANDARA, 1998, p. 46. 53 MTRAUX. Op. Cit, p.43.
27
Assim, para catequizar os indgenas, os missionrios combatiam os hbitos e crenas
que julgavam mais hediondos e pecaminosos, como a antropofagia, a magia e a poligamia.
Contudo, para que assimilassem melhor a espiritualidade crist, os jesutas deixavam que eles
adaptassem ao catolicismo prticas que no ofendessem aos princpios da doutrina catlica. O
consumo ritual de alimentos, por exemplo, uma caracterstica da religio indgena, foi
revestido de um sentimento cristo. A farinha de mandioca abenoada pelo padre aos
domingos, aps a missa, substitua a hstia tradicional54.
Sob essas condies, a converso do gentio se fez pela unio das crenas que lhe eram
peculiares com as crenas catlicas. As Santidades, movimento comum no final do sculo
XVI em que o xamanismo indgena e a antropofagia somavam-se devoo aos santos
catlicos, foi um dos mais significativos exemplos desse sincretismo:
Em 1583, manifestou-se um desses movimentos em forma bastante expressiva na Bahia. Pelas imediaes das vilas apareceram grandes grupos de indgenas com insgnias e emblemas catlicos, mas com danas, cantos e instrumentos; nesses grupos manifestavam-se transe, faziam sacrifcios de crianas e praticavam-se ritos, aparentemente expiatrios; atacavam fazendas e engenhos e pregavam que seus ancestrais mortos h muito tempo deveriam chegar em navios para livrar os ndios da servido.55
Na primeira visita do Santo Ofcio da inquisio ao Brasil encontra-se a descrio de
uma Santidade que foi perseguida pela Igreja. Nesse culto indgena, cujo chefe era
denominado de papa, idolatrava-se um dolo de pedra que recebia o nome de Maria, o qual
tinha funo de promover a incorporao do esprito da santidade (Esprito Santo) no fiel
com a utilizao do tabaco, conforme prtica comum entre os pajs56. Laura de Mello e Souza
narra outro caso de Santidade registrado pela mesa do Santo Ofcio, na qual um senhor de
engenho permitia em suas terras o culto sincrtico realizado por ndios em que se destacavam
54 AZEVEDO, Thales de. Catequese e Aculturao. In: SCHADEN, Egon (Org.). Leituras de etnologia Brasileiras. So Paulo: Nacional, 1976. p. 378. 55 Idem. Ibidem. p. 382. 56 BASTIDE, 1971, p. 243.
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uma nativa a quem chamavam de Santa Maria e seu filho de Santinho 57. Os adeptos tinham
um templo e realizavam cerimnias que arremedavam os cultos cristos. A conivncia do
senhor de engenho ao culto se dava como forma de controle social a fim de obter a
colaborao dos ndios para a produo aucareira. Como se v, o ndio, mesmo que
convertido ao catolicismo, no deixou de acreditar nos prprios deuses, de cultuar os espritos
das florestas ou de reverenciar os ancestrais da tribo.
No que diz respeito s relaes entre ndios e negros no Brasil colnia, como grupos
subordinados a ao da metrpole portuguesa, observa-se que foram tanto de aproximao
quanto de hostilidade. A ideologia do colonizador visava promover uma intrnseca repulsa
entre os dois grupos, evitando-se assim a formao de um esprito de classe identificado
pelo processo de subordinao. Maria Helena Concone entende a idia de oposio racial
entre negros e ndios como uma inveno dos brancos que impediria a formao de uma
aliana entre raas exploradas contra a raa dominadora58. A estratgia de jogar ndios contra
negros revelou-se produtiva e a ideologia de oposio racial se prolongou at a atualidade. A
autora relata que durante o perodo em que cursava na escola primria a etnologia da
populao brasileira, houve a informao adicional de que o mestio de ndio e negro, o
cafuso, era extraordinariamente feio59 e pouco comum de se encontrar.
