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1 ENTRE O SAGRADO E OS EMBATES: DISPUTAS PELA ADMINISTRAÇÃO DAS TERRAS E BENS DA DIVINA, NA CAPITANIA DE SERGIPE (1816-1818) Ane Luíse Silva Mecenas [email protected] Em 1816, o coronel José Benardino de Sá Souto Maior envia um requerimento à Mesa da Consciência e Ordens solicitando que os bens que havia doado a Capela da Divina Pastora, localizada na capitania de Sergipe Del Rey, se conservassem na mesma após a sua morte. O coronel, por possuir vasto patrimônio, não só edificara a capela como também doara propriedades para financiar suas atividades. De acordo com o coronel os fiéis desejavam erigir uma irmandade na dita capela. Mas ele temia que as propriedades fossem “desencaminhadas” após a sua morte. Assim, requer que as mesmas ficassem sob a guarda de um superintendente até que fosse aprovado o Estatuto da Irmandade da Divina Pastora, que passaria a ser a detentora dos referidos bens. Aparentemente uma solicitação simples, típica da época, já que era comum que senhores de engenho “ajudassem” na edificação e manutenção de templos religiosos, contudo esse é apenas o indicio de um conflito que ocorreu nas terras da Divina nos anos de 1816 até 1818. As desavenças envolviam o tenente-coronel com o pároco da capela da Divina Pastora. Na verdade, a freguesia de Jesus, Maria e José e São Gonçalo do Pé do Banco foi transferida para a sede da confraria da Divina Pastora. Com a união das duas confrarias o tenente-coronel desejava manter sua influência simbólica e material, permanecendo com a administração das alfaias e esmolas. O conflito sai dos antigos limites locais, e tanto o coronel como o sacerdote da freguesia de Pé do Banco, vão procurar legitimar seus discursos, no mais importante tribunal eclesiástico da colônia, a Mesa de Consciências e Ordens. O processo é curioso e apresenta uma riqueza de detalhes referentes aos bens da Igreja, a sua construção desnudando a História da localidade. A partir dessa disputa o presente estudo busca analisar a formação do patrimônio religioso na referida freguesia, entrelaçando ao contexto da sociedade colonial e na relação entre a sociedade civil e religiosa na delimitação do espaço sagrado durante a colonização. Discutindo o papel do padroado régio e da Mesa de Consciências e Ordens na formação do território religioso e do espaço urbano. Repensando a Igreja Católica durante o período colonial A Igreja Católica transplantada para a terra brasilis traz na bagagem toda sua hierarquia e seus dogmas. A Igreja desempenhou o papel de legitimar a colonização da América com base no

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ENTRE O SAGRADO E OS EMBATES: DISPUTAS PELA ADMINISTRAÇÃO DAS TERRAS E BENS

DA DIVINA, NA CAPITANIA DE SERGIPE (1816-1818)

Ane Luíse Silva Mecenas

[email protected]

Em 1816, o coronel José Benardino de Sá Souto Maior envia um requerimento à Mesa da

Consciência e Ordens solicitando que os bens que havia doado a Capela da Divina Pastora, localizada

na capitania de Sergipe Del Rey, se conservassem na mesma após a sua morte. O coronel, por possuir

vasto patrimônio, não só edificara a capela como também doara propriedades para financiar suas

atividades. De acordo com o coronel os fiéis desejavam erigir uma irmandade na dita capela. Mas ele

temia que as propriedades fossem “desencaminhadas” após a sua morte. Assim, requer que as

mesmas ficassem sob a guarda de um superintendente até que fosse aprovado o Estatuto da

Irmandade da Divina Pastora, que passaria a ser a detentora dos referidos bens.

Aparentemente uma solicitação simples, típica da época, já que era comum que senhores de

engenho “ajudassem” na edificação e manutenção de templos religiosos, contudo esse é apenas o

indicio de um conflito que ocorreu nas terras da Divina nos anos de 1816 até 1818. As desavenças

envolviam o tenente-coronel com o pároco da capela da Divina Pastora. Na verdade, a freguesia de

Jesus, Maria e José e São Gonçalo do Pé do Banco foi transferida para a sede da confraria da Divina

Pastora. Com a união das duas confrarias o tenente-coronel desejava manter sua influência simbólica e

material, permanecendo com a administração das alfaias e esmolas.

O conflito sai dos antigos limites locais, e tanto o coronel como o sacerdote da freguesia de

Pé do Banco, vão procurar legitimar seus discursos, no mais importante tribunal eclesiástico da colônia,

a Mesa de Consciências e Ordens. O processo é curioso e apresenta uma riqueza de detalhes

referentes aos bens da Igreja, a sua construção desnudando a História da localidade.

A partir dessa disputa o presente estudo busca analisar a formação do patrimônio religioso na

referida freguesia, entrelaçando ao contexto da sociedade colonial e na relação entre a sociedade civil

e religiosa na delimitação do espaço sagrado durante a colonização. Discutindo o papel do padroado

régio e da Mesa de Consciências e Ordens na formação do território religioso e do espaço urbano.

Repensando a Igreja Católica durante o período colonial

A Igreja Católica transplantada para a terra brasilis traz na bagagem toda sua hierarquia e

seus dogmas. A Igreja desempenhou o papel de legitimar a colonização da América com base no

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conceito ideológico de direito divino que está no conceito jurídico de padroado. Na prática, o papa

transferiu ao poder civil as atribuições que antes estavam reservadas à Igreja.

A Igreja representava o núcleo da sociedade colonial, era em volta das paróquias que se

formavam os focos urbanos na colônia (HOORNAERT, 1994, p.10). No intuito de discutir a formação

das “cidades” coloniais o estudo foi embasado nos trabalhos de Murilo Marx (1988), identificando a

intrínseca relação entre Estado e Igreja na organização dos redutos coloniais, mostrando como o

Estado português deixou a encargo da Igreja a elaboração de leis e estruturação dos espaços ditos

urbanos.

As capelas eram a representação o poder, no período da colônia (SILVA, 2000, p.91). Ao

pensar na construção de uma capela devemos levar em consideração que não era apenas o poder

religioso da Igreja Católica que estava diretamente envolvido, mas devemos lembrar do poder civil,

intimamente relacionado. Os objetivos dos senhores de engenho ou membros da sociedade civil são

variados pela preocupação com a morte (já que esse era um temor comum dos homens que viviam

nesse período), com o estabelecimento do espaço sagrado próximo as suas fazendas ou residências

urbanas como também possuir poder simbólico perante a comunidade.

Era comum que senhores detentores de posses fizessem doações de terras para construção

de igrejas, e ainda financiasse a construção, como podemos constatar quando examinamos os

testamentos dos séculos XVIII e XIX. Nesses documentos esses patrocinadores ainda demonstram sua

dita “preocupação” com o espaço sagrado, deixando a cargo dos herdeiros as obrigações em zela pelo

patrimônio da família. Por conta dessas doações muitas das devoções de determinadas localidades

foram determinadas pelas famílias que doavam as terras, em muitos casos como forma de pagar

alguma promessa. Muitos espaços urbanos foram delimitados no período colonial pautados nessa idéia

de materializar a fé, ressignificando os limites profanos. Na freguesia da Divina Pastora, não foi

diferente.

Cada capela necessitava da presença de um sacerdote que fosse responsável pela

administração dos bens, para realizar as missas e todos os afazeres eclesiásticos. Eram responsáveis

“pelos registros de batismo, casamentos, mortes além da assistência social quer era da sua alçada,

bem como a responsabilidade pelo sistema educacional (NUNES, 1996, p. 218). Afinal, não devemos

esquecer que a administração dos sacramentos era obrigatória, a exemplo do batismo, do casamento,

da confissão anual no tempo pascal, e da missa de defuntos. Sacramentos estes que eram

administrados à população em geral, em função do regime de união entre Igreja e Estado (VIDE,

2006).As capelas que conseguiam sobreviver constituíam uma forma de exigência da presença de um

sacerdote. O envio de um padre ou pároco dependia em boa parte, da vontade dos bispos, mas

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principalmente da capacidade dos colonos de manterem e sustentarem seu pároco ou vigário.

(LONDOÑO, 1997, p. 53-54).

Para compreender a atuação do clero secular no período colonial é necessário analisar a

estrutura elaborada pela metrópole portuguesa a fim de efetivar a colonização. Nesse contexto

destacamos a instituição do padroado. O padroado serviu como uma aliança, fruto da dependência

entre a política e a religião que devido ao novo cenário gerado pela colonização da América, trocam

favores para juntos se manterem no poder. Ficava a cargo do monarca português a provisão dos

bispados, paróquias e demais cargos eclesiásticos, as indicações dos nomes dos clérigos, a

remuneração dos mesmos além do financiamento as atividades da instituição religiosa. Dessa forma os

sacerdotes eram funcionários públicos do reino, recebendo seu pagamento pela Fazenda Real

(NUNES, 1996, p.217).

Com o padroado régio a influência de Roma no Brasil foi muito pequena, especialmente o

Concilio de Trento, que praticamente só foi aplicado no século XIX. A coroa ficava com a

responsabilidade de sustentar a propagação do catolicismo e prover condições para o culto, podendo

propor a criação de dioceses, apresentar bispos e cargos eclesiásticos através de concursos como os

párocos e recolher dízimos. (HOORNAERT, 1994, p. 12-13) A presença da Igreja e do pároco era tão

importante na colônia, pois se fazia autoridade no plano civil e no religioso. As paróquias eram feitas e

financiadas pelo padroado, indicava o reconhecimento, por parte das autoridades coloniais e pela

coroa, consolidando o direito de ocupação com certa representatividade econômica ou expressão

política. (LONDOÑO, 1997, p. 52).

As “Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia” estabeleceram as funções,

competências e obrigações que definiam a condição deste. Suas funções básicas consistiam na

administração dos sacramentos. È o discurso oficial que indica os hábitos, os costumes e o cotidiano

da sociedade colonial (VIDE, 2007). As Constituições são consideradas um dos importantes

testemunhos dos dogmas impostos pela igreja católica regidos pelos pressupostos do Concílio de

Trento (1545-1563). O Concílio 1contribuiu para o “renascimento” católico. Após algum tempo o espírito

e as decisões do Concílio passaram a penetrar no cotidiano da Igreja, influenciando profundamente na

organização das ordens religiosas

A organização da Igreja na colônia foi feita através do “padroado”, que era o direito cedido

pelo papa ao rei português, que passou a deter o poder de organizar a Igreja nas “novas terras

descobertas” e através dessa organização, ela era financiada e ocorria a expansão do catolicismo pelo

1 Foi convocado pelo Papa Paulo III em 1536, mas as atividades só iniciaram em 1545 e terminaram em 4 de dezembro de 1563.

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Brasil. No Brasil marcado pelo padroado, coube à Igreja cumprir inúmeras funções em nome do

Estado, “cabia ao monarca luso o direito de provisão dos bispados, paróquias e demais cargos

eclesiásticos; em troca, financiava todas as atividades religiosas”. (NUNES, 1996, p.216). Portugal

contava com outros meios para controlar a Igreja, a exemplo da “Mesa da Consciência e Ordens”, onde

ocorria as nomeações eclesiásticas, além de consultas aos provimentos nos benefícios eclesiásticos

colados. (NEVES, 1995 p. 172). Desde 1532, os problemas eclesiásticos eram resolvidos na Mesa de

Consciência e Ordens (NUNES, 1996, p.217).

A paróquia era, assim, o principal núcleo de informações sobre a vida e a morte na colônia, já

que apenas ela podia outorgar os inúmeros atestados e certidões que deveriam ser adquiridos pelos

fiéis para o casamento em outra paróquia ou o deslocamento a outras regiões e para a realização dos

inventários e transmissões de herança. Tal perfil burocrático levou a paróquia a ser o espaço para o

registro de documentos com valor civil, como os testamentos, e a desenvolver atividades de contagem

da população, como as listas nominativas. Estas funções, além de caracterizar a paróquia como lugar

de prestação de serviços, contribuíram para reforçavam a imagem do pároco como autoridade local. Ao

longo do período colonial, até por conta do padroado e do sistema de união da Igreja e Estado, os

registros religiosos de batismo casamento e óbito faziam prova perante a autoridade civil daqueles três

momentos da vida do indivíduo.

O auxilio de outras disciplinas ao ofício do historiador é possível graças às novas abordagens

historiográficas ampliadas a partir do século XX, o que tem contribuído na inserção de novos objetos e

novas temáticas nas discussões propostas pelos discípulos de Clio. Para desenvolver a analise das

instituições religiosas se faz necessário fundamentar a pesquisa em algumas teorias sociológicas,

capital simbólico, campo e Habitus.

O conceito de violência simbólica foi criado pelo pensador Pierre Bourdieu no intuito de

relacionar o processo pelo qual a classe dominante detentora de poder, que impõe sua cultura aos

demais grupos sociais. A dominação cultural pode ser percebida em diversos momentos da História.

Bourdieu parte do princípio de que a cultura, ou o sistema simbólico é uma construção social e sua

manutenção é fundamental para a perpetuação de uma determinada sociedade, através da

interiorização da cultura por todos os membros da mesma. A violência simbólica se expressa através

da imposição "legítima" e dissimulada, graças à interiorização da cultura dominante, reproduzindo as

relações de mundo (BOURDIEU, 1982).

A reflexão seguiu alguns dos aportes teóricos estabelecidos nas obras de Pierre Bourdieu,

principalmente no que concerne aos conceitos de campo, capital simbólico e habitus. O campo pode

ser definido como o espaço de lutas no qual seus agentes disputam um melhor posicionamento no

interior do mesmo, ou seja, “o universo no qual estão inseridos os agentes e as instituições que

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produzem, reproduzem ou difundem a arte, a literatura ou a ciência” (BOURDIEU, 2004, p. 20). Neste

ensejo, podemos dizer que em um campo o posicionamento de seus agentes não é estratificado, por

está em constante processo de redefinição. Nas disputas pela melhor posição no interior do campo

está atrelado ao acumulo de capital simbólico. Para que isso ocorra torna-se necessário o Habitus,

visto como “maneiras de ser permanentes, duráveis que podem, em particular, levá-los a resistir, a

opor-se às forças do campo” (BOURDIEU, 2004, p. 28). O campo é “o objeto de luta tanto em sua

representação quanto a sua realidade” (BOURDIEU, 2004, p. 29).

Habitus é conceituado pelo autor como o “princípio gerador de estratégias inconscientes ou

parcialmente controladas tendentes a assegurar o ajustamento às estruturas de que é produto tal

princípio” (BOURDIEU, 2005, p.160). Assim, ao inseri-se no campo o agente passa a acumular uma

série de disposições necessárias a sua permanência no campo, de modo mais simples, seriam as

regras do jogo.

O espaço colonial no Brasil esteve regido pelo sagrado, ou seja, pela Igreja. Por ser a figura

representativa da Europa no novo continente, durante o período colonial, o território brasileiro foi

moldado de acordo com as determinações da Igreja. A metrópole portuguesa deixou a cargo dos

eclesiásticos as responsabilidades pela instituição de normas que acabaram definindo a sociedade

colonial. Dessa forma os espaços urbanos foram constituídos em volta das paróquias.

Alguns problemas envolvem as pesquisas documentais de Sergipe durante o período

colonial, seja pela precária situação dos arquivos ou porque boa parte dos documentos encontra-se na

Bahia, tornam-se obstáculos que acabam entravando e dificultam o acesso as fontes desse período,

conseqüentemente ao desenvolvimento de pesquisas. A fonte primordial para o desenvolvimento dessa

pesquisa foi encontrada no Arquivo Nacional, e já foi transcrita, e relata uma passagem desconhecida

da historiografia local na Mesa de Consciências e Ordens.

Caminhos da pesquisa

Na tentativa de tornar possível a compreensão do imaginário colonial a partir das memórias e

dos relatos produzidos pelos sacerdotes incumbe em reconstruir falas capazes de promover o repensar

do passado. A contribuição para essa leitura de novos objetos tem sido a interdisciplinaridade. Dessa

forma a historiografia vem travando um diálogo com outras disciplinas das Ciências Humanas

proporcionando ampliar as formas de interpretação de diversos setores da sociedade, principalmente

no âmbito cultural. Isso vem contribuindo para a diversificação dos estudos referentes aos fenômenos

religiosos, sendo analisados por diferentes olhares, como o cotidiano e o imaginário.

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A ampliação do leque documental tornou-se possível graças à redefinição do conceito de

fonte postulada pelo movimento dos Annales, a partir da década de 1930. Segundo os pressupostos da

Nova História documento pode ser entendido como tudo aquilo que o homem produz e toca. É

importante ressaltar que o documento é analisado pelo historiador de acordo com os seus interesses e,

construído intencionalmente no passado. Conforme descreve Le Goff:

O documento não é inócuo. É antes de mais nada, o resultado de uma montagem, consciente ou inconsciente, da história, da época, das sociedades que o produzem, mas também das épocas sucessivas durante as quais continuou a viver, talvez esquecido, durante as quais continuou a ser manipulada, ainda que pelo silêncio. O documento é uma coisa que fica, que dura, é o testemunho, o ensinamento (para evocar a etimologia) que ele traz deve ser em primeiro lugar analisado desmistificando-lhe o seu significado aparente. O documento é um monumento. Resulta do esforço das sociedades históricas para impor ao futuro – voluntária ou involuntariamente determinada imagem de si próprio. (LE GOFF, 1996, p. 548).

Em decorrência das inovações incrementadas recentemente no âmbito da produção

historiográfica, o historiador assumiu seu papel de investigador, de detetive que busca reunir os

fragmentos de memória espalhados ao longo do tempo por lugares distintos, no afã de reconstituir

cenários, de tornar inteligível o passado. Neste sentido, a História se torna uma trama. O historiador

envereda-se no campo da pesquisa como obcecado em montar o quebra-cabeça, reunindo indícios,

sinais de um passado possível.

Contudo, o confronto de documentos permanece indispensável. É preciso contrapor os

diferentes discursos na tentativa promover um embate entre as diferentes testemunhas oculares, pois

não devemos esquecer que os sujeitos sempre agem intencionalmente, de determinado ângulo social.

No que concerne à hermenêutica documental, optamos pelo paradigma indiciário, de Carlo

Ginzburg. Como sugere o historiador italiano, as minúcias pouco observáveis, o detalhe, as entrelinhas

e os não-ditos podem ser vistos como indícios de uma realidade surpreendente não revelada

abertamente. Neste caso, torna-se eminente a necessidade de se questionar os silêncios, de observar

os fragmentos, de problematizar o aceito e indubitável. Nas entrelinhas o sujeito pode se apresentar

sem as máscaras convencionais do texto. Partido dessa concepção do oficio do historiador o presente

estudo busca reconstruir a partir do discurso.

Na busca pelas minúcias a pesquisa encontra-se calcada no processo instaurado pelo

tenente coronel Bernadino de Sá Souto Maior, senhor de engenho, homem influente de família

tradicional. O referido coronel fez a doação das terras e recursos para construção da Igreja, comprou

alfaias, percebe seu poder simbólico ameaçado com a transferência da sede da freguesia de Pé do

Banco e dessa forma a chegada de outro pároco.

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Na tentativa de manter seu campo e seu capital simbólico perante a população da localidade

o coronel vai até as últimas instâncias defender seu patrimônio. No primeiro documento nos deparamos

com esse relato do coronel, legitimado pelo depoimento de membros da localidade. Esse foi um

problema inicial possuíamos apenas um discurso até que na tentativa de completar o quebra-cabeça

encontramos a outra versão apresentada pelo vigário colado da matriz de Pé do Banco José Joaquim

de Sant’anna Cardoso. O processo está completo constam todas as anotações Arcebispo da Bahia, e a

determinação da Majestade para solucionar o impasse.

Para compreensão e aprofundamento da discussão desse documento utilizamos as

Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, onde constam todas as determinações e dogmas da

Igreja durante o período colonial. Sendo de suma importância para legitimar o parecer encontrado para

acabar com a querela, como também por enriquecer os detalhes envolvendo os costumes cristãos da

época.

O presente trabalho é um esboço da pesquisa que está sendo realizada e se propõe a

realizar um balanço historiográfico nacional, com ênfase em Sergipe, acerca de duas instituições

administrativas do período colonial, o Padroado e a Mesa de Consciência e Ordens. Será também

discutido o poder da sociedade civil perante as instituições religiosas desse período.

A Igreja Católica concedeu a coroa portuguesa o direito de conferir alguns benefícios

eclesiásticos. O Rei de Portugal passou o “protetor” da Igreja, com as algumas obrigações e deveres,

dentre os quais podemos destacar o de zelar pelas Leis da Igreja, de enviar missionários

evangelizadores para as terras descobertas e o de sustentar a Igreja nestas terras. Em contrapartida

havia os direitos do Padroado, que eram que consistiam em arrecadar dízimos, poder econômico,

indicar os candidatos aos postos eclesiásticos, sobretudos bispos, o que lhe dava um poder político

muito grande, pois, nesse caso, os bispos ficavam submetidos a ele.

Observamos que em alguns momentos o poder econômico dos senhores de engenho

entravam em choque com o poder dos religiosos, para solucionar tal impasse era convocada a

autoridade real. A instância solicitada para apaziguar as disputas era a Mesa de Consciência e Ordens.

As principais fontes para o desenvolvimento da pesquisa já foram transcritas. Mais existem

indícios da existência de outros documentos no arquivo da Cúria, localizado na Universidade Católica

de Salvador. Como nesse local de memória, a documentação não foi catalogada isso poderá dificultar o

acesso a novos discursos referentes ao tema.Essa pesquisa permitirá conhecer melhor esse período

tão rico e intenso da trajetória do Brasil, com potencial para apoiar novas descobertas e releituras

desse período histórico.

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REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

AZZI, Riolando. A cristandade colonial um projeto autoritário: História do pensamento católico no Brasil II. São Paulo: Edições Paulinas, 1987. BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Lisboa/ Rio de janeiro: Difel/ Bertrand Brasil, 1989. _____. “O Mercado de Bens Simbólicos”. In: A Economia das Trocas Simbólicas. 6ª ed. São Paulo: Perspectiva, 2005. p. 99- 181. _____. Os usos sociais da ciência: por uma sociologia clínica do campo científico. Trad. Denice Bárbara Catani. São Paulo: UNESP, 2004 ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano: essência das religiões. Trad. Rogério Fernandes. São Paulo: Martins Fontes, 2001. GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes: o cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pela Santa Inquisição. Trad. Maria Betânia Amorosa. São Paulo: Companhia das Letras, 1987. ____. “Sinais: raízes de um paradigma”. In: Mitos, sinais e emblemas: morfologia e História. Trad. Frederico Carotti. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. p.143-179. HOORNAERT, Eduardo. A Igreja no Brasil – Colonial (1550-1800). 3. Ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. LE GOFF, Jacques. “Documento Monumento”. In: História e memória. Trad. Bernardo Leite. 2 ed. Campinas-SP: Editora UNICAMP, 1996. NEVES, Guilherme Pereira. Entre e o Trono e o Altar: a Mesa da Consciência e Ordens e o papel da religião no Brasil (1808-1828). In.: SILVA, Maria Beatriz Nizza da (coord.) Cultura portuguesa na Terra de Santa Cruz. Lisboa: Editorial Estampa, 1995. p.171-189. NUNES, Maria Thetis. Sergipe Colonial II. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1996. MARX, Murillo. Nosso chão: do sagrado ao profano. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1988. SANTOS, Magno Francisco de Jesus. A marcha sagrada: a peregrinação ao santuário de Divina Pastora-SE. Monografia (Especialização em Ciências da Religião). São Cristóvão: UFS, 2008. SILVA, Cândido da Costa e. Os Segadores e a Messe. O clero oitocentista na Bahia. Salvador: Secretaria da Cultura e Turismo do Estado da Bahia. EDUFBA, 2000. SIQUEIRA, Luis. Religião, terra e poder: o encapelado de Nossa Senhora da Ajuda em Itaporanga –SE (1798-1838). Monografia. São Cristóvão: UFS, 2000. TORRES-LONDOÑO, Fernando. “Introdução do sagrado cristão nas crônicas sobre a cristianização do Brasil. In: QUEIROZ, José J. et al. (org). Interfaces do sagrado: em véspera do milênio. São Paulo: PUC-SP, 1996. p.57-73. ____. Paróquia e Comunidade no Brasil: perspectiva histórica. São Paulo: Paulus, 1997.

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A “Festa de Agosto” na Cidade de Montes Claros: Manifestação Religiosa e Modernidade em Diálogo

Ângela Aparecida Souza2

[email protected]

O objetivo deste estudo é analisar é as origens da religiosidade popular da tradicional “Festa de

Agosto” na cidade de Montes Claros considerar a característica secular trazida pela modernidade e os

seus efeitos no contexto religioso. Trata-se de uma pesquisa bibliográfica, procura primeiro: sabatinar o

conceito de religiosidade popular; em seguida, relatar alguns fatos históricos sobre a origem desta

festa, tendo presente a sua atual estrutura em fim, mostrar a modernização e suas conseqüências

nesta religiosidade popular.

1. Conceito de religiosidade popular

A religiosidade para Meslin, é a procura da simplicidade de se relacionar com o divino “busca-

se formas mais intuitivas, mais imaginativas, nas quais o sentimento e a força imaginária do povo

podem se desenvolver totalmente” (citado por MALDONADO, 1999, p.716). Já Van Gennep nos traz

conceitos característicos próprios da religiosidade popular que segundo ele esta religiosidade está

inserida no mágico, no imaginário, no místico e na festa teatral “a religiosidade do povo é

eminentemente celebrativa e ama a expressividade do espetáculo total, da representação policroma,

que transforma um cenário, uma rua, uma praça, uma cidade inteira” (Ibid, 714), esta é a realidade das

festas populares, pois atrai boa parte da população que fica extasiada com a exuberância que a festa

traz em si e a expressão que provoca em todos com o colorido, as danças e a mobilização de toda a

região.

Um grupo de teólogos argentinos define “povo” como um conjunto de grupos humanos que

vivem na coletividade fazendo histórias, gerando assim a memória coletiva que se torna tradição viva.

2 Acadêmica do 5° período do Curso de Ciências da Religião da Universidade Estadual de Montes Claros/ UNIMONTES bolsista de Iniciação Científica PROBIC-FAPEMIG; orientada pelo Prof. Dr. Waway Kimbanda do curso de Ciências da Religião do departamento de Filosofia da Universidade Estadual de Montes Claros/UNIMONTES, coordenador do Núcleo de Estudos Afro Brasileiro (NEAB) na mesma Universidade.

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O povo celebra junto e participam em comunhão das festas religiosas e tradições; a explicação para

essa unidade é a cultura que é entendida como ethos e costumes ou ainda estilo de vida seguindo as

perspectivas de Maldonado.

Os documentos de Puebla, isto é, da III Conferência Episcopal Latino Americana (fevereiro de

1979) dá uma noção de povo dizendo que

“esta religião do povo é vivida preferencialmente pelos pobres e simples, mas abarca

todos os setores sociais, e é às vezes um dos poucos vínculos que reúne os homens

em nossa nação politicamente tão dividida. Isto sim deve sustentar que esta unidade

contém diversidades múltiplas segundo os grupos sociais, éticos e também gerações”

(MALDONADO, 1999, p.714)

Podemos ter o exemplo da própria Festa de Agosto que será tratada neste trabalho, a

manifestação inicialmente era celebrada pelos negros e desfalecidos, com o passar do tempo é que as

classes dominantes começaram a freqüentar e hoje ocupam os lugares dos negros nos reinados e

ainda patrocinam a festa. As classes sociais se reúnem e se misturam perante o sagrado.

O capítulo 3 do documento intitula: Evangelização e Religiosidade Popular e diz:

“trata-se da forma ou da existência cultural que a religião adota em determinado povo.

A religião do povo latino-americano, em sua forma cultural mais característica é

expressão de fé católica. É catolicismo popular. Com deficiências, e apesar do pecado

sempre presente, a fé da igreja selou a alma da América Latina, marcando a identidade

histórica essencial, constituindo-se na matriz cultural do continente, da qual nasceram

novos povos” (Ibid, p.714)

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Seguindo os pensamentos deste documento a religiosidade popular é a maneira como a

religião é expressada tornando-se tradição coletiva e identidade, pois revela as características de uma

determinada população através da fé e da forma como esta é praticada e vivenciada culturalmente.

Dentre essas religiosidades e festas populares encontramos a “Festa de Agosto” da cidade de

Montes Claros no Norte de Minas Gerais que é considerado como sendo uma região de transição entre

o Nordeste e o Sudeste brasileiro, segundo Marques a ocupação da região norte mineira ocorreu via

mineração, em algumas áreas a conjugação da mineração com a agropecuária (MARQUES, 2007,

P.26). Entre os séculos XVI e XVII a importância do ouro mineiro para as economias mercantilistas de

Portugal e Inglaterra foram bastante significativas. Os escravos empregados na mineração vinham

diretamente da África e outros de regiões brasileiras.

O negro trazido para as minas sofreu violência no campo religioso, pois foi forçado a um

modelo de tradição divergente do seu. Foram criadas irmandades pela igreja oficial, porém o negro

impedido de participar das irmandades dos brancos reunia-se em irmandades próprias dividas segundo

a cor de pele e condição de escravo ou liberto.

“Uma das características das irmandades de negros era a eleição de reis e rainhas como forma

de manutenção de antigas tradições culturais africanas”. (GOMES E PEREIRA, 1988, P.89). Uma das

mais conhecidas era a de Nossa Senhora do Rosário criada pelos Jesuítas em 1586 que tinha o

objetivo de atrair negros para a devoção aos santos de cor preta.

“Em Minas Gerais a lenda recobre a figura de Francisco da natividade, o famoso Chico

Rei de Vila Rica. Antigo rei da África é vendido como escravo e trazido ao Brasil, onde

consegue sua alforria e de sua família, chegando a liderar um grupo de forros. Devoto

de nossa Senhora do Rosário, torna-se representante de uma reação contra o sistema

escravista. Foi coroado Rei dos Congos de Minas Gerais, organizando uma corte em

Vila Rica”. (Ibid P.182).

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As irmandades ajudavam a organizar a festa da padroeira. Para Silva a congada é uma

celebração popular afro que hoje caracteriza a nossa cultura (SILVA, 2005).

2. Alguns fatos históricos sobre a origem da Festa

Em Montes Claros, há mais de 160 anos acontece à festa religiosa de devoção a Nossa

Senhora do Rosário, São Benedito e ao Divino Espírito Santo. De acordo com Paula, “a mais antiga

notícia sobre o assunto é datada em 23 de maio de 1839, quando Marcelino Alves pediu licença para

tirar esmolas para organizar uma festa a esses santos” (PAULA, 1979), na época do Brasil imperial e

as antigas atas da Câmara Municipal noticiaram as apresentações, embora a data de origem desta

tradição seja incerta, possuindo oscilações.

“em Montes Claros os reinados, catopês e marujadas eram festas do calendário

religioso, desde o tempo da Vila das Formigas. Caíram no esquecimento com o passar

dos anos, mas através do empenho do Dr. Hermes de Paula foram revividos, não

havendo possibilidades de continuar, foram esquecidos de novo”. (COLARES E

SILVEIRA, 1995, P.138)

O Conservatório Estadual de Música Lorenzo Fernandes fez ressurgir as Festas de Agosto,

com a colaboração do 10° Batalhão da Polícia Militar de Minas Gerais.

A história da origem dos catopês em Montes Claros por ser de tradição oral possui lacunas

pela falta de documentação e registros históricos ausentes, portanto dificilmente serão preenchidos.

Queiroz apresenta referências mais antigas sobre as Festas em Montes Claros, sendo encontradas no

Jornal Montes Claros de 17 de agosto de 1916 e 1917, onde se mencionava a respeito dos grupos de

congado no contexto sociocultural da cidade “fica evidente que, desde 1916, já havia festejos com

rituais similares aos de hoje” (QUEIROZ, 2005, p.32). Nas regiões mineradoras do século XVIII foi

fundada a irmandade do Rosário dos Homens Pretos pelos escravos, que construíram suas capelas e

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igrejas. Organizavam festas para homenagear sua padroeira, Nossa Senhora do Rosário, ocasiões em

que acompanhavam as procissões logo atrás do pálio, ricamente vestidos, era a festa do Rosário.

Quando terminava o cortejo religioso, saíam pelas vilas e povoados cantando e dançando, era o início

da popular “Festa de Agosto”, dos folguedos conhecidos como reinados e congados. Em quase toda

Minas Gerais elas são realizadas em agosto ou outubro. O culto ao Rosário aparece no Brasil, através

da ação missionária nos primeiros tempos de colonização e foi rapidamente absorvido pela classe mais

pobre e pelos negros.

Segundo Déa Trancoso, citada no Caderno de Agosto volume1 “as Festas de Agosto já

constituem, hoje, espaço imprescindível, onde a tradição doa o que sabe ao contemporâneo que surge

no seu trabalho incansável e prazeroso de preservá-la” 3. Para Queiroz “essa manifestação faz parte da

cultura de Montes Claros, desde o princípio do desenvolvimento urbano da cidade, acompanhando e

fazendo parte das expressões culturais” (QUEIROZ, 2005, p.35).

Acontecem atualmente durante 5 dias, na 3ª semana do mês de agosto, sendo iniciada na

quarta-feira e encerrada no domingo, mas às vezes por conveniência dos realizadores, há uma ligeira

variação nas datas, no 1° dia se veste de azul para homenagear Nossa Senhora, no 2° de rosa em

homenagem a São Benedito e no 3° de vermelho, para o Divino Espírito Santo.

“A Festa conta com diferentes situações de estrutura” (Ibid, p.36) na quarta-feira à noite

acontece à visita a casa do mordomo de Nossa Senhora do Rosário, estes são pessoas da

comunidade, que são sorteados para guardar as bandeiras dos santos de um ano para o outro e o

levantamento de mastro que é uma homenagem ao santo festejado a cada dia, sendo ele a

concretização das comemorações religiosas. Na quinta-feira pela manhã acontece o Reinado de Nossa

Senhora do Rosário e missa pela manhã e à noite visita à casa do mordomo de São Benedito e

levantamento de mastro com a bandeira do santo. Os reinados e os impérios são momentos de

coroação e consagração dos reis, rainhas, imperador e imperatriz são realizados nos dias de

homenagem a Nossa Senhora do Rosário e a São Benedito, participam dos cortejos príncipes e

princesas, escolhidos entre as crianças da comunidade e banda militar da cidade. Na sexta-feira pela

manhã acontece o Reinado de São Benedito com missa em homenagem ao santo e à noite visita à

casa do mordomo do Divino Espírito Santo e levantamento de mastro com a bandeira do santo. No

sábado pela manhã é realizado o Reinado do Divino Espírito Santo com missa em homenagem ao

3 Secretaria de Cultura. Cadernos de Agosto 1: Patrimônio imaterial e escolar. Montes Claros: Secretaria Municipal de Cultura, 2003.

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santo que ocorre com a chegada dos reinados à igreja do Rosário, onde é realizada uma missa em

homenagem ao santo do dia.

O “Encontro dos Grupos de Congado” é um acontecimento recente na atual estrutura das

Festas de Agosto, sempre aos domingos pela manhã, com o objetivo de reunir os grupos de congado

de vários lugares do estado, cada grupo participante apresenta sua performance. A procissão ocorre no

domingo à tarde, no encerramento, iniciando na Praça da Matriz, passando por ruas do centro da

cidade sendo finalizado na igreja do Rosário. No domingo à noite realiza-se a missa de encerramento

da Festa, onde os grupos agradecem aos santos devotados, o padre conduz a cerimônia religiosa,

pedindo proteção a Deus e aos santos padroeiros da Festa, abençoando os grupos para que estejam

de volta no ano seguinte.

