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Entre o “real” e a ficção: estruturas narrativas dos romances policiais Escrever um texto sobre estruturas narrativas é, talvez, uma das tarefas mais auto-referenciais que um escritor, estudante ou redator pode realizar, porque não se trata apenas de uma classificação de gêneros e formas, mas de desenvolver, no próprio ato da escrita, uma reflexão meta- narrativa. É também permitir o surgimento, sobre a superfície da página, de toda relação dialógica (e às vezes leviana) entre o que acreditamos ser o real e o que consideramos ficção. Nesse sentido, começarei pelo fim, ou seja, por um dos últimos textos que analisei ao longo dos estudos nessa disciplina que me apontou novas perspectivas no prazeroso jogo de interpretações chamado leitura: me refiro aos Protocolos ficcionais (1994), texto de Umberto Eco, que nos leva a refletir sobre o quanto de real existe em nossa ficção, e vice versa, como uma delicada dança narrativa na qual [...] somos compelidos a trocar a ficção pela vida - a ler a vida como se fosse ficção, a ler ficção como se fosse a vida. Algumas dessas confusões são agradáveis e inocentes, algumas absolutamente necessárias, algumas assustadoras (p.124). No entanto, delicado e inocente são adjetivos que não usamos com tanta facilidade ao analisarmos os textos de Rubem Fonseca, autor escolhido por mim para compor, através

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Entre o “real” e a ficção: estruturas narrativas dos romances policiais

Escrever um texto sobre estruturas narrativas é, talvez, uma das tarefas mais auto-

referenciais que um escritor, estudante ou redator pode realizar, porque não se trata

apenas de uma classificação de gêneros e formas, mas de desenvolver, no próprio ato da

escrita, uma reflexão meta-narrativa. É também permitir o surgimento, sobre a

superfície da página, de toda relação dialógica (e às vezes leviana) entre o que

acreditamos ser o real e o que consideramos ficção.

Nesse sentido, começarei pelo fim, ou seja, por um dos últimos textos que analisei ao

longo dos estudos nessa disciplina que me apontou novas perspectivas no prazeroso

jogo de interpretações chamado leitura: me refiro aos Protocolos ficcionais (1994), texto

de Umberto Eco, que nos leva a refletir sobre o quanto de real existe em nossa ficção, e

vice versa, como uma delicada dança narrativa na qual

[...] somos compelidos a trocar a ficção pela vida - a ler a vida como se fosse ficção, a

ler ficção como se fosse a vida. Algumas dessas confusões são agradáveis e inocentes,

algumas absolutamente necessárias, algumas assustadoras (p.124).

No entanto, delicado e inocente são adjetivos que não usamos com tanta facilidade ao

analisarmos os textos de Rubem Fonseca, autor escolhido por mim para compor, através

de suas obras, exemplos para minha analise de estruturas narrativas que pretendo

desenvolver nessa monografia, juntamente com uma reflexão sobre o gênero policial

(em um sentido mais amplo). A escolha de Fonseca foi,em parte, devido a sua relação

com meu objeto de estudo para o doutorado, e também por conta de seu modo de narrar

situações que são, claro, fictícias, mas que poderiam muito bem ser consideradas obras

do cotidiano; algo que certamente acontece em algum beco ou rua das grandes cidades

congestionadas por rostos anônimos. Daí a relação com o texto de Umberto Eco: como

evitar que o “real” interfira em uma produção ficcional, sem causar danos a própria

realidade?

Outro motivo para essa escolha é também o fato de Rubem Fonseca ter desenvolvido

uma forma de produção literária que, de certo modo, parece ter estabelecido uma nova

corrente na literatura brasileira contemporânea, apontada por Alfredo Bosi (em 1975)

como brutalista. Em O cobrador, por exemplo, como em uma série de outros contos,

Ruben Fonseca desenvolve sua narrativa de tal modo que destacam–se personagens

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narradores de suas próprias histórias; protagonistas que parecem estar narrando para si

mesmos seus próprios percalços, ou descrevendo a própria satisfação em desvelar um

frágil estado de moral e civilidade social.