A tradio amerndia evocada pelos umbandistas como um elo de ligao direta com
os povos do Brasil nativo e sua espiritualidade, cuja importncia pode ser percebida na
religio pela manifestao dos caboclos60. Para Patrcia Birman, a concepo deste
57 SOUZA, 1986, p. 95. 58 CONCONE, Maria Helena Villas Boas. Umbanda uma religio brasileira. So Paulo: FFLCH/USP-CERU, 1987. p. 52. 59 Idem. Ibidem. p. 53. 60 Caboclo uma designao genrica da manifestao espiritual do antepassado indgena nas religies afro-indgenas.
29
personagem se apia numa idia romntica da natureza, vista como fonte de emanao de
qualidades que se vinculam ao estado selvagem que ainda no fora contaminado pela
civilizao. Os caboclos, por essa razo, so representados como personagens altivos,
orgulhosos, indomveis61. Jos Luiz Ligiero, contudo, sublinha que esse modelo de indgena,
idealizado pela Umbanda, esbarra na rejeio por parte dos atuais representantes dos grupos
indgenas condio de caboclo62. Este termo carregaria conotaes pejorativas, uma vez que
designaria ndios mansos, que se submeteram dominao das elites luso-brasileiras e
abdicaram da prpria identidade. Para o autor, a transformao do ndio em caboclo faria
parte de um processo que se iniciara na converso de uma alma selvagem f crist63.
Embora os atuais herdeiros da tradio indgena se recusem a identificar-se com a figura
do caboclo, os umbandistas parecem crer que estes trazem consigo os ares de um Brasil
idlico, anterior colonizao. Ligiro at concorda que o modelo do caboclo foi romantizada
na Umbanda. Entretanto, ele argumenta que os romances indianistas, como os de Jos de
Alencar, no poderiam ser responsabilizados pela consagrao de uma imagem estereotipada
do ndio brasileiro nas religies afro-indgenas, como sugerem alguns pesquisadores64. Para o
autor, elas estavam inseridas num contexto religioso marcado pela oralidade: numa
populao iletrada, uma religio popular dificilmente ter que buscar referncias escritas
quando a linguagem viva das ruas oferece amplo acesso s mais variadas fontes65. Ele
explica que o ndio-caboclo cultuado na Umbanda o ndio semi-aculturado pela convivncia
prolongada com a civilizao:
(...) fala um portugus coloquial, pronunciado com sotaque prprio e mesclado com palavras e expresses emprestadas de seus idiomas nativos como de lnguas africanas. O caboclo que vem de Aruanda (e no do
61 BIRMAN, Patrcia. O que Umbanda. So Paulo: Brasiliense, 1983, p. 38-39. 62 LIGIERO e DANDARA, 1998, p45. 63 Idem, ibidem. 64 Id. Ibid, p. 48. 65 Id. Ibid.
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Moren66) o sobrevivente tenaz do genocdio que massacrou tantas e tantas tribos. 67
2.2 Catolicismo: uma religio obrigatria
Um ambiente profundamente religioso marcou a historia da colonizao brasileira. As
marcas comearam a partir do primeiro nome com o qual foi batizada a nova possesso
lusitana (Terra de Santa Cruz); no ato de mandar celebrar a primeira missa de ao de graas;
nos nomes das primeiras vilas e sesmarias aqui fundadas (So Vicente e Santos); e at mesmo
na forma tradicional de ocupao do espao nas cidades brasileiras, que geralmente cresceram
tendo como centro a praa onde se destacava a igreja. De fato, missas, casamentos, batizados,
exorcismo, procisses so eventos da liturgia catlica cujas funes e significados esto
profundamente enraizados no sistema de valores do brasileiro. Observa-se a presena do
catolicismo at mesmo nas religies afro-brasileiras: como a presena fsica de Jesus, da
Virgem Maria e de inmeros santos nos altares; no acentuado uso de velas; e at, nos nveis
mais abstratos, no conceito de prtica caridade baseada em dogmas cristos.