Durante esses cincos dias de acontecimentos, a Festa traz um cenário de costumes,

crenças, junto com os grupos que reúnem no fenômeno musical orações, saudações, danças e muita

complexidade simbólica presente nos catopês, marujos e caboclinhos. Dias ressalta que “para os mais

antigos, a Festa religiosa é um agradecimento pelo ano de trabalho e fartura. Não é festa para pedir é

somente para agradecer” (DIAS, 2007, p.8). Durante a Festa são apresentados shows, barraquinhas

com comidas típicas, artesanato, missas, bênçãos e levantamento de mastro. Os grupos de catopês,

caboclinhos e marujos celebram com danças e músicas a devoção e a fé aos santos homenageados,

além desses grupos tem a cavalhada e o bumba-meu-boi que não se realizam há anos na cidade. Há

registros de que até aproximadamente a década de 1960 havia a cavalhada, mas “com o decorrer do

tempo entrou em decadência, estando praticamente extinta em Minas Gerais”.

Os catopês têm origem africana do século XVIII “os componentes são na sua maioria, pretos,

dóceis e alegres. Agrupam-se em ternos, tem mais ou menos 20 pessoas entre adultos e crianças,

somente homens” (PAULA, 1979, p.138). No dia da Festa pela manhã, os catopês saem pelas ruas,

cantando e pulando no ritmo dos tambores, vai à casa dos príncipes conduzirem-nos a casa do rei, a

função dos dançantes é organizar e acompanhar “o reinado”.

Os marujos têm origem européia retratam a teatralização da epopéia “Nau Clarineta”, exaltando

os feitos dos marinheiros portugueses e os princípios cristãos da igreja católica, em Montes Claros não

se representa todos os autos, encena-se apenas a morte do patrão.

Os caboclinhos são de origem indígena, em Montes Claros, não se prendem diretamente a

Festa, eles demonstram a influência da igreja nos tempos da colonização.

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A cidade possui atualmente seis Grupos de congado: um de caboclinhos, dois de marujos e três

de catopês. O Terno de Nossa Senhora do Rosário do Mestre João Farias, o Terno de são Benedito do

Mestre Zanza e o Terno de São Benedito do Mestre Zé Expedito estes compõem a atual estrutura da

manifestação dos catopês em Montes Claros e junto com os caboclinhos e marujos dão vida e forma a

festividade religiosa. Segundo Queiroz a viabilidade social preconceito e subordinação são inter-

relacionados com as primeiras expressões com características do congado montesclarense que

constituíram a base para a atual performance dos grupos de catopês, marujos e caboclinhos que

“festejam suas tradições inter-relacionando-as com outras dimensões do contexto social” (QUEIROZ,

2005, p.31), esses grupos revivem uma manifestação secular que constitui, na atualidade, uma das

fortes expressões da cultura montesclarense.

As melodias são de tradição oral, não tem autores, segundo Dias “são recriadas com

musicalidade e letras que lembram sempre a resistência e a luta pelo viver” (DIAS, 2007, p.8), de

acordo com Edmilson de Almeida citado por Dias “os cantos emitidos em linguagem simbólica remetem

aos mistérios do sagrado e fazem também a crônica dos acontecimentos referentes aos indivíduos da

comunidade” (Ibid, 2007, p.9). No contexto regional os devotos vivenciam a fé com um ritual de cantos

e danças, acompanhados de instrumentos sagrados, para Dias “o ritual das devoções gira em torno de

histórias orais, cantadas de geração em geração” (Ibid, p.8).

Esse evento em Montes Claros tem uma programação extensa e diversificada conta com a

participação de artistas plásticos, artesãos, músicos e cantores. As atividades acontecem na Sede da

Secretaria de Cultura (Centro Cultural), Praça da Matriz e parte antiga da cidade, na Feira de Arte e

Artesanato, Casa do artesão e outros espaços.

3. Modernização e suas conseqüências

As Festas de Agosto em Montes Claros é uma expressão cultural, que tem sido revivido e

renovada na contemporaneidade, associando religião, entretenimento, afirmação social envolvendo

outras dimensões, tendo a essência preservada na música, coreografia, religiosidade e outras

expressões simbólicas.

Com o avanço da globalização muitas mudanças aconteceram, a festa se modificou integrando-

se a uma nova realidade “com dimensões da modernidade, expressadas na forte ascensão da mídia,

no uso de novas tecnologias para a configuração e concepções da Festa e na estruturação do

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espetáculo em que se transformou esse evento em Montes Claros” (QUEIROZ, 2005, p.35).

Antigamente a banda de música acompanhava somente o império do Divino, hoje acompanha todos os

cortejos com repertório de canções populares. Houve modificações nas roupas dos grupos, tornando-

se mais modernas, a dança dos caboclinhos possui passos diferentes, assim como as músicas que não

são mais as mesmas. O repertório dos catopês encontra-se mais restrito. O evento não é mais

precedido de novenas, barraquinhas e leilões hoje têm seu ponto alto no cortejo de reinado e império

em desfile diurno com catopês, marujos e caboclinhos que reafirmam e reelaboram a identidade

regional através de práticas rituais que fazem parte das tradições, mas aos poucos vão sendo

modificados pelo tempo, incorporando novos elementos propiciando novas significações e perdem

alguns traços originais que os caracterizam.

Com o passar dos anos a festa toma um colorido diferente, dividindo em dois momentos. O

primeiro momento é concentrado na Praça Portugal, onde os devotos rezam e homenageiam o santo

de devoção, cantando, dançando e levantando o mastro Dias ressalta que “no espaço dedicado a

Festa todos são iguais com a inexistência de classes sociais prevalecendo o discurso religioso” (DIAS,

2007, p.7), pois na realização da Festa a sociedade constrói uma identidade excluindo as questões

políticas, econômicas e sociais.

Já o segundo momento, acontece na Praça da Igreja Matriz de São José e Nossa Senhora da

Conceição, que segundo referências de Dias “é um concentrado de pessoas atraídas pelos prazeres da

vida, divertem-se ao consumir bebidas, comidas típicas do sertão e comprando artesanato feito na

região” (Ibid, p.9). De acordo com Benjamin “a tradição católica associou festejos profanos as

comemorações da sua liturgia. A devoção religiosa esteve sempre ligada ao prazer” ressalta ainda que

“o culto a Nossa Senhora do Rosário desenvolveu várias manifestações lúdicas” (BENJAMIN, 2007,

p.10).

Embora a modernização seja o objetivo das sociedades, o povo norte mineiro ainda não

abandonou a tradição, Seguindo as perspectivas de Marques a coexistência do velho e do novo gera

formas culturais. Mantém-se o tradicional, mas reelabora-se sua utilização usando mecanismos

tecnológicos da atualidade. O Avanço da globalização não pode ser ignorado no processo cultural,

ressalta ainda que “é presente no Brasil a tentativa de conciliar a tradição e a modernidade”

(MARQUES, 2007, p.36). Neste sentido a urbanização inseriu novos elementos à tradição, trazendo

novos contextos. As Festas de Agosto traz consigo um conjunto de rituais e símbolos que não foram

substituídos por imagens computadorizadas e a comunicação em massa privilegiadas na atualidade

que apesar de modernos na visão de LEPLATINE e TRINDADE (2003) o homem é um ser dual, ou

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seja, dividido “Para o homem religioso, a reatualização dos mesmos acontecimentos místicos constituí

sua maior esperança, pois a cada reatualização, ele encontra a possibilidade de transfigurar sua

existência, tornando-a semelhante ao modelo divino” (ELIADE, 1992, p.94). Nestas perspectivas a

modernidade não tende a se afastar da tradição, mas coexistir, pois “o homem religioso mesmo o mais

“primitivo”, não rejeita em principio o “progresso”: o aceita, mas confere-lhe uma origem e uma

dimensão divinas” ( Ibid ). Sendo assim o ser humano é paradoxal, a Festa de Agosto é uma tradição

que se inter-relaciona com a modernidade, os seres humanos precisam da tecnologia e da evolução,

do progresso como apostavam os iluministas, mas também necessitam da “experiência religiosa da

Festa, quer dizer, a participação no sagrado, permite aos homens viver periodicamente na presença

dos deuses” (Ibid, p.93).

É notório o uso da tecnologia na organização e na divulgação da festa, pois aparece nos tele

jornais mais importantes da cidade e em sites que trazem toda a programação do evento, a mídia

sempre está interessada em fazer entrevistas com os mestres dos ternos e passar para os

telespectadores a cobertura completa da festa. Os rituais estão inseridos no contexto da modernidade,

trazem consigo elementos sociais como a participação da banda da polícia militar, o que demonstra a

importância da cultura religiosa na sociedade. O culto ao Rosário foi rapidamente absorvido pelas

classes mais pobres e pelos negros, era tida como celebração restrita aos escravos, hoje os reis e

rainhas negros vêm sendo substituídos por reis e rainhas brancos e predominantemente da elite, pois

tem condições de assumir os gastos com a alimentação da corte, “observa-se uma troca de materiais

simbólicos entre os grupos sociais” (COLARES, 2006, p.10).

Desde que “Seo” Joaquim Poló e sua filha assumiram os caboclinhos em 1982 eles colocaram

mulheres no terno onde era de exclusividade masculina, com isso mudaram as roupas, pois antes o

desfile era feito com o busto nu, hoje não é mais possível por causa da presença feminina no terno. Os

catopés mais velhos questionaram essa atitude “mas “Seo” Joaquim responde que sabe que existe o

tal de machismo, mas pergunta se em algum lugar tem escrito que é permitido só os indiozinhos

meninos festejarem e adorarem o divino” (Ibid, p.22).

Para Colares a tradição se concretiza na vida dos homens através de rituais, através dos quais

lhe é conferida integridade, “a tradição persiste porque consiste na constante re-significação do legado

do passado e da constante incorporação de novos elementos em sua concretização na vida social

presente” (Ibid,).

A tradição traz do passado símbolos e rituais que são contextualizados de acordo com os

saberes e costumes dos homens atuais que vão adequando e dando novos significados. A tradição

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age no meio do coletivo opondo-se neste sentido a modernidade que propõe aos indivíduos a

individualidade que é um discurso capitalista.

As tradições populares, não podem ser vistas como estáticas e atreladas simplesmente a um

passado imemorial. A “memória” funciona como um fator identitário da coletividade, o que não significa

que as pessoas vivam para o passado (COLARES, 2006, p.30).

A partir das origens do passado o congado celebra sua religiosidade e constrói a identidade do

povo norte mineiro presente, mas é se renovando a cada ano que essa festa continua tendo sentido na

contemporaneidade, pois se fez necessário usar tendências midiáticas, porque a comunidade se

secularizou, “a memória e o ritual funcionam como elos que desempenham o papel de responder as

necessidades e aos anseios, bem como de dar sentido de identidade para a comunidade que se

encontra, no presente, envolvida com toda a dinâmica da sociedade” (Ibid p.31).

A Festa traz muita exuberância, assim como os grupos congadeiros. A preocupação com a

estética do espetáculo desperta tanto o prazer religioso quanto o lugar que a estética ocupa na

sociedade, assim como argumenta Colares “a festa sagrada corre o risco de transformar em simples

imagens consumidas apenas pelo seu valor estético sem nenhuma preocupação em explicitar o que

significa o ato para homem religioso” (Ibid, p.59), ressalta ainda que o espaço sacralizado em torno do

mastro, aceita os aparatos da modernidade como, por exemplo, câmaras, gravadores e pesquisadores,

Colares interpreta esse fato “como um sinal da “mudança dos tempos”, como algo inerente ao processo

no qual estão inseridos” (Ibid, p.79). Seguindo o pensamento de Colares esta fragmentação entre o

sagrado e o profano é uma característica da sociedade moderna que sacralizada, não dá ao místico,

um valor de tratamento particular. Sendo assim a modernidade traz em si o consumismo como valor

prioritário e carrega este valor também para as Festas e expressões religiosas essas interferências

externas influência, mas não chegam a impedir a instauração do sagrado.

Neste sentido, a proposta deste trabalho é analisar as origens da religiosidade popular da

tradicional “Festa de Agosto” na cidade de Montes Claros, considerando a característica secular trazida

pela modernidade e seus efeitos no contexto religioso, sendo que o primeiro objetivo que é o resgate

histórico da Festa ainda possui lacunas pela falta de registros e documentos, como foi explicado na

segunda parte do estudo, pois a tradição gira em torno da oralidade que carece um estudo

aprofundado e levantamentos históricos acerca do assunto. Já a conseqüência da modernidade no

contexto religioso alcançou as expectativas propostas sem dificuldades, mas ainda pode ser mais

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explorada no decorrer das pesquisas, já que este trabalho ainda se encontra em fase de

desenvolvimento.

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OS CAMINHOS DE ONTEM E DE HOJE EM DIREÇÃO A GOIÁS-TOCANTINS

Antônio Teixeira Neto (*)

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RESUMO

Os caminhos de ontem foram os embriões das rodovias de hoje. Em Goiás-Tocantins, mais que em outras regiões do Brasil, os caminhos tiveram e têm um papel fundamental no processo de ocupação, povoamento e urbanização do território. Se os caminhos antigos refletem na paisagem geográfica as realidades e possibilidades humanas de uma época e engendraram toda uma vida de relações rompendo as disparidades e descontinuidades do espaço, as rodovias de hoje são os verdadeiros órgãos de comando que dão sustentação e viabilidade econômica à apropriação do espaço. Os caminhos, tanto os antigos quanto os atuais, refletem, portanto, toda essa vida de relações que no espaço se estabelecem e se desenvolvem e que, mais que os processos de produção, dominam a evolução da sociedade.

UNITERMOS: caminho-estrada/ rede/ relações

RÉSUMÉ

Au Brésil en général et à Goiás-Tocantins en particulier les chemins d’hier furent les embryons des grandes routes d’aujourd’hui. Ils ont engendré et établi dans l’espace toute une vie de relations. Si les chemins d’autrefois sont, dans le paysage géographique, les témoins des réalités et possibilités humaines d’une époque lointaine, les routes actuelles sont les vrais organes de commandement de l’espace et, plus que les processus de production, la vie de relations qu’ils engendrent domine l’évolution de la société. Mots-clés: chemis-route/réseau/ relations

INTRODUÇÃO

Os caminhos coloniais e do tempo do Império, as estradas de antigamente, e as atuais rodovias de integração nacional e regional, desempenharam – e sempre desempenharão – no Brasil em geral e em Goiás-Tocantins em particular, papel fundamental no processo de ocupação, povoamento e urbanização do território. Eles são por excelência o símbolo da mobilidade permanente dos homens em nosso espaço geográfico. Se antigamente os caminhos coloniais, como uma nau sem rumo, desenhavam no chão um traçado aleatório, fruto das incertezas quanto à direção a tomar e das particularidades próprias do espírito bandeirante pioneiro, hoje as estradas, artérias que alimentam com sangue novo as diferentes regiões do espaço geográfico goiano-tocantinense, de traçado não mais aleatório, mas atendendo a estratégias e geopolíticas de ocupação e organização do território, modificam e transformam com rapidez preocupante a paisagem urbana e rural dos dois estados. É esse o objetivo do trabalho: mostrar a importância dos caminhos de ontem e de hoje como fator por excelência de ocupação, povoamento e urbanização do território goiano-tocantinense, bem como o seu papel na gênese de toda uma vida de relações que se estabeleceu e se desenvolveu no espaço.

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(*) Ex-professor da UFG. Licenciado em História, Engenheiro-Agrimensor e Doutor em Cartografia

1. OS CAMINHOS DE ONTEM

O embrião da rede rodoviária de hoje foram as picadas, depois pistas e caminhos, dos pioneiros dos séculos anteriores. No início, antes que o primeiro desses caminhos se tornasse um das estradas reais ligando São Paulo a Vila Boa, a capital colonial de Goiás, os primeiros bandeirantes seguiram o caminho das águas – as monções de que fala Sérgio Buarque de Holanda – para atingir o coração do Centro-Oeste. Dentre esses caminhos, o rio Tietê, inicialmente chamado de Anhembi, era a principal porta de saída e entrada das bandeiras. Desembocando no rio Paraná, pelo Tietê se chegava aos sertões de Goiás e Mato Grosso através dos rios e dos imensos chapadões, na realidade autênticos espigões separando as bacias hidrográficas.

Antes que Paschoal Moreira Cabral encontrasse as minas de Cuiabá e que a bandeira de Bartolomeu Bueno da Silva, o filho, “descobrisse” de vez as minas de Goiás (entre 1722 e 1725), bandeiras, entre grandes e pequenas, oficiais e não oficiais procedentes tanto de São Paulo, como também de Belém, através do rio Tocantins, já haviam palmilhado os sertões do Brasil Central e deixado no terreno as marcas dos primeiros caminhos terrestres. Para se ter uma idéia do que esses homens fizeram, há notícias de que já em fins do século XVI, “este continente”, como era conhecido o território goiano-tocantinense, foi percorrido por bandeirantes saindo de São Paulo. Palacin (1972, p. 16-18), com base no estudo sobre a lenda do ouro dos Martírios, de Manoel Rodrigues Ferreira, aponta pelo menos uma dezena de bandeiras importantes que percorreram os sertões dos goiases antes da do Anhangüera. Até os jesuítas, tendo como missão específica catequizar o índio, se embrenharam pelos nossos sertões e deixaram documentos descrevendo como se faziam as viagens fluviais, como, por exemplo, é o caso de uma carta do padre Antônio Vieira, que, mesmo não tendo percorrido o território goiano, aconselhava, no entanto, como por ele viajar (cf. Palacin, op. cit., nota 11, p. 24).

Sem rumo definido, sem apoio técnico e logístico, quando muito levavam consigo uma bússola rudimentar, e com a missão quase única de aprisionar o maior número possível de índios, a primeira bandeira que partiu de São Paulo rumo aos sertões de Goiás-Tocantins foi a de Antônio Domingos Grau (1590-1593), que chegou à região leste do rio Tocantins. Depois, para citar apenas algumas, vieram as de Domingos Rodrigues (1596-1600), que chegou à região do Bico do Papagaio pelo rio Araguaia; Afonso Sardinha (1598-?), que também chegou ao Paraopava (primeiro nome do rio Araguaia); Belchior Carneiro (1607-1609), indo mais ainda para o norte; Martins Rodrigues (1608-1613), que arranchou por vários anos no sertão do Araguaia; André Fernandes (1613-1615), que após entrar no Tocantins, subiu o Araguaia até às suas nascentes e, daqui, por terra, passou à bacia do Prata4; Pedroso de Alvarenga (1615-1618), pelo mesmo trajeto da bandeira anterior.

Após “cinqüenta anos de silêncio documental”, observa Palacin, a bandeira de Francisco Lopes Buenavides (1665-1666) “inaugura” o caminho por terra em direção a Goiás, não mais utilizando o Tietê como a quase única porta de entrada e saída de São Paulo e sim as pistas que já começavam a se abrir em direção do rio Grande e tendo como ponto de passagem os nascentes arraiais de Jundiaí e Mogi-Guaçu, as primeiras bocas de sertão das bandeiras terrestres que buscavam as terras goianas.

4 Essa passagem por terra à bacia do Prata tinha várias opções, dentre as quais a mais fácil e menos demorada seria, por exemplo, atingir as cabeceiras do rio Taquari e, por este abaixo, descer até a sua confluência com o rio Coxim; subindo o Coxim, chegava-se ao lugar denominado “Varadouro de Camapuã”, travessia por terra para se ganhar as cabeceiras do rio Pardo que deságua no rio Paraná. Por este rio acima se chegava ao rio Tietê, a porta de entrada e saída da Vila de São Paulo, a capital dos bandeirantes.

Outra opção, porém menos freqüentada e conhecida que a primeira, seria, por terra, através dos chapadões do atual Parque Nacional das Emas, atingir as cabeceiras dos rios Corrente ou Aporé, que deságuam no rio Paranaíba. Daqui, por água abaixo, retornar a São Paulo através do conhecidíssimo Tietê.

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Dentre todas essas bandeiras que precederam à do Anhangüera, das quais se conserva notícia documentada, segundo enfatiza Palacin (op. cit., p. 17), a de Sebastião Paes de Barros (1673) foi a maior das que saíram de São Paulo para Goiás – cerca de 800 pessoas –, tendo chegado à confluência do Tocantins-Araguaia, porém não mais em busca de índios e sim de metais preciosos, isto é, ouro. Depois dela os “cinqüenta anos de silêncio” se explicariam por um motivo muitos simples, na opinião de Palacin (id., ibid. p. 18): “o caminho de Goiás, por terra, já era tão conhecido, que pequenos grupos anônimos – sem as formalidades de uma bandeira – o transitavam normalmente”.

Cinqüenta anos depois foi a vez da bandeira do Anhangüera repisar as pistas e seguir os roteiros não mais incógnitos. As vicissitudes e dificuldades da empreitada ficavam por conta das formas quase idênticas das paisagens constituídas pelas imensas chapadas e vales a perder de vista, que só um mapa preciso seria capaz de diferenciar e registrar com exatidão. Mas esse mapa não existia senão na memória do sertanista mais experimentado. Esses instinto – o de farejar a riqueza , o ouro, em locais impossíveis de se achar, e de se orientar no vazio da paisagem –, somente o bandeirante tinha.

De Belém, a porta de entrada e saída para Goiás-Tocantins era uma só: o rio Tocantins, que de 1644 a 1674 foi percorrido por bandeirantes e jesuítas, inclusive pelo padre Antônio Vieira, a quem já nos referimos, mas que só chegou às vizinhanças da futura Capitania de Goiás (cf. Palacin, op. cit., p. 18).

Assim, o cenário geográfico, logo após a descoberta do ouro em Minas Gerais já estava, no alvorecer do século XVIII, montado para a grande ópera, no que ela tem de trágica e épica, que foi a ocupação, exploração e povoamento dos sertões de Goiás-Tocantins. As tênues, mas constantemente avivadas, marcas dos primeiros caminhos em direção ao território goiano-tocantinense não mais se apagariam. Foram elas que mais tarde serviram de arcabouço e referência para se implantar as grandes rodovias de integração nacional e regional que cortam atualmente os estados de Goiás e do Tocantins, conforme se pode constatar nos mapas do Brasil e de Goiás aqui exibidos.

No início, como enfatizamos, esses caminhos tinham como ponto de partida a Vila de São Paulo, cabeça-de-ponte entre a Capitania de São Vicente – produtora de açúcar, mas carente de mão-de-obra escrava para tocar a lavoura e os engenhos de cana – e o sertão habitado por índios escravizáveis. Concomitantemente, caminhos não menos expressivos saíam de Salvador – capital da colônia – em direção aos sertões do rio São Francisco, onde, já no século XVII, surgiram as primeiras fazendas de gado afastadas do litoral. Mais tarde, com a notícia do ouro abundante nas minas goianas, outros caminhos ligavam Vila Rica, a atual Ouro Preto, a Goiás. Com a mudança da capital de Salvador para o Rio de Janeiro (1763), o caminho real que comunicava Vila Boa ao litoral passou a ser, por razões óbvias, o do Rio de Janeiro, pois o ouro goiano não mais seria embarcado no porto de Santos, mas no da nova capital colonial, e raramente no de Salvador.

2. UMA VIDA DE RELAÇÕES

Todos esses acontecimentos – bandeira de apresamento de índios, surgimento de fazendas no mais longínquo dos sertões, busca incessante de riquezas minerais, ouro e diamantes, sobretudo –, têm como conseqüência o estabelecimento de toda uma vida de relações. Eles foram os tijolos de um mesmo edifício – o edifício colonial – que só têm significado porque se integram a um corpo maior, o espaço geográfico colonial, e nele interagem. Assim, como se fossem fios de uma grande rede, os caminhos, e toda a vida de relações que eles engendram, sustentaram e alimentaram o grande corpo, que é o território, com o que ele mais necessita para sobreviver: os homens e suas obras maravilhosas que são as cidades e os campos por eles construídos e habitados. Os caminhos descortinam os horizontes e levam consigo esperanças, ansiedades e, não poucas vezes, também amarguras, porém, mais esperanças que amarguras. Eles dão passagem, melhor seria dizer abrem passagens, a homens de toda espécie e caráter: uns obstinados pela riqueza incerta, outros, aventureiros sem maiores ideais ou em fugas permanentes, alguns, movidos pela fé cristã, outros, pela ambição e pelo poder.

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Quaisquer que tenham sido as motivações particulares e coletivas, o certo é que esses homens deixaram, nos mil e um pontos de passagens, as sementes das futuras cidades de hoje – os arraiais do ouro de outrora. Tudo, ou quase tudo, na antiga capitania de Goiás, parece ter nascido dessa vida relações engendrada pelo ouro e pelas atividades a ele inerentes: caminhos, fazendas de gado, registros aduaneiros, presídios e fortificações militares, aldeamentos indígenas, pousos de tropas e boiadas e tantas outras motivações que ajudaram a povoar e a urbanizar o espaço goiano-tocantinense.

Essa saga, pois tratava-se de uma autêntica saga, dadas as histórias de alegria e de tristeza, de perdas humanas e materiais, de violência e desobediência aos mais elementares valores sociais, éticos e morais, foi contada com muito mais detalhe e realismo pelas crônicas e relatos – escritos e orais – da época e condensados, primeiro por Silva e Souza (1967) e depois, apoiado em documentação oficial, por Alencastre (1979). Dentre os viajantes estrangeiros que visitaram Goiás, os que mais contribuíram para a historiografia desse período foram sem dúvida o francês Auguste de Saint-Hilaire (1937) e o austríaco Johan Emmanuel Pohl (1951). Porém, em Goiás, ninguém melhor que Luís Palacin entendeu e retratou essa vida de relações e os processos – de produção, políticos e sociais – a ela inerentes. Esse enfoque novo que ele deu à história, com ênfase para a história das mentalidades, transparece em fino estilo literário e profundas reflexões filosóficas sobre a finalidade do homem e da sociedade, em muitas das suas inúmeras obras sobre o Brasil em geral e Goiás em particular (Palacin, 1972, 1981, 1983, 1986).

Após esse pequeno desvio temático, voltemos ao caminho inicial.

3. AS NOVAS REDES DE RELAÇÕES

Hoje, o que acontece não é muito diferente do que aconteceu no passado. Há apenas um dado a mais, pois as estradas atuais obedecem, em seu traçado, a uma outra lógica, que é a de dar sustentação e viabilidade social e econômica à apropriação do espaço e à sua produção, segundo o modo predominante de produção. Antigamente foi o ouro, e tudo o que ele engendrou – principalmente as cidades e as fazendas multifuncionais – a motivação maior a determinar a abertura dos caminhos e o desbravamento e ocupação de regiões desconhecidas. Dentre essas últimas, algumas se constituíram em autênticas zonas pioneiras dois séculos depois de descobertas e percorridas, como é o caso, por exemplo, da que chamamos de “Mato Grosso” de Goiás. Atualmente, múltiplos são os fatores, sobretudo a urbanização acelerada, dado o esvaziamento, também acelerado, do campo, que orientam a ocupação do espaço e a implantação das redes de articulação e interligação necessárias – as estradas. A agropecuária moderna continua, no entanto, sendo o fator determinante na implantação e ampliação da rede de relações sociais, econômicas e políticas que os homens constroem sem parar. Porém, enquanto que a agricultura reconquistou os cerrados – mecanização facilitada combinada com aplicação à vontade de insumos agrícolas e agrotóxicos –, a pecuária melhorada buscou as áreas de planície de todo o vale do Araguaia para criar o gado de corte voltado para o mercado externo. A estrada foi a ponta-de-lança de todo esse processo.

Reafirmando o que foi colocado no início, a estrada – aí se inclui o caminho colonial – é o resultado da mobilidade dos homens em seus deslocamentos permanentes. Reflete, assim, toda uma vida de relações que no espaço se estabeleceu e se desenvolveu e foi certamente essa vida de relações que – mais que os processos de produção – dominou a evolução da sociedade. A estrada é a própria mobilidade dos homens, é a busca de riquezas e de bem estar, o seu suporte e sustentação. Em sentido amplo, ela é o primeiro, e talvez o principal elemento de sustentação do espaço econômico – a paisagem humanizada. Ela é sem dúvida o principal equipamento à disposição dos homens que se instalam no espaço para, aí, se organizarem socialmente.

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De todas as vias de comunicação, ela não apenas é a mais antiga – antes do uso do rio e do mar como “caminhos”, houve primeiro que se inventar os meios próprios de locomoção, isto é, as pirogas primitivas e, depois, os barcos modernos –, mas também a mais flexível, “leve” e polivalente: dá passagem a homens, mercadorias, tropas e boiadas, a pé ou em montaria. Ela se ajusta à economia e à tecnologia: de simples trilha de bandeirantes e pioneiros passa à rodovia de integração nacional; de estrada de chão batido evolui para auto-estrada pavimentada e ricamente ornada com obras de arte de engenharia. Esse é um dos lados da moeda. O outro é menos, digamos, “técnico”, porque a estrada não é apenas traçado, ou seja, não é apenas abertura, mas principalmente atenção e cuidados especiais. Pelo movimento permanente dos homens e pelas riquezas que por ela escoam, a estrada é por isso mesmo um organismo vivo que necessita de permanente atenção e de cuidados especiais. Como todo organismo vivo, ela raramente sobrevive isoladamente. Ao contrário, se articula, se comunica, como fios de uma mesma rede, como artérias de um mesmo corpo, com outras estradas e caminhos. Às grandes artérias, como a aorta no corpo humano, se interligam as veias e pequenos vasos capilares. Assim, em seu conjunto, as estradas se integram ao conjunto orgânico da vida de relações de uma região, de um estado, de um país, de um continente, do mundo todo. Nesse sentido, a estrada não somente é um elemento de aproximação e de convergência de homens e entidades territoriais, mas também de problemas que interferem na vida da região, do estado, de cada um dos seus cidadãos. No passado, por exemplo, ela desarticulou a vida indígena, e continua desarticulando em regiões ainda pouco habitadas e urbanizadas, como a Amazônia; hoje, mesmo levando progresso e desenvolvimento a regiões isoladas do território estadual e nacional, ela aí introduz hábitos e costumes novos – trazidos pelos viajantes de outras terras – que acabam modificando a vida de relações sociais antes existente. Para muitos esse é o seu lado contraditório como elemento de progresso e desenvolvimento; para outros, esse é o seu papel legítimo e inexorável: abrir o espaço à ação permanente dos homens, quaisquer que sejam as motivações e os interesses em jogo.

4. O INÍCIO DESSA VIDA DE RELAÇÕES

No Brasil colonial do Centro-Oeste (Goiás, Tocantins e o antigo Mato Grosso) e em Minas Gerais, a estrada, ou melhor, o caminho colonial, foi a expressão da economia aurífera. Muitos deles desapareceram ou só tiveram ida sem volta, porque o ouro minguara ou sumira de vez. Outros permanecem vivos em nossa paisagem geográfica, porque se transformaram em importantes vias de integração nacional ou regional. Esse é o caso, por exemplo, dos “caminhos reais” saindo de São Paulo, Rio de Janeiro e Salvador em direção às minas goiano-tocantinenses.

Com base no primeiro mapa, de 1751, em que a Capitania de Goiás é mostrada inteiramente5, pôde-se reconstituir o trajeto do caminho real de São Paulo a Vila Boa, a cidade de Goiás, que, dentre

5 Francisco Tosi COLOMBINA. Mapa da Capitania de Goyaz e regiões circunvizinhas que mostra as comunicações entre as bacias do Prata e do Amazonas...Villa Boa de Goyaz 6 de abril de 1751. Conforme Isa Adonias (1963, v. I, p. 278), trata-se de um exemplar manuscrito aquarelado, conservado na Diretoria do Serviço Geográfico (DSG), Rio de Janeiro. Outro exemplar existe no Arquivo Público de Minas Gerais, bem como cópias atuais em papel vegetal conservadas na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Desse mapa se serviu D. Marcos de Noronha para propor, em carta a el-rei de 1753, os limites da Capitania de Goiás – Projeto de Limites – na verdade, esboçados em 1750.

Colombina, na qualidade de cosmógrafo (assim eram chamados os antigos cartógrafos), acompanhou o primeiro governador de Goiás, D. Marcos de Noronha, quando aqui chegou em 1749 para tomar posse. Sua obra cartográfica, da qual se gabava como sendo um das mais corretas das que se faziam no Brasil, era na verdade uma cartografia expedita, prática, porque baseada apenas em informações e roteiros de bandeirantes e exploradores do sertão (“capitães de mato”). Mas nem por isto ela deixa de ser interessante e de se constituir naquilo que poderíamos chamar, como foi para o Brasil a carta de Pero Vaz de Caminha, “a certidão de nascimento” de Goiás -Tocantins. É nesse mapa de 1751 que realmente o atual território goiano-tocantinense aparece pela primeira vez e de forma particular (cf. Teixeira Neto, 1975, p. 81-82).

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outros pontos, interligava as localidades antigas e atuais de Jundiaí, Campinas, Mogi-Mirim, Mogi-Guaçu, Aguaí, São José do Rio Pardo, Mococa, Altinópolis, rio Sapucaí – na confluência com o ribeirão da Paciência, local de um aldeamento –, Franca, Ituverava e rio Grande, na divisa com Minas Gerais. No Triângulo Mineiro, então chamado “Sertão da Farinha Podre”, que pertencia à capitania de Goiás, buscava-se a direção norte, via Uberaba, ou então desviava-se para o leste, em direção a Desemboque e Araxá, contornando as cabeceiras do rio Paranaíba, para então juntar-se à estrada do Rio de Janeiro. Por Uberaba chegava-se a Uberabinha (atual Uberlândia), Registro do rio das Velhas, próximo à cidade de Araguari e, atravessando o rio Paranaíba, à altura da cidade atual de Anhangüera, chegava-se a Catalão. Mesmo não tendo sido um autêntico arraial do ouro, Catalão foi certamente a principal porta de entrada nas terras goianas durante quase duzentos anos. De Catalão, o caminho conduzia às cidades atuais de Ipameri e Pires do Rio em direção ao importante arraial do ouro que foi Santa Cruz de Goiás. Daqui, contornando as cabeceiras do rio Piracanjuba, e tangenciando o arraial de Bonfim – atual Silvânia –, chegava-se a Corumbá de Goiás e ao arraial de Meya-Ponte, a cidade de Pirenópolis, o mais importante ponto de convergência de todos os caminhos coloniais que demandavam aGoiás. Por sua posição estratégica nessa rede de relações, Pirenópolis foi, sem dúvida, ao lado de Vila Boa de Goiás, o único arraial colonial que sobreviveu sem grandes dificuldades ao esgotamento prematuro das minas. De Pirenópoilis, os caminhos de São Paulo e Rio de Janeiro se abriam em duas direções: para o oeste e para as minas do Tocantins, ao norte da capitania. Em direção ao oeste, buscavam-se as minas de Cuiabá e a distante Villa Bella da Santíssima Trindade, erguida como local fortificado às margens do rio Guaporé, próximo à fronteira com as províncias espanholas, e que, a partir de 1752, passaria a ser a capital do Mato Grosso até o ano de 1820, quando Cuiabá retoma esse título. Nesse trajeto, o caminho passava por Jaraguá, Curralinho – atual Itaberaí –, Ouro Fino, Villa Boa de Goiás, Barra, hoje Buenolândia, Anta – ou Pilões e Rio Claro (fazendo um pequeno desvio por aqueles arraiais supostamente diamantíferos ) –, Itapirapuã, Jussara e registro do rio Grande, hoje Registro do Araraguaia, Barra do Garças, General Carneiro, Primavera do Leste, Chapada dos Guimarães, Cuiabá, Poconé, Cáceres e Villa Bella. Para o norte da capitania, em direção às minas do Tocantins, o caminho servia as localidades de Trayras (atual Tupiraçaba, um dos mais prósperos arraiais do ouro, hoje reduzido a ruínas), São José do Tocantins (Niquelândia), Cavalcante, São Félix (praticamente desaparecida do mapa), Arraias, Conceição do Norte (Conceição do Tocantins), Natividade, onde se juntava com o caminho da Bahia, Monte do Carmo e a importante cabeça-de-navegação no Tocantins, que era o arraial de Porto Real (depois batizado de Porto Imperial e, hoje, de Porto Nacional).