Como efeito dessa busca por uma narrativa que nos leva a desconfiar da própria ficção,

destacaria outro conto de Ruben Fonseca, Pierrô da Caverna, no qual um escritor

monologa sua história através da “maquineta”, isto é, um gravador. Desse modo, assim

como acontece com nossa voz gravada em uma fita magnética (ou mídia digital, hoje

em dia), o texto parece seguir um fluxo quase ininterrupto e com“interferências” da

oralidade, típicas de uma reprodução nessa mídia. Essa estratégia narrativa parece

brincar com nossos conceitos sobre o que vem a ser uma narrativa literária (escrever

uma história), ou até o que vem a ser (ou não) uma história ficcional. Umberto Eco

(1994) comenta:

Na verdade, em geral achamos que, ao ouvirmos ou lermos qualquer tipo de relato,

devemos supor que o sujeito que fala ou escreve pretende nos dizer alguma coisa que

temos de aceitar como verdadeira e, assim, estamos dispostos a avaliar seu

pronunciamento em termos de verdadeiro ou falso. Da mesma forma, comumente

pensamos que só em casos excepcionais – aqueles em que aparece um sinal ficcional –

suspendemos a descrença e nos preparamos para entrar em um mundo imaginário (p.

125).

Esse “sinal ficcional” é apontado por Eco como uma distinção entre a “narrativa

natural” e a “narrativa artificial”. A primeira tem uma relação direta com a realidade,

quando, por exemplo, eu relato o que fiz ontem pela manhã em meu trabalho; já a

segunda se compromete com o universo inventivo/imaginário, que apenas “finge” dizer

a verdade. Para isso, essa última utiliza-se do que Eco chama de “sinal textual”, que

compõe marcadores ficcionais indicando claramente que aquilo que se lê é uma ficção,

por exemplo, a abertura de um texto com “Era uma vez...”. Há também o “sinal

paratextual”, que consiste em uma referência externa ao texto, como o nome

“Romance” na capa de um livro. No entanto, essas noções nem sempre são claras, e é

aíque reside, mais uma vez, o dúbio jogo entre real e imaginário, na narrativa ficcional.

A questão que podemos levantar em relação a essa citação de Eco é: e se determinada

obra ficcional, de certa forma, apontar, através da ironia, para uma determinada situação

social “real” que mereça ser questionada? O efeito dessa incursão em um mundo

imaginário e a suspensão da desconfiança em relação a veracidade da fala do autor,

causada pela consciência do leitor em estar lendo uma ficção, pode levar a uma relação

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entre leitor e literatura como um mero entretenimento? Embora ela também possa servir

como uma fuga do mundo “real”, esse não seria o único papel dessa arte, não é?

Isso nos leva a outras questões. Como a literatura se utiliza do “real” para construir sua

narrativa e qual seria a função da literatura ao se utilizar desse “real”? Existe uma

função? Se levarmos em conta o gênero policial (o mesmo que compõe grande parte das

obras de Ruben Fonseca), em especial, a produção literária desse gênero aqui no Brasil,

iremos perceber que uma das características marcantes dessas narrativas são o olhar

irônico sobre a corrupção no sistema policial e a malandragem típica da personalidade

do detetive particular , o qual, assim como Mandrake (personagem de Ruben Fonseca),

se utiliza de meios nada ortodoxos para desvendar um mistério, ou simplesmente

concluir um caso. Portanto, podemos observar que a literatura apresenta aqui algo mais

do que um simples entretenimento, ela pode contribuir parauma análise por parte do

leitor ou da leitora mais atento/a sobre seu próprio meio social, sua cultura e sua

história.

Nesse sentido, algumas interpretações das obras de Ruben Fonseca podem sugerir o

desenvolvimento de uma narrativa que, com efeito, encobre outra, ou seja, por trás de

uma produção de histórias policiais poderemos, na verdade, encontrar uma crítica a uma

sociedade opressora do indivíduo; tudo sob o disfarce da narrativa de um crime ocorrido

em uma ficção policial. De fato, o que vem a tona, em suas obras, é o relato do

cotidiano desumano das grandes cidades e, em convergência com isso, a exteriorização

dos conflitos e dramas humanos despertos pela subversão da ordem: “[...] a morte não é

nada. O assassinato não é nada. O que transtorna é a selvageria do crime, porque ela

parece inexplicável” (BOILEAU e NARCEJAC, 1991, p. 11), por isso sua fama de usar

uma narrativa brutalista.