Penso que deveramos retornar ao perodo colonial para explicar a permanncia das
prticas catlicas ainda hoje no inconsciente do povo brasileiro, quando professar a f crist
tinha um carter obrigatrio68. Isto , professar outra f que no fosse a crist era correr o risco
de ser considerado herege e, tambm, inimigo do rei cujo poder provinha de Deus. Naquela
poca, a Igreja Catlica portuguesa dispunha da mais violenta e arbitrria das formas de
controle e represso aos desviantes do catolicismo: o tribunal do Santo Ofcio da inquisio69.
66 Aruanda o universo mtico onde habitam os espritos que trabalham na Umbanda. E o Moren o universo indgena no qual espritos de humanos, animais e divindades coexistem em harmonia dinmica. 67 LIGIERO e DANDARA, 1998, p. 48-49. 68 HOORNAERT, Eduardo. Formao do Catolicismo Brasileiro. 3 Ed. Petrpolis: Vozes, 1991. p. 13. 69 Estabelecido pela Igreja na Europa, o Santo Ofcio tinha como objetivo punir os praticantes de atos mgicos (bruxarias, feitiarias ou curandeirismo), de aberraes sexuais ou de outras atividades pags. Freqentemente, esses atos eram atribudos influncia do demnio. A Igreja Catlica portuguesa foi uma das ltimas a extinguir esse tribunal. Cf. LIGIRO e DANDARA, 1998, p. 58.
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No Brasil, o tribunal no chegou a se estabelecer propriamente, mas em visitaes
Bahia e a Pernambuco, em 1591, e ao Gro-Par e Maranho, de 1763 a 1768. Processou
muitos brancos, ndios e negros, sob a acusao de feitiaria ou de luxria, resultando na
deportao e julgamento pela inquisio em Portugal70. Eduardo Hoornaert destaca que os
representantes do Santo Ofcio valeram-se at da suspeio de ser cristo-novo para denunciar,
deportar e confiscar os bens de brasileiros bem sucedidos nos empreendimentos coloniais.
Diante deste clima de medo criado pelas denunciaes, visitaes deportaes, represses e confisco, os brasileiros reagiram de maneira inteligente: criaram um catolicismo ostensivo, patente aos olhos de todos, praticado sobretudo em lugares pblicos, bem pronunciado e cheio de invocaes ortodoxas a Deus, Nossa Senhora, e santos. Todos tinham que ser muito catlicos para garantir a sua posio na sociedade, e no cair na suspeita de heresia. 71
Nestas condies, o catolicismo brasileiro tinha que ficar firmemente estabelecido na
vida pblica. At mesmo o costume de homenagear os santos dando-lhes o nome s casas
comerciais, no provinha de uma f espontnea. Pelo contrrio, a ostensiva religiosidade
brasileira, daquela poca, foi em parte condicionada pela simples lei da sobrevivncia:
proteger a casa comercial e o engenho sob a invocao religiosa de um santo era uma das
possibilidades de se escapar da desconfiana dos representantes da inquisio72.
Ao que nos parece, a empresa colonial fora interpretada pela Coroa portuguesa como uma
empresa sagrada. Dom Joo III afirmara, em carta a Tom de Souza, que a principal motivao
para povoar o Brasil era a converso dos indgenas f catlica. Isso nos leva a acreditar que as
navegaes eram encaradas como cruzadas, que os ndios eram gentios a serem convertidos e a
luta contra os indgenas era uma guerra santa. A mentalidade lusitana estava, portanto, marcada
pelo signo das cruzadas: na melhor tradio ibrica de conquista e reconquista aps o domnio
70 Sobre o tema ver os trabalhos de SOUZA (1986) e VAINFAS, Ronaldo. Trpicos dos Pecados. So Paulo: Cia. das Letras, 1989. 71 HOORNAERT, 1991, p. 16. 72 Idem. Ibidem, p. 19.