O caminho real partindo rio de Janeiro, percorrido por figuras ilustres da administração colonial, como o Capitão-General Luís d’Albuquerque Pereira e Cáceres, de cuja viagem, em 1772, resultou um mapa minucioso para a época6, passava pelas localidades de Petrópolis, Três Rios (ex-Parayba), Juiz de Fora, Santos Dumont, Barbacena, Conselheiro Lafaiete, Ouro Preto (antiga Villa Rica e capital das Minas Gerais), rio das Velhas, Caeté, Sabará, Belo Horizonte, Curvelo, Corinto, Andrequicé, hoje afastada do novo traçado da BR-040, rio São Francisco, à altura de Três Marias, Abaeté, João Pinheiro, Paracatu, Arrependidos (rio São Marcos), rio São Bartolomeu, Santa Luzia (Luziânia), Brasília, Santo Antônio do Descoberto, Corumbá de Goiás e Meya-Ponte (Pirenópolis). Daqui à cidade de Goiás, o trajeto é o mesmo descrito no parágrafo anterior.

De Salvador para Goiás, em direção ao vale do rio Tocantins, o caminho passava por Feira de Santana (que desde o século XVII já era importante feira de gado do nordeste brasileiro), Ipirá, Mundo

6 “Carta de toda a porção da América Meridional que pareceu necessária a manifestar a viagem de 569 léguas comuns da escala e cidade do Rio de Janeiro, executou por terra em 17 do mês de maio de 1772 para a Vila Bella da Santíssima Trindade o Governador e Capitão General do Estado (Capitania) do Mato Grosso e Cuyabá, Luís d’Albuquerque de Mello Pereira e Cáceres do Conselho de Sua Magestade Fidelíssima que Deos o guarde”. (Cópia fotostática do original conservado na mapoteca do Itamaraty, Rio de Janeiro).

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Novo, Morro do Chapéu, rio São Francisco, à altura de Ibotirama, Barreiras, Mimoso do Oeste (atualmente Luís Eduardo Magalhães), Serra Geral e, daqui, aos arraiais do Duro

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(Dianópolis) e Natividade. Como a antiga Meya-Ponte, no norte da Capitania Natividade exercia o importante papel de entroncamento de caminhos levando ao rio Tocantins e às minas de Arrayas, Chapéu (Monte Alegre de Goiás), São Domingos, Cavalcante, São Félix, Trayras, São José do Tocantins, Cocal, Água Quente, Amaro Leite – cuja sede municipal de hoje é Mara Rosa –, Pilar, Guarinos..., em direção à capital, Villa Boa, fechando o périplo que os caminhos do século XVIII constituíam. Pelo sudeste da Capitania ia-se de Couros (Formosa) ao noroeste de Minas Gerais, em direção à cidade de Salvador, por antigos caminhos de tropas e boiadas, passando por Januária, Cariranha, Caetité, Jequié e Nazaré, conforme é mostrado no mapa acima.

Com relação à antiga capitania (o atual território goiano-tocantinense), a rede de caminhos tinha por finalidade interligar os antigos arraiais do ouro, que tinham como principais pontos de convergências as atuais cidade de Pirenópolis (em Goiás), Natividade (no Tocantins) e, obviamente, a antiga Villa Boa, a atual Cidade de Goiás, como se pode ver no mapa abaixo.

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5. OUTROS CAMINHOS DE ONTEM E DE HOJE E SEUS IMPACTOS NO PROCESSO DE

OCUPAÇÃO E URBANIZAÇÃO DO TERRITÓRIO Os caminhos das tropas e boiadas. Com o surgimento de outras cidades, já no século XIX,

como Campinas (atualmente bairro de Goiânia), Piracanjuba (ex-Pouso Alto), Morrinhos (antiga Villa

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Bella de Morrinhos), Itumbiara (batizada primeiro de Santa Rita do Paranayba), Rio Verde (Dores do Rio Verde), Jataí (ex-Paraíso), Mineiros e, principalmente, Santana das Antas (Anápolis) outras, as grandes rodovias atuais que são, respectivamente, a BR-153, a BR-060 e a BR-364, não são mais que os traçados antigos, com pequenas modificações, dos antigos caminhos imperiais e provinciais que ligavam Villa Boa a São Paulo, via Barretos e Ribeirão Preto, e a Cuiabá, pelo sudoeste de Goiás, via Alto Araguaia e Rondonópolis. A BR-070, ligando Brasília a Cuiabá, via Pirenópolis, Goiás, Jussara, Barra do Garças é o mesmo caminho do século XVIII a que já nos referimos, chamado de “estrada do Cuiabá”. A GO-118 é o caminho que, de Planaltina (antiga Mestre d’Armas) se chegava a Arraias e Natividade; a BR-242, atravessando os chapadões ocidentais do rio São Francisco, é, em sua quase totalidade, a estrada colonial da Bahia, levando a Salvador via Barreiras e Feira de Santana; a BR-050, a partir de Catalão, é o caminho pioneiro dos bandeirantes, que, atualmente corrigido em boa parte do seu percurso, forma uma das mais importantes auto-estradas de São Paulo, a via Anhangüera. Outros velhos caminhos ficaram em segundo plano, como o trecho da estrada real que ligava Catalão a Meya-Ponte (Pirenópolis), via Santa Cruz, pois apenas parte dele, em decorrência do aparecimento de cidades mais novas e mais dinâmicas, como Anápolis, Vianópolis, Leopoldo de Bulhões, dentre outras, corresponde às atuais GO-020 e GO-330. A BR-040, em sua quase totalidade, salvo apenas pequenas correções aqui e ali, é a rodovia que melhor se superpõe ao antigo caminho real do Rio de Janeiro.

É, porém, no século seguinte, com a entrada da ferrovia e do caminhão em Goiás, que as grandes transformações espaciais vão ocorrer, principalmente após o enfraquecimento das velhas oligarquias rurais provocado pela Revolução de 30. Não há como negar que a fase de nossa história que se situa entre os anos 1930 e 1960 é, sobretudo, aquela em que os olhos dos brasileiros do litoral se voltam para a grande retaguarda territorial, que são o Centro-Oeste e a Amazônia e que marca o início da modernização da agricultura e, principalmente, do avanço das frentes pioneiras, eventos estes que contribuíram enormemente para o que se costuma chamar de “urbanização da fronteira”. Nas décadas seguintes à consolidação da fronteira, já sob o impacto de outras políticas com vistas ao fortalecimento do grande capital nacional e internacional e ao favorecimento às grandes empresas rurais e industriais – nascimento e desenvolvimento do agronegócio e das grandes obras de impacto ambiental, como a mineração e as gigantescas hidrelétricas –, o campo vai se esvaziar, as cidades vão multiplicar e o cerrado vai sofrer as piores conseqüências, ao se transformar no novo Eldorado do capitalismo agrário brasileiro. Uma coisa, contudo, é inegável, pois, foi nesse período, marcado essencialmente por ocupações pioneiras em regiões pouco exploradas do território goiano – Mato Grosso de Goiás, com a implantação da Colônia Agrícola Nacional de Goiás no vale do São Patrício, Vale do Araguaia, entre as cidades de Goiás e São Miguel do Araguaia, e, no Tocantins, o Bico do Papagaio –, que o quadro urbano-municipal mais cresceu: 126 novos municípios a mais em 1960, totalizando 179 (33 no Tocantins e 146 em Goiás) contra 54 em 1931, ou seja, aumento de 238%. Não se trata, porém, de um crescimento homogêneo, ou melhor, de um fenômeno que atingiu de maneira generalizada todo o território goiano-tocantinense. A construção e a mudança da capital para Goiânia e o início da construção de Brasília, bem como a abertura das grandes rodovias de integração nacional a que se referiu logo acima (BR-153 ou Belém-Brasília, BR-020 ou Brasília-Fortaleza, BR-060 ou Brasília-Cuiabá) responderam por esse boom urbano.

A fase seguinte (a partir de 1961 até o presente) coincide, no Brasil, com eventos políticos e sociais que deixaram marcas profundas em nossa história. O primeiro deles é, a partir de 1964, a afirmação da política econômica comandada pelo Estado, que culminou com a realização de obras gigantescas com repercussões enormes sobre o meio ambiente e sobre a economia nacional, principalmente no que tange o endividamento externo. Para boa parte dos economistas brasileiros, foi nesse período – denominado “anos de chumbo”, por oposição aos “anos dourados” – que o Estado brasileiro promoveu as mudanças estruturais e realizou as grandes obras de infraestrutura – rodovias, telecomunicações e, sobretudo, grandes centrais hidrelétricas e nucleares – que permitiram ao país se adequar face ao modelo neoliberal do capitalismo internacional. Foi no auge desse período – o do “milagre econômico” – que, devida à ação direta do Estado brasileiro, a economia e a organização

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social e política da União é vista como modelo a ser seguido por outros países. O Chile, com a queda de Salvador Allende, seguiu o mesmo caminho e, do mesmo modo, manchou a sua história como um dos regimes militares mais truculentos e violentos da América Latina.

Naquele Brasil de então tudo era superlativo, inclusive o deslocamento de milhares de brasileiros do Nordeste pobre para povoar os grandes espaços vazios da Amazônia e do Centro-Oeste e dar início ao processo de colonização forçada daquelas regiões. Abrem-se as grandes rodovias que serviriam de ponta de lança para o projeto de colonização – BR-230 (Transamazônica), BR-163 (Cuiabá-Santarém), BR-158 (desde Barra do Garças, margeando o Araguaia pelo lado esquerdo, em território matogrossense e paraense até encontrar-se com o rio Tocantins), BB-319 (Porto Velho-Manaus), BR-174 (Manaus-Boa Vista), etc – e, no campo da agricultura, tem início a cooptação do bioma cerrado pela monocultura da soja. Os projetos de colonização da Amazônia fracassaram, mas a região, como planejara o grande capital nacional e internacional, abriu-se definitivamente para a economia de alcance mundial, pois, grandes áreas griladas ou adquiridas facilmente por grandes corporações econômicas nacionais e internacionais se transformaram em grandes empresas para explorar o solo e o subsolo brasileiros. Entre os grandes projetos agropecuários e de mineração, os exemplo mais visível foi o Projeto Jarí, comandado pelo bilionário norte-americano Daniel Ludwig. Muitos deles se transformaram em grandes latifúndios produtivos e não-produtivos. Ao fracassarem como mega projetos, a alternativa encontrada foi abrir o espaço à pecuária praticada sobre pastagens plantadas, o que fez da Amazônia legal a maior área de conflitos sociais no campo e fonte de preocupações geoambientais, como o avanço da fronteira sobre o que se pode considerar o pulmão do planeta – a grande floresta equatorial. As queimadas anuais contribuem para aumentar, em escala mundial, o maior perigo que ronda o planeta Terra: o aquecimento global. Porém, não obstante todos esses problemas e os dramas humanos e ecológicos – a incursão de madeireiros e de garimpeiros em áreas de parques e reservas nacionais, em áreas indígenas e de proteção ambiental, como o Pantanal Matogrossense, por exemplo –, foi na Amazônia e no Centro-Oeste que se implantou o maior projeto de exploração de riquezas naturais do mundo – Projeto Grande Carajás, que explora o minério de ferro – e que se construíram grandes hidrelétricas – Tucuruí – e se financiaram grandes sociedades anônimas do campo de propriedade de gigantescas empresas nacionais e supranacionais, como Ford, Globo, Bordon, Bradesco, etc.

A extensão rural, apoiada que foi em políticas de crédito rural e assistência técnica, durou enquanto também durou no Brasil o que se chamou de “anos dourados”. Após 1968, durante os “anos de chumbo”, os Planos Nacionais de Desenvolvimento (PNDs) dos governos militares acabaram com as políticas extensionistas que vinham sendo executadas, fecharam os escritórios das Associações de Créditos e Assistência Rural (ACAR) e privilegiaram o grande capital financeiro nacional e internacional através do que social e economicamente se constituiu em um grande fracasso histórico: a criação e execução em 1970 do Plano de Integração Nacional – PIN. Isto já era uma exigência da economia capitalista mundial para países em vias de desenvolvimento, como o Brasil. Ao antever as crises econômicas – como a do petróleo – que não tardariam a chegar, esses países deveriam se transformar em periferias modernas e celeiro mundial para abastecer os países centrais em produtos nobres, como grãos (no caso, a soja), carne, produzida em pastagens verdejantes, e, mais tarde, com a criação do Pró-álcool, combustível alternativo a partir de fontes renováveis, principalmente, a cana de açúcar. Diante de tão brusca mudança que, em síntese, relegava à própria sorte o destino de milhões de famílias camponesas que viviam e dependiam da terra para produzir nem que fosse para o próprio sustento, a ideologia do modelo difusionista inovador (empréstimos com juros módicos, vacinas e medicamentos para animais e pessoas, assistência às donas de casa que cuidavam das crianças, manutenção de hortas, aulas de costura para as meninas, etc), apesar de fechar os olhos para a miséria que reinava no campo no Brasil, trazia em seu bojo uma intenção contrária ao que pregava o PIN: prender o camponês e sua família à terra e proporcionar-lhe uma qualidade de vida doméstica

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melhor. Como nos mostra a educadora Maria Tereza Fonseca em seu trabalho sobre a extensão rural no Brasil (1985, p. 39 e 46), a Carta de Punta del Leste, que instituiu a “Aliança Para o Progresso” em 1961, consolidaria a política do modelo extensionista e confirmaria o que os americanos pensavam na época: fazer face ao perigo comunista instalado em Cuba, combatendo as desigualdades econômicas e sociais na América Latina.

Nos dias atuais, a “Belém-Brasília” (parte mais importante da BR-153 em território goiano-tocantinense) e a “Estrada do Boi” (GO-164), que liga a cidade de Goiás à BR-153 à altura de Alvorada do Tocantins, através do vale do médio Araguaia, já contam uma outra história: a das transformações mais recentes do espaço ocorridas em nosso Estado, sobretudo a partir dos anos 1940. Com toda evidência, elas foram, ao lado da Estrada de Ferro Goiás, os caminhos que maiores impactos produziram na vida sócioeconômica e política dos Estados de Goiás e do Tocantins. Por exemplo: a “Belém-Brasília” tirou do isolamento em que se encontrava até praticamente os anos 1950 toda a Mesopotâmia goiana – a extensa região situada entre os rios Tocantins e Araguaia –, incorporando-a definitivamente à economia de mercado. O ponto de partida foi, no início dos anos 1940, a criação da “Colônia Agrícola Nacional de Goiás” – CANG – e a abertura da futura BR-153, chamada inicialmente de “Transbrasiliana” e depois de BR-14, entre as cidade de Anápolis e Ceres (1941-1944), e depois estendendo-se até à cidade de Belém, cuja epopéia é contada em livro de inestimável valor geopolítico e histórico pelos geógrafos Orlando Valverde e Catharina Vergolina Dias, publicado em1967.

A “Estrada do Boi” foi talvez a última grande obra no território goiano-tocantinense construída ainda sob o espírito pioneiro e colonizador que tomava conta de Goiás a partir de meados do século XIX, mas que, sob o governo moderno de Juscelino Kubitschek (1956-1960), ainda se encaixava perfeitamente na filosofia do seu conhecidíssimo Plano de Metas: integração do território nacional a partir de um marco de referência, que foi Brasília, e que, dentre outros objetivos (cf. Barreira, 1997, p. 23), visava à consolidação de uma extensa periferia para produzir excedentes e matérias-primas e consumir produtos industrializados, bem como absorver contingentes migratórios procedentes de outras regiões do Brasil (Nordeste Minas Gerais, sobretudo). Sua consolidação deu-se nos anos 1970, à mesma época da fracassada tentativa de “colonizar” a Amazônia, sob a ideologia do “milagre brasileiro”.

Então, nas últimas quatro décadas da história goiano-tocantinense – marcadas que foram pela revolução científica e tecnológica –, cidades e municípios foram surgindo e evoluindo sob um novo paradigma da economia mundial – a globalização – e, conseqüentemente, pelas mudanças radicais que ele provocou no meio rural – o florescimento do agronegócio introduzido pela modernização acelerada da agricultura –, no que redundou no esvaziamento acelerado do campo e no inchaço das cidades e suas periferias pobres. Neste processo, a abertura dos grandes eixos de circulação funcionou como pontas de lança, abrindo o território à ocupação, geralmente desordenada, do espaço e deixando no solo as bases de conquista, que são as cidades, independentemente de seu tamanho e importância no contexto regional ou mesmo local. O surgimento, a evolução e a organização atual da rede urbano goiano-tocantinense evidenciam o papel das rodovias nesse processo de urbanização e municipalização do território, como se pode observar nos mapas abaixo.

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6. OS PILARES INICIAIS DO NASCIMENTO E DESENVOLVIMENTO DA

REDE MUNICIPAL

A rede municipal e urbana atual dos estados de Goiás e do Tocantins se formou e se desenvolveu a partir de dois pilares iniciais: Villa Boa, a Cidade de Goiás – que, sozinha, “polarizou” por quase um século o território de aproximadamente um milhão de quilômetros quadrados da então Capitania de Goiás –, e a Vila de São João da Palma, a atual cidade de Paranã, designada cabeça da Comarca do Norte (Tocantins). Em 1736, o antigo arraial de Sant’Anna foi elevado à condição de vila, status de aglomeração urbana mais importante da capitania de Goiás e de sede do primeiro município. Foram necessários mais oitenta e oito anos para que surgisse a segunda vila em Goiás, melhor dizendo, o segundo município – a Villa de São João da Palma, criada por D. João VI, conforme Alvará de 25/1/1814, e instalada pelo Ouvidor Joaquim Teotônio Segurado em 27/10/1815. Na verdade, a Villa da Palma foi instalada no antigo arraial do ouro, cuja fundação remonta aos anos de 1740. Foi elevado a esta condição para ser a nova sede da Comarca do Norte em substituição à Villa de São João das Duas Barras, criada em 1809 e, como se viu, erguida muito distante dos goianos da época, na confluência dos rios Tocantins e Araguaia, em pleno território paraense. Segundo o IBGE (1958, p. 325), por força da Lei Provincial de 5/10/1857, foi a Villa de São João da Palma elevada à categoria de cidade. Atualmente, chama-se Paranã e é o segundo maior município tocantinense em extensão territorial, com 11.260 quilômetros quadrados (o primeiro é o de Formoso do Araguaia), mas abrigando menos de 1 habitante para cada quilômetro quadradoi. Registre-se que em 1950, quase um século depois de elevada ao status de cidade, a antiga Villa de São João da Palma contava com uma população urbana de apenas 588 pessoas. A grande maioria dos habitantes ainda morava, como de resto em praticamente todos os municípios goianos da época, na zona rural. Meio século mais tarde, segundo o último recenseamento realizado pelo IBGE (2000), o município de Paranã continua sendo o segundo mais extenso, mas sua população pouco cresceu: conta apenas com 10.416 habitantes, dos quais somente 2.833 vivem na cidade.

Quando se diz que todos os municípios goianos surgiram dos ventres, primeiro de Villa Boa e depois de Villa de São da Palma, significa que foi nessas duas povoações que a administração colonial instalou os poderes que caracterizavam a administração e a justiça, isto é, os instrumentos do espírito municipal da época. Desse modo, os outros arraiais estavam, no plano administrativo e judiciário, àquelas duas vilas subordinados. No que concerne à justiça ordinária, os julgados – espécie de termos das duas grandes comarcas, a do Sul e a do Norte – reuniam arraiais próximos um dos outros, cuja sede recaía sobre o arraial mais importante, denominado cabeça de julgado. É por isso que se diz que dos ventres de Villa Boa e de São João da Palma saíram todos os municípios goianos e tocantinenses, pois, na imensidão do território colonial somente aquelas duas aglomerações foram elevadas à condição de vila e cabeça de comarca, logo, à condição de município, para, como determinavam as resoluções do Conselho Ultramarino, abrigar o poder municipal (exercido administrativamente pela câmara de vereadores) e levantar o pelourinho (símbolo da justiça no Brasil colonial). Estrategicamente erguida na confluência dos rios Palma e Paranã, a pouca distância do rio Tocantins, a Villa de São João da Palma foi cabeça de navegação da única via de comunicação que durante quase dois séculos ligou o território goiano à cidade de Belém e ao mar.

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Após esse pequeno preâmbulo, uma questão final emerge: o que a antiga Villa de São João da Palma, situada em território tocantinense, tem a ver com o desenvolvimento da rede urbana de Goiás? Muita coisa, pois, se Villa Boa “polarizava” a metade sul do território da antiga capitania, São João da Palma, dali em diante, “polarizaria” a metade norte. Foi de seu ventre que, além de Cavalcante, “saíram” 25 outros municípios do Nordeste Goiano, à qual estavam subordinados. Convém repetir que antes do advento da independência, e até mesmo depois, o status de município só era conferido às aglomerações elevadas à condição de vila. Existiam arraiais bem mais antigos, e até mais importantes que o de São João da Palma, que mereciam serem elevados àquela condição, como, entre outros, os de Meya Ponte (Pirenópolis), Santa Luzia (Luziânia), Natividade, Porto Real (Porto Nacional). Mas, a questão não se resumia ao tamanho ou à importância econômica e até mesmo política deste ou daquele arraial, e sim à sua posição geográfica com relação à rede de arraiais a comandar. Desse modo, por tratar-se de uma questão muito mais geopolítica e estratégica que puramente administrativa ou judiciária, viu-se que no contexto geográfico e histórico da época, pelas razões já apontadas, São João da Palma, situada no coração do território tocantinense povoado, levava vantagem sobre outros arraiais bem mais importantes, pelo menos em termos populacionais. Além do mais, aquele arraial era a primeira porta de entrada e saída da principal via de navegação de toda a metade norte da Capitania – o rio Tocantins –, que até meados do século XX, antes do advento da “Belém-Brasília” (BR-153), era o único caminho mais ou menos seguro para se chegar a Belém, ou seja, ao mar.

Do ponto de vista político, naquela época, São João da Palma, por sua situação geográfica com relação às cidades do norte da Capitania – do mesmo modo que Palmas na atualidade –, respondia melhor aos interesses imediatos da administração e do judiciário colonial em fim de vida que qualquer outro arraial, isto é: criar uma segunda cabeça de comarca e, assim, dar melhor e mais rápido encaminhamento às questões do judiciário e, indiretamente, do executivo. Então, no bojo da repartição judiciária do território criaram-se também as bases para as redivisões municipais que se processaram ao longo do tempo.

6. CONCLUSÃO Uma coisa é certa e irrefutável: os caminhos pioneiros de ontem são as rodovias modernas de

hoje. Se não se superpõem totalmente, como se imaginava que assim fosse, isto tem uma explicação óbvia: nada é definitivo e permanente em se tratando da ação dos homens. Os caminhos antigos refletem na paisagem geográfica as realidades e possibilidades políticas e sócioeconômicas de uma época. Pelo menos é assim que se pensa. Indecisos, quase aleatórios, esses caminhos seguiam mais a intuição e o conhecimento prático dos primeiros desbravadores que a ação planejada que requer uma obra definitiva moderna. Esses pioneiros tinham, entretanto, uma certeza: num território tão continental como o nosso, os caminhos certamente levariam à descoberta de algum tesouro escondido, ou pelo menos ao alargamento dos horizontes, tão a gosto dos bandeirantes e aventureiros e da geopolítica portuguesa do século XVIII. De fortuito, aliás, quase nada houve, senão que rumo tomar. Tomaram primeiro os caminhos das águas, que têm começo e fim. Depois, por terra, foram levados a outras águas, fechando o périplo e descobrindo que do coração do continente uma imensa rede de caminhos fluviais se dispersava para todas as direções do território brasileiro. Estava, assim, descoberta a vocação geopolítica do Planalto Central. A construção de capitais modernas – primeiro Goiânia, e depois Brasília e Palmas –, apenas corrobora essa vocação.

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Os caminhos das águas são, porém, mais difíceis de ser domados. Têm também suas limitações, e uma delas é não mudar de rumo segundo o desejo de quem o percorre. A correnteza impõe ao viajante apenas duas únicas direções: ou buscar as nascentes, onde ela tem início, ou o mar, onde ela “morre” em definitivo.

Por seu lado, os caminhos terrestre, os mais universais dos sistemas de comunicação, oferecem aos indivíduos outra possibilidade: romper as disparidades e descontinuidades do espaço, pois os caminhos atravessam vales, contornam dificuldades do relevo, furam matas e florestas. São maleáveis, levam aos lugares em que se quer chegar. Se adaptam ao meio natural e mudam de rumo e traçado quando se quer e se deseja. Foi assim que aconteceu no início: de simples trilhas evoluíram para uma autêntica rede de comunicações, órgão de comando do território e instrumento de intercâmbio, fruto da mobilidade dos homens e da rede de relações que se estabeleceu e se desenvolveu no espaço. Uma vez consolidadas, atraíram para suas margens populações que logo criaram as bases de conquistas do território: as cidades.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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PALACIN, Luís. Goiás (1972). 1722-1822. Estrutura e conjuntura numa Capitania de minas. Goiânia: Oriente PALACIN, Luis. Sociedade colonial (1981). 1549/1599. Goiânia: Ed. da UFG PALACIN, Luis (1983). Subrversão e corrupção. Um estudo da administração pombalina em Goiás. Goiânia: Ed. da UFG PALACIN, Luis (1986). Quatro tempos de ideologia em Goiás. Goiânia: CERNE

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SAINT-HILAIRE, Auguste de (1937). Viagem às nascentes do rio São Francisco e pela Província de Goyaz. Trad. de Cláudio Ribeiro Lessa. São Paulo: Cia. Ed. Nacional, Brasiliana, v. 68 e 72 SILVA e SOUZA, Luís Antônio da (1967). O descobrimento da Capitania de Goiás. 1812. Goiânia: Imprensa da UFG TEIXEIRA NETO, Antônio (1975). O Estado de Goiás na cartografia luso-brasileira dos séculos XVIII e XIX. Paris: Université Paris VII (tese de doutoramento em língua francesa)

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VALVERDE, Orlando & DIAS, Catharina Vergolina (1967). A rodovia Belém-Brasília. Rio de Janeiro: Fundação IBGE

UMA HISTÓRIA DE DEUS DE KAREN ARMSTRONG COMO INTRODUÇÃO À HISTÓRIA DAS RELIGIÕES.

Eduardo Basto de Albuquerque Doutor em História UNESP – Campus de Assis, SP.

[email protected].

Nesta comunicação vou tratar dos pressupostos teóricos e metodológicos da obra de Karen

Armstrong intitulada Uma História de Deus sob a ótica do historiador que trabalha com o fenômeno

religioso. E a maneira de preâmbulo, realizarei uma série de reflexões acerca do campo das disciplinas

históricas que tratam da religião.

Observar e interpretar a religião do outro é tão antigo quanto o conhecimento histórico. E

lembremos que o saber histórico abrangeu e incluiu durante muitos séculos tudo o que separamos hoje

em várias disciplinas das Ciências Humanas. A divisão decorreu da ampliação dos objetos e da

complexidade metodológica empregada no seu tratamento. Assim, o saber histórico até quase a

segunda metade do século XIX, englobava a sociologia, a antropologia, a economia, a religião, a

política e é claro, a história e que hoje apelidamos de ‘tradicional’. Mas gostaria de reafirmar o que

distingue o saber histórico de outros saberes organizados em campos e disciplinas é pressupor o

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tempo como o fundamento de onde partem todas as suas reflexões e análises. Sem o tempo não há

historiador. Breve ou curto e longo ou muito longo, é sempre das malhas do tempo de onde todo

historiador parte para realizar suas análises.

A História das Religiões ganhou impulso no século XIX. Os seus estudos se inseriam no

quadro das concepções evolucionistas, naturalistas e positivistas predominantes e foi marcada por

duas posturas teóricas e metodológicas fundamentais ora se combinando ora se opondo. A primeira,

considerava legítima a pesquisa histórica fundada em documentos que comprovassem todo raciocínio

e toda conclusão obtida pelo historiador. A segunda postura é a que tentava abstrair os dados

empíricos, às vezes sem ignorá-los, e buscando alcançar algum resultado para além deles. A

pretensão maior era abranger na História das Religiões as mais diferentes formas de experiência

religiosa contidas nos mitos, nos ritos e nos símbolos e para tanto, se aplicava abordagens ancoradas

na perspectiva sociológica, antropológica, econômica e psicológica onde diminuísse o privilégio do

evento político e dos indivíduos predominante no pensamento historiográfico. Ademais, tais

concepções debateram o lugar de cada religião numa escala ascendente composta por etapas a ser

superadas, variando sua nomenclatura mas classificando-as em naturalismo, politeísmo e monoteísmo.

O embate previa também o fim do monoteísmo e o triunfo da crescente secularização com o

predomínio do ateísmo militante e a vitória do anti-clericalismo.

Este panorama intelectual não gerou somente a História das Religiões e sim também outras

modalidades de abordagens historiográficas das religiões. Vou simplificar e afirmar que hoje há duas

grandes perspectivas no tratamento histórico das religiões: uma a da História das Religiões e outra a

da História Religiosa. A História da Igreja, tanto católica como das demais denominações cristãs e a

abordagem da religião nas histórias nacionais, são tributárias das orientações da História das Religiões

e da História Religiosa.

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Quando a História das Religiões se desenvolveu no século XIX, estava mais preocupada com

as origens e os períodos mais antigos das religiões, o seu método era voltado para determinar a

precisão dos textos religiosos, buscava a comparação dos discursos sagrados e a comparação entre

as experiências religiosas através de seus mitos, ritos, símbolos e instituições. Esta preocupação com

os textos escritos das religiões se mantém ainda hoje, como uma das características da História das

Religiões, como exemplifica algumas coleções publicadas por editoras como a Routledge ou a Penguin

Books, para citar duas inglesas. O que, aliás, não é distante da historiografia política tradicional.

A comparação das religiões proporcionou o desenvolvimento de várias teorias sobre a origem e

expansão das religiões Na desde o terceiro quartel do século XIX, houve uma reação ao exagero com

as especulações sobre as origens e uma espécie de retorno ao empírico. Coincidentemente, em

termos cronológicos, é quando a História das Religiões se distinguiu da antropologia e da sociologia.

Portanto a História das Religiões tem uma identidade antiga e fóruns internacionais, como os

congressos da Associação Internacional de História das Religiões à qual está filiada a Associação

Brasileira de História das Religiões que congrega estudiosos brasileiros.

A História das Religiões conta como seu traço epistemológico e metodológico fundamental e

distintivo, a comparação entre religiões, estas consideradas como sendo constituídas por grandes

conjuntos reunidos de elementos comuns que permitem aglutiná-los sob a designação de cristianismo,

judaísmo, budismo etc. Na introdução à coleção francesa Mana- Introduction à l'Histoire des

Religions em 1949, René Dussaud (1949, p. V) diz expressamente:

A História das Religiões não se confunde, com efeito, nem com a história das cidades ou dos

Estados, nem com a das instituições propriamente ditas. Ela, sobretudo se distingue pelo

método com o qual deve abordar as religiões. O método histórico estrito não pode ser

suficiente para estudar as crenças e suas formas sistematizadas que são as mitologias, nem

para dar conta dos ritos orais ou manuais.

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Na bibliografia após este texto seus tópicos permitem auferir qual a dimensão que se dava ao seu

campo de estudos: mito, mitologia, magia, religião e magia, mística, misticismo, sagrado, o mal, o

diabo, cosmogonia, cosmologia, o sol, lua, estrelas, céu, águas e mitos aferentes, terra, pedras

sagradas, concepção de tempo, tempo sagrado, espaço sagrado, orientação, sexo e sexualidade, pai,

mãe, matriarcado, gêmeos, realeza, símbolos, simbolismo, clero, culto, ritos de passagem, sacrifício,

prece, pecado e sua expiação, morte, imortalidade da alma e a salvação. Enfim, se a bibliografia não

esgota todas as possibilidades ela ambiciona abarcar o máximo possível de fenômenos e métodos

para lidar com a complexidade do campo religioso, dando uma dimensão formidável à História das

Religiões (Dussaud, 1949, p. XVII-LXIII).

Esta extensão abrangente e ambiciosa da História das Religiões foi retomada por Mircea

Eliade, talvez o mais popular dos historiadores das religiões, mostrando que não era uma inclinação de

escola, mas diretriz para a disciplina. Ele disse originalmente em 1959:

Quer lhe agrade ou não, o historiador das religiões não terminou sua obra quando reconstituiu

a história de uma forma religiosa ou quando desembaraçou seu contexto sociológico,

econômico ou político. Deve ainda compreender o significado, quer dizer que deve identificar e

iluminar as situações e as posições que induziram ou tornaram possível o aparecimento ou o

triunfo desta forma religiosa num momento particular da história". Isso constitui a verdadeira

função cultural do historiador das religiões (1978, p.18).

Em 1976, ao encerrar a coleção História das Religiões da Encyclopédie de la Pléiade, Michel

Meslin retoma e delineia a História das Religiões:

Depois destas análises dos fatos religiosos distribuídos nas mais diversas culturas do homem,

a História das Religiões pode se apresentar como uma disciplina solidamente constituída na

sua autonomia, que demonstra a possibilidade de um conhecimento empírico de uma

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sacralidade viva, obtida através estudos rigorosamente científicos de todas as formas religiosas

conhecidas desde as origens da humanidade até nossos dias (1982, p.355).

E para captar cada experiência religiosa o "método comparativo da história" seria o adequado, conclui

o autor (Meslin, 1982, p.414), reafirmando a tendência mais que secular da comparação como

fundamento metodológico da disciplina História das Religiões.

Falei das dimensões da História das Religiões num período de quase cem anos. Quero frisar

que ela tem sido praticada com objetivos muito dispares: seja para reafirmar a superioridade de uma

religião sobre as demais, seja para demonstrar que a religião é parte de um passado a ser

ultrapassado pela razão, seja para demonstrar que a religião é parte de um sistema de opressão e de

poder, seja para simples conhecimento acadêmico das religiões ou para reivindicar a perenidade da

experiência religiosa. Há muitas orientações teóricas e historiográficas. Deixo de mencionar os autores

mais antigos e fico só com alguns como Georges Dumézil, Mircea Eliade e Karen Armstrong, autora

conhecida e muito traduzida no Brasil e em quem centrarei mais de perto minhas indagações e voltarei.

Mas a História das Religiões é uma perspectiva do tratamento acadêmico histórico da religião.

Há outra que se caracteriza pelo enfoque especifico de uma religião e por não realizar a comparação

entre as religiões. É também tão antiga quanto a História das Religiões e a historiografia tradicional a

confinava nas relações Igreja e Estado ou Religião e Estado. Contudo, com as transformações

historiográficas ocorridas nos últimos oitenta anos ela ganhou novas dimensões. É a que em geral é a

mais desenvolvida nos cursos de História no Brasil. Designo-a de História Religiosa como o fez o

historiador Dominique Julia no seu balanço historiográfico das pesquisas da História Nova que tratam

de algum modo a religião (Julia, 1976, p.106-136). Contrariamente à tese de René Dussaud, Julia

argumenta que não há métodos específicos para o estudo do fenômeno religioso (Julia, 1976, p.109). É

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o contexto histórico onde se insere a religião que é essencial para compreendê-la. Daí a necessidade

de abordá-la se valendo de uma série de disciplinas. Dominique Julia completa afirmando que os

historiadores não mais atribuem um domínio diferente e específico para o objeto "religião" e seu

estatuto é o de qualquer outro objeto e como todo objeto histórico é também construído pelo

historiador. Esta perspectiva teórico-metodológica pode desenvolver aspectos históricos de uma ou

mais religiões, analisando a atuação de sujeitos individuais ou coletivos, de grandes personagens ou

líderes religiosos, personagens populares ou de instituições religiosas, mas evitando a comparação. A

História Religiosa pode se preocupar com a inserção social de uma religião específica num

determinado tempo. Muitos historiadores ensaiaram em seus estudos tratamentos inovadores ante a

História da Religiões como Marc Bloch em Os Reis Taumaturgos (1999), Jacques Le Goff em O

Nascimento do Purgatório (1985), Ginzburg em seus trabalhos sobre a feitiçaria (1988, 1991), Keith

Thomas em Religião e o declínio da magia (1991), para mencionar alguns entre os mais conhecidos

entre nós. Sinteticamente, poder-se-ia afirmar que se trata de uma perspectiva diferente da História

das Religiões, e seu traço mais marcante seria o valor do contexto como elemento básico de

explicação dos problemas religiosos dos homens.