Ainda assim, relacionando gênero e estrutura narrativa, as histórias policiais de Ruben

Fonseca seguem, de certo modo, os clássicos desse gênero, como as histórias

produzidas por Conan Doyle, autor de Sherlock Holmes, o qual também oferece uma

visão turva entre as fronteiras que dividem o real do ficcional. Nas palavras de Álvaro

Lins (1953), percebemos o efeito desse personagem sobre o leitor e a leitora:

Nenhum personagem, com efeito, passou da ficção para realidade de modo mais

completo do que Sherlock Homes; nenhum personagem de Balzac ou de Dickens

adquiriu maior popularidade emaior verossimilhança. De todos os seres criados pela

imaginação foi Sherlock Homes o que obteve mais vida autônoma, mais independência

como criatura e mais ampla projeção universal (p.12-13).

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No Brasil também temos um personagem que, de tanto reaparecer em novos romances,

foi ganhando corpo e alma “reais” no imaginário dos leitores e das leitoras: o detetive

Espinosa. Esse protagonista do escritor Luiz Alfredo Garcia-Rosa, vem se aventurando

pelos mistérios das ruas do Rio de Janeiro por cerca de sete romances policiais.

Segundo Eco, essa pode ser uma estratégia narrativa intertextual, onde esse movimento

do personagens por diversas obras pode “atuar como um sinal de veracidade” 1994,

p.132)

Em se tratando da estrutura narrativa, as fronteiras entre o “real” e o ficcional já podem

ser um pouco mais demarcadas, quando percebemos um padrão na forma: a história

começa a partir de um mistério (normalmente um crime brutal) ocorrido antes mesmo

das primeiras palavras do primeiro capítulo. O desenvolvimento da narrativa, então,

leva os leitores e leitoras a uma série de eventos que culminarão na solução do caso.

Como as histórias clássicas seguem sempre a mesma forma (e as melhores, para alguns,

são aquelas que mantêm essa “fórmula”), chego a pensar que a solução do mistério é

menos importante do que o modo como se chega a ela.

Tzvetan Todorov (1979), ao descrever um tipo de narrativa (gnoseológica) citada como

exemplo na obra A demanda do Graal , descreve bem essa atração menor emrelação ao

desfecho da narrativa:

O interesse nasce de uma questão muito diferente [...] e que é a seguinte: O que é o

Graal? A narrativa conta, como muitas outras, uma demanda; o que no entanto se

procura não é um objeto mas um sentido, o sentido da palavra Graal. [...] a narrativa

principal é uma narrativa de conhecimento [...]. (p.73)

Assim, a estrutura narrativa no gênero policial clássico, pressupõe um prazer maior em

descobrir o sentido do crime através de seus estratagemas, do que a própria solução

desse crime, ou seja, o prazer da leitura sai de um caminho narrativo que leva a uma

conclusão lógica e linear, para se ater a complexidade do desenvolvimento desse mesmo

caminho. Segundo Todorov, pode haver dois tipos de organização narrativa: a

mitológica, que ele considera a mais simples, pois nela “se combinam a lógica e a

sucessão das transformações do primeiro tipo ” (1979, p.70); e a gnoseológica, “o tipo

de narrativa em que a lógica de sucessão é secundada pelo segundo gênero de

transformações; são narrativas em que a importância do acontecimento é menor do que

a percepção que temos dele, do que o grau de conhecimento que possuímos dele” (p.

71).

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Mais adiante em seu texto Os gêneros discursivos (1979), Todorov exemplifica esse

jogo narrativo nas histórias policiais propriamente ditas:

Sabe-se que este último [o romance policial de mistério] se constitui pela relação

problemática de duas histórias, a história do crime, ausente, e a história do

inquérito,presente, cuja única justificação é fazer-nos descobrir a primeira história. [...]

O inquérito consiste em voltar incessantemente aos mesmos acontecimentos, em

verificar e corrigir os mais ínfimos pormenores, até que no fim surja a verdade dessa

mesma história inicial; é uma narrativa de aprendizagem (p.73).