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rabe73. Padre Antnio Vieira recorre ao mito fundador do reino de Portugal para justificar a
mentalidade missionria do povo portugus: na vspera da vitria de Dom Afonso I sobre os
mouros, ele havia recebido uma mensagem divina na qual repetia as palavras de Jav a Gedeo no
antigo testamento quero em ti e na tua prosperidade estabelecer o meu imprio. Portanto, para
Vieira, todos os reis so de Deus, mas os outros reis so de Deus feito pelos homens: o rei de
Portugal de Deus e feito por Deus e por isso mais propriamente seu. Logo, conclui o jesuta, o
portugus tem a obrigao de a crer (na f crist) e de a propagar74. Por essa razo que uma
cruz precisava ser fincada como padro de posse da terra em nome de Cristo, uma primeira
missa tinha que ser celebrada e a construo de capelas surgiu como tantos outros sinais de posse
da nova terra em nome da religio. Foi com a interveno da Coroa portuguesa que o catolicismo
floresceu no Brasil e que todo o sistema catlico adquiriu o significado de uma ideologia para o
Estado: o batismo tornou-se a redeno do cativeiro; a missa tornou-se um instrumento de
confraternizao entre brancos e ndios; e a escravido negra tornou-se um meio de salvao e
uma entrada para o reino de Deus.
Com relao aos nativos, a Igreja Catlica usou no Brasil a mesma estratgia adotada na
Amrica espanhola, apoiando a escravido negra como pretexto para a proteo dos ndios que,
livres da explorao escravista mais direta, eram utilizados como servos nas misses jesutas.
Este fato pode ser observado na defesa que o padre Antnio Vieira fez a respeito da liberdade
dos nativos: os ndios so livres por vontade de Deus, contudo eles vivem em uma ignorncia
invencvel, de sorte que a catequese lhe s necessria para a salvao75. Aos poucos, os negros
tambm foram incorporados no espectro catlico como seres possuidores de alma. Em outras
palavras, passveis converso ao cristianismo. Primeiro, o catolicismo fora imposto aos
escravos como religio oficial. Depois, para atrair a crescente clientela de negros livres, a Igreja
criaria a irmandade dos pretos, canonizaria santos negros e incorporaria manifestaes culturais
73 HOORNAERT, 1991, p. 32. 74 VIEIRA, Padre Antnio. Apud HOORNAERT, 1991, p. 35. 75 HOORNAERT, 1991, p. 36.
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de origem africana em rituais catlicos. Assim, estabelecido os mecanismos de converso de
todos os segmentos da sociedade brasileira, o catolicismo foi se tornando cada vez mais
integrado ao cotidiano da vida colonial, sendo vivido de modo intenso durante as festas,
procisses, ladainhas e tantas outras atividades do extenso calendrio anual da Igreja.
Laura de Mello e Souza, entretanto, chama a ateno para a originalidade do
catolicismo implantado no Brasil. Como a religio oferecia o arcabouo ideolgico do sistema
colonial, a Igreja via-se tambm na obrigao paradoxal de justificar a utilizao da mo-de-
obra escrava e atribuir ao trabalho rduo no engenho uma forma de se expiar os pecados e
alcanar a graa divina76. O padre Antnio Vieira em seus sermes compara a vida dos
escravos paixo de Cristo:
(...) no h trabalho nem gnero de vida no mundo mais parecido Cruz e Paixo de Cristo que o vosso em um destes engenhos. Bem-aventurados vs se soubreis conhecer a fortuna do vosso estado, e com a conformidade e imitao de to alta e divina semelhana aproveitar e santificar o trabalho! 77
Eduardo Hoornaert, por sua vez, avalia que a sacralizao da sociedade implantada na
colnia permitiu o surgimento de um catolicismo do tipo patriarcal, cuja principal funo
seria impedir o nascimento de uma conscincia de comunidade de trabalhadores nos
engenhos, nas fazendas e nas mineraes78. O catolicismo patriarcal exerceria, portanto, a
funo de perpetuar o poder do Estado. Para o historiador, trs fatores contriburam para a
formao deste tipo de catolicismo: a fraqueza da metrpole que desde o incio optou pela
centralizao do poder nas mos dos donatrios e dos senhores locais em geral; o pouco
interesse demonstrado por Portugal pelo Brasil antes do ciclo de mineraes no sculo XVIII;
e a fragilidade das estruturas hierrquicas no catolicismo colonial devido vigncia do
Padroado Rgio, no qual a Coroa portuguesa exercia tanto o governo civil quanto o religioso.