Depois desta distinção entre campos historiográficos gostaria de tratar de outra problemática:

poderemos separar tão nitidamente em dois campos a abordagem da religião na história? A

historiografia da História das Religiões ficou imune aos questionamentos da História Religiosa?

Para responder tais analiso Karen Armstrong em seu livro Uma história de Deus. Vivendo em

nossa época autora dispõe de instrumentos bibliográficos decorrentes das duas maneiras qur examinei.

O subtítulo já indica o quadro delimitador de sua obra que almeja abarcar quatro milênios de busca do

judaísmo, cristianismo e islamismo da compreensão de Deus. O livro contém 460 páginas, glossário,

notas para cada capitulo, sugestões de leituras e índice remissivo. O tratamento das religiões é

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histórico e o seu fio condutor é a cronologia, onde o marco inicial são as primeiras idéias sobre Deus. A

autora divide seu texto numa introdução e 11 capítulos designados por temas: no começo, um único

Deus, uma luz para os gentios, a Trindade e o Deus cristão, a Unicidade no Islã, o Deus dos filósofos, o

Deus dos místicos, o Deus para os reformadores, o Iluminismo, a morte de Deus e o capitulo final que

indaga sobre o futuro de Deus.

Na introdução fixando os parâmetros iniciais, a autora esboça elementos biográficos e mostra a

relação entre sua escrita e sua vivencia religiosa, confessando que em criança teve crenças religiosas,

mas “pouca fé em Deus”. Suas memórias infantis apontam um retrato construído pela educação

religiosa de um credo assustador. Ao crescer compreendeu que havia na religião algo além do medo e

almejando alcançar Deus, entrou numa ordem religiosa católica. Infelizmente, por mais que se

esforçasse não alcançava o que almejava: “Jamais tive um vislumbre de Deus descrito pelos profetas e

místicos” (p.8) e que termina por seu abandono da vida de religiosa católica. Sua busca não se

encerrou e voltou-se para a leitura e a participação em programas de televisão sobre os primórdios do

cristianismo e a experiência religiosa. Não se formou em história e sim em letras. Por vezes, se

indagava se por suas “visões e êxtases” serem efeitos da sua epilepsia, isto também poderia ter

acontecido com os santos. No entanto, ficou convencido por seus estudos sobre a “história da religião”

que os seres humanos eram animais espirituais e através da adoração aos desuses homens e

mulheres se reconheceram como humanos.

Propõe três questões metodológicas: a primeira se a história da idéia e experiência de Deus no

judaísmo, cristianismo e islamismo seria a da projeção das necessidades e desejos humanos,

refletindo os anseios sociais em cada etapa do seu desenvolvimento. Apesar disto se confirmar

também percebeu que “em vez de esperar que Deus descesse das nuvens, eu deveria criar um sentido

dele para mim .... um sentido importante Deus era produto da imaginação criadora” (p.9-10), tema que

procurara desenvolver no livro. Uma segunda, é que o livro não seria uma história da realidade do

próprio Deus, mas uma história de como a humanidade O percebeu desde Abraão até hoje. Tal idéia

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humana de Deus tem uma história para cada grupo e em vários momentos do tempo. Cada geração

cria sua idéia de Deus do mesmo modo que também cria sua noção de ateísmo (p. 10-11). Deste

modo, afirma que não pretende uma história da evolução da idéia de Deus de um determinado ponto

avançado para um conceito final, mas uma história da “impressionante semelhança nas idéias do divino

propostas por judeus, cristãos e muçulmanos” , e que cada expressão do tema universal é diferente,

devido a habilidade e criação da imaginação (p.11). A terceira questão metodológica é que o critério

para aferir a validade da idéia de Deus é a sua funcionalidade histórica ou seja, se funciona na

transcendência do mundo material e não a sua coerência racional. E isto abre o leque para

experiências religiosas consideradas como naturais, como as budistas. Esta transcendência não é

limitada pela linguagem conceitual corrente, é uma espécie de concordância das grandes religiões.

As minhas leituras do livro identificam três eixos estruturais que organizam a exposição e

expressam o que é entendido por história de Deus. O primeiro dos eixos utilizado pela autora em vários

momentos e fala das condições contextuais históricas para sinalizar que as mudanças religiosas se

processam com as sociais, políticas e econômicas. No entanto este tipo de ilação só é explorada para

esboçar uma perspectiva de alguns grandes momentos históricos. O primeiro deles é de 800 a 200 a.

C., abrangendo do Grécia ao Extremo Oriente, período que houve a criação de novas ideologias e

sistemas religiosos e que refletem as novas condições econômicas e sociais, com o surgimento de uma

classe mercantil. O poder se transfere das mãos do rei e do sacerdote, do palácio e do templo para o

mercado. Isto propiciou um florescimento intelectual e cultural e o desenvolvimento da consciência

social, tornado-se visível a desigualdade e a exploração. Cada região criou maneiras diferentes para

lidar com as mudanças e seus problemas: taoísmo e confucionismo na China, hinduísmo e budismo na

índia, racionalismo filosófico na Europa, no Irã surgiu Zoroastro e em Israel os profetas desenvolveram

versões do monoteísmo: “Por mais estranho que pareça, a idéia de ‘Deus’, como as outras grandes da

época, desenvolveu-se numa economia de mercado, num espírito de agressivo capitalismo” (p.38). Se

afirma um Deus único que substitui a multiplicidade anterior. A nova ética advinda das religiões era a

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de misericórdia, justiça e equidade para enfrentar os desafios sociais. Se análise deste momento frisa

sua abrangência em termos espaciais, ela se restringe no seguinte.

O segundo momento histórico é o colapso da civilização no Ocidente com o ocaso do Império

Romano, afetando a espiritualidade cristã, a imagem da razão arrastada para baixo pelos caos das

paixões em tudo semelhante a Roma fonte da ordem rebaixada pelas tribos bárbaras, daí a imagem,

como em Agostinho de um Deus implacável (p. 131).

O terceiro momento advém do século XVI quando o Ocidente inicia um processo industrial,

acarretando um novo tipo de sociedade e novo ideal de humanidade, afetando o papel de Deus. Pela

primeira vez na história o Ocidente não podia mais ser ignorado pelo resto do mundo porque ele

invadia todos os espaços e exigia atenção. Armstrong argumenta que as civilizações anteriores

dependiam da agricultura e a idéia de Deus Único se desenvolveu nas cidades. Já a industrialização

trouxe mudanças nas relações mútuas entre os homens e revendo sua relação com a realidade ultima

chamada de Deus (p.295-6). Ela não se debruça em colocar a nossa época separadamente.

O segundo eixo que organiza as idéias da autora é o recurso à comparação de concepções e

de expressões de experiências religiosas. Somente me deterei em alguns exemplos. Armstrong

compara a morte em sacrifício de Cristo com o ideal budista do bodhisattva que também se dispõe a

adiar a iluminação para poder encaminhar os sofredores para ela. Mas ela aponta também a diferença:

Cristo era o único mediador entre a humanidade e o absoluto, enquanto o bodhisattva era uma

aspiração adiada para o futuro (p.97). Outro exemplo é quando afirma que na contemplação do

absoluto, as idéias e experiências são semelhantes: “O senso de presença, êxtase e temor diante de

uma realidade – chamada nirvana, o Uno, Brahma ou Deus – parece ser um estado da mente e uma

percepção natural e interminavelmente buscada pelos seres humanos” (p.114). Um derradeiro exemplo

é o da comparação entre Cristo no monte Tabor que representa para a cristandade ortodoxa a

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50

humanidade deificada, o Buda que encarna a iluminação para toda a humanidade e o imã muçulmano

transformado pela sua receptividade a Deus (p.184).

O terceiro eixo organizador dos seus argumentos é a resposta religiosa que pode retirar de

suas pesquisas sobre história e religião, quando indaga se a idéia de Deus prosperará no futuro. Seu

argumento é que a idéia de Deus como pessoa foi paulatinamente afastada desde o Velho Testamento

e o Corão. A doutrina da Trindade desenvolvida no cristianismo sugeriu que Deus estava alem da

personalidade (p.389). A pós-modernidade também rejeita a idéia de Deus como legislador, governante

ou Ser Supremo. As provas racionais da existência de Deus também não mais funcionam e esta

tentativa só levou ao ateísmo. A autora afirma só restar a experiência dos místicos que insistiram por

séculos que Deus não é outro Ser, mas uma experiência subjetiva que estaria na base do Ser. Esse

Deus seria abordado através da imaginação e expresso de muitos meios, mas dispensando e indo

além dos conceitos (p.395-6).

Karen Armstrong encerra argumentando que a história de Deus deve ser estudada para trazer

algumas lições e advertências se quisermos criar uma fé vibrante porque os seres humanos não

enfrentam o sem sentido (p.399).

Esta rápida abordagem de Uma história de Deus permite se indagar qual é a relação dela com

a História das Religiões e a História Religiosa. K. Armstrong se vale do contexto histórico como um

grande quadro compreensivo para entender mudanças religiosas, mas ele não determina as mudanças

e não seriam explicações de mudanças sociais que explicariam transformações religiosas. A

comparação não é um instrumento de interpretação do fenômeno religioso, mas uma espécie de

estratégia para melhor compreendê-lo, exceto quando encaminha para generalizações para afirmar

que as buscas da humanidade são comuns. Se uma das ambições da História das Religiões é buscar a

“estrutura” comum nos fenômenos religiosos que perpassam espaços e tempos diferentes, suas

conclusões sobre idéias comuns sobre Deus soam muito superficiais. O envolvimento com os discursos

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que expressam as experiências religiosas podem induzir a enganos porque deixa de ressaltar as

profundas diferenças. Se a História das Religiões como afirmei, lida com abstrações como o

cristianismo, judaísmo etc. de modo a classificar as experiências religiosas tal procedimento não pode

eliminar as diferenças culturais e históricas onde estas tais experiências são produzidas. E este ponto é

a grande limitação do livro de Armstrong e apesar de ser uma história temática, ela elimina as

preocupações dos historiadores seja da História das Religiões seja da História Religiosa, não há

discussão sobre a documentação utilizada e citada, não há discussões metodológicas de nenhum

gênero, enfim, a autora apesar de se valer de autores consagrados ignora as conquistas e os limites

dos dois campos que tratam historicamente das religiões.

Para concluir, gostaria de relembrar alguns pontos. A abordagem histórica dos fenômenos

religiosos nota sempre suas mudanças. Há muitas maneiras para fazer isto. Há pesquisadores que

consideram ser mais construtivo estudar as religiões no seu próprio contexto histórico e cultural mas,

esquecem, por outro lado, que este contexto é construído pelo historiador, é uma seleção para

inserção de outra seleção. Ademais, tal construção tem sido apontada pelos historiadores da

historiografia, segue certas tendências culturais. Mesmo com estes senões, há quase dois séculos se

procura traços comuns entre as religiões. Não posso deixar de apontar que causa mal estar quando

alguns pesquisadores localizam e interpretam semelhanças, mas as caracterizam de maneira diferente

de outros pesquisadores e não há nenhum consenso. Outros, lembro, tentam comparar religiões

ambicionando caracterizar a religião em si como fenômeno. Enfim, outros dizem que é possível ser

agnóstico e estudar as religiões.

Muitos intelectuais cultivadores das Ciências Humanas contemporâneas ficam perplexos com a

fragilidade das antigas barreiras positivistas às disciplinas humanísticas e como elas foram

ultrapassadas. Penso que devemos retomar o ponto de vista inaugural do historiador. Se nossas

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52

escolhas podem ser muitas e tantas vezes arbitrárias, pensarmos em termos históricos sobre a religião

pode aumentar a nossa compreensão sobre ela devido as variedades e as multiplicidades do fenômeno

religioso no tempo e no espaço e, concomitantemente, por oferecer uma pitada de humildade aos

vários modelos que construímos para entendê-las, dadas as dificuldades de entendê-las como

totalidade.

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53

A CONSTITUIÇÃO DA MEMORIA CRISTÃ A PARTIR DOS MÁRTIRES NA OBRA DE TERTULIANO.

EDUARDO SOARES DE OLIVEIRA

[email protected]

A literatura romano-latina tem sua expansão e auge nos primeiro e segundo séculos d.C.,

através de nomes como Lucrécio, Catulo, Cícero, Salústio, Varrão, Tito Lívio, Virgilio, Horácio, entre

tantos outros. Estes nomes marcaram a literatura latina e, por conseguinte a História romana, tanto de

Roma como do Império como um todo. Já na transição do primeiro para o segundo século, percebe-se

o que se convencionou chamar de decadência da literatura romana (LEONI, 1971, p. 117), marca desta

decadência é o aparecimento de trabalhos e autores nas periferias do império, que antes não tinham

espaço, é o caso de Apuleio, erudito africano, considerado um gênio, talvez o último do segundo século

(NETO, 1995, p. 104-105).

A influência da cultura literária romana foi fundamental para a conformação da literatura cristã

latina7, pois estes baluartes da literatura romana anteriormente citados, agora são as principais

influências destes autores cristãos, especialmente, a perspectiva filosófica de Sêneca, a arte da

oratória de Cícero e metodologia histórica de Tácito. Os primeiros autores cristãos cujos textos foram

preservados foram justamente apologistas cristãos, como Minúcio Félix e Tertuliano (CARDOSO, 2003,

p.177-178), ambos com forte influência dos escritos de Cícero, assim como dos célebres juristas de

Roma.

A literatura cristã latina foi fortemente influenciada pela obra de Tertuliano (BANDEIRA,

1960,p,.64), pois o caráter apologético dos escritos de Tertuliano corrobora a perspectiva inicial desta,

que desde os Evangelhos e Epístolas ainda no primeiro século, buscam defender e divulgar a fé cristã

(BLOCH-COUSIN, 1967, p.353). Esta literatura latino-cristã tem uma influência marcante do modelo

africano, demonstrando sua erudição assim como suas perspectivas, haja vista a estética ciceroniana

dos escritos de Minúcio Felix, a persuasão e retórica da obra de Tertuliano, a sensibilidade pastoral de

Cipriano, a articulação e objetividade de Arnóbio, entre tantos outros nomes que contribuíram para o

7 A esta influência convencionou-se chamar Romania. Levando em consideração especialmente o latim, entenda-se Romania, “ como unidade lingüística e cultural, dos romanos”. ( ILARI, 1999, p.50).

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desenvolvimento deste modelo literário até sua cristalização com outro africano, marcado por sua

intelectualidade, Agostinho de Hipona (HAGGLUND, 2003, p.41).

A influência inicial da literatura antiga e da cultura helenista como um todo é visível, mas estes

traços de filosofia (TILLICH, 2004, p.112), conceitos e principalmente estilística, são ressignificados e

conciliados a partir dos valores cristãos, tomando corpo e forma própria, alcançando espaços cada vez

maior nesta literatura cristã, que traz em seu bojo, estilos combativos, apologéticos e panegiristas.

Estará fortemente marcada por sua característica eclesiástica, sendo muitas vezes referenciada

historicamente dentro da perspectiva da era patrística, delimitando assim a sua formação dentro do

período de maior efervescência e intelectualidade do cristianismo.

Dentre este estilo apologético seguem-se duas tendências, como lembra Henrique Matos

(1997, p.71), sendo ambas marcantes na literatura em questão, pois enquanto uma delas busca

valorizar certos elementos da cultura grega, reconhecendo neles parte da verdade do evangelho8,

como é o caso de apologistas que valorizavam muito a filosofia como: Aristides, Atenágoras, Justino e

Minúcio Felix. Outro grupo de apologistas, um tanto quanto mais resistentes à valorização da filosofia

dos chamados pagãos, por sua vez são críticos e agressivos ao paganismo e suas manifestações,

dentre estes se encontram nomes como: Taciano, Arnóbio e Tertuliano9. Podemos ainda dividir esta

literatura cristã em três tipos: Edificação, Polêmica e Apologética (BAKER, 1959, p.46-47). Sendo cada

um destes de acordo com o objetivo a se alcançar, Clemente de Roma, é marcado pelo estilo de

edificação, já Cipriano, é conhecido pelo estilo polêmico, enquanto que Tertuliano é referenciado e

reconhecido pelo estilo apologético-polemista. Como polemista destaca-se a partir de seus debates

contra o Gnosticismo, especialmente com relação a Clemente de Alexandria (155-215), por considerar

o cristão maduro como um “Verdadeiro Gnóstico”.

Esta literatura pautou-se pelo uso e aprimoramento do latim, que serviu como instrumento da

Romanização (MOHRMANN, 1949, p.163-165), sendo inclusive visto como fundamental no processo

de expansão do Império, ao que se convencionou chamar de Latinização (MENDES, 2004). Dentre os

escritores latino-cristãos antigos, nenhum deles contribuiu mais para a formação e afirmação do latim

cristão quanto Tertuliano.

8 A noção de verdade que norteará o processo de reflexão de Tertuliano, basea-se na oposição entre a perspectiva cristã baseada no evangelho e a perspectiva pagã, daqueles que ele chamou de “hereges”. Para maiores detalhes sobre esta perspectiva ver: LATOURELLE, 1985,p.145-150. 9 Sobre o uso do estilo apologético em Tertuliano ver: BURROWS, 1988, p.233-235.

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Este literato desenvolveu seu estilo apologético-polemista (HAMMAN, 1995, p.72) influenciado

pela cultura grego-helenista, além de uma forte influência da tradição intelectual africana. Foi na África

que pela primeira vez os escritos cristãos foram feitos em Latim (WARFIELD, 1907, p. 101), através

das obras dos eruditos Tertuliano e de Minúcio Felix (BUCHNER, 1968, p. 441). Logo se torna uma

ponte para o cristianismo entre o mundo grego e latino, sendo este um dos principais responsáveis pelo

“latinismo africano” (DANIELOU-MARROU, 1973, p.166; MOHRMANN, 1949, p.70).

O “Corsário de Deus”, como o chama A. G. Hamman (1995, p.71), desenvolve o latim cristão e

sua conseqüente identidade10, inclusive teologicamente cunhando 982 termos novos, que se

cristalizarão deste momento em diante como sendo o vocabulário teológico cristão (PIERINI, 1998,

p.102; KLEIN, 2007, p.72). Este intelectual é visto como intrigante e apaixonado, extremado muitas

vezes em suas posturas, mas respeitado por sua obra, reconhecido por sua grande capacidade

retórica, este “joga com todo o registro e indignação patética, de ironia espirituosa e de habilidade

jurídica” (ALTANER-STUIBER, 1988, p.157).

Escritor prolixo, considerado por muitos um puritano cristão (OLSON, 2001 p.95), tem em sua

vasta produção dezenas de obras, nos chegando apenas 31 destas, caracterizadas em três fases,

segundo Franco Pierini, a primeira substancialmente cristã e ortodoxa, com 14 obras de 195-206, uma

segunda fase com influências montanistas, com 12 obras de 207-211, e a sua terceira fase,

essencialmente montanista, com 5 obras de 213-220, caracterizando assim áreas de interesses

múltiplas (PIERINI, 1998, p.101).

Este filósofo, em suas obras valoriza e ao mesmo tempo que rejeita a filosofia grega clássica

(HAGGLUND, 2003, p.43), especialmente o seu mau uso (Apologeticum, 46; 47,9) em seus escritos

demonstra que o erro destes filósofos, neste caso os não cristãos, está no ato de não consideração do

elemento “Fé”, dentro do processo de reflexão e busca da verdade, corrompendo assim o processo

filosófico de busca, logo, não é a filosofia que Tertuliano critica, e sim, a racionalidade sem fé,

encaixando estes filósofos na mesma categoria que dos hereges (De Praescriptione

Haereticorum,7,11-14; Adversus Hermogenem,8).

O latim cristão foi desenvolvido e cristalizado pela pena deste apologista que optou em utilizar

mais do que o vocabulário usual (BUCHNER, 1968, p.443) e filosófico, usou também os termos

jurídicos para compor o significado diferenciado e necessário para realização de suas reflexões

10 Com referência a diferenciação do vocabulário do latim cristão, ver: MOHRMANN, 1947, p.1-12; MOHRMANN, 1957, p.37-48; MOHRMANN, 1947, p.248; MOHRMANN, 1948, p.163-164.

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teológicas. A principal contribuição e Tertuliano para a teologia cristã, é a sua reflexão Trinitária e

Cristológica, explicitada em, Adversus Praxean,II,3; De Carne Christi,IV,5,V,4; (MATOS, 2008, p.46;

OLSON, 2001 p.93-99; LIÉBAERT, 2000, p.75), iniciando e compondo assim o “Corpus Teológico”

inicial, do cristianismo em latim para suas obras e conseqüentemente para o cristianismo africano,

latino e romano como um todo. Termos como: Sacramentum, Persona Prosopon, “Tropaeum”11 entre

outros, compuseram a partir daí o vocabulário cristão latino (HAMMAN, 1995, p.74; DROBNER, 2003,

p.161).

O idioma latino cristalizou-se como linguagem identitária dentro de um processo de aceitação

social, reflexão identitária e imposição ideológica (MOHRMANN, 1948, p.90), primando pelo utilitarismo

dos neologismos, prevalecendo o pragmatismo deste que buscou fortalecer e desenvolver o

Cristianismo, assim como a literatura advinda deste.

A literatura cristã se desenvolveu a partir de vários estilos (Evangelhos, Atos, Epístolas), desde

o primeiro séculos, com os chamados escritos canônicos. Escritos estes que tem em sua gênese, forte

característica memorialista, até porque se desenvolve a partir destes escritos a formação identitária do

nascente Cristianismo. A estes relatos, somam-se as Atas Martiriais, que se convencionou chamar de

Martyria. Esta forma de relato foi a forma mais característica expressão literária cristã, nos séculos

segundo e terceiro, devido a sua característica denunciativa e combativa, relatava a perseguição e o

sofrimento dos cristãos, onde muitos destes acabavam sendo identificados como mártires.

Nesta literatura a noção de Páthos (PERKINS, 1995; AMAT, 1996; DAVIDSON, 2000), é

retratada dentro de uma lógica teatral buscando enfatizar de forma dramática, o julgamento e a

exposição destes mártires ao público, descrevendo com riqueza de detalhes os sofrimentos e suplícios

afligidos aos confessores da fé cristã, a nascente e ilícita religio, ambientados e dedicados ao público,

em teatros, praças públicas ou anfiteatros, buscando assim o registro na forma de uma memória

coletiva (SHAW, 2003) destes perseguidos, servindo assim de fortalecimento e ânimo à comunidade,

além divulgação dos preceitos cristãos e de denunciar, o que na visão dos cristãos era uma injustiça,

para com os cristãos.

11 Sobre a noção e o debate com referencia ao termo em questão, ver: MOHRMANN, 1954, p.154-173.

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Com efeito, os relatos de martírio, com seu forte apelo panegírico, alcançaram grande

popularidade, pois se identificavam com a comunidade perseguida, sendo assim um instrumento para

afirmação identitária e de registro da memória cristã nascente, pois,

“ O sucesso da literatura de martírio e o emprego da situação de

julgamento como determinante na estruturação de boa parte destas obras

indicariam uma forma de pensar pautada na memória de julgamentos,

incluindo punição, tortura e condenação, que se desvelaria como um

padrão recorrente para as primeiras comunidades cristãs assoladas pelas

perseguições, mas que se manteria por muito tempo depois nos escritos

eclesiásticos referentes a martírios de santos” ( IPIRANGA

JÚNIOR,2008,p.114).

Esta necessidade de lutar contra o esquecimento (WEINRICH, 2001, p.49), e a denegação,

lembram a fragilidade da memória, normalmente registrada a partir de rastros, enfatizando assim a

construção de uma identidade a partir desta memória (CATROGA, 2001, p.44), tal como é feita pela

narrativa martiral. Pois é somente a partir dos traços próprios de memória registrados e preservados, é

que se pode lutar contra o que se poderia chamar de esquecimento e amnésia (CATROGA, 2001,

p.48).

Logo esta literatura de forte apelo testemunhal (MORESCHINI e NORELLI, 1996, p.295-296),

se soma a toda uma tradição literária latina grego-romana anterior, sendo esta ressignificada pela

tradição cristã e por que não dizer ampliada dada a singularidade da perspectiva cristã.

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THOMAS, Keith. Religião e o declínio da magia. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.

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História das Religiões: Delimitação de Campo e escolhas Metodológicas* ELTON NUNES Resumo

O presente artigo é uma tentativa de apresentar elementos para a definição da área de História das

Religiões no Brasil como uma área interdisciplinar, entre a História e as Ciências da Religião. A

definição de áreas de pesquisa e estudos é o primeiro passo para o progresso da ciência. Dessa

definição resultam ações metodológicas e mesmo educacionais que contribuem para que as pesquisas

realizadas alcancem seus objetivos e contribuam decisivamente para o desenvolvimento da ciência.

Por este motivo, são necessários e relevantes estudos que trabalhem a questão de definições teóricas

e metodológicas das áreas do conhecimento para que o progresso do conhecimento tenha eficácia.

História das Religiões – urgência e ambivalência

Uma das áreas que necessita de definição mais acurada é a área de História das Religiões no Brasil. O

estatuto científico dos estudos históricos da Religião sofre de problemas de aproximação e sua

trajetória no Brasil ainda está longe das grandes discussões teóricas realizadas em outros países e

continentes. Um dos problemas que se apresenta é sobre a forma de tratamento. Como tratar da

dimensão histórica dentro das diversas abordagens da Religião? Dessa maneira, impõe-se a

necessidade de enfrentar a questão da abordagem histórica da Religião dentro da área de História das

Religiões, atualizando as discussões internacionais no Brasil. Além disso, os Programas de Pós-

Graduação em Ciências Humanas e Sociais carecem dessa definição, como podemos constatar, seja

pelo pequeno número de publicações nessa área, seja pela declaração de algumas instituições e

teóricos sobre a indefinição do campo de Ciências Humanas e Sociais (Cf. USARSKI, 2007).

A História das Religiões, cujo termo é polissêmico, quer representar o campo de estudos históricos

sobre as religiões e, por outro lado, desenvolver o registro sobre o processo de historicização das

* Pós-Doutorando em História e Religião pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, professor-pesquisador da FAPESP (2008-2010).

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religiões. O grande desafio dessa dupla tarefa para a disciplina é sua indefinição quanto ao objetivo

primário da mesma (Cf. JENKIS, 2001). No Brasil, esta área se confunde com suas ciências afins.

Seria esta parte do ramo da História ou seria vinculada definitivamente às Ciências Humanas e

Sociais? A “Religionswissenschaft” nasceu na segunda metade do século XIX dentro do clima do

historicismo alemão (PRANDI e FILORAMO, 1999. p. 61). O fato é que a constituição da História das

Religiões, desde sua gênese, teve problemas de “lugar” no escopo científico das disciplinas de estudo.

Ciente disso, Geertz aponta para a dificuldade a partir da própria constituição do nome da disciplina:

Um barômetro para essa situação pode ser visto nos nomes escolhidos para a disciplina. É a palavra alemã “Religionswissenschaft” que está por trás da expressão britânica “Science of religion” [Ciência da Religião], ao passo que Ciência da Religião, nos Estados Unidos, é sinônimo de Sociologia da Religião. Portanto, os norte-americanos utilizam a palavra alemã “Religionswissenschaft”, que também tem sido traduzida nos Estados Unidos como “Study of Religion” [Estudo da Religião] – mas não “Religious Studies” [Estudos Religiosos], que é a abordagem mais teológica. Na Inglaterra, encontramos o termo “Comparative religion” [Religião Comparada], que se encaixa bem no pluralismo britânico, mas, nos Estados Unidos, Religião Comparada”, conforme foi praticada por Mircea Eliade, é denominada de “History of Religions” [História das Religiões], ainda que nenhum departamento nas universidades receba este nome. Na Europa, o termo “History of Religions” e termos equivalentes em francês, italiano, e nas línguas escandinavas são utilizados para o estudo mais amplo da religião, ainda que não tenha de fato integrado as ciências sociais. No Canadá, “História das Religiões” é considerado um termo muito limitado, daí a preferência por “Study of Religion”. Na América Latina, o termo escolhido parece ser estúdio de lãs Religiones [Estudo das Religiões] – e agora estou vendo que no Brasil prefere-se História das Religiões. Já nos Países asiáticos não há preocupação com termo algum (GEERTZ, citado por GIL e SIEPIERSKI, 2003. p. 16).

Ou seja, a História das Religiões é reivindicada como parte integrante de três campos de análise: a

História, as Ciências Humanas e Sociais e as Ciências das Religiões como sub-campo de pesquisas e

produção de dados e observações. Para Filoramo e Prandi, a História das Religiões sofre, após um

século de debates, de um posicionamento epistemológico sobre sua metodologia e seus objetivos

(PRANDI e FILORAMO, 1999. p. 14). Sob o rótulo de História das Religiões ocultam-se, segundo eles,

pelo menos três diferentes perspectivas metodológicas: História, Ciências Humanas e Sociais e

Ciências da Religião. Outro problema diz respeito ao objeto “Religião” dentro do estatuto da História,

enquanto ciência do tempo e dos fatos históricos. Qual o lugar da “Religião” na História das Religiões?

Seria o estudo da religião um ato privilegiado ou secundário? Qual o papel da religião na constituição

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de uma determinada linha de pesquisa nesta área? Como abordar um campo polissêmico e complexo

como a religião? Além dos problemas oriundos da própria História, enquanto ciência do saber, a

Religião apresenta-se como um objeto difícil na medida em que não se enquadra em definições

satisfatórias e completas. O próprio termo “Religião” sofre controvérsias sobre sua abrangência. Ao

longo dos séculos, a palavra de origem latina: religio (PRANDI e FILORAMO, 1999. p. 253-275) foi

assumindo diversas conotações e interpretações. A religião, enquanto objeto de estudo do historiador,

está por ser definida. De sua conceituação derivará o tipo de história, suas conseqüências e

conclusões, como afirma Wiebe:

Sustenta-se bastante plausivamente que a menos que seja possível alguma definição preliminar da religião, alguma forma de compreensão intuitiva da natureza da religião suscetível de formulação verbal, nenhum estudo da religião pode chegar a ser iniciado. Sem tal definição de um campo de pesquisa, qualquer e todas as coisas estariam abertas à investigação; e se tudo está aberto à investigação, nós na verdade não temos absolutamente nenhum estudo específico da religião. Assim, uma definição da religião é necessária para destacar os fenômenos a serem investigados (WIEBE, 1998. p. 17).

Dessa forma, a explicitação do termo ou conceito de religião assumida pelo historiador irá determinar a

própria história sobre a religião que será produzida. Mas, o historiador da religião tem para si outro

problema de fundo epistemológico. Poderá ele escapar das contradições entre o seu objeto de estudo

e a herança anti-religiosa que sua ciência compartilha? A História, enquanto campo de pesquisa, foi

constituído dentro dos parâmetros do Iluminismo, Racionalista e anti-religioso. Essa dificuldade sempre

se apresentou como desafio dos pesquisadores das áreas afins. Ao longo dos séculos XIX e XX, as

ditas Ciências Humanas e Sociais buscaram uma definição de Religião que produzisse uma

explicitação de seu conteúdo. Para Max Muller (CARDOSO e VAINFAS, 1997. p. 86-88) a origem da

Religião deveria ser entendida como um deslocamento semântico, uma “doença de linguagem”. Ao

nomear as coisas (nomina) os seres primitivos criaram os deuses (numina). Já Auguste Comte

(CARDOSO e VAINFAS, 1997. p. 99-102) apresentou a teoria dos estágios da humanidade (Teológico,

Metafísico e Positivo) para explicar o papel da Religião. No Estágio Teológico a imaginação

desempenha papel de primeiro plano. Diante da diversidade da natureza, o homem só consegue

explicá-la mediante a crença na intervenção de seres pessoais e sobrenaturais. Este Estágio

representaria, no desenvolvimento do espírito humano, uma etapa de transição para o Estágio

Metafísico. Este, inicialmente, concebe “forças” para explicar os diferentes grupos de fenômenos, em

substituição às divindades da fase teológica. Fala-se então de uma “força física”, uma “força química”,

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uma “força vital”. Procura explicar a “natureza íntima” das coisas, sua origem e destino último, bem

como a maneira pela qual são produzidas. O Estágio Positivo caracteriza-se pela subordinação à

observação. Cada proposição enunciada de maneira positiva deve corresponder a um fato, seja

particular, seja universal. Desta forma, a Religião seria a forma primitiva dos homens explicarem os

fenômenos que não compreendiam. Em “A origem das espécies” Charles Darwin (REALE, 1999. Vol.

III. p. 371-377), estabeleceu a idéia de uma continuidade entre o homem e o animal, inscrevendo todas

as espécies no tempo de uma história contingente, sem uma ordem geral e sem um progresso

determinado. Desta forma, a Religião (cristã) nada mais era do que uma forma evoluída de

manifestação cultural. Para Émile Durkheim (CARDOSO e VAINFAS, 1997. p. 103), a definição de

Religião estava vinculada às representações coletivas e era a via através da qual poderíamos entender

a forma de representação do mundo. As crenças propriamente religiosas são sempre comuns a uma

coletividade determinada. O indivíduo abre mão da sua própria liberdade pessoal para aderir às

práticas, ritos coletivos e solidários cujo objetivo final é receber em troca uma certa organização da

realidade da vida cotidiana. Tais crenças são admitidas, a título individual, por todos os membros

dessa coletividade, que se sentem ligados uns aos outros pelos laços de uma crença comum. Wilhelm

Wundt (CARDOSO e VAINFAS, 1997. p. 103) concebeu a Religião como a forma do homem de

relacionar-se com seus sentimentos em relação ao desconhecido. O que podemos advir é que o

Iluminismo, desde o início, teve dificuldades de abordar a Religião em todos os seus amplos aspectos.

Dessa forma, a própria definição de Religião foi apresentada como estágio primitivo da humanidade,

seja no aspecto organizacional, social, político ou mesmo emocional. Assim, concordamos com que o

primeiro problema para o historiador da religião é o problema epistemológico, como nos alerta Certeau:

A historiografia mexe constantemente com a história que estuda e com o lugar onde se elabora. Aqui, a pesquisa daquilo que deve ter ocorrido, durante os séculos XVII e XVIII para que se produzissem os fatos constatados em fins do século XVIII, normalmente pede uma reflexão a respeito daquilo que deve ocorrer e mudar hoje, nos procedimentos historiográficos, para que tais ou quais séries de elementos, que não entravam no campo dos procedimentos de análise empregados até então, apareçam (CERTEAU, 2002. p. 124).

Assim, podemos advir que ao historiador da religião cabe um duplo papel de explicitação de definição e

de métodos, mas também de limites de sua própria área de pesquisa. Outro problema de aproximação

para um fazer histórico em História das Religiões (doravante se referido pela sigla HR) é a questão do

método. O método científico, em qualquer ciência, é a organização pela busca da verdade. Seus

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protocolos formais, suas formas de condução, seu regime de organização, se funda na referida

pretensão de conhecer a realidade para além das aparências, de modo a controlar o conhecimento.