Alguns leitores preferem começar suas leituras já antecipando o final da história, para

assim, ao ler a obra, poder identificar nuances, detalhes sutis, que não seriam percebidos

se não soubessem quem é o vilão ou como o crime ocorreu, ou seja, para perceber como

a narrativa constrói seu caminho por entre as pistas deixadas pelo autor, o que pode ser

também, uma tentativa de superar o próprio detetive, uma vez que esses leitores contam

com uma informação que o detetive ainda não dispõe.

Nesse aspecto, há, pelo menos, duas formas de narrativa policial mais clássica, a

história narrada geralmente pelo amigo do detetive, através da memorização dos eventos

passados (uma espécie de grande flashback), como o Watson, companheiro de Sherlock

Homes, ou o capitão Harris, companheiro de August Poirrot. O segundo tipo de

narrativa é aquele legado a outro tipo de detetive, o detetive durão, das narrativas

policiais noir. As histórias desse último são narradas em primeira pessoa e acontecem

simultaneamente ao desenvolvimento narrativo.

O detetive de Ruben Fonseca poderia estar entre esses dois, ou melhor, ele compõe um

terceiro tipo de detetive que, como já foi mencionado, apresentacaracterísticas da

malandragem necessária a sobrevivência em uma sociedade opressora. Personagem

muitas vezes grotesco e de humor cáustico. Quando não é necessariamente através esse

detetive, as histórias policiais de Ruben Fonseca também chocam por mostrar a falta de

qualquer moral, culpa ou remorso por parte dos bandidos, esses que não são apenas

habitantes da classe social desprivilegiada, mas de qualquer classe social. Em sua

narrativa, Fonseca mostra de forma irônica a ausência de uma postura ética na sociedade

em que vive, onde as contradições sociais se apresentam em um contínuo crescimento.

Portanto, é através de uma estratégia narrativa ficcional que o “real” vai se revelando

gradativamente para aquele/a que tem olhos atentos.

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No entanto, não se trata apenas da descrição de uma sociedade suja e inóspita, existe

uma percepção mais profunda desse mundo, como afirma Fernanda Cardoso sobre

Ruben Fonseca:

Sua obra apresenta maiores sutilezas, temas mais complexos e ricos, como a solidão dos

indivíduos nas grandes metrópoles. A maioria de seus protagonistas vive opressa,

aturdida pela sensação de isolamento e de vácuo na alma – reside nesse ponto uma outra

forma de violência, a violência do indivíduo contra si, contra os outros por sua condição

e de outros contra esse indivíduo solitário.

É através dessa perspectiva ao mesmo tempo caótica e poética, que procurei apresentar

nessas poucas páginas uma possível relação dialógica entre as narrativas encontradas na

produçãoficcional de histórias de detetive e os caminhos que levam a uma esfera do

“real” mais tangível pela percepção literária. Assim como nós, seres sociológicos e

históricos, precisamos sublimar uma realidade muitas vezes vazia de sentido, dura e

desnuda de qualquer juízo de valor ou moral, precisamos também, através da literatura,

criar meios ficcionais de dar algum sentido não só às relações com o outro, mas às

reações ao isolamento presente nas grandes metrópoles. Como diz Eco, “[...] assim, é

fácil entender porque a ficção nos fascina tanto. Ela nos proporciona a oportunidade de

utilizar infinitamente nossas faculdades para perceber o mundo e reconstituir o passado

” (1994, p. 136). Ao expor o vácuo da alma (para usar as palavras de Fernanda Cardoso)

quem sabe não iniciamos um processo de preenchimento desta através do prazeroso ato

da produção literária (e suas estruturas narrativas) e a leitura?

___________________________________________________________REFERÊNCIASCARDOSO, Fernanda. Ruben Fonseca: violento, erótico e, sobretudo, solitário. http://www.unicamp.br/iel/site/alunos/publicacoes.htm Acesso em: 29 de julho de 2009.ECO, Umberto. Seis passeios pelos bosques da ficção. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.FONSECA, Rubem. Contos reunidos. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.LINS, Álvaro. No mundo do romance policial. Ministério da Educação e Saúde: Depart. de Imp. Nacional, 1953.TODOROV, Tzvetan. Os gêneros do discurso. São Paulo: Martins Fontes,