76 SOUZA, 1986, p. 87-88. 77 VIEIRA, Padre Antnio. Sermes. So Paulo: Hedra, 2001. v. 2, p. 309. 78 HOORNAERT. Op. Cit, p. 74.
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O historiador explica que o senhor local era quem tirava mais vantagem desse tipo de
religiosidade: foi ele que procurava orientar e plasmar a religiosidade do povo escravo, que
procurava aliana com algum padre disponvel e o submetia ao seu poderio, que contagiava
religio com escravismo79. Assim, somos levados a pensar que o catolicismo patriarcal fazia
do sacerdote um padre capelo, sem muita ligao com a hierarquia eclesistica e nem com
os fiis, uma vez que, ao pregar a conformidade, procurava manter uma sociedade de ordens.
Se de um lado, a imposio da f catlica tinha carter de controle social, sob pena dos
desviantes acabarem na fogueira da Inquisio; de outro, paradoxalmente, as prticas peculiares
de um catolicismo popular, to comum entre os ibricos, adquiriram na colnia um carter mgico
ao ponto de possibilitar o sincretismo com as devoes de indgenas e de escravos. Em face de um
Deus-juiz, ao mesmo tempo distante e onipresente, o fiel sentia necessidade de recorrer a
intermedirios (santos, anjos e mrtires), dedicando-lhes rezas e fazendo-lhes promessas, a fim de
que seus pedidos chegassem mais depressa aos ouvidos do Todo-Poderoso. Santos guerreiros
como Santo Antnio, So Sebastio, So Jorge, So Miguel e outros, aludiam condio de
conquistadores dos portugueses em suas lutas contra os ndios, os invasores e tambm contra
as duras condies de povoamento da terra. So Roque, So Lzaro, So Brs e Nossa
Senhora das Cabeas e outros santos que curavam doenas passveis de serem contradas
nos trpicos tambm eram constantemente invocados nas promessas e ladainhas.
A prtica catlica de solicitar a intercesso dos santos junto a Deus a favor dos fiis
aproxima-se inequivocamente da relao estrutural da cosmologia africana, na qual o orix
considerado como intercessor do homem junto a Olorum. Podemos, inclusive, chegar ao
ponto de avaliar, de um lado, que existe um politesmo latente na religio catlica; enquanto
que, por outro lado, podemos identificar um latente monotesmo nas devoes Iorub, uma
79 HOORNAERT, 1991, p. 75.
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vez que existe no complexo panteo africano o conceito de divindade suprema (Olorum) que
criou os demais orixs para auxili-lo a governar o universo. Como se pode notar, a
religiosidade professada pelo povo no era fruto de uma preocupao com a salvao eterna,
mas uma incessante busca pela realizao de mltiplas exigncias da vida cotidiana.
A hierarquia catlica proibia as supersties pags e os atos considerados mgicos,
punindo quem os praticasse. Entretanto, sem negar a existncia da magia, defendia que eram
legtimas somente as intervenes do sobrenatural patrocinadas pela prpria Igreja80. Por
exemplo, na Europa seiscentista, fitas cortadas pelos padres com a medida das imagens dos
santos eram amarradas na cintura para remover dores, doenas e realizar o pedido de quem as
viesse guardar. Os bentinhos, as figuras e medalhas de santos e as oraes escritas depois de
benzidas pelos sacerdotes eram postas entre livros, debaixo dos travesseiros ou dobrados e
costurados em forma de uma pequena bolsa, carregada junto ao corpo para combater os males
e garantir a proteo do santo retratado. Aspergir gua benta, benzer com o sinal da cruz e
repetir preces consideradas poderosas afastavam os maus espritos. At mesmo o futuro
poderia ser consultado com a leitura do Evangelho. As pessoas acreditavam que assim
consultava-se diretamente a Deus, pois, segundo os ensinamentos do clero, no Evangelho
estavam contidas as suas palavras e a sua vontade81.