Porém, a HR não produziu métodos de abordagem próprios, mas, ao longo do século XX, seguiu

métodos de abordagem das outras Ciências Humanas e Sociais (Cf. BURITY, 2000). Este

“empréstimo” metodológico causou uma série de dificuldades desde o início, como bem atesta Geertz:

Durante o primeiro século de sua história, os estudiosos acadêmicos da religião perceberam a si mesmos como historiadores e lingüistas engajados em estudos dos textos canônicos sagrados das religiões mais importantes. Assim, tais estudos fundamentavam-se em métodos e abordagens históricos e arqueológicos, filológicos e etnográficos. Após o apogeu do evolucionismo do século XIX e das grandiosas teorias psicológicas e sociais das primeiras décadas do século XX, em todas as ciências ocorreu um profundo ceticismo para com as teorias abstratas e normativas (GEERTZ, 2003. p. 20).

Porém, a disciplina, ao longo do tempo, trabalhou entre dois métodos. O método histórico-filológico

que, no dizer de Prandi e Filoramo (FILORAMO e PRANDI, 1999. p. 61), consiste de: “uma coleta de

documentos, seu exame a partir de um sólido background lingüístico, sua colocação nos respectivos

contextos históricos, a pesquisa das leis de desenvolvimento dos sistemas religiosos, dos mais simples

aos mais complexos”. A HR se desenvolveu aproveitando este método para uma depuração do

método comparativo (Cf. VELASCO, 2000. p. 30). Por dois séculos este método foi utilizado em larga

escala por pesquisadores como Max Muller (Cf. MÜLLER, 1859 ; 1873). Outro método que ocupou por

muito tempo a História das Religiões foi o método denominado “difusionista”. Segundo James Blaut (Cf.

BLAUT, 1994. p.173-190), a abordagem difusionista se consolida ao longo do século XIX, sobretudo

entre etnógrafos e, mais tarde, na Antropologia Cultural. Este método tem relação com a expansão

colonial européia em direção à África e Ásia. A partir do olhar eurocêntrico do colonizador, estabelece-

se uma concepção de mundo na qual existiriam de um lado regiões e/ou povos biologicamente

superiores e permanentemente inovadores e, de outro, os incapazes de inovar. Aos últimos, para

promover a necessária civilização “redentora do atraso”, caberia imitar as técnicas e valores das

regiões mais desenvolvidas. E estas teriam a missão de difundir seus conhecimentos e hábitos

“superiores” pelo mundo. O mito difusionista de que regiões de culturas supostamente “inferiores” são

“espaços vazios” a serem preenchidos inexoravelmente pelas técnicas civilizatórias, a uniformizar o

mundo, impulsionou os primeiros geógrafos culturais à tarefa de inventariar paisagens, técnicas e

costumes em vias de desaparecimento. As produções oriundas desse método apresentaram uma

História das Religiões que se destacavam como “primitivas” ou “mais antigas” no sentido evolucionista

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e teve influências em uma leitura evolucionista do monoteísmo cristão para o politeísmo (Cf.

FILORAMO e PRANDI, 1999. p. 62-65). Outro método que se adotou ao longo do tempo foi o

historicismo. O termo historicismo apareceu em 1881 na obra de Karl Werner-Giambattista Vico como

filósofo e pesquisador erudito, com o significado de estrutura histórica da realidade humana. Como

método, o historicismo define o pensamento como resultado cultural do processo histórico e reduz a

realidade e sua concepção à história. A historicidade ou a inserção cronológica, causal, condicionante e

concomitante de eventos na história constitui posição assumida a priori, isto é, ela é prévia e determina

a inserção dos fatos na história. A razão substitui a providência divina na visão historicista,

caracterizada pela consciência histórica, pela historicidade do real. A humanidade é compreendida por

sua história e a essência do homem não é a espécie biológica, mas sua história, movida pela razão.

Essa retrospectiva do tratamento da Religião como objeto de análise remete-nos, finalmente, às

pesquisas e trabalhos da Escola Italiana de História das Religiões (Cf. FILORAMO e PRANDI, 1999. p.

59-90), mas precisamente nas tentativas de Vittorio Lanternari, Raffaele Pettazzoni e Ângelo Brelich.

Para este último (Cf. BRELICH, 1977. p. 30-97), os fenômenos religiosos necessitam ser ancorados em

uma base teórica e definidos a partir de dado momento histórico-cultural. Para Brelich, as crenças

religiosas são entendidas a partir de seus universos históricos, culturais e mentais específicos. Este

arcabouço teórico aproxima a Escola Italiana de História das Religiões da chamada Nova História,

precisamente de autores como Alphonse Dupront que coloca o fenômeno religioso na categoria do

temporal (Cf. DUPRONT, 1978. p. 83-105.): “através da experiência religiosa, o homem vive num ritmo

lento, o qual oferece quando apreendido em seu próprio movimento, uma extraordinária e talvez única

possibilidade de decifrar confissões e testemunhos, e o duplo sentido do combate de existir e da

interpretação que o próprio homem dá a si mesmo de tal combate”. Na mesma linha, podemos elencar

as opiniões de Dominique Julia (Cf. JULIA, 1978. p. 106-131), que interpreta os fenômenos religiosos

do ponto de vista de uma História Social. Para este estudioso existe a necessidade de estudo da

Religião em uma perspectiva histórica interdisciplinar com as demais Ciências Humanas e Sociais. Já

para Mircea Eliade (Cf. FILORAMO e PRANDI, 1999. p. 55-57), a História é o caminho para se

alcançar uma definição satisfatória do fenômeno da Religião sem a necessidade de uma discussão os

fundamentos ou mesmo a essência da Religião. Seu pensamento foi parcialmente influenciado por

eruditos como Rudolf Otto e Gerardus van der Leeuw. Para ele, através dos estudos sobre a hierofania,

ou das hierofanias, é possível refletir sobre a morfologia do sagrado. Cada tipo de hierofania entendida

como a irupção do sagrado, permite uma dada e diferente aproximação desse mesmo sagrado. A

hierofania seria, assim, uma experiência histórica em que um epifenômeno se apresenta a um indivíduo

e constitui nele uma experiência fundante ou transformadora, ou mesmo mantenedora de uma forma

de religião. Essa seria a primeira tarefa do estudioso da religião, a busca da identificação em cada

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fenômeno religioso daquilo que ele tem de fundamental e essencial, a sua estrutura. A segunda tarefa

seria a investigação na história da criação, da modificação, ou da extinção de um determinado símbolo,

mito, religião ou idéia religiosa. Dessa forma, o estudioso das religiões alcança a possibilidade da

construção de quadros referenciais sobre a religião. Ainda podemos destacar os estudos da Escola dos

Annales e seus desdobramentos na Nova História e História Cultural que tem muito a contribuir para

uma definição teórico-metodológica para os estudos brasileiros de História das Religiões (Cf.

ALBUQUERQUE, 2007). Já os estudos brasileiros estão vinculados às instituições de ensino com os

Programas de Pós-Graduação e instituições como a Associação Brasileira de História das Religiões

(ABHR), assim como diversos grupos de pesquisa sobre o tema. Esta produção, porém, restrita nos

âmbitos regionais e institucionais, ainda não definiu linhas e correntes especificamente brasileiras e

capazes de influenciar os estudos internacionais (SIERPIERSKI e GIL, 2003. p. 67-89). É nítido ainda o

fato da dificuldade de classificação dos estudos históricos sobre Religião no Brasil com bem observa

Pompa (Cf. POMPA, 1998. p. 01): Ao longo da história dos estudos, os movimentos religiosos

receberam numerosas designações: “movimentos nativistas”, “revivalistas”, “messiânicos”,

“quiliasticos”, “milenaristas”, “revolucionários” ou “reformistas”, “proféticos”, “sincréticos”, “deprivation

cults”, “cultos de crise”, podendo se ampliar ainda mais esta listagem.

Considerações Finais

Cada uma das fórmulas elencadas revela-se inadequada para definir a realidade complexa e dinâmica

dos movimentos históricos, pois destaca apenas uma, ou algumas, das suas componentes: a social, a

psicológica, a religiosa, a sincrética, etc. Esta dificuldade se desdobra na medida em que o campo da

História, a partir de seus Programas de Pós-Graduação, não possuem disciplinas ou grupos de

pesquisas que contemplem a área de História das Religiões entre suas prioridades. Em um

levantamento preliminar, constatamos que, dos vinte Programas de Pós-Graduação (doutorado) em

História credenciados pela CAPES no País, apenas dois possuem linhas de pesquisa e disciplinas

ligadas à História das Religiões (Cf. http://www.capes.gov.br/avaliacao/recomendados.html. acesso em

06/04/2007). Porém, o número de estudos de pesquisas e teses na área de História das Religiões é

considerável. Cabem, portanto, estudos que venham a contribuir para a definição do estatuto científico

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sobre a HR, seu objeto de estudo e pesquisa, sua abrangência, seus métodos e sua proposta de

formação no Brasil.

Índice Bibliográfico

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BLAUT, James. Diffusionism: a uniformitarian critique. In FOOTE, K. [Ett Alli] (Orgs). Re-reading Cultural Geography. Austin, UNIVERSITY OF TEXAS PRESS, 1994. p. 173-190.

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BURITY, Joanildo A. Novos paradigmas e estudo da Religião: Uma abordagem anti-essencialista. Pádua, Itália, 2000. [VIII Congresso Internacional de Estudos Sócio-Religiosos]. (texto não publicado).

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ELIADE, Mircea. Tratado de História das Religiões. Lisboa, COSMOS, 1977.

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GIL, Benedito e SIEPIERSKI, Paulo D. (Orgs). Religião no Brasil: dinâmicas e abordagens. São Paulo, 2003.

GODOY, Arilda S. Introdução à pesquisa qualitativa e suas possibilidades. In: REVISTA DE ADMINISTRAÇÃO DE EMPRESAS. Vol. 35Nº. 02, mar/abr, 1995.

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67

HERMANN, Jaqueline. História das Religiões e Religiosidades. VAINFAS, Ronaldo e CARDOSO, Ciro Flamarion. Domínios da história: ensaios e de teoria e metodologia. Rio de Janeiro, CAMPUS, 1997. p. 329-354.

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WEBER, Max. A ciência como Vocação. 3ª. Ed. Lisboa, EDITORIAL PRESENÇA, 1979.

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STUMP, David J. Afterword: New directions in Philosophy of Science. In: GALISON, Peter & STUMP, David J (Edts). The Disunity of Science – Boundaries, Contexts, and Power. Stanford, STANFORD UNIVERSITY PRESS, 1996. p. 443-450.

USARSKI, Frank. Ciência(s) da Religião? Designação e Identidade de uma disciplina. In: REVISTA ELETRÔNICA DO DEPARTAMENTO DE TEOLOGIA DA FACULDADE CLARETIANA, São Paulo, 2007. Disponível em: http://www.redemptor.com.br~soter/Anpter.Usarski.doc. acesso em 10/12/2006.

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A diocese de Mariana em tempos de romanização: Dom Viçoso, táticas e estratégias

Germano Moreira Campos12 E-mail: [email protected]

É no contesto mais amplo da Romanização ou Reforma Católica que serão inseridas as ações

do bispo Antônio Ferreira Viçoso no espaço da diocese de Mariana. Para que entendamos um pouco

mais a respeito desses acontecimentos, torna-se necessário observar com cautela a conjuntura

desenvolvida após a chegada do prelado à referida diocese e o significado do seu governo pastoral

para a Igreja mineira como um todo, e para a marianense em especial.

Quando falamos em romanização ou reforma ultramontana, referimo-nos ao fechamento

ortodoxo que Roma desejava impor para todo o orbe católico em seu conflito oitocentista. Citando

Mabel Salgado Pereira, a romanização consistiu “no processo de centralização, com vistas a uma

uniformização da Igreja romana na vida eclesial e eclesiástica da Igreja no Brasil” (PEREIRA, 2004).

Tal projeto objetivaria o fortalecimento da hierarquia eclesiástica, que se queria autônoma nos assuntos

internos à religião e submissa apenas às diretrizes do Papa. Daí partiriam as determinações de

reestruturação do clero e do culto da religião.

Segundo Libânio, “não se trata apenas de um processo de criação, que deve se fundamentar

principalmente em dois campos, doutrinal e sacramental, mas implica também na demolição do antigo

edifício ligado ao catolicismo tradicional” (LIBÂNIO, 1984). E justamente por se tratar dessa dissolução

do catolicismo que tradicionalmente se vivia e cultuava no território mineiro, podemos dizer que a Igreja

romanizada almejava monopolizar o sagrado através da eliminação do papel de direção que os leigos

por muito tempo exerceram, fosse nas irmandades ou nas festas de caráter religioso – situação esta

que decorria da própria singularidade relativa à expansão do povoamento em Minas e à situação

histórica do clero mineiro. Dentro do projeto reformador, os leigos seriam transformados de produtores

em consumidores dos bens e serviços fornecidos pelo clero.

Todo o amplo campo da ação viçosiana no interior do ambiente episcopal que governava será

nosso objeto de análise a seguir. Atentaremos para os inúmeros empecilhos que surgiram diante das

novas propostas romanizadoras, e para as ações, respostas e intenções – algumas vezes ácidas,

outras conciliatórias – atinentes à imposição, à defesa e à adaptação de um conjunto mais extenso de

modelos eclesiais e doutrinários emanados de Roma no período de Pio IX.

12 Mestrando em História pela Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP).

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Uma vez inteirados a respeito daquilo que constituiu o processo romanizador na diocese de

Mariana, devemos, a partir de agora, procurar aprofundar nossa análise focando os aspectos mais

intestinos das ações reformadoras viçosianas. Podemos, sem risco, falar a respeito mesmo da

existência de um processo de “viçosização” do catolicismo nas Minas.

Para tanto, torna-se fundamental entender as formas pelas quais as táticas e as estratégias

viçosianas ganharam corpo na diocese de Mariana, seja a partir dos jornais, cartas pastorais, ou

missivas forjadas pelo prelado em questão. Antes de qualquer coisa, vale ressaltar que entendemos os

conceitos de táticas e estratégias da forma como foram trabalhados por Michel de Certeau. Nesse

sentido, podemos dizer que as estratégias consistem em ações oficiais e institucionais que “escondem

sob cálculos objetivos a sua relação com o poder que as sustenta, guardado pelo lugar próprio ou pela

instituição” (CERTEAU, 2004). Este lugar próprio de onde partem as ações e pensamentos estratégicos

é identificado em nosso trabalho com a Sé romana, com as dioceses e o Estado imperial, tido pelos

reformadores como cesaropapista. Trata-se de locais produtores e/ou reprodutores de ações oficiais

visando a resultados, específicos.

De seu lado, as táticas caracterizam-se por dependerem de certos momentos oportunos,

diríamos ocasiões específicas, para poderem se fazer atuantes. Se Certeau define tática como “uma

habilidade do fraco para tirar partido do forte” (CERTEAU, 2004), podemos entender que ela se vale do

oficial e de uma vasta combinação de elementos heterogêneos para se materializar enquanto ação ou

se mostrar como construção mental. Apresentando, em geral, traços de distanciamento frente a uma

política ou proposta oficial e/ou oficiosa (entendida como estratégia), as táticas podem ser

extremamente úteis para expressar as ações viçosianas num momento em que a Igreja enfrenta limites

às suas ações internas. Tais limites derivam em grande medida das práticas regalistas do governo de

Pedro II, de uma sociedade crescentemente influenciada por idéias laicas, e de um clero em parte

insubordinado.

Posicionado entre as questões políticas e sociais do Império e as propostas muitas vezes

intransigentes de Roma, D. Viçoso necessitava, nesse cadinho de tensões que constituía a diocese,

fazer valer sua visão sobre a nova Igreja. Assim, podemos dizer que, na situação que se apresentava,

o bispo comumente se viu forçado a optar por táticas quando as estratégias se mostravam de difícil

execução, ou mesmo quando se tornavam barreiras a serem superadas.

Foi D. Viçoso o primeiro que, com algum grau de autoridade, cuidou da transformação da

religiosidade mineira, sendo sua primeira e mais urgente necessidade a reforma do clero local. Como

podemos ver pela biografia de D. Viçoso, traçada pelo padre Silvério Gomes Pimenta:

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“Era sua vontade que os eclesiásticos trouxessem sempre vestes talares e trajassem tanto sem desalinho como sem afetação nem ressaibos de profanidade. Sentia e não podia calar-se em lhe vindo ao conhecimento que algum freqüentava bailes, espetáculos e passatempos desse gênero, que pouco assentam à santidade e gravidade do seu estado, os quais, se sempre são feitos de coração estragado, são quase inevitavelmente parte para se estragar e corromper” (PIMENTA, 1920).

A participação dos religiosos reformados aumentará de acordo com o desenvolvimento do

processo reformista, e candidatos ao sacerdócio que não satisfizessem às exigências do bispo não

seriam devidamente colados:

Ilmo. E Exmo. Senhor,

Tive a honra de receber o aviso de V. Exª de 4 de agosto de 1857, pelo qual S. M., o Imperador, me ordena que cumpra a carta de apresentação do Cõn-Honorário José de Souza e Silva Roussim em um canonicato da Sé de Mariana. Esta carta contém dois objetos; um preceito: Mando que vos seja apresentado; e uma recomendação: Encomendo-vos que o coleis.

Está satisfeita a primeira parte; mas não posso satisfazer à segunda, nem ir de encontro às leis da Igreja, no Conc. Trid. Sessão 25, cap. 9 De Reformat. Como já tenho representado a S. Majestade, estou tão longe de me julgar desobediente ao mesmo Senhor que, antes me julgaria traidor, não do seu império temporal, mas ao eterno que lhe está destinado por suas virtudes, se eu colasse o apresentado. Mas, se o governo de S. Majestade assenta que lhe sou desobediente, faça de mim o que bem lhe parecer, pois confio na misericórdia de Deus, que me dará ãnimo para sofrer os cárceres, o desterro, e o mais, lembrando-me que foi sempre a sorte da Igreja de Deus sofrer em silêncio.

Deus guarde a V. Exª.

Três Pintas, 18 de setembro de 1857.

Ao Ilmo. Exmo. Sr. Francisco Diogo Pereira de Vasconcelos.

ANTÕNIO, Bispo de Mariana.13

A reestruturação dos seminários enquanto centros de formação religiosa se mostrará tarefa

primordial no bispado de D. Viçoso. Segundo Trindade,

13 AEAM. Fundo Governo Episcopal de D. Antônio Ferreira Viçoso Carta de D, Viçoso no ano de 1857.

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foi por esse motivo que os padres do Concílio de Trento e os sagrados pontífices nas suas bulas apostólicas recomendam aos senhores bispos essas pias instituições, querendo que em cada um dos bispados não se admitam estudantes ao estado eclesiástico sem que primeiro se instruam e preparem nestas casas de educação (...) (TRINDADE, 1950).

A nova mentalidade para o clero – silêncio, reclusão e disciplina – se relacionava diretamente com a

reforma do seminário. Nesse sentido, D. Viçoso muito se esforçou para que religiosos de ordens

estrangeiras viessem se fixar em sua diocese e atuassem principalmente como professores,

participando também de missões para evangelizar o povo. De acordo com Azzi:

“havia uma grande coerência no processo de romanização. Se de Roma deviam partir as orientações para toda a América Latina, era também normal que lá se formassem os membros do clero destinados a ocuparem, no futuro, um lugar de destaque na própria hierarquia eclesiástica” (AZZI, 1986).

Contudo, é preciso considerar com cautela esta afirmação de Azzi a respeito da existência de

uma “grande coerência” no processo de romanização, desde que se valorize o olhar microscópico

sobre os muitos acontecimentos diocesanos de então. Mesmo ressaltando-se o quão necessária se

mostrava a participação das congregações religiosas estrangeiras – livres dos males da religiosidade

local, pelo menos em tese – observa-se que sua chegada ao Brasil intensificou-se apenas mais tarde,

na Proclamação da República, quando chegaram a Minas os dominicanos (1881), os jesuítas (1890),

os redentoristas (1893) e também os salesianos (1895). Esse fenômeno, que nosso estudo não

pretende discutir, apresentou-se como decorrência do Vaticano I e especialmente da ruptura do vínculo

entre o Estado e a Igreja.

Além da reforma do conjunto do clero, tarefa não menos importante seria o ensino aos fiéis das

formas de culto na nova postura religiosa. Como diria Pedro Ribeiro de Oliveira, “Aos olhos dos

agentes romanizadores, que tinham o catolicismo nos moldes romanos como única forma autêntica de

cristianismo, o catolicismo luso-brasileiro parecia uma aberração” (OLIVEIRA, 1985). O grande

problema a ser enfrentado pela romanização nesse ponto seria exatamente a tradição e o

enraizamento que o catolicismo popular havia historicamente realizado junto ao povo mineiro.

Definitivamente, a tarefa não seria das mais simples, mas podemos notar o labor de D. Viçoso

em lidar com a tentativa de implantar no seio da população o conhecimento e o respeito do catolicismo

nos moldes da Santa Sé. Conforme o próprio bispo veiculou na imprensa católica da década de 1870:

“A mais palpitante necessidade de nosso tempo è sem duvida a diffusão do ensino religioso pelas diversas classes da sociedade (...). O povo sofre, é verdade `a míngua de conhecimentos, que lhe mostram o caminho da verdadeira felicidade; mas o povo simples, e ainda não estragado pela torrente da impiedade, conserva aquele bom senso, filho da fé catholica que o preserva de inúmeros precipicios. Mas de certa classe para cima,

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estragados pelas ruins leituras, eivadas de uma grande dose de racionalismo, os homens, em grande parte, de catholicos só conservam o nome e o exterior, sendo na sua realidade verdadeiros pro-testantes. Que outra cousa é senão protestantismo essa liberdade de chamar ao exame da própria razão os dogmas revelados, e admitir o que bem lhes parece, e rejeitar o que não lhes faz conta? Assim vamos todos os dias o que a Igreja definio, argumentar a torto e a direito, a por fim receber algumas verdades, e outras deixar de parte, como se fossem drogas do comércio. Ora, isso não é Catholicismo, o qual não existe sem fé, ou adhesão firme a quanto Jesus Christo revelou, e a Igreja ensina”. 14

Observa-se nesse fragmento uma já clara influência das definições produzidas no Concílio

Vaticano I sobre o movimento reformador: as críticas e a condenação de doutrinas filosóficas da época

moderna, tais quais o racionalismo, o panteísmo, o naturalismo, o positivismo, o comunismo e mesmo

o extremado liberalismo. Essas correntes geraram manifestações de preocupação da Santa Sé, na

figura do Papa Pio IX, quando da publicação de seu muito combatido Syllabus Errorum de 1865: uma

bula que declarava os diversos “erros da modernidade” e suas interferências no campo da religião. As

determinações iniciais de tal documento foram posteriormente melhor fundamentadas e ampliadas no

Concílio Vaticano I, realizado de 8 de dezembro de 1869 a 18 de julho de 1870, no qual foram

ratificadas a primazia do romano pontífice em questões de fé (infalibilidade) e as definições da doutrina

católica visando uma melhor coordenação do processo de romanização.

Como trabalhasse muito em torno da distinção completa entre os campos do sagrado e do

profano, bispos reformadores como D. Viçoso queriam destituir toda e qualquer intromissão religiosa

dos fiéis que fugissem das determinações da Igreja hierarquizada.

“Partir dogmas, e discerni-los à própria feição é destruir o fundamento da Religião, e rene-gar os foros de catholico. Toda essa alluvião de erros que fervilham nas folhas, nas praças, nas tavernas, nos hotéis é filha da ignorância crassa dos nossos dogmas e do ensino catholico. Se esse faladores conhecessem o que blasphemãm, se envergonhariam de tanta contradição. Que quer dizer catholico apotolico não romano, como alguns se intitulão? Que significa ser catholico e não querer nada com romano Pontífice? Ser catholico e desprezar as leis da Igreja, apellidando-as invenções da Cúria Romana?” 15

Esta entusiasmada declaração de D. Viçoso vincula a religião e as diretrizes do Papa,

argumento que, por vezes, encontraria resistência na interpretação religiosa popular.

“Espanta como neste seculo chamado das luzes, os homens possão devorar tão volumosas contradições.

14 AEAM: Periódicos Católicos. O Bom Ladrão, 01 de outubro de 1873. 15 AEAM: Periódicos Católicos. O Bom Ladrão, 1873.

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Para tanto o unico remedio é o ensino religioso, que lhes faça conhecer o encadeamento dos nossos mysterios, a razão de nossa fé e todo o systema da religião. Ella teme a ignorância filha da luz. (...) Não são os progressos materiais, caminhos de ferro, barcos a vapor, telegraphos, e outros inventos do homem industria sem religião que podem tornar o homem moralizado, e civiliza-lo. O progresso material só por si, sem religião proporcionam ao homem muitos meios de perpetrar o crime.” 16

O ensino religioso se relacionava, na ótica reformadora, com a própria definição de civilização,

reforçando ainda mais a visão que transformava a religiosidade tradicional num barbarismo

manifestado pela massa. Ao mesmo tempo, as inovações científico-tecnológicas deveriam ser vistas

com certa cautela pela Igreja.

Ainda no tocante à abrangência das posturas romanizadoras na diocese de Mariana, observa-

se nos jornais que diversos párocos de cidades vizinhas pertencentes à jurisdição do Bispado

enviavam pedidos a D. Viçoso para que este “fizesse valer os direitos da Santa Sé na região”, dado

que eram muitos os “perturbadores da Igreja”, identificados muitas vezes com ermitões e rezadores.

Tais elementos leigos continuavam a expressar a religiosidade popular, especialmente em áreas rurais

que os efetivos das paróquias não conseguiam alcançar devido à vasta extensão do território e aos

parcos recursos disponíveis.

A ortodoxia católica buscou a maior centralização de poder possível nos quadros da Igreja para

forçar os leigos a “ocuparem uma posição passiva, de consumidores da produção religiosa clerical e

destituídos do poder religioso” (OLIVEIRA, 1985). Assim, no tocante à fé, os leigos deixariam, segundo

as diretrizes mais ferrenhas da romanização, a posição de atores e produtores das interpretações

religiosas (como faziam quando tomavam a dianteira nas tradicionais festas religiosas) para assumir a

de receptores de uma produção religiosa oficial, vinda de dentro da Igreja sob os auspícios da

hierarquia eclesiástica. Ainda segundo D. Viçoso:

“Logo, quem não está com São Pedro não está na Igreja de Jesus Christo, porque só a de Pedro é a dele: Quem não está com o Pontífice Romano, não está também com São Pedro, do qual elle é sucessor na autoridade e no magistério. Ora quem recusa a crer em um dogma ensinado por todos os Bispos catholicos, proposto e confirmado pelo Sumo Pontífice, não está com este. (...). Logo não é, nem pode ser chamado catholico”. 17

Inserindo-se as ações viçosianas no processo de laicização vivido pelo século XIX, a diocese

de Mariana procurava, logo de início, deixar bem claro em seus escritos a perfeição de Deus diante da

imperfeição das coisas criadas pelo homem:

16 AEAM: Periódicos Católicos. O Bom Ladrão, 1873. 17 AEAM: Periódicos Católicos. O Bom Ladrão, 1873.

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Deus he hum espírito infinitamente perfeito, que do nada fez o ceo e a terra e tudo o que elles contém. O que está fora de mim e o que está em mim me annuncia este ser soberano, cujo poder he infinito. O principio mais poderoso, o maior rei do mundo será capaz de formar huma flor ou huma folha, ou ainda hum grão de areia? Não por certo. Quando vejo hum bem acabado painel, logo concluo que algum excellente pintor concebeo o desígnio e repartiu as cores. Quando eu vejo hum formoso palácio, julgo, sem hesitar, que algum hábil arquiteto o desenhou, e executou. Se alguém me viesse dizer, que tudo isso era obra do acaso; que as pedras do edifício se cortarão por si mesmas; que as cores do painel se vieram por acaso arranjar por si mesmas sobre o plano, tudo em tão boa ordem, não olharia eu para este homem. Que loucura pois não he dizer que o mundo se fez por acaso? O acaso nunca formou huma casa, nem hum painel, e havia de formar o mundo! Mais: eu tenho hum corpo, composto de huma multidão espantoza de órgãos e molas, postos e arranjados em huma ordem admirável. Em tudo vejo hum fim particular. Que outro, senão Deos, podia fazer tão bella obra? Dizer, que foi obra da natureza, he dizer huma palavra sem sentido. Nações ha que não tem cidades, nem leis, nem magistrados, mas nenhuma se acha que não tenha Deos. Este consentimento tão universal entre os homens de todos os paízes, de todos os séculos, aliás tão diversos no gênio e nos costumes, separados por intervallos immensos de lugares, não pode ser efeito da convenção arbitraria, e só pode ser de huma luz de illustra a todos os homens, e que Deos tem posto em nossas almas. Desgraçado daquelle que não conhece Deos! Não se pode passar sem o conhecimento de Deos: elle he de absoluta necessidade. Que sabe aquelle que ignora o primeiro principio? Fica na noite mais sombria, nas trevas mais profundas. (...) Para conhecer estas verdades não são necessárias luzes sublimes, nem estudo profundo: bastão as primeiras impressões da razão e da graça.18

Podemos claramente observar o forte tom de crítica feita ao Estado sem religião, problema que, se não

acontecia no Brasil – oficialmente católico – era facilmente encontrado na Europa.

Deos me creou. Foi o mesmo Deos, este grande Deos, que não necessitava de mim, e que tinha em si toda a felicidade e glória. Eu sou creado por Deos: para servir nesta vida, e ser participante de sua gloria e felicidade na outra. Ha senhores neste mundo. Outros os servem, outros os servem e se julgam por isso felizes, e as vezes se consomem em seo serviço. Mas estes senhores também tem outro que os governão, ou se os não tem neste mundo, os tem no ceo.19

Notamos, nas palavras proferidas pelo bispo, um discurso muito afinado com as determinações

de Roma e por isso mesmo estratégico. Palavras dessa natureza eram recorrentes, especialmente nos

números do periódico O Bom Ladrão.

18 AEAM: Periódicos Católicos. O Romano, 01 de Janeiro de 1851. 19 AEAM: Periódicos Católicos. O Bom Ladrão, 10 de outubro de1873.

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As instituições humanas, nascendo de uma causa limitada, tem necessariamente limitado effeitos, e não podem serem proveitosos à universidade do gênero humano. O que é de Deos sim, pode accomodar-se a todos os tempos e lugares, e deixaram benefícios aos mortos e aos que ainda vivem. Poucos sabem ler as lições, e aprender o ensino sublime do culto catholico: e por isso poucos também lhe prestão a veneração que devem. 20

No pensamento ultramontano, o humano é marcado pela transitoriedade, e apenas o divino é detentor

do perfeito e do espírito universal. Ainda tendo em vista as críticas tecidas contra o racionalismo, o

liberalismo e todos os “ismos” do espírito de época do XIX, as palavras de D. Viçoso são taxativas. As

elites letradas defensoras destas idéias não raramente recebia a ira de suas considerações:

Partir dogmas, e discerni-los à própria feição é destruir o fundamento da Religião, e renegar os foros de catholico. (…) Ser Catholico, e rejeitar como obra do jesuitismo o que os Concílios definiram e decretaram, e a Igreja por toda a parte venera e acata? Espanta como neste seculo chamado das luzes, os homens possão devorar tão volumosas contradições. (...) Ahi estão as estatísticas modernas atestando que crescem os crimes de toda a espécie, pelo mesmo passo que diminuiu o sentimento religioso.21

Mas pensar que apenas de ataques vivia a reforma viçosiana é um engano em que não

podemos incorrer. Para o turbilhão de erros, já apontados no Syllabus e ratificados no espaço da

diocese, existia uma saída, uma tábua de salvação.

Para tudo isso o unico remedio é o ensino religioso, que lhes faça conhecer o encadeamento dos nossos mysterios, a razão de nossa fé e todo o systema da religião. Ella teme a ignorância; filha da luz, ama a luz, e a deseja derramada por todos os homens. 22

No pensamento romanizado, o mundo necessariamente passa por uma ordenação das coisas e das

pessoas que depende da vontade da Divina Providência. Seria como se ainda vivêssemos em um

mundo permeado pelas explicações e ensinamentos medievais teocêntricas. A Igreja, porém, conhecia

o momento mais oportuno de aplicar este discurso, visto que sabia também apresentar-se

eminentemente moderna quando coubesse. Os dois excertos citados a seguir indicam algumas das

manifestações da Providência que observa e castiga aqueles que adotam uma postura desviante ou

hostil:

“A justiça de Deos”

20 AEAM: Periódicos Católicos. O Bom Ladrão, 01 de novembro de 1873. 21 AEAM: Periódicos Católicos. O Bom Ladrão, 01 de novembro de 1873. 22 AEAM: Periódicos Católicos. O Bom Ladrão, 01 de novembro de 1873.

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Sob esta epigraphe Le-se no Programador o seguinte: se todos os ímpios escapassem dos castigos da Justiça Divina, poderíamos suspeitar que a Providência não cuida do que se passa neste mundo. Pelo contrário, se todos os máos fossem vizivelmente castigados, nesta vida, os espíritos fracos cuidarião, que na outra não há nada mais que esperar.

Por isso em beneficio dos nossos leitores colhemos alguns rasgos, bastante a provar, que Deos ainda não abdicou: com o ser paciente por ser eterno, não deixa de vez em quando de descarregar golpes formidáveis.

Em principio de 1871 uma folha officiosa do governo italiano, a Libertá a propósito do príncipe Amedeo, proclamado rei da Hespanha dizia: “A excomunhão não danna, antes aproveito á dinastia de Sabóia, e valece-lhe ainda uma coroa: Eis Amedeo rei da Hespanha”. A Voce della Veritá não deixou cair estas palavras, e mostrou como a excomunhão é uma conta em aberto, que Deos há de cobrar até o último real. A folha catholica recorda o destino de todos os principaes, que a dezoito séculos tem merecido ser fulminados pela Igreja, e esta nomenclatura encerra uma lição terrível ... Todos os perseguidores da Igreja tem sido castigados até hoje ... A família de Victor Emmanuel começa a dar-nos disso novas provas.

O rei digão o que se quiserem, sofreo um ataque de apoplexia; e bem pode acontecer que não lhe valhão os três Padres Nossos, Ave Marias, e Gloria Patri, que reza todos os dias a S. Andre Aurellino, para o livrar da morte súbita.

(...) A pobre princesa Margarida faz lastima. Nos momentos de seo padecer ouvem-na repetir: “Serei eu a primeira victima da excomunhão”.

O principesinho, filho de Humberto e de Margarida está paralytico das pernas. A esta creancinha fazem declamar as palavras do seo avô no parlamento: “estamos em Roma, e ficaremos nella”: o que ares de um presagio lúgubre. (...)23

A Itália recém unificada aparece no exemplo devido à tomada dos Estados pontifícios, que resultou na

suspensão, por tempo indeterminado, do Concílio Vaticano I e no cativeiro romano de Pio IX. Mas não

só governos, como também aqueles que possuíssem uma conduta hostil ou desviante em relação à

Igreja poderiam esperar por maus presságios em seu destino.