A missa e os sacramentos tinham, aos olhos do povo, a fora de atos mgicos. O
mistrio da eucaristia no qual o padre realiza a transubstanciao do po e do vinho no
corpo e sangue de Cristo, posteriormente ingerido pelos fiis para que fossem absolvidos dos
pecados era tido como uma demonstrao do poder divino. As ladainhas ritmadas, as rezas
proferidas em latim, o som dos sinos e campnulas, a imponncia dos trajes sacerdotais, o
altar consagrado com relquias de santos e purificado pela fumaa aromtica dos turbulos,
enfim todos estes aspectos contribuam para que o ato litrgico exercesse um fascnio mgico
80 SOUZA, 1986, p. 89. 81 Idem. Ibidem, p. 161.
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sobre os fiis como se ali estivesse sendo aberto um acesso privilegiado ao mundo do
sobrenatural sob os olhos extasiados dos anjos e santos pintados nos tetos das capelas82.
Para Roger Bastide, o fascnio pelo pensamento mgico do qual a Igreja
deliberadamente soube tirar vantagens para converter, reprimir e atrair os fiis est ligado ao
poder do desejo e guarda toda a ilogicidade vibrante, toda a paixo obstinada pela realizao
do que se deseja e que se nunca desespera. Se esses gestos mgicos malogram, preciso
encontrar meios mais fortes, processos de ao mais poderosos83. O insucesso no provoca o
ceticismo em relao s prticas mgicas, mas abre espao para a ao de outros mecanismos
que venham permitir ao desejo (individual ou coletivo) ser atendido.
O autor explica que o sincretismo mgico no o efeito de um simples contato entre
civilizaes, nem o efeito da presso do colonizador sobre os povos colonizados. O
sincretismo acontece a partir do aumento, desenvolvimento e intensificao das prticas
mgicas dos amerndios e dos africanos pela utilizao de processos catlicos dentro de um
contexto inteiramente novo. Ou seja, os ritos catlicos no so mais religiosos, mas ritos
mgicos, por si mesmo eficientes para abrir e fechar o corpo do fiel; e o padre no um
sacerdote, mas um temvel feiticeiro que seria capaz de manter a superioridade do homem
branco sobre os povos colonizados84.
A esse catolicismo, o qual no Conclio de Trento a cria considerou imperfeito,
que ndios e negros foram convertidos, inclusive para a conteno de prejuzos causados pela
grande mortalidade da mo-de-obra servil. Neste sentido, a interferncia da Igreja na vida
cotidiana poderia ser percebida na medida em que persuadia os fiis a aspirarem vida eterna
82 Cabe lembrar que uma das preocupaes do Conclio de Trento era com o excesso de misticismo que envolvia a liturgia e os sacramentos, considerando as prticas religiosas populares como fruto de uma cristianizao imperfeita. A reao imposta pela Igreja, preocupada com a depurao da espiritualidade, dissolveu o universo mgico que envolvia o homem europeu mais rapidamente do que aqueles que habitavam na colnia, pois as manifestaes sincrticas serviam de controle social e ideolgico. Negar-lhes totalmente os seus folguedos, que so o nico alvio do seu cativeiro, quer-los desconsolados e melanclicos, de pouca sade (ANTONIL. Apud SOUZA, 1986, p. 93). 83 BASTIDE, 1971, p. 383-384. 84 Idem. Ibidem, p. 385.
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no cu como prmio por uma vida terrena de sofrimento. O aculturamento religioso visava
promover a aceitao, por parte dos negros, da dura realidade da escravido e diminuir o
nmero de fugas, rebelies, suicdios e abortos. Em contrapartida, o escravo enquanto cristo
tinha direito de folgar aos domingos e dias santos85. Os feriados religiosos no eram
destinados apenas ao descanso, mas tambm aos festejos e celebraes que, de diversas
maneiras, incluam as populaes afro-brasileiras quer fosse pelo culto a santos negros
como So Benedito e Nossa Senhora Aparecida; quer pela tolerncia s msicas e danas,
conhecidas genericamente como batuques86.
Com o poder de estabelecer a fronteira entre o certo e o errado, o bem e o mal, o
sagrado e o profano, o catolicismo tornou-se um verdadeiro divisor de guas na mentalidade
dos brasileiros. Se a enorme influncia da Igreja, por um lado, contribuiu para a conservao
de diversas tradies africanas, que puderam se desenvolver num contexto social
razoavelmente pacfico, como os primeiros candombls, cujo surgimento teria sido facilitado
pelas irmandades de pretos. Por outro lado, a conquista e manuteno dessa estabilidade
dependiam de que cada grupo aceitasse como natural e justa a posio que ocupavam na
engrenagem social. Conclui-se, portanto, que o catolicismo promoveu no Brasil uma paz
social que justificava o escravismo e o genocdio cultural com base em arraigados
preconceitos raciais: considerava normal a superioridade cultural de indivduos de origem
europia, a inferioridade dos descendentes de africanos e a inapta pureza dos ndios. Dessa
forma, o carter obrigatrio de se professar a f catlica penetrou to profundamente no
inconsciente do povo brasileiro, que no nos causa estranheza a mais famosa yalorix da
Bahia, Me Menininha do Gantois, declarar-se catlica: como todos os brasileiros!
85 A respeito da possibilidade de os escravos no trabalharem nos feriados santificados se verifica com mais freqncia nas cidades. Sobre esse tema ver CONCONE, Maria Helena Villas Boas. Umbanda uma religio brasileira. So Paulo, FFLCH/USP-CERU, 1987;. p. 50; e LIGIRO e DANDARA. 1998, p. 60. 86 LIGIRO e DANDARA, 1998, p. 60.
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2.3 A religiosidade dos escravos no Brasil
Falar de religio afro-brasileira implica conhecer a cultura dos povos africanos e as
tentativas de sobrevivncia dessa mesma cultura no solo brasileiro. Portanto, a frica no o
personagem principal do nosso tema, mas o local de origem das populaes que vo interagir
com os elementos do Novo Mundo. Para este fim, se faz necessrio compreender o pensamento
do homem africano cujas relaes com o sagrado visam assegurar uma vida perene e o
papel deformador da escravido impondo rupturas a toda infra-estrutura social (organizao
familiar e sistemas polticos e econmicos) que no tinha como sobreviver fora da frica.
Assim, o nico ponto de resistncia foi a superestrutura cultural, ou seja, a maneira de sentir, de
pensar e de se relacionar com o sagrado. E, at mesmo este, precisou se adaptar nova realidade
social: inter-relaes com o senhor e com os grupos culturais diferentes87. Carlos Eugnio
Soares, lembra que foi somente na experincia do cativeiro e da dispora, que os negros
puderam se descobrir enquanto africanos e partilhar uma herana comum. A identidade tnica
criada pelo trfico, silenciadora da identidade nativa, seria substituda, por sua vez, pelo novo
cdigo construdo no cativeiro, em conflito com as identidades crioullas e brancas 88.
Quanto origem das populaes escravas, existiram dois grandes conjuntos de grupos
que se fizeram representar no trfico negreiro: bantos e sudaneses. Os bantos englobavam as
populaes oriundas do antigo reino do Congo, que hoje compreende as regies localizadas
no atual Congo, Angola, Gabo, Moambique e Zaire. Explorado pelos portugueses desde
meados da dcada de 1480, o Congo foi transformado na principal regio fornecedora de
escravos ao longo de mais de trezentos anos. A importao de seres humanos comeou em
1517, para a Europa; e, em 1537, para o Brasil, tendo aumentado no sculo XVII e decrescido
87 Cf. CONCONE, 1987. 88 SOARES, Carlos Eugnio L. A negrada instituio: os capoeiras na Corte Imperial (1850-1890). Rio de Janeiro: Access, 1999, p. 17.