“Morte honrada de um ímpio” Uma das principaes cidades do departamento de Aisne, diz a mesma folha, teve de presencear um tremendo na pessoa de um rapaz ímpio. Dominava-o um ódio infernal contra a Religião Catholica e quanto lhe pertence. Referem delle propositores os mais indignos ao tempo da matança do Arcebispo de Paris, e dos outros reféns. Dizem mais que Sexta–feira da Paixão deste anno declarára [em] alto e bom som que se regelaria de comer carne nesse dia. Mesquinho! Acabou miseraelmente. Cahio em uma caldeira de cerveja e pelou-se de maneira medonha, morrendo três dias depois ente attrozes sofrimentos.24

23 AEAM: Periódicos Católicos. O Bom Ladrão, 10 e outubro de 1873. 24 AEAM: Periódicos Católicos. O Bom Ladrão, 01 de Outubro de 1873.

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O trabalho reformador do bispo de Mariana estendia-se não apenas à visão conjuntural sobre

os acontecimentos em sua diocese. Suas ações também merecem destaque, como podemos observar

em algumas correspondências enviadas a párocos ou a famílias que queriam forçar pela rápida

ordenação de seus protegidos.

Freguesia do turvo de Aiuruoca, 23 de agosto de 1848. Ilmo. E Exmo. Sr. ,

O vigário de Catas Altas é homem geralmente estimado, cumpre bem as obrigações de pároco, não é exaltado em partidos políticos, e tem prudência para conciliar-se e pacificar. Seus conhecimentos são os necessários para o seu emprego. Tem bons livros e é leitor. Prega com aplauso. Só notei nele que, mandando-me um ordinando e dando-o por pronto em conhecimentos eclesiásticos, achei que o não estava, e portanto que houve nele pouco reparo ou condescendência, a qual é inadmissível em Ordinandos e Párocos.

De V. Exa. Servo

Antônio, bispo de Mariana.

Tejuco, em visita, aos 4 de julho de 1862. Meu Revdo. Vigário,

Diga aos pais de José Maria, a quem dei Menores, que não infelicitem seu filho. Está entregue à direção de tão bons Padres. Não apertem, nem isto é possível, a ordenação de seu filho. Por ventura, serão dispensados os anos necessários em São Paulo ou no Rio para a formatura? Não, pois quanto menos o devem ser para o Sacerdócio. Servo,

Antônio, Bispo de Mariana.

As posições táticas de D. Viçoso são evidenciadas sempre que suas ações pretendem garantir

à Igreja uma autonomia no interior do Estado monárquico. Nessa disputa encarniçada entre os limites

dos poderes hierático e cesaropapista, concordamos com Giácomo Martina quando classifica a posição

da Igreja como “cidadela sitiada” (MARTINA, 1995). Essa impressão pode ser observada na seguinte

passagem de O Bom Ladrão:

Carinhosa Mãe [Igreja] tantos desvelos estão clamando que a amemos. E como é possível que na mor parte dos homens só tenhão produzido

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ingratos? Hoje por teos benefícios recebes insultos, por teos carinhos desprezos, por teo amor uma perseguição furiosa em todos os cantos do mundo: na qual perseguição nefanda também o Brasil quer ter sua parte. Querem ver-te escrava, e debaixo dos pés dos reis, que devem ser teus filhos: e ao passo que abrem todas as portas aos teos inimigos, só para ti engenhão obstáculos, oppressão, captiveiro. A 6 de mez passado apresentou e fundamentou o Sr. Salathiel hum requerimento pedindo ao Governo informações se tem o Seminário de Mariana e Diamantina cumprido a obrigação de receber cada hum 24 alumnos pobres pela subvenção de 7:000$ rs que lhes presta para esse fim a Província. Ora se o regulamento se cifrasse só nesta importância nada menos do que acusar de inepcia a administração provincial e de extorsão os Bispos, se aquella dependesse e esses recebessem a quantia por alumnuo que não existem nos Seminários. Mas no requerimento ia de envolta o saber se esses alumnos foram ou não designados pelo Exmo Sr. Presidente, clausula que não foi estabelecida pela lei, nem tem sido observada. Os catholicos brasileiros não tem garantias em sua própria terra: a protesto de uma mal entendida tolerância são elles os perseguidos. 25

No século XIX, Igreja e sociedade civil – incorporada na figura do Estado moderno – trilhavam

caminhos não só diferentes, mas também diametralmente opostos. Se a Igreja possuía posição de

grande destaque no interior das estruturas sociais do Antigo Regime, o mesmo deixa de ocorrer no

oitocentos, quando as novas idéias e tendências econômicas, políticas, filosóficas e atacaram a

instituição católica com a mesma voracidade com que atuavam diante dos já combalidos resquícios dos

Estados tradicionais. O espírito liberal, surgido com o advento da Revolução Francesa, era apontado

como o grande responsável por executar a transição de um mundo cristão para a laicização da vida

pública, com a total autonomia do campo político frente ao divino

A Circular do Sr. Chefe de Polícia na Côrte vem dar-nos uma idéia adequada do nosso progresso na civilização. São taes, e tão repetidos os insultos, que sofrem pelas ruas os sacerdotes vestidos de habito ecclesiastico, que obrigarão a S. Exª a incunbir-se de proteger as pobres victimas, que no sentimento, não digo religioso, mas nem humano do Rio, nenhuma proteção achavam, nem ao menos tolerância. Tudo se tolera, menos o que cheira a religião de Jesus Christo. Um religioso foi a pouco esbofetado em plena praça, e em pleno dia, só por ser religioso! Os outros padres não podem transitar pelas ruas sem ser apupados, e visivelmente insultados pela gente ímpia, e sem moral. Tudo isso devido às doutrinas do maçonismo, pregadas de boca, e por sua imprensa. Tal é sua tolerância, de que traz sempre a boca cheia. 26

25 AEAM: Periódicos Católicos. O Bom Ladrão. Mariana, 01 de Novembro de 1873. 26 AEAM: Periódicos Católicos. O Bom Ladrão. Mariana, 01 de Novembro de 1873.

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Também no Brasil monárquico foi bastante sentida esta situação. Embora o catolicismo se

colocasse como religião oficial do Estado, era este quem, na prática, controlava os quadros internos da

Igreja. A partir da eclosão da Questão Religiosa, envolvendo os bispos D. Macedo Costa e D. Vital

contra a presença de maçons dentro da Igreja brasileira, o tom ácido dos escritos viçosianos ganharam

novos destinatários.

O governo do Brasil hoje se alista afoutamente entre os perseguidores da Igreja. Senhor, vossa majestade vai destruindo o único baluarte de seu throno, que é o amor dos catholicos. Vossa Majestade foi sempre amado extremamente pelos Brasileiros; não queira perder essa glória, que é a maior de um soberano. 27

A existência, no Brasil, de um Estado confessional, mas dotado de práticas e ações

administrativas manifestadamente aconfessionais ou mesmo, no limite, anti-clericais, soava para a

Igreja como ateísmo. E assim, em uma seção assinada no número d’O Bom Ladrão de 15 de Agosto

de 1873, dizia-se:

Exmo e Revmo. Sr. Quando os inimigos da Egreja chamão á postos os seos soldados, e animados de satanico espírito cerrão fileiras para perseguir e combater esta filha do CEO, que vive no mundo desterrada, não achando onde recostar sua afflita cabeça, senão no duro madeiro, em que expirou seo divino fundador; quando ouvimos retinir os ares com esta grita dissonante, que nos trapaça o coração de maior dor: - separação completa da Egreja e do Estado – cazamento civil – passaportes ao Internúncio – em uma palavra nada de religião, completa independência de Deos! Quando ouvimos estas affrontas irrogadas á face da Egreja não podemos, Exmo. Sr., declinar de nós o imperioso e sagrado dever de vir publicamente depositar nas mãos de V. Excª. este humilde protesto de nossa firme adhesão, e inteira obediência á pastoral authoridade, de que estaes revestido. Sacerdotes, e cooperadores vosso no importantíssimo ministério da salvação das almas, faltaríamos á quella submissão e obediência que vos promettemos no acto de nossa ordenação, e que desejamos manter até á morte, senão vos viéssemos dizer agora, como já fez o generoso Clero fluminense á seo illustre Prelado: “falai e sereis ouvido; mandai e sereis obedecido”. (...) Em deportação dos Bispos? Já não se lembrou o rompimento com Roma, com a expulsão do legado da Santa Sé? Não é isso uma crucifige? Não é isso a maior tirania, a mais insupportavel oppressão á consciência dos Catholicos? (...) O elemento, pois, da Egreja é o soffrer: sem o soffrer não pode existir; pois é este o ambiente que respira. Soffrendo, porém, Ella tocará ao fim dos séculos sem que possa jamais ser despojada da auréola de glória que a circunda. É esta, Exmo. Sr., a crença firme e inabalável dos abaixo assignados, que depositando em vossas sagradas mãos este solemne

27 AEAM: Periódicos Católicos. O Bom Ladrão. Mariana, 01 de Novembro de 1873.

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protesto de firme adhesão, inteira obediência , e profundo acatamento á pessoa de V. Excª., prevelecem-se deste ensejo para respeitosamente solicitar vossa bênção pastoral. Deos guarda V. Excª. muitos annos. Congonhas de Sabará, 15 de Agosto de 1873 – Exmo. E Revmo. Sr. Antônio Ferreia Viçoso, Conde da Conceição e DD. Bispo de Mariana. Vigário: Domingos Evangelista Pinheiro, Francisco N.F. dos Santos, Antônio Caetano de A. Coutinho, Cândido Martins d’Alvarenga. Padre: Delfino da Fonseca Lemos, Francisco Gomes da Cruz, Jacintho Evangelista Pinheiro. Ficar quietos e mudos. Jequery, 15 de Agosto de 1873. Vigários: Candido Braga, João Panho de M. Britto, Francisco de P. Homem.

Este manifesto de adesão dos eclesiásticos à causa viçosiana é muito representativo a respeito das

estratégias usadas pelo bispo para atuar com relação ao Estado monárquico. Já mencionamos o

sentimento de “cidadela sitiada”, emanado por Pio IX, prisioneiro em Roma, e incorporado por D.

Viçoso ao apresentar-se como bispo pressionado a agir diante do poder político do império. O

tratamento jurídico diferenciado que a Igreja possuía no Antigo Regime,no entanto, não era mais

possível historicamente no interior de uma sociedade pluralista.

Diante do amplo processo de secularização corrente no mundo, a Igreja viçosiana acreditava

em uma realidade que ainda não fora atingida por tais princípios, valendo-se sempre da existência de

uma Providência, de um poder hierocrático, e da visão da tradição histórica da Igreja – pautada na

negação do presente – para se defender das posturas do Estado.

“(...) Um edifício levantado sobre areia por si mesmo está destruído. Nessas condições se acha o mencionado aviso [prisão do Bispo de Pernambuco] por que assenta em uma base falsa, ímpia, usurpadora e anárchica, qual é a doutrina que outorga ao poder civil faculdade de regular as cousas espirituais de competência única da Igreja. (...) Deos não concede aos imperantes da terra as cousas espirituais, mas os prelados constituídos por Elle e sobretudo o Pontifice Romano. (...) Com tudo o governo do Brasil ainda insiste na tal doutrina do Placet, a pesar de conhecer como tem sido tantas vezes condemnada pela Igreja e ainda ultimamente foi declarada heretica pelo sagrado Concilio Vaticano. E o Governo procedendo d’esta arte, apoiando-se numa heresia e valendo-se della para opprimir os Bispos que a reprovão. (...) Poderao por acaso a lei dos homens destruir, ou sequer enfraquecer as leis do mesmo Deos? (...) Se vingassem taes principios, iria pelos ares a liberdade e independência da Igreja de Jesus Christo, como desejão os maçons. Mas tenhão paciência. Este boccado nunca o hão de saborear. Há dezenove séculos que os inimigos da Igreja trabalhão para consegui-lo. E dezenove séculos de desejos frustrados, senão bastão a desenana-los, são mais que

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bastantes para demonstrar a impossibilidade da empreza, e a vontade dos que ainda nutrem taes projetos. 28

Não podemos dizer que a reforma na diocese de Mariana se fazia contra o Estado – do qual a própria

religião em muito dependia – mas sim que se fazia contra os elementos maçons com postos de

destaque no interior de todo o aparato governamental. Desta maneira,

(...) Não havemos de pegar em armas por que Deos nos prohibe, não havemos de urdir revoluções, por que o Senhor aborrece quem os trama e executa; mas enquanto tivermos a palavra que os tyranos não podem arrancar-nos, havemos de chamar contra a iniqüidade. Um governo maçon com o dinheiro que recebe dos catholicos, com as tropas mantidas á custa dos catholicos, com a capa de constituição que reconhece por sai Religião Catholica, poderá ameaçar-nos, não intimidar-nos; perseguir-nos, não vencer-nos, aguilhoar nossos corpos, mas não render nossa vontade, nem tirar-nos a liberdade de dizer-lhe: não queremos, não podemos curvar-nos ao que Deos, a fé e a razão condenão. (...) Vossa Majestade na licção de dezenove séculos conhece o fim dos Monarchas que se levantão contra a Igreja de Deos: e quando faltassem outros exemplos, bastarão os dos dois Napoleões em nossos dias. 29

Assim, podemos dizer que a reforma católica na diocese de Mariana durante o governo D.

Viçoso se valeu de estratégias variadas quando a linguagem oficial da Igreja teve como destinatários

os párocos, os fiéis e os costumes a serem transformados, ou ainda quando procurou criticar a

simbiose entre Estado e maçonaria. A diocese marianense não realizou o impossível para implantar o

ideal romanizador de seu bispo, como alguns autores sugeriram. A complexa realidade da diocese

mineira condensou ações e reações de todos os campos envoltos na questão. Esperamos no corpo

total deste trabalho dar conta da multiplicidade dos fatores e das especificidades regionais dos

processos concernentes a este episódio da história da Província de Minas e da Igreja católica no Brasil.

28 AEAM: Periódicos Católicos. O Bom Ladrão. Mariana, 01 de Novembro de 1873. 29 AEAM: Periódicos Católicos. O Bom Ladrão. Mariana, 01 de Novembro de 1873.

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História, Religiosidade e Emoção:

os sinos na procissão dos Passos de São Cristovão

Magno Francisco de Jesus Santos

Resumo:

Desde o início do século XIX é realizada na cidade de São Cristóvão, primeira capital de Sergipe, a

tradicional procissão do Senhor dos Passos. Trata-se de um evento religioso para o qual convergiam

romeiros de diferentes localidades com o intuito de render agradecimentos a imagem vista como

milagrosa. No segundo final de semana da quaresma a velha capital dos sergipanos transformava-se

em um santuário, repleta de romeiros, pagadores de promessas. O propósito desse estudo é

compreender a emoção presente na referida solenidade religiosa a partir de seus elementos sensoriais.

Nos dois dias de celebrações os sinos desempenhavam papel relevante, demarcando o tempo e o

espaço sacralizados. O ritmo das celebrações era demarcado pelo sino, que com seu dobre fúnebre

tornava-se elo identitário das dores referentes à imagem do Cristo sofredor com as dores dos romeiros

marginalizados socialmente. Trata-se de uma tentativa de compreender o passado a partir dos

registros de ruídos que perpassaram o tempo.

Dois dias de penitência pelas ruas da histórica cidade de São Cristóvão, primeira capital de

Sergipe. Dias de caminhada, rezas, jejum e silêncio. Os cânticos dos romeiros ecoam pela cidade,

despertando o tempo sagrado da quaresma. A solenidade do Senhor dos Passos realizada no segundo

final de semana da quaresma é desde o século XIX o mais importante evento católico de Sergipe e

envolve sujeitos de diferentes recônditos do estado.

Todo o enredo é tecido pela sonoridade. Em pleno silêncio das procissões do segundo sábado

e domingo da quaresma os devotos desfilam pelas ruas estreitas seguindo o ritmo dos sinos. Os

passos da paixão eram demarcados pelo dobre fúnebre do sino da Igreja da Ordem Terceira do Carmo.

Uma procissão que aglomerou romeiros ao longo de dois séculos.

A procissão do Senhor dos Passos pode ser vista como uma das mais importantes

manifestações religiosas de Sergipe. Isso se torna evidente se observarmos o número de fiéis que a

cada ano participa do evento e as práticas religiosas dos devotos. Apesar de ter sua importância

reconhecida, esta tradicional solenidade de São Cristóvão é ainda muito pouco estudada. Ela é

consideravelmente referenciada em diversas obras, mas, no entanto, é perceptível a carência de um

estudo sistemático sobre o fenômeno. Assim, com esta pesquisa, pretendemos preencher uma

importante lacuna na historiografia religiosa de Sergipe.

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Além da escassez de trabalhos sobre a Procissão de Passos, também é possível detectar que

a maioria dos estudos sergipanos sobre religiosidade não inovou muito em suas abordagens. Mesmo

tendo algumas obras escritas supostamente sob o viés do movimento dos Annales, percebe-se que, na

maioria das vezes, a produção acadêmica se prende à perspectiva tradicional. Neste ponto,

pretendemos contribuir com o estudo da história local, inovando com a abordagem, tendo em vista que

estudaremos a solenidade partindo de sua sonoridade. Esta é uma abordagem inédita na historiografia

religiosa sergipana e plausível, levando-se em consideração que a solenidade do Senhor dos Passos

em São Cristóvão é um evento em que a sonoridade detém uma relevância extraordinária, com o dobre

dos sinos, os cânticos piedosos e até com o silêncio.

O primeiro passo dessa pesquisa foi a definição do tema e o estabelecimento do marco

temporal. Como se trata de uma pesquisa na área de História tornou-se indispensável o tratamento

com as fontes. A primeira etapa desse trabalho foi a heurística, ou seja, a busca pelos documentos

concernentes ao tema estudado. Nesta etapa foi realizado o levantamento, seleção e transcrição dos

documentos dos acervos da Biblioteca Pública Epiphânio Dória, Instituto Histórico e Geográfico de

Sergipe, Instituto Tobias Barreto, Programa de Documentação e Pesquisa Histórica (DHI-UFS),

Biblioteca Central (UFS), da Casa Paroquial Nossa Senhora da Vitória de São Cristóvão, além do

acervo particular de Erundino Prado.

Quanto à tipologia documental, foram levantados notícias e relatos da Procissão do Senhor dos

Passos nos principais jornais sergipanos do final do século XIX e início do XX, como o Estado de

Sergipe, Correio de Aracaju e Sergipe Jornal. Além destes, também foram transcritos importantes

relatos procissões descritos no Annuario Christovense de Serafim de Santiago, Livro de Tombo da

Paróquia Nossa Senhora da Vitória de São Cristóvão, além do texto “Ao romper do século XX” de

Oliveira Teles.

No entanto, vale ressaltar que a noção de documento não se restringe apenas aos registros

escritos. Atualmente, documento pode ser entendido como todos os resquícios produzidos pelo homem

através do tempo e que chegam até nós. É assim que emergem fontes antes esquecidas ou

menosprezadas como construções, objetos pessoais, fotografias, vestuário e a oralidade. Partindo

deste pressuposto, este estudo não se deteve exclusivamente aos documentos escritos, pois se utilizou

de fotografias (do evento, imagens e ex-votos), arquitetura (igreja, claustro e Ordem Terceira do

Carmo), objetos (ex-votos), vestuário (das imagens e ex-votos), oralidade (entrevista com Maria Paiva

Monteiro) e o próprio evento nos dias atuais, por trazer sinais, resquícios do passado.

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Devido à diversidade documental utilizada, foi fundamental a segunda etapa da pesquisa, a

crítica histórica. Neste momento foram analisadas as fontes a partir de seus elementos internos e

externos. Foi imprescindível comparar as informações dos documentos de naturezas distintas,

possibilitando compreender com uma visão mais ampla o objeto de estudo. É importante lembrar que

todo documento, seja qual for a sua natureza, é uma representação do passado construída

intencionalmente. É um mecanismo humano de perpetuar sua memória. Deste modo, pode-se dizer

que:

O documento não é inócuo. É antes de mais nada, o resultado de uma montagem, consciente ou inconsciente, da história, da época, das sociedades que o produzem, mas também das épocas sucessivas durante as quais continuou a viver, talvez esquecido, durante as quais continuou a ser manipulado, ainda que pelo silêncio. O documento é uma coisa que fica, que dura, é o testemunho, o ensinamento (para evocar a etimologia) que ele traz deve ser em primeiro lugar analisado desmistificando-lhe o seu significado aparente. O documento é um monumento. Resulta do esforço das sociedades históricas para impor ao futuro—voluntária ou involuntariamente determinada imagem de si próprio (LE GOFF, p. 548).

Na terceira etapa foi realizada a análise interpretativa das fontes, com a chamada

compreensão histórica, para enfim poder chegar à síntese histórica. É importante salientar que a

reflexão sobre a solenidade do Senhor dos Passos foi voltada para as diferentes formas de percepção

do evento, com destaque para a sonoridade e para os toques.

Pelo foco de análise proposto, esta pesquisa segue o pensamento da Nova História Cultural,

proposta pelo movimento dos Annales. A escolha de tal corrente epistemológica se deu por três

motivos: o primeiro é quanto à problemática deste estudo, tendo em vista que procuramos saber como

os elementos simbólicos e o imaginário popular contribuíram para o aumento devocional ao Senhor dos

Passos, ou seja, esta é uma proposta que segue a linha da História Nova.

O segundo motivo é quanto às fontes. Nesta pesquisa cruzamos fontes de naturezas distintas,

buscando compreender o objeto de estudo com a visão mais ampla possível. Por este motivo foram

vistos como fontes não só os registros escritos, mas também a oralidade, os ex-votos, o espaço, a

arquitetura e o próprio evento.

O terceiro e último foi devido à abordagem desta pesquisa. O intuito foi de investigar o

imaginário e as práticas religiosas de determinado período (1886-1920), tendo como fio condutor a

sonoridade. É preciso lembrar que a história antes de ser registrada é sentida. Infelizmente os

historiadores ainda privilegiam exacerbadamente a visão em detrimento aos demais sentidos. Mesmo

sem querer diminuir a relevância da visão como instrumento de percepção do mundo, deve ser

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lembrado a existência de outras formas de sentir a realidade vivida, seja pelo toque, pelo cheiro ou pelo

som. A história também é sentida e ouvida. Reconhecendo a importância que a sonoridade detém no

meio social e, especialmente, na solenidade do Senhor dos Passos, o estudo desenvolvido teve como

foco a sonoridade, os ruídos que sobreviveram às barreiras do tempo através do silêncio sepulcral dos

documentos. Entretanto, se deve lembrar que a sonoridade não constitui o objeto deste estudo, é

apenas um mecanismo de ligação entre presente e passado, possibilitando assim, propiciar uma nova

abordagem sobre o universo simbólico dos Passos.

Como a reflexão abordou sobre diferentes aspectos da solenidade de Passos, a análise não se

prendeu apenas a um aporte teórico. Para evitar deturpar o objeto aos grilhões metodológicos, foram

utilizadas diferentes categorias de acordo com o foco de análise de cada capítulo. Com isso foram

enfocadas categorias e linhas de pensamentos distintos, como espaço, sagrado, profano e

sacralização.

Espaço é uma das categorias mais polêmicas da geografia. Diversos pensadores têm refletido

sobre a questão ao longo dos anos, propiciando discussões surpreendentes. O espaço produzido pode

ser entendido enquanto resultado de uma ação humana sobre a superfície terrestre que expressa, a

cada momento, as relações sociais que lhe deram origem. Deste modo, podemos dizer que as formas

espaciais são produtos históricos, ou seja, resultantes da ação humana ao longo de diferentes

períodos. “A humanização do planeta ocorre com a apropriação intelectual dos lugares, com a

elaboração mental da paisagem, ou seja, a valorização subjetiva do espaço. Com isso, podemos dizer

que as formas espaciais são produtos das intervenções teleológicas, materializações elaboradas por

sujeitos históricos e sociais. Por trás dos usos do solo, repartições e distribuições estão concepções,

valores, interesses, mentalidades, visões de mundo, ou seja, todo o complexo universo da cultura,

política e ideologias. Partindo desta reflexão, é preciso buscar conhecer as motivações que movem os

atores, como sonhos, interesses e desejos.

Por apresentar tais características, o espaço produzido propicia leituras. Vidal de la Blache

chega a estimular os geógrafos a passearem pelos lugares como quem visita um museu. Esta

recomendação deve ser estendida aos historiadores, que ainda não descobriram a relevância dos

elementos espaciais enquanto fonte histórica. As formas criadas permitem uma leitura enquanto

símbolo de uma cultura e de uma época. Nesta perspectiva, a interpretação espacial pode revelar:

Momentos de produção dos lugares, valorização subjetiva do espaço, manifestações de consciência, lugar enquanto representação. A leitura da paisagem como elemento revelador de uma época e de uma cultura,

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consciência do espaço como tema de análise. Os discursos são elementos ativos na transformação dos espaços (MORAES, 2002, p. 25).

É importante frisar que o espaço é produzido e reproduzido cotidianamente. Ele é ao mesmo

tempo produto e fonte para uma nova produção. Assim, a produção do espaço pode ser lida do ponto

de vista das casas, das edificações construídas. No entanto, a leitura espacial não se limita aos seus

aspectos sólidos. Deve ocorrer também a leitura dos espaços flexíveis, como as espacialidades das

procissões e das festas religiosas.

O espaço, além de ser categoria geográfica, pode constituir-se em objeto de estudo da história.

As formas espaciais são produtos históricos e podem ser vistos como testemunhos de uma época, das

ações humanas ao longo do tempo. O testemunho estratificado na produção espacial não se configura

como algo cristalizado, inerte, morto, uma vez que ele está envolto de um constante processo de

transformação, com a redefinição de suas funcionalidades e de seus valores. Ao passo que a

sociedade se transforma, produz uma nova configuração espacial para atender às suas necessidades.

Apesar de haver um ininterrupto processo de produção/reprodução, as marcas e os sinais de épocas

distintas não são apagados das formas espaciais, mas sim, são acumulados, acrescidos de resquícios

de diferentes períodos, sobrepondo realidades e discursos. São tais registros que devem ser

vislumbrados pelos historiadores. Os “Seguidores de Clio” devem descobrir as formas espaciais

enquanto documento. O homem faz a história ao longo do tempo e do espaço, deixando resquícios de

sua ação em ambos.

No entanto, o espaço não é homogêneo. Ele pode apresentar rupturas, quebras, porções

qualitativamente diferenciadas. Uma das principais formas de distinção ou diferenciação espacial

ocorre com a sacralização. É neste aspecto que a categoria geográfica aproxima-se do conceito

antropológico de sagrado. O sagrado manifesta-se, “mostra como coisa absolutamente diferente do

profano” (ELIADE, s/d, p. 20). Neste sentido, “pedras, árvores perdem o seu significado original,

contudo continua a ser ele mesmo, porque continua a participar do seu meio cósmico envolvente”

(ELIADE, s/d, p. 21).

Na experiência do Homo religiosus, o espaço se torna qualitativamente diferente do espaço

profano que o cerca, sacraliza-se. A manifestação do sagrado causa quebras na homogeneidade

espacial, permitindo a constituição do mundo a partir da oposição entre um ponto fixo e a não-realidade

na imensa extensão que o envolve. Deste modo, a hierofania revela um centro (ELIADE, s/d, p. 27). No

entender de Eliade:

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Para o homem religioso, o espaço não é homogêneo: o espaço apresenta roturas, quebras; há porções de espaço qualitativamente diferentes das outras (...). Há, portanto, um espaço sagrado, e por conseqüência “forte”, significativo—e há outros espaços, não-sagrados, e por conseqüência sem estrutura nem consistência, em suma: amorfos (ELIADE, s/d, p. 27).

Assim se pode dizer que há locais privilegiados, que guardam uma qualidade excepcional

única. A orientação prévia é a indicação de um ponto fixo. “Por isso o homem sempre buscou estar no

centro” (ELIADE, s/d, p. 28) no campo religioso o centro é representado pelo santuário. Desse modo,

os peregrinos e romeiros ao se deslocarem a um santuário, estão em busca de um ponto fixo, do

espaço sacralizado, ou seja, da intimidade com o sagrado. A peregrinação “dirige-se a um lugar ‘fora

de’, ‘longe de’, segregando espacialmente em relação a seu ambiente social e ao seu lócus geográfico

cotidiano” (AGOSTINHO, 1986, p. 10). Esta situação assemelha-se a dos romeiros do Senhor dos

Passos que ao longo dos anos dirigem-se à cidade de São Cristóvão nas primeiras semanas da

quaresma para participar da principal solenidade religiosa de caráter penitencial de Sergipe.

No universo religioso dos Passos a sacralidade não se limita ao conjunto arquitetônico do

Carmo. Durante a solenidade religiosa é constituído um território próprio. O território dos Passos é

bastante flutuante ou móvel. Seus limites tendem a ser instáveis, com as áreas de influência deslizando

sobre o espaço concreto das ruas, becos e praças. Neste estudo, definimos este território móvel que se

desloca pelas principais ruas de São Cristóvão, sacralizando o espaço a partir de elementos como o

incenso, o sino e os passos de território flexível

Contudo, é importante ressaltar que o tempo das romarias é diferenciado. A sacralização não

fica restrita ao espaço, ela também ocorre com o tempo. No universo simbólico religioso há períodos do

ano que são qualitativamente privilegiados, diferenciados. É o tempo festivo que “representa a

reactualização de um evento sagrado que teve lugar num passado mítico, no começo. Participar

religiosamente de uma festa implica a saída da duração temporal ‘ordinária’ e a reintegração do tempo

mítico reactualizado pela própria festa. O tempo da festa é recuperável, repetível” (ELIADE, s/d, p. 61).

Deste modo, solenidades como a procissão do Senhor dos Passos em São Cristóvão, não só

constitui a representação do martírio de Cristo, como também a entrada dos participantes devotos em

um tempo diferenciado, no tempo mítico da Paixão. Nas trasladações das imagens votivas pelas

estreitas ruas da Velha Capital, os devotos acabam revivendo, sentindo as emoções dos últimos

passos de Jesus rumo ao Calvário. Em ocasiões como esta, o tempo habitual marcado pela monotonia

do trabalho é rompido, cedendo lugar ao tempo ritual ou festivo que “compreende o tempo das

procissões, de lazer e dos espetáculos sagrados, profanos e cívicos” (SOUZA, 2004, p. 96).

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Com isso, a partir destes aportes teóricos foi empreendida a tarefa de buscar compreender

algumas facetas da solenidade de Passos da “Primeira Capital Sergipana”, tendo como foco central a

sonoridade, os ruídos que perpassaram as barreiras do tempo. Foram investigados os indícios

reveladores da realidade imaginativa dos Passos, cercada de lendas, tabus e superstições. Tais

indícios, vistos enquanto bens simbólicos da solenidade do Senhor dos Passos, carregam os sinais da

devoção, das práticas religiosas realizadas ao longo do tempo. Assim, elementos como o sino, os

cânticos em latim, as preces particulares, os ex-votos, as fotografias e as imagens podem ser vistas

enquanto fio condutor para a compreensão do fenômeno estudado. Na análise do objeto de estudo o

historiador deve amparar-se nos mais variados instrumentos de pesquisa, na busca por vestígios

denunciadores do passado. Com os pressupostos da nova historiografia, “na falta de uma

documentação verbal para se pôr ao lado das pinturas rupestres e dos artefatos, podemos recorrer às

fábulas, que do saber daqueles remotos caçadores transmitem-nos às vezes um eco, mesmo que

tardio e deformado” (GINZBURG, 1989, p.151).

O principal documento sobre a solenidade de Nosso Senhor dos Passos no período entre

1886 e 1920 é o Annuario Christovense de Serafim de Santiago. A obra é um relato detalhado e

minucioso da trajetória dos romeiros até o santuário sancristovense. No texto memorialístico pode ser

evidenciado seis momentos, sendo eles: caminhada, chegada e contemplação, depósito, encontro,

despedida e retorno dos devotos.

O primeiro momento descrito por Santiago é o da caminhada. De forma breve, porém atenta, o

autor narra que:

Quando se aproximava o segundo Domingo da quaresma, dia consagrado a tradicional procissão dos Passos na legendária cidade de São Christovão, desde cedo e alguns dias antes, a multidão se dirigia para ali em continua romaria afim de assistir a dolorosa memoração da tragédia da rua da Amargura, ‘o encontro da formoza filha de Sião com seu filho unigenito’, acto que ainda hoje se celebra na ex-Capital Sergipana (SANTIAGO, 1920, p. 19).

O relato acima é revelador. O autor demonstra que nas primeiras semanas quaresmais as

estradas que levavam a São Cristóvão ficavam repletas de romeiros que buscavam participar da

celebração dos Passos. A caminhada descrita apresenta algumas peculiaridades, por se tratar de uma

romaria, ou seja, a busca pela contemplação e experiência com o universo sagrado. Neste sentido, a

romaria representa o deslocamento espacial do devoto que temporariamente afasta-se da realidade

cotidiana caótica para adentrar na ordem cósmica sacralizada. É a busca do santuário. Isso explica o

comportamento dos romeiros no itinerário entre a sua localidade de origem e a cidade de São

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Cristóvão, vista pelo autor como sendo “romaria com maior reverência”. É óbvio que esta versão é a

penas um olhar lançado sobre as estradas que ligavam São Cristóvão às demais cidades nas primeiras

semanas da quaresma. Além disso, Santiago não é um observador qualquer, mas sim um cidadão

sancristovense, católico e acima de tudo, admirador da solenidade de Passos. É muito provável que o

silêncio predominante nem sempre fosse respeitado, pois em uma longa caminhada a alegria e os risos

também deveriam está presentes, mesmo se tratando de uma romaria de penitência.

Santiago também retrata os diferentes ritmos da romaria. De acordo com o segmento social ou

o voto do romeiro, o deslocamento até São Cristóvão era vencido por diferentes meios. A penitência

era iniciada com o sacrifício da jornada a ser cumprida a pé. No período estudado (1886- 1920) a

trajetória devocional variou com as mudanças nos meios de transportes, levando-se em consideração

que em 1914 foi implantada a ferrovia ligando a Velha Capital às praias de Aracaju. Com isso, em 1920

Santiago afirmou que:

Hoje que nosso Estado acha-se dotado de uma estrada de ferro, havendo um trem diário para aquella cidade, desapareceu a grande influencia dos romeiros costumados, que alguns dias antes começavam a viajar, uns a pé, outros em carros puchados a bois, fazendo um agradável descanço nas margens do Rio Pitanga (SANTIAGO, 1920, p. 19).

Sob a ótica do memorialista, a implantação da ferrovia entre São Cristóvão e Aracaju resultou

na redução de romeiros que seguiam a pé pelas estradas. A partir de 1914 o trem passou a ser o

principal meio de transporte para a solenidade de Passos, o que não significou o fim dos demais. O que

chama mais atenção no depoimento é a predominância dos romeiros que seguiam a pé até o santuário

no período anterior a 1914. A caminhada rumo ao santuário representa uma importante simbologia no

universo cristão. Em diferentes épocas e localidades destacaram-se as longas caminhadas para

santuários como Santiago de Compostela, Roma e Jerusalém (BALBINOT, 1998, p. 77). Nos primeiros

dias da quaresma o afluxo de romeiros que adentravam em São Cristóvão era considerável, como

atesta mais uma vez o memorialista local:

No correr da primeira semana da quaresma, principiavam a chegar muitas famílias de todos os pontos da Província, principalmente da nova Capital de Aracaju, donde a maior parte da pequena população era natural de S. Christovão. Chegava finalmente no sabbado a tarde o Exmo Senhor Presidente da Província, de seu estado-maior, assim como um grande número de funcionários públicos gerais e provinciais e a musica do corpo de

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policia. Grande era a concorrência de carros conduzindo famílias a entrarem dia e noite na velha cidade (SANTIAGO, 1920, p. 20).