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apenas no final do sculo XVIII. Os escravos de origem banto foram espalhados por quase
todo o litoral brasileiro e pelo interior, principalmente, Minas Gerais e Gois.
Desse grupo, calcula-se que tenha vindo o maior nmero de escravos. Portanto, no
de se estranhar a presena determinante da cultura banto na cultura ocidental, seja no aspecto
religioso (macumba, vodu), musical (Samba, Mambo, Rumba) ou mesmo esttico (Cubismo,
Arte Naif, Carnaval). Observa-se os emprstimos da religiosidade banto na Umbanda com a
presena de elementos da performance ritual (msica, dana e transe), de elementos
pictogrficos (pontos riscados, simbolismo das cores), dos elementos ritualsticos (pemba,
plantas, pedras). A contribuio da tradio banto destaca-se tambm por meio de elementos
filosficos como o culto aos mortos, o culto natureza e o dogma da reencarnao89.
Os sudaneses englobam grupos originrios da frica Ocidental e que viviam em
territrios hoje conhecidos por Nigria, Benin (ex-Daom) e Togo. So, entre outros, os
iorubs ou nags (subdividido em queto, ijex, egeb etc), os jeje (ewe ou fon) e os fanti-
axantis. Entre os sudaneses tambm vieram algumas naes islamizadas como os hausss,
tapas, peuls, fulas e mandingas. Estas populaes se concentraram mais na regio aucareira
da Bahia e de Pernambuco, e a entrada no Brasil ocorreu sobretudo em meados do sculo
XVII, durando at a metade do sculo XIX.
Os negros, vendidos como escravos, eram capturados diretamente pelos europeus ou
comprados em regies de intenso comrcio escravista, como a do Golfo do Benin, conhecida
como Costa dos Escravos. Em muitos casos, os negros vendidos nessas regies eram
aprisionados por tribos inimigas ou pertenciam a faces rivais dentro da prpria tribo. Pierre
Verger relata o caso de uma rainha daomeana que fora vendida como escrava e veio parar na
89 Segundo Jos Luiz Ligiero, a cultura congolesa associava a alma humana ao movimento do Sol sobre a Terra com sucessivas voltas ao seu redor. Assim, ao nascente corresponderia o momento da concepo, ao meio dia o apogeu da maturidade, ao poente a morte e meia-noite o momento mais profundo do mergulho da alma desencarnada no oceano do mundo espiritual que se pensava localizado embaixo dos ps, alm das entranhas da Terra. Cf. LIGIRO e DANDARA, 1998, p. 50.
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cidade de So Luiz, no Maranho, em fins do sculo XVIII. E nessa cidade, no terreiro Casa
das Minas, ainda existente, teria se difundido o culto aos deuses (voduns) da famlia real90.
O regime de produo escravista fez com que membros de reinos, cls e linhagens;
aliados e inimigos; caadores, guerreiros e agricultores; sacerdotes e cultuadores de
antepassados; fossem brutalmente retirados de um contexto social, poltico e religioso prprio
para se tornarem mo-de-obra numa terra distante, numa sociedade diferente, na qual no lhes
conferiam o status de pessoas. Eram vistos como meras peas, compradas e revendidas
como coisa. Sob este regime, os escravos ficavam margem do convvio social. De um lado,
estava o modelo dominador da famlia patriarcal da casa-grande, no qual o senhor de engenho
governava absoluto, tendo sob suas ordens mulher e filhos, clero e autoridades civis. De
outro, estavam os valores e tradies culturais trazidos da frica que, a todo custo,
precisavam ser conservados.
A catequese dos negros no promoveu, salvo em raras excees, qualquer modificao
nas condies desumanas de trabalho e nem aliviou os castigos fsicos aos quais poderiam ser
submetidos. Esta atitude contraditria da Igreja fez com que a catequese e a manuteno da
escravido andassem de mos dadas. Um acordo entre a Coroa portuguesa e a Igreja dizia que
o escravo deveria ser batizado no prazo mximo de cinco anos