O depoimento demonstra que o afluxo de romeiros a São Cristóvão no período da solenidade

era realmente considerável. Com a proximidade das celebrações, os devotos de diferentes segmentos

sociais começavam a chegar à terra do Senhor dos Passos. Nesta ocasião ocorria um dos principais

momentos da solenidade: o encontro dos romeiros com a imagem do Senhor dos Passos. A relevância

deste momento é devido a interação do fiel com a imagem, o contato íntimo com o desejado universo

sagrado. A contemplação inicial ao pé da charola era peculiar. Na sexta-feira da quadragésima a

imagem era transportada do Carmo Pequeno para o Grande, local onde era preparada a charola para a

procissão. A imagem permanecia velada, ou seja, coberta com pano roxo a espera da penitencial

procissão do depósito. A contemplação nesse momento era intensa, pois durante todo o sábado

sagrado os romeiros visitavam a igreja do Carmo com o intuito de observar e poder tocar ao menos nos

pés da imagem. A contemplação continuava no dia seguinte, após a celebração da missa das dez,

como relembra Serafim de Santiago:

A proporção que os fieis iam entrando no referido templo de N. S. da Victoria, viam do lado do Evangelho, isto é com frente à capella do Santíssimo, postos os mesmos dois cavalletes e sobre elles a rica charola, já sem o encerro do sabbado à noite; nella achava-se o grande vulto do Nazareno exposto a veneração dos fies que anciosos procuravam admiral-o. ali estava elle de joelho em terra no centro da charola, vestido em rica túnica de gorgurão roxo, supportando o pezo do grande madeiro, com aquelle rosto venerável, os olhos injectados fitos para o chão, demosntrando a grande agonia cauzada pelo pezo da cruz. Finda a missa, era repetida a mesma scena dada na egreja Ordem 3ª do Carmo, isto é, os fieis rodeavam a charola admirando da mesma forma, tamanha perfeição, dizendo alguns: ‘não tenho coragem de me tirar deste sagrado lugar’. Assim conservava-se a grande concorrência dos romeiros até as 4 horas da tarde quando os sinos da Matriz começavam a dobrar, chamando de novo os fieis para o acto mais notável de minha terra natal (SANTIAGO, 1920, p. 23v).

O depoimento do memorialista é elucidativo, por demonstrar o quanto a imagem do Senhor dos

Passos era venerada. Por isso mesmo ter acesso a charola nos dias de solenidade não aparentava ser

tarefa fácil, levando-se em conta o elevado número de romeiros e a insistência de devotos em

permanecer contemplando a imagem durante todo o dia. Visando demonstrar a lotação da matriz da

cidade, o autor resolveu descrever a entrada no mesmo de forma ritmada, ou seja, é como Santiago

estivesse assumindo o papel de emissário correspondente do evento para o leitor. Ao ler o texto, o

leitor sente-se adentrando passo a passo na grande matriz sancristovense e percebe, detalhadamente,

a escultura do Senhor dos Passos.

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No universo simbólico religioso do romeiro, o local onde está depositada a charola do

Nazareno constitui uma sacralização privilegiada. O templo em si já é visto enquanto local sagrado, no

entanto, a presença da imagem agrega uma nova função, reforça a sacralidade. Sob esse prisma, a

elevada procura pelo Senhor dos Passos pode ser interpretada como uma forma de sentir, presenciar,

vivenciar a sacralidade.

O terceiro momento que pode ser evidenciado no Annuario Christovense é o da procissão do

depósito. No plano penitencial, este é o ápice da solenidade, por ser o momento em que diferentes

segmentos sociais cumprem seus atos de desobriga no curto trajeto processional entre as igrejas do

Carmo e da Matriz. No período estudado a cidade de São Cristóvão ainda não possuía rede elétrica.

Mesmo assim, a tradicional procissão do sábado à noite não transcorria às escuras. Além do luar, as

ruas do trajeto eram iluminadas com lanternas depositadas nas fachadas do casario e com as velas

dos inúmeros romeiros que lotavam a igreja e praça do Carmo. Embora o itinerário da procissão fosse

curto, a procissão era demorada, pois além de passar pela praça do Carmo, rua da Imperatriz e praça

da Matriz, o cortejo parava por três vezes para o canto dos passos.

O quarto momento da narrativa de Santiago é a procissão do Encontro, realizada no segundo

domingo da quaresma. Mesmo não tendo muitos romeiros cumprindo sacrifícios como no cortejo da

noite anterior, a procissão também apresenta aspectos penitencias, por relembrar “a tragédia da rua da

Amargura, o encontro da formoza filha de Sião com o filho unigênito” (SANTIAGO, 1920, p. 19).

Através da narrativa do autor sancristovense podemos constatar uma série de aspectos presentes na

procissão, dos quais o mais marcante é o caráter teatral. O longo cortejo que saia pelas ruas da Velha

Capital ao entardecer de domingo era uma verdadeira encenação dos últimos momentos da paixão.

Vários elementos somavam-se para fortalecer a teatralidade barroca da solenidade como o ritmo, os

cânticos, o encontro, as cenas representando os sete passos, as imagens em tamanho natural, a

mistura sincrônica de imagens e personagens bíblicos representados por moradores da cidade e o

cenário, cercado pelo casario barroco. No teatro dos Passos, é difícil distinguir o público dos atores,

pois o público formado por romeiros interagia constantemente com a encenação, ou seja,

desempenham função ativa na celebração, como evidencia o memorialista:

Alguns momentos antes de sair a procissão da Matriz uma pequena força composta de 8 praças e um sargento do corpo de policia para guarnecer as charolas e o Pallio. Dadas às 5 horas, e já estando presentes todos os sacerdotes, o Prior dirigia-se ao vigário Barrozo pregador do encontro e tratavam de mandar sahir a procissão. O vigário chamava o Senhor Jozé Antônio de Souza Leal, antigo devoto de carregar o pendão e a elle dava ordem para sahir primeiramente aquelle grande estandarte de pano grosso de damasco roxo levantada em uma haste de pau, superior a 20 palmos de

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altura [...]. Sahia então a procissão da Matriz; era agradavel ver apparecer a venerável Imagem do Senhor dos Passos, que ia percorrer algumas ruas da velha cidade e fazer o seu encontro doloroso. Ao chegar a charola na porta principal, carregada pelos Irmãos 3°s de São Francisco, o sargento, commandante da pequena força policial, mandava por joelhos em terra a seus commandados e o pôvo admirado curvava-se reverente deixando passar o famoso Nazareno (SANTIAGO, 1920, p. 24v-25).

O texto acima citado é enfático. Demonstra o grau de reverência que havia na solenidade de

Passos, em que até o corpo policial ajoelhava-se diante da imagem. Este ato simbólico é revelador, por

demonstrar o poderio atribuído à religião no período imperial, ainda regulamentado pelo padroado

régio. A interação do publico com a procissão torna-se explícita ao se observar o momento em que os

devotos curvam-se em reverência à imagem. Deste modo, o público passa a ser ator na dramática

encenação dos sete passos da paixão. Também demonstra o grau de teatralidade da procissão o fato

da imagem ser erguida somente ao sair da igreja Matriz, ou seja, apresenta-se solenemente ao público

de devotos. O mesmo ocorria na hora do encontro das imagens do Senhor dos Passos e de Nossa

Senhora da Soledade, na praça São Francisco. Nesta ocasião a eloqüência do sermão do vigário

Barrozo ritmava a entrada da Virgem no palco lotado pela platéia ansiosa, pois:

Findo este terceiro cântico, surgia no púlpito o vulto do Orador consumado vigário Jozé Gonçalves Barrozo que lançando um olhar prescutador sobre o enorme audictório que enchia a praça, principiava a falar, desenrolando os martyrios e soffrimentos da victima ali presente. O povo já ancioso esperava aquellas palavras inspiradas. Naquelle momento já estavam parados todos os sinos e reinava o completo silencio, esperando os ouvintes o momento mais tocante d’aquelle acto, o encontro doloroso da santíssima Virgem com seu unigênito filho em completa afflição na rua da Amargura. O povo, attento, ouvindo o orador, prestava ao mesmo tempo attenção a aproximação da charola da Virgem de Sião pela entrada do beco, e os devotos carregadores prestavam também attenção ao pregador , que, no correr do sermão, de quando em vez, fazia sinal mandando que a Virgem se approximasse. Estes sinaes erão tão bem representados, que os espectadores não percebiam, somente entendiam aquelles gestos do orador, os antigos devotos, carregadores da charola. Sublime as figuras grandiosas, as epopéias do verbo, os justos pensamentos sahiam-lhe dos lábios incendiados, quando elle, já tendo ao pé do púlpito a charola da Santíssima Virgem que já era vista pela maior parte da multidão dizia: ‘o voz todos, que passaes por aqui, attendei, e considerai, se há dor igual a minha dor e afflição’. Ao pronunciar elle, estas afflitas e angustiosas palavras, arrancava lágrimas da maior parte dos ouvintes (SANTIAGO, 1920, p. 25v-26).

A longa e minuciosa descrição do encontro acima citada é contundente. Apresenta claramente

os elementos da teatralidade barroca, na qual a praça São Francisco é transformada em um grande

auditório. Este é um dos principais momentos da encenação, pois diferentes atores se cruzam como o

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Senhor dos Passos, a Virgem da Soledade, a Verônica, o pregador e a grande massa de fiéis. A

proposta artística barroca era mais um mecanismo aglutinador de fiéis, pois visava educar e ao mesmo

tempo legitimar a imagem sacralizada.

O penúltimo momento da solenidade presente na obra de Santiago é a despedida dos devotos.

Após o retorno da procissão do encontro para a igreja do Carmo Pequeno os romeiros iniciavam a

despedida do santuário, ou seja, preparavam-se para retornar para o seu universo cotidiano e caótico.

Antes do retorno inevitável, os romeiros cumpriam os últimos atos penitenciais, os últimos contatos com

o sagrado. Com isso, era costume os devotos visitarem durante a noite de domingo os sete passos

expostos ao longo do trajeto processional, seguindo o mesmo itinerário da tarde. A despedida era

concluída com a veneração das “imagens que ficavam expostas até as 11 horas da noite” (SANTIAGO,

1920, p. 27).

Por fim, os devotos retornavam para suas localidades de origem. Nas noites iluminadas pelo

luar do domingo da quadragésima os romeiros caminhavam para diferentes destinos e realidades de

vida. No depoimento de Santiago é possível ouvir algumas vozes de tais romeiros, com discursos que

exalam o sentimento de dever cumprido mesclado com saudade e com a promessa do retorno certo. O

desfecho da romaria era marcado pelo elevado número de fiéis pelas estradas sancristovenses. Assim:

Terminada a procissão começavam a sahir os cavalleiros para a nova Capital de Aracaju, para Laranjeiras, Itaporanga, etc. Grande era a multidão de pessoas que a pé seguiam para Aracaju depois da visita dos Passos às 11 horas, aproveitando o lindo luar, e enquanto caminhavam diziam: ‘Adeus!!! Adeus!!! Até para a Semana Santa se Deus não mandar o contrário. Pelo caminho os viajantes elogiavam o sermão do vigário Barrozo, analysando alguns tópicos proferidos por elle [...] Deus te dê saúde, Padre Barrozo, e a mim conceda vida, que de ontem a hum mez estarei de volta por este caminho para ouvir outro Sermão do nosso Vigário na Semana Santa. Estas cinco leguas eram sempre vencidas com a mesma satisfação (SANTIAGO, 1920, p. 27v).

Podemos constatar que no retorno os romeiros firmavam o compromisso de voltar para

assistirem as solenidades da semana santa. Esta constatação reforça a idéia de que a cidade de São

Cristóvão neste período desempenhava a função de santuário local, aglomerando em suas

celebrações, devotos de diferentes partes de Sergipe. Com isso, para tentar empreender a solenidade

de Passos, torna-se eminente o estudo dos elementos constitutivos do santuário dos Passos.

REFERÊNCIAS

AGOSTINHO, Pedro. Imagem e Peregrinação na Cultura Cristã: um esboço introdutório. Salvador: Centro Editorial e Didático da UFBA, 1986.

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BALBINOT, Egídio. “Romaria: elementos antropológicos, bíblicos e históricos”. In: BALBINOT, Egídio (org.). Liturgia e Política. Chapecó: Grifos, 1998. p. 77-126. ELIADE, Mircea. O Sagrado e o Profano: a essência das Religiões. Lisboa: LBL Enciclopédia, s/d. GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes: o cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pela Inquisição. Trad. Maria Betânia Amorosa. São Paulo: Companhia das Letras, 1987. LE GOFF, Jacques. “Documento / Monumento”. In:__. História e Memória. Trad. Bernardo Leite. 2ª ed. Campinas-SP: Editora da UNICAMP. SANTOS, Magno Francisco de Jesus. Caminhos da Penitência: a Solenidade do Senhor dos Passos na Cidade de São Cristóvão- Sergipe (1886-1920). São Cristóvão. 2006. 127 f. Monografia (Bacharelado em História). UFS, CECH, DHI. SANTIAGO, Serafim de Santiago. Annuario Christovense. São Cristóvão, 1920.

SOUZA, Fábio Silva. Arqueologia do cotidiano: um flaneur em São Cristóvão - SE. São Cristóvão, 2004. Dissertação (Mestrado em Geografia) NPGED, UFS. TELLES, Manuel dos Passos de Oliveira. “Ao Romper do Século XX: o município de S. Christovam”. In: O Estado de Sergipe. Mar/Abr, 1917.

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A FÉ CATÓLICA EM CENÁRIOS DE FESTAS & TRADIÇÕES... Folia de Reis e Festa do Divino Espírito Santo em Jesúpolis e Jaraguá- Goiás

(Séc. XXI)

Ms. Maria Lícia dos Santos30

A religião pode ser compreendida como inserida dentro de um contexto histórico extremamente amplo e rico em possibilidades de estudos historiográficos, pois liga profano e sagrado, pessoa humana e divindade, indivíduo e comunidade, tempo e eternidade, fé e história. Conseqüentemente, gera um determinado modo de pensar e de se comportar, agindo significativamente na convivência e dando subsídio à tradição que é um padrão de pensamento, comportamento e sensibilidade que se desenvolve através do tempo e se mostra rico em sentido, integrado na realidade e útil à convivência. É sobre a fé e tradição que embala os sonhos e a memória do homem humilde e crédulo do interior de Goiás, que proponho contar. Atenta a essas reflexões procurei compreender as tramas inscritas, sobretudo nos depoimentos que deram sustentação empírica a esta pesquisa em uma proposta voltada ao estudo da construção da memória de pessoas que, em comum, possuem a experiência de terem compartilhado a vivência, a participação nos eventos religiosos. Visando desenvolver uma linha de raciocínio coerente com a proposta da pesquisa, busco subsídio teórico em Almeida; Peter Berge; Maria Clara Machado; Brandão; Durkheim , dentre outros que deram aprofundamento teórico ao trabalho de pesquisa.

Palavras-Chave: Religião; História; Memória; Identidade.

De acordo com dados do IBGE/2007, Jesúpolis, cidade com aproximadamente 2.201 mil

habitantes recebe, por ocasião dos festejos da Folia de Reis, 29 de dezembro a 6 de janeiro, visitantes

de cidades circunvizinhas e outras como Brasília e Goiânia, chegando muitas famílias a alugarem

casas para se hospedarem durante os dias de folia.

A Prefeitura local organiza a cidade, prepara material informativo e estimula os moradores a

montarem barracas para a comercialização de produtos regionais. A Polícia Militar estima participação

de cerca de oito mil pessoas nos festejos, superando em quatro vezes a população local.

30Mestre em História- UnB; Especialista em Metodologia do Ensino Superior – UEG – Graduada em

História – UFG. Professora de História no Instituto Federal Goiano-Campus Ceres-Goiás.

[email protected]

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A religiosidade é o motivo principal da criação do povoado, onde se celebrava a Festa do

Menino Jesus. Por sugestão do padre José Milanez, a escolha do nome de Jesúpolis, no ano de 1949,

ocorreu através de votação, com participação das pessoas que participavam da festa em louvor ao

menino Jesus. A palavra Jesúpolis deriva de Jesus devido à devoção e pólis, cidade. Assim, Jesúpolis

quer dizer cidade de Jesus, nome este que fez o município estrelar no quadro “cidades com nomes

exóticos”, do programa do Jô Soares, exibido pela Rede Globo, em julho de 2007.

A devoção que mantém viva a tradição fez com que um antigo residente do lugar, Sr. Galdino

(78), batizasse três dos seus nove filhos com os nomes dos reis magos: Gaspar, Melchior e Baltasar.

Os moradores de Jesúpolis programam suas vidas para antes ou depois da Folia. Os

preparativos iniciam com antecedência, as costureiras ficam lotadas com roupas para serem

confeccionadas, muitos vão a Jaraguá fazer compras nas confecções. As mulheres têm que ter roupas,

calçados ( botas) e maquiagens novas. Para os homens as botas, os cintos e os chapéus têm que ser

novos e vistosos. Os arreios dos cavalos também têm que ser apresentáveis. As mantas que cobrem o

dorso do cavalo são coloridas, vermelho ou amarelo ouro. Os fazendeiros se preparam para entregar

suas doações, já agendadas previamente. Sacos de arroz e feijão; suínos, aves e bovinos. Em um

pouso, como é chamada a festa noturna, consome-se carne de até 10 vacas. A comida é farta, as

mesas chegam a medir 10 a 15 metros, com pratos simples, mas feitos com carinho e dedicação pelas

cozinheiras e cozinheiros que muitas vezes vêm de longe para doar seu trabalho aos Santos Reis.

Várias pessoas trabalham nas festas. “Nas beiras” das tachas de comida, contam-se causos,

tomam pinga com limão, cerveja; cantam e se alegram em um momento ímpar de fé e afetividade que

mantêm os laços de parentesco e de amizade. As pessoas criam fama de serem bons ajudantes.

Homens, mulheres, crianças, todos trabalham. Preparam as barracas enfeitadas com bandeirolas de

papel colorido e cobertas com folhas de coqueiro. O presépio é peça fundamental, berço do menino

Jesus, pois é para lá que segue o cortejo acompanhado dos foliões que cantam e carregam a bandeira

dos Santos Reis. O cheiro de jasmim exala, misturando com o cheiro das deliciosas comidas

quentinhas nas tachas.

Sr. Galdino, atencioso depoente, embala a folia com sua voz afinada ao som do velho e

estimado violão, acompanhado de seu filho Eduardo Dias, jovem empresário do ramo musical e cantor

profissional que anualmente se desloca da cidade de Anápolis onde reside, para participar da Folia de

Reis e acompanhar seu pai, revezando com seus irmãos, nas cantorias. Percorrem fazendas, passam

noites sem dormir, gastando a voz para cumprir a tradição que mantêm desde sua infância.

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Ao som de instrumentos musicais os foliões efetuam longas caminhadas levando a bandeira,

ornada com as figuras dos três reis magos, à qual tributam especial respeito. Vão liderados pelo mestre

e contra-mestre, figuras de relevância dentro da Folia por conhecerem os preciosos versos,

preservados de geração em geração por tradição oral.

Em Jaraguá a Festa do Divino Espírito Santo também atrai ex-moradores, descendentes e

turistas que vêem com o intuito de festejar, tanto pelo aspecto profano, como para cumprir promessas

em uma prática de fé religiosa datada de meados do fim do século XVIII, (1737) data em que a cidade

foi erigida, nos primórdios da exploração aurífera, e reforçada com a criação da Irmandade do

Santíssimo, em 05 de junho de 1838.

A Festa em Jaraguá é uma ocasião de unidade entre a população. Une o rico e o pobre,

adversários políticos, moradores da zona rural e urbana, trazendo alegria, entusiasmo e acima de tudo

fé. Fé em melhores dias, em colheitas fartas, em cura de doenças e, na atualidade, de bons negócios

no ramo das confecções, nas questões políticas, ponto forte na cultura dos jaraguenses que já foi

berço de coronéis, como também oportunidade de rever os amigos, parentes, para relembrar as raízes

culturais ou para simplesmente festar.

Paralelo aos festejos, tanto em Jesúpolis quanto em Jaraguá, pode-se constatar uma grande

diversidade de contos, causos e superstições que mantêm as conversas durante o período em que as

pessoas se encontram e travam seus diálogos. Exemplo disso é o caso de uma luz que aparece na

região de Pouso Alto, município de Jesúpolis, que segundo os contadores, é sinal de ouro na região.

Fatos verdadeiros ou frutos da imaginação humana os causos populares costumam gerar

grandes polêmicas entres os habitantes da região. A verdade é que estas estórias ficam nos

pensamentos e passam de geração para geração, preservando as identidades. Essa cultura, parte

constitutiva do social, dinâmica e plural, deixa rastros, traços de memória por indícios e sinais, não nos

deixando órfãos de história.

Mesmo diante do quadro de transformações que a modernidade impõe, (Jaraguá, por exemplo,

é tida atualmente como a “capital goiana das confecções”) é impossível não perceber que o povo

goiano do interior aprendeu a cultivar a sua memória em pequenos sinais da vida cotidiana, que podem

estar traduzidos nos objetos materiais e santos de devoção guardados e cultuados, nos ditos,

provérbios e "causos" populares, com os quais procura expressar a sabedoria e as experiências de

vida, nas suas relações de compadrio ainda assumidas, nas comemorações dos festejos religiosos e

populares nos quais se renovam a fé e o reencontro, nos sabores, quitutes e comidas típicas da

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região, na preferência pelas antigas modas sertanejas ainda entoadas, nas crenças, nas benzeções,

nos curadores, nos chás e remédios caseiros aos quais, freqüentemente, recorrem.

Tanto a Folia de Reis quanto a Festa do Divino Espírito Santo, são eventos populares que

transcendem o âmbito religioso de suas origens e incorporam aspectos profanos e regionais. Trata-se

de expressões agrárias, que tem características próprias, expressas em coreografias, ritmos e

canções. Apesar das peculiaridades locais, todos os grupos têmcomo característica de preservação

dos versos e danças que trazem em seu bojo reminiscências da história do Brasil Colonial.

Como proposta de pesquisa, procurei analisar duas cidades que possuem aspectos que as

diferenciam: a história, a economia e a localização geográfica. Entretanto, a tradição das festas

religiosas, tece um fio que as unem dentro de perspectivas, anseios, sonhos e permanências, como

representações simbólicas de manutenção da cultura popular goiana.

Jaraguá, cidade que nasceu no século XVIII, no ciclo da mineração e que vem se

desenvolvendo com o estímulo da modernidade. Conhecida por ser a capital das confecções, está

situada a 124 quilômetros da capital do Estado e localiza-se na Mesorregião do Centro Goiano e

Microrregião de Anápolis, no Vale do São Patrício. Possui uma população de mais de 37 mil habitantes

e uma área de 1.888,938 km², tendo assim uma densidade de 19,6 hab./km². A economia de Jaraguá

se baseia nas confecções, sendo considerada um dos maiores pólos do Centro-Oeste, gerando cerca

de 10 mil empregos na região, atividade que teve início em meados dos anos 80. A localização

estratégica da cidade, às margens da Belém-Brasília, favoreceu a penetração de seus produtos no

mercado regional. No final dos anos 80 e início dos 90, a abertura comercial e o crescente interesse e

consumo de produtos de vestuário importados no país estimulou a produção local. Nos últimos quatro

anos, o Sebrae em Goiás já investiu R$ 4 milhões em Jaraguá, no aperfeiçoamento e desenvolvimento

do arranjo produtivo local31.(www.cidades)

Jesúpolis, com 52 anos de existência e somente 17 de emancipação política (16/01/1991),

quando se desmembrou de São Francisco de Goiás, localiza-se a 101 Km ao norte da capital, possui

aproximadamente 2.201 habitantes. Movida com base econômica na agropecuária, Jesúpolis conta

com apenas uma indústria cerâmica (gera 50 postos de trabalho, sendo a maior empregadora depois

da prefeitura, com 109 funcionários) e 13 estabelecimentos do comércio varejista legalmente

registrados. Dos 602 domicílios, 498 (82,7%) são mantidos com renda familiar de até três salários

mínimos, sendo 219 deles (36,3%) administrados com um salário mínimo mensal. O Índice de

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Desenvolvimento Humano Municipal (IDH-M) registrou 0,721 pontos no ano de 2000, contra 0,776 de

Goiás e 0,789 do Brasil. Com relação ao Produto Interno Bruto (PIB), Jesúpolis ocupa a penúltima

posição entre os 246 municípios goianos. (www.Jornal diáriodonorte)

Duas cidades, duas histórias, duas realidades, possibilidades e promessas diversas. A

localização geográfica, a demografia, as exigências capitalistas as mantêm distantes em quase todos

os aspectos, mas a fé que embala os anseios de seus moradores, as mantém unidas. Considerando a

proposta apresentada pela chamada nova história que, segundo Burke (1990), aponta para a

perspectiva de que “tudo tem uma história”, propus realizar uma pesquisa que tome, como plano de

observação a memória que se constrói em torno dos eventos culturais, especificadamente aqui

propostos, a Folia de Reis na cidade de Jesúpolis e a Festa do Divino Espírito Santo na cidade de

Jaraguá, além dos registros de memória cultural, que constroem e fazem parte do imaginário dos meus

depoentes, especificadamente, moradores das duas cidades do interior goiano. Sobre esse enfoque,

consideramos a concepção sustentada pela estudiosa Pasavento, em (...) pensar a cultura como um

conjunto de significados partilhados e construídos pelos homens para explicar o mundo. (1995:20).

A religião pode ser compreendida como inserida dentro de um contexto histórico extremamente

amplo e rico em possibilidades de estudos historiográficos, pois liga profano e sagrado, pessoa

humana e divindade, indivíduo e comunidade, tempo e eternidade, fé e história. Conseqüentemente,

gera um determinado modo de pensar e de se comportar, agindo significativamente na convivência e

dando subsídio à tradição que é um padrão de pensamento, comportamento e sensibilidade que se

desenvolve através do tempo e se mostra rico em sentido, integrado na realidade e útil à convivência.

A construção da tradição é fruto direto da capacidade humana de selecionar e acumular

experiências positivas e de ensiná-las aos semelhantes. A tradição é, então, uma longa corda que une

fortemente os diversos componentes de um grupo, mas sem uma força tal que os impossibilite de se

mover. E, por sinal, sem a trajetória de cada um, não há como o grupo atado pela corda deslocar-se no

caminho que o tempo e o ambiente lhe impõem. A tradição é, pois, o resultado das diversas ações

individuais aceitas e reproduzidas pelo meio humano. Essa imitação a faz sobreviver à morte dos

inovadores e prolonga-se até onde a conveniência social permitir. A tradição é constituída com respeito

à manutenção das experiências positivas dos que já morreram, mas também do bom senso que não

deixa que ela se enrijeça e lhe permite eliminar o que não é mais sustentável e incorporar novas ações.

Atenta a essas reflexões busquei compreender as tramas inscritas, sobretudo nos

depoimentos que deram sustentação empírica a esta pesquisa em uma proposta voltada ao estudo da

construção da memória de pessoas que, em comum, possuem a experiência de terem compartilhado a

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vivência, a participação nos eventos festivos. Essa memória foi investigada, sobretudo, a partir dos

depoimentos, buscando apreender o que foi lembrado, melhor dizendo, o que foi escolhido para

construir e perpetuar as histórias dessas experiências, e como a memória acaba por oferecer subsídios

às identidades desses grupos.

Os festejos, tanto a Folia de Reis quanto a Festa do Divino Espírito Santo, são entendidos

como uma representação produzida por sujeitos sociais que ainda têm o mundo rural como referência

de vida, cujas experiências estão fundadas na sociabilidade comunitária. O conceito de experiência

referido é benjaminiano, (Benjamin, 1985), pois permite pensar a tradição como o momento em que o

coletivo e o individual se unem, originando uma prática cultural comum aos sujeitos sociais nela

envolvidos, capaz, por isso mesmo, de ser transmissível às futuras gerações. Tradição, desse ponto de

vista, não são apenas rastros ou restos que, como lembranças, se diluem e se perdem no tempo. Mais

que isso, tendo como suporte uma memória, retoma o passado consciente de suas perdas, como

colabora Machado (1998), para projetar um futuro cuja identidade cultural seja porta-voz de sua luta

para a manutenção da fé que sustenta e mantêm os laços de afetividade, onde o pobre e o rico, ali

imbuídos dos mesmos ideais de manutenção dos costumes, sustenta e consolida a memória coletiva.

Certeau (1994:189) nos ampara nesta análise quando confirma que a memória é o antimuseu:

não é localizável. Dela saem clarões nas lendas. Aí dorme um passado, como nos gestos cotidianos de

caminhar, comer, deitar-se onde dormitam revoluções antigas. Os lugares vividos são como presenças

de ausências. O que se mostra designa aquilo que não é mais. Os demonstrativos dizem do visível

suas indivisíveis identidades.

Como vem demonstrando uma prática historiográfica atual, é no cotidiano que a realidade

sócio-cultural-histórica, solo sobre o qual descansam nossos objetos, apresenta-se em toda sua

riqueza e complexidade. Por isso mesmo, a opção que aqui fiz por um estudo que considerasse a

dimensão do cotidiano como ponte para a apreensão de meu objeto de estudo. Corrobora Penin, ao

afirmar que (...) a cotidianidade, (...) apresenta-se como o império das representações. No cotidiano, as

representações nascem e para ali regressam. No cotidiano cada coisa (...) é acompanhada de

representações que mostram qual é o seu papel. (Penin1995:26/27)

Uma proposta que pretende apreender as representações que moradores das cidades têm de suas experiências deve centrar seu foco sobre as relações cotidianas, pois, como bem lembra Lefebvre,( apud Penin 1995:15), o cotidiano nada mais é que “um nível da realidade social”, por sinal, dos mais ricos. Baseando-se nesse autor, Penin afirma que,

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... a vida cotidiana apresenta-se como um nível de ‘totalidade’, da mesma forma que são níveis, e podem ser investigados como tal, o biológico, o fisiológico, o psicológico, o econômico etc.”(1995:16)

A história cultural, tal como a entendemos, tem por principal objeto identificar o modo como em

diferentes lugares e momentos uma determinada realidade social é construída, pensada, dada a ler.

Uma tarefa deste tipo supõe vários caminhos.

Às fontes orais dirigi a disposição de investigar como o trabalho da memória constrói sentidos sobre as experiências vividas, neste processo, a memória subsidia a construção permanente das identidades que marcam o encontro de nosso passado com as relações sociais, culturais e econômicas nas quais vivemos agora que é a intersecção de nossas vidas cotidianas. Sugere ainda Woordward que:

Ao afirmar uma determinada identidade, podemos buscar legitimá-la por referência a um suposto e autêntico passado – possivelmente um passado glorioso, mas, de qualquer forma, um passado que parece “real” – que poderia validar a identidade que reivindicamos. (Apud Silva, 2000:19/27)).

Brito adverte que as fontes documentais não devem ser consideradas como “documentos que

remetem à verdade do acontecimento. Preferimos vê-las como um outro acontecimento discursivo que,

ao construir-se, institui sentidos para aquele.” (Apud Swain, 1994:190).

Esse tipo de proposição pode ser encontrado, por exemplo, no programa de reflexão proposto

pela Análise do Discurso, que encara o discurso como aquilo que constrói a realidade, representando-

a. (Orlandi, 1999).

A palavra discurso sugere, etimologicamente, a idéia de curso, de correr, de movimento. Em

outras palavras, todo discurso é histórico. Somente nele (e por ele) podemos encontrar o passado

como foi concebido, construído, vivido. Ele não é tão somente “reflexo” da realidade à qual se remete.

É a única realidade possível de se apreender. No entendimento de Orlandi:

...A análise de Discurso concebe a linguagem como mediação necessária entre o homem e a realidade natural e social.(...) O trabalho simbólico do discurso está na base da produção da existência humana. (Idem:15)

Assim, trabalhar as fontes como discursos implica concebê-las numa perspectiva que não visa

buscar o falso em meio a alguma secreta verdade, separando o joio (falso) do trigo (verdade), como

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pretenderam um dia os metódicos. Parto do princípio de que todo discurso é um trabalho de tradução

do real, de busca de sentidos. Este será o entendimento que guiará este trabalho.

Lembra Silva, que nenhuma linguagem é neutra, transparente.

Em vez disso, a linguagem é encarada como um movimento em constante fluxo, sempre indefinida, não conseguindo nunca capturar de forma definitiva qualquer significado que a precederia e ao qual estaria inequivocadamente amarrada.(Silva, 2000:249)

Ainda assim, outras dimensões do documento oral foram consideradas. Refiro-me,

mesmo que por ora brevemente, à preocupação em dar um tratamento teórico à questão da memória.

Como mostrou Ecléia Bosi, baseada nos estudos de Halbwachs,

... a lembrança é uma imagem construída pelos materiais que estão, agora, à nossa disposição, no conjunto de representações que povoam nossa consciência atual. Por mais nítida que nos pareça a lembrança de um fato antigo, ela não é a mesma imagem que experimentamos na infância, por que nós não somos os mesmos de então e porque nossa percepção alterou-se e, com ela, nossas idéias, nossos juízos de realidade e de valor. (Bosi, 1994:55).

A estreita ligação entre o estudo da memória e o das representações é lembrado por Ecléia Bosi no trabalho já referido: “... a memória permite a relação do corpo presente com o passado e, ao mesmo tempo, interfere no processo ‘atual’ das representações”.(Idem:9) Em outras palavras, a memória é instrumento que auxilia na constituição de representações que tanto remetem ao passado quanto à realidade atual, configurando sentidos à mesma e interferindo sobremaneira na construção dos processos identitários sempre em andamento.

Entendido dessa forma, o trabalho da memória deve ser apreendido em toda a complexidade que marca a estreita relação (passado/presente) que o informa.

... a lembrança pura, quando se atualiza na imagem-lembrança, traz à tona da consciência um momento único, singular, não repetido, irreversível, da vida. Daí, também, o caráter não mecânico, mas evocativo do seu aparecimento por via da memória. Sonho e poesia são, tantas vezes, feitos dessa matéria que estaria latente nas zonas profundas do psiquismo.(Idem, Ibidem:11)

Halbwachs, em seu trabalho sobre a memória coletiva, também argumenta sobre a importância de seu estudo para uma melhor compreensão histórica da sociedade e enfatiza que:

(...) Se o que vemos hoje tivesse que tomar lugar dentro do quadro de nossas lembranças antigas, inversamente essas lembranças se adaptariam ao conjunto de nossas percepções atuais. Tudo se passa como se confrontássemos vários depoimentos. É porque concordam no essencial, apesar de algumas divergências, que podemos reconstruir um conjunto de lembranças de modo a reconhecê-lo.(1990:25).

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Atualmente, a elaboração de uma pesquisa história abre um leque de possibilidades interdisciplinares que muito auxilia o profissional da área que se vê, finalmente, livre dos paradigmas da história tradicional, em que era tido como um mero narrador dos acontecimentos passados. Através dessa nova postura, o historiador pode hoje se desvencilhar das antigas e já tão criticadas amarras que por tanto tempo pautaram seu ofício. Refiro-me, principalmente, à ilusão de que no documento se inscreveria uma verdade capaz de ser captada pelo olhar atento e rigoroso do historiador.

Sem deixar de reconhecer a importância da fonte documental, sem a qual não haveria trabalho

histórico, pode-se hoje interpretá-la com maior abertura, privilegiando os diálogos interdisciplinares,

buscando apreender as representações inscritas nas fontes/discursos. Reconhece-se, portanto, com J.

Le Goff, (1985:98) que “não há história sem documentos”. E mais, segundo o mesmo historiador, “há

que tomar a palavra documento no sentido mais amplo, documento escrito, ilustrado, transmitido pelo

som, a imagem ou de qualquer outra maneira, mas considera-se, sobretudo, a necessidade, já

lembrada no início desta proposta, de fazer a leitura das fontes fortemente decidida a deixar a pesquisa

fluir como uma “verdadeira aventura”.

Na religião, a tradição adquire sentido por desvelar, de um modo determinado, o sentido do

presente. A verdade da atualidade se revela na relação que se faz com palavras e imagens da tradição.

Acima de tudo está a história com suas relações que têm de visar à integração de fé e vida, de

presente e futuro, de sociedade e seu bem-estar para que novas possibilidades se apresentem em

formas de pensar e (con)viver.

As fontes orais receberam o tratamento de discurso, considerando que, como orienta

Thompson (1992:33) lidamos com as pessoas, em um contato próximo de interatividade e estas lança

a vida para dentro da própria história e isso alarga seu campo de ação. Dá nomes e referencial e ainda,

admite heróis vindos não só dentre os líderes, mas dentre a maioria desconhecida do povo.

Dentro dessa compreensão busquei entrevistar moradores e ex-moradores, pessoas que

viveram e vivem as experiências para constituição de um corpus documental de fontes orais.

Em Jesúpolis, Sr. Galdino, conta que começou a participar das folias quando foi contemplado

com um milagre dos Santos Reis. Com 12 anos de idade, levou um coice, de uma novilha, no olho

direito, o que fez com que seu olho saísse do globo ocular, além de ter um corte grande na pálpebra.

Comovido, conta que:

Meu pai, quando viu aquilo, empurrou meu olho de volta ao lugar e deu pontos no corte, sem anestesia nenhuma, pois nós morava na roça, sem nenhum recurso. Daí meu pai prometeu a Santo Reis que se ele curasse meu olho eu ia girar na folia. Não tive nenhum problema no olho. Só ficou a cicatriz. Enxergo perfeitamente. Passei então a girar a folia em todos esses anos. Já teve ano que eu participei de 7 folias.

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Enfatiza ainda Sr. Galdino, que:

Santos Reis é milagroso, mas também é vingativo. Conta que Martinzão teimou em cruzar as bandeiras no giro, aqui mesmo em Jesúpolis, onze dias depois ele morreu, de morte natural, sendo que não estava com nenhum problema de saúde. Todos viram quando Martinzão foi alertado para não cruzar o giro, ele fez chacota e disse que isso era bobagem. As bandeiras não podem passar uma pela outra, cruzando, é preciso que o giro seja respeitado. Faz parte das normas. Folia é coisa séria. (depoimento em 3 de agosto/2008)

Sobre milagres e punições também outra depoente Terezinha (44) é taxativa em contar.

Certa vez meu pai combinou de dar um pouso para a Folia de Reis, contrariando minha mãe que estava se convertendo à religião evangélica. Minha mãe disse que folia era sinônimo de bagunça, de arruaça. Foi nada não, no dia do pouso, um homem apelidado de Cobrinha, matou um outro de apelido “Paraibano”, em nossa casa, com mais de 10 facadas. Todos falaram ter sido castigo pelas blasfêmias de minha mãe. (depoimento em 31 de agosto/2008)

Emocionada, a mesma depoente, conta da comprovação de um milagre, que presenciou no

ano passado, relata que:

A tia do meu marido, com muita preocupação quanto ao futuro de seu filho que se chama Eliziário, que estava com comportamento muito inadequado, bebendo, fazendo arruaças, fez promessa de ofertar um almoço para Santos Reis para abrir os caminhos do menino. Em menos de um ano, Eliziário se tornou um outro rapaz. Passou no vestibular, começou a levar a vida a sério, parecia outra pessoa. Então, o primo Josué Leite de Bessa, ofereceu a casa, aqui em Jesúpolis, para que o almoço fosse servido e minha tia, que mora em Brasília, veio com Eliziário e doaram ainda um violão e uma viola para Santos Reis. Todos vimos o milagre que aconteceu.(Idem)

Para Terezinha, o que motiva a tradição, é a religiosidade que passa de pai para filho. Por mais

humilde que a pessoa seja, não deixa de ofertar frango, ovos, mandioca, enfim, o que tiver em casa, e

a prosperidade passa a reinar naquela residência. O município todo participa e a emoção nas casas

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visitadas pela folia é fato comprovado. O irmão dela, que está morando nos EUA, fez questão de ouvir

pelo telefone, os foliões cantarem. Os presentes se comoveram às lágrimas.

Folia de Reis boa é quando tem chuva, pontua Fernanda Bessa. Ninguém se incomoda com o barro, com a água e muito menos com os carros “atolados”. Assim é que todos acham bom. A chuva é sinônimo de fartura, de boa colheita para o homem do campo. Portanto combina com a fé e devoção nos Santos Reis.(Depoimento em 19 de agosto/2008)

Na busca de subsídios para sustentação empírica da presente pesquisa procurei Maria

Augusta Barbo de Siqueira, em sua agradável casa construída no século XVIII, localizada na histórica

rua das Flores, em Jaraguá. A mesma é presidente da Associação dos defensores do Patrimônio

Histórico e Cultural de Jaraguá – JÁ e, muito gentilmente, me recebeu para uma conversa sobre a

história de Jaraguá, tema que lhe é muito familiar, pois a sua luta é constante para a manutenção e

preservação da memória histórica da cidade que tanto ama, além de me dispor de trabalhos escritos

por ela.

Maria Augusta, em pesquisa realizada sobre a história da Festa do Divino Espírito Santo

enfatiza que,

A primeira referência escrita da festa do Divino em Jaraguá data de 1819, (...) e foi introduzida por padre Silvestre que tomou como referência o mesmo festejo na cidade de Pirenópolis. Era, inicialmente, uma celebração apenas de brancos. Os negros celebravam as datas de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito. Hoje, toda a comunidade se junta para realizar as três festas conjuntamente, não se tendo notícias do ano em que elas se uniram. (Siqueira, texto:s/d)

Segundo a mesma autora, a festa foi trazida ao Brasil pelos colonizadores portugueses no

século XVI. De acordo com estudiosos, no Século XIII, Portugal e Espanha estavam em guerra e a

rainha Isabel, de Portugal, respeitada por suas virtudes de caridade e fé, promete ao Divino Espírito

Santo que ofertaria sua coroa à igreja para que a paz fosse promovida entre as duas nações católicas.

Atendida em suas orações, a promessa foi cumprida. A coroa foi doada e houve farta distribuição de

alimentos aos carentes.

Carinhosamente Maria Augusta registra como se dá o acontecimento tão esperado:

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Toda a cidade se movimenta. Barraquinhas, leilões, novenas e missas acontecem diariamente. (...) a igreja providencia os leilões que são realizados após a missa da noite e a comunidade participa com as prendas, doando-as com muito gosto: lombo, frango e leitoa assados, quitandas, bandejas de frutas, doces e roupas. Estas últimas doadas pelas prósperas confecções da cidade.(Idem)

Perguntei à Maria Augusta o que ela considera como fator de manutenção e permanência das

tradições históricas da cidade de Jaraguá, justificando o retorno constante de seus antigos moradores

nas ocasiões dos festejos. Ela respondeu que é a serra, esse bloco compacto que fecha a linha do

horizonte e mantêm os jaraguenses unidos.

A história da Banda Santa Cecília é de suma importância para enriquecer minha proposta de

trabalho, pois representa testemunho vivo das festas, alvoradas e comemorações nestes quase dois

séculos de Festa do Divino Espírito Santo em Jaraguá. Fortalecendo a pesquisa sobre a história da

Banda Santa Cecília, corrobora Souza, em uma linda homenagem:

A Banda que veio do céu:

No espaço aberto em frente da capela, grupos de homens se formavam, tristes e angustiados, sem nenhuma esperança de vida, agora que as minas se esgotaram, bateias vazias, ausentes do brilho amarelo das pepitas colhidas nas grutas e grotões existentes na grande e misteriosa serrania que vigiava o povoado.

De repente, maviosos sons, vindo das nuvens dispersas nas alturas do céu azul, despertaram a sonolência daqueles homens que, tomando rudes instrumentos – rabecas e rabecões, violas, atabaques, trombones e clarinetas, caixas e bumbos, escutando a melodia, contentes, passaram a acompanhar o desconhecido executante que habitava o longínquo azul, onde Deus mora ouvindo o trinar alegre da passarada. Já entusiasmados, silenciada a celeste música, aqueles homens retomando enxadas e enxadões, facões e foices, rasgaram sulcos na terra, neles lançando a sementeira que se transformaria em alimentos, fonte de vida, alegria e prosperidade.

E quando o suor descia em seus corpos cansados lembravam o estranho e misterioso acontecimento certos de que a coragem e o destemor prevaleciam, se o trabalho e a fé os conduzissem.

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E se agrupando no adro da velha capela, usando o seu antigo instrumental, recordava a celeste melodia, inspiradora do seu destino, e a música encantada permaneceu entre aquela gente, desde aquela manhã em que a ouviu primeiramente, justamente no dia em que o mundo cristão cultua a memória da menina Cecília, Santa Mensageira de Maria Santíssima.

E aquele povo, agradecido e feliz, erguendo os usados instrumentos ao alto proclamou a existência de sua banda musical, que o alegrava nas matinatas, serenatas e festas sociais e religiosas, para sempre. (Souza,1999)

O poema, compreendido como documento, muito tem a contar sobre o modo de vida, as

dificuldades dos trabalhadores tristes e angustiados com o declínio do ouro, mas que recebem o alento

e esperança através das melodias entoadas pela Banda e, decididos, rasgaram sulcos na terra, neles

lançando a sementeira que se transformaria em alimentos, fonte de vida, alegria e prosperidade,

mostrando a força da agricultura que é ponto alto na produção e economia de Jaraguá.

Anualmente comemora-se me Jaraguá, no mês de novembro, o dia de Santa Cecília, padroeira

do canto e da música. Em convite do evento que aconteceu no ano de 2001, a programação teve início

às 5h, quando a cidade foi acordada com os sons musicais de pistões, clarinetas, flautas, saxofones,

tambores...despertando saudades, sonhos, amores... Á noite, na Praça Cristóvão Colombo, praça

central da cidade, onde existia um coreto, a Banda encanta a todos com excepcional execução de

músicas como Coronel Perez- Dobrado; Estrela do Sul, Czardas, The Lino King, Com te Partiró,

Mambo Jambo, Cruzeiro do Sul, No Mercado Persa, Saudade de Vinícius, O Lago dos Cisnes e

Súplica.

Na ocasião, Jaraguá recebeu também a Banda Musical de Goiânia, que entoou lindas melodias

e contribui para tornar a homenagem a padroeira do canto e da música ainda mais alegre e festiva.

Conta Maria Augusta que atualmente sessenta e quatro famílias de jaraguenses, residentes em

Goiânia, recebem a coroa do Divino Espírito Santo. Tudo começou à cerca de vinte anos, por iniciativa

da mesma, que também reside em Goiânia, mas que não esquece os laços de afetividade e tradição

que a mantem ligada à sua cidade natal. No início eram um número aproximado de vinte e poucas

famílias visitadas e hoje o número de famílias quase triplicou, e segundo Maria Augusta, dá gosto ver a

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satisfação das famílias em receber a Coroa do Divino Espírito Santo. Os jaraguenses saem de

madrugada para chegar a Goiânia onde o ritual começa às 6h30 com alvorada e farto café da manhã,

estendendo-se até as 22h30 com encerramento em grandioso e alegre jantar oferecido com muito

gosto por um dos jaraguenses visitados. A experiência, segundo a mesma depoente, é cansativa,

principalmente a ela, hoje com 71 anos, mas as compensações são grandes diante da fé e alegria das

pessoas em manterem suas raízes e tradições.

Dessa gente simples, alegre, hospitaleira, que traz seus sonhos embalados aos sons dos

instrumentos, dos cantos, da disposição para o trabalho, da doação de bens materiais e de si mesmo

em nome de uma crença, de uma tradição, que se alegram e dançam nas festas até o raiar do dia, que

propus contar.

DEPOENTES: Fernanda Bessa (33 anos) – Gestora Pública, natural de Jesúpolis. Depoimento em 19 de agosto/2008

Galdino Dias dos Santos (73) – artesão, poeta, compositor, instrumentista e embaixador da Folia de Reis e Folia de São Sebastião. A primeira, reerguida por ele, após período de declínio, a segunda, fundada por ele, também chamada de foliinha. Depoimento em 30 de agosto/08. O pai de Sr. Galdino, Sr. Cândido Dias dos Santos e sua mãe Virgínia Francisca de Bessa foram os fundadores da cidade de Jesúpolis. Todos os anos celebravam uma festa em homenagem ao menino Jesus, em sua fazenda Pouso Alto e os festejos passaram a reunir tantas pessoas que realizaram um sonho de construir uma igreja, A fundação de Jesúpolis teve duração de mais ou menos 20 anos sendo de 1948 a 1968. A expansão desse povoado começou com a vinda dos nordestinos que aqui chegaram e montaram suas casas de comércio. Maria Augusta Barbo Siqueira (71 anos)- Mestre em Pedagogia; professora aposentada da UCG; Fundadora da Associação do Patrimônio Histórico e Cultural de Jaraguá; Fundadora e Diretora do Educandário Maria Betânia em Goiânia. Terezinha Rodrigues Braga Bessa (35 anos) - professora em Jesúpolis, graduada em Filosofia; especialista em Educação Inclusiva; intérprete em libras; estudante do curso de História na UEG de Jaraguá. Depoimento em 31 de agosto/2008. ARQUIVOS/DOCUMENTOS: Arquivo da Associação dos Defensores do Patrimônio Histórico e Cultural de Jaraguá. A História da Criação de Jesúpolis. Prefeitura Municipal de Jesúpolis, s/d. Maria Augusta Barbo Siqueira. Jaraguá: Festa do Divino – Uma Festa de Cores e de Fé. Texto, s/d. Serra de Jaraguá. Transformada pela lei número 13.247 de 13/01/1998 em Parque Ecológico da Serra de Jaraguá, possui 520 metros de altitude e várias trilhas.

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Manoel Amorim Felix de Souza A Banda que veio do céu. Autor de “Baladas Goianas” e “Rio Vermelho”. Desembargador Jaraguense, referindo-se à Banda Stª Cecília de Jaraguá, primeira banda musical do Estado de Goiás, fundada antes de 1869. Publicado no Jornal “O Popular” dia 05/09/99.

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A ESPECIFICIDADE DO RELIGIOSO: PARA UMA HISTÓRIA RELIGIOSA

Tiago Pires32

[email protected]

Pensar a especificidade do religioso sempre foi uma grande dificuldade para qualquer cientista

das humanidades. A própria concepção de religião assume diferentes significados ao longo do tempo e

do espaço. Segundo Francisco José Silva Gomes: “Qualquer tentativa de definição de religião é, pois,

de todo impossível fora das formas concretas em que historicamente se manifestou ou evoluiu.”

(GOMES, 2002:14). Não mais fácil é pensar quais seriam as características singulares do que

chamamos de História religiosa.

No que tange a História das religiões e a História religiosa, é possível perceber uma importante

diferença em suas abordagens: a primeira privilegia o recorte de seu objeto, em variadas escolas

(francesa, italiana, entre outras) (AGNOLIN, 2005); já a história religiosa busca articular a experiência

do sagrado com o conjunto das relações sociais. Inúmeras vezes, porém, tais perspectivas se

aproximam e até se mesclam. Todavia, a forma que elas lidam com o objeto “religião”, como o vêem, a

ênfase que elas mantêm, são, de alguma maneira, diferentes. Dessa forma, a busca de uma melhor

definição para as referidas abordagens e consequentemente uma fundamentação teórico-metodológica

para as mesmas se faz necessária. A presente comunicação reconstituirá algumas problemáticas e

desafios referentes a este debate, na tentativa de contribuir com esse longo e complexo processo de

caracterização do objeto e da metodologia da História religiosa.

Distintas premissas

32 Graduando em História pela Universidade Federal de Ouro Preto. Esta comunicação é fruto de discussões desenvolvidas no Grupo de Pesquisa em Historiografia Religiosa coordenado pela Profª Dr. Virgínia Albuquerque Castro Buarque da mesma instituição.

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A História das religiões tradicionalmente esteve mais “preocupada com as origens e os

períodos mais antigos das religiões, seu método era voltado para determinar a precisão dos textos

religiosos, comparar os discursos sagrados e comparar as próprias religiões por meio de seus mitos,

ritos, símbolos e instituições.” (ALBUQUERQUE, 2003:59). Na perspectiva da História das religiões, a

ênfase no trato com os textos antigos de determinadas religiões é uma tendência que está, de certa

forma, relativizada tanto por causa de novas propostas e métodos como por dificuldade filológica dos

historiadores. Hoje, de forma mais acentuada, a História das religiões tem adotado uma abordagem

fenomenológica, mais preocupada com a relação indivíduo-sagrado, usando o termo eliadiano, do que

com os textos “cânones”. O grande número de trabalhos sobre os movimentos pentecostais e

neopentecostais e sobre as religiões africanas, sob um viés fenomenológico, confirma a proposição

feita acima.

No momento de sua afirmação, a História das religiões tinha como preocupação a análise de

sistemas religiosos em sociedades mais antigas. Podemos citar, como exemplo, Max Müller em sua

obra Lectures on the Sciense of Language (Londres, 1861) que propunha uma forma de interpretação

dos fenômenos religiosos por meio da linguagem. (AGNOLIN, 2005:12). Acompanhando os estudos

que se detinham aos problemas religiosos, ainda nos primórdios da constituição da História das

religiões, apresenta-se Durkheim. Seu estudo acompanha a corrente de Müller, porém se diferencia ao

tentar entender o sistema religioso em si, a partir da relação intrínseca entre religião e cultura.

Um pouco a frente, já num período de amadurecimento e firmeza, surge, principalmente a partir

de autores como Otto, Van der Leeuw e Eliade, uma concepção de História das religiões pautada numa

abordagem fortemente marcada pela fenomenologia, que buscava, de forma diferente em cada autor,

entender a experiência religiosa vivida em si. Esta perspectiva, que mais parece um desafio, criou

debates ainda inacabados.

Enquanto Otto e Van der Leeuw procuravam recuperar o sentimento religioso por meio da

observação e estudo da experiência com o invisível, diferentemente Mircea Eliade tinha como meta

buscar a essência da religião, por meio do sagrado. Todavia, na concepção do autor, o sagrado não

pertence ao nosso mundo, por isso a necessidade de procurar nos símbolos uma manifestação do

sagrado. Ao mesmo tempo em que a abordagem fenomenológica, nesta conjuntura, abriu caminhos

para uma cobiçada interdisciplinaridade, também suscitou o risco de se afastar da história, na medida

em que esta última não conseguiria explicar em seus próprios termos o que era ansiado – a

experiência religiosa em si.

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Outra vertente que suscitou novas propostas, em contrapartida as trabalhadas acima, é a

italiana. Gerada a partir da revista Studi e materiali dis Storia delle religioni (SMSR, Itália, 1925), “[...]

este endereço de estudos se propõe a ressaltar a historicidade dos fatos religiosos [...]” (AGNOLIN,

2005:19). Tal vertente, em seu período de amadurecimento – na década de 1970 – assume

características mais sólidas no que tange os estudos histórico-religiosos, “[...] partindo da necessidade

de ressaltar, antes de mais nada, a historicidade dos fatos religiosos enquanto produtos culturais,

redutíveis em sua totalidade à razão histórica.” (AGNOLIN, 2005:21).

Tratando-se agora da História religiosa podemos inferir que esta deixa de lado a experiência

com o invisível para tratar da relação entre religião e sociedade. Ao longo do século XIX, a religião

passou a ser vista como um produto sócio-cultural. Essa tendência é assinalada por Dominique Julia

quando diz que “[...] querer explicar em termos científicos uma religião já constitui uma confissão de

que esta deixou de fundamentar a sociedade, significa defini-la como uma representação, tratá-la como

um produto cultural despido de todo privilégio de verdade com relação aos outros produtos.” (JULIA,

1995:107).

O religioso, mesmo antes do século XIX, passa a ser estudado no meio acadêmico, tirando o

monopólio das mãos da esfera confessional, o que reforçará o olhar secularizado e desconstruirá a

visão providencialista que a História eclesiástica mantinha. Contudo, a História religiosa, ainda hoje,

não se desvincula totalmente da História eclesiástica, principalmente porque esta última se destituiu do

caráter apologético e pedagógico que manteve durante muito tempo.

Outro importante item para a compreensão da formação da perspectiva histórica em questão é

a influência da História das mentalidades, principalmente com os Annales. Esta foi muito importante

para a constituição de uma História religiosa, na medida em que abria à história uma nova gama de

objetos e abordagens. Contudo, os ganhos advindos das novas propostas dos Annales não excluem as

contradições que estes proporcionaram, claro que indiretamente, aos estudos sobre religião:

Mas se a história religiosa beneficiou-se incontestavelmente com os progressos da história das mentalidades, com ela talvez também tenha sofrido um pouco. Com efeito, vimos multiplicarem-se os ‘objetos históricos’ novos – a morte, a sexualidade, a criança – que se constituíram com frequência nas fronteiras da história religiosa, mas numa perspectiva completamente diversa. Problema fútil de limitação? Não somente. (LANGLOIS, 1993:661).

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Indubitavelmente os estudos sobre religião, a partir dos Annales, assumiram um caráter sócio-

cultural, porém é inquietante que o foco sobre o religioso se perca, sendo este um mero apetrecho para

uma explicação social. É difícil pensar em história religiosa quando analisamos uma obra de Marc

Bloch, para ser mais específico, Os reis taumaturgos. Nesta obra, Bloch entenderá o contexto social e

político por meio da importância que os reis assumem na sociedade. A questão da cura das escrófulas

por meio do toque real caracteriza uma sociedade em que o rei é uma peça importante, não somente

no campo político e administrativo, mas no místico e religioso, na medida em que este personagem

possui “poderes” milagrosos. Na visão de Le Goff e Truong, a obra Os reis taumaturgos é um conjunto

de História das mentalidades, do corpo, dos rituais e dos gestos (LE GOFF; TRUONG, 2006:23).

Assim, nos deparamos com um autor que usa o religioso para uma explicação política e/ou

cultural, desconsiderando de certa forma a especificidade do objeto. Seria cabível classificar a obra de

Bloch como uma História religiosa? Considerando o período em que foi escrito e a indefinição profunda

do que seria um fazer história do religioso, poderíamos considerar Os reis taumaturgos ao mesmo

tempo uma crítica à maneira de produzir-se história religiosa até então hegemônica (basicamente

voltada para as instituições “igrejas” e contestações a elas, quando não perpassadas por um viés

providencialista ou transcendental); de forma concomitante, e também uma incitação à escrita de uma

nova modalidade de história religiosa, sem necessariamente constituir-se paradigma desta.

O fato de a História religiosa ter um vínculo austero com a História das mentalidades constitui

um fator determinante na explicação do porque de sua inconsistente delimitação e especificidade, visto

que o religioso está diluído numa História econômica ou social. O próprio termo “História religiosa”,

usado por Dominique Julia, é carregado de uma conotação que dificulta considerar o objeto religião

como algo que necessite de uma abordagem singular, pois se a religião é um mero produto social –

uma representação – por que estudá-la a partir de uma metodologia exclusiva? A meu ver, Julia

desconsiderou qualquer grau de autonomia que a religião possui, chegando assim a conclusões que

devem ser problematizadas.

Esta tarefa é bastante complexa, implicando em uma aproximação das novas possibilidades de

questionamento e interpretação histórica advindas dos Annales, bem como de uma releitura (e não um

descarte) das produções formuladas em espaços confessionais, já que a maneira de ver e escrever

sobre o assunto decorre também das concepções aportadas pelo historiador em suas diferentes

historicidades. Contudo, no presente texto, estou considerando com mais afinco e profundidade as

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problemáticas levantadas a partir do século XIX até nossas atuais discussões, pois acredito que o

pensar história religiosa hoje se aproxima mais do que foi proposto nesses dois últimos séculos.

O ato de crer e o discurso: prenúncios para um objeto religioso

A tentativa de definir um objeto consistente e único para a história religiosa é extremamente

controversa. A própria concepção de religião muda nas diferentes conjunturas, o que nos impossibilita

de caracterizar algo que seja, universalmente, religioso. Podemos inferir que o que faz um estudo se

encaixar na categoria História religiosa não é em si seu objeto, mas a forma como este é visto e

tratado. Contudo, temos que ficar atentos acerca da possibilidade do religioso se dissolver no estudo

do social, se constituindo como uma mera representação cultural, o que pode vir a ser um problema.

Gomes alerta, com toda a razão, para o fato em questão: “Gostaria de assinalar que há uma Nova

História religiosa que tende preferencialmente para a distribuição clara, articulando, não obstante, a

História religiosa com a História cultural. Articulação, não diluição.” (GOMES, 2002:19).

Apesar do objeto religioso não ser, em si, totalmente definível, não exclui a necessidade de

pensarmos sobre ele. Primeiramente, devemos fazer menção a uma circunstância que muito me

incomoda: a perda do foco no religioso. Temos, contrapondo-se a uma História religiosa, uma História

social do religioso. Esta última serve-se da religião para uma explicação econômica, política ou cultural,

proposta na qual se aproxima da produção historiográfica dos Annales. É preciso, para não esquivar-se

da singularidade do religioso, separar estas dessemelhantes perspectivas.

Todavia, fica difícil não perder o foco, já que não existe um objeto plenamente constituído. A

fim de superar essa problemática, creio que deva haver uma tentativa de construção do que pode ser

considerado pertencente ao campo religioso em uma conjuntura específica. Feito isso, fica mais fácil se

enquadrar em uma abordagem sem perder o eixo objetivado.

Dentro da História religiosa se apresentam, basicamente, duas vertentes quanto aos enfoques:

1) viés cultural: ideológico e literário, sistema de pensamentos; 2) viés sociológico: práticas, enfoque

antropológico (BUARQUE, 2008). Em ambos nos deparamos com o que me parece ser o grande

desafio do historiador das religiões: a apreensão do ato de crer presente no discurso. Seja numa

abordagem fenomenológica ou ideológica, o que é almejado entender só pode ser feito por meio da

análise do discurso, já que este é o único vestígio palpável da vivência religiosa do qual o cientista das

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humanidades tem acesso. Acredito que o mais cabível para referendar tais proposições sejam as

contribuições de Michel de Certeau.

Para Certeau, o historiador nunca terá acesso à experiência religiosa em si, nunca alcançará o

inefável homo religiosus e seu respectivo diálogo com o sagrado. De acordo com o pensador francês:

Através de uma mística sempre ameaçada (segundo Bremond) ou de um folklore (para Van Genep), o religioso assume a imagem do marginal e do atemporal, nele, uma natureza profunda, estranha à história, se combina com aquilo que uma sociedade rejeita para suas fronteiras. (CERTEAU, 2008:35).

Não importa se o estudioso acredita ou não que a experiência com o invisível seja verdadeira,

pois independente disto o que se busca (e o que se pode buscar) está no discurso no qual o indivíduo

apresenta, seja em escritos ou na própria fala, e não na compreensão do transcendente.

O texto ou qualquer outro vestígio – quando se trata da descrição de uma experiência do

sagrado – é fruto da cristalização de uma circunstância vivenciada, porém não a é puramente (no

âmbito do real). Seja qual for o objeto em questão, não podemos alcançá-lo senão por meio da

interpretação – que é histórica – dos resquícios deixados pelos fatos, o que não resulta num acesso ao

real. Certeau faz uma distinção relevante entre o sentido vivido e o fato observado:

Aqui o problema é o da relação entre o sentido vivido e o fato observado. O historiador não pode nem se contentar com descrever o fato, postulando cegamente a sua significação, nem admitir como incognoscível uma significação que seria susceptível de uma expressão qualquer (neste último caso, a experiência religiosa seria a noite, onde todos os gatos são pardos, já que, finalmente, se admitiria um corte total entre o sentido vivido e as expressões religiosas). Existe, pois, entre significante e significado, uma relação a elucidar. Mas isto não pode ser feito ao próprio nível do fato. (CERTEAU, 2008:145).

A busca pelo sentido religioso puro, considerando a perspectiva eliadiana, pode consistir em

um objetivo inatingível na visão de Certeau. Encontrar o real não é tarefa para a ciência histórica. Seja

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dentro ou fora do campo religioso, o que temos são distintas perspectivas acerca de um fato. Destarte,

a proposta de Certeau nos fornece um grande avanço nos estudos sobre religião, levando-nos a uma

maior compreensão dos limites e possibilidades desta área do conhecimento.

Visto que o objeto religioso, seja qual for, está submetido ao olhar do sujeito que o busca, a

partir do discurso (imagético, textual ou oral), onde estaria sua especificidade já que não passa de uma

construção discursiva? Por que então o objeto em questão precisaria de uma metodologia

diferenciada? Entendo que, para garantir sua singularidade, o religioso deve se pautar na seguinte

hipótese: a fonte utilizada pelo historiador, contendo a fala do sujeito, deve ser apreendida e analisada

de forma particular, porquanto as palavras nela expressas não são fruto de uma circunstância

meramente cultural, mas sim resultados de uma experiência transcendente, cuja especificidade está no

fato desta assumir um certo grau de autonomia perante as estruturas sociais.

Assim sendo, definir o quão autônomo é o campo religioso em relação às estruturas sócio-

culturais é um processo realizado a partir das escolhas que o pesquisador faz sobre o objeto e

consequentemente sobre a abordagem. O grau de autonomia é relativo ao período estudado já que a

religião, em diferentes momentos, assume distintas formas.

Considero que o campo religioso assume seu grau de autonomia perante a sociedade, fato que

não exclui o diálogo entre ambos. A posição de Gomes, da qual compartilho, frente a esta ocasião, me

parece bastante ponderada: “[...] as religiões são também lugares relevantes dos conflitos sociais.

Assim sendo, o campo religioso é simultaneamente lugar, produto e fator ativo daqueles conflitos, e

parece-me, pois, legítimo considerar a História religiosa como uma disciplina específica.” (GOMES,

2002:17). As rupturas e continuidades concernentes ao âmbito religioso não estão totalmente ligadas

às mudanças sociais. Uma estrutura social pode se alterar sem que isto implique em transformações

nas formas de crer.

É exatamente por manter relativa autonomia que o religioso necessita de uma metodologia

específica. O quadro teórico-metodológico advindo da História social ou cultural não possibilita uma

compreensão da especificidade do religioso.

Querelas metodológicas: diálogo interdisciplinar e objetividade

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Dentre as discussões metodológicas que permeiam o campo da História religiosa, acredito ser

a questão do diálogo interdisciplinar e da objetividade duas problemáticas relevantes, das quais

discorrerei brevemente abaixo, numa tentativa de suscitar maiores debates acerca das presentes

temáticas.

O temor em reduzir o estudo histórico do religioso a uma Ciência da religião ou social, e até

mesmo em teologia, ainda permeia as análises em voga. O diálogo entre estas disciplinas é algo que

possui vantagens ao mesmo tempo em que oferece riscos. Talvez o receio maior esteja no contato com

a teologia, mais do que com as ciências sociais. Todavia, precisamos lembrar, a fim de compreender

melhor as possibilidades de diálogo, que a teologia já não é a mesma dos períodos em que a religião

regia a sociedade. Não pretendo fazer uma apologia para o uso teológico nas interpretações históricas

do religioso, apenas atento para o fato de que, muitas vezes, o objeto almejado requer um diálogo com

outro campo do saber, seja ele sociológico, antropológico ou teológico. O pretendido não é diluir o

conhecimento histórico em outro, mas complementá-lo, na medida em que se fizer necessário.

A própria história da igreja, sob a perspectiva teológica, pode ter sido uma das causas do

surgimento do nosso hodierno receio. Na medida em que a história se afirmava como ciência, sua

repulsa aos saberes teológicos se tornava mais evidente. As críticas recaiam sobre: a leitura

providencialista da história; o intuito pedagógico das obras; autenticidades das fontes; desprezo pelas

mudanças e descontinuidades e pela necessidade de ser cristão para desenvolver qualquer atividade

historiográfica (BUARQUE, 2008). De certa forma, o saber teológico superou o que antes era alvo de

críticas, possibilitando, hoje, um diálogo saudável com a História religiosa.

Deste modo, acredito ser válida a comunicação entre a história e as outras disciplinas, desde

que estas últimas sejam utilizadas como complemento, sem sobrepujar-se a primeira. Ansiar por um

diálogo que não exclua o aparato teórico-metodológico da história, que considere as historicidades,

constitui numa conversação saudável entre os distintos, mas não longínquos, saberes humanísticos.

A preocupação em desenvolvermos uma análise a-histórica do religioso por meio da

interdisciplinaridade não é, obstante, nosso único receio. Ser crente ou não, para o estudo de uma

determinada religião, é fator que gera arsenal suficiente para levantarmos algumas problemáticas.

Apesar de acreditar que atualmente a História religiosa tenha se afastado de uma construção

apologética ou memorial, creio ainda ser necessário pontuar algumas questões acerca da objetividade

no estudo do religioso.

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Antes, quero explicitar que estou considerando objetividade não como um ponto de observação

neutro, imparcial, mas como uma tentativa de melhor compreender um objeto histórico sem julgá-lo ou

exaltá-lo. O historiador deve se embasar no rigor científico, não para restringi-lo, mas para ajudá-lo a

compreender de forma mais ampla o objeto religioso.

Em períodos de afirmação de uma religião numa sociedade ou em momentos de

“descristianização”, por exemplo, observamos uma tendência na produção historiográfica,

principalmente eclesiástica, para tentar construir uma memória religiosa ou um saber pedagógico.

Atualmente, tal tendência se encontra relativamente desfeita, porém ainda não superada. Entretanto,

não tão distante da produção eclesiástica, hoje, a grande questão me parece estar mais orientada na

direção de um conhecimento histórico modelado por convicções subjetivas, no qual:

Estas motivações intervêm na escolha do objeto (relativo a um interesse religioso) ou na finalidade do estudo (em função de preocupações presentes, por exemplo: a descristianização e suas origens, a realidade de um cristianismo popular, etc.). [...] Por um lado, faz-se história religiosa porque se é cristão (ou padre, ou religioso), mesmo quando não se pode mais fazê-la como cristão. Por outro lado, com outra finalidade, mobilizam-se os resultados a serviço da crença, e esta intenção (mais ou menos ‘apologética’) provoca um certo número de distorções na pesquisa, porque o fim visado modifica o processo que leva a ele. (CERTEAU, 2008:144).

Todo historiador, por mais pujante que seja seu rigor científico, estará fadado a partir de um

lugar de fala e tomar partido de alguma hipótese que o encanta. A escolha do objeto e a finalidade do

estudo, é, a priori, subjetivo. Destarte, a preocupação maior está em uma história distorcida por

convicções individuais, que reduz o conhecimento histórico numa tentativa de exaltar a “verdade” de

uma religião ou de produzir uma “ciência edificante”, perdendo assim os ganhos que a cientificidade

propiciou aos estudos da religião.

Assumir o lugar de fala é a melhor forma de evitar tal desacerto: “É com a condição de saber

que se pertence ao campo religioso, com os interesses aferentes, que se pode controlar os efeitos

dessa inserção no campo e retirar daí as experiências e informações necessárias para produzir uma

objetivação não redutora [...]” (BOURDIEU, 1982:112). Trabalho pujante e custoso, porém essencial

para a construção de um saber científico mais sofisticado da História religiosa.

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Considerações finais

Tentar compreender o outro, tarefa essencial para o historiador, na visão de Michel de Certeau,

já se apresenta como um grande desafio. Deste modo, ainda mais árduo é o trabalho de interpretar a

experiência do sagrado ou os atos de crer. A fim de contribuir para aclarar os debates que permeiam o

campo historiográfico religioso é que discuti, ao longo da presente comunicação, as problemáticas que

se mostram mais relevantes sobre a História religiosa.

Assim, almejei contribuir para melhor definir o objeto e a metodologia da História religiosa,

como, ainda, ansiei colaborar para uma definição mais consistente da mesma. Longe de esgotar os

debates em questão acredito ter cooperado, de alguma forma, para estes.

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